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Resumo
Neste ensaio nos interessa demonstrar o valor da indiferença como operador clínico para
a psicanálise. Para tanto, recorreremos inicialmente à oposição entre o “homem
extraordinário” de Raskólnikov e o “homem soberano de Sade”, tal como Bataille o
define. No segundo momento, recolhendo apontamentos freudianos e lacanianos sobre o
ato analítico, o definiremos como aquele que visa menos o Bem ou o Mal do que obter a
diferença absoluta.
Abstract
A knife all blade: in defence of the analyst's indifferenc
Introdução
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como ele argumenta, tanto ao primeiro que não se deseja a si. Há outros,
quanto ao segundo importaria chegar ao porém, que verão nessa analogia
mesmo ponto, fazendo emergir, no estrutural apenas o reflexo da tese
outro, a divisão subjetiva: (a → $). As apresentada por Lacan ao final de seu
semelhanças, todavia, estariam seminário sobre Os quatro conceitos
limitadas a este ponto. Afinal, ao fundamentais da psicanálise, segundo a
contrário do mestre sadiano, que se qual o desejo do analista “é um desejo
encarrega de dizer até a última palavra, de obter a diferença absoluta” (Lacan,
ao analista cabe ressaltar que a verdade, 1985, p. 260). Neste ensaio tiraremos
não-toda, surge da equivocação. Por consequências da provocação feita, na
outra parte, diferente do carrasco esteira de Jacques Lacan, por Serge
sádico, cujos atos estão a serviço de um André. Nos interessa demonstrar a
imperativo de gozo, ao analista importa indiferença do psicanalista como
abster-se de gozar – sobretudo da operador clínico indispensável à “[...]
divisão subjetiva do outro. Por fim, em histerização do discurso” (Lacan, 1992,
oposição ao verdugo que deseja banir p. 31) colocada em curso pela
do campo discursivo qualquer índice da psicanálise.
inconsistência do Outro, o analista Partindo do “homem
trabalha ciente de que toda fala gira extraordinário” de Raskólnikov,
precisamente em torno daquilo que não- passaremos em seguida para o “homem
cessa-de-não-se-escrever. soberano de Sade”, conforme Bataille o
As dessemelhanças acima define. Dessa comparação resultará a
apontadas não diminuem o seguinte indicação: ao passo que o
estranhamento provocado pela sugestão “homem extraordinário” de
de uma intimidade estrutural entre o Raskólnikov encontra-se limitado em
psicanalista e o mestre sadiano. seus atos pelo vício moral (e, por isso
Implicados como estão na simetria das mesmo, incapaz de realizá-los em nome
suas relações com o outro, alguns da sua vontade), o “homem soberano de
analistas tratarão de recusar qualquer Sade”, fiel ao seu desejo, encontra-se
semelhança entre o seu ato e o do livre para fazer o que quer lhe seja
carrasco, refugiando-se no mandamento necessário. Afirmado o privilégio do
que ordena não fazer ao próximo aquilo “homem soberano”, demonstraremos
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que o ato analítico não aspira ao Bem não lhe convém. Ele bem o sabe. Por
(nem ao Mal) da humanidade nem isso experimenta agora “[...] uma
tampoco de alguém em específico, mas sensação mórbida e covarde, que o
unicamente obter o que em cada caso há envergonhava e levava a franzir o
de mais singular. cenho” (Dostoiévski, 2001, p. 19). Seu
embaraço no episódio que abre a
Extraordinário, soberano narrativa sugere haver uma considerável
discrepância entre o que ele é e o que
Ele acaba de ganhar a rua e deveria ser: é imperativo ser mais, ser
caminha em direção à ponte K. maior. Todavia, a grandiosidade que ele
Absorvido em cogitações sobre o ato persegue depende em grande medida de
que pretende realizar, em breve ele ações firmes e livres de quaisquer
estará diante do edifício da velha Aliena receios, afinal, “[...] tudo está ao
Ivánovna. É preciso concluir, liquidar a alcance do homem e ele deixa tudo
questão e responder se sim ou se não. escapar só por medo” (Dostoiévski,
Estaria o jovem Raskólnikov 2001, p. 19). Raskólnikov sonha ser o
predestinado a realizar um ato dono de sua vontade e agir livre de todo
extraordinário? Tudo parece sugerir o impedimento. Ele reivindica para si um
contrário. A começar pela sua hesitação direito que caberia àquele que ele
frente à senhoria, com quem ele designa o “homem extraordinário”, isto
encontra-se em débito. Seu é, o direito “[...] de permitir à sua
contrangimento é tal que, ao que parece, consciência passar... por cima de
ele estaria disposto a fazer qualquer diferentes obstáculos, unicamente no
coisa para não ter de encará-la no caso em que a execução da sua idéia (às
caminho que vai do seu cubículo até a vezes salvadora, talvez, para toda a
saída do prédio. Sabemos que fugindo eternidade) o exija” (Dostoiévski, 2007,
assim ele não age por velhacaria, mas p. 268). Ele quer ser capaz de agir livre
porque faltam-lhe as condições de qualquer coação moral. Ele quer
necessárias para saldar a sua dívida. poder transgredir sem ser, em seguida,
Logo depois de evitar o confronto com esmagado pelo sentimento de culpa.
