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Modelos culturais

e representação:uma
leitura de Roger Chartier 1

MARTA MARIA CHAGAS DE CARVALHO


JOÃO ADOLFO HANSEN

RESUMO O artigo discute três articu lações da história cultural de Reger


Charti er: a dos modelos cu lturais , a dos meios materi ais e a das apropri-
ações diferenciais de mode los e textos, demonstrando algumas possibi-
lidades heurísti cas das categorias de ''prática" e "apropriação" em estu-
dos da representação e de mode los c ulturais do século XVII, como os de
"discrição" e "vulgaridade".

Palavras-chave prática - rep resen tação- apropriação- modelo cu ltural


- meios materiais - recepção - discreto - vulgar.

ABSTRACT Th e articl · analyses three articulations of Roger Chartier's


cultural history: cu ltural patterns, material media and diffe rential appro-
priations of patterns and texts, demonstratin g some heurislical possibili-
ties of categories such as "practice" and "appropriation" In studi es of

I Esl leXIO ree lobo1a e luêld dois oulros produ?idos ind•víduolmenle p los autores. a saber: CARVALHO,
Marta M 1ia Chagas de- · Mod -1 s culturai s e lin9 uagem", aprescnt<ldo pela autora como debatedora da
conferênc ia d Magda B ck r Soo r · s. na essao fr.p ela I "Unguo esc rito. socledad o cuiiUia . Rei çõco,
domensões e perspectivas·. da 7'1 R \JI1ião Anual da 1\NP(d, realizada em Caxambu , MG. em outubro de
1995. HANSEN. Jo!lo Arl llo- "Leitura de CMrli r· , presentado pelo autor corno debal.cdor da conlerCnci
d Rogcr Chartier. "T xtos. lmp res o e Lerturas", realizada no Instituto de studos AYanç!ldos da USP, c;m
setembro d 199~ . Sua vers.o o dginal, 1 classificada como "Ensuio Bibliogréfoco" •oparad do texto d
ChMi r, publicado no no. 132 da Revista de História do DH-USP. foi publicada m Revista de História, S!io
Paulo. De partamento dll i i1 SI6ria do Univ rsldad do S o Paulo, 2o.SCmcSI1 9 1995, no. t 33. p. '123-129

VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, na 16, Set/96, p.7-24 7


XV IIth century representation and cu ltural patterns, as those of "discretion " objetos. A primeira é a da modelização retóri ca dos textos, como conven-
and "vu lgarity" . ção técnica aplicada num ato de discu rso que, ao transformar codili-
cação semiótica da líng ua, semanti za-se como nu nciado em situação,
Keywords practice - representation - appropriation - cu ltura l pattern - nas vári as acepções de opus. "obra" ou "texto" . Aqui já se obseNa uma
material medium - reception - discretion • vulgarity. diferença em relação aos mod los de inteligibilid de do texto tornecidos
pela lingüistica estrutural.
Sabe-se que. para que a lingüfstica fosse constituída como c iência
rigorosa. seus inventare!>. como Saussure, fizeram abstração dos usos,
Leer un soneto de Ouevedo ou das falas, reduzindo o fonético ao tonológico e as performances à
pensando que lo escribió gramaticalidade da frase e da sintaxe. A generalização da li ngüística
con una pluma de ganso 2 . como mod elo-piloto da teoria literária - por exemplo, nos formalistas
russos e tchecos, no New Criticism e nas teorias gerais da narrativid ade
Escrevemos aqui à moda do braconneur definido por Michel de dos anos 60 - fez com que os textos passassem a ser lidos segundo os
Certeau: como caçadores furtivos que avançam por territórios alhe ios modelos abstratos da língua- a r·onologia, a traso, a sintaxe - . apagan-
pilhando o que lhes convém, segundo uma táUca de apropriação que do-se quase s mpre o fato de qt..~e os texto s são discursos, enu nciados
passa pe los trabalhos de Rog er Charlier para neles capturar categorias ou.produtos, como investimento de um corpo numa torma fonética, numa
analíticas de interesse heurfstico no estudo de práticas cu ltu rais . forma semântica e numa pragmática .
Julgamos oportuno começar pelo titulo do seu último texto publica- Em Charlier, assis timos ao retorno do enunciado r calcado. o q ue se
do no Brasil, A ordem dos livros , para tomá-lo como fndice geral da evidencia. por exemplo, na sua retomada da catego ri a autoria como
natureza da sua prática historiográfica . Sinteticamente, o Ululo indica a elemento constitutivo do sen tido. Evid ntemente, não reduz a autoria ao
gr~n~ e c?m~ l exidade das suas operações . O duplo genitivo, subjetivo e produtor empfrico. nem à concepção romântica da expressão psicológ ica
obJetivo, md1ca que os textos são objeto das ap ro priações que os orde- "original", mas propõe a "função-autor", no sentido de Foucaull, como um
nam e distribuem por vários regimes de significação e sentido, mas modo de c lassificação e distribuição dos di scu rsos que implica determi-
t~b é m significa que produzem novas ordens de ap ropriações impre- nadas escolhas de materiai · e orientações de leitura assinaladas como
VIStas. que de algum modo subvertem a ordenação inicial com que foram um "ponto de vis ta" nos dispositivos textuais. As sim, d monstra que por
modelados e as classificações a que foram su bmetidos. Os livros são vezes os textos são perspectivados numa iniciativa subjetivada. que se
lidos, certamente, mas também lêem os leitores. Desta maneira, se o titulo Individua liza como autoria , por veze num ato anônimo, que se col tiviza
A ordem dos livros deve ser entendido referenc ialmente, sign ifica ndo como auctoritas. Os objetos produzi os pressupõem, por isso, nos usos
a ord enação diacrOnica que, entre o século XIV e o XVIII. foi imposta à que tazem das prescriçõ s retóricas do seu gêne ro. uma presença
multiplicidade das práticas do signo, como uma espócie de domínio c lassificatória que os distribui s gundo os regimos de legibi lidade e
c lassificatório que Chartier reatualiza nas formas da leitura. da autoria e intencionalidade de uma função autora l. Sua própria forma prescreve os
da biblioteca. também pode sign ificar que o livro produz novas ordena- modos e os sentidos com que devem s r lido - literatura, filosofia,
ções sincrónicas e virtuais. impossíveis de ser totalizadas. A ordem dos ciência, religi ão, política. poesia como se a representação tosse ao
livros se co nstrói programaticamente, por isso, como a figura de um mesmo tempo mimética e judícativa. como diz Weimann, ou representa-
inacabamento perpétuo, ~ois o duplo trabalho está-se refazendo sempre, tiva e avaliativa 3 .
como agora. na 1ntersecçao de estrutura e usos, de coerção e liberdade, Se os objetos discu rsivos modali zam o sentido da sua rep res ntação
de dependências e diferenças. segundo um "ponto de vista ", ou seJa, se eles fazem uma transformação
do material social que se pode caracterizar como a deformação de um
O tftulo ind ic ia as três articulações integradas de análise que Charlier
valor de uso da matéria semiólica da língua c d convenções retóricas
propõe como condições de possibilidade de se determinar a estrutura
das prescrições, a função das apropri ações e os valores dos usos dos de representação, a determinação dessa conv nções e dos c ritérios

