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A pouco cordial cordialidade

E
Luiz Costa Lima

stivemos acostumados a pensar que a primeira e


consagrada obra de Sérgio Buarque de Holanda,
Raízes do Brasil, tenha se caracterizado, desde sua
estreia, em 1936, por sua argumentação antitra-
dicional e seu caráter de defensora dos valores
democráticos. No Clássico por Amadurecimento,
Luiz Feldman (2016) mostra não ser exatamente
assim. Muito embora a formatação do capítulo fi-
nal do Raízes, significativamente sempre chamado
“Nossa Revolução”, mostre que a posição do histo-
riador não se confundia com o estrito retrato que
Feldman mostra de sua obra de estreia1, de fato

1 É sintomático que o autor já bem compreendia que, na


ordem colonial, “a primazia das conveniências particu-
lares (dominava) sobre os interesses de ordem coletiva”
(Holanda, 1936, p. 150) e já citava Der Begriff des Politis-
chen, de Carl Schmitt, onde se encontrava a formulação
latina que, na edição conclusiva, dará o fecho definitivo
à dissociação entre a ordem dos interesses privados e

LUIZ COSTA LIMA é crítico literário, professor


da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
da PUC-RJ e autor de, entre outros, A Ficção e o
Poema (Companhia das Letras).

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não era justa a ideia homogênea que foi mantida no caso brasileiro, essas virtudes possam significar
de sua obra – o modelo clássico da suposta absolu- ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo ex-
ta coerência é fornecido pelo prefácio de Antonio pressões legítimas de um fundo emocional extrema-
Candido (1969) à edição definitiva. Por isso mesmo mente rico e transbordante” (Holanda, 1936, p. 101).
se justifica a obra de Luiz Feldman. Por ela, não
só se alcança uma compreensão menos imperfeita, Como diretor da coleção Documentos Brasi-
como se torna mais flagrante sua distinção com o leiros em que o Raízes seria publicado, Gilberto
permanente conservadorismo de Gilberto Freyre. Freyre conhecia o texto antes de ser ele editado.
Contudo, como logo perceberá o leitor, a emenda Daí o reconhecimento de sua importância para sua
acima indicada não me importou por si mesma tese da ascensão dos diversos tipos de mulatos, que
senão como meio de esclarecer a função da cor- desenvolverá em Sobrados e Mucambos. A cordia-
dialidade na formação brasileira; é em decorrência lidade se punha a serviço dos mestiços amáveis,
do papel que se lhe atribuirá, entre as edições de delicados, risonhos, carinhosos:
1936 e 1969, que será extraído o argumento para
pensar-se teoricamente, dito de modo mais preciso, “Ninguém como eles é tão amável; nem tem um
metaforologicamente, as transformações interpre- riso tão bom; uma maneira mais cordial de ofe-
tativas da cordialidade. recer ao estranho a clássica chicrinha de café; a
Para começo de conversa, lembre-se o que casa; os préstimos. Nem modo mais carinhoso de
declara Feldman: “Na redefinição das qualidades abraçar e de transformar esse rito [...] de amizade
