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Ana Godinho

Linhas do Estilo

Estética e Ontologia em Gilles Deleuze

RELÓGIO D’ ÁGUA
2

“Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que outra pessoa
vê deste universo que não é o mesmo que o nosso, e cujas paisagens teriam
permanecido para nós tão desconhecidas como as que poderão existir na
Lua. Graças à arte, em lugar de vermos um só mundo, o nosso, vemo-lo
multiplicar-se e, quanto mais artistas originais houver, mais mundos
teremos à nossa disposição, mais diferentes uns dos outros que os que
rolam no infinito...”
PROUST, Em Busca do Tempo Perdido
3

Sumário

INTRODUÇÃO…………………………………………………………………. 8
PRIMEIRA PARTE…………………………………………………………… 24
Proust ou a teoria da essência……………………………………………… 24

1. Signos………………………………………………………………………. 25

2. Verdade e aprendizagem…………………………………………………. 29

3. Estilo………………………………………………………………………… 35

a. Estilo hieróglifo…………………………………………………… 35

b. Estilo Anti-logos…………………………………………………... 40

c. Ressonância e movimento forçado…………………………….. 51

4. Essência……………………………………………………………………. 55

5. Conclusão: a imagem do pensamento – Uma nova ordem


para o pensamento…………………………………………………………… 59

SEGUNDA PARTE…………………………………………………………… 72
Exposição do pensamento ontológico deleuziano……………………...… 72
4

A. Crítica dos pressupostos da ontologia tradicional……………………... 72

1. Categorias………………………………………………………………….. 72

2. Representação…………………………………………………………….. 74

a. Recognição……………………………………………………... 77

b. Juízo…………………………………………………………..… 84

c. Crítica/Novas categorias………………………………………. 88

3. Conclusão: nota sobre o empirismo ou o uso


minoritário da ontologia…………………………………………………….… 92

B. Princípios da ontologia deleuziana…………………………………….. 105

C. Génese do sensível e programa de ontologia……………………...… 124

1. O virtual e o actual: dinamismos espácio-temporais…………………. 124

a. Intensidades. A génese do negativo……………………….. 141

b. Profundidade………………………………………………….. 152

2. Solução de Deleuze: como colmatar a cisão?……………………..…. 160

a. O eterno retorno ou o ser do devir………………………….. 164

b. O jogo ideal……………………………………………………. 177


5

3. Arte, eterno retorno e jogo ideal: para não termos árvores na


cabeça ……………………………………………………………………….. 186

TERCEIRA PARTE ………………………………………………………… 189


Estética……………………………………………………………………….. 189

1. A génese do estilo……………………………………………………..… 189

a. Que artista pode então ter tais características?…………….. 213

b. O que é um ritornelo?………………………………………….. 215

2. Estilo e heterogénese da obra de arte – Descrição do processo


criativo: do bloco de sensações ao plano do cosmos……………...…… 220

3. O que é o estilo?…………………………………………………………. 234

4. Da negação da fenomenologia da arte à necessidade


do “Corpo sem Órgãos”……………………………………………………. 257

5. Diagrama e Corpo sem Órgãos………………………………………… 274

a. O que é um diagrama?………………………………………… 274

b. A importância do Corpo sem Órgãos


na estética de Deleuze….………………………………………… 297
6

CONCLUSÃO: Estética e Ontologia - A Imagem-Cristal………………. 321

BIBLIOGRAFIA……………………………………………………………… 356
1. Obras do autor………………………………………………..… 356
2. Estudos sobre o autor…………………………………………. 359
3. Bibliografia geral………………………………………………… 363
7

ABREVIATURAS

CC- Critique et clinique


D- Dialogues
DR- Différence et répétition
FB- Francis Bacon: Logique de la sensation
IM- L’Image - mouvement
IT- L’Image - temps
IUV- L’Immanence: Une Vie...
LS- Logique du sens
MP- Mille Plateaux
N- Nietzsche et la philosophie
P- Pourparlers
PS- Proust et les signes
QF- Qu’est-ce que la Philosophie?
8

INTRODUÇÃO

O nosso estudo tem, como ponto de partida, duas questões:


como compreender o projecto ontológico de Deleuze no quadro do
seu sistema filosófico? Que lugar ocupa a estética neste
Pensamento?
Pode afirmar-se que só há, na filosofia deleuziana, um projecto
de ontologia, por muitas razões que adiante procuraremos elucidar,
mas também pode defender-se a ideia de que Deleuze elabora já uma
ontologia nas suas duas primeiras obras-matrizes (Différence et
Répétition e Logique du Sens).
Adianta-se, desde já, como hipótese, que, se o projecto de
elaboração de uma ontologia não pode restringir-se à esfera
exclusiva dos conceitos filosóficos, haverá domínios que oferecem
tipos privilegiados de experiência decisivos para essa tarefa. Deleuze
encontrou um desses domínios na estética, num plano único da
estética, da “verdadeira estética”, na obra de arte moderna que
abandonou “o domínio da representação para se tornar ‘experiência’,
[...] ou ciência do sensível.”1
Falamos de uma “verdadeira estética” para reforçar
precisamente este plano único que resolveria o problema da cisão
entre duas estéticas: cognitiva/sensível e artística. Neste plano
confundir-se-iam os dois sentidos “a ponto de o ser do sensível se
revelar na obra de arte ao mesmo tempo que a obra de arte aparece
como experimentação”2.
A proposta deleuziana que está em discussão em Différence et
répétition afasta irremediavelmente a possibilidade da “velha
ontologia” cumprir de facto essas condições. Condições que o
renascimento da ontologia, que Deleuze evoca, apesar do “ar dos
1
Gilles Deleuze, Différence et répétition, Paris, PUF, 1968. (Doravante
utilizamos a abreviatura DR, e usaremos a edição portuguesa ). DR, p. 123.
2
DR, p. 139.
9

tempos” lhe ser favorável, também não satisfaz3. Mas as referências à


estética e à obra de arte moderna são aqui já suficientemente claras
para se compreender que teremos por aí uma porta de entrada e
instrumentos para a fundamentação da nossa hipótese. Embora
devamos examinar o que levou à cisão das duas estéticas, “tão
infelizmente dissociadas, a teoria das formas da experiência e a da
obra de arte como experimentação”4, temos já o pressentimento de
poder encontrar noções que testemunham esse novo plano da
estética.
É verdade que a estética “sofre de uma dualidade gritante. Ela
designa por um lado, a teoria da sensibilidade como forma da
experiência possível; por outro, a teoria da arte como reflexão da
experiência real. Para que os dois sentidos se reencontrem, é preciso
que as condições da experiência em geral se tornem, elas mesmas,
condições da experiência real; a obra de arte, por seu lado, aparece
então, realmente, como experimentação.”5
E de que estética (como teoria do sensível) estamos a falar?6
Na perspectiva deleuziana, não se trata de uma estética
unificadora ou que trate a diferença a partir de uma mesma unidade
convergente, mas, pelo contrário, a partir de uma divergência
primeira. É com ela que “tudo muda”, e com ela teremos a
determinação das condições da “experiência real” e não já da
“experiência possível”. Condições em que o ser se revela. Já não há
significação, nem relação, nem ligação, interpretação, finalmente,
representação, quer dizer, as coordenadas habituais com que se
pensam os elementos do sensível. A estética aparecerá como a única
oportunidade da ontologia.

3
DR, p. 322.
4
DR, p. 450.
5
Gilles Deleuze, Logique du sens, Paris, Minuit, 1969, p. 300. (Doravante
utilizaremos a abreviatura LS).
6
Veremos mais adiante como Deleuze tratará esta questão, por exemplo em
DR, pp. 138-139.
10

Teremos de esclarecer: que fios atarão a ontologia à estética?


Elas confundem-se? Como se confundem os dois sentidos da
estética, num só?
Deleuze dirá que a obra de arte moderna parece mesmo
indicar à filosofia “um caminho que conduz ao abandono da
representação”7. Uma filosofia que nasce ou é produzida de “fora”
como o pintor, o músico ou o escritor fazem nascer os seus blocos de
sensações. Ou ainda: “A pesquisa de novos meios de expressão
filosófica foi inaugurada por Nietzsche e deve prosseguir, hoje,
relacionada com a renovação de outras artes, como, por exemplo, o
teatro ou o cinema.”8
A obra de arte, pela “experimentação” cria uma “rede” mais
estreita, onde só cabe um sentido da estética - o que “recolhe a
realidade do real”. Pela arte e pela ontologia, chegar-se-á a uma
génese, ou melhor, heterogénese do mundo, ao “caosmos de onde o
cosmos sai”.

O que diz e o que faz então o filósofo? Derruba a velha


ontologia. Procura chegar “o mais rapidamente possível” à
experiência real e ser atravessado por, ou construir, um plano – de
imanência. Talvez possa fazer como faz a criança pequena que “não
pára de dizer aquilo que faz ou que tenta fazer”, que está em todos os
momentos “mergulhada num meio”. Nesse lugar, meio, plano, entre
as coisas e onde elas tomam a sua velocidade e vitalidade máximas.
Em Qu’est-ce que la Philosophie?9 Deleuze fala de uma fadiga da
filosofia. Fadiga porque, “incapaz de se manter no plano de
imanência, o pensamento fatigado não pode já suportar as
velocidades infinitas” é então “remetido para as velocidades relativas
que só dizem respeito à sucessão do movimento de um ponto a outro,
de uma componente extensiva a outra, de uma ideia a outra, e que
7
DR, p. 139.
8
DR, p. 39.
9
Gilles Deleuze, e Felix Guattari, Qu’est-ce que la Philosophie?, Paris, Minuit, 1991.
(Doravante utilizamos a abreviatura QF, e usaremos a edição portuguesa).
11

medem simples associações sem poderem reconstituir qualquer


conceito.” Fadiga porque incapaz do “fora”. Derrubar a ontologia é
trazer-lhe um “fora” – que pode ser a estética da Diferença.
O projecto ontológico seria já em 1964, em Proust et les signes,
um projecto sobre a origem, a génese do mundo, a génese de tudo
quanto há, projecto que terá continuidade, parece-nos, em 68 e 69.
Mas como sempre afirmará, uma origem/génese que não tem
começo, nem acaba. Uma génese do “meio”10.
Na obra de 64, dir-se-á da diferença/essência: “É ela que
constitui o ser, que nos faz conceber o ser…Mas o que é uma
diferença última e absoluta? Não é uma diferença empírica entre duas
coisas ou dois objectos, sempre extrínseca. Proust faz uma primeira
aproximação quando diz da essência que ela é qualquer coisa num
sujeito - como a presença de uma qualidade última no coração de um
sujeito: diferença interna, «diferença qualitativa que existe na maneira
como o mundo nos aparece, diferença que, se não houvesse arte,
permaneceria o eterno segredo de cada um». […] O que é uma
essência, tal como é revelada na obra de arte? É uma diferença, a
Diferença última e absoluta. É ela que constitui o ser, que nos faz
conceber o ser. É por isso que a arte, enquanto manifesta as
essências, é a única capaz de nos dar o que nós procuramos em vão
na vida”11.
Na obra de 68, Différence et répétition, Deleuze dará corpo ao
“projecto” e não sairá de lá sem um corpo a corpo com uma “mesma
voz para todo o múltiplo de mil vias, um mesmo Oceano para todas as
gotas, um só clamor do Ser para todos os entes.” Por outras palavras:
no fim da obra, as condições parecem reunidas para a construção da
nova ontologia que se esboça no estudo sobre Proust. Tal como o
terceiro capítulo daquela mesma obra – “A imagem do pensamento” -

10
Meio, não é metade ou mediano é ao contrário o lugar onde as coisas ganham
velocidade. Desenvolveremos a noção mais adiante.
11
Gilles Deleuze, Proust et les signes, ed. Presses Universitaires de France, 1996
(1ª edição:1964), p.53. (Doravante, PS).
12

bem podia ser uma nova conclusão da primeira parte de Proust et les
signes (também intitulada “A imagem do pensamento”).
Neste contexto, Logique du sens retomará também com a obra
de arte o caminho da ontologia, nem que seja numa fulguração.
Problemática que continuará a atravessar as obras ulteriores,
nomeadamente Mille Plateaux12, Francis Bacon: Logique de la
sensation13, L’Image-temps,14 Critique et clinique15.
A nossa investigação não implica uma ordem cronológica mas
procura as obras fundamentais para compreender o desenvolvimento
e as transformações do pensamento de Deleuze; pretende, pois:
1. Mostrar que não existem duas estéticas, a da sensação no
conhecimento e a da sensibilidade na arte, mas um plano único da
estética, uma única estética.
2. Que a ontologia e a estética têm necessariamente de
conectar-se. Articulando-se, permitem um alcance que vai até ao
“nascimento do Tempo”.

A primeira parte deste trabalho inicia-se com uma análise de


Proust et les signes. A escolha desta obra prende-se com o facto de
julgarmos poder encontrar nela esboçado um pensamento que só
encontraremos em definitivo nas últimas obras de Deleuze.
Neste ensaio, a problemática centra-se em torno dos signos
que, enquanto matérias, na sua emissão, produção e multiplicação,
são expressão do ser e do mundo, meios de conhecimento, mas
também chaves que abrem para múltiplos mundos. O problema situa-
se, pois, em torno do pensamento e de uma teoria dos signos, nos
seus diferentes regimes, tipologias, séries, etc.

12
Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980, (Doravante,
MP).
13
Gilles Deleuze, Francis Bacon – Logique de la sensation, Paris, La Différence,
1981. (Doravante, FB).
14
Gilles Deleuze, L’Image-Temps, Paris, Minuit, 1985. (Doravante, IT).
15
Gilles Deleuze, Critique et clinique, Minuit, 1993. (Doravante, CC e usaremos a
edição portuguesa).
13

A classificação que Deleuze faz dos signos, em Proust et les


signes, permitir-nos-á chegar a uma tipologia específica que orientará
todo o nosso trabalho. Os signos artísticos (são especialmente estes
últimos que nos interessam) têm um “poder” sobre todos os outros.
Poder esse que lhes vem da possibilidade de introduzirem um Tempo
que não existe nos outros signos, que opera transformações das
matérias e dos materiais. Trata-se de um tempo de criação que dá à
arte, ao plano artístico, uma “unidade” de compreensão que vai muito
para além do seu campo de acção.
A criação artística (mesmo a criação em geral), aponta já nesta
obra, para o que há de mais fundamental, quer dizer, a génese do
acto de pensar, a necessidade mesma do que é dado a pensar no
pensamento. Ambas, têm uma consistência (na “experimentação”, na
“aprendizagem”) que pode até ser somente uma “pré-compreensão”
das essências.
O segredo da essência, do qual se tem um pressentimento,
desvendar-se-á na obra de arte, manifestando-se na literatura, na
pintura, na música, no cinema, etc. Trata-se neste momento de uma
primeira hipótese de trabalho.
O nosso problema anuncia-se em primeiro lugar por um trajecto
estético que não se desliga de um trajecto ontológico. Há um
momento em que o pensamento se confronta com a sua própria
impossibilidade para pensar. Teremos de chegar aí, o que nem
sequer é tarefa fácil, se pensarmos que a doxa invade e contamina o
pensamento inteiro. Paradoxalmente, para atingir o ponto desértico, o
Saara, de onde se poderá voltar a pensar, é preciso já que a
impotência se transforme numa potência capaz de produzir e criar.
O estilo aparece, neste sentido, como o operador do
movimento de criação que pode ligar os dois trajectos – o estético e o
ontológico -, e que faz nascer o mundo. Analisaremos, em primeiro
lugar, o estilo e daí tiraremos consequências.
14

1. O estilo será entendido como essência, mas tem para


Deleuze, como veremos, o sentido de diferença. Não se pode
aprender por assimilação, identificação, semelhança. O estilo é devir.
Devir e diferença, sem relações de semelhança, num tempo
“reencontrado” que se encarna numa matéria adequada. O devir-estilo
anuncia-se como a possibilidade que faz nascer o Tempo e portanto o
cosmos.
2. Esta noção de estilo não é fácil de compreender porque não
tem regras, nem metodologias ou estratégias. Veremos, contudo,
procedimentos vários para se chegar a um estilo (na pintura, na
literatura, na filosofia, na música, no cinema).
3. Da complexidade inicial desta noção irão nascer
modificações que a clarificarão, quer dizer, que a farão tornar-se num
estilo que é não-estilo. Atravessado por uma dissolução, por um caos,
um estilhaçamento, acabará definitivamente com uma certa ordem do
cosmos. Já não será estilo-essência. As relações com o pensamento
e a sua génese alterar-se-ão. Veremos desenvolvidamente também
as relações que vai estabelecer com a arte. Neste processo é
inevitável que uma certa noção de finalidade do mundo desapareça,
emergindo no seu lugar um caos que amplificará os seus efeitos.
O estilo não-estilo deverá aparecer como a unidade das partes
que não unifica (e aparecerá num corpo) num plano criador do acto de
pensar no pensamento, num “corpo sem órgãos”.
4. O estilo, afirmámos no ponto anterior, provoca efeitos,
ressonâncias que induzem movimentos forçados, melhor dizendo, o
estilo produz ele próprio movimentos que abrem domínios e níveis de
intensidades antes impensáveis. Efeitos tanto no corpo como no
pensamento.
O nascimento do mundo e a sua expressão, numa palavra a
“essência” deleuziana, têm um sentido ontológico que se articula com o
sentido estético. Pensar acontece directamente nas coisas.
15

Este primeiro desenvolvimento e análise a partir dos textos


deleuzianos permitir-nos-á começar a pensar na possibilidade de uma
segunda articulação (ou unificação das duas estéticas). Esta será
essencial e determinante para a primeira. Numa palavra, para conceber
o ser enquanto realidade ontológica é necessário que ele se revele ou
expresse na e pela arte.
A nossa tese constitui-se, então, partindo de uma problemática
que se pode traduzir da seguinte maneira: a arte é a expressão
ontológica. As relações de articulação, confronto, encadeamento, e a
sua possibilidade real, eis o que é preciso deslindar.
O nosso trabalho consistirá em mostrar como pode a arte ter
esse privilégio de se articular com a ontologia fundando-a, de certa
maneira. Como podem ambas constituir-se num plano único? Em que
medida a estética artística pode integrar uma teoria do ser? São muitos
os problemas, de tal modo que podemos ainda perguntar: o que faz a
diferenciação ou a separação entre o espaço artístico-ontológico e o
espaço empírico?
O plano em que se insere a nossa investigação determinar-se-á
a partir de uma análise crítica da representação, do figurativo, do
sistema tradicional de categorização. Análise que nos coloca diante de
um outro problema. Como devemos entender neste contexto o
pensamento deleuziano?
Está em causa para Deleuze, parece evidente, uma imagem do
pensamento. É portanto a sua crítica que é necessário fazer.
Em Proust et les signes, uma nova imagem do pensamento
implica que ele para pensar precisa de ser forçado. Veremos pois, o
que, segundo Deleuze, o força a pensar, que espécie de violência se
exerce para que o pensamento deixe de ser dogmático, para se tornar
num pensamento da diferença. Veremos, em primeiro lugar, em
Nietzsche et la philosophie16, depois em Proust et les signes, em

16
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, Paris, PUF, 1962. (Doravante, N).
16

Différence et répétition, e finalmente em Qu’est-ce que la Philosophie?


que imagem é esta.

Na primeira parte pretende-se introduzir a problemática geral.


Apresentar a “sintomatologia” que se vai desenvolver ao longo de
todo o trabalho.
Ver-se-á na segunda parte que a verdadeira génese do
pensamento está no signo. Primeiro, através da exposição do
pensamento ontológico deleuziano, já que ele aparece como o
primeiro elemento de articulação que pretendemos discutir. A obra a
que deveremos dar mais ênfase será Différence et répétition. Será a
ela mesma que recorreremos vezes sem conta.
Num primeiro ponto (A), faremos a análise da crítica que
Deleuze faz dos pressupostos da ontologia tradicional: as categorias,
a representação, a recognição, o juízo.
A crítica levar-nos-á mais longe, para um domínio que não se
deixa representar – a ontologia da diferença torna-se empirismo
transcendental. Não depende de um sistema de categorias e, para
Deleuze, não se trata de substituir um modelo (ou categorias) por
outro. A nossa dificuldade é das maiores. Averiguaremos o que
poderá fazer-se depois da crítica, pretendemos saber como se forma
esta nova filosofia deleuziana que pretende encontrar o movimento
real do pensamento.
Parece-nos desde já que um certo caminho fará com que seja
inevitável passar pela obra de arte moderna. A nova ontologia
deleuziana dirá do ser que ele é unívoco na diferença. A univocidade
do ser, no sentido deleuziano, é um tema difícil que exige ser
esclarecido. Deleuze quererá elaborar uma tábua de categorias não à
maneira de Kant, mas sim de Whitehead. Categorias que não são
bem categorias, são noções “fantásticas”, “abertas”, aproximando-se
de noções empírico-ideais.
17

O empirismo transcendental, a experimentação, surgirão no


pensamento deleuziano como surge um “abalo sísmico”. Não serão já
o “sujeito e o objecto” que estarão em causa, serão outros domínios,
um verdadeiro campo ou plano (transcendental), um rizoma. Deleuze
diz partir sempre do empírico e da coisa dada, do concreto. Mas
precisa resolver o problema do empírico, já que ele aparece sempre
desvalorizado, ou “desnaturado” relativamente a um “actual” não
recoberto pela qualidade e pela extensão.
A elaboração ontológica torna-se uma exigência da natureza
do ser e terá de dar conta dessa exigência. A expressividade do ser
materializa-se realmente.
Num segundo ponto (B) trataremos dos cinco princípios da
ontologia deleuziana. Um terceiro (C) dirá respeito à génese do
sensível e ao programa ontológico. O projecto de constituição da
ontologia deleuziana constrói-se sob a cisão fundamental, cisão que
está mesmo no âmago do sensível. Mais uma vez se pergunta: como
unificar as duas estéticas (cognitiva e artística) sem recorrer a uma
transcendência?
Deleuze terá de construir com a imanência e a univocidade um
pensamento de uma estética única. Se isto é possível, então, parece-
nos fundamental para a sua realização o Estilo, que julgamos ser
pensável no quadro da ontologia. O estilo abre domínios, provoca
efeitos. Neste caso serão efeitos no próprio ser que se exprime numa
multiplicidade de vozes. Na investigação da génese do sensível
encontramos uma outra génese – a origem e formação do mundo. Do
virtual ao actual; a actualização como criação. Destacaremos o papel
dos dinamismos espácio-temporais, procuraremos respostas a partir
do modelo da embriologia, tal como Deleuze – a formação do ovo ou
a formação do mundo é também a formação de um estilo.
Ainda no ponto C, em 2., procurar-se-á responder
concretamente à questão da cisão das duas estéticas. A solução
deleuziana, já o referimos, passa pela obra de arte moderna. Para
18

Deleuze, só ela consegue reunir as condições de composição e


consistência que dão ao objecto a sua realidade. Estas condições
passam por uma nova concepção do “cérebro-rizoma”, pela
constituição de blocos de sensações, corpos sem órgãos. Numa
palavra, as condições passam pela imanência.

A noção de eterno retorno aparece neste momento,


exclusivamente circunscrita à exposição deleuziana, para quem o
eterno retorno não é o retorno do idêntico (como tradicionalmente se
expõe), mas um pensamento que subverte completamente o mundo
da representação e afirma o ser do devir. Esta noção vai aparecer
ligada ao poder de selecção, vai ser concebida como um pensamento
selectivo que pode, portanto, eliminar o que não lhe interessa. A vida
não pode mais ser negativa e deve afirmar-se na sua mais elevada
potência. O eterno retorno é criador, capaz de afirmar a diferença pela
repetição. Esta última será também objecto de análise, dado que
podemos distinguir: entre a repetição nua, vestida e ontológica. A
pertinência desta repetição ontológica tem a ver, como não podia
deixar de ser, com a arte.
O jogo ideal (alínea seguinte) articula-se com o pensamento do
eterno retorno, no sentido mesmo de nos ajudar a responder às
nossas questões. Só jogando este jogo de um só lance fazemos voltar
o eterno retorno, na afirmação de todo o acaso que é a afirmação na
arte e pela obra de arte. Num só lance o artista faz irromper uma
poderosa produção (de vida) que se sustém por si, quer dizer, que se
conserva. A arte aparece como uma terceira repetição, ontológica,
capaz de operar uma verdadeira transmutação da matéria, uma
verdadeira criação.
A terceira e última parte consistirá na exposição mais
desenvolvida e aprofundada do estilo. Nesta parte, a estética, é a
orientação determinante.
19

Até aqui julgamos ter destacado alguns dos aspectos mais


essenciais do nosso problema, a saber, a articulação do pensamento
ontológico com a estética. Em seguida, através do exame de algumas
das obras, do filósofo, mais significativas neste domínio, estudaremos
as linhas centrais que entretecem esta articulação que pretendemos
consistente.
As obras de Deleuze sobre a estética e onde se desenvolve
mesmo a sua teoria atravessam todas as artes: a pintura, a literatura,
música, cinema, etc. Não sendo possível um estudo exaustivo,
optámos pelas que nos parecem mais decisivas e importantes:
Francis Bacon: Logique de la sensation, Mille Plateaux, Qu’est-ce
que la Philosophie?, L’Image-temps, Critique et clinique. Não
esquecendo que na primeira parte deste trabalho Proust et les signes
será a obra de referência.
A pergunta que orientará esta última parte é aquela que
pergunta pelo começo da arte, do estilo. Pergunta pelo começo ou
génese do mundo. Ou ainda, de que é feito o Universo?
Inevitavelmente a ontologia e a estética confundem-se. Quem é
o artista capaz de fazer tais perguntas? Quais os procedimentos, o
“método” que utiliza? Quando começa o seu estilo ou o seu não-
estilo?
Saber o que é o caos para poder sair dele. Entrar e sair vezes
sem conta. Sair do caos, da dissolução das formas e das matérias ou
produzir o próprio caos, que é sempre uma ameaça, produzindo
variedades de mundo. É o trajecto de um movimento de criação
poderoso. Movimento incessante que, com intensidades e
velocidades variáveis, está nas próprias coisas, em cada uma, em
cada ente, no ser.
O ritornelo, segundo Deleuze e Guattari, surge precisamente
na formação e génese do cosmos, nele concorrendo forças diferentes.
É uma “fábrica” do tempo com potência para extrair, seleccionar e
eliminar. Cria territórios, agencia o espaço e tempo no lugar próprio
20

onde as forças germinativas podem fazer eclodir a obra, o ser, o ente,


a pedra, a cor, o som, a palavra, o cosmos…
Parte-se do caos, dos meios e dos ritmos, agencia-se. Com o
território, a desterritorialização, a reterritorialização chega-se a um
corpo-a-corpo de energias.
Mais do que a filosofia e a ontologia, que se confundem, ou a
ontologia e a estética, também a Terra se confunde com os e nos
seus movimentos territoriais ou desterritorializantes. A confusão a que
Deleuze se refere compreender-se-á com a clarificação destas
noções. A noção de “zona de indiscernibilidade”, mas também a
noção de “transdução”, “ritmo”, “expressividade”, “autonomia”.
A arte de que aqui se fala, na perspectiva deleuziana, é
anterior, ou melhor, não espera pelo ser humano para começar. Tem
um solo, um “alicerce” na Terra. Começa com a “marca”, formação
ainda aleatória (desenha, traça marcas, que corresponderão em
Bacon às marcas livres ao acaso), a que Deleuze chamará “arte
bruta”, enquanto libertação específica de certos materiais de
expressão e transformar-se-á tornando-se estilo.
Será necessário ver que não é possível deixar de passar pela
arte bruta até se poder afirmar a arte ou o estilo. Até se definir
claramente “a linha de variação contínua” (= Estilo) que nos conecta
ao Cosmos. Chega-se à arte pelo estilo e ao estilo pelo estilo. A arte
passará por lugares improváveis, a ontologia também, até se tornar
consistente, até entrar no plano cósmico, até chegar ao “estado
celeste”. Daqui decorrerão outros problemas. Para esta arte teremos
um artista com características próprias, materiais e matérias de
expressão? Quais?
Na descrição da génese ou da heterogénese, sem começo,
encontramos lugares de passagem (o ritornelo é um deles), planos
(consistência, composição), devires, cristais de espaço-tempo,
finalmente um caosmos. “Lugares” que ajudam a aproximarmo-nos
disso que é o processo criativo. De acordo com a linha deleuziana o
21

processo criativo que aqui é pertinente é o da obra de arte moderna.


A exposição deste processo permite-nos, mais uma vez, reencontrar o
estilo. Ele já lá está, sempre esteve, mesmo quando ainda não
estava. Aparente contradição que será necessário explicitar.
Este trajecto leva-nos ao processo de criação, de produção.
Chegados aí, ao que parece decisivo, como obter isso mesmo que é a
arte e que está na obra de arte?
As “coisas” existem ou conservam-se, têm vida enquanto se
“mantêm de pé”. Fixam-se em devires, “blocos” (de afectos e
perceptos). São o “vivido” de um “corpo”, mas não o corpo vivido da
fenomenologia. Vida e “vivido” mudam de sentido na filosofia
deleuziana. O artista faz com sensações, com blocos de devir e
expressão, seres autónomos. Neste sentido, o artista, no plano da
estética está necessariamente no plano ontológico. Produz o que é e
não pode deixar de o produzir. As consequências serão inevitáveis:
há no mundo seres que se conservam e conservam, têm um Tempo,
estão num Tempo.
Sensações e corpo são condições para devir outra coisa.
Processos complexos anunciam-se, mudanças de percepção,
excessos, “métodos” (na pintura, na literatura, na música, etc.)
Como se chega ao plano ontológico-estético é o que se
pergunta por outras palavras, quando se pergunta: o que é o estilo?
Tanto na arte em geral como na filosofia, o estilo é considerado
por Deleuze como uma questão de “sintaxe” (ou seu equivalente). É a
coisa mais natural do mundo17. “Criação sintáctica, estilo, é este o
devir da língua”. Arranca, abre, fende, extrai, escava, gagueja, até à
saturação, para depois inventar, compor, dar consistência, devir corpo
sem órgãos. Não falhar o estilo, eis o que é necessário (com
procedimentos, fórmulas, tratamentos que minoram, fragmentam,
etc.). De todo este processo sairá um corpo sem órgãos, e dele, uma

17
MP, p. 123.
22

linha de indiscernibilidade que se confunde com uma linha de


variação contínua.
Bacon pinta sensações com cores. Estas tornaram-se visíveis
pela sua mão e pelo seu desejo. Tarefa comum ao pintor, ao escritor,
ao filósofo será a tarefa de tornar o Tempo sensível, cristal de espaço-
tempo.
Veremos que também se aplica ao cinema. A imagem
deleuziana aproximar-se-á sempre do signo, enquanto exprime um
sentido ou uma Ideia. Em Proust et les signes, em Mille Plateaux, por
exemplo. Poderemos vê-lo ainda na imagem do cinema. O cinema
produz signos específicos, mas a literatura e a pintura também.
Deleuze procurá-los-á nos “grandes autores de cinema” mas estes
são como os grandes pintores ou os grandes músicos: são eles que
falam melhor do que fazem. Mas falando, tornam-se outra coisa18.
Portanto mais do que falar sobre o cinema, um filósofo pode
falar de um certo pensamento do mundo e do ser que lhe corresponde.
Os conceitos de cinema não são dados no cinema…. “O cinema ele
próprio é uma nova prática de imagens e de signos”19.