3 WEIMANN , Rob rt· Struc turo and Socloty In Li t or~ry Hls tory ( Studí D11111 Hl&t ' Y unrt 1 h ory "' HISIOIIcat
2 CABR ERA IN FANTE- Exorcl mos do cstl(l)o. Ba • lona. S lx Barrai, 107 . p 191 . Crltlclsm) Expatlcled dlllnn Alllhnlot Lor1d011 , Th JoM>. Hopklnr, lJnlv trnly Pr • :.. 1984, 11 228

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dessas deformações será básica para se especificar a forma mentis que que, implfcita ou explicitamente, havia permeado a prod ução da chama-
organiza o discurso como um padrão ou um modelo cu ltural. da "nova história" . Tratava-se , para es ta, de "identificar as es truturas e as
A segunda articulação podias r resumida.pelo poema de Cab rera relações que, independentemente das percepçõ s e das intenções dos
Infante proposto como eplg rafe deste texto: individuas. supunha-se comandar o mecanismos económicos , organi-
zar as re lações soc iais, engend rar as formas do discurso." Agora, nos
"Ler um soneto de Ouevedo/ pensando que o escreveu/ com uma últimos dez anos, e sob o impacto de novas abordagens antropológicas
pluma de ganso". e sociológ icas. os historiadores estariam interessados em "restaurar o
papel dos lndivfduos na construção dos liames sociais" . Deste modo, são
Ou seja: a da materialidade dos supor tes e meios de produção e produzidos deslocamentos fu ndamen tais: "das es truturas às redes, dos
circulação dos discursos: volumen que se desenrola, codex que se sistemas de posições às situ ações vividas, das normas coletivas às
folheia, manuscrito redigido ou ilustrado com pluma ou ponta de metal, estratégias singulares" . Com eles, o objeto da história se redetine: não
texto datilografado. computadorizado, ou impresso, cordel, livro, panfleto, mais "as estruturas e os mecanismos que regu lam, fora de toda tomada
volume isolado ou de coleção, capftu los, paginação, exórdios. prefácios, subjetiva, as relações sociais, mas as racionalidades e as estratégias que
posfácios, notas - e toda a vari edade grande dos materi ais - papiro, as comunidades, as parentelas, as famflias , os in divíduos põem em ob ra."
pergaminho, papel, fitas, disquete - e dos tipos e taman hos de letras, O olhar se desloca das "regras impostas a seus usos inventivas, das
dimensôes da página etc .Aqui, o interesse da operação de Chartier condutas prescritas aos usos permitidos pe los recursos próprios de cada
consiste principalmente no fato de incluir a matéria no sentido, eviden- um: seu poder social, sua potência económlca, seu acesso à inf'orma-
ciando que o suporte ou a ordenação material da mensagem é sig no. ção"4.
Logo. que a significação do texto não pode ser dissociada da matéria Em segundo lugar, uma tomada de consciência dos l1istoriadores de
que organiza a forma da sua percepção nas apropriações. que seu discurso, qualquer que seja, é sempre uma narrativa (no sentido
A terceira articulação é a da materialidade do consumo produtivo , em aristotélico de colocar ações representadas num enredo ) e de que é por
que um ouvinte ou um leitor assumem a posição de autoria quando, meio de um conjunto de procedimentos literários codificáveis retorica-
coincidindo "Ou não com a pos ição do destinatário formalizado no contrato mente que o discurso historiográfico se produz como objeto dotado de
enunciativo do discurso, tornam-se autores dotados também de compe- estatuto científico.
tência ou autoridade. O consumo semantiza a representação em situa- Segundo Chartier, a dupla mu tação teria abalado as certezas mais
ções múltipla s e seg undo cód igos e posicionamentos variados , que vão sedime ntadas. abrindo caminho para um amplo questionamento do
desde a tautologia pura e que, acontecendo depois, já é diferença, até a estatuto da produção historiográfica. Atin gidos em suas ce rtezas , os
paródia mais radical e que, citando o que veio antes, é dep ndência, e historiadores ver-se-iam frente ao desafio de reafi rmar a pertença da
outros usos e sentidos incon tw láveis. Chart ier demonstra, no caso. que história ao domínio das ciências sociais.~ que, no bojo dessas mutações ,
importa considerar os protocolos as comunidades de leitura, as duas tendências se dese nvolveram, golpe ndo as representações do
class i·ficações. os regimes de circulação, as exclusões, as censuras, as estatuto cientifi co da produção historiográfica e da vocação da história
cesuras da atenção, os tempos, a oralizaçao, a memorização, a leitura em compreender as sociedades. No pri meiro caso. estaria situado o
silenciosa etc . linguistic turn norte-americano, que, "em estrita ortodoxia saussuriana,
O intrincamento dessas três articulações constitutivas da produção toma a linguage m como um sistema fec hado de signos cujas rel ações
de Reger Charlier instiga a si tuá-la no debate historiográfico atual, para, produzem significação a partir delas mesmas". Como conseqüência, "as
em segu ida, a partir da discussão de algumas das suas catego ri as mais habituais operações historiográficas se ncontrari am já sem objeto,
centrais, fazer-se um uso heurístico delas, na exploração de algumas a começar pelas distinções fu ndadoras entre !exto e contexto, entre
questões cu lturais . realidad s soc iais e expressões simbólicas, entre discursos e práticas
Em conferência rea lizada em São Paulo, em setembro d 1993, Reger não- discursivas". No segundo, destacar-se-ia uma tendência de retorno
Chartier discorreu sob re a inc rt zas e as dúvi das que, do seu ponto de ao polftico. qu acentu a a liberdade do sujeito, a parte refletid a da ação,
vista, permeiam a re11 exão historiográl'ica hoje. apresen tando-a como
conseqüência de duas grandes mutações. Em primeiro luga r, uma mu-
4 CHARTIER Roge1· "L'Hisrolra oujowd'hui: douro:;, dells, pr ponluom•" r xro upt s< ntado m con f ttinoia
dança de paradigma, evidenciada no romp imento com o estru turalismo 1 allzada no Instituto d Estudo" /lvanc dos USP em ~et eti!I.Jt o d 1003