do homem cordial, estava em causa a ideia mesma entre homens em expansão caracteristicamente
de uma identidade nacional”. Se recordarmos o brasileira” (Freyre, 1936, III, p. 1.060).
papel que, na primeira edição, desempenhava a
tirada de Ribeiro Couto, ficamos desconfiados Condenso seu argumento: na competição pro-
da ênfase concedida à cordialidade. Conceda-se fissional, o mulato dispunha do riso contra o bran-
que o raciocínio de Sérgio Buarque não a tomava co “como um dos elementos mais poderosos de
como base de seu argumento. Nem por isso, no ascensão profissional” (Freyre, 1936, III, p. 1.061).
entanto, era menor seu destaque: Tal docilidade não se confundia com o riso servil
do homem negro; era, “quando muito, obsequioso
“O escritor Ribeiro Couto teve uma expressão feliz e, sobretudo, criador de intimidade” (Freyre, 1936,
quando diz que a contribuição brasileira para a civi- III, p. 1.063). Mas não pretendo destacar apenas o
lização será a cordialidade – daremos ao mundo ‘o caráter do argumento. Para a inegável capacida-
homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, de de convencer de Freyre, contribuiu a própria
a generosidade [...] formam um aspecto bem defi- afabilidade nada convencional de sua linguagem.
nido do caráter nacional. Seria engano supor que, O sociólogo não só escrevia bem, como é de reco-
nhecimento geral, mas desenvolvia o que chamarei
de estilo jeitosamente cordial:
a ordem pública, sem, entretanto, já destacá-la. Acres-
cente-se ainda que o Schmitt primeiramente citado é da
edição de 1935, i.e., que Sérgio Buarque o terá lido um “Seu riso foi não só um dos elementos, como um
pouco antes de entregar os originais para publicação.
Que disso se infere senão que a configuração definitiva do dos instrumentos mais poderosos de ascensão pro-
capítulo ainda se encontrava no princípio de seu processo fissional, política, econômica; uma das expressões
de elaboração? O mesmo raciocínio é cabível a propósito
do testemunho do naturalista norte-americano Herbert
mais características de sua plasticidade, na transi-
Smith. Basta ler-se o que a versão primeira do Raízes ção do estado servil para o de mando ou domínio
(Holanda, 1936, p. 151) aproveita de Smith e contrasta
ou, pelo menos, de igualdade com o dominador
com a forte formulação que o mesmo texto atingirá na
versão definitiva (de 1969), para que se chegue à mesma branco, outrora sozinho, único. Na passagem não
conclusão. Entre as versões de 1936 e 1969, não temos só de uma raça para a outra como de uma classe
um autor que tivesse passado de uma visão pró-ibérica
e conservadora para uma democrática e politicamente para outra” (Freyre, 1936, III, p. 1.061).
avançada senão alguém que revela o caminho pelo qual
amadurecerá. Para falar à maneira do Ulysses, pelas mu-
danças efetuadas até a versão definitiva, Sérgio Buarque A argumentação de Freyre dava força bem
lutou “por libertar sua mente da servidão de sua mente”. maior que à extraída da carta de Ribeiro Couto.