Algumas breves observações sobre a escolha das principais


obras comentadas: deixámos praticamente de lado uma obra
importante, Le Pli, que muito nos diz sobre a estética deleuziana (que
alguns mesmo classificam como barroca). Mas dada a especificidade
controversa da questão – a estética de Deleuze é antes de mais
barroca? E o barroco para Deleuze não é fundamentalmente o barroco
musical? – e porque no centro da tese que defendíamos – a
importância de uma estética geral na formação da ontologia – optámos
por não recorrer a Le Pli, adiando talvez a discussão daquelas
questões para outros trabalhos.
Pelas mesmas razões, quer dizer, pelo carácter de
generalidade que revestia a nossa problemática, não tocámos em
18
IT, p. 366.
19
Idem.
23

pequenos textos, de que uma análise minuciosa extrairia sem dúvida


conclusões importantes. Refiro-me a Superpositions sobre Carmelo
Bene, a L’Epuisé sobre Beckett, e mesmo ao primeiro volume de
Cinema: L’Image-Mouvement de que um brevíssimo resumo da
questão da imagem no cinema clássico introduz a questão que nos
interessa essencialmente: a estrutura cristalina da imagem-tempo.
Como o subtítulo indica, o fio condutor que nos fez atravessar
as leituras e análises que fizemos das obras de Deleuze foi a noção
de estilo. Não seguimos uma linha cronológica, se bem que a primeira
obra analisada seja Proust et les signes. Este fio levou-nos a uma
espécie de espiral de tal maneira que no fim (que nunca é um fim
numa espiral aberta), ou mesmo a cada etapa da análise, é todo o
pensamento anterior de Deleuze que se repensa, alarga e inventa
novos conceitos que entram em conexão com os anteriores. Foi
também para mostrar essa forma espiralar (ou ondeante como a linha
gótica de Wörringer) na obra deleuziana, quer dizer para pôr em
evidência o seu estilo filosófico que, de modo muito geral, o trajecto
percorrido pode parecer seguir uma ordem cronológica.
Quanto ao método de análise e comentário, procurámos tratar
o problema que nos interessava talvez de maneira heterogenética,
seguindo o próprio conselho de Deleuze. Temos consciência de que
este trabalho não representa, dessa imensa tarefa (que implica a
busca das fontes, das influências, do surgimento de tal conceito
diferente que parte de múltiplos autores, etc.), senão uma ínfima
tentativa – quando, sobretudo, se trata de um pensamento como o de
Deleuze que se alimentou de tantos autores dos modos mais
diversos.
Resta-nos a consolação de ter porventura isolado, o mais
sistematicamente que nos foi possível, um problema – o das relações
do estilo e da ontologia – muito pouco tratado pelos comentadores,
mas que, estamos certos, o virá a ser, como tem acontecido a
múltiplos outros temas deleuzianos.
24

PRIMEIRA PARTE

Proust ou a teoria da essência

No comentário que a seguir propomos de Proust et les signes,


surge sempre uma dificuldade – que é geral para muitas obras de
Deleuze, sobretudo as de comentador de história da filosofia, que
escreveu sobre Hume, Bergson, Leibniz – que não tem talvez uma
solução absolutamente adequada: o que pertence a Proust e o que
vem de Deleuze? E, muitas vezes, o que parece obra do pensamento
de Proust (sobre os signos ou sobre o estilo, por exemplo), não
resultará de uma projecção de preocupações, senão já, de conceitos
deleuzianos?
Esta dificuldade levanta certamente obstáculos metodológicos. A
nossa leitura de Proust tenta contorná-los, adoptando certos critérios
pragmáticos: onde o comentário de Proust por Deleuze revela
problemáticas propriamente deleuzianas – como no caso da
aprendizagem - que reaparecem noutras obras e noutros contextos,
podemos estar certos de que a marca do filósofo impõe uma
“interpretação” própria do pensamento de Proust.
Assim: sobre a aprendizagem (de que Différence et répétition
retoma longamente a análise); sobre as essências (que Deleuze
abandona definitivamente nas obras subsequentes, mas a que dá já
em Proust et les signes um sentido não-platónico, como Diferença);
sobre o estilo, tema que preocupou Deleuze até ao fim da vida,
apresentando longos desenvolvimentos sobre a questão em Mille
Plateaux, Qu’est-ce que la Philosophie?, Dialogues20, Critique et
Clinique, - sobre todos estes temas pode adiantar-se que Proust et les

20
Deleuze, Gilles, Dialogues (com Claire Parnet), Paris, Flammarion, 1996.
(Doravante, D e usaremos a edição portuguesa).
25

signes contém em germe (e às vezes mais do que em germe) o


pensamento ulterior de Deleuze.
O nosso comentário de Proust et les signes mistura pois
necessariamente o que não é facilmente destrinçável: o pensamento
de Proust e o de Deleuze. Mas aqueles critérios pragmáticos permitem-
nos detectar nesta obra qualquer coisa como esboços da matriz do
pensamento definitivo de Deleuze sobre, por exemplo, o estilo. Não
atribuímos a Deleuze o que é de Proust, se bem que às vezes seja o
próprio Deleuze a estabelecer a confusão, apropriando-se de ideias
dos outros para as reformular à sua maneira. Insistimos no que se
pode mais facilmente isolar como pertencente à filosofia deleuziana já
em Proust et les signes - o que se confirmará, esperamos, com a
análise dos mesmos temas em obras ulteriores.
Eis o esforço metodológico a que nos obrigamos, com a
consciência da grande complexidade dos problemas assim levantados.

1. Signos

O tema principal deste ensaio diz respeito aos signos. Todas as


espécies de signos estão em causa. É necessário descobrir-lhes a
natureza, os meios, o modo de emissão, interpretação, produção e
multiplicação e também as matérias de que são feitos, os regimes, a
classificação.
A análise deleuziana é de certa forma inaugural e anunciadora,
trata-se, como atrás se disse, em nosso entender de um livro matricial
no contexto do pensamento deleuziano.
Numa primeira definição os signos reenviam a modos de vida, a
possibilidades de existência, são específicos, heterogéneos e não
homogéneos. Constituem a matéria dos mundos, exprimem-nos, são
eles mesmos feitos de múltiplas matérias. Diferenciam-se em géneros,
26

classes, famílias, regimes. São emissões de partículas que formam a


unidade dos mundos, emitidas por pessoas, objectos, matérias e
materiais. Não têm a mesma maneira de aparecer, nem se deixam
decifrar do mesmo modo, exigem uma aprendizagem (sempre a fazer-
se). Traduzir um signo é pensar e implica necessariamente o
pensamento. Os signos ligam-se entre si e ligam-se à vida, às vezes
em excesso, são potências não orgânicas, acontecimentos,
agenciamentos.
Na sua multiplicidade (de sistemas, organizações,
funcionamentos e tipologias) destacam-se em primeiro lugar os signos
da mundanidade – estes estão num “meio” que mais do que qualquer
outro emite e concentra signos num espaço reduzido e a uma
velocidade enorme. Não sendo homogéneos a sua unidade consiste
em não pensar nem agir, não reenviar a nada, antecipando “a acção
como o pensamento, anulam o pensamento como a acção”21, são
vazios porque não se pensa nem se age, mas enquanto signos
aparecem e produzem efeitos (provocam, por exemplo, uma exaltação
nervosa). Não podem ser ignorados, a aprendizagem faz-se também
com eles.
Em seguida os signos amorosos – individualizam, exprimem
mundos desconhecidos, implicam, envolvem e aprisionam os mundos.
“Amar, é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos
que permanecem ocultos no amado.”22 Não são como os primeiros,
vazios de pensamento e acção, mas são enganadores, contraditórios e
escondem o que exprimem, não provocam uma exaltação nervosa
superficial, mas sofrimento. O amado aparece como signo, um signo
desconhecido.
Os terceiros, signos sensíveis – são impressões ou qualidades
sensíveis, signos materiais, verídicos que nos dão imediatamente uma
alegria extraordinária. Aparecem não “como uma propriedade do
objecto (…), mas como o signo de um qualquer outro objecto, que
21
PS, p.13.
22
PS, p.14.
27

devemos tentar decifrar”23. Parece que aprisionam a alma de um outro,


diferente daquele que designam. E quando os deciframos, não é ainda
suficiente, não são suficientes. São signos de alteração e
desaparecimento. Representam um esforço da vida para nos preparar
para a arte e para a sua revelação final.
Não são vazios nem enganadores, são afirmativos, materiais,
alegram-nos imediatamente. Não são nada, se não reenviam para uma
essência ideal que incarna no seu sentido, mas “nós não estamos
ainda em estado de compreender o que é esta essência ideal, nem
porque é que sentimos tanta alegria.”24 Visa-se uma última etapa.
Procura-se o sentido do signo.
Finalmente os signos artísticos – o último dos mundos, a etapa
que faltava. Estes signos do mundo da arte são antecipações (neles
existe um tempo original absoluto que compreende todos os outros e
os domina), desmaterializados, imateriais, essenciais, “transformam
todos os outros”, os que são materiais e todos os que convergem para
eles. “Desde logo, o mundo revelado da Arte reage a todos os outros,
especialmente aos signos sensíveis; integra-os, dá-lhes um sentido
estético e penetra no que eles tinham ainda de opaco.”25 Só estes
últimos permitem a revelação das essências. São primordiais, alegria
pura, os únicos capazes de nos fazer encontrar o que procurámos em
vão na vida – o sentido. Com eles podemos ter esse encontro
revelador e essencial. Há neles uma unidade, uma superioridade
imaterial, que é uma diferença, última ou primeira, radical e absoluta.
Revelados na obra de arte operam uma verdadeira transmutação da
matéria - em essência. Todas as aprendizagens a fazer são
aprendizagens “inconscientes” e passarão pela arte.

De que matérias são feitos todos estes signos? Qual é a sua


natureza e o seu sentido? As matérias são heterogéneas, mais
23
PS, p.18.
24
PS, p. 21.
25
PS, p. 21.
28

espaciais ou temporais, mais ou menos materiais, quer dizer, umas


mais desmaterializadas do que outras, espirituais. Cada tipo de signos
tem uma linha particular de tempo e cruza-se combinando-se com
múltiplas outras (como numa mesma linha se podem misturar e
implicar várias espécies de signos).
Um traço mínimo de um rosto, efeito da passagem do tempo, da
precariedade, pode cruzar-se com um odor, uma preocupação, um
ciúme, uma simpatia, um sorriso ou um silêncio (qualquer coisa se
desanuvia e altera e o rosto fica transparente ou aparece um rubor, ou
um rosto fechado ou pesado). Há ainda um resto material.
Mas, em matérias mais maleáveis e soltas, como por exemplo:
“a cor para o pintor, como o amarelo de Ver Meer, o som para o
músico, a palavra para o escritor”26, tudo é imaterial, ao mesmo tempo
que o seu sentido se torna espiritual.
O signo relaciona-se com o seu sentido, mas não sabemos bem
de que natureza é esta relação. Sabemos que os signos mundanos são
vazios, pretendendo ser o seu sentido, que os signos amorosos são
falsos, havendo uma contradição entre o que revelam e o que
pretendem esconder. E os terceiros, os signos sensíveis, são verídicos,
sendo o seu sentido ainda material. E quando nos aproximamos dos
últimos “a relação do signo e do sentido é cada vez mais próxima e
íntima. A arte é a bela unidade final de um signo imaterial e de um
sentido espiritual.”27
Na verdade, sem a arte não poderíamos compreender essa
essência ideal de que falámos antes. Deleuze afirma mesmo que é
nela que está o essencial, a revelação final. A estética confundir-se-á
com a criação de mundos. Espaços e tempos que a obra de arte unirá,
pois nela unem-se “todas as outras dimensões” e encontra-se a
verdade.

26
PS, p. 60
27
PS, p. 105.
29

2. Verdade e aprendizagem

Procurar a verdade, eis o que num certo momento está em


causa. Procurar será a mesma coisa que interpretar, decifrar, explicar,
traduzir. Apreender ou aprender a partir de qualquer emissão de signos
liga-se à procura da verdade por uma espécie de “determinação.
Estamos determinados porque numa situação concreta somos
forçados, exerce-se sobre nós uma violência que nos incita a procurar.
Dos signos vem uma violência (mundana, amorosa, sensível) que nos
força a pensar. Uma espécie de encontro forçado com a verdade.
Porque aprendemos que cada tipo de signos se relaciona com o
objecto ou coisa que emite e com o sujeito que apreende.
Depois, ou melhor, simultaneamente, interpretamos. Não
“descobrimos nenhuma verdade, não aprendemos nada, senão por
decifração e interpretação”28. A verdade não se encontra por afinidade
ou amizade, nem sequer por boa vontade, alcança-se num encontro
inevitável, contingente, fortuito e involuntário. Há, portanto, signos que
nesses encontros nos forçam e garantem a necessidade do que é dado
a pensar. Sofremos, pois, uma espécie de violência no pensamento
para podermos pensar.
O acto de pensar não decorre de uma simples possibilidade
natural. O que lhe é essencial, diz respeito ao “aprender”, à
interpretação, diz respeito à única criação verdadeira. “Criação” que é a
génese do acto de pensar no próprio pensamento. Quando se quer a
verdade, quer-se necessariamente esse encontro com a criação, que é
então a mesma coisa que interpretar, decifrar, traduzir, encontrar o
sentido do signo, a unidade do signo e do sentido.
No início da procura, é fundamental ver e escutar, reconhecer.
No caso dos signos sensíveis é preciso, especificamente, observar e
descrever. Podemos, mesmo assim, trabalhando e com esforço para

28
PS, p. 11.
30

compreender as significações e os valores objectivos, não alcançar o


que desejávamos. “Decepcionados, lançamo-nos no jogo das
associações subjectivas. Mas para cada espécie de signos, estes dois
momentos da aprendizagem têm um ritmo e relações específicas.”29
Os signos não se desenvolvem, não se explicam se não se
compreendem as combinações complexas que constituem o sistema
de verdade e mesmo assim é preciso algo mais do que a
compreensão. Os signos são forças, não são representações. Forças
que implicam e envolvem sentidos. São eles que são o objecto da
aprendizagem.
A noção de aprendizagem, presente ao longo de todo o ensaio,
aparece como um movimento fundamental que permite compreender e
decifrar a complexidade da constituição do sistema da verdade.
Deleuze não se cansará de dizer que o que é essencial é
aprender, como não se cansará depois de dizer que
aprender=experimentar, é percorrer relações heterogéneas (as que
atravessam a experiência pura), segui-las e colocá-las em série. A
condição para aprender é que uma matéria, um objecto, um ser,
emitam signos, porque serão eles que, mesmo obscuros, se podem
decifrar, interpretar, traduzir, pensar. É preciso ser sensível aos signos,
estar atento, e isso é sem dúvida um “dom”. A aprendizagem, como a
procura da verdade, são tarefas infinitas (que dizem sempre respeito
aos signos), são uma “vocação” ou “predestinação”. Não sabemos
claramente o que são. Provavelmente, toda a problemática da arte
como experimentação começa a esboçar-se desta maneira, o acaso
dos encontros, a pressão dos constrangimentos, o fortuito.
Vimos que os signos são objecto de uma aprendizagem e não
“de um saber abstracto”, será sempre por meio deles que alguém
aprende, embora não saibamos como. Mas, sabemos que à sua
maneira não há aprendiz que não seja egiptólogo de qualquer coisa.
Um objecto, uma matéria, um ser, emitem signos/hieróglifos que é
29
PS, p. 105.
31

preciso ter sempre em consideração, a que é preciso ser sensível, quer


dizer, interpretar/decifrar. No fim, mesmo que não se saiba nada, há
qualquer coisa que se revela, porque há qualquer coisa que se
pressente (as essências), para lá dos objectos, uma certa
aprendizagem dos signos.
Os signos não são, assim, somente veículos do conhecimento,
não são só objectivos ou subjectivos, mas como Deleuze bem viu, são
uma espécie de chaves que uma vez decifradas abrem para múltiplos
mundos.
Prosseguimos a nossa aprendizagem até chegar à revelação
final. Apesar do mundo vacilar (e “o mundo vacila na corrente da
aprendizagem”), apesar das decepções, mesmo não sabendo como é
que se aprende, há um “progressivamente” pressentido nas várias
etapas. Aprender é “ter um pressentimento”. Não é descobrir, estudar,
ordenar, associar, classificar e organizar ideias. Em Logique du sens,
Deleuze designará o pressentimento como uma “pré-compreensão”
dessa revelação final.
Mesmo que não se saiba como é que aprendemos, sabemos
que não aprendemos nunca “fazendo como qualquer um, mas fazendo
com qualquer um, que não tenha relação de semelhança com o que
aprendemos.”30 Inevitavelmente, a decepção aparece como um
momento fundamental da aprendizagem.
De facto, num determinado momento decepcionamo-nos porque
tentamos interpretar objectivamente e o objecto não nos dá o que
esperávamos, tentamos então, numa espécie de compensação,
remediar a decepção interpretando subjectivamente. Nem uma nem
outra são, contudo, suficientes. Estamos ainda, segundo Deleuze,
numa falsa aprendizagem. “Saltamos” de uma para outra, remediamos,
compensamos, mas não chega. E num momento qualquer
pressentimos, pressentimos a insuficiência, a impossibilidade de
chegar a uma “revelação definitiva”.

30
PS, p. 32.
32

Para lá destes dualismos, dos objectos designados, para além


das verdades formuladas, das associações subjectivas, existe uma
terceira possibilidade, uma outra possibilidade de mundo, um terceiro
termo: “É a essência que constitui a verdadeira unidade do signo e do
sentido (…). É ela a última palavra da aprendizagem ou a revelação
final.”31 Quer dizer, a revelação (que é a aprendizagem, o
pressentimento), enquanto procedimento de tradução pode revelar o
que há de mais profundo, mais do que o objecto e mais do que o
sujeito – um meio povoado de essências. “Se ela [a revelação] se deve
fazer, é lá [na arte] que se fará”. O segredo da essência pressente-se,
capta-se e manifesta-se pela obra de arte. A aprendizagem tem então
aí, plenamente, o seu campo de acção.
Revelados na obra de arte os signos reagem a todos os outros
domínios, reagem a todos os outros signos (os que são incapazes de
captar o segredo da essência). São signos, essências, alógicos ou
supra-lógicos. “Ultrapassam tanto os estados de subjectividade como
as propriedades do objecto.”32
Não existem leis mecânicas entre as coisas, nem comunicações
voluntárias entre os espíritos, dirá Deleuze. A verdadeira
aprendizagem, pressentida (a aprendizagem da arte, portanto,
estética), é sempre um encontro involuntário. Se através das etapas
progressivas da aprendizagem não chegarmos a uma revelação final
(da arte), não compreenderemos nada da essência. É preciso, pois,
progressivamente, por etapas, pressentindo, chegar à arte. Aquele que
aprende, percorre um trajecto estético, fará necessariamente uma
iniciação, etapa a etapa, signo a signo até ao último.
É o caso do egiptólogo que, pela aprendizagem, ultrapassa
etapas e progressivamente atinge os últimos signos; pelo estilo
transforma-os e atinge a finalidade do mundo. A memória involuntária

31
PS, p. 50.
32
Idem.
33

no seu papel secundário, na incarnação das essências, prepara-o para


o segredo, quer dizer, prepara-o para a “revelação”.
Sobre esta questão, retenhamos o que de essencial Deleuze
dirá em Différence et répétition: o aprendiz é aquele que pode reunir
todos os elementos e inventar problemas práticos ou especulativos,
mas será forçado que o faz, porque não está de modo nenhum
tranquilo. Aprender distinguir-se-á e será diferente de saber. O
primeiro designa o “que convém aos actos subjectivos operados em
face da objectividade do problema (Ideia)” e evolui progressivamente
na compreensão dos problemas; o segundo diz respeito à
“generalidade do conceito ou a calma posse de uma regra das
soluções”, quer dizer, que nada se força e a calma posse traz
tranquilidade.
Ora, a solução de um problema não vem de uma calma posse,
mas de uma conjugação ou correlação, de um ajustamento, ideal e
intranquilo, das nossas percepções com os elementos.
O aprendiz o que faz então é, explorar a Ideia/hieróglifo
(elemento do aprender), elevar as faculdades ao seu uso paradoxal,
fazendo do seu aprender uma “verdadeira estrutura transcendental que
une, sem as mediatizar, a diferença à diferença, a dissemelhança à
dissemelhança”33.
Em síntese: “aprender pode ser definido de duas maneiras
complementares que se opõem igualmente à representação no saber:
ou aprender é penetrar na Ideia, nas suas variedades e nos seus
pontos notáveis; ou aprender é elevar uma faculdade ao seu exercício
transcendental disjunto, elevá-la a este encontro e a esta violência que
se comunica às outras.”34
Em qualquer dos casos, aprender é pressentir,
progressivamente num “salto”. É qualquer coisa da ordem de um outro
tempo e espaço, onde se joga de uma só vez todo o hieróglifo, tudo o
que está por vir e por acontecer, qualquer coisa mais mínima que o
33
DR, p. 280.
34
DR, p. 320.
34

mínimo, como uma imperceptível mudança atmosférica. Pressentimos


sem compreender e tendo já decidido o que quer que seja, que não
sabemos ainda, o futuro. Vai-se até uma extremidade (“do cordão da
violência”) máxima, fica-se numa espécie de “estado segundo”, numa
suspensão de um intervalo, de um qualquer tempo ou espaço. “Deste
modo, «aprender» passa sempre pelo inconsciente, passa-se sempre
no inconsciente, estabelecendo, entre natureza e o espírito, o liame de
uma cumplicidade profunda.”35
Neste ponto extremo em que estamos num momento qualquer,
na aprendizagem, pode estar a “origem radical das Ideias”36, o
pensamento puro no seu máximo “impoder”. Está o “Eu fendido de um
cogito dissolvido”, neste impreciso momento e lugar, nesta zona jamais
recoberta, está um corpo aberto, rasgado e estilhaçado, um corpo
também ele fendido e afundado de pressentimentos, uma “matéria” que
emite signos a decifrar.
Quando se sai e se pergunta de onde se vem e não se sabe, é
daí mesmo que se vem. Desse ponto extremo. Deleuze chama-lhe,
citando Nietzsche: “«algo irredutível no fundo do espírito: um bloco
monolítico de Fatum, de decisão já tomada sobre todos os problemas
na sua medida e na sua relação connosco; e, ao mesmo tempo, um
direito que temos de aceder a certos problemas, como a sua marca
feita com ferro em brasa sobre os nossos nomes»”.37 Ou ainda,
chegados ao ponto desértico, aleatório, original, cego, acéfalo, afásico,
que designa a impossibilidade de pensar o que é o pensamento e que
se desenvolve na obra como problema e onde o “impoder” se
transmuta em potência, chegados aí, nesse pressentimento,
afundados, capturamos antecipadamente a correspondência entre o
signo e o sentido (numa antecipação preferencial decisiva). Esta
espécie de afundamento faz ressonância, produz efeitos, produzindo
uma outra natureza – a essência. Uma nova forma de unidade.

35
DR, pp. 277-278.
36
DR, p. 321.
37
DR, p. 329.
35

3. Estilo

a. Estilo hieróglifo

A concepção de estilo na primeira parte (1964) de Proust et les


signes não é a mesma que se desenvolve na segunda parte (1970).
Não se pode afirmar que a segunda surja por oposição à primeira. Esta
última, é certo, não define ainda com clareza a noção de estilo. O que
acontecerá depois. Podemos assim falar primeiro de um estilo-
hieróglifo, que aparece como um esboço imperfeito (com
determinações porventura mesmo opostas) da segunda concepção a
que Deleuze chamará estilo “Anti-logos”.
Como antes vimos a aprendizagem (o aprendiz) ultrapassa
etapas e progressivamente atinge os últimos signos, que se revelam na
arte. O estilo transforma-os e atinge a finalidade do mundo – a
“revelação final”. Esta finalidade ressoa pelo estilo, produzindo uma
outra natureza que será a essência, como a essência será ela mesma
a diferença. Ainda não é um estilo Anti-logos mas também não será um
estilo logos porque este se recusa (“quebra-se” o logos). Só “há”
hieróglifos, interpretação de hieróglifos. O egiptólogo trabalha
decifrando o que está cifrado. É ele o aprendiz.
Mas, o seu trabalho não é qualquer coisa que se aprenda por
imitação ou assimilação, fazendo como se. Se há aprendizagem, se há
estilo, é por uma evolução não paralela. A definição geral de evolução
diz que a aprendizagem se produz por uma sequência de movimentos,
de transformações orientadas numa certa direcção, num
desenvolvimento processual. Mas, evolução a-paralela quer dizer outra
coisa - devir. Não é, portanto, uma só coisa que se produz. São duas
diferentes que se ligam mudando ambas as suas determinações.
Muda o aprendiz e o hieróglifo. É uma evolução entre “dois seres que
36

não têm nada a ver um com o outro”38. O meio revelador, “etapa última”
para alcançar a essência, é o estilo.
Pode dizer-se dele que é uma força genial, liberdade da
natureza ou a coisa mais natural do mundo, etc. Mas uma das
características que melhor o definem é, precisamente, o privilégio
desse pressentir. Privilégio que se exprime como “qualidade comum”39
e se manifesta de múltiplas maneiras: na arte em geral, na filosofia, na
ciência, nas vidas, etc. Aprendemos pressentindo numa antecipação
preferencial decisiva, enquanto devir (“Os devires são o que há de mais
imperceptível. São actos que só podem estar contidos numa vida e
expressos num estilo. Os estilos, tal como os modos de vida, não são
construções.”40). Mudamos como numa metamorfose. Um devir toma
forma, encarna-se nas matérias, faz-se corpo. É isso que faz o estilo,
uma metamorfose.

O estilo começa quando dois objectos diferentes, mesmo


vizinhos mas distantes, se misturam de alguma maneira, se ligam,
trocam ou associam, embora não formem uma unidade. Precisamente
porque é a unidade que está posta em causa. Movimento de dupla
captura (evolução a-paralela), “fazendo com alguém que não tem
relação de semelhança com o que aprendemos” uma espécie de
sistema de passagem (se aprendo a nadar, diz Deleuze, é preciso que
os meus movimentos e os meus repousos, as minhas velocidades e as
minhas lentidões apanhem ou capturem um ritmo comum com os do
mar, de acordo com um ajustamento mais ou menos durável e com o
qual não tenho “relação de semelhança”. Perdendo e ganhando tempo
nesse ajustamento indeterminado. Qualquer tipo de aprendizagem põe
em correspondência pontos notáveis, através de ritmos e do resultado,
e quando a aprendizagem está feita, nasce o estilo. Outro exemplo: a
criança que aprende a andar de bicicleta faz progressivamente

38
D, p. 13.
39
PS, p. 61.
40
D, p. 13.
37

corresponder o peso do tronco, a sua inclinação com o peso e a


velocidade da bicicleta, a posição dos braços, da cabeça, das pernas
com a posição do volante, das rodas, etc. do veículo, de maneira a
obter um equilíbrio único, uma “unidade” de equilíbrio entre o equilíbrio
da bicicleta e o equilíbrio do seu corpo – e isto em todos os graus de
velocidade, lentidão, aceleração, etc., do movimento. O corpo e a
bicicleta formam um único equilíbrio, só tornado possível pela maneira
própria como o corpo entrou em conexão consistente com o veículo – e
essa maneira define o estilo, o estilo daquela criança a andar de
bicicleta). Fazendo “com”, sem formar uma unidade.
Qual é então a natureza especial desta não unidade, que não
resulta de uma unificação prévia? Esta não unidade sem relação de
semelhança que num instante qualquer surge evolui e assegura a troca
dos pontos de vista, a comunicação das essências, a coerência das
qualidades, surgirá ela segundo a lei da essência ou do tempo, como
uma parte ao lado das outras, signo ou pedaço localizado, fragmento
sem unidade anterior? Nesta primeira etapa, a formação do estilo ainda
é só uma espécie paradoxal de “tratamento” ou “transmutação”,
movimento de incarnação de uma matéria numa outra “matéria
luminosa”. E, Incarnar, modular, desmaterializar é adequar à essência,
é diferenciar.
Será sem lei, começará num momento qualquer porque o
tempo tem o estranho poder ( é a sua lei) de afirmar simultaneamente
pedaços que não fazem um todo no espaço, como não formam um por
sucessão no tempo. E será sempre necessário “tempo para interpretar
um signo, todo o tempo é o de uma interpretação, quer dizer de um
desenvolvimento.”41 Seja o tempo que perdemos (signos mundanos), e
o tempo perdido (signos amorosos), seja uma nova estrutura do tempo,
o tempo que reencontramos (signos sensíveis), e finalmente o tempo
reencontrado (signos artísticos). No tempo existirão quatro linhas.

41
PS, p. 106.
38

No contexto da obra que analisamos, ainda que só na primeira


parte, o estilo define-se como uma certa interpretação/tradução dos
signos, a velocidades de desenvolvimento diferentes, como um
movimento que cruza diferenças de potencial, entre as quais qualquer
coisa se pode passar ou produzir, que é já uma necessidade paradoxal
do pensamento – “fortuita e inevitável”.
Movimento de criação que vai até ao ponto em que a cadeia
associativa é quebrada e as matérias se rompem, saltam, transmutam,
desmaterializam, espiritualizando-se, refractando-se e exprimindo-se
em palavras, conceitos, cores, sons.
Há aqui um “tratamento da matéria” para que ela sofra uma
metamorfose, que a torna qualidade de um mundo e determinação que
é diferença. Tal é a imagem, o produto do estilo. É matéria-movimento
na qual o signo é talhado em diferença.
Sendo qualidade de um mundo, a essência não se confunde
jamais com um objecto, mas ao contrário re-aproxima dois objectos
completamente diferentes, que não têm absolutamente nada a ver um
com o outro, apercebendo-nos nós ou pressentindo “que eles têm esta
qualidade num meio revelador. Ao mesmo tempo que a essência se
incarna numa matéria, a qualidade última que a constitui exprime-se
então como a qualidade comum a dois objectos diferentes, modulados
nesta matéria luminosa, mergulhados neste meio refractante”42.
Contida numa vida, a essência, exprime-se por um estilo. Uma espécie
de nascimento continuado do mundo. Reencontrado nas matérias
adequadas às essências, nascimento que põe os objectos em devir.
O estilo não é uma criação psicológica individual, particular, uma
construção, mas sim uma potência de vida que se afirma com uma
força individualizante, uma obstinação da própria essência, um dom.
O nascimento/criação do mundo é o nascimento extraordinário
do Tempo. Para espiritualizar a matéria e torná-la adequada à

42
PS, p. 61.
39

essência, o estilo “reproduz a instável oposição, a complicação original,


a luta e a troca dos elementos primordiais”43.
Contudo, pode dizer-se que não há nada na definição que o
defina, tratando-se mesmo de um conceito dos mais difíceis de
analisar. Não há metodologias, regras, nada senão uma “longa
preparação”. Digamos que é um procedimento ou “tratamento da
matéria”, adequação que dá identidade a um signo; indicando, já
vimos, como dois objectos completamente diferentes mudaram,
determinando-se, mudando mesmo de nome.”44 Simultaneamente é a
diferença última absoluta (matéria e essência não serão duas mas uma
só) que “indica” e “reproduz”. Indica uma possibilidade de devir e ao
mesmo tempo reproduz (interpreta, como se pode interpretar uma
“grande música”) de forma continuada o “começo do mundo”. Numa
palavra, o estilo é a “própria essência”.
A obra de um grande artista não envelhece senão quando, “«por
usura do seu cérebro», ele julga mais simples encontrar directamente
na vida, como já construído, o que ele não podia senão exprimir na sua
obra (…). O artista envelhecido confia na vida, na «beleza da vida»;
mas, do que constitui a arte, ele não tem mais do que sucedâneos,
repetições que se tornaram mecânicas, porque exteriores, diferenças
congeladas que recaem numa matéria não sabendo já como a tornar
leve e espiritual.”45 Não sabendo já como encontrar essa qualidade
comum, não pode “compreender a vida”, não pode decifrar nem fazer
esse “tratamento da matéria”.
“Quem sabe como se tornar num grande escritor?”46 Há
qualquer coisa que não podemos saber no começo, podemos no
entanto começamos por isso, pelo “meio” e fazemos uma
aprendizagem que parece “tempo que perdemos, tempo perdido, mas
também tempo que reencontramos, tempo reencontrado”47.