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as construçõ s conce ituais, recusando os procedimentos clássicos da isso, sua operação também permite a crítica desse "conceito tênue de
históri a socia l, que visa vam identificar as delermin ações não sabi das que real", como dizia Fouca•ult, que fa com que os discursos sejam entendi-
comandam os pensamen tos as condutas. dos como um espe lho onde se deposita a imagem pá li da de algo já
~ con tra tais tend ·nelas - desiguais nos seus pontos de incidência conhecido na base e que se oferece ao re-conh cimento. Na operação
e no seu potencial de corrosão - que Charlier d marca diferencialmente de Chartier, os discursos são reais e absolutamente contemporâneos do
a sua perspectiva de investigador. Contra o abandono dos proc dim ntos seu tampo, obviam nte . Como os discursos são práticas, sua operação
c lássicos da história social, rea1irma a "tensão enlre as capac idades descarta também a concepção empirista que os põe como um instru-
inventivas dos indivíduos ou das comunidades e os constrangimentos, as mento transpare nte para se atingir a consc iência do sujeito das práticas
normas, as convenções que limitam - mais ou menos forte mente, segun- como uma unidade prévia de consciênc ia. alienada ou não, mas prévi a
do sua posição nas relações de dominação - o que lhes é possível à própri a prática discursiva.
pensar, enunciar e fazer". Contra o linguistic turn . firma a ilegitimid ade Com isso , o conceito de apropriação não se define pela transferência
da redução das p ráticas cons1i tutivas do mundo social aos pri ncípios que metafórica de uma categoria econômica , como "prod ução" , para a leitura
comandam os discursos. a irredutibi lidade da expe ri ência ao discurso . dos textos, como ocorre u na "c rítica escriturai " dos anos 60 e 70, como
Ins iste na não- identidade entre duas lógicas : de um lado, a lógica a de Barthes e Kristeva. A operação de Chartier não é uma nova textua-
logocênt rica e hermenêutica que governa a produção dos discursos; de lização da subjelividad entendida como efeito determinado pela estru-
ou lro , a lógica p rát ica que regula as condutas e as ações. Pontua que "a tu ~a da lfngua ou do inconsciente, como ainda sugere o Fo uca ull de
constru ção dos interesses pelos discursos é ela mesma socialmente L'ordre du discours . Também não é uma interpretação ou uma herme-
determin ada , limitada pelos recu rsos desiguais (de linguagem, conce l- nêutica, como um come ntário ou urna subjet ivação da textu alidade que ,
tu a.is, materiais, etc.) de que dispõem aqueles que os p roduzem" e que, ao en tender os objetos c ulturais como relação intersubjeliva de consciên-
portanto, as constru ções discursivas reenvi am "necessariamente às po- cias , abstrai seu meio material. Com as Lrês articulações referidas, me-
siçoes e às prop ri edades sociais objetivas, exteriores ao discurso, que diad as sempre pelo conce ito d e apropriação, a operação de Chartier faz
caracteri zam os diferentes grupos. comun idade ou c lasses que consti- com que os objetos falem a partir da sua matéria. O procedimento impede
tuem o mundo social" :,. que o se ntido se ja dissoc iado das con di ções e dos meios materi ais,
impedindo também que representação se ja delir1 ida de modo unívoco ,
A posição de Chartler pode ser melhor compreend ida a partir de dois
ora como um reflexo secundário, ora como restrição disc iplinar, ora como
conceitos-chave, os de represe ntação e apropriação. A partir das três
expressão psicológica ou diálogo espiritual de consciências,
arti culações explicitadas acima, pode-se também propor que a ori ginali -
O conceito de representação como :prática specifica o sentido
dade interessantíssima do seu trabalho é a de evidenciar-se como um
segundo as cond ições e os meios materiais em que se arti cula . O mode lo
ponto, por defin ição móvel, de intersecção ou de apropri açã de vários de in teligibilidade dessa re lação poderia ser tomado às práticas discur-
saberes do signo, que inclui e soluciona aporias de estudos estruturalistas sivas do sofi sta, tal como as constit ui Foucault, em' L'ordre du discours
e marxistas. Em sua operação, é central o conce ito de Aneignung , , ou à formalidade das práticas . que Michel de Certeau exuma em
apropriação, como na defi nição de Marx do trabalho que, enquan to L'inventíon du quotidien 7 .
transforma materiais produzindo valores-de-uso de um ob jeto nu ma Esta leitura de Chartier ind icla o campo conceitual quo mod la sua
situação d eterm inada e segundo uma posição determinada na prod ução, ap ropri ação de Du rkheim e Mauss. Na leitura destes autores. inter·essa-
também produz um sujeit.o posicionado para o objeto. Cllartier desloca- lhe , como pontua em entrevista A. con trapor o conceito de representação
se, contudo, da determinação macro-estrutural e unívoca da intra-estru- coletiva a "uma fo rma de filosofi a da consciência", para designar a
turapre suposta em estudos que entendem a Aneignung de Marx como incorporação. em cada indivíduo, das própri as es truturas do mundo
doutrina do reflexo e que costumam propor a determi nação unívoca do soc ial. Mauss e Durkheim lhe interessam na medida em que "concebem
simbólico pelo econômico e. por vezes, pe lo político, fazendo do disc urso os sistemas de rep resen tação co letiva como uma torma de interna li ação ,
uma representação s unda, como re-apres ntação mais ou menos
adequada de algo já dado, apre enlado e conh c ido como "o r ai" . Por
6 FOUCAULT, Mi hei· L'ordro du dlscours Pari , 1lllll'ntUc1, 1 7 I, [J 46
7 DE CERTEAU , Mlch I· L' lnventlon du quolldl n. 1· All s (J I ire l'tlrla. U G , 1 80. Col. 10 118.
8 GOLOM AN, N ml y ARFUCH, L onor· "llisloti J y p r à~ li Ullurol ·" ( 111revlslo G nogor ChUiller) In
5 Idem, IIJ1dem )EN'TA EPASADOS(. Rovr slu do H•slorlu 8 u ~nc .• llire,, El Llbn:l , J'rlnclplo Gcl ~~ 4. Ano IV, no. 6, p, 139