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Mas, coerente com seu conservadorismo de raiz, A pergunta seria prova de estupidez ou de como
não lhe interessava acentuar que o riso derramado, os intérpretes são capazes de optar pela calhor-
a gentileza a toda prova, a ilimitada cordialidade dice, se também não nos oferecesse a abertura de
eram formas também subalternas, voltadas para uma trilha nova. Essa trilha inédita estará na de-
corrigir o desnível social do mulato. A Freyre pendência de verificarmos a flexibilidade que, no
importava o movimento de partida; não lhe dizia jogo político, as palavras são capazes de assumir.
respeito que, tendo êxito, a ascensão se restringia a Como demonstra o próprio áspero debate
este ou àquele mulato vitorioso. Ainda que fossem de Sérgio Buarque com Cassiano Ricardo, não
muitos os que vencessem, a cordialidade era uma é fácil de imediato perceber como essa trilha
carta no baralho da ascensão social. Sem ela, o se desenvolve. Ao se indispor contra o dilema
jogo, a confundir-se com a vida, estaria perdido. do “bandeirante”, o historiador esquece, como
Com ela, quem saberia onde não se poderia ir? lembra Feldman, que, na edição de 1936, para
Não me demoro no que é bastante conhecido ele próprio, a esfera da cordialidade se estendia
porque meu interesse está em algo ainda não ex- até a bondade. É o que declara a formulação ine-
plorado. Tampouco me demoro na vantagem que quívoca: “Com a cordialidade, a bondade, não
Sérgio Buarque encontrará ao se deparar com a se criam os bons princípios” (Holanda, 1936, p.
interpretação adversa de Cassiano Ricardo. Deixo 156). Como se explicaria tanto a equivalência
de lado as mudanças sensíveis que o Raízes já en- dos termos, como, posteriormente, a indignação
contrará na edição de 1948, para nos prendermos de Sérgio Buarque contra o primado da bonda-
à dura objeção à contra-argumentação ao poeta, na de pretendido por Cassiano Ricardo? Não será
edição definitiva de 1969. preciso gastar muitas palavras. Na dependência
Cassiano Ricardo se opusera ao uso do ter- dos interesses políticos, manifestados com mo-
mo “cordial” porque ele seria demasiado formal tivação tendencialmente inconsciente, os vocá-
e protocolar, quando o “capital sentimento” do bulos atingem uma elasticidade que, vista de
brasileiro seria a bondade ou mesmo certa “téc- fora, parece se confundir com uma inexplicável
nica de bondade”. Não nos surpreende que al- volubilidade. A elasticidade indicada faz com
guém pudesse associar o capital de sentimento e que o termo abandone sua pista dicionarizada,
bondade a toda uma população, pois a conexão se amplie e assuma o que caberia como uma das
fazia parte da retórica de um defensor letrado do modalidades do que Lévi-Strauss veio a chamar
Estado Novo (Feldman, no livro já citado, mos- de “significante flutuante”.
trará que Almir de Andrade, em Força, Cultura, Em Sobrados e Mucambos, Freyre come-
Liberdade, de 1940, voltará à cordialidade como çara a demonstrar por que assim se dava com
princípio fundador do Estado Novo2). Cordialida- a cordialidade. Sua flutuação, compreendendo
de ou bondade, o que seria próprio do brasileiro?! lhaneza, facilidade de trato, afabilidade e – por
que não? – conduta bondosa, era justificada por
nossa tradição ibérica e patriarcal e tinha como
2 Parece curioso, se não cômico, que dois escritores – dos solo motivador a extrema desigualdade entre o
quais sempre se espera um certo grau de inteligência – branco dono de terras, a pequena margem de arte-
tenham recorrido à retórica da cordialidade em defesa
de um Estado ditatorial, como indiscutivelmente foi sãos, a imensa margem de massa escrava e, depois
o Estado Novo. A explicação parece trivial mas não da abolição, dos filhos sem terra e sem trabalho
encontro outra: como Getúlio Vargas chegara ao po-
der – em reação ao dirigismo do país pelas oligarquias
de ex-escravos. A flutuação resultante era, de sua
paulista e mineira, dominante durante a República parte, resultante de que, assumindo uma figuração
Velha – contemporaneamente à irrupção dos regimes
metafórica, os termos aproximados constituíam,
fortes do nazi-fascismo e do comunismo, tratava-se de
“convencer” a rala massa letrada do país que não havia como dirá mais recentemente Hans Blumenberg
de temer um ditatorialismo semelhante entre nós. Um (1979, p. 87), o fóssil-guia (Leitfossil) “de uma
bom recurso para isso consistia em recorrer ao princípio
a que intérpretes que então escapavam da antropologia camada arcaica da curiosidade teórica”. No caso
biológica, dominante desde Os Sertões, e que ganhavam em pauta, a conjunção flutuante é movida por
fama (Sérgio Buarque e Gilberto Freyre), consideravam
como havendo sido bastante praticado durante nossa uma curiosidade menos teórica do que pragma-
formação. ticamente política. O Estado Novo é justificado