43
PS, P. 62.
44
Idem.
45
PS, p. 63.
46
PS, p. 32.
47
PS, p. 34.
40

b. Estilo Anti-logos

Na segunda parte de Proust et les signes, que Deleuze


acrescentou já depois de ter escrito Différence et répétition e Logique
du sens, aparece um capítulo expressamente dedicado ao estilo. Será
o último antes da conclusão48.
Enquanto na primeira parte o estilo é essência/diferença,
“tratamento da matéria” na segunda será: “estrutura formal significante
da obra”49. Retoma-se, do início, a problemática da unidade, não já “à
maneira de Platão”, Deleuze considera que ela se encontra “deslocada
de uma maneira que é preciso dizer «moderna», essencial à literatura
moderna”50.
Antes, tinha-se um pressentimento do que era o estilo. Ele
reproduzia a instável oposição, a complicação original, a luta, etc.,
reencontrava o mundo fazendo-o continuadamente nascer. O
estilhaçamento da “pátria desconhecida”51 (da unidade primeira) ainda
não tinha acontecido, existia uma espécie de garantia que não se tinha
dissolvido, mas havia já, também, um outro pressentimento – o estilo
não-estilo.
Agora sabe-se que “o estilo vale para todas as imagens”. É ele
“que substitui a experiência ou a maneira como falamos dela ou a
fórmula que a exprime, o indivíduo no mundo pelo ponto de vista sobre
o mundo…”52, ele é a expressão do caos, de um mundo que se torna
caótico, violento. A violência é a violência do caos que estilhaça
definitivamente a ordem do cosmos e para o qual não existem mais
garantias nem “essências estáveis”. A arte não encarna já as

48
Deleuze esclarece no prefácio da terceira edição de PS que a segunda parte tinha
sido acrescentada à segunda edição em 1970 e a conclusão desta nova edição é
uma versão de um texto de 1973.
49
PS, p. 134.
50
Idem.
51
PS, p. 57.
52
Idem, p. 134.
41

essências ideais. Talvez por isso, o problema da unidade se encontre


“deslocado”. A relação entre essências, pensamento e criação artística
inverteu-se. “Já não se trata mais de dizer: criar é pensar – mas,
pensar é criar, e em primeiro lugar criar o acto de pensar no
pensamento.”53 O que foi, então que mudou?
O que está agora em causa, numa concepção não dialéctica da
obra de arte moderna, é um mundo em fragmentos, pedaços que já
não pertencem a uma totalidade orgânica preestabelecida nem a uma
unidade (logos) mesmo que perdida. As partes já não se deixam
ajustar, não se desenvolvem ao mesmo ritmo nem com a mesma
velocidade, são tantos os meandros que é necessário recolher cada
pequeno fragmento e ajustá-lo à sua velocidade (diferente de todas as
outras), cada um derivando/reenviando a uma série diferente ou
mesmo a nada.
As partes e os fragmentos, na sua existência última, falam e
valem por si, não se apoiam mais “num logos subsistente: só a
estrutura formal da obra de arte será capaz de decifrar o material
fragmentário que ela utiliza, sem referência exterior, sem grelha
alegórica ou analógica.”54 Sê-lo-á, porque entre todas as partes existirá
uma espécie de “sistema de passagem” que traçará “transversais”
entre os signos (que serão sempre fragmentos “sem totalização nem
unificação”).
No primeiro capítulo Deleuze tinha feito uma classificação
proustiana dos signos que vai alterar no quarto capítulo da segunda
parte: numa primeira ordenação juntará signos naturais e artísticos;
numa segunda, agrupar-se-ão os prazeres e as dores, signos
mundanos e amorosos; finalmente, a terceira, “dizendo sempre
respeito à arte, mas definindo-se pela alteração universal, a morte e a
ideia de morte, a produção de catástrofe”55.

53
PS, p.134.
54
PS, p.137.
55
PS, p. 179.
42

A primeira ordenação caracteriza-se por “uma produção de


objectos parciais, tal como foram definidos anteriormente, fragmentos
sem totalidade (…). O segundo tipo de máquina produz ressonâncias,
efeitos de ressonância”56 que já não repousam sobre os pedaços
fornecidos pelos objectos parciais.
O que mudou, o que é novo, é a forma como a obra de arte
moderna não relaciona “experiências extra-literárias” mas produz uma
“experimentação artística”57. A obra de arte moderna é uma máquina,
produz simultaneamente em si e sobre si mesma ressonâncias,
preenche-se e alimenta-se delas. A ressonância (a essência) já não é
finalidade do mundo, é produtora de um certo efeito “mas em
condições naturais dadas, objectivas e subjectivas”58. Quer dizer, ela
produz e extrai de si própria os “pedaços”.
A noção de finalidade do mundo desaparece. O estilo é, nestas
condições, o “que faz ressoar dois objectos quaisquer e destaca uma
«imagem preciosa»” das condições naturais que a determinam.
Enquanto as duas primeiras ordens eram produtivas (tornando a
conciliação possível), a terceira parece completamente improdutiva,
“absolutamente catastrófica”, porque dominada pela ideia de caos e de
morte. Mas, se nesta última ordenação considerarmos que esta ideia
consiste num certo efeito do tempo, (um movimento que do passado ao
presente se duplica e através de um segundo movimento forçado de
amplitude maior varre tanto o passado como o presente, dilatando
“infinitamente o tempo, enquanto a ressonância o contrai ao máximo”)
então, ela torna-se menos confusa e deixa de ser uma obstáculo à
improdutividade referida. Podemos “conectá-la com uma ordem de
produção, dando-lhe então o seu lugar na obra de arte. O movimento
forçado de grande amplitude é uma máquina que produz o efeito de
recuo ou a ideia de morte.”59

56
PS, pp. 180-181.
57
PS, p. 184.
58
PS, p. 186.
59
PS, p. 192.
43

A amplitude portadora da ideia de morte embraia numa


ressonância e conecta o que não é produtivo com a ordem de
produção. O que se perde na amplitude do movimento forçado ganha-
se, como condição da forma, na obra.
Talvez seja isso o tempo, escreve Deleuze: “a existência última
das partes de tamanhos e de formas diferentes, que não se deixam
adaptar, que não se desenvolvem ao mesmo ritmo, e que o rio do estilo
não arrasta à mesma velocidade”.60
Se não há totalização nem unidade, se o mundo não tem mais
conteúdos significantes, se as cadeias associativas se rasgaram,
estilhaçaram, a essência já não pode ser a mesma. Então, o “que faz a
unidade de uma obra? O que é que nos faz «comunicar» com uma
obra? O que é que faz a unidade da arte, se é que há uma unidade?
Recusámos a ideia de procurar uma unidade que unificasse as partes,
um todo que totalizasse os fragmentos. Parece natural que as partes
ou os fragmentos excluam o logos assim como a unidade lógica e a
totalidade orgânica. Mas há, deve haver uma unidade que é a unidade
deste múltiplo, desta multiplicidade, como um todo destes fragmentos:
um Uno e um Todo que não sejam princípio, mas que sejam ao
contrário «efeito» do múltiplo e das suas partes desconexas. Uno e
Todo que funcionem como efeito, efeito de máquinas, em vez de
agirem como princípios.”61
Sendo assim, o problema da obra de arte moderna é o de uma
unidade/totalidade não lógicas, não orgânicas (unidade e totalidade
não pressupostas nem formadas por um desenvolvimento), definindo-
se melhor como uma questão de consistência. O exemplo dado, por
Deleuze, para este novo tipo de obra de arte, é a nova literatura de
Balzac, que soube produzir esse “efeito. Embora “não tenha estilo”
poderá também dizer-se o mesmo de Proust. Este não estilo terá
efeitos na literatura. Em Balzac, ele explica, e explica com imagens.
Em Proust também. “Ele [o estilo] é não-estilo, porque se confunde
60
PS, p. 137.
61
PS, p.195.
44

com «o interpretar» puro e sem sujeito (…). O estilo é explicação dos


signos, a velocidades de desenvolvimento diferentes, seguindo cadeias
associativas próprias a cada um deles, (…) começa com dois objectos
diferentes, distantes, mesmo se são contíguos: pode acontecer que
estes dois objectos se pareçam objectivamente, sejam do mesmo
género; pode acontecer que eles estejam ligados subjectivamente por
uma cadeia de associação. O estilo terá arrastado tudo isso, como um
rio arrasta os materiais do seu leito; mas o essencial não está lá.”62
O estilo começa aí, mas o essencial não está lá, diz Deleuze.
Estará, então, nos “efeitos” produzidos (ressonância, movimentos
forçados), na multiplicidade, na coexistência numa única frase de
infinitos pontos que se deslocam, ressoam e amplificam. No seu interior
(da frase, do som, do traço, da cor, etc.), no silêncio e nas palavras, no
que diz e não diz, na sintaxe, no vocabulário particular, aí onde se
multiplicam os efeitos, produz-se o estilo. “Esta produção em estado
puro encontra-se na arte, pintura, literatura ou música, sobretudo na
música”63. Quer dizer, esta produção encontra-se nos últimos signos,
tal como foram definidos na primeira parte, o estilo explica-os, envolve-
os e desenvolve-os. Mas quanto mais descemos nos “graus da
essência”, que correspondem aqui aos quatro tipos de signos (dos
signos artísticos aos da natureza, sensíveis; dos do amor aos do
mundo), mais necessidade temos de introduzir um mínimo de
descrição objectiva e de sugestão associativa. Estaremos então,
verdadeiramente, cada vez mais longe deste sentido de estilo, mais
longe ainda de resolver o problema da unidade. Ainda assim, o estilo
traz qualquer coisa, explica e confunde-se com o “interpretar” puro e
sem sujeito, pode não ser ele a trazer a unidade, como não o será
certamente também a essência. Para Deleuze, ela vem de outra fonte.
Contudo “é nos meandros e nos anéis de um estilo Anti-logos que ela
[a obra] faz tantos desvios quantos achar necessários para juntar os
pedaços últimos, conduzindo-os a velocidades diferentes e onde cada
62
PS, p.199.
63
PS, p. 200.
45

um reenvia a um conjunto diferente, ou não reenvia a nenhum conjunto


de todo, ou então, não reenvia a nenhum outro conjunto senão ao
estilo.”64
Finalmente, à pergunta pela unidade, essa unidade que surge
como efeito e assegura a criação e o pensamento, Deleuze responde
no final da segunda parte: “num mundo reduzido a uma multiplicidade
de caos, é somente a estrutura formal da obra de arte, enquanto não
reenvie a outra coisa que pode servir de unidade (…). Mas todo o
problema é saber sobre quê repousa esta estrutura formal, e como é
que dá às partes e ao estilo uma unidade que eles não terão sem ela.
(…) a estrutura formal da obra é então a transversalidade”65.
A noção de transversalidade parece, num breve momento do
pensamento de Deleuze, extremamente promissora. Em particular, no
que respeita à questão da ontologia. É ela que permite, não unificando
nem totalizando, um discurso, a possibilidade de uma ontologia, já que
“tem a potência de ser o todo destas partes sem as totalizar, a unidade
de todas estas partes sem as unificar”66.
Como solução, no entanto, a noção de transversalidade revela-
se ainda insuficiente. O pressentimento/aprendizagem, o estilo Anti-
logos, a emissão e interpretação de signos, a sua não
unidade/totalização, a sua produção e multiplicação serão
atravessados por, e corresponderão a uma linha de tempo privilegiado
(uma linha transversal de todos os espaços possíveis – espaços e
tempos). Linha primordial que vai “até ao ponto em que a cadeia
associativa se rompe, salta para fora do indivíduo constituído”67.
Deleuze dirá ainda mais tarde, na conclusão deste ensaio, (texto
acrescentado em 1973) que será não já a transversalidade mas, o

64
PS, p. 139.
65
PS, p. 202. Deleuze vai buscar o conceito de transversalidade a Felix
Guattari. Ele mesmo, o refere em nota na página 201.
66
PS, p. 203.
67
PS, p. 134.
46

“corpo sem órgãos”68 o corpo ideal para poder criar esse acto de
pensar no pensamento.
Esta questão atravessará, como veremos a seguir, toda a obra
de Deleuze, talvez porque se trate sempre de uma questão de
intensidade, “sintaxe” (“um estado de tensão para qualquer coisa que
não é sintáctico “) ou “encanto”69, porque os “que não têm encanto não
têm vida, são como mortos.”70
Diante deste mundo continuamente acabado de nascer, que
vale a banalidade da vida? Não valerá nada se a própria vida não for
contaminada por esta incarnação, transmutação, por este corpo
intenso, em tensão, sentido que é contra-sentido, fonte de vida, êxtase,
beatitude, diferença última e absoluta; e, como veremos mais adiante,
nada vale se ela não atravessar os meios mais opacos, mais materiais,
num “lance de dados necessariamente vencedor”71.
O estilo será então uma heterogeneidade que faz a diferença.
Não uma organização reflectida, nem uma estrutura significante
qualquer, nem ainda, uma inspiração espontânea. Não é somente
particular, individual, mas sim individualizante, determina a posição,
ajusta e marca, incarna e faz devir as matérias.
Dirige-se ao novo, é o novo no pensamento, no modo de ver e
entender ou experimentar. Trata-se então, de um poder que rasga a
homogeneidade, criando as suas próprias impossibilidades e
simultaneamente saindo delas.
Duas coisas se lhe opõem: uma linguagem homogénea, já
sabemos, ou ao contrário uma heterogeneidade muito grande.
Heterogeneidade e homogeneidade são ao mesmo tempo duas fortes
possibilidades de oposição: a primeira quando é tão grande que se
transforma em indiferença, a segunda porque reduz totalmente o novo,

68
Noção retomada, a Antonin Artaud e depois desenvolvida por Deleuze, para
marcar o grau zero das intensidades. (Doravante usaremos também a
abreviatura que o próprio Deleuze utilizava: CsO)
69
Em francês “charme”.
70
D, p. 15.
71
Idem.
47

o diferente ao indistinto. Entre uma e outra deve haver uma tensão uma
espécie de zigzag. É o movimento que Deleuze desenha com a mão no
Abecedário72. E “talvez seja o movimento elementar, o movimento que
presidiu à criação do mundo.”
Estilo - zigzag é sempre necessário, com ele elevam-se as
percepções vividas ao percepto, as afecções vividas ao afecto73. É a
“sintaxe de um escritor, os modos e ritmos de um músico, os traços e
cores de um pintor (…). O escritor serve-se de palavras, mas criando
uma sintaxe que as faz passar para a sensação, e que faz balbuciar a
língua corrente, ou tremer, ou gritar, ou mesmo cantar: é o estilo, o
‘tom’, a linguagem das sensações, ou a língua desconhecida em toda a
língua, aquela que solicita um povo por vir, oh gente do velho Catawba,
oh gente de Yoknapatawpha. O escritor retorce a linguagem, fá-la
vibrar, constrange-a, fende-a para arrancar o percepto às percepções,
o afecto às afecções, a sensação às opiniões – tendo em vista,
esperamo-lo, esse povo que não existe ainda. (…) É precisamente a
tarefa de toda a arte, e a pintura, a música não fazem mais do que
arrancar às cores e aos sons os novos acordes, as paisagens plásticas
ou melódicas, as personagens rítmicas que as elevam até ao canto da
terra e ao grito dos homens: o que constitui o tom, a saúde, o devir, um
bloco visual e sonoro.”74
O filósofo fará o mesmo com os conceitos, eles “são
exactamente como os sons, as cores, ou as imagens, são
intensidades”75 que nos convêm ou não. São criações e entre elas há
ressonâncias e movimentos forçados. Quer dizer, também para o
filósofo é uma questão de sintaxe76.

72
Cf. L’ Abécédaire de Gilles Deleuze, Vidéo Editions Montparnasse, 1996.
73
Como veremos, o afecto e o percepto diferenciam-se respectivamente das
afecções e das percepções, sobretudo pela intensidade e por não se referirem
já a um vivido da consciência.
74
QF, p.150 e 155.
75
D, p. 14.
76
Cf. Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990. (Doravante, P), p. 223.
“Mais la syntaxe est un état de tension vers quelque chose qui n’est pas
syntaxique ni même langagier (un dehors du langage). En philosophie, la
syntaxe est tendue vers le mouvement du concept.”
48

O estilo cria sensações, e é sensação, é agenciamento de


enunciação. Mas que agenciamento? Em Critique et clinique, Deleuze
relaciona o estilo com a gaguez, detectando nesta uma forma especial
de enunciado performativo: “quando dizer, é fazer…” operação poética,
“qualidade atmosférica” que faz balbuciar, gaguejar a língua. Quando é
a gaguez que “introduz as palavras que afecta; estas já não existem
independentemente da gaguez que por si própria selecciona e as
liga.”77 Ora o escritor – e sobretudo o grande escritor – introduz
variações inéditas na língua, abala-a, desestrutura-a, fá-la gaguejar. É
essa a condição da criação de uma nova linguagem literária. O escritor
“toma as suas forças numa menoridade muda, desconhecida, que só
lhe pertence a ele. É um estrangeiro na sua própria língua: não mistura
uma outra língua à sua própria língua, talha na sua língua uma língua
estrangeira que não preexiste.” Quando isto acontece a língua vibra
(como a teia de aranha recolhe a mais pequena vibração que se
propaga em ondas intensivas, “sem olhos, sem nariz, sem boca, ela
[aranha] responde unicamente aos signos”78), balbucia, porque tudo
está em perpétuo desequilíbrio, luta ou combate, corpo a corpo, tudo
bifurca de acordo com o modo próprio com que cada um percorre esta
zona de variação contínua.
Não há nada a compreender nem a interpretar, o estilo é não-
estilo, definirá Deleuze. É, a propriedade daqueles de quem dizemos
habitualmente “não têm estilo”.79 Mesmo e também dos filósofos. O
problema é comum às artes, ciências e filosofia. Todas elas são
criadoras. À pergunta: como vê hoje esta questão do estilo da
filosofia?80, Deleuze responde:
“- Os grandes filósofos são também grandes estilistas. O estilo
em filosofia é o movimento do conceito. Com certeza, este não existe
fora das frases, mas as frases não têm outro objecto senão o de lhe
dar vida, uma vida independente. Construir uma variação contínua da
77
CC, p. 146.
78
PS, p. 218.
79
D, p. 14.
80
Magazine Littéraire, p. 19, 1988.
49

língua e mantê-la, modular e criar uma tensão de toda a linguagem


para um fora – eis o que é fabricar o estilo. Em filosofia, é como num
romance: devemos perguntar-nos «o que é que vai acontecer?», «o
que é que se passou?», somente os personagens são os conceitos e
os meios, as paisagens são os espaços-tempos. Escrevemos sempre
para dar a vida, para libertar a vida lá onde ela está prisioneira, para
traçar linhas de fuga. Para isso, é preciso que a linguagem não seja um
sistema homogéneo, mas um desequilíbrio, sempre heterogéneo: o
estilo cruza aí diferenças de potencial entre as quais qualquer coisa
pode suceder”81.
Na verdade, estilo não é uma boa palavra (é o próprio Deleuze
que o diz), trata-se de qualquer coisa que está entre dois, que tem a
sua própria direcção e orientação, a que se chama, como já vimos,
uma “evolução a-paralela” ou não-estilo.
Como se chega ao não-estilo? Como se obtém este privilégio?
Espinosa, Proust, Balzac, “não têm estilo”. Mas há um estilo em
Espinosa que faz “vibrar”, em Balzac e Proust que “explica”. São
variedades que vibram ou explicam. Trata-se de uma linguagem
afectiva, intensiva, e não de uma afecção daquele que fala. O estilo
não é uma criação psicológica, particular, não é de natureza subjectiva.
É sim um estilo, que a velocidades diferentes ressoa e reenvia para um
duplo processo: “boom” e “krach” (expansão e queda ou falência –
ressonância e movimento forçado). O boom e o krach estão
precisamente, longe do equilíbrio. Fazer vibrar a língua, fazê-la
gaguejar, desconectá-la da língua materna, “inventar um uso menor da
língua maior”, fazê-la fugir, ir por uma “linha de feiticeira”82 é mesmo
esse processo duplo que nos faz progredir e responde à pergunta.
Arruinar, destruir, espalhar, desconstruir, desmaterializar, deformar,
expandir, esticar, transformar o breve em longo, deslocar, ressoar,
forçar, decepcionar e remediar a decepção, contracção, diástole,
sístole, são aqui os processos complexos mais importantes (os modos
81
Idem.
82
Em MP, a linha de feiticeira é uma linha de fronteira, no limite entre dois.
50

de um estilo) para obtermos esse “privilégio”, para termos a


possibilidade de começar e explorar a partir do “meio”. Não nos resta
senão entrar nas regiões longe do equilíbrio, tudo o que as crianças (a
arte e a terapia) fazem espontaneamente bem.
“O estilo – a língua estrangeira na língua – é feito destas duas
operações, se bem que é necessário falar do não-estilo, como Proust,
dos ‘elementos de um estilo por vir que não existe’. O estilo é então,
também, a economia da língua. Frente a frente, ou frente e costas,
fazer gaguejar a língua, e ao mesmo tempo levar a linguagem ao seu
limite, ao seu fora, ao seu silêncio. Será como o boom e o krach.”83

E este Proust (em Critique et clinique ) é já outro, diferente do


que analisámos acima. Estamos, também, em 1991.
Ainda um último exemplo: as crianças pequenas são a
incarnação do que pretendemos dizer sobre o estilo, porque são o
lugar irredutível das forças, são emissões de partículas-signos. Forças
e partículas revelam-se nelas mais fortemente. Se fosse possível
observar completamente esse poder que têm de passar entre, em
velocidades e lentidões máximas, fluxos ou devires-criança, e que está
mesmo contido nas suas vidas exprimindo-se num “zigzag”
instantâneo, se fosse possível devir com elas, talvez soubéssemos
mais desse estado de beatitude, de imanência. São vidas no começo,
que se criam pelas suas próprias forças, quer dizer pelas forças
intensas que sabem captar num momento de privilégio.
“O bebé apresenta esta vitalidade, querer viver obstinado,
inflexível, indomável, diferente de toda a vida orgânica (…). Com o
bebé só temos relação afectiva, atlética, impessoal, vital.”84 O feto, o
bebé e também a criança pequena são vida pura, sorte única, linha
incandescente, um meio, como vimos, onde as forças estão na sua
potência máxima e contudo ou mesmo por isso, são uma combinação
frágil, de saúde frágil e incerta, sempre a cada instante em risco de
83
CC, p. 153.
84
CC, p.179-180.
51

morrer. Comparável, dirá Deleuze, aos grandes pensadores, escritores,


artistas. É necessário sempre que qualquer coisa os faça viver em
cada dia… O que faz essa diferença entre a vida e a morte pode ser o
zigzag, um estilo que atravesse essa vida imanente.
Quando nascem, os bebés, mostram, nesse momento mesmo, a
vida poderosa e obstinada, o estilo e, ao mesmo tempo, a constituição
frágil, a precariedade. E, absolutamente impressionante, a potência
máxima de criação, “pura potência” que exprimem em micro
acontecimentos, séries de pequenas diferenças como no choro, nas
vibrações que atravessam o corpo-feixe de forças, o rosto, a cor e a
transparência da pele, o peso, as mãos, os pés, o êxtase constante, a
beatitude, “têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta,
acontecimentos que não são de natureza subjectiva.”85 São, numa
palavra, atravessados por uma vida “imanente”. Os que assim vivem,
como os bebés, estão sempre na posição da linha, na “crista da onda”,
que se bifurca e prolonga numa variação infinita. Capturam as suas
forças numa “minoria muda desconhecida” que lhe pertence só a eles.
Falta ainda confirmar porque é tão necessário o estilo? Porque é
portador de forças pressentidas, da vocação predestinada,
experimentação que abre e força as palavras, os sons, as cores,
dissolve as formas, fende as coisas, ressoa e produz depois a
existência vital que continuamente recomeça o mundo.

c. Ressonância e movimento forçado

A arte produz efeitos, ressonâncias, as intensidades também. “A


ressonância não repousa sobre os pedaços que lhe serão fornecidos
pelos objectos parciais; não totaliza pedaços que vêm doutro lado. Ela
extrai os seus próprios pedaços, fá-los ressoar segundo a sua própria
85
Gilles, “L’immanence: une vie…”, in Philosophie nº 47, Les Éditions de
Minuit, 1995, p. 6. (Doravante, IUV).
52

finalidade, mas não os totaliza, uma vez que se trata sempre de um


«corpo a corpo», de uma «luta» ou de um «combate». E o que é
produzido pelo processo de ressonância, na máquina de ressoar, é a
essência singular”86. O processo é duplo e complementar. Se o estilo
faz ressoar dois objectos quaisquer, fragmentando-os, partindo,
rasgando, excedendo os limites em todas as direcções, projectando-os
no ar ou num instante qualquer fazendo-os cair é porque a ressonância
produz um efeito, recompõe, redistribui, produz um movimento forçado.
A ressonância é um efeito. Mas o que é um efeito? Respondemos a
esta questão com a ajuda de Espinosa. No capítulo XVII, de Critique et
clinique, diz-se que um efeito é um signo. Melhor, um signo é sempre
um efeito. E antes de tudo é “a marca de um corpo sobre outro, o
estado de um corpo enquanto sofre a acção de outro corpo”. Estado
que se determina por nesse momento x haver “um aumento ou uma
diminuição, uma expansão ou uma restrição”. Efeitos serão então,
“passagens”, “subidas e quedas”, “variações contínuas de potência”.
Deleuze especifica ainda mais, dizendo que os efeitos podem
ser físicos, sensíveis ou perceptivos, indicando “mais a nossa própria
natureza do que qualquer outra coisa”; mas também, abstractos ou
lógicos, imperativos, hermenêuticos ou interpretativos, tomados como
um fim ou a ideia “do efeito pela causa”. Mais adiante, acrescenta duas
espécies: efeitos vectoriais de afecto, segundo o vector seja de
aumento ou de diminuição, de crescimento ou de decrescimento,
alegria ou tristeza. A estes chamaria “potências aumentativas e
servidões diminutivas”. Por último, teríamos os efeitos ambíguos ou
flutuantes. Os efeitos são então autónomos, múltiplos e combinam-se
incessantemente. São séries87 - homogéneas, heterogéneas,
convergentes, divergentes. Relacionam-se e distribuem-se, variam,
prolongam-se umas nas outras, ressoam por um excesso.