a proprietária resta-lhe, entretanto, Raskólnikov está ciente de que
apenas a impressão de que agir assim entre os nomes mais importantes da
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evitada a pena de morte, os oito anos de sacrificar não era menor do que a nossa
trabalhos forçados na Sibéria conduzem de trabalhar” (Bataille, 1949/2013, p.
Raskólnikov a uma espécie de redenção 64, grifos do autor). Mas a submissão
moral. contemporânea às leis da razão e aos
O escritor e filósofo francês fins úteis não depôs, por completo,
Georges Bataille também se ocupou do aquilo que representa sua exceção. Sob
problema da exceção. No estudo as formas características do nosso
intitulado “O homem soberano de momento histórico, continua apropriado
Sade”, localizado na segunda parte de afirmar que “[...] não é a necessidade
“O erotismo”, ele se dedicará mas seu contrário, o 'luxo', que coloca
precisamente àqueles que, de algum para a matéria viva e para o homem
modo, escapam à razão. Tal como ali se seus problemas fundamentais (Bataille,
afirma, é a escória quem representa, no 1949/2013, p. 39, grifos do autor).
Novo Mundo, “[...] a exceção de Assim, se já não dispomos da orgia
energias que o trabalho não absorve” desmesurada da festa antiga,
(Bataille, 1957/2004, p. 257). No perpetramos nossos sacrifícios visando
entanto, ainda que esta seja para o nosso restituir “[...] ao mundo sagrado o que o
tempo uma das mas explícitas formas uso servil degradou [...]” (Bataille,
de exceção à norma da acumulação de 1949/2013, p. 70). Seja sob a forma dos
recursos que visa os fins úteis, ela não cultos, dos jogos ou da arte,
passaria de tímida expressão daquilo perseguimos, individual e
que foi um dia, no Mundo Antigo, o coletivamente, a liberdade que reside
dispêndio improdutivo dos soberanos. em “[...] consumir sem lucro o que
Nada nos nossos dias parece estar à podia permanecer no encadeamento das
altura da consumação catastrófica tal obras úteis” (Bataille, 1949/2013, p.
como ela figurava, por exemplo, na 72).
concepção de mundo dos Astecas: um Retornando ao exemplo de Sade,
povo cuja “[...] ciência da arquitetura Bataille assinala o contraste entre a vida
servia-lhes para edificar pirâmides no e a obra do Marquês. Sabe-se que, “em
alto das quais imolavam seres sua vida, Sade levou o outro em
humanos” (Bataille, 1949/2013, p. 64); consideração, mas a imagem que ele
um povo cuja “preocupação de teve da realização, e que ele remoeu na
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solidão do cárcere, exigia que o outro ser feito. Partindo da premissa segundo
deixasse de ser considerado” (Bataille, a qual “quem admite o valor do outro
1957/2004, p. 262). Encarcerado, não necessariamente se limita” (Bataille,
lhe foi possível levar a cabo o “[...] 1957/2004, p. 267), ao homem soberano
desejo de uma existência livre de de Sade importa apenas a fidelidade ao
limites” (Bataille, 1957/2004, p. 261), seu próprio desejo. Disso decorre que
mas foi precisamente na prisão que ele, não lhe basta ser cruel. Ele deve ser
servindo-se da literatura, imaginou o igualmente frio e jamais intervir
impossível. Se, no mundo regulado pelo motivado pelas suas paixões, pois “o
cálculo, o sexo persiste enquanto crime a sangue-frio é maior que o crime
afirmação do excesso, não é difícil executado no ardor dos sentimentos”
descobrir porque o erotismo, sempre (Bataille, 1957/2004, p. 271). Seu ato
pensado enquanto ameaça à integridade deve nascer da apatia, afinal, ele não faz
dos parceiros, tornou-se um dos mais o que faz em favor de algo ou de
importantes traços estilísticos da alguém, mas unicamente porque aquilo
literatura sadiana. À conduta habitual que tem de ser feito.