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como manutenção de um patrimônio secular e dade interna se, graças a Reclus, não tivéssemos
seus justificadores lançavam mão de um estoque condições de verificar por que tal significante
em cujas extremidades estavam, de um lado, a flutuante, verdadeiro enquanto flutuante, à se-
cordialidade e, de outro, a bondade. Provavel- melhança da conduta prestativa do mulato que
mente, sem jamais perceber por que acertara, a adotava para compensar sua desigualdade, era
Sérgio Buarque, no relance de uma frase, pu- a luva que se ajustava à mão de nossa sociedade.
sera a “bondade” no frouxo leito semântico da O serviço, portanto, que nos presta o geógrafo
cordialidade. Cassiano Ricardo, ressaltando essa anarquista suíço é tamanho que seu longo frag-
e renegando o eixo flutuante, a “cordialidade”, mento se introduz em nossa argumentação, que
se punha na corrente oposta, i.e., ressaltava do há de ser interrompida enquanto o traduzimos:
significado flutuante apenas o lastro que lhe
interessava ideologicamente. A arbitrariedade “Certas formas de escravidão [...] são incontes-
do defensor do Estado Novo teve, entretanto, a tavelmente muito mais cruéis nas plantations
qualidade de irritar o historiador e, na edição de- norte-americanas que nas fazendas do Brasil e, no
finitiva de 1969, de fazê-lo retornar ao Schmitt, entanto, se não temesse cometer uma verdadeira
que mostrava conhecer desde a edição princeps, blasfêmia ao associar ideias tão contraditórias,
e agora destacar a passagem capital que Carl diria que a instituição servil nos Estados Uni-
Schmitt recolhera do Digesto romano. dos oferece uma aparência de moralidade que
Como, por força da tradição patriarcal, não se procuraria em vão no Brasil. Os fazendeiros
reconhecemos senão o outro privado – o outro norte-americanos, advertidos pela reprovação
patriarca, o outro branco ligado à posse da terra, de seus compatriotas e pela voz se sua própria
contra o qual o mulato precisa se armar de uma consciência, nunca deixaram de discutir a es-
infinita afabilidade – desconhecemos o público cravidão do ponto de vista da justiça. Tinham
do privado, o inimigo público do adversário pri- mesmo desde logo a condenado e, aqui e ali,
vado e então nos comportamos na esfera pública haviam tomado certas medidas para preparar a
do mesmo modo como na esfera privada, não co- sua abolição: depois, quando os interesses par-
nhecendo outro mérito nos detentores dos cargos ticulares e as ambições políticas modificaram
públicos senão a amizade ou a aliança política. suas primeiras opiniões, se esforçaram em ao
Do que se escreveu acima, talvez alguma menos justificar sua causa por todos os argu-
novidade esteja na introdução do “significante mentos imagináveis. Essa pretensão testemunha
flutuante” e no caráter de fóssil-guia que a me- ao menos uma certa necessidade de justiça que
táfora pode assumir. Mas a própria justificação as instituições puderam perverter, mas que não
de um e outro conceito se encontra em texto puderam completamente suprimir.
estranhamente muito pouco divulgado. Ele se Ao contrário, imersa completamente na escravi-
escancara em resenha que Élisée Reclus publica, dão, a sociedade brasileira não poderia apreciar
ainda em 1863, em que, a propósito do Viagem sua justiça ou iniquidade: o fato monstruoso da
pelo Norte do Brasil no Ano de 1859, do médi- posse do homem pelo homem lhe parece tão na-
co sanitarista Von Avé-Lallemant, o geógrafo tural, tão pouco repreensível que o próprio Estado
suíço comparava a escravidão no Brasil e nos compra ou recebe em herança negros e os faz
Estados Unidos. Conhecer a passagem equiva- trabalhar em benefício do orçamento. Também
le a perceber o quadro vivo em que fermenta a os conventos têm sua criadagem africana, de que
nossa cordialidade. A alusão de Ribeiro Couto à os contratos de venda declaram ser a propriedade
cordialidade em carta ao embaixador mexicano real de São Benedito ou do não menor Santo Iná-
no Brasil, o aproveitamento sociológico certei- cio. Do mesmo modo, por pura caridade de alma,
ro que Freyre dela faz, a apropriação ideológica os administradores do hospício do Rio de Janeiro
que promovem Cassiano Ricardo e Almir de adquirem negras como amas de leite das crian-
Andrade, antes de virmos sua transformação na ças abandonadas. Além do mais, segundo Avé-
edição de 1969, pareceriam peças razoavelmente -Lallemant, médicos especuladores se dirigem ao
sem maior alcance, termos sem muita proprie- público por meio dos jornais e adquirem negros