86
PS, p. 182.
87
Nota sobre as séries ver classificação LS, p. 267.
53

A ressonância é uma espécie de começo, sem origem, que


induz um movimento forçado, movimento produzido pelo estilo e que
encontramos na arte88, como em múltiplos tipos de séries.
Por exemplo, o Ioga, na sua variante Hatha-Yoga, pode ser
decomposto em séries de movimentos e posturas.
Para se chegar a uma Âsana (postura) é preciso uma
preparação (fase dinâmica) que a antecede, repleta de movimentos
que forçam o corpo a dobrar-se, a torcer-se, a esticar-se, a contrair-se
ou a distender-se e simultaneamente a acompanhar esses movimentos
(aparentemente musculares e articulares) da carne com a respiração
que também se faz num movimento duplo com pausas e retenções,
longas expirações, curtas ou profundas e lentas. Como se as duas
séries de movimentos – inspiração, retenção, expiração, retenção,
pausa - formassem uma só atravessada por uma única corrente
contínua de energia. Uns e outros, movimentos (respiratórios,
musculares), ajustam-se, conjugam-se tornando qualquer unidade
mínima de movimento viva e habitada. Não se tratam aqui de
movimentos vazios e desarticulados no espaço e no tempo, mas sim
de um processo complexo que ressoa fazendo o corpo inteiro vibrar,
um “corpo a corpo de energias”. É a respiração que habita o
movimento e reciprocamente.
Os movimentos ritmados de diástole e sístole
(equilíbrio/desequilíbrio, concentração/desconcentração) sempre na
mesma medida e proporção, visam a abertura do corpo, o seu
desbloqueamento, nas zonas críticas que já se conhecem: a base do
88
LS: “Sabemos por exemplo que certos procedimentos literários (as outras
artes têm equivalentes) permitem contar muitas histórias ao mesmo tempo. É
sem dúvida, esta a característica essencial da obra de arte moderna. Não se
trata de modo algum de pontos de vista diferentes sobre uma história que é
suposta ser a mesma; pois os pontos de vista permanecem submetidos a uma
regra de convergência. Trata-se ao contrário de histórias diferentes e
divergentes, como se uma paisagem absolutamente distinta correspondesse a
cada ponto de vista. Há, na verdade, uma unidade das séries divergentes
enquanto divergentes, mas é um caos sempre descentrado (…) [sendo]
potência de afirmação, potência de afirmar todas as séries heterogéneas, ele
«complica» nele todas as séries (…). Entre estas séries de base produz-se
uma espécie de ressonância interna ; esta ressonância induz um movimento
forçado que ultrapassa as próprias séries.” pp. 300-301.
54

crânio, os ombros, a bacia, o escavado de poplíteo, virilhas, etc. Zonas


que estão em tensão e devem ir no sentido do movimento contrário,
devem “forçar-se” a ficar distendidas. Nesse “movimento forçado” o
corpo abre-se para a postura (Âsana) na fase seguinte - estática.
Chegados aí, por mais difícil que pareça a torção, a imobilidade, a
localização espacial, relativamente à cabeça ou à perna ou ainda ao
olhar, já nada é forçado. O movimento forçado resulta em movimento
livre porque desbloqueia entraves neuro-musculares, o que significa
que o forçar do movimento vai, no fundo, no sentido do seu livre fluir.
Poder-se-ia, então, dizer que será natural e não penoso, estar
assim sentado, deitado, virado, retorcido, por exemplo: ter o corpo
todo dobrado sobre si, como uma concha que se fecha completamente
– estando o corpo aberto. É natural, porque imperceptivelmente, por
todo o corpo estão os efeitos da respiração, da concentração, dos
alongamentos ou torções, na circulação sanguínea, na transpiração e
outros fluidos, na própria respiração, séries de pequenos
acontecimentos estrangeiros uns aos outros modificaram e saturaram
os movimentos musculares, os tendões, os órgãos, a respiração.
Efeitos de ressonância que modificaram também os movimentos do
pensamento, como se ele também se contraísse ou distendesse e
depois ficasse na mais completa imobilidade.
Entra-se em equilíbrio no desequilíbrio, vibrações mínimas na
imobilidade, ritmadas, variando continuamente até não mais se pensar
da mesma maneira, não se pensar mesmo nada. É como se só ficasse,
por fim, o corpo, mas um corpo em âsana, um corpo já não lógico nem
orgânico, uma espécie de corpo-pensamento, numa “nova ordem”.
Estes efeitos têm a particularidade de atravessar tudo (as várias
camadas de pele, os enervamentos, o esqueleto, os órgãos, o sangue,
a linfa, a saliva, os movimentos peristálticos, as orientações do espaço
e do tempo, o alto/baixo, a esquerda/direita, a força do olhar, a
intensidade dos sons e dos cheiros, etc.), como se entrassem no
movimento de uma grande vaga e em série se transformassem de
55

infinitos modos possíveis. Entre todos os elementos das séries existem


interferências, em espaços desconectados, que provocam, sem cessar,
o novo. Dirá Deleuze que tudo se fará através do “dom” ou captura89. O
movimento forçado, a impossibilidade, cria o possível, como a
impossibilidade de falar, gaguejar, pode abrir e fender as palavras, criar
uma nova língua dentro da língua, como a passagem precisa, na água,
do não saber nadar ao nadar.
A ressonância em condições naturais dadas, objectivas e
subjectivas, é produtora de efeitos, ressoa, o movimento forçado ata-
se-lhe, combina-se, re-determinando-se como no encontro de uma
série com outra. Não esquecer que se o movimento forçado cria a
variação contínua e se as variações supõem um espaço de circulação
livre de energias (um espaço “entre”) é porque este último de certa
maneira pré-existe já ao movimento forçado, mas recoberto ainda,
entravado.
O novo do refluxo, é um outro movimento. Uma espécie de
confusão no ponto mesmo do encontro, desencadeia uma
multiplicidade, uma variedade nunca antes vista. No estilo a confusão
varia continuamente, ele faz ressoar, produz movimentos e “no fim,
vemos o que arte é capaz de acrescentar à natureza”90- a essência, a
“essência artista”, melhor, como uma onda que se propaga o “estilo
arrastará tudo isso, como um rio arrasta os materiais do seu leito; mas
o essencial não está lá.”91

4. Essência

Uma essência é sempre um “nascimento do mundo” ( o estilo é


também esse nascimento mas, refractado, continuado, reencontrado

89
P, p.171.
90
PS, p.186.
91
PS, p. 199.
56

de cada vez nas matérias). No ensaio sobre Proust a essência


aparece, em primeiro lugar, como compreensão da natureza do sentido
e da relação do signo com este último. Aparece como diferença,
“diferença última e absoluta”. Não uma diferença empírica, extrínseca,
mas qualquer coisa num sujeito, qualquer coisa que dá uma presença,
uma diferença interna no modo como o mundo nos aparece. Ela
exprime e multiplica o mundo, constitui o ser, faz-nos conceber o ser.
O mundo envolvido da essência constitui os indivíduos, e os
mundos envolvidos uns nos outros constituem o Mundo. É, portanto,
um mundo de signos, que se afirmam em toda a sua potência. Em
conjunto, signo, sentido, essência e matéria, confundem-se ou unem-
se.
Compreende-se que deva haver uma unidade, numa espécie de
coincidência, coexistência num plano único de todos os signos. Será a
verdade transportada pela obra de arte que mais se aproximará desse
plano. Os signos artísticos são superiores a todos os outros. Estes
“unem-se e encontram a verdade que lhes corresponde”92, de tal modo
que podemos começar a pensar por aqui na possibilidade de unificação
das duas estéticas. A superioridade inegável da arte explicar-se-ia pela
essência. Por uma certa maneira de conceber o ser, a diferença, a
revelação final. A arte nesta perspectiva permite-nos aceder a uma
essência não platónica.
Que uma vez revelada, interage e reage com todos os outros
signos, revela-se porque sempre esteve em todos os outros (recoberta
pela banalidade do quotidiano, do sofrimento, da mentira, etc.).
Pensar a essência enquanto diferença, diferença radical e
absoluta, é pensá-la enquanto realidade ontológica. Que se revela na e
pela arte. A arte seria então a expressão ontológica da não unidade.
Esta não unidade, como já observámos, nesta primeira parte, ainda é
só uma espécie de “tratamento” ou “transmutação” da matéria, da
incarnação de uma matéria numa outra “matéria luminosa”.

92
PS, p. 35.
57

Como se incarna a essência na obra de arte? Incarnando-se em


matérias maleáveis, amolecidas e esguias, (os materiais do pintor, do
músico, do escritor) a essência individualiza-as, determina-as e
exprime-as. Estas tornam-se inteiramente espirituais, matérias livres ( a
cor, o som, a palavra). “A arte é uma verdadeira transmutação da
matéria”93. E produz uma verdadeira unidade: signo e
sentido=essência.
Espiritualiza, através do estilo, as matérias, e torna-as
adequadas à essência. Revela esta última como multiplicidade de
“pontos de vista”: “o estilo é a explicação dos signos, a velocidades de
desenvolvimento diferentes e segundo cadeias associativas próprias a
cada um deles, atingindo para cada um o ponto de ruptura da essência
como ponto de vista”94. A multiplicidade de pontos de vista dá às
matérias uma alma, transforma-as em espírito.
“A arte tem então um privilégio absoluto”: não representa o
mundo. Pelo estilo, procedimento não psicológico nem individual,
orienta-se por “linhas ascéticas” – que resultam da eliminação de
elementos não pertinentes, produzidas pela “sobriedade” de toda a
actividade artística - que exprimem através das matérias um novo tipo
de realidade, um real incessantemente a vir.
Finalmente, relativamente à essência, que valor têm os outros
signos? Não é dito que eles estão já impregnados uns nos outros? A
arte incarna-se nos outros domínios, ela reage com todos os outros,
integra-os. Perde e ganha certas qualidades.
Compreender-se-á melhor o problema quando em Différence et
répétition se menciona que o único problema estético que existe é “o
da inserção da arte na vida quotidiana. Quanto mais a nossa vida
quotidiana aparece estandardizada, estereotipada, submetida a uma
reprodução acelerada de objectos de consumo, mais deve a arte ligar-
se a ela e dela arrancar esta pequena diferença (…) para que,
finalmente, a Diferença se expresse com uma força de cólera ela
93
PS, p. 61.
94
PS, p. 199.
58

mesma repetitiva, capaz de introduzir a mais estranha selecção,


mesmo que seja uma contracção aqui e ali, isto é, uma liberdade para
o fim de um mundo.”95
Mais uma vez, a ideia de estilo sofre um deslocamento, quando
Deleuze, na segunda parte de Proust et les signes, dá a primazia à
noção de caos sobre a noção de essência.
O “egiptólogo”, que está atento aos encontros inevitáveis e
aleatórios com os seres e objectos do mundo é sensível aos signos,
tem um dom. Como nem sempre captamos o segredo de que
estávamos à espera, o segredo da essência, é necessário um estilo
que capture ou arranque essa pequena diferença.
Na passagem da essência génese para a essência “efeito”
qualquer coisa se “quebra”. Primeiro, a essência é diferença, o
essencial ainda lá está; segundo, a essência dissolve-se, o essencial já
lá não está. As essências estáveis desaparecem. Como pode a arte ser
ainda esse plano único de coexistência de todos os signos?
Já não existem essências para descobrir, o mundo saiu dos
eixos, não há logos. Recusa-se a unidade orgânica lógica, emerge uma
concepção não dialéctica. “O mundo tornou-se migalhas e caos”96. Só
um estilo que não se apoia mais num logos genético pode ainda
“decifrar o material fragmentário (…), sem referência exterior, sem
grelha alegórica ou analógica.”97 Será um estilo experimentação. Um
modo de ser contraditório ou melhor, paradoxal. A especificidade da
obra de arte moderna surge daí. Ao estilhaçar a representação, a figura
que já não é figurativa, é catástrofe, torna-se num objecto paradoxal.
Mais tarde em Critique et clinique dir-se-á claramente sobre os
signos e sobre a arte, que já não se trata de interpretar/decifrar, mas
sim de assinalar a sua trajectória para ver se se pode encontrar e
utilizar indicadores de novos universos da criação.

95
DR, pp. 462-463.
96
PS, p. 134.
97
PS, p. 137.
59

5. Conclusão: a imagem do pensamento – Uma nova ordem para o


pensamento

Vimos até agora que a formação de um mundo de signos exige


uma classificação, exige critérios (analisámos já seis: a natureza da
matéria; emissões de partículas, interpretação e aprendizagem; efeitos;
natureza do sentido, relação do signo com o sentido; imaterialidade e
essência), exige alguém que procure, ou decifre. Quem e como é que o
faz?
O egiptólogo, o aprendiz, o artista, pela aprendizagem–
experimentação, pelo pensamento, pela criação. Porque recebe uma
“revelação final”98, atinge a verdadeira unidade: a essência/diferença. E
“é ela a última palavra da aprendizagem”, a arte, a finalidade do mundo
ou “um começo do Mundo em geral, um começo do universo, um
começo radical absoluto.”99 Revelação de um começo, de um
nascimento que convém às matérias e às essências. Revelação de
fragmentos e caos, com que o artista terá de construir um corpo sem
órgãos.
Quase no final da primeira parte de Proust et les signes,
compreendemos porque devemos ser egiptólogos. Para além do signo
e do sentido temos a essência. Aprender, abrirá caminho e articular-se-
á entre estes três, numa criação que não é preexistente mas
antecipatória.
O egiptólogo “em todas as coisas é aquele que percorre uma
iniciação – “o aprendiz” do pensamento.
Na conclusão da primeira parte, Deleuze e Proust confundem-
se. Retoma-se aí o problema essencial do capítulo segundo – “signo e
verdade”, a procura da verdade.

98
PS, cf. p. 36 e 50.
99
PS, p. 57.
60

As verdades não se podem fundar na boa vontade, nem se


encontram por afinidades, se assim fosse seriam arbitrárias e
abstractas. Falaríamos então de uma velha imagem da filosofia, do
pensamento: o amor ao verdadeiro; que ignora as zonas obscuras
onde se elaboram as forças efectivas que agem sobre o pensamento,
as determinações que nos forçam a pensar. Esta imagem é relativa, diz
Deleuze, à maneira como o verdadeiro é concebido (como universal
abstracto). Aquilo em que nunca se pensa mesmo, é nas forças reais
que fazem o pensamento. Quando a questão é sobre a verdade,
devemos “perguntar que forças se escondem no pensamento”, que
forças se escondem nessas zonas obscuras em que devemos penetrar
“como em criptas, para aí decifrar os hieróglifos e as linguagens
secretas”100.
Uma nova imagem do pensamento significaria que o verdadeiro
deixaria de ser elemento do pensamento. Implicaria relações de forças
extremamente complexas. Uma nova imagem, não desnaturada,
involuntária, onde a violência desencadeia a potência. Nesta nova
imagem é necessário que uma potência force o pensamento.
Em Proust et les signes, o pensamento não pensa senão
forçado. O pensamento só é qualquer coisa porque qualquer coisa o
força, uma violência dá-lhe que pensar. E o que força a pensar, a
potência, é o signo. Pensar nunca é o exercício natural de uma
faculdade, não decorre de uma simples possibilidade natural. É um
exercício de criação, de génese. Neste poderoso exercício está
implicada qualquer coisa que exerce violência sobre o pensamento e o
mobiliza.
Neste contexto, criar, pensar, é sempre explicar, desenvolver,
decifrar, traduzir e interpretar um signo. As essências são a coisa a
traduzir e a tradução, o signo e o sentido. “Não há Logos, só há
hieróglifos”.

100
PS, p. 112.
61

Não há logos porque, como vimos, estamos na aventura do


involuntário, de um pensamento concreto e perigoso que não depende
“de uma decisão nem de um método explícito, mas de uma violência
reencontrada, refractada, que nos conduz, não obstante, até às
essências.”101 Através de uma “experimentação às cegas” chega-se a
uma imagem do pensamento, a uma nova imagem, “moderna” que
renuncia à relação do pensamento com o verdadeiro, não deixando de
pensar na verdade, mas esta é agora apenas o que pensamento cria.
Pensamento é criação.
O problema da imagem do pensamento já em 1962 tinha
aparecido, dando título ao parágrafo quinze de Nietzsche et la
philosophie. Discutia-se aí em três teses a imagem dogmática do
pensamento, e aparecia, também, a ideia de que pensar nunca é um
exercício natural de uma faculdade (o elemento do pensamento seria o
sentido e o valor; as categorias do pensamento não podiam já ser as
mesmas.).
Precisamente Nietzsche propõe uma imagem nova do
pensamento. Pensar como actividade, como potência. A teoria do
pensamento depende de uma tipologia de forças que começa por uma
topologia. Pensar depende de certas coordenadas. “É que pensar não
é nunca o exercício natural de uma faculdade.” Em Nietzsche são as
forças que exercem uma violência. Em Proust são os signos, fortuitos e
inevitáveis, lugar da verdade, são hieróglifos que obrigam a pensar.
Encontraremos em Différence et répétition102, o mesmo tema: a
imagem do pensamento. Poderemos pensar que estamos finalmente
diante da verdadeira conclusão da primeira parte de Proust et les
signes, já que a primeira conclusão não passa de um esboço.
O capítulo III trata logo no início do problema do começo da
filosofia. São questionados os postulados e pressupostos do
pensamento. Tomemos este capítulo como conclusão do projecto e
início do processo de operacionalização de que já falámos. Deleuze
101
PS, p. 122.
102
DR, pp. 225-283.
62

afirma aí a absoluta necessidade do filósofo verificar, senão eliminar os


postulados, (pois eles podem constituir-se como impedimento ao
próprio acto de pensar) e criticar esta imagem do pensamento. Ela não
é mais do que a figura sob a qual universalizamos a doxa.
A posição do pensamento enquanto exercício natural de uma
faculdade é a de um sempre recomeçar, numa tarefa infindável de
recomeço, virado para o verdadeiro, em afinidade com ele. Mas o
começo mesmo, implicaria eliminar todos os pressupostos explícitos e
implícitos. De que se alimenta o senso comum. Ora, para Deleuze o
bom senso e o senso comum naturais são tomados como
determinações do pensamento puro, pertencem a um pré-julgamento
da universalidade e da comunicabilidade porque se apoiam no
exercício harmonioso de todas as faculdades relativamente a um
mesmo objecto ( por isso mesmo são objecto de muitas confusões).
Considera-se portanto, um princípio subjectivo de colaboração
das faculdades, isto é, um senso comum como “concordia facultatum”.
Mas esta “norma de identidade”, que não rompe com a doxa, e
constitui um impedimento ao modo próprio de pensar, é a forma da
representação. A forma mais geral que está no senso comum e tem
implícita uma imagem do pensamento dogmática.
Que haja um exercício natural de uma faculdade, que esta tenha
uma boa natureza e uma boa vontade é coisa que não se consegue
entender e é sem dúvida difícil de pensar, diz Deleuze. E é neste
sentido que surge a oposição a Kant. Deleuze acusa-o de não
renunciar a certos pressupostos implícitos e, ao invés, a sua proposta
consistir numa multiplicação de sensos comuns.
O senso comum implica então, uma colaboração das
faculdades. A imaginação, o entendimento e a razão colaboram no
conhecimento e formam um “sensus communis logicus”, colaboram no
modelo prático e aí a razão legisla no sentido comum moral e
finalmente no modelo estético as faculdades acedem num livre jogo
que se constitui como o “sensus communis aestheticus”.
63

Neste sentido é verdade que as faculdades colaboram em geral


para o conhecimento, para a lei moral e para o juízo do belo, mas é
também verdade que as fórmulas desta colaboração diferem segundo
as condições do que há para conhecer, para julgar moralmente ou para
julgar esteticamente. Assim, para Deleuze, Kant, longe de arruinar a
forma do senso comum, somente a multiplicou, parecendo-lhe por isso
que jamais o conhecimento, a moral, a reflexão e a fé são postos em
causa.103
O que há de novo no pensamento deleuziano, o que é diferente,
é povoar o pensamento de forças que não são as da recognição
(modelo da representação – exercício concordante de todas as
faculdades) mas as de um “encontro fundamental” que é criação pura,
zona de variação, nexo não cognitivo onde o signo se decifra e
finalmente se “revela” na obra de arte.
No desenvolvimento do capítulo, descrevem-se dois tipos de
acontecimentos: os que deixam o pensamento tranquilo e os que o
forçam a pensar104. O mundo da representação em geral deixa o

103
Mais tarde aponta aquilo que considera o caso de excepção em Kant: "Nous
demandons par exemple: qu'est-ce qui force la sensibilité à sentir? et qu'est-ce
qui ne peut être que senti? et qui est l'insensible en même temps? Et cette
question, nous devons encore la poser non seulement pour la mémoire et la
pensée, mais pour l'imagination - y a-t-il un imaginandum, un ϕανταστεον, qui
soit aussi bien la limite, l'impossible à imaginer? - pour le langage... et pour
d'autres facultés ... et même enfin pour des facultés non encore soupçonnées,à
découvrir."
É precisamente aqui que refere "Le cas de l'imagination: ce cas est le seul où
Kant considère une faculté libérée de la forme d'un sens commun, et découvre
pour elle un exercice légitime véritablement 'transcendant'. En effet,
l'imagination schématisante, dans la Critique de la raison pure, est encore sous
le sens commun dit logique; l'imagination réfléchissante, dans le jugement de
beauté, est encore sous le sens commun esthétique. Mais avec le sublime,
l'imagination selon Kant est forcée, contrainte d'affronter sa limite propre, son
ϕανταστεον, son maximum qui est aussi l'inimaginable, l'informe ou le disforme
dans la nature (Critique du jugement, § 26). Et elle transmet sa contrainte à la
pensée, à son tour forcée de penser le supra-sensible, comme fondement de la
nature et de la faculté de penser: la pensée et l'imagination entrent ici dans une
discordance essentielle, dans une violence réciproque qui conditionne un
nouveau type d'accord (§27). Si bien que le modèle de la récognition ou la
forme du sens commun se trouvent en défaut dans le sublime, au profit d'une
tout autre conception de la pensée (§29)."
104
Cita a este propósito Platão na República [VII, 523b e sq.]:"Il y a dans les
perceptions certaines choses qui n'invitent pas la pensée à un examen, parce
64

pensamento tranquilo. O que força o pensamento a pensar é um


“encontro fundamental” e não uma “recognição. Se assim for, não há
qualquer semelhança com o que se designa “recognição”.
Ao contrário, aquilo que Deleuze chama “encontro fundamental”
é o que faz realmente nascer a sensibilidade no sentido, é a própria
sensibilidade em presença do que não pode ser senão sentido, o
encontro com os limites, através do insensível. O que é primeiro no
pensamento, a violência, marca singular, é o signo. Aí o sentido
comum deixa de ser eficiente. O que não pode ser senão sentido é
aquilo que deixa a alma perplexa, o que a força a pôr um problema,
que já não é (um sentido) comum, mas singular.
Finalmente, há “no mundo qualquer coisa que força a pensar”,
não há um acordo óptimo entre as faculdades mas uma espécie de
desacordo entre elas. Deleuze perspectiva uma discórdia/divergência
das faculdades, uma espécie de violência que torna mais autêntica
cada uma. Cada faculdade disjunta comunica à outra a violência que a
leva ao seu limite próprio. Este exercício discordante e disjunto é a
forma transcendental de cada faculdade, que se confunde com
superior e transcendente. “Transcendente de modo nenhum significa
que a faculdade se dirija a objectos situados fora do mundo, mas ao
contrário, que ela apreende no mundo o que a concerne
exclusivamente e que a faz nascer para o mundo.”105 Da sensibilidade
à imaginação, da imaginação à memória, da memória ao pensamento.
A aventura do pensamento e das outras faculdades é a do involuntário,
da criação.
O que permite a constituição de uma verdadeira génese do
pensamento não é uma qualidade, mas um signo, um limite próprio,
ilimitado, paradoxal e violento. “Não é um ser sensível, mas o ser do

que la perception suffit à les déterminer, et il y en a d'autres qui l'engagent tout


à fait dans cet examen, en tant que la perception ne donne rien de sain.- Tu
parles évidemment des choses qui apparaissent de loin et des peintures en
perspective.- Tu n'a pas du tout saisi ce que je veux dire..."
105
DR, p. 245.
65

sensível. Não é o dado, mas aquilo pelo qual o dado é dado.”106 O


Insensível, o hieróglifo, o signo. Mais uma vez o signo.
O que é objecto de um “encontro” e é encontrado de forma
fortuita, inevitável e contingente, resulta do exercício superior das
faculdades, que apreendem aquilo que não pode ser apreendido pelo
senso comum. Não é um exercício natural nem decorre dele. Chega-se
ao que se há-de pensar a partir do intensivo, partindo da sensibilidade.
O ponto de partida do que força a pensar é a intensidade ou pura
diferença em si, que a sensibilidade empírica não apreende por si só,
senão já recoberto por uma imagem dogmática.
É sempre através de uma intensidade que o pensamento nos
advém e de uma sensibilidade que se transcende numa apreensão
imediata, no encontro. O intensivo, a diferença na intensidade, é ao
mesmo tempo o objecto do encontro e o objecto a que o encontro
chega. O encontro e o encontrado são um e o mesmo. O que vem ou,
melhor, nos advém são os “porta-signos”, material complexo do
pensamento que torna sensíveis as forças que não são pensáveis por
si mesmas.
O pensamento pode chegar ao que há a pensar, pode criar o
signo, pode tornar pensável o que o não é. O que é encontrado, a
“potência do salto” do intervalo, do instante, já lá está, não
desenvolvido, no signo, num estado que força a pensar, porque
qualquer coisa é transportada e pode desenvolver-se numa Ideia107.
“Não são os deuses que são encontrados” mas os demónios, a
violência, são estes que são trans-portados. O que já lá está, no signo
e vem enquanto “porta-signos” é a Ideia. Num estado envolvido e
enrolado, obscuro e discordante. O homem sensível encontra a
106
DR, p. 240.
107
“Há, pois, alguma coisa que se comunica de uma faculdade a outra, mas
que se metamorfoseia e não forma um senso comum. Dir-se-ia, do mesmo
modo, que há Ideias que percorrem todas as faculdades, não sendo o objecto
de qualquer uma em particular. Com efeito, como veremos, talvez seja preciso
reservar o nome de Ideias não aos puros cogitanda, mas, antes, às instâncias
que vão da sensibilidade ao pensamento e do pensamento à sensibilidade (…).
As Ideias são os problemas, mas os problemas fornecem apenas as condições
sob as quais as faculdades acedem ao seu exercício superior. DR, p. 250.
66

violência de uma impressão, “o ciumento que surpreende um signo


falso no rosto do amado”108, o leitor, o auditor encontram uma violência
na obra de arte que emite signos. São impressões, encontros,
expressões que nos forçam a olhar, a interpretar, a pensar. A criação,
como génese do acto de pensar parte sempre de signos, a obra de arte
nasce de signos tanto quanto os faz nascer, é porta-signos.
A percepção, a memória, a imaginação, a inteligência, o
pensamento têm um funcionamento voluntário, abstracto, encontram
verdades lógicas possíveis mas têm um funcionamento involuntário,
paradoxal que rebenta com o senso comum, com a representação.
Voluntário e involuntário são exercícios diferentes das mesmas
faculdades. Num, nada é forçado, noutro atinge-se o limite, obrigando
cada faculdade a sair dos eixos (da doxa), a encontrar a sua vocação.
A aventura do involuntário encontra-se ao nível de cada faculdade.
Num esforço divergente, cada uma é colocada em presença daquilo
que lhe é essencial. O seu ponto extremo, o máximo do seu
desregramento, “estado livre ou selvagem da diferença de si”, máxima
e tripla violência: “violência daquilo que a força a exercer-se, daquilo
que ela é forçada a apreender e daquilo que só ela tem o poder de
apreender”109, o que Deleuze designa também por intensidade,
potência de salto, instante, o demónio, porta-signos.
O que faz pensar é um encontro violento, num terreno fora do
que é representado e do que é achado. A intensidade insensível para a
sensibilidade empírica, a intensidade como diferença de si,
incognoscível, para o pensamento.
Esta nova imagem do pensamento, ( pensamento sem imagem),
seria assim, não porque se lhe tirou a imagem, mas porque o
pensamento já não podia pensar, senão, nas proximidades do não
pensamento, do paradoxal.
As artes mostram o que é pensar, mostram como de uma
compreensão não filosófica se extrai ou opera uma compreensão
108
PS, p. 119.
109
DR, p.248.
67

filosófica. Pela arte, a filosofia pode fugir à imagem dogmática do


pensamento. Pensar é pensar o que não existe ainda, força biológica
de criação, ou como escreve Artaud, pensamento “genital”. Neste
pensar que pensa o que ainda não existe, encontram-se os demónios.
Na conclusão da primeira parte de Proust et les signes já não
havia logos só hieróglifos, mas em Différence et répétition o logos vai
quebrar-se em hieróglifos110. Já não se pensa numa boa natureza do
pensamento ou numa boa vontade do pensador, mas, na essência do
que significa pensar. O pensamento está assim quebrado, diante da
sua própria impossibilidade, do seu “impoder”, forçado a pensar a sua
ruína.
O logos é um princípio de organização que não se pode manter
da mesma maneira. Não se trata já de orientar, dirigir ou aplicar
metodicamente o pensamento, mas sim de fazer nascer aquilo que
ainda não existe, fazer nascer o que é possível, melhor, o que é real,
“conjuntos de sinais ambíguos”, “gritos que o obrigam a criar, ou a
experimentar”111 : hieróglifos e não logos, para-senso, paradoxo, delírio,
pathos, embriaguez ou excesso, tudo o que quebra o sentido, um outro
pensamento, “sem imagem”. Já não há logos porque o exercício do
involuntário leva cada faculdade a enfrentar os seus limites, o
pensamento fica em face do impensável, as faculdades situam-se “na
linha vulcânica que queima uma na chama da outra, saltando de um
limite para outro”112. Já não se pode pensar da mesma maneira113.
Não se pensa através de imagens, representações. Os
hieróglifos não se deixam representar, não se deixam pensar em
dualismos. Pensar acontece directamente nas coisas, seja em meio
filosófico ou criado na estética. E se em Proust et les signes pensar era
interpretar, não é uma qualquer interpretação, a possibilidade
deleuziana mostra como, do interpretar, se chega ao não há nada para

110
DR, p. 249.
111
QF, p. 52.
112
DR, 369.
113
“Artaud diz que o problema (para ele) não é orientar o seu pensamento (…),
mas chegar, sem mais, a pensar alguma coisa”. DR, p. 252.
68

interpretar. Trata-se agora, de experimentar, criar. Não há nada para


interpretar, mas para assinalar/revelar, ou melhor na própria
interpretação há uma última etapa em que já não se interpreta,
reconhecendo uma espécie de fracasso da interpretação que só se
salva porque há uma revelação final, resultado essencial da
aprendizagem.
Estamos num “Anti-logos”, os hieróglifos são o Anti-logos e
falam paradoxal e involuntariamente a linguagem das faculdades. São
os signos, a matéria dos mundos, ao mesmo tempo a matéria do ser.
“Pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, antes de tudo,
engendrar, «pensar» no pensamento.”114 Se o pensamento tem esse
“impoder” de criar, se é esta a moderna imagem do pensamento, então
ele constitui uma simples possibilidade de pensar, sem definição do
pensador, indeterminado. O que tem de ser pensado “é
simultaneamente o que tem de ser pensado e o que não pode ser
pensado. Seria ele o não-pensado no pensamento. (…) O que não
pode ser pensado e, no entanto, tem de ser pensado, foi pensado uma
vez, como o Cristo encarnou uma vez, para mostrar dessa vez a
possibilidade do impossível.”115

Da visão do mundo proustiano conclui-se que devemos ser


egiptólogos. Tudo é signo, sentido, essência. O egiptólogo penetra nas
zonas obscuras e decifra, percorre uma iniciação, em todas as coisas é
aprendiz. Em Proust et les signes, não é só da memória que se trata,
são todas as espécies de signos, de que é necessário descobrir a
natureza segundo os meios, o modo de emissão, a matéria, o regime.

Concluiremos esta análise de Proust et les signes, referindo-nos


a uma questão importante: A memória involuntária.

114
Idem, p. 253.
115
QF, p. 56.
69

Numa carta de 29/12/86116, Deleuze refere-se ao ensaio sobre


Proust assim:
“Creio que um livro, se merece existir, pode ser apresentado sob
três aspectos rápidos. Escrevemos um livro digno se: 1. pensamos que
os livros sobre o mesmo assunto ou sobre um tema vizinho caem numa
espécie de erro global (função polémica do livro);
2. pensamos que qualquer coisa de essencial foi esquecida
sobre o tema (função inventiva);
3. julgamos ser capazes de criar um novo conceito (função
criativa). Certamente, é o mínimo quantitativo: um erro, um
esquecimento, um conceito… Desde já, tomando cada um dos meus
livros, abandonando a modéstia necessária, perguntarei:
1. que erro pretendeu ele combater;
2. que esquecimento quis reparar;
3. que novo conceito criou.
Por exemplo, o meu livro sobre (…) Proust:
1. o erro é a memória;
2. o esquecimento são os signos;
3. o conceito é a coexistência dos três (e não dois) tempos.”