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de incorporação nos indivíduos da estrutura socia l mesma, e, desta es tando, portanto , presente, "no lugar de"; e algo que es lá ausente e que
maneira, a criação de ,esquemas de percepção, de lulzos que fund amen - é prese.ntilicado como ob jeto des ignado.
tam as mane iras d pensar, de atuar, etc"9. Nas sociedades de Corte barrocas, dos séculos XVI ao XVI II . por
Nesse uso, a retomada do cone ,ilo de representação coletiva é exemplo, a r presentação da posição pressupõe signos adequados e
operação que incorpora os novos saberes do signo que, a partir de reconhecívei s como decorosos por todo o corpo polftico. de modo que a
Saussure, descartam a concepção instrumental da ling uagem que apri- aparência é fundamental, pois a liberdade individual c grupal se detlne
siona as práticas discursivas de representação no espaço tênue das como subordinação à hierarquia dos privil gios; na subordinação . a
relações ideais entre pensamento e palavra ou palavra e objeto designa- Identidade se define como representação e pela represenlação; assim,
do. Talve z se1a mais adequado compreendê-la como ope ração que . de o poder é dedutível das apa rências e a posição, da forma da represen-
algum modo, incorpora as hipóteses foucau ldianas de L'ordre du dis- tação 1 ~.
cours acerca dos dispositivos de "elisão da rea lidade do discurso no As categorias de prática e de representação , operadas com a de
pensamento filo sófico" 10 ocidental desde Platão e pelo programa aí apropriação, têm grande valor heurístico, pois permitem desnaturalizar
enunciado de restitui r ao discurso seu caráter de evento. Chartier dá as representações e deslocá-las da generalidade transhistórica de cate-
índices dessa incorporação quando propõe "rein troduzi r no coração da gorias mágicas como "influência", "imitação" e" transplante de idéias".
c rític a historiográfica o qu stionário montado (dressé) por Foucau lt para A dissolução da naturalidade da representação faz com que os resíduos
o tratamento das 'séries de discursos''' , como "condição para que os do·arquivo falem a partir de si mesmos e, para isso, os reatualiza como
textos. quaisquer qlJe se jam, que o hi storiador constitui em arquivos evidências de práticas datadas, isto é, como representações de práti-
sejam subtraídos às reduções ideológicas e documentais que os des- cas que resultam de práticas de representação . Quando se determina
trufam enquanto 'práticas descontínuas"' 11 • o caráter dessas práticas, pode-se também especificar o caráter das
É sobretudo a atenção prestada à formalídade das práticas ou ao representaçoes que elas produzem; e, uma vez que as mesmas práticas
sentido das formas, no entanto, que indicia a apropriação do co nceito são formalizadas cu lturalmente, também se evidencia que são represen-
de representaçã.o coletiva . Impedindo que os discursos se jam reduzi- tações .
dos "às idéias que enunciam ou aos temas de que tratam (qu'ils por-
tent)"1 2, tal atenção faz com que representação seja entendido como • • •
prática na qua l a forma é determinante do sentido. Aqui, Miche l de
Certeau de A Invenção do Cotidiano é uma referência fundamental, por É oportuno inco rporar à leitura de Chartier aqui efetuada algumas
ter evid enciado exaustivamente a incoerência de se pret nder "dar con ta consideraçõ s sobre a operacionalização das categorias que propêle
de um tazer na s metalfnguas do fato", de se pensar as práticas como para o estudo das práticas d produção, circulação e apropriação dos
"fatos de soc iedade" 13. objetos cu lturais. Para isso, é pertinente retomar a tensão estrutura/usos
É principalmente nas prá ti cas de represe ntação do Antigo Regime , que atrave sa a sua produção. Com efeito, a mutação que marcou a
trabalhadas por Norbert Elias e Chartier, que se concretiza a noção de produção historiográfica con temporânea, carac terizada pelo rompimento
que a forma da representação é determinant do senti do do que é com a matriz estruturalisla que vinha configurando os estudos históricos,
representado . la evidencia a posição do sujeito que representa, toman- aplica-se ao caso específico de sua própria produção, centrada na
do-se aqui representação m sua dupla acepção: algo que aparece, história da leilura. De seu ponto de vista, a chamada nova históri a cultural
francesas caracterizari a, fundamentalmente, pe la ênfase dada à ques-
tão dos usos diferenciados que grupos ou indivíduos fazem dos modelos
e dos objetos c ulturais que lhes são impostos.
Uma ênfase desse tipo é que conslítui o interesse pela históri a da
leitura, nascida da insatisfação com uma história e uma sociologia do livro
atentas apenas a questões relativas à sua difusão, distribui ção ou circu-

14 CHARTI R. n "l nltO<:Inn s el lens lon ~ cullurolle:; d 1'1\n l .n Héglme ". Mrmco. Pool s, EI·IESS. 1987; ELIAS ,
Nor!Jerl· La soclót6 do Cour Prélac de flog r Ch.lllr!lr Paris. rl lln~Tl arloo . 1085. (CI1amps. 1~4) ,