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doentes ou esgotados aos quais procuram recu- dolentes para que eles próprios dirijam o trabalho
perar para, em seguida, revendê-los a bom preço; de seus escravos, chegam a deixá-los completa-
veem-se, enfim, negros possuírem outros negros, mente livres para ganhar a vida como queiram,
aos quais transmitem sua própria ocupação sem com a condição de que produzam diariamente
que eles próprios possam se liberar porquanto uma soma de antemão fixada. Entregues à sua
a condição de escravo parece normal neste país própria iniciativa, os negros se organizam mais
infeliz. É mesmo em parte devido à simplicida- ou menos livremente em bandos de trabalhadores,
de mais ou menos ingênua com que os donos de escolhem um chefe e vêm oferecer seus serviços
escravos encaram o destino de seu gado humano como carregadores ou estivadores aos negociantes
que este deve a relativa doçura de sua existência. e aos capitães de navios. Durante o dia, esses es-
Os senhores devem ser bons príncipes porquan- cravos, não vigiados pelo olho do senhor, podem
to importunos abolicionistas não vêm ameaçar durante algumas horas imaginar que são livres.
sua propriedade sagrada. Não se creem obriga- Precedidos por uma espécie de músico que os ex-
dos, como seus confrades norte-americanos, a cita, sacudindo pedaços de chumbo (chevrotine)
inventar para o negro um novo pecado original, dentro de uma cabaça, se estimulam mutuamente
nem em erigir como sistema a distinção absoluta por um canto ritmado ou por gritos cadenciados.
das raças, nem em estabelecer uma barreira in- Belos, vigorosos, semelhantes a estátuas fora de
franqueável entre a descendência dos escravos e seus pedestais, cruzam as ruas sem se dobrar ao
a dos homens livres. De modo algum aprovam peso de suas cargas enormes e, com frequência,
a necessidade de se empenhar na descoberta de põem no cumprimento de seu trabalho um ver-
uma filosofia que lhes permita agravar a servidão. dadeiro entusiasmo de combatentes. Milhares de
Além do mais, a aspereza mais ou menos em- negros, na maior parte pertencentes às diversas
pregada na exploração dos escravos está sempre tribos dos minas ou negros da Costa do Ouro,
em razão direta do valor monetário dos braços: que se distinguem entre todos por sua beleza
ora, até estes últimos anos, o trabalho dos negros física, sua inteligência e seu indomável amor à
brasileiros, sem cessar alimentado pelo tráfego, liberdade, podem assim diariamente adquirir um
representava um capital muito menor que o dos certo benefício, que acumulam cuidadosamente
negros norte-americanos. e contemplam com avareza como penhor de sua
Para desculpar a escravidão imposta pelos fa- futura emancipação. Com efeito, a lei brasileira,
zendeiros no Brasil, pessoas de boa fé têm com menos terrível que os códigos negros dos estados
frequência pretendido que ela tem apenas o nome confederados, não encerra o escravo em um cír-
em comum com a escravidão norte-americana, culo infranqueável de servidão: não o impede de
e realiza integralmente o ideal tão louvado da se resgatar por seu trabalho e de sacudir a poeira
vida patriarcal. Uma comparação rápida estabe- de suas roupas para sentar-se ao lado dos homens
lecida entre os dois países em que reina a ser- livres. Além do mais, ela também lhe dá a per-
vidão involuntária parece, com efeito, conceder missão tácita de se instruir, se encontra tempo e
de início algum valor à afirmação. Os escravos coragem; autoriza-o a fortificar sua inteligência
das fazendas brasileiras, formando cerca de cinco em vista de uma liberação possível, e não condena
sextos da população servil, gozam no domingo à prisão o branco caridoso que lhe ensina a arte
de uma liberdade relativa, como os negros norte- diabólica da leitura. O acaso de seu nascimento
-americanos; têm, entretanto, mais do que esses, pode igualmente salvar o escravo e conceder-
numerosos dias, feriados, distribuídos ao longo do -lhe sua independência, pois é costume no Brasil
ano. A cada quinzena, a maior parte das fazendas emancipar os mulatos e a lei ainda não se interpôs
lhes concede o dia do sábado para que possam entre o pai e o filho para interditar ao primeiro
cultivar suas próprias hortas, que recebem o título que reconheça seu próprio sangue. Na população
de fazendas, e assim acrescentar algumas frutas brasileira de cor, avalia-se em um sétimo apenas
e certas raízes à provisão regulamentar de carne o número de mulatos condenados à escravidão,
seca, fornecida pelo administrador. Nas grandes enquanto que em toda a extensão da república
cidades de comércio, os senhores, demasiado in- anglo-saxônica, aí compreendendo mesmo os es-