Analisemos então a questão da memória. Todo o capítulo quinto


trata desta questão, mais concretamente da memória involuntária - a
faculdade principal que explica ou interpreta o signo e desenvolve o
seu sentido. O esquecimento a reparar serão os signos: no caso dos
signos mundanos e dos amorosos, é a inteligência que não só os
mobiliza como decifra. A memória aqui é solicitada explicitamente, por
isso só pode ser voluntária. No caso dos signos sensíveis, a memória
involuntária e a imaginação intervêm ambas, embora não possuam o
segredo de todos os signos, sentem um imperativo que as força a
procurar-lhes um sentido. Os “signos que se explicam pela memória

116
Retirada de: A. Villani, La guêpe et l’orchidée, p. 56/57.
70

[involuntária] formam um ‘começo de arte’”117, serão decisivos,


preparam a revelação final. Os signos da arte explicar-se-ão então pelo
pensamento puro como faculdade das essências.
Ora como procede a memória involuntária, segundo Proust? Ela
liga duas sensações que existem no corpo em níveis diferentes, e que
se agarram como dois lutadores, a sensação presente e a sensação
passada, para fazer surgir qualquer coisa irredutível às duas, tanto ao
passado como ao presente: esta Figura. (…) Havia casos em que a
ligação de sensação, o amplexo das sensações, não fazia nenhum
apelo à memória (…). O que contava era a ressonância das duas
sensações quando elas se agarravam uma à outra. Tais eram a
sensação do violino e do piano na sonata. ‘Era como no começo do
mundo, como se não tivesse havido senão dois sobre a Terra, neste
mundo fechado a tudo o resto, construído pela lógica de um criador e
onde eles não serão jamais os dois: esta sonata’. (…) O que conta é
que as duas sensações se agarram como «lutadores» e formam um
«corpo a corpo de energias», mesmo se é um corpo a corpo
desencarnado, de onde se destaca uma essência inefável, uma
ressonância, uma epifania dirigida para esse mundo fechado.”118 O que
conta, é que a ressonância entre duas sensações forma uma essência
que se exprime através de signos. A epifania, as sensações, o mundo
da memória remetem para o mundo dos signos.
O que é essencial e próprio da memória involuntária? Ela
interioriza o contexto, torna o antigo contexto inseparável da sensação
presente. Actualiza. Se bem que secundária, tem um lugar central,
torna-nos sensíveis aos signos, prepara-nos para o que está por vir.
Etapa na aprendizagem da arte, iniciação do “ essencial, é a diferença
interiorizada, tornada imanente.”119 Não mais nos podemos esquecer,
os signos aparecerão em todas as suas espécies, teremos de saber da
sua natureza, da sua potência. Tudo o que Deleuze escreveu,

117
PS, p. 69.
118
FB, p. 46.
119
PS, p. 75.
71

constituirá uma teoria dos signos, será o próprio a dizê-lo muitas vezes,
para não se esquecer nunca do que quis reparar.
Este ensaio encontra-se numa espécie de encruzilhada, não há
só um conceito novo; em cada momento, descobre-se que o
pensamento deleuziano está todo ali, talvez em germe, talvez em
sonho. É, sem dúvida, uma “sintomatologia de mundos”, mas há uma
potência de vida ainda por descobrir.
No preâmbulo à terceira edição de Proust et les signes, Deleuze
explica que a segunda parte trata de um problema diferente da
primeira, e a sua divisão em capítulos visa uma maior clareza. Mas é
preciso ainda referir que este ensaio não estava (nunca esteve)
completo, pois, termina (nesta edição) com um texto que servirá de
conclusão, terá sido publicado em 1973 e depois arranjado para esta
versão. Uma palavra sobre ele: aparece aqui a ideia de uma potência
de outra natureza, que não se deixa organizar porque não tem órgãos,
é ela que quebra o logos.
Nas últimas páginas ficamos a saber que se trata de um corpo
estranhamente plástico – o corpo sem órgãos – o corpo do egiptólogo.
Haverá por isso, quer dizer, por inacabamento, depois da
conclusão de 73, mais acrescentos. De resto, pode perguntar-se se os
“acrescentos” à primeira parte não serão já a constatação do
inacabamento, do sonho que Deleuze ia sonhando, do esquecimento
que sempre pretendeu reparar.
72

SEGUNDA PARTE

Exposição do pensamento ontológico deleuziano

A. Crítica dos pressupostos da ontologia tradicional

“Há uma ciência que estuda o Ser enquanto ser”120. O que é,


segundo Aristóteles, pode ser definido através de categorias, e estas
dizem-se em relação a um termo único que não é “simplesmente o ser
como sentido comum, é já a substância como sentido primeiro”121. A
relação de cada categoria com o ser é interna, cada uma tem em si
unidade e sentido. Este conceito (Ser) é ainda distributivo e
hierárquico.

1. Categorias

O que há de novo no pensamento deleuziano, o que é diferente,


é povoar o pensamento de forças que não são as da recognição
(modelo da representação – exercício concordante de todas as
faculdades) mas as de um “encontro fundamental” que é criação pura,
zona de variação, nexo não cognitivo onde o signo se decifra e
finalmente se “revela” na obra de arte.
No desenvolvimento do capítulo, descrevem-se dois tipos de
acontecimentos: os que deixam o pensamento tranquilo e os que o
forçam a pensar122. O mundo da representação em geral deixa o

120 a
Aristóteles, Métaphysique, 1003 .
121
DR, p. 89.
122
Cita a este propósito Platão na República [VII, 523b e sq.]:"Il y a dans les
perceptions certaines choses qui n'invitent pas la pensée à un examen, parce
que la perception suffit à les déterminer, et il y en a d'autres qui l'engagent tout
à fait dans cet examen, en tant que la perception ne donne rien de sain.- Tu
73

pensamento tranquilo. O que força o pensamento a pensar é um


“encontro fundamental” e não uma “recognição. Se assim for, não há
qualquer semelhança com o que se designa “recognição”.
Ao contrário, aquilo que Deleuze chama “encontro fundamental”
é o que faz realmente nascer a sensibilidade no sentido, é a própria
sensibilidade em presença do que não pode ser senão sentido, o
encontro com os limites, através do insensível. O que é primeiro no
pensamento, a violência, marca singular, é o signo. Aí o sentido
comum deixa de ser eficiente. O que não pode ser senão sentido é
aquilo que deixa a alma perplexa, o que a força a pôr um problema,
que já não é (um sentido) comum, mas singular.

2. Representação

No terceiro parágrafo da Introdução de Différence et répétition,


Deleuze define representação, dizendo que ela é a relação entre o
conceito e o seu objecto. Havendo, nesta definição geral, sempre um
conceito por cada coisa particular e uma coisa e apenas uma por
conceito. Na conclusão de Différence et répétition dirá que a
representação é o lugar da ilusão transcendental apresentando-se
sob quatro formas interpenetradas que desnaturam o pensamento e o
recobrem com uma imagem que não nos dá o mundo na sua
diferença.
Precisamente na Introdução, mas no segundo parágrafo123 , a
propósito do programa de uma filosofia da repetição (exposto em
quatro proposições: a primeira liga a repetição a uma prova selectiva
– ao eterno retorno; a segunda opõe a repetição às leis cíclicas da
Natureza; a terceira opõe a repetição à lei moral, fazendo dela a
suspensão da ética, o pensamento de para além do bem e do mal; e
parles évidemment des choses qui apparaissent de loin et des peintures en
perspective.- Tu n'a pas du tout saisi ce que je veux dire..."
123
DR, p. 48.
74

a quarta opõe a repetição não só às generalidades do hábito mas às


particularidades da memória) destaca-se a última proposição onde a
representação aparece como mediação124 . Mediação que numa
primeira aproximação enuncia um critério fundamental – a
preexistência de um objecto a representar -: um referente, (por detrás
da máscara não haveria um “vazio interior”). Reproduzindo um
modelo ideal, o movimento do pensamento é, neste caso, sempre um
movimento finito. Procuraríamos então, na representação, a
semelhança, a imitação, a identificação, (fixadas no conceito). A
expressão, um dos modos da representação e o outro, que a diz, quer
dizer, expressão da primeira, representam, porque se tornam
125
semelhantes a, produzem uma parecença, são uma cópia do
sensível ou cópia da cópia.
Noutra modalidade deste movimento, não oposta à apreensão
de semelhanças, (e que Deleuze diz ser falsa) pode gerar-se uma
distância entre a realidade do referente e o objecto representado,
distância que traz paradoxalmente, também uma não igualdade. A
imagem representada não é uma réplica, pretende sim recuperar,
captar ou extrair uma forma universal e seria por ela que teríamos a
recognição. “Portanto, o conceito é aqui constituído de tal forma que a
sua compreensão vai ao infinito no seu uso real, mas é sempre
passível, no seu uso lógico, de um bloqueio artificial.”126
Esta “mediação”, poderíamos dizer, da “razão”, aparece
tradicionalmente127 definida sob a forma de quatro elementos:

124
cf. DR, p. 52-54 sobre a crítica de Kierkegaard e Nietzsche a Hegel. O que é
criticado é a permanência no “falso movimento, no movimento lógico abstracto,
isto é, na mediação. (…) É neste sentido que alguma coisa de completamente
novo começa”- uma nova filosofia “novos meios de expressão”. Hegel
“representa conceitos em vez de dramatizar Ideias: faz um falso teatro, um
falso drama, um falso movimento. É preciso ver como Hegel trai e desnatura o
imediato para fundar a sua dialéctica sobre esta incompreensão e para
introduzir a mediação”.
125
Cópia é diferente de simulacro: “Não é próprio do simulacro ser uma cópia,
mas alterar todas as cópias”. DR, p. 37.
126
DR, p. 57.
127
“Se há, como foi tão bem mostrado por Foucault, um mundo clássico da
representação, ele define-se por estas quatro dimensões”. DR, p. 419
75

1. Identidade no conceito, reflectir-se-á numa ratio


cognoscendi;
2. Analogia no juízo, distribuir-se-á numa ratio essendi;
3. Oposição na determinação do conceito, desenvolvida numa
ratio fiendi;
4. Semelhança no objecto, determina uma ratio agendi.
Definindo-se por estes quatro aspectos ou dimensões destaca-
se, no entanto, o primeiro (identidade) – porque “seja qual for a
maneira pela qual esta é concebida, define o mundo da
representação.”128 O mundo da representação definir-se-á; então,
pelo primado da identidade. Neste caso, a representação finita129 dá
ao mundo medidas e coordenadas. Incapaz de pensar a diferença em
si mesma, ela é a forma conceptual que subordina as diferenças e as
condensa visando sempre um centro, uma perspectiva única em que
nada muda e que é preciso recusar.
Poderíamos obter tal efeito, quer dizer, pensar a diferença em
si mesma, tornando a representação infinita? Vejamos a resposta:
“O mesmo não se verifica com a representação infinita, porque
ela compreende o Todo, isto é, o fundo como matéria primeira e a
essência como sujeito, como Eu ou forma absoluta. (…) [Contudo]
não parece que a representação infinita baste para tornar o
pensamento da diferença independente da simples analogia das
essências ou da simples similitude das propriedades. É que, em
última instância, a representação infinita não se desprende do
princípio de identidade como pressuposto da representação.”130

128
DR, p. 36.
129
Cf. DR, p. 111. “A representação finita é a de uma forma que compreende
uma matéria, mas uma matéria segunda, na medida em que é informada pelos
contrários. Vimos que ela representava a diferença, mediatizando-a,
subordinando-a à identidade como género e assegurando esta subordinação
na analogia dos próprios géneros, na oposição lógica das determinações, como
também na semelhança dos conteúdos propriamente materiais.”
130
DR, pp. 111-112.
76

Provavelmente, tornar a representação infinita constitui o


“maior esforço da filosofia”131, segundo Deleuze. A representação
infinita, na verdade, insuficiente, condensa e visa uma só perspectiva,
não se esquivando a assegurar a convergência de todos os pontos de
vista sobre um mesmo objecto ou um mesmo mundo ou sujeito.
Resumindo, não é porque se torna infinita que atinge o imediato
definido como “sub-representativo”, tanto mais que não se consegue
desprender do princípio de identidade.
É preciso então “que a coisa nada seja de idêntico, mas
esquartejada numa diferença em que se desvanece tanto a identidade
do objecto visto como a do sujeito que vê. É preciso que a diferença
se torne o elemento, a última unidade, que ela remeta, pois, para
outras diferenças que nunca a identificam, mas a diferenciam.”132 É
preciso dissolver a identidade, abandonar a representação.
De qualquer modo, ela deixa escapar o verdadeiro movimento.
O movimento real (original, intensivo, matriz do espaço inteiro) implica
uma pluralidade de centros e não um só, uma abundância de
diferenças, uma sobreposição de perspectivas, uma imbricação de
pontos de vista, divergindo, descentrando. Se for possível procurar as
condições da experiência real, esta génese que parece escapar-nos
quer na representação finita quer na infinita surgirá. “É aí que
encontramos a realidade vivida de um domínio sub-representativo”133.

a. Recognição

Mais adiante, o pressuposto geral, subjectivo ou implícito da


representação, está exposto no capítulo III de Différence et répétition
da seguinte maneira: “ele tem a forma de «toda a gente sabe…».

131
Cf. DR, p. 420.
132
DR, p. 122.
133
DR, p. 140.
77

Toda a gente sabe, antes do conceito e de um modo pré-filosófico…


toda a gente sabe o que significa pensar e ser… de modo que,
quando o filósofo diz «Eu penso, logo sou», ele pode supor que esteja
implicitamente compreendido o universal das duas premissas, o que
ser e pensar querem dizer… e ninguém pode negar que duvidar seja
pensar e pensar, ser…Toda a gente sabe, ninguém pode negar, é a
forma da representação e o discurso do representante. (…) É porque
toda a gente pensa naturalmente que se presume que todos saibam
implicitamente o que quer dizer pensar. A forma mais geral da
representação está, pois, no elemento de um senso comum”134 . E tem
implícita uma imagem135 do pensamento dogmática. É sobre esta,
também, que Deleuze diz pouco importar que se comece pelo objecto
ou pelo sujeito, pelo ser ou pelo ente. O que aqui interessa é que a
representação é mediação (apreensão, significação, relação,
condição da experiência possível, etc.), doxa, e teremos sempre
muita dificuldade em abandoná-la. Na verdade, a representação (seja
infinita ou finita) não rompe com a doxa.
Geralmente dizemos que a representação é a apreensão de
um objecto (efectivamente presente) pelos sentidos ou efectivamente
ausente, reproduzido/produzido, antecipado, pela imaginação, pela
memória ou pelo pensamento. Quer dizer que nos referimos a
diversos tipos de apreensão sensível e/ou conceptual, percepção,
ideia ou juízo. Por exemplo: “o que a opinião propõe, é uma certa
relação entre uma percepção exterior como estado de um sujeito e
uma afecção interior como passagem de um estado a outro (exo e
endo-referência). Destacamos uma qualidade supostamente comum a

134
DR, pp. 226 e 228.
135
A história da filosofia apresenta múltiplas imagens distintas, não só por
causa dos postulados ou ilusões, mas também pelo próprio modo de fazer. QF,
p. 48. Cf. p. 41.
No limite, não haverá para cada filósofo uma imagem? E o mesmo filósofo
não poderá ter encontrado mais do que uma? Haverá uma melhor do que
outra? Cf. pp. 50-56. Deleuze, questiona-se ainda nestas páginas, sobre o que
seria uma imagem moderna do pensamento.
Como podemos então entendermo-nos em filosofia? Parece que só podemos
escolher entre a transcendência e o caos. Cf. pp. 49-51.
78

vários objectos que nos surgem e uma afecção supostamente comum


a vários sujeitos que a experimentam e apreendem connosco essa
qualidade. A opinião é a regra de correspondência de uma para
outra”136. Explicitando melhor: a doxa “retira da percepção uma
qualidade abstracta e da afecção um poder geral (…). A opinião é um
pensamento que se molda intimamente pela forma da recognição:
recognição de uma qualidade na percepção (contemplação),
recognição de um grupo na afecção (reflexão), recognição de um rival
na possibilidade de outros grupos e de outras qualidades
(comunicação).”137
Recognição que, enquanto modelo, concerne e define-se pelo
exercício concordante de todas as faculdades sobre um mesmo
objecto. Quer dizer, ela incita e orienta as faculdades a exercerem-se
sobre um objecto, supostamente o mesmo. Ela não é como as outras
faculdades (que são os seus modos) porque, precisamente, é a sua
(delas) unidade. O mesmo objecto pode ser visto, tocado, lembrado,
imaginado, pensado. Deleuze vai buscar a Descartes um primeiro
exemplo deste acordo, desta unidade – o pedaço de cera é um
exemplo desse suposto objecto138
É impossível negar a recognição, fazer a sua abstracção.
Ocupa grande parte da nossa vida quotidiana e rotineira, sob a forma
de identidade, oposição, semelhança, analogia. Contamina tudo, o
diferente que também irrompe, a cada instante, pela nossa vida
quotidiana só pode ser pensado por relação de semelhança,

136
QF, p. 128.
137
Idem, p. 129-130. Cf. ainda estas páginas: “A doxa é um tipo de proposição
que se apresenta da seguinte maneira: dada uma situação vivida perceptivo-
afectiva (por exemplo, traz-se queijo para a mesa do banquete), alguém extrai
dele uma qualidade pura (por exemplo, odor fétido); mas ao mesmo tempo que
abstrai a qualidade, ele próprio se identifica com um sujeito genérico que
experimenta uma afecção comum (…). A «discussão» incide pois sobre a
escolha da qualidade perceptiva abstracta, e sobre o poder do sujeito genérico
afectado. (…) É como a história que Hegel contava, a vendedora a quem
alguém disse: «Os seus ovos estão podres», e que responde: «Podre está
você, e a sua mãe, e a sua avó»: a opinião é um pensamento abstracto e a
injúria desempenha um papel eficaz nesta abstracção, porque a opinião
exprime as funções gerais de estados particulares”.
138
DR, p. 231.
79

identidade, comparação, rivalidade, etc. A recognição, a


139
representação serão (são) a crucificação da diferença. Com elas
estamos nos “eixos”, quer dizer, todas as faculdades convergem e
contribuem para um esforço comum de reconhecimento do objecto.
“Mas o que são os eixos a não ser a forma do senso comum que fazia
140
com que todas as faculdades girassem e convergissem?” E por
isso pagamos um elevado preço – o esmagamento do pensamento, o
seu afundamento no empírico, o pensamento tranquilo.
Na representação, o conceito é como que a possibilidade; mas
o sujeito da representação determina ainda o objecto como realmente
conforme ao conceito, como essência. É por isso que, no seu
conjunto, a representação é o elemento do saber que se efectua na
recolecção do objecto pensado e na sua recognição por um sujeito
que pensa.”141
Mas se é impossível negar a representação, é possível dizer
que há no mundo alguma coisa, outra, um sensível, que só pode ser
sentido, que faz nascer a sensibilidade no sentido, que não é uma
qualidade, é um signo – é um αισθητεον. Não um ser sensível, mas o
ser do sensível142 e por isso não captável pelas faculdades. Só assim
se pode conceber uma faculdade em si, senão todo o elemento
sensível seria traduzível e a própria faculdade deixaria de gozar de
autonomia, portanto é necessário afirmar um sensível que só pode
ser sentido e essa propriedade só se manifesta na máxima potência
do sensível ou a máxima potência do sensível é já um insensível
transcendental, ou seja, um insensível que vai estar para lá do
empírico.

139
DR, p. 238.
140
DR, p. 242.
141
DR, p. 317.
142
“Qual é o ser do sensível? De acordo com as condições desta questão, a
resposta deve designar a existência paradoxal de «alguma coisa» que não
pode ser sentida (do ponto de vista do exercício empírico) e que, ao mesmo
tempo, só pode ser sentida (do ponto de vista do exercício transcendente).”
DR, p. 382.
80

“Não é o dado, mas aquilo pelo qual o dado é dado. Ele é


também, de certo modo, o insensível”143. Mais adiante, no quinto
capítulo, dir-se-á desse insensível que é a diferença (“não é o
fenómeno, mas o númeno mais próximo do fenómeno”).
Quando podemos dizer que existe esse insensível, estamos a
dizer já, que não estamos mais nos “eixos”, que o pensamento é um
pensamento forçado. Pensamento forçado significa que se elaboram
forças que agem sobre o pensamento e o forçam a pensar,
violentando-o. É uma certa violência que nos força pensar. “É o
homem sensível, quando encontra a violência de uma impressão”144.
Um encontro fundamental ocorreu e nesse momento o uso
concordante das faculdades tornou-se paradoxal, discordante,
divergente. As faculdades saem dos eixos, não giram nem convergem
mais umas para as outras, enfrentam os seus limites, quebram-se no
fortuito, encontram “os demónios”, num insensível intenso, pura
diferença de si em estado livre e selvagem. “Discórdia das faculdades,
cadeia de força e pavio de pólvora, em que cada uma enfrenta o seu
limite e só recebe da outra (ou só comunica à outra) uma violência
que a coloca em face do seu elemento próprio, como do seu disparate
ou do seu incomparável”145: o insensível na sensibilidade, o
inimaginável na imaginação, o impensável no pensamento.
A diferença na intensidade, a disparidade no fantasma, a
dissemelhança na forma do tempo, o diferencial no pensamento…
estamos longe das figuras da representação
Estaremos no domínio do que não se deixa representar. Pode
até parecer haver uma ordem e um encadeamento das faculdades
mas é uma cadeia forçada, destrambelhada, quebrada, num uso
paradoxal que percorre tanto “os pedaços de um eu dissolvido como
as bordas de um Eu fendido”146.

143
Idem, p. 240.
144
PS, p.119.
145
DR, p. 243. O termo francês “disparate” não parece bem traduzido por
“disparate” pois o seu sentido exacto é dado por “díspar”.
146
DR, p. 249.
81

Estamos no domínio do pensamento.


Há, aí, é o que pensa Deleuze, qualquer coisa que passa, que
se comunica, não uma “luz natural”, mas clarões diferenciais
problemáticos147 que saltam e devêm – as Ideias148 enquanto
instâncias que vão da sensibilidade ao pensamento e do pensamento
à sensibilidade. O seu meio não é a recognição ou a representação,
antes remete para um “para-senso”. O logos quebra-se num excesso,
fortuito e contingente, fora do empírico, pensamento sem mediação
que impede o exercício do bom senso e do senso comum, uma
espécie de pensamento que determina o que se pode passar entre as
faculdades disjuntas. Precisamente, o que nos escapa e é o que não
pode ser dito no uso empírico, só o pode no uso transcendente (ou
uso paradoxal). Quer dizer, o que percorre todas as faculdades pode
ser dito como “não-senso, abraxas, snark ou blituri”149. A discórdia das
faculdades deixa passar uma violência entre elas, «acordo
discordante» que deixa de fora a identidade, a convergência, a
colaboração da doxa. “Há, portanto, um ponto em que pensar, falar,
imaginar, sentir, etc. são uma mesma coisa, mas esta coisa afirma
somente a divergência das faculdades no seu exercício
transcendente. Trata-se, pois, não de um senso comum, mas, pelo
contrário, de um «para-senso»”150

147
Problemático é: “um estado do mundo, uma dimensão do sistema e até
mesmo o seu horizonte, o seu foco: ele designa exactamente a objectividade
da Ideia, a realidade do virtual.” DR, p. 444.
148
As Ideias são, neste contexto, problemáticas, complexas, multiplicidades de
relações e de singularidades correspondentes. Explorar uma Ideia ou elevar
cada uma das faculdades ao seu exercício transcendente será a mesma coisa
do ponto de vista do resultado.
Relação a estabelecer com a noção de aprendizagem em Deleuze, por
exemplo cf. DR, p. 277 e p. 280: “aprender é a verdadeira estrutura
transcendental que une sem mediatizar, a diferença à diferença, a
dessemelhança à dessemelhança”; ainda em 320: “É por isso que aprender
pode ser definido de duas maneiras complementares que se opõem igualmente
à representação do saber: ou aprender é penetrar na Ideia, nas suas
variedades e nos seus pontos notáveis; ou aprender é elevar uma faculdade ao
seu exercício transcendente disjunto, elevá-la a este encontro e a esta
violência que se comunicam às outras.”
149
DR, p. 262. Deleuze refere-se aqui a termos de obras de Lewis Carroll que
analisa em LS.
150
DR, p. 320.
82

Não haveria já confusão se não elevássemos o empírico (se


não fizéssemos o decalque do empírico sobre o transcendental151 ) ao
transcendental152, como não haveria se este pensamento que nasce
no pensamento e não é dado no inatismo nem suposto na
reminiscência fosse sem imagem153 . A teoria do pensamento, dirá
Deleuze, “é como a pintura: tem necessidade dessa revolução que faz
com que ela passe da representação à arte abstracta; é este o
objecto de uma teoria do pensamento sem imagem.”154
O empirismo transcendental é o único meio (de desfazer os
nós, as hierarquias e as distribuições) de não fazer o decalque, isto é,
de escapar ao modelo da representação e fazer a revolução que é a
experimentação. Assim como a pintura teve necessidade dessa
revolução, também o pensamento tem. Artaud viu isso bem, quando
estabeleceu o princípio de um empirismo transcendental. “«Sou um
genital inato…Há imbecis que se crêem seres, seres por inatismo.
Quanto a mim, sou aquele que, para ser, deve açoitar o seu inatismo.
Aquele que, por inatismo, é aquele que deve ser um ser, isto é,
sempre açoitar esta espécie de negativo canil, oh!, cadelas de
impossibilidade…Sob a gramática, há o pensamento que é um
opróbrio mais forte a ser vencido, uma virgem muito mais áspera a
ultrapassar-se quando é tomada como um facto inato. Pois o
pensamento é uma matrona que nem sempre existiu.»”155
Artaud nega o inatismo, considerando que se deve mesmo
açoitá-lo. A ignomínia de um certo pensamento, o “opróbrio mais forte
a ser vencido”, mais não é do que a boa natureza do pensamento, a
151
Transcendental definir-se-á como matéria intensiva aformal, não empírica.
152
O exercício empírico de uma faculdade define-se pela sua concordância
com as outras faculdades no senso comum, e distingue-se do exercício
transcendente que é discordante, disjunto, superior. Transcendente, aqui, não
se confunde nem significa qualquer coisa fora do mundo. É antes, a forma
transcendental que no seu exercício transcendente “apreende no mundo o que
a concerne exclusivamente e que a faz nascer para o mundo”. DR, p. 245. Não
deve ser decalcada sobre o exercício empírico, precisamente, porque as
faculdades são levadas a um ponto de excesso, de violência, que será o
extremo do seu desregramento.
153
DR, p. 281.
154
DR, p. 439.
155
DR, p. 252.
83

imagem dogmática e tranquilizadora. É essa mesma que se deve


açoitar. Para se chegar a pensar alguma coisa há uma violência
“áspera” que obriga o pensamento a pensar e não se deixa
representar. Pensar não pode mais ser reconhecer. Porque a
violência gerará o desacordo, a disjunção, a divergência. É um outro
pensamento.
O genital opõe-se ao inato e ao adquirido, mas aquele que
açoita o seu inatismo é um genital inato. O pensamento é então,
antes de tudo, criação (criar = engendrar = “pensar” no pensamento),
genitalidade. Mas o que é um tal pensamento (pergunta, com a qual
Deleuze termina o terceiro capítulo de Différence et répétition) e qual
é o seu processo no mundo? Pensar é lançar os dados, veremos o
que isto significa mais adiante.156

b. Juízo

Se “se pergunta qual é a instância capaz de proporcionar o


conceito aos termos ou aos sujeitos de que é afirmado, é evidente
que tal instância é o juízo, pois este tem, precisamente, duas e
apenas duas funções essenciais: a distribuição, que assegura com a
partilha de conceito, e a hierarquização, que assegura pela medida
dos sujeitos. A uma corresponde a faculdade que, no juízo, se chama
senso comum; à outra corresponde a faculdade que se chama bom
senso (ou sentido primeiro). ”157
Numa filosofia categorial (Kant ou Hegel) é o juízo que aparece
como modelo. Sendo a sua essência a analogia ou a identidade (“A
analogia é o análogo da identidade no juízo. A analogia é a essência
do juízo, mas a analogia do juízo é o análogo da identidade do
conceito.” 158 ).

156
Cf. também Gilles Deleuze, Foucault, Paris, Minuit, 1986, p.125.
157
DR, p. 89.
158
DR, p. 90.
84

Consideremos o efeito, pouco referido pelos comentadores, de


uma tal ontologia sobre esta figura lógica clássica, o juízo. Deleuze
dedicou-lhe um pequeno texto159 .
Acabar com este modelo (com o juízo160) significará ir mais
longe na crítica, indo muito mais longe do que foi Kant. E,
compreender Espinosa, já que foi ele, no entender de Deleuze, que
trouxe verdadeiramente a crítica (continuando-a depois os seus
discípulos: Nietzsche, Lawrence, Kafka e Artaud). “Cinco caracteres
pareceram-nos opor a existência ao juízo: a crueldade contra o
suplício infinito, o sono ou a embriaguez contra o sonho, a vitalidade
contra a organização, a vontade de poder contra um querer-dominar,
o combate contra a guerra”161
O que tornou o juízo possível (Nietzsche revelou-o) foi “a
aventura da dívida na medida em que se torna ela própria infinita, por
conseguinte, impagável”, condenando-nos desta maneira “a uma
servidão sem fim”, sem nos podermos libertar nunca. O juízo é uma
organização que classifica, hierarquiza, determina e distribui a
existência numa relação a um deus transcendente e infinito.
Em oposição a todo o juízo, Deleuze mostra que existe uma
justiça onde “os corpos se marcam uns aos outros, a dívida se
escreve no corpo, segundo blocos finitos que circulam num território”;
aparece assim um “sistema de crueldade [que] enuncia as relações
finitas do corpo existente com forças que o afectam, enquanto que a
doutrina da dívida infinita determina as relações da alma imortal com
juízos. Por todo o lado é o sistema da crueldade que se opõe à
doutrina do juízo.”162
Acabar com o juízo num combate, acabar com deus e com o
juízo. “Combate, combate por todo o lado, é o combate que substitui o
juízo”. Exemplo disso é a vitalidade que o bebé apresenta163.