que só quer acumular, Sade opõe um
sistema que tem na dilapidação o seu O analista, o seu trabalho
dispositivo fundamental. Menos do que
durar, importa gastar (e gastar sem “Em outras palavras, haverá
medida). Este é o seu vício inerente. Tal casos em que outra razão leve alguém a
como a vemos expressa em seus ser analista senão o estabelecer-se, isto
escritos, a soberania sadiana exige é, receber o que é corretamente
indiferença. Nenhum sentimentalismo é chamado de grana?”, é o que pergunta
tolerado. Entre o herói sadiano e a sua Jacques Lacan (2003a, p. 568) no
vítima não se observa nenhuma Prefácio à edição inglesa do Seminário
solidariedade. Ao contrário do homem 11. Sua interrogação ressalta o fato de
moral, que busca a realização do bem que a psicanálise é, antes de tudo, um
para ser visto pelo outro como uma trabalho. Ofício entretanto radicalmente
pessoa boa, em Sade prevalece a distinto daquele do benfeitor, já que não
ingenuidade daqueles que fazem o que aspira ao Bem da humanidade nem
fazem unicamente porque aquilo tem de tampoco a salvação de alguém em
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compaixão. Tal como propõe Freud, a das coisas para que ele permaneça
não sofremos porque nos falte senão o reflexo de uma prática reduzida
esclarecimento, mas porque não a um tipo específico de adaptação
podemos nos apropriar daquilo que, social, cujo modelo variava conforme
recalcado, somente se escreve sob a variavam os analistas didatas. Para
forma negativa da Verneinung (Lacan, Lacan, nada poderia ser considerado
1986). A radicalidade do trabalho do mais avesso à descoberta freudiana do
analista consiste precisamente em que uma terapêutica protocolar cujos
apontar, sem qualquer reserva, para o standards operavam basicamente a fim
fato de que “ali onde tu sofres, tu de “[...] refazer o eu do paciente à
gozas” (Miller, 2011, p. 70, grifos do imagem do eu do analista” (Lacan,
autor), confrontando aquele que se 2003b, p. 150, grifos do autor). A
entrega à experiência analítica com o mestria terapêutica, todavia, somente
fato de que “por nossa posição de pode ser combatida por meio da
sujeito, sempre somos responsáveis” retomada daquilo que existe de mais
(Lacan, 1998a, p. 873). cortante na descoberta freudiana. Ou
Desde os primeiros momentos seja, na linha da interpretação dada por
de seu ensino, Lacan teve de combater Lacan ao Wo es war, soll Ich werden de
com tenacidade a “arrogância bem Freud: “lá onde isso estava, lá, como
intencionada” dos analistas da sua sujeito, devo [eu] advir” (Lacan, 1998a,
época. A impostura dos seus p. 878). Uma experiência com a
contemporâneos acabou se difundindo psicanálise deveria, portanto, produzir
entre os psicanalistas em decorrência de uma mudança de dupla incidência: a)
sua aversão “[...] pelas funções da fala e destituindo aquele significante que
pelo campo da linguagem” (Lacan, opera enquanto fundamento de uma
1998c, p. 243). Uma vez esquecido que dada cadeia discursiva, b) fazendo
o inconsciente freudiano é estruturado emergir um sujeito enquanto puro
como uma linguagem, a psicanálise acaso, efeito fortuito de linguagem.
resvalou para a “[...] ajuda samaritana, a Onde havia um isso operando como
pedagogia materna e a álibi para a justificação da neurose,
mestria/dominação dialética” (Lacan, deveria advir um sujeito capaz de
1998c, p. 244). Todo o formalismo das “recriar todo 'foi assim', até que a
políticas de formação da IPA não era vontade diga: 'Mas assim eu quis!