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tados livres, contam-se quase dois homens de cor aos quais usa segundo sua vontade e quanto aos
ainda escravos contra um só liberto. quais sua própria justiça não é senão arbitrária. Se
Também com vantagem para o império sul-ame- ele achar conveniente, pode espancar e torturar;
ricano, pode-se dizer que o abismo cavado entre o pode impor cadeia, grilhões, coleira ou qualquer
branco e o negro liberto é muito menos profundo outro instrumento de suplício. Toda senhora refina-
que nos Estados Unidos. Não poderia ser de outro da que, por vaidade, venha cobrir suas negras com
modo em um país em que o número dos brancos seus próprios adereços para dar aos estrangeiros
livres de toda mistura chega apenas a um milhão, uma ideia elevada de sua riqueza, pode um instante
aí compreendendo os estrangeiros e assim forma depois fazer que as mesmas mulheres sejam espan-
no máximo um oitavo da população. É em vão cadas, ainda ornadas de seus colares de ouro ou de
que se aplicam medidas diversas que recordem pérolas. Este proprietário empobrecido, que sem-
aos libertos sua antiga servidão e os rebaixem pre teve a maior doçura com seus escravos, vende
no interior da sociedade brasileira: protegidos uma parte deles para resgatar suas propriedades
pelos costumes, eles se cruzam livremente com endividadas: separa o amigo do amigo, talvez o
as castas superiores, a população mestiça cresce filho do pai, e o deixa levar por algum estrangeiro
sem cessar em uma proporção considerável e, ávido para uma fazenda distante. Dramas seme-
apesar da soberba dos que se mantiveram puros lhantes provocam uma desmoralização maior que
de toda mistura, pode-se prever estar próximo o a familiaridade que parecia a mais íntima entre
dia em que o sangue dos antigos escravos correrá o senhor e o escravo. Ruidosas explosões de riso
nas veias de todo brasileiro. Essa invasão gradual dos negros e das negras ecoam com frequência nas
já fez dobrar muitas barreiras. Os filhos dos ne- ruas da Bahia e do Rio de Janeiro; mas, se se passa
gros emancipados tornam-se cidadãos; entram diante das prisões, em que, ante a simples requi-
no exército e na marinha, com maior frequência, sição do proprietário, os chicoteadores pagos pelo
é verdade, em consequência de um recrutamen- Estado batem nos escravos, escutam-se os gritos de
to forçado, e podem, do mesmo modo que seus dor a consoar com a ruidosa hilaridade das ruas”
companheiros de armas de raça caucásica, falar (Reclus, 1863, tomo 40, pp. 384-9).
da causa da pátria e da honra à bandeira. Alguns
sobem de grau em grau e comandam brancos, que Sem que o desenvolvimento acima possa ser
permanecem seus subordinados; outros se dedi- substituído por nada, a síntese de seu argumento
cam às profissões liberais e se tornam advogados, está na frase: “Imersa completamente na escravi-
médicos, professores, artistas. É verdade que a dão, a sociedade brasileira não poderia apreciar
lei não concede aos negros o direito de entrar na sua justiça ou iniquidade”. Em consequência, a
classe dos eleitores, nem na dos elegíveis; mas os desigualdade radical era apreciada como um
empregados de pele mais ou menos escura não dado natural. O que implicava a absoluta igual-
sofrem diferença alguma em serem reconhecidos dade permeada pela desigualdade constituída
como brancos todos os que queiram dizer-se tais e pela suposição: a sociedade humana é formada
recebem os documentos necessários para que seja por homens com terra e homens sem terra. Tal
assim estabelecido legalmente e de uma maneira assimetria concretiza um só espaço: o espaço
incontestável a pureza de sua origem. É assim que privado. A naturalidade da escravidão, que a tor-
os filhos de antigos escravos podem ingressar na nava praticada desde o senhor de terra, passando
carreira administrativa e mesmo fazerem parte no pelo Estado, até as ordens religiosas, impedia que
Congresso, ao lado dos nobres fazendeiros. No houvesse a noção do espaço público, onde haveria
Brasil, não é a cor que faz vergonha, é a servidão. de imperar, ao menos idealmente, o espaço da
Todos esses fatos são da maior importância para o lei, a norma válida para todos. Daí o prestígio da
futuro do país, mas não podem servir de desculpa metáfora da cordialidade. Entenda-se bem: não se
para a escravidão brasileira, que, por sua própria diz que ela fosse determinada pelas condições so-
natureza, é idêntica à ‘instituição divina’ dos an- ciais. Ela é por certo motivada por ela. Enquanto
glo-americanos. Seja o senhor um patriarca ou um tal, podia dar lugar a outra metáfora, desde que
tirano, não é menos o possuidor de outros homens, ela fosse igualmente congraçadora e, como tal,