159
Cf. CC, sobre o juízo.
160
Cf. CC, p. 171.
161
CC, p. 181.
162
CC, p. 173.
163
CC, p. 180.
85

Ninguém se desenvolve por juízo, mas por combate que não implica
já nenhum juízo. Desenvolvemo-nos num pensamento que pensa
sem contradição, identidade, dialéctica. Pensamos divergindo, sem
modelos pré-estabelecidos, escapando à lógica do terceiro excluído.
No último parágrafo do capítulo XV de Critique et Clinique,
Deleuze apresenta as razões que, aparentemente, impediam a crítica:
“Aquilo que nos incomodava era que renunciando ao juízo tínhamos a
impressão de nos privarmos de todo o meio de fazer diferenças entre
existentes, entre modos de existência, como se tudo se equivalesse
desde logo”. Depois de Espinosa e Nietzsche, já não podemos pensar
do mesmo modo. Porque é justamente o juízo que nos priva da
diferença. É ele que “supõe critérios pré-existentes (…) de tal maneira
que não pode apreender aquilo que há de novo num existente, nem
mesmo pressentir a criação de um modo de existência”.
Na nova concepção de Deleuze, a identidade, o uno,
subordina-se à diferença. Quer dizer, para fazer Um é preciso
primeiro fazer a Multiplicidade, o que significa não dependermos nem
termos de formar juízos. O que é “cria-se vitalmente, por combate, na
insónia do sono, não sem uma certa crueldade contra si próprio”. Cria-
se e vale por si próprio, nómada que não cessa de se deslocar no
deserto. A distribuição dos entes, sendo agora nómada e não
sedentária, não depende já de um sistema de categorias. O segredo é
mesmo esse, diz Deleuze: “fazer existir, não julgar (…). Não temos de
julgar os outros existentes, mas sentir se nos convêm ou não (…).
Como disse Espinosa, é um problema de amor e de ódio, não de
juízo; «a minha alma e o meu corpo são apenas um…o que a minha
alma ama também eu amo, o que a minha alma odeia, eu odeio”.
A Crítica filosófica, tal como a entende Deleuze, na verdade,
supõe mais do que oposição ou substituição da representação por um
outro modelo qualquer, supõe mesmo o seu estilhaçamento. Criticar é
assim sair da representação, acabar com ela, o que será também
86

acabar com uma velha ontologia . “As condições de uma verdadeira


crítica e de uma verdadeira criação são as mesmas: destruição da
imagem de um pensamento que se pressupõe a si própria, génese do
acto de pensar no próprio pensamento.”164 E, ao invés, “inventar
vibrações, rotações, voltas, gravitações, danças, ou saltos que
atingem directamente o espírito”165 . São as condições para se poder
pensar (experimentar). O que pode ser então, nestas condições, uma
imagem do pensamento deleuziana?
Pode ser, em primeiro lugar, um movimento infinito sem
referências ou coordenadas, imagem de um pensamento sem
imagem. Movimento de pensamento que é simultaneamente matéria
do ser.
Pode ser fazer a crítica da mediação, do juízo, da
representação, e encontrar o movimento real do pensamento, não
recoberto, não desnaturado das formas ou forças puras. Pode ser
fazer clínica, retomar o que nos foi roubado por Deus, segundo Artaud
(O «corpo sem órgãos»).
Fazer teatro. Um teatro do futuro, como crê Nietzsche, que não
é representação, mediação, mas o verdadeiro movimento dessas
forças. “Pensa-se no espaço cénico, no vazio desse espaço, no modo
como ele é preenchido, determinado, por signos e máscaras (…)
compreendendo em si as diferenças.”166
Um movimento do conceito167, que não é o da representação,
aparece quando se tece de “um ponto notável” para outro, sem

164
DR, p. 240.
165
DR, p. 52.
166
Idem, p.54.
167
Cf. QF, p. 128. Clarificando esta espécie de mal entendidos sobre o
conceito, Deleuze define aqui o conceito como “impreciso, vago, mas não por
não ter contorno: por ser vagabundo, não discursivo, por se deslocar num
plano de imanência. É intencional ou modular, não porque tem condições de
referência, mas porque é composto de variações inseparáveis que passam por
zonas de indiscernibilidade, e lhe mudam o contorno. Ele não tem qualquer
referência, quer em relação ao vivido, quer em relação aos estados de coisas,
mas uma consistência definida pelas suas componentes internas: nem
denotação de estado de coisas, nem significação do vivido, o conceito é o
acontecimento como puro sentido que percorre imediatamente as
componentes. Não tem número, nem inteiro nem fraccionário, para contar as
87

mediação, nem intermediários, compreendendo e não deixando


escapar as diferenças (o drama pode ser uma condição deste
movimento, bem como o humor e a ironia168 ).
Logo no prólogo de Différence et répétition, Deleuze dirá que o
pensamento moderno, precisamente, nasce da falência da
representação, da perda de identidades e da descoberta de todas as
forças que agem sobre a representação e têm um efeito demolidor
sobre as ilusões.
É a obra de arte moderna que parece poder indicar à filosofia
“um caminho que conduz ao abandono da representação”169,
tornando mais evidentes as novas condições, indicando mesmo
direcções, esclarecendo a confusão. Aí “encontramos a realidade
vivida de um domínio sub-representativo” - a formação que difere.

c. Crítica/novas categorias

Se uma ontologia da diferença puder ser elaborada, ela deverá


renunciar às categorias – representações. Realizar-se-á, então, uma
ontologia onde o ser se dirá da mesma maneira de todas as
diferenças, mas não se dirá senão das diferenças. Uma filosofia que
abandona e renuncia a uma certa distribuição e hierarquia, que se
liberta e reinventa um pensamento a que podemos chamar a-
categorial. Que não procura a verdade das coisas em si mesmas,
enquanto substâncias, ou das suas aparências ou atributos, mas que,

coisas que apresentam as suas propriedades, mas um algarismo que as


condensa, acumula as componentes percorridas e sobrevoadas. O conceito é
uma forma ou uma força, nunca uma função seja em que sentido for.”
Deleuze, mudou a sua ideia de conceito. Em DR, recusa a ideia de conceito
reflexivo mas não propõe um outro senão em Qu’est-ce que la Philosophie?.
Muitas vezes em DR tem-se a impressão que opõe mesmo a ideia ao conceito.
168
Cf. DR, p. 55: “O humor e a ironia são aí inultrapassáveis, agindo no fundo
da natureza. E o que seria o eterno retorno, se esquecêssemos que ele é um
movimento vertiginoso, dotado de uma força capaz de seleccionar, capaz de
expulsar assim como de criar, de destruir assim como de produzir, e não de
fazer retornar o mesmo em geral”.
169
DR, p. 139.
88

na sua formulação radical, pensará a univocidade do ser, estará na


imanência.
A afirmação que diz que o ser se diz da mesma maneira de
todas as coisas, mas que se diz na diferença e mantém em cada
ente, a unidade do ser, é a afirmação que pensa diferencialmente a
diferença. Em Deleuze, a univocidade não categorial do ser não
conecta directamente o múltiplo à unidade, ao contrário desconecta-o;
faz jogar o ser como o que se diz repetidamente da diferença; ser é o
retorno da diferença, sem que haja diferença na maneira de dizer o
ser. Este não se distribui em regiões, nem se hierarquiza, como o real
não se subordinará ao possível. Imaginamos assim, uma ontologia-
filosofia da multiplicidade em Deleuze que não quer de modo nenhum
ficar subordinada à identidade, reduzida ao negativo ou prisioneira da
semelhança e da analogia.
Pensar de forma categorial é conhecer o verdadeiro para o
distinguir do falso. Um pensamento “a-categórico”, onde o ser é
unívoco na diferença, em que ele não se pode dizer senão de uma só
e mesma maneira, é um pensamento paradoxal e intensivo, irregular,
que dissolve o eu, como dissolve a essência e a substância.
O nómada e o deserto, neste pensamento, confundem-se e
convêm-se. O labirinto muda de forma, torna-se errante, intensivo.
Acabam-se os impedimentos acabando também as categorias, o que
significa tão somente, ficarmos “sem nada fixo ou labirinto sem fio”170.
Os nómadas são os que ficam no mesmo sítio, tornam-se nómadas
“para permanecer no mesmo lugar escapando aos códigos”171 , fazem
viagens na imobilidade, imperceptíveis, inesperadas, subterrâneas.
Mesmo que no seguimento da crítica deleuziana surgisse a
possibilidade de formar uma nova lista de categorias (já que, pelo
menos, Deleuze não parou de propor noções descritivas que não
formam nenhuma lista de categorias, como por exemplo: “intensidade

170
DR, p. 122.
171
Gilles Deleuze, L’Île Déserte et autres textes, (org. D. Lapoujade), Paris,
Minuit, 2002, p. 362.
89

– acoplamento – ressonância - movimento forçado; diferencial e


singularidade; complicação – implicação - explicação; diferenciação –
individuação - diferenciação; questão – problema - solução, etc.,”172),
ela seria inútil e vã. Porque não seria realmente “aberta” (poderia ser,
mas não em princípio, diz Deleuze, pois as categorias fazem sempre
parte da representação, onde “constituem as formas de distribuição
de acordo com as quais o ser se reparte entre os entes segundo
regras de proporcionalidade sedentária.”173).
No entanto, os imperativos174 que nos atravessam são sempre
e ainda os “do ser”. Toda “a questão é ontológica e distribui «aquilo
que é» nos problemas.”175 Os imperativos “não emanam do Eu, que
nem está mesmo aí para ouvi-los.”176
Como impedir então que todo este processo (a-categorial) não
seja inútil? Deleuze dirá que gostaria de trabalhar sobre esse
ponto177. Em Mille Plateaux apresentará uma tábua das categorias,
segundo ele, ainda incompleta e insuficiente. Uma tábua não à
maneira de Kant, mas à maneira de Whitehead. A noção de categoria
tomará, então, um novo sentido, muito especial.
Whitehead em Process and Reality apresentaria a excepção,
com uma lista de noções empírico-ideais. Essas noções, “fantásticas”,
distinguem-se, segundo Deleuze, das categorias da representação:
Primeiro – porque são condições da experiência real e não
somente da experiência possível;

172
DR, p. 450.
173
Idem.
174
Os imperativos não emanam do eu, são do ser, são imperativos ontológicos,
formam “os cogitanda do pensamento puro, as diferenciais do pensamento, ao
mesmo tempo o que não pode ser pensado, mas o que deve ser e só pode ser
pensado do ponto de vista do exercício transcendente”. DR, p. 328. Estes
imperativos ontológicos são o ponto aleatório original…. Deles decorrem as
ideias. Não se reportam a um cogito mas a um eu fendido que caracteriza o
pensamento como faculdade no seu exercício transcendente. Ver DR, p. 325.
São imperativos de uma outra espécie, fazem do acaso um objecto de
afirmação, experimentação, condensam o acaso numa só vez . O pensamento
que sai destes imperativos é um pensamento divergente. Ver DR, pp. 327-328.
175
DR, p. 328.
176
Idem.
177
Villani, La guêpe et l’orchidée, p.129.
90

Segundo – não são mais amplas que o condicionado178;


Terceiro – distribuem-se de forma totalmente distinta (as
noções fantásticas operam como distribuições nómadas, opondo-se
às distribuições sedentárias das categorias);
Quarto - são complexos de espaço e tempo “transportáveis por
toda a parte mas sob a condição de impor a sua própria paisagem”179
Quinto – são objecto, não de recognição mas de um “encontro
essencial”;
Sexto – são “erewhon”180

Whitehead foi para além da representação, não como Kant que


só teve o pressentimento destas noções e ficou subordinado às
categorias. E Deleuze também vai ou deseja ir mais longe. Também
será excepção. Para além da representação, supõe o filósofo, haverá
“todo um problema do Ser posto em jogo por essas diferenças entre
as categorias e as noções fantásticas ou nómadas, a maneira pela
qual o ser se distribui aos entes”181. Começará, agora, o problema do
mais “longo erro” a ser resolvido?182

178
Por isso, como veremos adiante, poderão reunir as duas partes (a teoria das
formas da experiência e a da obra de arte como experimentação) da estética.
DR, p. 450.
179
DR, p.451.
180
Esta parece ser, para Deleuze, a melhor palavra para designar estes
complexos, explicando depois em nota que: O Erewhon, de BUTLER, não lhe
parece ser apenas um disfarce de no-where, mas uma transformação de now-
here. DR, p. 451. Ou na página 37: será aquilo que significa ao mesmo tempo,
o “lado nenhum” originário e o “aqui-agora” deslocado, disfarçado, modificado,
sempre recriado. As referências mais explícitas a Whitehead encontram-se em
Le Pli.
181
DR, p. 451.
182
Em todo o caso, num dos anexos do ensaio de Villani, de Novembro de
1981, com o título Respostas a uma série de questões, Deleuze responde:
“(…) A.V.: O pensamento como audácia e aventura?
G.D.: No que escrevi, creio fortemente nesse problema da imagem do
pensamento e no de um pensamento liberto da imagem. Está já em Différence
et répétition, mas também no Proust, e ainda em Mille Plateaux.
(…) A. V.: A conclusão de Mille Plateaux consiste num modelo topológico
radicalmente original em filosofia. Será ele transponível matematicamente,
biologicamente?
G. D.: A conclusão de Mille Plateaux é no meu espírito uma tábua das
categorias (mas incompleta, insuficiente). Não à maneira de Kant, mas à
maneira de Whitehead. Categoria toma, então, um novo sentido, muito
especial. Gostaria de trabalhar sobre esse ponto. Pergunta-me se há uma
91

Podemos referir que esta necessidade de ir mais longe


aparece em muitos outros textos, por exemplo, nos Dialogues diz-se a
este propósito que a história da filosofia está obstruída pelo problema
do ser, das categorias, etc. Ir mais longe, quer dizer, então, “fazer
com que o encontro com as relações penetre e corrompa tudo, mine o
ser, faça-o oscilar. Substituir o É pelo E. A e B. O E não é sequer uma
relação ou uma conjunção particular, é aquilo que sustenta todas as
relações, (…). Pensar com E, em vez de pensar É, de pensar para É:
o empirismo nunca teve outro segredo. Experimentem, é um
pensamento realmente extraordinário”.183
O E que sustenta todas as relações é o que conecta um ponto
qualquer com outro ponto qualquer, sem o hierarquizar. Este E será
como a noção/conjunção deleuziana de categoria, que conecta, mas
não hierarquiza, não é verbo. Descentra-se, vira-se totalmente para a
experimentação, é aberta, nómada, conectável, desmontável,
divergente. Com ela formar-se-á uma tábua das categorias, ainda que
incompleta e insuficiente (dito pelo próprio Deleuze, como já vimos)
não à maneira de Kant, mas à maneira de Whitehead. As categorias
tomam, então, um novo sentido, muito especial, aproximando-se da
noções empírico-ideais, “fantásticas”.

3. Conclusão: Nota sobre o empirismo ou o uso minoritário da


ontologia

1. Minoritário refere-se a um uso não homogéneo, não


constante, estrangeiro ou desconhecido, fora do sistema. É uma

transponibilidade matemática e biológica possível. É, sem dúvida, o inverso.


Sinto-me bergsoniano, quando Bergson diz que a ciência moderna não
encontrou a sua metafísica, a metafísica de que ela necessitaria. É essa
metafísica que me interessa.” (p. 130).
183
D, p. 75.
92

noção complexa que reenvia para usos na música, na literatura, no


cinema, na linguística, etc.
Minoritário184 não se opõe ao maioritário185 simplesmente por
uma questão de quantidade. Porque se é minoritário
independentemente do seu número. Ser maioritário supõe “um estado
de poder e de domínio”186. Ser minoritário é ser sem propriedade,
cerca ou medida, continuamente em devir, onde há qualquer coisa
que não se deixa nem deixará codificar. Ser maioritário refere-se
também a um uso, mas este nunca pode devir. Para devir seria
necessário atingir “uma amplitude que não cessa de transbordar por
excesso e por defeito o limiar representativo do escalão maioritário.
(…) É a variação contínua que constitui o devir minoritário (…) que se
chama autonomia.”187
Para esta autonomia não é preciso que a parte mais forte seja
maioritária, a que é minoritária pode ter a força do maior, pode possuir
a maior “força”. A força que é minoritária terá então “aquilo a partir do

184
Em CC, p.149, Deleuze, referindo-se ao procedimento de dois grandes
escritores, Kafka e Beckett, mostra que eles não misturam duas línguas, uma
menor e uma maior, o que eles fazem “é mais inventar um uso menor da língua
maior na qual se exprimem inteiramente: eles minoram essa língua, como na
música, onde o modo menor designa combinações dinâmicas em perpétuo
desequilíbrio. Eles são grandes à força de minorar: eles fazem fugir a língua,
fazem-na desfilar sobre uma linha de feiticeira, e não param de a colocar em
desequilíbrio, de a bifurcar e variar em cada um dos seus termos, segundo uma
incessante modulação. Isso excede as possibilidades da fala, atingindo o poder
da língua e mesmo da linguagem. O mesmo é dizer que um grande escritor é
sempre como um estrangeiro na língua em que se exprime, mesmo que seja a
sua língua natal. No limite, as suas forças vêm-lhe de uma minoria muda
desconhecida, que pertence só a ele. É um estrangeiro na sua própria língua:
ele não mistura outra língua à sua língua, ele talha na sua língua uma língua
estrangeira que não preexiste.” (sublinhado nosso).
Ainda sobre o mesmo assunto: “Minoria não é, portanto, o mesmo que
identidade étnica. Ao invés, é uma questão daquele «povo que virá» e ao qual
Kafka apelava quando escreveu a Max Brod que não conseguia escrever em
alemão…” p. 20, Rajchman, John, As Ligações de Deleuze, ed. Temas e
debates, Lisboa, 2002.
185
MP, p. 356. “Por maioritário, nós não entendemos uma quantidade relativa
maior, mas a determinação de um estado ou de um escalão por relação ao
qual as quantidades maiores assim como as pequenas serão ditas minoritárias
(…). Não se pode, portanto, confundir «minoritário» enquanto devir ou
processo, e «menoridade» como conjunto ou estado.”
186
MP, p. 133.
187
MP, p. 134.
93

qual ela se desenvolve e desenvolve toda a sua potência; a hybris, a


desmesura, deixa de ser simplesmente condenável”188.
Por conseguinte, ser minoritário, em devir, é poder devir, é
devir toda a gente, “é fazer mundo, fazer um mundo”189. O problema
"de um devir-minoritário: [é] não fazer como, não mimetizar a criança,
o louco, a mulher, o animal, o gago ou o estrangeiro, mas devir tudo
isso, para inventar novas forças ou novas armas.
O mesmo acontece com a vida.”190 Passar entre, irromper pelo
“meio”, é isso mesmo o devir. Não é nem um, nem dois, nem relação
entre ambos, mas entre-dois, um “no man’s land”, “uma relação não
localizável”191, zona de indiscernibilidade, velocidade absoluta do
movimento. Um devir-animal transfere qualquer coisa do animal para
o homem e qualquer coisa do homem para o animal, numa zona de
indiscernibilidade intensiva. Multiplicidades e fluxos passam neste
novo corpo que não se pode mais traduzir, nem interpretar (em
significados e significantes). Um corpo/vida feito de correntes de
energia, jogos de forças sempre exteriores umas às outras. Não um
corpo vivido subjectivo (dos códigos e das representações), mas um
corpo amplo, que sem cessar tem de nos levar mais longe, para fora
e em intensidade – corpo da Terra, corpo da Natureza. Atravessado
por povos que estão em nós e que desconhecemos, mas que nos
fazem falar e a partir dos quais se produz a voz e extraem as
sensações.

2. Para Deleuze, a questão do empirismo diz respeito - a essa


amplitude que não cessa de transbordar, selvagem e potente, - à
“experiência”, experimentação, ao empirismo transcendental ou
ciência do sensível.
Se o inteligível vem ou não do sensível, não é o seu problema.
Mas sim, extrair o ser da sensação ou o ser do sensível e fazer dele
188
DR, p. 95.
189
MP, p. 343.
190
D, p. 15.
191
MP, p. 360.
94

experimentação. A sua filosofia está, pois, inteiramente virada para a


experimentação. E não está, nem aproximadamente, para o que tem
ocupado a história da filosofia, a saber, o que deve ser o primeiro
princípio, ou que condições podemos pensar para que uma
experiência seja possível.
O empirismo tem sido, quase sempre, definido numa relação
de inversão ou reacção ao racionalismo. Ou então, como um poder
que a experiência tem ao seu alcance, um primeiro meio para
descobrir a realidade. Surgindo, esta, sempre com o apoio da
sensação, que nos permite apreender o objecto, (por relações de
sucessão e de simultaneidade, causalidade, semelhança e mesmo
oposição) e dependendo do uso que fazemos do conhecimento,
assim estruturamos o universal. O empirismo pela consciência
codificaria os movimentos em clichés, transformaria, produzindo as
representações. O que não se pode já sustentar, a não ser como uma
elaboração didáctica que pretendamos estilhaçar, por onde queiramos
que passe “um abalo sísmico”. O que seria interessante tanto para um
músico, como para um pintor, um escritor, um filósofo, mesmo para
uma criança ou um louco (não são eles, afinal, que os provocam – os
abalos sísmicos?), porque se lhes opõem (aos clichés) “e fabricam
mesmo, para se lhe oporem, um trampolim para saltar. A história não
é feita senão por esses que se opõem à história”192.
O empirismo superior ou transcendental193 ensina-nos “uma
estranha «razão», a multiplicidade e o caos da diferença (as
distribuições nómadas, as anarquias coroadas)”194.

192
MP, p. 363.
193
“Empirismo Transcendental não quer dizer efectivamente nada se não
tornarmos precisas as condições. O «campo» transcendental não deve ser
decalcado do empírico, como o fez Kant: deve a este título ser explorado por
sua conta, isto é, «experimentado» ( mas trata-se de um tipo de experiência
muito particular). É este tipo de experiência que permite descobrir as
multiplicidades, mas também o exercício do pensamento ao qual reenvia o
terceiro ponto [enquanto actividade criativa, não contemplativa, nem reflexiva].
Pois, creio que, além das multiplicidades, o mais importante para mim foi a
imagem do pensamento tal como a analisei em Différence et répétition, depois
no Proust, e em toda a parte.” In Lettre-Preface de Gilles Deleuze do livro de
Jean-Clet Martin em 13 de junho de 1990.
95

Assim como o “poeta Blood exprime a profissão de fé do


empirismo transcendental como verdadeira estética”195, Artaud
estabelece o princípio de um empirismo transcendental. Porque é de
grande importância, voltamos à noção de “genital inato”.
Este pensamento que nasce no pensamento e não é dado no
inatismo é simplesmente experimentado. Não “se trata de saber se o
pensamento é inato ou adquirido. Nem inato nem adquirido, ele é
genital, isto é, dessexualizado, destacado deste fluxo que nos abre ao
tempo vazio. «Sou um genital inato», dizia Artaud, querendo dizer
igualmente um «adquirido dessexualizado», para marcar esta génese
do pensamento num Eu sempre rachado. Não se trata de adquirir o
pensamento, nem de exercê-lo como algo inato, mas de gerar o acto
de pensar no próprio pensamento, talvez sob o efeito de uma
violência”196.
Ele será o único meio (de desfazer os nós) de não fazer o
decalque, porque é o contrário do juízo. Não haverá mais confusão,
se se perceber que o empirismo197 sempre teve outros segredos que
não se submetem a limites identitários. O verdadeiro mundo empirista
não pertence a nenhum objecto, age fora da representação empírica,
como não pertence ao sujeito. É então uma “pura corrente de
consciência a-subjectiva”198.
“É este o segredo do empirismo. De modo algum o empirismo
é uma reacção contra os conceitos, nem um simples apelo à
experiência vivida. Pelo contrário, empreende a mais louca criação de

194
DR, p. 123.
195
“«A natureza é contingente, excessiva e mística, essencialmente… As
coisas são estranhas… O universo é selvagem…” DR, p. 124.
196
DR, p. 203. A ideia de um “Eu rachado” (fêlé) vem da ideia de que o tempo,
em Kant, divide o Eu em dois porque o sentido interno impede-o de se auto-
conhecer como númeno.
197
Idem, p. 209. Os segredos do empirismo terão sido, no entender de
Deleuze, levados ao mais alto grau por Hume. Uma das originalidades deste
filósofo teria sido a de afirmar que as relações são exteriores aos seus termos.
“Assim, o verdadeiro mundo empirista desenvolve-se pela primeira vez em toda
a sua extensão; mundo de exterioridade, mundo em que o próprio pensamento
está numa relação fundamental com o Exterior, (…) – mundo em que a
conjunção «e» destrona a interioridade do verbo «é»”.
198
IUV, p. 3.
96

conceitos, uma criação jamais vista ou ouvida. O empirismo é o


misticismo do conceito e o seu matematismo. Mas, precisamente, ele
trata o conceito como o objecto de um encontro, como um aqui-agora,
ou melhor, como um Erewhon de onde saem, inesgotáveis, os “aqui”
e os “agora” sempre novos, diversamente distribuídos199 . Só o
empirista pode dizer: os conceitos são as próprias coisas, mas as
coisas em estado livre e selvagem, para além dos «predicados
antropológicos». Eu faço, refaço e desfaço os meus conceitos a partir
de um horizonte móvel, de um centro continuamente descentrado, de
uma periferia sempre deslocada que os repete e os diferencia. Cabe à
filosofia moderna ultrapassar a alternativa temporal-intemporal,
histórico-eterno, particular-universal… “200
Cabe-lhe pois acabar com os dualismos201 . Inventar uma nova
maneira de pensar, experimentando. Precisamente, “a única maneira
202
de sair dos dualismos, será, passar entre, intermezzo” , ser-entre,
ou não havendo maneira de pacificar o pensamento, pela sua própria
natureza, pela violência, pela crueldade, por abalo sísmico, por
estranheza. Esta única maneira não pode ainda ser dita na
linguagem, por isso é forçada, violenta, cruel.
Virá o inteligível do sensível? Vimos que este tipo de
formulação da questão não nos pode já servir. A origem terá de
designar o que é primeiro na experiência “real” (que não é nunca “em
geral” ou simplesmente “possível” ), por oposição aos conceitos da
representação. O uso minoritário permite resolver o problema dos
dualismos, porque excederá, transbordará o possível, sendo devir,

199
Ver acima nota sobre Erewhon.
200
DR, p. 38.
201
D, p. 159: “Podem objectar-nos que não saímos do dualismo (…). Mas o
que define o dualismo não é um número de termos, nem tão-pouco se sai do
dualismo juntando-lhe outros termos (x>2). Só se sai efectivamente dos
dualismos deslocando-os como se de um fardo se tratasse, e quando se
encontra entre os termos, quer sejam dois ou mais, um desfiladeiro estreito
como uma margem ou uma fronteira que vai fazer do conjunto uma
multiplicidade, independentemente do número de partes.”
202
MP, p. 339.
97

não é um, nem dois, mas entre-dois. Pode-se, desde logo203, e como
já analisámos na primeira parte, conceber um outro procedimento ou
uma variação do primeiro, para libertar o afecto dos sentimentos, ou
extrair o ser da sensação – será o estilo, melhor, o não-estilo.
Que descobriu então este novo empirismo?
Uma “geografia de relações”, um “meio”, um empirismo
superior.
Um uso minoritário da ontologia que não faz outra coisa senão
chegar à “experiência real”. Para isso chega ao ponto extremo,
selvagem e excessivo - minando o ser - procurando, em primeiro
lugar, descobrir as condições dessa “experiência” e, em segundo,
pensar que essas condições não poderão ser mais largas que o
condicionado.
A descoberta destas novas condições supõe que a experiência
engendra uma experiência que não é já empírica: “falaremos de
empirismo transcendental, por oposição a tudo o que faz o mundo do
sujeito e do objecto. Há qualquer coisa de selvagem e potente num tal
empirismo transcendental. E não é certamente o elemento da
sensação (empirismo simples), uma vez que a sensação não é senão
um corte na corrente da consciência absoluta. É antes, por mais
próximas que estejam duas sensações, a passagem de uma à outra
como devir, como aumento ou diminuição de potência (quantidade
virtual).”204

Resumindo, o empirismo transcendental considera o


transcendental incrustado no empírico, o virtual no actual, de tal
maneira que todo o objecto sensível é definido como empírico-
transcendental. Isto implica a recusa da consciência como definindo
um campo transcendental, e de um sujeito “constituinte” à maneira de
Husserl.

203
Por exemplo, desde Proust et les signes.
204
I UV, p. 3.
98

Deleuze considera que a fenomenologia jamais poderá


alcançar “o númeno mais próximo do fenómeno” ou esta qualquer
coisa selvagem e potente. A consciência fenomenológica que
descreve o objecto reduz o real a uma representação, criando uma
exterioridade feita de categorizações (relações, identificações,
semelhanças e analogias), que permitem subjectivar, quer dizer,
identificar-se pelo exterior com uma consciência interior. Esta
consciência exprime-se enquanto “se reflecte sobre um sujeito que a
reenvia para objectos.”
A consciência como um fluxo incessante será variação
contínua, feita de multiplicidades, por todo o lado difusa, mas, na
periferia e não já no centro, exprimindo-se de maneira impessoal e
não por um sujeito ou objecto. Tornando a vida necessariamente sem
sujeito e os corpos unicamente feitos de afectos e de movimentos (um
vento, um rosto, uma voz, um esgar, um ser).
Esta consciência atravessará o campo transcendental e não há
nada “que a possa revelar”205. O novo206, é que este pensamento quer
ser criador, (perseguindo um novo direito que é o de não se deixar
representar; nem querer começar realmente, senão, pelo meio) e quer
finalmente, encontrar, não pela experiência, mas pela

205
Idem.
206
Como dizer das coisas e do ser que não há antes nem depois? Uma nova
espécie de revolução copernicana esboça-se em Deleuze. Noção talvez
inadequada, que não chegará a alcançar a complexidade maior desta filosofia
e certamente também não dizendo suficientemente o que de novo há em
Deleuze, o que ele pensou para a ontologia. Esta revolução é a revolução não
da experiência que descobre o seu lugar, mas da experimentação. Antes da
primeira “revolução copernicana” tínhamos pontos fixos (o mundo, Deus, o eu,
centro, etc.), com ela pode dizer-se que continuámos ainda com pontos que
permaneceram imóveis. Agora, com Deleuze, as coisas e o próprio ser querem
sair do seu longo aprisionamento categorial, da sua fixidez unificadora. Não
poderão mais ser estáveis e imóveis. Há um “corte” que é feito no caos. O ser
não é imóvel, mas unívoco. “Tal condição só pode ser preenchida à custa de
uma inversão categórica mais geral, segundo a qual o ser se diz do devir, a
identidade se diz do diferente, o uno se diz do múltiplo, etc. Que a identidade
não é primeira, que ela existe como princípio, mas como segundo princípio,
como algo tornado princípio; que ela gira em torno do Diferente, tal é a
natureza de uma revolução coperniciana que abre à diferença a possibilidade
do seu conceito próprio”. DR, p. 100. Nesta passagem Deleuze referia-se a
uma revolução coperniciana, em Nietzsche, mas outro tanto se pode dizer
relativamente ao que ele próprio quer realizar.
99

experimentação, uma intensidade, que é “uma vida”, sem sujeito, uma


Imanência sem consciência (sem Sujeito nem Objecto).207
O “que força a sentir e aquilo que só pode ser sentido são uma
mesma coisa no encontro” essencial – é um αισθητεον que não é um
centro do mundo, mas, ao contrário deixa o pensamento,
perigosamente, sem nada fixo, sem método para encontrar tesouros,
em ruptura com os limites. Trata-se de um movimento que encontra,
um movimento (transcendental) desconhecido, não apreensível pela
consciência e portanto não fixado por uma representação, um
movimento puro que se exprime de maneira impessoal por uma não-
relação, insensível: “Entre a sua vida e a sua morte [da personagem
de Dickens – um canalha], há um momento que não é mais do que
uma vida jogando com a morte. (…) para além do bem e do mal, uma
vez que só o sujeito que a incarnava no meio das coisas a tornava
boa ou má.”208

3. Uso minoritário, novo empirismo, rizoma. Eis porque não


devemos ter árvores na cabeça:
Porque a natureza não é assim, diz Deleuze. Não é assim,
quer dizer, não tem origem nem fim, não se deixa fixar na
representação, não é arborescente, não tem um modelo. E o
pensamento também não, “não é arborescente, e o cérebro não é
uma matéria enraizada nem ramificada. (…) A árvore ou a raiz
inspiram uma triste imagem do pensamento que não cessa de imitar o
múltiplo a partir de uma unidade superior, de centro ou de segmento.
(…) Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que
comportam centros de significância e de subjectivação”209
A árvore/raiz, imagem clássica do mundo, é contra-natura, age
como modelo e como decalque transcendente. Assentando na
reflexão, a sua fórmula concretiza-se no Uno que se torna dois

207
Cf. IUV.
208
IUV, p. 5.
209
MP, p. 25.
100

(modelo da lógica binária), distribui-se e hierarquiza-se em dualismos.


Esta imagem “dominou a realidade ocidental e todo o pensamento
ocidental, da botânica à biologia, a anatomia, mas também a teologia,
a ontologia, toda a filosofia”210. Plantou-se nas nossas cabeças, nos
nossos corpos.
Foi preciso que o mundo se tornasse caos para se poder ver
que a natureza pode ser um movimento entre, um fluxo de variação
contínua. O sistema que não é modelo e explicaria o sentido desta
nova imagem do pensamento e do mundo, seria o rizoma211. Sistema
que não é modelo porque o rizoma não se opõe a nada, age como
processo imanente que inverte o modelo. “O que conta é que a
árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como dois modelos: um
age como modelo (…); o outro age como processo imanente”212 .
Em primeiro lugar, aparece como ruptura (fazendo ruptura não
pode haver dualismo ou dicotomia), anti-método, multiplicidade que
não se deixa codificar, plano, fluxo de variação contínua contendo o
melhor e o pior. Conectando um ponto qualquer com outro ponto
qualquer, não começa nem acaba, nem reenvia para nada da mesma
natureza. Se se pode falar de génese, será uma génese do meio, com
múltiplas entradas. Não é o Uno que se torna dois, três, quatro…Não
faz unidades, mas é multiplicidade, entre as coisas, inter-ser. Procede
por variação, expansão, conquista, captura, conectando certas
multiplicidades, o mundo não aparecerá mais tripartido – campo da
realidade, campo da representação, campo da subjectividade.