14 15
!ação ou aos dispositivos de imposição da "mensagem'' de que o livro Ler como habilidade de reconhec imento gráfico de um nümero restri to
o vefculo. Frente a ess tipo de investigação. é fundamenta l a pergunta de textos.
de Bourdieu: "o que é que as pessoas lazemcom o modelos que lhes O modelo de leitura posto em circulação essas es tratég ias diferia
são impostos?" 15. do articul do nas práticas d leitura d tradição c lerica l, centradas na
A atenção dada por Chartier aos usos diferenciados qu grupos ou esc ri ta, como prálica da glosa hermenêutica dos textos das autoridades
individuas tazem de modelos e de artefatos cul turais e o d sloca mento canónicas. Esta di1erença era também dispositivo de distinção social do
que propõe. das "regras 1mposta.s a seus usos inventivas", não o cond u- "letrado", no âmago mesmo do p rocesso de difusão do modelo de acesso
zem à desconsideração das "determinações não sabidas que coman- ao escri to que se pode chamar "ler para rec itar" . Ela é potenciada pela
dam as ações e os disc ursos". como se lê em sua crítica à corrente c irculação, no sécu lo XVI I, de outro padrão culto de leitu ra, difund ido no
historiog ráfica atual que acentua. a liberd ade do sujeito e a dimensão modelo cu ltura l do discreto.
refletida. da ação 16 Ao contrário, a liberdade do uso é uma liberd ade O tipo do discreto , a que se opõe o tipo constiluldo como vulgar, é
determinada por dispositivos insc ri tos nos objetos e nos modelos cultu rais "caracterizado invariavelmente com as virtudes do cortesão e do pe rfeito
que comandam a sua circ ulação e a sua apropriação. Por isso, a "tensão cavaleiro cristão: distingue-se pelo engenho e pe la p ru dência, que fazem
entre as capac idades inventivas dos indivíduos ou das com unidades e dele um tipo agudo e racional, dotado de meios retóri cos e éticos que o
os cons trangimentos. as normas, as convenções" que as limitam consti- tornam sen hor absoluto dos protocolos dos decoros e, portanto, da
tui-se para Chartier na questão central dos estudos de históri a cultural. rewpção" 17 .
É oportuno, aqui, pergun tar-se como pode ser operacionalizada, em Uma rápi da incursão pela codificação retórica dos tipos do discreto
estudos de história cu ltural, a ên fase de Chartier na tensão que atravessa e do vulgar, em que "retórica'' se entende como uma prálica de
a produção, a ci rcu lação e a apropriação das práticas e dos objetos apl icação de esq uemas de forma r discursos por aqueles que se apro-
culturais. azendo uso dos modelos de análise que propõe para captu ~ pri am do modelo do discreto e também como representação discreta,
rá-l a - as polarizações que poem em contraste disciplina/invenção e pode evidenciar melhor o uso feito por Chartier do conceito de represen-
distinção/divulgação - gostaríamos de erwereda r pelo exame de tação.
algumas questões de nosso interesse especff'ico. Para fazê-lo, explora- É a retórica aristotélica que constitui o discreto e, por isso, a obser-
remos esses modelos de análise, tematizand'o. num caso partic ular, a vação das suas convenções permite demonstrar-se que, em sua mode-
relação entre a constituição de competências esp crlicas para ler e lização, a Identidade do tipo é def·inida como representação, como um
escrever pela escol e a circu lação de outros padrões cu lturais de leitura estilo de aplicar esti los. ou um estilo de afetar uma aparência . Por isso, a
e escrita. capacidade de escolher e aplicar um deco ro c não outro define também
Tomemos a habilidade individual de decodilicar símbolos escritos a superioridade social do tipo. como uma forma da rep resentação
re lacionando-a às práticas de alfabetização que as Igrejas - catól ica e adequada às situaç5es móveis da hierarqu ia. Logo, também, sua distin-
pro testante - articu laram, no século XVII, no âmbito de suas es tratég ias ção. como excelência e poder, d corre da forma da representação . O
de r cristianização. O que importava nessas estratég ias era expandir um domfnio dessas conv nções se especifica como habilidade, requeri da
uso da leitura ( e só da leitura) de contornos muito definidos: tratava-se ao tipo, de ser sempre senhor das situações no grande teatro do mundo,
de desenvolver a habilidade de decodificar símbolos escritos de modo a tendo, para todas elas, a fa la e a interpretação mais oportunas.
possibi litar o reconhecimento da represe ntação gráfica de um texto já Como um tipo que atua liza o provérbio de Veneza, degli effeti
conhecido, quando não já deoorado , por memória auditiva de leituras em nascono glí affeti , "dos efeitos nascem os afetos", o discreto conhece
voz alia real izadas por quem tinha autoridade para tazê-las . em cerimô- os esti los adequados às ocasiões da hierarquia. No caso. é a ag udeza
nias religiosas ou em sala de aula . Ler, portanto , como auxílio mnemón ico , conceituosa que o disti ngue do tipo do vulgar, pois o engenho e o juízo
em práticas de rec itação . er em voz alta em situações de convívio socia l. que o caracteri zam são aptos para produzir e compreender a dificu ldade
prog ramática dos disc ursos como disti nção social. Quando Góngora, por
exemplo, afirma que deseja escrever grego e s r obscurissimo, dec la-

n tocfo ~ m oonlorlmcla 17 I-IANS N,Jo o Aclolfo-"Dtsc• toevulga• : modalo~; cuii• Jrul snaspp:ltlcas do r r r ~on t u.çilc b ar roca "ln sl udos
Po rtu gueses o Alrlc anos Cump""' "· I!ISIIItriO ( fiJ Est11du" da Linguagem UNICIIM , 199 1, nu 17.