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viesse a partilhar da amplidão semântica própria Assim, a leitura mais profunda de O Conceito do
de um significante flutuante. Político fez com que Sérgio Buarque realizasse o
É de supor que, por várias razões, a cordia- que décadas passadas Hans Blumenberg refletira
lidade se impusesse contra alguma outra práti- como a primeira função da metaforologia: servir
ca metafórica antes próxima da raiz da rudeza. de auxiliar a uma história dos conceitos.
Creio que a primeira fosse não haver na tradi- Muito embora essa função primeira fosse
ção ibérica, ao contrário da saxônica, a crença rapidamente absorvida por funções mais com-
arraigada na diferença das raças. O evolucio- plexas, que implicam uma reflexão nada conven-
nismo de Darwin rapidamente contaminou a cional sobre o papel da linguagem, é ela que nos
reflexão social saxônica e estabeleceu o dogma importa, no caso da cordialidade. A cordialidade
da desigualdade das raças, que não havia es- era – e, embora corroída pela experiência do co-
tado em sua doutrina original, ao passo que, tidiano urbano, sua função social negativa conti-
na tradição ibérica, a escravização do indígena nua, no momento em que escrevo, extremamente
antes provocaria a discussão de ordem teológica ativa – a expressão de um sentimento dominante,
entre os religiosos Victoria e Bartolomé de las enquanto maneira de manter a negação de um
Casas. No ambiente menos cultivado da Península espaço público, aquele em que a lei vigorasse
Ibérica, onde a escravidão africana era anterior igualmente para amigos e inimigos privados.
à colonização americana, o branco considerava Para que Blumenberg não seja referido
que naturalmente os senhores eram de sua cor e apenas nominalmente, lembremos uma passagem
os escravos, de cor negra. Assim nenhuma razão de seu primeiro livro dedicado à metaforologia:
biológica o impedia, nas colônias americanas, de
frequentar a cama de suas escravas. Creio que o “O mundo copernicano torna-se a metáfora da
segundo motivo, associado àquela, fosse que uma privação crítica do princípio da teleologia, da
prática cordial trouxesse inúmeras mais vanta- causa finalis do feixe aristotélico das causae; e é
gens e fosse pouco propiciadora de conflitos. indubitável que só a metáfora copernicana permi-
Não sei se essas razões são suficientes. O fato tiu penetrar no pathos da desteleologização, que
é que Reclus nos faz verificar que há uma razão é sobre ela que se funda uma nova consciência de
social para que a metafórica dominante fosse a si, ligada à excentricidade cósmica do homem”
que Sérgio Buarque começou a explorar em sua (Blumenberg, 1998, p. 146).
obra de estreia. Mas sua função principal não foi
a de introduzi-la, senão de, já a associando, desde Conquanto a passagem se volte exclusivamen-
1936, à questão da divisão dos espaços, só haver te ao papel da metáfora, referindo-se à que se
sido alertado plenamente para o papel desempe- processa em Copérnico, é evidente que se trata
nhado por essa divisão por meio da provocação da figura como passagem para um novo concei-
despertada pela contradição de Cassiano Ricardo. to. Sendo bastante mais simples, o novo exem-
É ela que o leva a chamar a atenção para a pas- plo pertence à mesma família. Mas me parece
sagem do Digesto, tal como Carl Schmitt a lera: fascinante que a metaforologia faça, entre nós,
“Hostis is est cum quo publico bellum habemus sua estreia prática pela contribuição a um aspec-
[...] in quo ab inimico differt, qui est is, quocum to importante tanto para a obra de Sérgio Bu-
habemus privata odia [...]” (“Inimigo público é arque de Holanda, quanto para nossa formação
aquele com quem estamos publicamente em guer- social, ademais se associando à notável reflexão
ra [...] nisso difere do inimigo privado, que é aque- de Élisée Reclus, que não entendo por que tem se
le com quem temos desavenças privadas [...]” 3. mantido oculta.

3 Chame-se a atenção para um dado só aparentemente sobre os interesses de ordem coletiva” (Holanda, 1936,
insignificante: na versão original, citava Der Begriff des p. 150), o reconhecimento da importância da diferença
Politischen, na edição de 1935, ao passo que, em 1969, dos espaços ainda não era relacionado à metáfora da
remete a passagem à edição original de 1933. O que vale cordialidade. Será apenas com o amadurecimento inte-
dizer que, em sua primeira leitura, embora já atinasse para lectual do historiador que sua obra de estreia permitirá
a “tão malsinada primazia das conveniências particulares a aproximação que aqui se estabelece.

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Textos / Homenagem

Bibliografia

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114 Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 107-114 • julho/agosto/setembro 2016

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