Em segundo lugar, teremos uma ideia mais aproximada a partir


das características do rizoma, enunciadas em princípios:
210
MP, p. 27.
211
A primeira edição de « Rizoma » aparece em 1976. E constituirá, em 1980,
a introdução à obra escrita em conjunto com F. Guattari, Mille Plateaux.
Rizoma é um termo derivado da botânica que se define por oposição aos
sistemas arborescentes. Os sistemas rizomáticos são sistemas de caules
subterrâneos mas que também podem ser aéreos. Não se distribuem nem
hierarquizam como os primeiros, quer dizer, sucessivamente e a partir de um
centro. Derivam infinitamente e conectam-se transversalmente.
212
MP, p. 31.
101

1º conexão e 2º heterogeneidade - Há conexões, em infinitos


domínios, mas, para este princípio, não é importante o ponto em que
um rizoma se conecta com qualquer outro. O rizoma conecta
heterogéneo com heterogéneo, livremente. Dessa conexão resulta um
modo de individuação específico – hecceidade213 .

3º multiplicidade – Múltiplo distingue-se de multiplicidade. Não


é considerado em si mesmo mas sempre reportado à unidade,
enquanto princípio transcendente, fundamento. Quando é tratado
como multiplicidade não há nenhuma relação com o uno como sujeito
ou como objecto, não necessita mais da unidade para formar um
sistema. As multiplicidades são rizomáticas, não têm sujeito, nem
objecto, quer dizer não têm significação conceptual mas somente
determinações de grandezas e intensidades, dimensões libertas de
qualquer subordinação. Portanto, são autónomas, nómadas, sempre
susceptíveis ao devir. São linhas em vez de pontos porque é o
movimento e não os elementos que ele atravessa que constrói a
multiplicidade.

4º ruptura a-significante – Um rizoma pode (no que tem de


territorializado, organizado, atribuído, etc.) romper-se num lugar
qualquer, mas não cessa de se reconstituir. Pelas linhas de
desterritorialização não cessa de fugir. “Há rupturas no rizoma de
cada vez que as linhas segmentárias explodem numa linha de fuga
(…). Essas linhas não cessam de se reenviar umas às outras. É por
isso que não pode haver dualismos ou dicotomias.”214 Nos sistemas

213
Termo que Deleuze foi buscar a Duns Scot, dando-lhe um significado
próprio: “É todo o agenciamento no seu conjunto individuado que se julga ser
uma hecceidade; é ele que se define por uma longitude e latitude, por
velocidades e afectos independentemente das formas e dos sujeitos que não
pertencem senão a um outro plano. (…) Uma hecceidade não tem nem
princípio nem fim, nem origem nem fim; ela está sempre no meio. Ela não é
feita de pontos, mas somente de linhas. Ela é Rizoma.” MP, p. 321.
214
MP, p. 16.
102

arborescentes os pontos de ruptura são localizáveis e significantes.


No rizoma não. Se os impasses, os dualismos aparecem, tanto
melhor, diz Deleuze, só os evocamos para os destruirmos: “São
necessários correctores cerebrais que de cada vez desfazem os
dualismos (…) que são o inimigo, mas o inimigo de qualquer maneira
necessário, o móvel que não cessamos de deslocar.”215.

5º e 6º cartografia e decalcomania – Um rizoma é uma carta,


não um decalque. O decalque é o modelo de todo o sistema
arborescente, implica a ideia de reprodução (ao infinito), imitação,
representação, assenta numa lógica binária. É qualquer coisa que se
dá já feita. O decalque, a representação, quer reproduzir o real. A
carta é absolutamente necessário fazê-la, porque está sempre por
fazer. Inteiramente virada para a experimentação. É aberta, é
conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,
susceptível de receber constantemente modificações. Estrangeira a
toda a ideia de eixo genético, é acentrada, não hierárquica e não
significante.
Resumindo: “A árvore impõe o verbo « ser », mas o rizoma é
formado pela conjunção «e…e…e…», no meio, no lugar onde as
coisas ganham velocidade.

Rizoma Árvore
Imagem do Mundo Imagem do Mundo

Conecta um ponto qualquer Tem uma forte unidade principal.


com outro ponto qualquer e cada Tem pontos fixos.
um dos seus traços não reenvia É um sistema centrado, ordenado,
necessariamente a traços da hierárquico, com ligações
mesma natureza. É descentrado, preestabelecidas, significante,

215
MP, p. 31.
103

não hierárquico, não significante, subjectivo, reflexivo.


sem subjectivação, imperceptível.

Põe em jogo regimes de É homogéneo.


signos muito diferentes e mesmo
estados de não-signos. Faz
agenciamentos.

Não se reduz nem ao Uno É feito de dicotomias, dualismos, eixos.


nem ao múltiplo; não é múltiplo O Uno torna-se 2, 3, 4, 5…….. é
nem Uno. Não é feito de unidades, múltiplo.
mas de dimensões, de direcções
móveis, multiplicidades sem sujeito
nem objecto.

Não começa nem acaba, é Tem raízes, filiação, fundamento.


sempre um meio pelo qual cresce e Ser, estrutura.
transborda, inter-ser, conjunção
«e». Não há pontos ou posições,
mas linhas.

Multiplicidades lineares a n Múltiplo. Estrutura que se define por um


dimensões, sem sujeito nem conjunto de pontos e de posições, de
objecto, que permanecem sobre relações binárias e biunívocas entre
um plano de consistência e de que esses pontos, unidades de medida.
o Uno é sempre subtraído (n-1) e
se definem pelo fora.
104

Linhas: de segmentaridade, Ligações localizáveis entre pontos e


de estratificação, de fuga, etc. posições.

É anti-genealógico, anti- logos, transcendência,


logos. Interioridade, genealogia.

Não é objecto de Imita, reproduz, decalca


reprodução, é heterogéneo. o mundo.

Procede por variação, Modelo.


expansão, conquista, captura,
agenciamento.

Carta. Decalque, fotos, desenhos.

Nómada. É Metódico, sedentário, pedagógico,


iniciático, simbólico.
Inversão da ontologia. ontologia.

Direcção perpendicular, Alto, baixo, direito, esquerdo.


movimento transversal.

B. Princípios da ontologia deleuziana


105

Uma vez rejeitadas as categorias, a representação, a


velha ontologia, etc., a ontologia da diferença obedecerá a cinco
princípios fundamentais:

a. A diferença é ontologicamente primeira, sendo a Identidade


e o Uno dela derivados.
Este enunciado não é um postulado. Resulta da crítica que
Deleuze faz à ontologia tradicional que subordina a verdade e o
sentido a um princípio primeiro identitário. A sua crítica das categorias
como representação, da representação como unificadora, do
fundamento como instância una uniformizadora das diferenças – leva
a uma série de aporias em que a diferença se diz sempre de um
Mesmo (Ser). O que leva, afinal, à impossibilidade de descrever a
criação de sentido, o qual permanece amarrado às figuras do
fundamento (o Eu, Deus, o Mundo).
Ao nível do conceito, Deleuze põe claramente o problema:
“consideremos duas proposições: só o que se assemelha difere; só as
diferenças se assemelham. A primeira fórmula põe a semelhança
como condição da diferença; exige a possibilidade de um conceito
idêntico para as duas coisas que diferem, com a condição de se
assemelharem; implica uma analogia na relação de cada coisa com
este conceito; e comporta, enfim, a redução da diferença a uma
oposição determinada por estes três momentos.”216
Se assim é há que afirmar que “só as diferenças se
assemelham”. Decorrem daqui dificuldades maiores para uma filosofia
da diferença: a posição de uma diferença primeira implica a
determinação de “uma diferença em si mesma”, não relativa a uma
identidade prévia. Essa diferença primeira tem de ser pensada sem
conceito: a ontologia implicará todo um mundo “sub-representativo”
em que assentará a produção do sentido (teoria do acontecimento,

216
DR, pp. 206-207.
106

teoria da arte, teoria da vida como devir); enfim, se a diferença é


primeira, será necessário mostrar como dela (da diferença “em si
mesma”) decorre a Identidade, o Uno, o Mesmo. Desta última tarefa
encarregar-se-ão a teoria deleuziana das séries (Différence et
répétition, Logique du sens), a teoria das linhas rizomáticas (Mille
Plateaux), a teoria do Todo contra o Conjunto (L’Image-Temps).
A unidade não resultará de uma síntese do múltiplo mas
paradoxalmente do movimento de diferenciação – que provoca
aparelhamentos, ressonâncias e movimentos forçados – das séries
das multiplicidades de unidades diferenciais. É toda uma outra
concepção da unidade e do idêntico que é assim proposta, através de
um pensamento da diferença de uma rara complexidade. O amor não
será já a fusão-união de dois elementos diferentes mas
complementares (como o pretende o discurso trivial da doxa sobre o
amor), mas a não relação poderosa que se estabelece entre duas
séries diferentes de afectos, as quais, graças aos movimentos de
diferenciação interna que uma série provoca na outra ( por eco e
ressonância, movimentos forçados), entram em devir diferenciante em
si mesmas – devindo assim, cada uma, cada vez mais o que ela (a
não relação) é (Nietzsche). Cada série, ao diferenciar-se ainda mais
por acção da outra, afirma a sua identidade própria, e a identidade
(paradoxal) de uma não relação (não semelhança, não afinidades,
não convergência de interesses comuns, etc.) entre as duas.

b. No primeiro capítulo de Différence et répétition o ser é


entendido como Voz. Como uma só Voz que se exprime, traça e
revela o mundo. Fazendo-o, desde sempre, será a ontologia a dar,
apesar das suas dificuldades, insuficiências e sucessivos
renascimentos, voz ao ser.
107

Esta Voz não é a voz que preexiste à linguagem217 . Não é a


voz que já dispõe de todos os dispositivos do que vai ser a linguagem
organizada, nem a que fala antes das palavras, como também não é
a voz de Deus (que fala através e por detrás do profeta), nem a voz
que consola, ataca, julga ou se cala. Não é a voz da consciência.
Precisamente, esta voz de que falamos, nunca se cala. É a Voz
que “faz o clamor do ser”. A mesma que está por detrás da voz, sem
nada por detrás dela, sem identidade prévia, não apresentando
significações proposicionais, mas sempre por vir e sempre de uma só
vez. Um movimento desconhecido, puro, transcendental. Não é a voz
da consciência, é a voz da consciência a-subjectiva.
Na afirmação de que o ser é Voz, existe a ideia de que o ser é
expressão. O Ser “diz-se”, e a sua expressão é a voz. O Ser não se
vela ou se esconde, se bem que os entes possam recobri-lo, envolvê-
lo, mascará-lo. O Ser de Deleuze aproxima-se, neste aspecto mais da
Substância de Espinosa do que do Ser de Parménides ou de
Heidegger: o próprio do Ser é exprimir-se sempre, na plenitude da
sua potência infinita. Que o Ser seja expressão significa que os entes
são portadores e criadores de sentido. Não há mundos mudos, mas
um mundo de múltiplas vozes, um “clamor”. Tudo “fala”, exprime,
mesmo o silêncio e a mudez. Daí a importância dos signos. A voz
clama nos signos de mil maneiras, tem mil maneiras diferentes de se
dizer. A Voz é ela própria uma multiplicidade de vozes. Mas se
Deleuze afirma o Ser como Voz é para insistir ao mesmo tempo na
univocidade e nos infinitos modos como o ser se diz (“os entes são
múltiplos e diferentes sempre produzidos por uma síntese disjuntiva,
eles mesmos disjuntos e divergentes, membra disjoncta”218). Voz
significa expressão. Não uma, ou tal expressão (linguística, pré-
verbal, etc.), mas pura expressão que constitui o Ser; não um Ser que
“pré-existe”, por assim dizer, à expressão, mas que é ser “porque” é
expressão (voz). Ser é ser expressão.
217
Cf. LS, p. 226.
218
LS, p. 210.
108

Ao mesmo tempo que se afirma o ser como expressão (e não


um “Ser expressivo”), insiste-se na sua não substancialidade. O Ser
não se exprime em entes, como suas manifestações, mas em
singularidades pré-individuais, como multiplicidade de vozes. A
unidade do Ser não é substancial, como a unidade da Voz não é a de
uma linguagem. Como escreve Deleuze no fim de Différence et
répétition, referindo-se a Espinosa e pensando o eterno retorno como
eixo (sempre deslocado) do seu projecto de ontologia: é preciso “fazer
girar a substância à volta dos modos”.
O ser poderá ser neutro, sem propriedades. Ainda assim a sua
Voz faz com que o clamor atravesse a Natureza inteira, movendo-se
entre as coisas, não uma, nem duas, mas entre-duas, exprimindo:
1. Uma “mesma voz para todo o múltiplo de mil vias, um
mesmo Oceano para todas as gotas, um só clamor do Ser para todos
os entes. Mas na219 condição de ter atingido, para cada ente, para
cada gota e em cada via, o estado de excesso, isto é, a diferença que
os desloca e os disfarça, e os faz retornar, girando sobre a sua ponta
móvel.”220
Ou seja, se há uma unidade do Ser (“um mesmo Oceano para
todas as gotas”), ela não se compreende senão em relação com a
diferença e com o que difere: a unidade não de uma identidade, um
Mesmo, mas da própria “diferença individuante”. É o excesso da
intensidade que cria a diferença móbil no próprio Ser, quer dizer
definindo-se como Diferença em si. A Voz não possui pois uma
unidade primeira de sentido, mas cria a sua unidade no movimento
excessivo de diferenciação individuante. A Voz é clamor das infinitas
diferenças que são porque se exprimem, e exprimindo-se
diferentemente afirmam a unidade da Voz e do Ser como dupla
unidade: do movimento incessante de diferenciação (ou da diferença
diferenciando-se) e da própria não-relação dessa unidade e da
diferença. É isso que é a Voz, expressão – de que nascerão o sentido
219
DR, p. 478. Correcção à trad. Port.
220
Idem.
109

e as significações, inseparáveis da Voz como as gotas o são “do


mesmo Oceano”. Eis o sentido profundamente paradoxal da ontologia
deleuziana;
2. E “um só Ser para todas as formas e vezes, uma só
insistência para tudo o que existe, um só fantasma (fantôme) para
todos os vivos, uma só voz para todo o rumor e todas as gotas do
mar.”221
Na proposição ontológica, diz Deleuze, o designado e o sentido
são ontologicamente o mesmo. Voz=Ser. Igual para todas as
modalidades, não sendo elas mesmas iguais. Assim sendo, esta Voz
que “se reporta a todos os seus modos, os mais diversos, os mais
variados, os mais diferenciados”222 é então a Voz da diferença, a
mesma para o designado e para o sentido, para todas as formas,
vezes, entes, vivos, gotas do mar, vias, rumores, etc. Nela há uma
circulação, um movimento duplo, de entre-dois, que é “expressão” no
seu conjunto.
E se há uma voz que “não dispõe ainda de univocidade” não é
esta. Deleuze dirá que esta é, precisamente, unívoca, como o ser
será. “A univocidade do ser significa que o ser é Voz”, não há lugar
para equívocos. A revelação do unívoco não pode desligar-se do Ser.
A condição é mesmo que ele chegue como um acontecimento que se
diz num só sentido de todos os que são diferentes, dizendo-se,
acontecendo, quer dizer, diferindo. Enquanto tal, não se confunde
com aquilo de que se diz. Sendo multiplicidade e diferença, o
essencial da univocidade presente em todos os entes é sem
intermediário nem mediação, imanência.
Aquilo em que se diz não é portanto o mesmo, embora ele se
diga num só e mesmo sentido, sempre para cada diferença. O
unívoco não significa o mesmo.

221
LS, p. 211.
222
DR, p. 93.
110

A condição, dizíamos, é para todas as vezes atingir na


extremidade vertiginosa o estado de excesso das velocidades e
lentidões, dos movimentos (o que se contrai e distende, separa e
afronta, o movimento duplo), dos ritmos.
Numa palavra, com esta Voz que tudo atravessa, pode atingir-
se os movimentos do espírito, do pensamento, através do espaço e
do tempo incarnados nos corpos, na voz, nas unidades pré-
individuais. Através de uma nova definição do Ser e das categorias,
(que não faz mais distribuições e hierarquizações sedentárias, mas
sim nómadas, as que mais lhe convêm) num salto para lá dos limites
do empírico, atinge-se o real (sonoro), somos atingidos pelo clamor
que é trazido pelo vento, extraindo daí o ser para melhor o distinguir,
deslocando-o e restabelecendo um mínimo que seja, ou uma unidade
real mínima, o mínimo mais mínimo do mínimo real. Se mais não se
atingir, pelo menos atinge-se um fio de Voz que permite uma abertura
à univocidade, à realização da ontologia.
“As singularidades ou os acontecimentos constitutivos de uma
vida coexistem com os acidentes da vida correspondente, mas não se
agrupam nem se dividem da mesma maneira. Eles comunicam entre
si de uma maneira completamente diferente dos indivíduos.”223
Porque é uma voz de uma outra natureza que realiza esse
agrupamento entre singularidades pré-individuais, hecceidades (não
entre indivíduos, não entre unidades macroscópicas de individuação).
Os “entes” de Deleuze que dizem o Ser são pois instâncias não
empíricas como os “acidentes da vida corrente”, são hecceidades.
Por conseguinte, se há mesmo a possibilidade (e a
necessidade filosófica) de elaborar uma ontologia é porque é da
natureza do ser ser expressivo, porque de qualquer maneira ele se
diz. A elaboração da ontologia equivale a dar forma à expressão do
ser ou ao Ser como expressão. Afirmação de todos os acasos num só

223
IUV, p. 5.
111

lance, de todos os lances num só. Afirmar224, quer dizer, tudo afirmar
sem julgar.
É a Voz que afirma a vida e que afirma o mundo, numa
intensidade que não se deixa aprisionar.

c. O ser é virtual, quer dizer, real, e a coisa individual compõe-


se de duas faces, uma virtual e outra actual, numa só.
“O virtual não se opõe ao real, mas somente ao actual. O
virtual possui uma plena realidade enquanto virtual. (…) O virtual deve
ser mesmo definido como uma estrita parte do objecto real – como se
o objecto tivesse uma das partes no virtual e aí mergulhasse como
numa dimensão objectiva.”225
A virtualidade do ser não significa um possível ou um ser em
latência. Como o nota bem François Zourabichvili, o virtual é uma
dimensão do mundo que contém o não dado do que é dado
(actual).226 Virtual opõe-se a possível e empírico: é a dimensão não
dada do dado, a “parte” do objecto que escapa à consciência e o
coloca sob um princípio de inconsciência. Porque o virtual é composto
de “efémeros”, partículas ou imagens que todo o objecto emite, e que
aparecem e desaparecem num tempo “mais pequeno do que o
mínimo de tempo contínuo pensável”227 – brevidade que coloca o
virtual sob um princípio de incerteza. O objecto é assim formado de
duas partes diferentes e ímpares: actual e virtual.
O ser é virtual, mas em contínuo processo de actualização por
diferenciação: o actual correspondente ao virtual não é a sua cópia
nem a sua imagem semelhantes ou análogas. Inversamente, Deleuze
desenvolverá uma teoria da imagem cristal, em que o actual está

224
“Afirmar não é declarar ou assumir, mas sim iluminar, desenterrar, soltar o
ar fresco das outras possibilidades, combater a estupidez e o cliché.”
Rajchman, obra citada, p. 21.
225
DR, p. 342.
226
Cf. François Zourabichvili, Le Vocabulaire de Deleuze, “Virtuel”, Ed. Ellipses,
2003, p. 89.
227
D, p. 179.
112

sempre em vias de sofrer um processo de virtualização ou


“cristalização”228.
É no plano de imanência que estes processos se desenrolam,
de tal forma que o plano é ao mesmo tempo virtual e actual.
A afirmação do virtual como real abre o ser à imanência,
impedindo todo o tipo de transcendência: o virtual é do mundo, é o ser
do mundo, não se assimilando a qualquer além-mundo, Deus ou
fundamento. Parece-nos, pois, uma incompreensão de Badiou, que
afirma a não existência do virtual, quando ele critica o uso da noção
por Deleuze, para a afirmação do ser como impróprio, ou da
impropriedade do ser. Para Badiou, o virtual serve para retirar ao ser
as suas propriedades: “trata-se da impropriedade do ser nada ser
senão a defecção das propriedades através da sua virtualização; e
de, ao invés as propriedades do sendo [dos entes] não serem mais
que o simulacro terminal da sua actualização”229. Ora, como se disse
o virtual para Badiou é um “ignorantie asylum”230 virtual é aqui
caracterizado como não real ou irrealizante – o contrário da
concepção explícita de Deleuze.

d. “Nunca houve senão uma proposição ontológica: o Ser é


unívoco”231 .
O Ser diz-se univocamente, a Voz supõe a univocidade do ser.
Primeiramente a univocidade do ser até pode significar
igualdade do ser, mas em última instância univocidade significa que é
a mesma coisa que vem e que se diz de todas as diferenças, ser é o

228
Cf. Idem, p. 184; ver, sobre a imagem cristal, L’Image-Temps.
229
Alain Badiou, Breve tratado de ontologia transitória, Lisboa, Instituto Piaget,
1998, p. 64.
230
Alain Badiou, Deleuze, «La clameur de l’Être», Paris, Hachette, 1997, p. 81.
231
“Il n’y a jamais eu qu’une proposition ontologique: l’Être est univoque.” DR,
ed. Fr. p. 52.
113

voltar da diferença. O ser é unívoco232, ontologicamente comum,


igual, mas reporta-se a “diferenças individuantes”.
O essencial da univocidade não é que o ser se diga num único
e mesmo sentido. É, precisamente, que ele se diga num único sentido
de todas as suas diferenças individuantes ou modalidades
intrínsecas. Chega-se à univocidade quando a identidade das coisas
se dissolve, ou melhor, diverge: “O que é ou retorna não tem qualquer
identidade prévia e constituída”233.
Em segundo lugar, a univocidade é ao mesmo tempo
distribuição e hierarquia. Para Deleuze não é uma distribuição, que se
assegura com a partilha do conceito, nem uma hierarquia, que se
assegura pela medida dos sujeitos, mas sim uma distribuição que é
nómada e uma hierarquia que é anarquia coroada.

Distribuição e hierarquia serão tomadas por Deleuze em


sentidos muito diversos:

- Distribuição por analogia. Trata-se do sentido de distribuição


que se vai excluir. Implica uma partilha do distribuído e a essa partilha
aplicam-se as regras da analogia e os princípios da repartição –
senso comum ou bom senso enquanto qualidades do juízo. Procede-
se aqui por determinações fixas e proporcionais, assimiláveis a
“propriedades” ou territórios limitados na representação. Este tipo de
distribuição tende à anulação da diferença, é sedentária.

- Distribuição nomádica. Esta é a noção que nos interessa. “


Nada está adstrito ou pertence a alguém, mas todas as pessoas
estão colocadas aqui e ali, de maneira a cobrirem o maior espaço
possível. Mesmo quando se trata da seriedade da vida, dir-se-ia haver

232
V. Foucault, “Theatrum philosophicum” in Critique, n.º 591/592, p. 722. “Que
o ser seja unívoco, que ele não possa dizer-se senão de uma só e mesma
maneira, é paradoxalmente a condição maior para que a identidade não
domine a diferença e que a lei do Mesmo não a fixe como simples oposição”.
233
DR, p. 137.
114

aí um espaço de jogo, uma regra de jogo, em oposição ao espaço


como ao nomos sedentários. Preencher um espaço, partilhar-se nele,
é muito diferente de partilhar o espaço. É uma distribuição de errância
e mesmo de «delírio», em que as coisas se desdobram em toda a
extensão de um Ser unívoco e não-partilhado.”234
O que é uma distribuição nomádica? Suponhamos que se trata
de uma distribuição de espaços entre pessoas. Não se trata de
distribuir, segundo uma regra (de proporcionalidade, justiça, etc.),
partes fixas de espaço a cada uma das pessoas. Na distribuição
nomádica, as noções de pertença, propriedade, fronteira,
desaparecem. Pelo contrário, como diz Deleuze, não é o espaço que
é partilhado entre as pessoas, mas são estas que se partilham num
espaço sem limites. O que quer isto dizer?
Um exemplo tornará mais clara esta espécie de partilha: um
espaço de jogo num parque infantil, ou o espaço público de uma
comunidade primitiva. No parque infantil nenhuma criança tem o seu
território; muito menos se trata de um espaço comum que é
igualmente partilhado pelas crianças que brincam (à maneira da
distribuição “comunista”). Não há propriedade privada nem
propriedade comum; por isso as crianças não lutam pelo seu território
ou mesmo pela “sua vez” de utilizar o baloiço ou o escorrega. Em
geral não há conflitos. E todos utilizam os espaços do parque “como
se fossem deles”, no momento em que o utilizam. Mas esta “pertença”
não é “propriedade”. Quando um utiliza o baloiço, ele ocupa o espaço
com o seu corpo e o espaço do baloiço faz um só espaço com o
espaço do seu corpo; enquanto as outras crianças fazem o mesmo
com os outros dispositivos à sua disposição. São as crianças que se
distribuem livre e erraticamente num espaço elástico (“ilimitado”),
criando o seu próprio espaço à medida que o preenchem. Quando
deixam de o utilizar, uma outra criança vem preenchê-lo com o seu
corpo, e o “mesmo” espaço (que passa a ser um outro, transformado

234
DR, p. 94.
115

pelo uso que a nova criança dele faz) faz agora parte do espaço do
corpo de uma outra criança.
“Nomadizar” não significa errar, atravessar à deriva um espaço
objectivo previamente mapeado, dividido em territórios bem definidos.
Nomadizar é criar espaços em conjunção com o corpo, no momento
em que o corpo o preenche (e em conexão, não mais, com o corpo
objectivo), depois abandoná-lo, passar a outro, ao acaso, criando
outro espaço momentaneamente de pertença.
Ora este tipo de distribuição do espaço ( e dos seres no
espaço) só é possível pela univocidade do espaço por assim dizer. É
porque o espaço do parque utilizado pelas crianças é o mesmo para
cada uma delas, que este tipo de distribuição, sem conflito, igualitário
na diferença (“o mesmo sentido diz-se de modos diferentes”), é
possível. Os jogos das crianças implicam esta distribuição nomádica.
Cada uso (ou preenchimento) de uma “parte” do espaço cria um novo
espaço próprio singular, que só existe pelo e durante o tempo do seu
uso. E esse mesmo espaço é “distribuído” de tal forma que todas as
crianças criam novos espaços nos antigos como se uma
multiplicidade de espaços heterogéneos fosse criada no mesmo lugar
(ou “local” se quisermos um referente espacial objectivo).
O espaço comunitário arcaico (rural ou exótico) das sociedades
ditas “igualitárias” (ou “sem Estado”) é de uma mesma ordem, se bem
que aqui a análise se torne mais complexa, porque a propriedade
jurídica pode já coexistir com a distribuição de errância. Mas mesmo
aqui a pertença não equivale à nossa “propriedade jurídica”,
comprometendo outros parâmetros como a mesma pertença à terra,
ao sangue, mesma filiação, etc. No entanto, o espaço comunitário
propriamente dito supõe uma distribuição nomádica: elástico, de
todos e de ninguém, segundo a ocasião, aberto a cada um,
preenchido de direito virtualmente por cada membro da comunidade,
compõe-se afinal de múltiplos espaços, criados pontualmente, depois
desfeitos para serem por outros preenchidos. Como os espaços
116

infantis, esta distribuição não fixa pode ser dita “delirante”, porque é o
desejo, o sonho que criam os espaços no espaço, e distribuem os
seres pela sua topografia errática e móbil, mas absolutamente real
(porque “delirante”). Por isso Deleuze pode escrever: “É uma
distribuição de errância e mesmo de «delírio», em que as coisas se
desdobram em toda a extensão de um ser único e não partilhado.
Não é o ser que se partilha segundo as exigências da representação,
mas todas as coisas que se repartem nele na univocidade da simples
presença (o Um-Todo)”.235

- Hierarquia. É uma distribuição ordenada, organizada, que


mede e ordena os seres segundo o seu grau de proximidade ou
distanciamento em relação a um princípio. Não é este tipo de
ordenação que interessa a Deleuze.