16 17
rando escriba no para muchos , evidencia a auctoritas de sua poesia No enlr cruzamento dos modelos - ler para rec1tar, I r para escrever
como emulação do modelo do discreto. Retoricamente, a agudeza glosando, ler para viver com a discrição eng nho prudente -
seiscent ista é hermética porque é culta: aproxima c nc ilos distantes e torjaram-s estrat gias de controle dos usos a lei lu e re presentações
os fu nde em metáforas cu ja interpre tação dep nd do juízo do enge- das habilidades implicadas neles com si nos de distin ção social. O
nho ausentes no vu·lgar. segundo a convenção. modelo de difusão mais ampliada - ler para recitar - constituir- e-ia, no
Quando especificada como habilidade do ler c esc rever, a discrição contras te com os outros dois, de padrão cu lto em e Lratégia de controle
também é "agudeza conceituosa" ou "agudeza prudencia l", habilidade das práticas de leitura. Por opo içáo às do discreto , poderiam ser
do engenho e do juízo "ap tos para compreender a dificuldade programá- chamadas de vulgares. O con trol e dG ta1s práticas pretendia-se ao
tica dos discursos como distinção social" 1!'l. Ta l habilidade supõe o mesmo tempo controle dos livros lidos - já que se pretendia conte r a
domínio das convenções retóricas que prescrevem a adequação dos leitura "vulgar" e virtu almente herética, hab ilitando-a ape nas a um con-
discursos ao caso . ao gê nero e à ci rcunstância 19 . Supõe também o junto restrito de textos ortodox.os - e controle os usos da leitu ra. Tal
domínio das convenções d uma "racionalidade de Corte" que rege a controle linha dupla face. Por um lado, era controle do se ntido dos tex tos
ordenação hierá rquica do socia l. A habilidade pode ser cu l1i vada pela lidos, como estratégia da Igreja na luta contra a heresia. Por outro, era
freq üentação engenhosa dos livros em que s acumulam os saberes controle das maneiras de ler como signos de distinç - o social , operados
aU'Iorizados dos "c lássicos". Como escreve Baltasar Gracián . conterem no interesse de um lipo social novo u , t nd consegui do abolir o
ao disc reto uma not ic iosa universa lidad , de modo que a Fi loso fia Moral monopólio cleric I sobre as letra , identifica-se com o mod ~ l o do homem
o fa prudente: a Natural, sábio; a História, avisado: a Poesia, enge nhoso; de Corte: o cortesão letrado .
a Retóri ca , eloq üen te: as Humanidades, disc reto: a Cosmog rafia, noticio- Na difusão desse rnodo de leitura "vulgar" , evidenc ia-se, assim, um
so: a Sag rada scrilu ra, pio e consumado em todo gênero de boas letras.· dos modelos de compreensão propostos por Roger Chartier para dar
conta dos textos , dos livros e das leituras: o que põe em contraste as
A complexidade desse padrão cultfssi mo de leitura que mobi liza
noções solidárias de distinç.ão e divulgação. As noçóes permitem.
várias operações cognitivas e metacognitivas na constituição do tipo
seg undo Chartier, "propor uma compre nsão da irc ulaçào dos objetos
discreto tem sido subestimada, desde o Iluminismo. Isto porque os usos
ou dos modelos culturais qu nào a red uz a uma simples d ifusão,
discretos da leitura perderam visibilidade em práticas das sociedades
geralmente pensada como emanada de c1ma para baixo, na escala
que, a par tir do século XVIII , es tru turam o tempo segundo outra lógica, a
social. Os processos de imitaçao ou de vu lga ri7ação são mais complexos
do Progresso. Tais usos , que escolasticamentc implicavam a mobilização
e mais dinâmicos e dev m ser pensados , anlcs de tudo, como lutas de
simu ltânea da memória, da vontade e do intelec to, toram reduz idos,
concorrência, onde toda divu lgação, concedida ou conquistada , produ
desde então, à m mória, apagando-se a sua especificid de históri ca. É concomitanleme nte a procura de uma nova distinção" ''i.l , A mp liação
assim que, po r exemplo , no Brasil, dissemmou-se uma represen tação do das possiblidades de acesso ao esc ri lo , inici d com as Reformas do
ens ino jesuílfco no perlodo colon ial como ensino dissociado da reali dade séc ulo XVI e potenciada, em s gulda, no process de co nstit uição de um
porque cen trado no estudo de discipli nas , como o Latim e a Re tórica, q ue modelo esco lar de allabelização. ra também estratég ia de contenção e
não Leriam nenhuma "utilidade social". Com esse gênero de avaliação discriminação das práticas de leitura ditas "vulg ares".
anacrónica, que projeta retrospectivamente valores iluministas no passa- No entanto, no sécu lo XIX, nos pafses em qu o modelo escolar de
do, deixa-se de questiona r a possível ficácia de tal ensino na modelí- alfabeti zação se expandiu intensamen te, e mais lard , em países como
zação das práticas do "letrado" e de sua representação como "homem o Brasil , uma legião de novos leitores sustentou uma inédita expansão do
de qualidade", hierarquicamente posicionado na sociedade coloniaL mercado editoria l. Fica evidente que as estra tég ias de controle das
leituras "vu lgares" malograram , evidenciando-se a pertinência de um
seg un do mode lo de compreensão, formulado por Chart ier para dar conta
dos textos . dos livros e das lei'luras . · o que poe m contraste disciplina
e invenção: "Todo dispositivo que visa criar con l.r le o contenç~o sec reta

20 C,, CHARTIER, R "1 xlos, lmpr , I i•lll u"· 111 A Hl tório Cul tur al ~II' I<'IJ I,, ll - :.o repro ' III.JÇ " , Llsb ·!}
Rto d J· n 'ro. DIFEI I 90 op IV, p. IJIJ

18 19
sempre táticas que o aprisionam ou o subvertem : inversamente, não há de modo que o decoro retórico da representação é simultaneamente
produção cu ltural que não empregue materiai s impostos pela tradição, decoro ético-polftico da mesma . Assim, a f rma da represent ção evi-
pela autoridade ou pelo mercado e que não seja submel ida às vigilâncias dencia a posição superior do tipo que a produz como um discreto
e às censuras de quem tem o poder sobre as palavras e os gestos.'' iluminado pela Graça.
A possi ilidade de dar conta da tensão constitutiva dos processos Tomemos aqui dois casos, ambos do século XVI I luso-bras ileiro: o da
de circu lação e apropriação das prálicas e dos objetos cu lturais é sálira e o da oratória. No caso da sátira , a mediação do critério alfabeti-
largamente dependente de procedimentos de análise atentos à materia- zado e literário do impresso faz com que hoje se entenda como defeito
lidade dos dispositivos insc ritos nestas p ráticas e objetos 21 . Gostaríamos estético o que, no século XV II , era qualidade retórica do deco ro. Então,
de ilustrar este ponto enveredando outra vez pelo campo das práticas o discur o aplicava outros dispositivos de modelízação, orientando-se
letradas luso-brasileiras dos sécu los XVII e XVIII e relac ionando as cate- por outro sentido do tempo, ci rcu lando por outros meios. segundo ou tras
gorias de Chartier com os modelos cultu rais e a materialidade que as apropriações. Por exemplo, na Bahia do final do século XV II , o poe ma
especificam. manuscrito do panfleto anônimo, da fo lha vulsa, do papel pregado na
Pelo termo "lel ras", designam-se aqui não apenas os discursos porta da igreja, que eram lidos em voz alta para um público analfabeto
impressos na l'orma do livro , relat ivamente raro na Colônia; nem também nas formas da recitação, da declamação e da dramatização faci lmente
só os manuscritos, muita vez redig idos com tintas vegetais produzidas memorizáveis, dada a trama trpíca e fort.emente es tereotipada dos ob je-
em fundos de quintal, como é o caso de alguns cód ices gregorianos da tos., que logo eram apropriados em novos circu itos, quando copiados ou
Biblíoleca Nacional do Rio de Janeiro. ensa-se com o termo "letras" oralizados em novas situações , ou se ja, com novas deformações .
também naquelas espéc ies eplgráflcas, como as que Petrucci discute Na modeli zação retÇrica da sátira. ressa lta imediatamente a aplica-
em seu livro sobre a escri tura quando trata de 11 cannocchiale aristote- ção do ut pictura poesis horaciano, que é uma doutrina do decoro, isto
líco, de Tesauro 22. Isto ·, formas que se oferecem à visão, inscritas e é, uma doutrina dos efeitos de estilo adequados às recepçõe s, que então
escritas nos vários espaços da cidade barroca, principalmente o da regu la toda a poesia e a prosa . A sátira aplica o ut pictura porque a
igreja, no trabalho das image ns de santos, talhas, altares, paredes e tetos, oralízação e a audição são tatores constitutivos do sentido das suas
mas também em paramentos de procissàes e festas e outros objetos, formas. Segundo um preceito do ut pictura, a sátira é um gênero popu lar
como chafarizes, fron tões de palácios e casas principais. Formas que que adapta o tempo curto e movimentado da praça e das ruas ao es tilo,
aplicam esquemas em que o plástico se lê e o textual se vê. No caso de como um pressuposto daqu ilo que rep resenta . Tal tempo deve ser estili -
Portugal , são quase sempre extra idas do lconologia, de Cesare Ripa, do zado esquematicamente para o destinatário, ou seja, a sátira deve ser
Hieroglyphica , de Horapolo, dos Emblemata, de Alciali , e do Hieroglyp- composta com as tormas esquemáticas da percepção no movimento e
hica, de Valeriano. evidenciando outros regimes de formali zação e no barulho de uma assembléia popu lar. Por isso mesmo, a sátira aplica
ap ropriação que imp licam. por ex.emp lo, uma metafísica, ou um principio técnicas estillsticas que comp5em o discurso como objeto para ser vJsto
t ológico~po l ítico que define os conce itos na mente , an tes de toda ou ouvido a distância, de uma vez só, e com clareza ab oluta: a
exteriorização plá stica, or I ou escrita, como metáforas ou "deJ·inições caricatura , a mistura eslilfstíca, a carnavalização , a deformação e a
ílustradas", como escreve Rip a, que devem ser ordenadas exteriormente obscenidade s evidenciam, no caso, como adequadas à recepção das
em substâncias e formas diversas. pictóricas. lingüísticas , musicais. ruas. Sua aplicação é um preceito técnico do gênero epidftico, que exige
A representação seiscen tista produzida no Brasil pressupõe que os a representação esquemática, como se fosse pintada com uma broxa ou
conceitos são, na mente, um re flexo proporcionado da luz nalural da desenhada com um carvão grosso, e não é decorrência necessária e
Graça inata que aconse lha o jqizo, como a sindérese, guia da prudência. imediata, como se costuma dizer no Brasil, da psicologia ressentida ou
Logo, quando o conceito é representado agudamente numa ma téria doentia do l1omem que a produziu . Quando o mesmo discurso satírico é
exterior, a adequaçao do esti lo aos casos, ao gênero e às circun stâncias editado e lido hoje na 1·orma do livro , que é a nossa, cometemos enganos
também evidencia as adeq uações do juízo para destinatários discrelos, de apreciação quando afirmamos que é mal escrito , ou es tili sticamen te
inacabado e imperf Ho . cometemos tais enganos porque a des tinação
Inicial da sátira não pressupunll a a esc rila, nem a forma de organiza .ão
21 CI.GAUZERE, M,- op cll , notde Chuolooo ltll u do l\ ontOob c11lluo11l como uma ·arqu~ol n•a dos obje l o~ orn su
ma leoielid do" do t mpo da leitu ra do livro. Seu inacabamento e Imperfeição, ao oon1rárío
22 PETRUCCI, ArmanrJo. La Scrlllura ldonlogon a o.oppr , IIIDtlon Torfno, lnGMli , 1006 (l' lccolu Bibhol c de serem uma carência estética , são bem a evidência d e um desempe-
In udl ~7 2),