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sobredeterminado por aquilo que para entre você e o que está sendo
ele se impõe sob a forma imparativa do observado […]. (Mann, 1906/2009,
necessário (o-que-não-cessa-de-se- p. 220)
escrever) e do impossível (o-que-não-
cessa-de-não-se-escrever). E é A exemplo do que ocorre ao
precisamente na medida em que visa artista, o olhar que o analista lança ao
extrair, do discurso do outro, tal texto que lhe oferece o paciente é
diferença, que se poderia dizer do radicalmente distinto daquele que lhe
psicanalista aquilo que Thomas Mann lançaria um outro qualquer. Diferente
afirmou a respeito do escritor: do homem comum, que tende
frequentemente a interpor suas
O olhar que o artista lança sobre as
expectativas e inclinações a tudo o que
coisas externas e internas é diferente
lhe dizem os outros, o trabalho do
do olhar que lhes lança o homem: é a
psicanalista consiste em ouvir sem
um só tempo mais frio e mais
“querer notar nada em especial” (Freud,
apaixonado. Você pode, como
1912/2010c, p. 149). Assim procedendo
homem, ser bom, tolerante, amoroso,
ele prova ser ao mesmo tempo “mais
positivo o quanto quiser, pode ter
frio e mais apaixonado”, conforme
uma índole totalmente acrítica,
expressão de Thomas Mann: mais frio
aprovar qualquer coisa, mas como
na medida em que é capaz de ouvir o
artista o seu demônio o obriga a
que o paciente enuncia sem apelar a
'observar', a captar muito
nenhuma chave interpretativa (que o
rapidamente e com dolorosa malícia
faria surdo para qualquer outra coisa
qualquer pequeno detalhe que seja
que não fosse o Édipo, a relação de
característico do ponto de vista
objeto etc.); mais apaixonado porque
literário, que seja tipicamente
disposto a levar, até às últimas
significativo, que abra novas
consequências, tudo aquilo que lhe
perspectivas, dê destaque à raça, ao
disser o paciente.
ambiente social, à singularidade
No mundo regido pelo princípio
psicológica – obriga-o a notá-lo sem
da igualdade, o analista representa
escrúpulos, quase como se não
evidente exceção. Ele encarna a
existisse nenhuma relação humana
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Referências
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Allain-Miller, J. (2011). Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan (Vera Avelar
Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Bataille, G. (2013). A parte maldita (Júlio Castañon Guimarães, trad.). In G. Bataille, A parte
maldita precedida de 'a noção de despesa' (pp. 35-167). Belo Horizonte: Autêntica.
(Trabalho originalmente publicado em 1949).
Dostoiévski, F. (2001). Crime e castigo (Paulo Bezerra, trad.). São Paulo: Editora 34.
Freud, S. (2010d). O mal-estar na cultura (Renato Zwick, trad.). Porto Alegre: L&PM.
55
Freud, S. (2014). A questão da análise leiga. In Inibição sintoma e angústia, O futuro de uma
ilusão e outros textos (1926-1929) (Paulo César Lima de Souza, trad., Vol. 17, pp. 210-
228). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho originalmente publicado em 1926).
Fink, B. O sujeito lacaniano (Maria de Lourdes Sette Câmara). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
Lacan, J. (1985). O seminário: livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (M.
D. Magno, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1986). O seminário: livro 1: os escritos técnicos de Freud. (B. Milan, trad.). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. O seminário: livro 17: o avesso da psicanálise (Ari Roitman, trad.). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1992.
Lacan, J. (1998a). A ciência e a verdade (Vera Ribeiro, trad.). In J. Lacan, Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1998b) Do sujeito enfim em questão (Vera Ribeiro, trad.). In J. Lacan, Escritos (pp.
229-237). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Lacan, J. (2003b). Discurso de Roma (Vera Ribeiro, trad.). In J. Lacan, Outros escritos (pp.
139-171). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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Nietzsche, F. (2011) Assim falou Zaratustra (Paulo Cézar Lima de Souza, trad.). São Paulo:
Companhia das letras.
O autor:
Tiago Ribeiro Nunes possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2004),
Mestrado em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (2006) e Doutorado em Psicologia
Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (2012). É professor Adjunto do Curso de Psicologia da
Universidade Federal de Goiás-RC, onde trabalha desde 2006. E.mail: ribeiro.nunes@gmail.com
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