21
20
nho extremament . a equado do artiffcio poético, adap tado à materiali- como no dito de Marx , por consid ra ras formas anteriores como etapas
dade da voz destinado à rapidez da audição . como con trafacção ou para si m srna , costuma conceber as tormas passadas de maneira
fingimento est illslico d uma inépc ia que se torna ap ta para contemporâ - unilateral.
neos que conhecem a conv nçã.o. Para aque les que não a con hecem, É o caso de estudos brasileiros sobre o que hoje se un i1ica como
apta ou inepta. segundo vá ri s po sibili dades de ap ropri ação. "Barroco" . Geralmente realizados num lugar institucional, acadêmico,
Quanto à 1 ratória, o pressupos to de uma es tilistica que entende as põem em cena, nas apropriações dos resfd uos. um padrão de legibil!da-
metáforas do sermão como expressão da psicologia do orador não de específico do estudo da literatura densamente letrada da modernida-
coAsidera sua convenção re tórica anonima e coletivizada. Por exemp lo, de pós-vanguarda, modelada segu ndo as características do texto im-
não considera a ori entação prática de tais efeitos quando capturados no presso. O m smo padrao de legibilidade autoriza cri térios de ori entação
espaço-tempo da 1greja j suít ica contrarreformada , em que outras formas temporal , profis sional e institucional do sentido das apropriações, como
ordenam a percepção. Lembramos que, na doutrina do sermão sacro. a os de racionalização negativa da forma, utopia política, ruptu ra estética .
actio retórica prevê a matenalidade do corpo do padre como um elemen- subjetividade, reflexo, originalidade radica l, plágio, ambigüidade progra -
to do sentido. No desempenho ora l do sermão, o corpo se trans torma mática mercado e direitos autorais. Quando é aplicada rerrospecliva-
dramaticamen te em signo da racionalidade de Corte discutida por Elias mente 'a disc ursos originalmente ordenados segundo out ras categorias
e Chartier, e cificando-se sua gestualidade como figura da teologia- de pensamen to e convenções técnicas , veiculados por ou tros suportes
pol1ti ca e providencialismo. No caso da oratória jesuftica portuguesa do e meios, vi s ndo outros fins e lidos, vi stos ou ouvidos por outros públicos
XVII , que é a de Vi ira, a actio metafori a os Exercícios Espirituais , de segundo outros sentidos dados à experiência do tempo, o padrão de
Loyola, fazendo com que a prudência e o engenho se evidenc iem em leg ibi lidade do impresso é evide ntemente exterior. Generalizado re tros-
padrões convenc ionados dos gesto.,, das posições de mãos e dedos, da pectivamente, universaliza como natural um modo de apropriação entre
direção do olho, da intensidade da voz- por exemplo. a fala em ta lsete outros. Logo, não considera que , na figu ração seiscentista de des linatá-
típica do fidalgo portu uês. a fala brad ada. a tala lenta, a fala sutil. A actio rios discretos. o hermeti smo é a reg ra, segundo estilos próprio s de
p rescreve um sentido gmal para a apropria.ç ão de um públíco contem- disc retos; mas quando o vu lgo é tema ou recep tor, Impõe-se a c lareza-
porâneo. que teoriot!!rnc nle partilh a as mesma convenções. por exemp lo, a obscenidade, claríss ima.
Como propõe Char ti er, a apropriação deve ser definida na infinidade Por outras palavras, nessas práticas a discrição lambém consiste no
múltipla e contraditóna de ua detormações . Lembramos que. retorica- fingimento da falta de discrição , efetuado nos gêneros c6micos como o
mente. a l ' cn ica o sermão prevê duas recepções , segundo os dois artifício de uma natureza néscia que diverte néscios com fa las vulgares,
modelos cu lturais do discreto e do vulgar. Assim, por exemp lo, para como é o caso de Lope de Vega, imitado nas letras luso-brasileiras.
constitu ir o de.slinatáno discreto, Vieira cos tuma cita r o conceito predicá- quando a1irma em seu Arte Nuevo de Hacer Comédias en Este Tiempo
vai em Latim, que Ir duL, adaptando o enlido d tradução à.s c ircuns- que esc reve segundo a arte inventada pelos que pretenderam o aplauso
tâncias e à inteligib ilidade de um destinatá io vu l ar, consti tuído no vu lgar e que. por isso, é juslo fala r como néscio para agradar nésc ios .
mesmo ato da trad uç ·· o. Ou seja: o sermão I a.traliza dois destinatários Pod e evidenciar-se, assim . o anacronismo das leituras em que as letras
típicos. Determinar os mo os retóricos , teo lógico-polí ticos e éticos com barrocas apa recem apenas como atetação. hermetismo e ócio ari stocrá-
que a enunc iação se ocupa de cada um deles pode ser pertinente, por ticos. Coisas que elas também são, aliás, mas programaticamente . como
exemplo. para se determ inar os padrões ele hierarqu ização operados na se lê no dito de Góngora já re!·erido: escribo no para muchos 23. Ou,
repre entação. como prática também programalicamente, agora como escrita que se p ropõe ao
As categorias dé representação e apropriação t ' m especial interes- entretenim nto do vulgo e para tanto se ad<;Jpta a ete , na representaçao
se. assim, para estudos sobre práticas letradas anteriores ao século XVIII de Lope de Vega:
ilumi nista , que c egaram ao presente na forma dos re síduos do arqu ivo.
No caso das Lelr as, elas permitem qu se dissolva a natu ra lidade da
p resença dos r c:fd uo no cánone literário, lambém permitindo que se
c ritique a natu ra lidad das u s interpr taçõ s dom inan tes, quando se 23 ·o m 5 q 11(' hunou rro 1' ' ' c 11~ · dn htl rme " ·uw ~ lo I~OOI ·ll1 1 ' · , Qlltl esa s I dishriCIOII d In u ~~~.mb• s
do os koblcu cl mon m qu :l llo · I s pur 7.Cll r1 OCI ... 111 GÓNGORA V ARGOTE, 0 11 Llli d ll
evidencia que su 11 clusão no c nane é o resu ltado de longos ncadea- de d ~Luis do Gôngo• o. n wspu >lU ti''"
lrl I r;clihl mn' In AAANCÓN. An M'l lln z- La Batalla en
me ntos de apropriaç · es polémicas e con lrad ilóri as e que a interpretação, !orno a Gõngora.(Se lecc•ôn dr. lexlos) i:lwcnlrm" · 1\nlonl [losr.ll Edli 1 S.l\. . '1078, P ~3

23
22
"...y escriba por e/ arle que inventaron
los que e/ vulgar aplauso pretendieron,
porque, como las paga e! vulgo, es justo
hablarfe en necio para dar/e g usto. • 24

O estu do dos dispositivos retóricos das principais preceptivas do


século XVI I perm ite que se faça uma rec lass ificação dos usos seiscen-
tistas da agudeza e dos vários gêneros e estilos dos discu rsos, segundo
ocasiões da hierarquia especificadas como decoro ético-retó rico. Permite
Relatos franceses e histórias
propor-se a discrição como o dilerencial que especifica a afetação das
apropriações que aplicam as agudezas sem conhecimento dos decoros
portuguesas: os exemplos
ou dos protocolos de seus usos. Logo, o modelo cultural do discreto de Claude d' Abbeville e de
fornece os critérios cu ltos da legibilidade das práticas letradas seiscen-
tistas: ética aristotélica, prudência católica. dissimulação honesta. juízo e Pero de Magalhães Gandavo
agudeza. Permite também que se demonstre que a agudeza seiscentista,
geralmente desquaiif·icada como "afetação" e "mau gosto" nas histórias
literárias , é bem outra coisa, pois com a categoria de discrição é possível
rarefazer a g nera lidade anacrónlca de categorias c ríticas herdadas do
sécu lo XIX . Com isso, aqui lo que era talvez evidente a ponto de não ter ANDRÉA DAHER
Professora do Departamen!o de História da
sido visto su rge nas formas por vezes estranhas. pois históricas. de uma Universidade Federal do Rio de Janeiro
nova visibilidade do objeto cu ltura l. A operação de Chartier ensina . enfim,
a crítica do etnocentri smo das leituras.

RESUMO A História da Província Sa ne ta Cruz é uma obra de propagan -


da da colonização lusitan a, em que seu autor, Pera de Magalhães
Gandavo , condena o silênc io dos portugueses sobre a co lónia america-
na. Gandavo exorta , assim, à produção de uma literatura sobre o Brasil
que fosse o resu ltado da au tópsi a e da curiosidade, fundamentos da
escrita dos relatos de ltngua francesa. como, por exemp lo, o relato do
missionário Capuchinho Claude d'Abbevil le. Mas o ideal "literário" preco-
nizado por Gandavo em seu livro é a própria condição de possibilidade
de legitimação da Conquista portuguesa e da irrevocabilidade do destino
cristão e português da p rovínc ia atlântica .

ABSTRACT L'Historia da Província Sancta Cru z est une oeuvre de


propagande de la co lon isation lusitanienn e, oü son auteur, Pera de
Magalhães Ga ndavo, condamne le silence des Portugais sur la co lonie
américain . Gandavo exhorte, ainsi, à la production d'une li ttéralure sur
le Bré il qui serai t le résulla l de !'autopsie t de la c uriosi té, fo n em nts
~4 LOPE DE VEGA- ArtcNuovode Hac rComédiascn EsleTiempo ( 1609). v . 45-481nESCR IBAN0, d rico de l'écrilure des récits de lang ue française, t I le réc it du missionnaire
&lnch z y MAYO, Albono Porqu tas- Pmccptlva Dramática Espaiiola (Del Rcnacimicnlo y el Barroco)
Capucin Claude d'Abboville . Mais l'idéal "litléraire" prôné par Gandavo.
Madrid , tedo , 19 5
dans son livre est ia condition de pos sibilité même de la lég itimation de
24 la Conquête portugaise et de l'irr vocabi lité du deslin lusitan ien et chré-
Lien de la province atlantique.

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