- “Hierarquia ontológica” ou anarquia coroada. É uma


distribuição que é medida, a mesma para todas as coisas, a mais
próxima da desmesura. A mais próxima da “hybris” (esta é a que
“deixa de ser simplesmente condenável”) e da anarquia dos seres.
Esta “medida ontológica” considera as coisas e os seres do ponto de
vista da potência; pretende saber se o ser ultrapassa os seus limites,
indo ao extremo daquilo que pode, seja qual for o grau. É uma medida
que não se sabe onde começa ou acaba, trata-se de um máximo
anárquico, excessivo, para além dos limites, sem mediações. Por
outras palavras, a hierarquia ontológica será aquilo a partir do qual a
coisa se desenvolve e desenvolve toda a sua potência.
Ao desenvolver toda a potência de que é capaz, ao atingir o
limite daquilo que pode, cada ser torna-se absolutamente singular e
incomparável. Não há já lugar para juízos e comparações: “o menor
torna-se igual ao maior”236 porque, no máximo da sua potência, que é
o máximo da expressão da sua singularidade, as comparações
235
DR, p. 94.
236
DR, p. 95.
117

tornam-se impossíveis. Não se comparam singularidades. O mais


pequeno é “tão” grande como qualquer outro, como o maior. Esta
medida – a da máxima potência de um ser não separado daquilo que
ele pode -, é “ontológica” e, mais uma vez, é a mesma para todos os
seres que, no entanto, a exprimem diferentemente: distribui-se
livremente por todos os seres. Somos todos iguais – na máxima
potência, na máxima singularidade – porque somos todos diferentes.
Podemos ser todos diferentes porque somos todos iguais (na mesma
e incomparável expressão da máxima potência).
Como escreve Deleuze: “Esta medida ontológica está mais
próxima da desmesura das coisas que da primeira medida [que supõe
um limite, um princípio-limite relativamente ao qual se medem os
seres quanto às sua potências, qualidades, etc.]; esta hierarquia
ontológica, está mais próxima da hybris e da anarquia dos seres que
da primeira hierarquia. Ela é o monstro de todos os demónios.”237.
Deleuze inventa um novo princípio de distribuição e hierarquia.
A sua “fórmula”238 não pode já implicar confusão, uma vez que as
fórmulas conhecidas a implicam.
Vimos como se realizam as novas distribuições nómadas dos
entes. Mas surge uma dificuldade: como pensar uma distribuição e
uma hierarquia não submetidas a uma regra que não se entreguem,
também, ao puro caos destruidor? A ontologia de Deleuze insiste na
individuação239 como criação. E toda a criação (que não seja em

237
DR, p. 95.
238
Cf. DR, p. 45.
239
O que é mesmo um indivíduo? O que pode constituir a individualidade de
um indivíduo? Um indivíduo não é uma qualidade nem uma extensão. É uma
intensidade. Compondo-se com outras intensidades forma outros indivíduos.
Cada indivíduo é uma multiplicidade, como sabemos: “O individuante não é o
simples individual”. MP, p. 9. Mas é uma multiplicidade infinita, tal como a
“Natureza inteira é uma multiplicidade de multiplicidades perfeitamente
individuada.” MP, p. 311.
Há uma unidade de um plano de natureza que vale para todos. Esta
unidade não é um fundamento mas é unívoca, individuada.
Não podemos aqui, para compreender, fazer apelo à analogia, uma vez que
ela procura o princípio da individuação nos “factos”, nos “existentes
particulares” e aí ficamos na aporia. “Pelo contrário, quando dizemos que o ser
unívoco se reporta essencialmente e imediatamente a factores individuantes,
certamente não entendemos estes factores como indivíduos constituídos na
118

experiência, mas como aquilo que neles age como princípio transcendental,
como princípio plástico anárquico e nómada contemporâneo do processo de
individuação, e que não é menos capaz de dissolver e destruir os indivíduos do
que de constituí-los temporariamente: modalidades intrínsecas do ser,
passando de um «indivíduo» a outro, circulando e comunicando sob as formas
e as matérias.” DR, p.96.
Onde procurar então o princípio de individuação? O que é a individuação?
A individuação é um processo onde operam quantidades intensivas que
afectam e circulam, aumentam ou diminuem a sua potência.
“A intensidade é individuante, as quantidades intensivas são factores
individuantes. Os indivíduos são sistemas sinal-signo. Toda a individualidade é
intensiva.” DR, p. 397.
“A individuação é o acto da intensidade que determina as relações
diferenciais a actualizarem-se, de acordo com linhas de diferenciação, nas
qualidades e nas extensões que ela cria” (DR, p. 398) linhas onde a
diferenciação opera.
A Individuação não é a mesma coisa que a diferenciação. São processos
diferentes e independentes. A individuação é então intensiva e ainda não
qualificada. Trata-se do nascimento de um espaço-tempo, começo do mundo,
radical e absoluto.
Na nota 24 em MP, p. 318, Deleuze, faz referência a um modo de
individuação que nasceu de um “erro fecundo” atribuído a Duns Scot e que se
traduzirá pela noção de hecceidade. Um corpo diz ele, mas podíamos dizer: um
indivíduo “ não se define pela forma que o determina, nem como substância ou
sujeito determinados, nem pelos órgãos que possui ou as funções que
exerce…
Há um modo de individuação muito diferente do de uma pessoa, de um
sujeito, de uma coisa ou substância. Reservamos-lhe o nome de heceidade.
Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data têm uma
individualidade perfeita à qual não falta nada, se bem que ela não se confunde
com a de uma coisa ou de um sujeito. São heceidades, neste sentido tudo o
que é relação de movimento e repouso entre moléculas e partículas, poder de
afectar e ser afectado.” MP, p.318.
Ter uma individuação ou poder ter não “consiste simplesmente num décor ou
num fundo que situaria os sujeitos…. É todo um agenciamento no seu conjunto
individuado que se acha que é uma heceidade”. Mas elas ainda que
inseparáveis, são de dois tipos: de agenciamento (são coordenadas espácio-
temporais, longitude e latitude) e inter-agenciamento ( que marcam a
potencialidade do devir, o meio de crescimento da longitude e latitude). Não
estamos a falar, diz Deleuze, de predicados da coisa, mas de dimensões de
multiplicidades.
A univocidade também não se pensa sem a individuação. No entanto é um
modo original de individuação - a hecceidade. Princípio informal que constitui
um plano que não é estrutural nem genético. Plano sem sujeito, nem
desenvolvimento, mas unívoco. Plano de univocidade. Os termos de que
partimos podem segundo a nossa hipótese pensar-se como um e o mesmo. A
confusão tende a alargar-se e a contaminar outros campos, o do pensamento e
o da a estética por exemplo.
Ver DR, p. 138-139. Há uma ligação entre o pensamento e a individuação ver
ainda DR, p. 257.
Supõe um estado pré-individual, meta-estável, um campo pré-individual, ideal
virtual que preside à génese de um espaço-tempo, puro dinamismo não
empírico.
Individuação não é a mesma coisa que diferenciação. São processos
diferentes e independentes.
119

qualquer medida uma cópia) supõe o caos, como princípio de


purificação das genealogias e dos determinismos. Como conceber o
caos - também como princípio de libertação de forças livres – sem
fazer ruir a consistência do que resulta da criação? Como pensar o
acaso no seio do contínuo, já que o universo das diferenças
individuadas supõe um plano de imanência percorrido por séries
contínuas de unidades diferenciais?
Um esboço de resposta que se desenvolverá mais adiante:
pode criar-se uma fórmula, numa só afirmação do caos e da
consistência que dele resultará. As mesmas circunstâncias são dadas
mas há uma sensibilidade nas condições iniciais, não há um estado
inerte e estacionário, quer dizer, se há uma instabilidade primeira,
imprevisibilidade, caos, uma impossibilidade qualquer que não se
deixa fixar, por mínima que seja, tudo muda. Os nossos
conhecimentos actuais, destas condições e da aplicação correcta das
leis, permitem prever as suas posições, estados, modos, etc. Mas a
ideia de estabilidade subjacente desapareceu. O modelo que fornecia
esta inteligibilidade do mundo desfez-se. A mistura do mundo não é
feita ao acaso, nem de um qualquer acaso. Ora, o que sabemos das
condições iniciais é que há uma extrema sensibilidade, diferenças
mínimas podem conduzir a diferenças cada vez maiores nos estados
finais. Define-se actualmente este estado sensível inicial como
caótico. Caos é então imprevisibilidade, não obedece às leis da
identidade, proporção, semelhança, analogia, etc.
Esta univocidade é assim sem mediações e caótica. É um
“salto” que se define pela velocidade infinita com que se dissipa toda
a matéria “bruta” que nela se esboça. E a velocidade cria a
consistência (num “corpo sem órgãos”).
“O que caracteriza o caos não é tanto a ausência de
determinações como a velocidade infinita à qual estas se esboçam e
se desvanecem: não é um movimento de uma para a outra, mas, pelo
contrário, a impossibilidade de uma relação entre duas
120

determinações, pois nenhuma aparece sem que a outra tenha já


desaparecido e quando uma aparece como desvanecida logo a outra
desaparece como esboço.” 240
Desta medida ontológica que dissolve as coisas nasce uma
estranha «razão», o múltiplo e o caos da diferença (as distribuições
nómadas, as anarquias coroadas). Quando o “caos-errância” sem fio
e “sem propriedade, cerca e medida” aparece, o ser “evade-se, atinge
a univocidade e põe-se a girar em torno do diferente. O que é ou
retorna não tem qualquer identidade prévia e constituída”241.

e. A univocidade implica imanência. A ontologia elabora-se


num plano de imanência.
Já em Proust et les signes é a diferença interiorizada que se
torna imanente242.
Por aqui se vê como os princípios que regem a ontologia
deleuziana se implicam uns aos outros.
A imanência é uma ideia decisiva sem a qual não se pode
compreender a “intuição filosófica” (no sentido bergsoniano que
Deleuze assimila à imagem do pensamento em Qu’est-ce que la
Philosophie?243) do pensamento da diferença.
Limitemo-nos agora a referir apenas alguns aspectos
fundamentais da imanência no que importa à ontologia:

1. A imanência supõe um plano – que, em Mille Plateaux,


Deleuze e Guattari designam também por “planómeno”, “plano de
consistência”, “corpo sem órgãos”, “plano de composição”. O plano de
imanência assegura a passagem e a velocidade das intensidades em
fluxos heterogéneos. É ela que dá consistência à coexistência e
conexão de elementos heteróclitos (sensações, pensamentos, cores,
toda a espécie de matérias e materiais artísticos, etc.) que formam um
240
QF, p. 42.
241
DR, p. 137.
242
PS, p. 75.
243
QF, p. 37.
121

continuo e que de outro modo se dispersariam ou se dissipariam sem


interferências não produzindo novos elementos. O plano de imanência
assegura assim a circulação de fluxos intensivos e a criação do novo.

2. O plano de imanência tem, ele próprio, intensidade=0, como


condição de possibilidade das intensidades múltiplas atingirem a sua
máxima potência, atravessando e percorrendo o plano.

3. O plano de imanência ou corpo sem órgãos, constrói-se. É


um “campo”244 que “deve ser construído”. Está sempre já em todo o
acto de desejar, e, no entanto, não existe senão como produto dos
agenciamentos de desejo que ele próprio permite e induz. Quer dizer,
é sempre possível falhar a construção do plano. Depende do sucesso
da experimentação que o deve produzir. Significa isto que o plano é
virtual e que nele se operam os processos de actualização e de
virtualização que o atravessam. Neste sentido, o plano de imanência
confunde-se com o “campo transcendental”245.

4. Construir o plano depende da matéria utilizada. Como se diz


em Mille Plateaux, “é tudo uma questão de matéria na maneira como
se constrói o plano” (há planos de imanência de pensamento, de
sensações, de movimento – na dança por exemplo, - de matérias
sensíveis como na arte, de discurso – como na oratória -, etc.). Os
agenciamentos da matéria vão permitir a circulação da potência
máxima dos fluxos de intensidade. Ora, agenciar é não só conectar,
criar um “laço” que liga, mas abrir o fluxo para novas conexões, novos
agenciamentos, novos espaços. Neste sentido, cada plano de
imanência, se bem que uno, contém uma multiplicidade de outros
planos, abrindo-se para um “fora” plural: o plano de imanência é
fractal.246

244
MP, p. 195.
245
Cf. IUV.
246
Cf. QF, p. 37 e segs; MP, pp. 195, 197.
122

5. “Imanência=Univocidade”. Esta equação é tão importante


para Deleuze que ele a reafirma na sua correspondência com Alain
Badiou247 , depois de a enunciar em Mille Plateaux. A imanência do
sentido ao movimento que o engendra significa que o sentido do
movimento coincide com o movimento do sentido. O que faz a
imanência é o movimento infinito sobre o plano. O movimento infinito
ou a velocidade infinita do movimento é o que faz com que “pensar e
ser sejam uma e a mesma coisa. Ou melhor, o movimento não é
imagem do pensamento sem ser também matéria do ser. Quando
salta o pensamento de Tales, é enquanto água que ele retorna.
Quando o pensamento de Heraclito se faz polémos, é o fogo que
volta a ele.”248
Assim, o mesmo se diz de modos diferentes no plano de
imanência. O pensamento é acção, os movimentos corporais são
movimento de pensamento. A univocidade exprime-se como o mesmo
da diferença, na diferença que difere. Univocidade do ser porque o
ser é imanência. É a imanência que garante a univocidade do ser.

6. Só podemos aqui indicar uma distinção difícil e importante


(que Deleuze faz no seu último texto publicado: Immanence: une
vie…:) entre a imanência relativa e a imanência absoluta. A primeira é
a imanência de qualquer coisa a…, como a imanência do som ao
sentido (signo sonoro) na obra musical, por exemplo; a segunda é a
imanência absoluta, a imanência não já de uma coisa a…, mas a
imanência como “uma vida”. É claro que no plano ontológico só a
imanência absoluta funda a univocidade do ser. Só ela assegura a
elaboração de uma ontologia, por um autor-filósofo que, sendo mais
do que um simples pensador, se encontre ele próprio mergulhado no
plano de imanência, partilhando a intensidade de fluxos de

247
Cf. Alain Badiou, Breve tratado de ontologia transitória, Lisboa, Instituto
Piaget, 1999, p. 64.
248
QF, p. 38.
123

pensamento-acção. Não é – talvez “em parte” só, o que é já


paradoxal – o que fazem Deleuze e Guattari ao escrever L’Anti-
Oedipe e Mille Plateaux? Não são estes livros escritos a partir da
imanência, num plano de imanência?

C. Génese do sensível e programa da ontologia

1. O virtual e o actual: dinamismos espácio-temporais.

Como foi possível essa “história do grande erro”, “a história da


representação”249? Como foi possível que se afirmasse a identidade e
o uno como primeiros? Como foi possível a prevalência, na imagem
dogmática da filosofia, da equivocidade do ser, da transcendência
sobre a univocidade e a imanência?
Para que na história da filosofia o fio da tradição de Platão,
Hegel, Husserl prevalecesse sobre o fio (de que se reclama Deleuze)
que vai de Duns Scot a Espinosa e Nietzsche, foi necessário que o
Mesmo se erigisse em instância ontologicamente primeira e que todo
um trabalho de identificação do conceito com a representação fosse
realizado. A desmontagem crítica desse trabalho é apresentada logo
ao princípio de Différence et répétition, como referimos.
Nessa “história do grande erro” um momento parece crucial
para o projecto da constituição de uma ontologia. É o momento em
que se opera a cisão entre sensível e inteligível, cisão que começa no
seio mesmo do sensível. Ao constituir-se, ao engendrar-se, o sensível
separa-se entre um sensível das extensões e das qualidades, e um
sensível artístico. O primeiro é o objecto da Estética transcendental de

249
DR, p. 473.
124

Kant; o segundo é estudado por Kant na Crítica da Faculdade de


Julgar: a separação entre as duas estéticas marca uma cisão no seio
do ser do sensível, comprometendo o projecto ontológico da sua
união.
Se o ser do sensível se cinde, a sua equivocidade é afirmada,
e uma parte da estética servirá fins puramente cognitivos: sobre este
solo as categorias clássicas (sensível/inteligível, visível/invisível,
interior/exterior, etc.) florescerão exigindo instâncias unificadoras
primeiras e transcendentes (o Mesmo, o Uno, o Eu, Deus, ou outra
figura de um Fundamento). A transcendência do fundamento é o
preço que se paga para a unificação das duas estéticas no
pensamento filosófico tradicional (em particular em Kant).
Se, pelo contrário, a ontologia deleuziana fizer da imanência e
da univocidade os eixos decisivos para a elaboração dos seus
conceitos, ser-lhe-á necessário pensar não a cisão, mas a união entre
as duas estéticas. Ora, esta união não é uma re-união, não é um
retorno a uma “época” ou “período” histórico, anterior à cisão das
duas estéticas. Mas só se poderá pensar a união – e portanto, a
imanência e a univocidade do ser do sensível – se se determinarem
as condições transcendentais que a tornaram possível. É este o
sentido do exame e da descrição que Deleuze faz da “génese do
sensível”. É que ao mesmo tempo que se opera a cisão desvela-se o
que a tornou possível. Poder-se-á então pensar o que a impedirá.
Poder-se-á retirar da própria natureza da cisão (quer dizer, da
natureza dos conceitos que ela implica), o pensamento de uma
estética única, em que não haja separação ontológica entre dois
sensíveis (mas, suponhamos, puramente “modal”, em que o mesmo
ser se diz numa pluralidade, mas se diz diferentemente).
Analisar o surgimento da cisão torna-se, pois, um imperativo,
do projecto deleuziano de uma nova Estética. Por outro lado, deve-se
supor, desde já, que o resultado dessa investigação, a obter sucesso,
terá uma grande importância para a nossa questão do estilo: porque
125

se esta caracteriza a matéria expressiva da arte, a qual, pensada


ontologicamente, constituirá o ponto de partida (e talvez também de
chegada) da união das duas estéticas, então é possível que seja
necessário pensar o estilo também no quadro da ontologia: o ser
exprimir-se-ia, na multiplicidade das suas vozes, enquanto estilo.
Resta-nos esperar dos resultados da investigação a confirmação
desses enunciados.

A génese do sensível será descrita por Deleuze com os seus


próprios conceitos. Esta é uma condição imprescindível para o
sucesso da sua tarefa. Se, pelo contrário, começasse pelos dualismos
clássicos (inteligível/sensível, etc.), não seria sem dúvida possível sair
das figuras da representação, e dar conta da ilegitimidade ontológica
da cisão entre as duas estéticas.
Partir dos seus próprios conceitos, que Deleuze supõe
necessários à construção da ontologia da diferença, torna-se assim
uma exigência fundamental da sua própria filosofia: a génese do
sensível será descrita a partir de um jogo conceptual que mostrará,
por exemplo, como a ideia de um sensível empírico objectivo situado
no espaço euclidiano é ontologicamente ilegítima por um lado, e por
outro, como essa ideia nasce no momento mesmo da génese do
sensível e da cisão entre os dois sensíveis.
Todo o objecto dito empírico resulta de um processo a que
Deleuze chama actualização. Outros conceitos próprios do
pensamento deleuziano vão ser necessários para a descrição desse
processo.
O que é um objecto? O resultado de um processo de
actualização de uma Ideia virtual.
O que é o virtual em Différence et répétition?
Enquanto feixes de multiplicidades diferenciais, as Ideias são
virtuais. Mas virtual não quer dizer “em potência”, ou em latência;
também não indica uma espécie de realidade imaginária que se
126

oponha ao real. Pelo contrário, “o virtual não se opõe ao real, mas


somente ao actual. O virtual possui uma realidade plena, enquanto
virtual”.250
Mais, o virtual não é indeterminado, é sim determinado,
caracteriza-se mesmo, pela “determinação completa” no sentido
cartesiano 251:
Um triângulo é completamente determinado, diz Descartes,
conhecendo-se dele apenas algumas propriedades – elas chegam
para o distinguir de todas as outras figuras geométricas. Só Deus
possui a “determinação inteira”, pois só ele conhece todas as
propriedades do triângulo.
Suponhamos um objecto. O “completo” é uma determinação
parcial, correspondente à parte ideal do objecto (ou à sua parte
virtual) – pois um objecto é sempre duplo com duas partes
dissemelhantes, uma imagem virtual e uma imagem actual. “O que
falta à determinação completa é o conjunto das determinações
próprias da existência actual”252. Um objecto é composto de duas
metades “desiguais ímpares”.
Não existe, pois, um objecto “inteiramente” empírico: uma das
duas metades é virtual e, nesse sentido, poder-se-ia dizer que todo o
objecto é “empírico-transcendental”. Significa isto que qualquer
objecto dado, actual, resulta de um processo de encarnação da Ideia,
como passagem do virtual ao actual, processo ou passagem que
nunca esgota totalmente as determinações virtuais que ele actualiza.
O que é o virtual de um objecto? Como sabemos já, é uma
emissão de partículas, de efémeros, mais breve que o mais curto
instante pensável. Ora todo o objecto emite estas partículas em cada
um desses “instantes” mais breve que um instante. Partículas
inconscientes que vão a velocidades além da percepção visual, táctil,
auditiva…

250
DR, p. 342.
251
Idem.
252
DR, p. 345.
127

Se todo o objecto é duplo, meio virtual, meio actual, e se a


captura do virtual revela o objecto na sua “verdade” ontológica,
melhor, no seu ser, então a arte, que opera uma verdadeira
transmutação da matéria, oferece essa visão das coisas e dos seres
do mundo, e constitui a via privilegiada de acesso à ontologia. A
“única prova, a única oportunidade, é estética”253. Mas talvez não só a
arte: há múltiplas conversões do olhar – ou de outros sentidos –
possíveis, que operam essa captação da “potência” dos efémeros que
é o ser do objecto. A própria natureza, enquanto “meio” empírico-
transcendental, tem uma dimensão ontológica captável pelo homem,
independentemente da arte. Ou, invertendo paradoxalmente o ponto
de vista: há um aspecto da natureza que é, já de si, “artístico” (“belo”,
segundo a mais que controversa categoria estética). Porque o
artístico pertence ao objecto como uma das suas propriedades
essenciais, se considerarmos a potência do efémero como emanando
do ser do objecto e simultaneamente constituindo aquilo que faz dele
um objecto de arte.
Se examinamos novamente o virtual, tal como Deleuze o
concebe em Différence et répétition, verificamos que uma série de
características o definem: a determinação completa, a determinação
recíproca, a progressividade. Esta última está implícita nas duas
primeiras e designa o movimento que vai do virtual ao actual. “ O
virtual tem a realidade de uma tarefa a preencher, como de um
problema a resolver”254. Com uma vocação interna a actualizar-se.
Mas tal como as soluções de um problema nunca se assemelham às
condições do problema, o actual difere radicalmente do virtual
correspondente.
Como conceber então a actualização da Ideia? No fundo, mais
uma vez, trata-se aqui de uma génese e, neste sentido, a doutrina da
actualização do virtual diz respeito à origem e formação do mundo.

253
PS, p. 57.
254
DR, p. 347
128

Se há equivalência ou semelhança entre o virtual e o actual,


não pode haver a mínima identificação entre o virtual e o possível.
Porque, para este último, a existência actual está já toda contida no
conceito, a realização do possível não sendo mais, afinal, do que o
rebatimento de uma mesma identidade sobre um espaço e um tempo
neutros (neutralizados no conceito). Ora o virtual (“possível”) difere do
actual: a génese deste último opera-se num espaço e tempo
específicos (imanentes à Ideia). Não se trata pois de um possível,
mas de um virtual que dele se distingue internamente. O possível não
é o virtual e opõe-se ao actual, cuja singularidade implica um
processo de génese e diferenciação a partir da Ideia (e não do
conceito que encerra em si o possível).
Em resumo, a actualização como génese processa-se por
diferenciação. A actualização é criação. “Actualizar-se, para um
potencial ou virtual, é sempre criar as linhas divergentes que
correspondem sem semelhança à multiplicidade virtual” 255 .
Como se processa a actualização das Ideias? Como é que o
virtual se realiza num objecto extenso e qualitativo? Ou,
diferentemente, numa singularidade única? Deleuze constrói toda
uma teoria que visa dar conta do surgimento do objecto singular.
Teoria extraordinária, se atentarmos à inflexão que ele imprime ao
modelo biológico da formação do ovo e do embrião; e às suas
implicações quanto à própria natureza do mundo.
O processo de encarnação das Ideias virtuais num objecto faz-
se graças aos “dinamismos espácio-temporais”. A importância desta
doutrina é tal, no pensamento de Deleuze, que ele nunca a renegou:
em 1995, num texto256 em anexo a Dialogues (capítulo V, sobre “o
actual e o virtual”), ele refere-se ainda aos dinamismos257. Ora, o que
distingue este processo de um movimento empírico é que nele se
introduz um elemento estranho à matéria e aos corpos: a imaginação.
255
DR, p. 347
256
O texto a que nos referimos foi incluído em 1996 na nova edição da
colecção Champs da Flammarion, “Dialogues”, p. 177-185.
257
“Em virtude da identidade dramática dos dinamismos…”. D, p. 179.
129

A acção da imaginação interfere directamente nos processos


corporais, conduzindo e dirigindo toda a formação dos espaços e
tempos que se vão actualizar. É o que Deleuze chamava já258 “o
carácter aventuroso das Ideias”, ou “delírio” no desenvolvimento do
embrião.
Neste texto, que tomamos como exemplo, o modelo é biológico
(a formação do ovo). Pergunta-se, aí, porque é que a “diferenciação”
do virtual toma duas vias complementares, por um lado qualificação e
composição (o indivíduo como particular), por outro especificação e
organização (indivíduo como representante da espécie). A resposta
inflecte a direcção da pergunta, mostrando que essas duas vias
recobrem uma outra mais importante, mais determinante: “Mais
profundos do que as qualidades e as extensões actuais, do que as
espécies e as partes actuais, há os dinamismos espácio-temporais.
Eles é que são actualizantes, diferenciantes. É preciso destacá-los em
todo o domínio, se bem que estejam habitualmente recobertos pelas
extensões e as qualidades constituídas. Os embriologistas mostram
bem que a divisão de um ovo em partes permanece secundária
relativamente aos movimentos morfogenéticos, que são de outro
modo significativos, como o aumento das superfícies livres, o esticar
das camadas celulares, a invaginação por pregueamento, as
deslocações regionais por grupos. Toda uma cinemática do ovo
aparece, implicando uma dinâmica. Esta dinâmica, exprime, ainda,
qualquer coisa de ideal. O transporte é dionisíaco e divino, é delírio,
antes de ser transferência local. Os tipos de ovo distinguem-se,
portanto, por orientações, por eixos de desenvolvimento, por
velocidades e ritmos diferenciais como primeiros factores de
actualização de uma estrutura, criando um espaço e um tempo
próprios daquilo que se actualiza.”259
Resumindo, como, ou melhor, quem orienta, dirige, escolhe os
primeiros movimentos de desenvolvimento do embrião? Não um
258
DR, p. 302.
259
DR, pp. 350-351.
130

determinismo biológico ou uma teleologia que nada explicaria, como a


discussão que se segue ao texto citado o mostra. O desenvolvimento
do ovo não vai do mais geral ao menos geral (da forma geral da pata
antes de se tornar pata esquerda ou direita), do género à espécie,
mas exprime antes uma diferença de natureza (e não uma diferença
de generalidade). Ora o que é que determina essa diferença? Porque
é que a forma geral da pata se transformará em pata esquerda e não
direita? Da mesma maneira, pergunta-se: uma divisão celular em 24
elementos semelhantes não foi obtida “deterministicamente” por uma
divisão de tipo 2X12, ou (2X2) + (2X10), ou (2X4) + (2X8), etc.? Nada,
no estado anterior do tecido indicava tal ou tal divisão em vez das
outras. O que levou então a uma tal “escolha”? A resposta de
Deleuze260 parece surpreendente: é “o vivido” do embrião. Porquê?
Porque toda a interpretação em termos de progressão do mais geral
(ou género) para o menos geral (espécie) supõe um ponto de vista
exterior ao processo. Ora, os movimentos do embrião são por este
necessariamente vividos, e só por ele vividos (movimentos
impossíveis de executar no estado adulto). Há pois um sujeito-
embrião, um “sujeito-larvar” que “sonha” as direcções, divisões
progressivas dos espaços e tempos que mais convêm para se
actualizar. “[As generalidades de forma, de espaço] são, em si, vividas
pelo indivíduo-embrião no seu campo de individuação”. De tal forma
que “em vez de se descobrir o mais geral sob o menos geral,
descobrem-se puros dinamismos espácio-temporais (o vivido do
embrião) sob os caracteres morfológicos, histológicos, anatómicos,
fisiológicos, etc., que dizem respeito às qualidades e às partes
constituídas”261.
Eis porque o “transporte” (do cálculo dialéctico das ideias ao
domínio biológico da formação do embrião) é “dionisíaco e divino”, eis
porque é “delírio” ou sonho. Sonho de um sujeito larvar (larvar porque

260
A partir de leituras de vários biólogos, cf. Différence et répétition pp. 351-
353.
261
DR, p. 351.
131

capaz de movimentos que a rigidez da estrutura anatómica de um


sujeito “adulto” impediria de executar) - e os movimentos do sonho
coincidem com os dinamismos espácio-temporais. O sujeito-embrião
sonha progressivamente com o que mais lhe convém, não prevendo
nada do movimento seguinte – à maneira da emissão de partículas
virtuais … Em cada lance (em cada movimento), em cada nova
divisão do espaço do embrião), é todo o acaso que se precipita e se
condensa.
Por isso, “o mundo inteiro é um ovo”262 . Mas se os dinamismos
espácio-temporais são os sonhos do que se actualiza, qual a sua
relação com a Ideia? Uma dificuldade surge: como é que os
dinamismos “provêm” da Ideia, e ao mesmo tempo inauguram um
processo de diferenciação que distinguirá radicalmente o objecto das
determinações virtuais? É que os dinamismos são Dramas, são os
Dramas da Ideia, “Dramatizam a Ideia”263.
Como entender aqui a expressão “Dramatização da Ideia”?
Citemos ainda Différence et répétition: “o mundo é um ovo, mas o ovo
é ele mesmo um teatro: teatro de encenação, em que os papéis
prevalecem sobre os actores, os espaços sobre os papéis, as Ideias
sobre os espaços”264.
Os dinamismos são encenações porque resultam do
movimento da imaginação (sonho) do sujeito singular larvar. Os
sujeitos diferem e com eles os seus sonhos; e com estes os primeiros
espaços traçados (espaços de actualização), os primeiros
movimentos, os primeiros “papéis” (ou “temas). Assim se compreende
que as Ideias, ao começarem a actualizar-se, se diferenciem em si
próprias, construindo teatros, encenações que diferem das
determinações diferenciais e virtuais que as constituem. Diferem e,
paradoxalmente, “correspondem”: esses espaços, papéis,
movimentos dos dinamismos espácio-temporais são como um duplo

262
DR, p. 353.
263
Idem.
264
Idem.
132

das determinações diferenciais (differentiels) das Ideias. Duplo em


transformação, duplo em processo de diferenciação.
Os dinamismos desdobram-se em séries, uma que vai no
sentido da actualização das relações diferenciais das Ideias -
processo que culminará na formação das espécies e outra que se
orienta na direcção da actualização dos pontos singulares –
culminando na encarnação das partes do objecto. O Drama ou a
Dramatização da Ideia é “a diferenciação da diferenciação” intensiva
(quantitativa e qualitativa). Esta diferenciação da diferenciação “reúne
e solda” o diferenciado. É um outro tipo de unidade e de identidade
que aqui se realiza. Entre duas séries divergentes que se diferenciam
cada vez mais, rebenta de repente um elo que marca a sua diferença,
uma força intensiva que ao mesmo tempo integra as diferenças, como
diferença das diferenças. (Logique du sens desenvolve
consideravelmente, como teremos ocasião de ver, esta verdadeira
“teoria das séries divergentes”).
Por agora, interessa-nos insistir num ponto: se o que dá a
orientação do processo de actualização é a imaginação de um teatro
sonhado, como é que os dinamismos não se dissolvem num caos
total, que é o caos do sonho? Ou, sem ir tão longe, porque é que os
dinamismos não são aleatórios, já que o acaso interfere em cada fase
do processo? A questão ontológica que subjaz a estes problemas
epistemológicos é: porquê um mundo, ou um cosmos, em vez de um
caos?
Na verdade, toda esta problemática apela a um tratamento
ontológico:
1. Se considerarmos que o nível escolhido para exemplo ou
modelo da actualização do virtual é a biologia, está implícito um
transporte “metafórico” deste domínio científico para a esfera das
ideias dialécticas. Vai-se do ovo ao mundo e do mundo ao ser. Ora
este “transporte” só se legitima se o próprio domínio biológico for
ontologicamente perspectivado. Foi o que Deleuze fez realmente: da
133

mesma forma, o transporte dialéctico da ideia à biologia compreende-


se enquanto movimento de pensamento que retoma, calculando,
nesse domínio específico, o pensamento do movimento.
Como se viu, os movimentos do sonho do sujeito larvar
coincidem com os dinamismos espácio-temporais. Há imanência entre
os movimentos de actualização e a imaginação dos movimentos.
Operou-se como que uma ontologização dos processos de
actualização. A existência de um plano de imanência – no sentido que
Deleuze dará mais tarde a esta noção – está implícita265.
2. Um esboço de ontologia desenha-se quando se pretende
comparar os dinamismos com o esquema kantiano: “Estas
determinações dinâmicas espácio-temporais não seriam o que Kant
chamava já esquemas?”266. No entanto, a crítica principal à noção de
esquema – “regra de determinação do tempo e de construção do
espaço” -, é a sua incapacidade própria de agir por si, não
comportando em si a potência com que assegura a harmonia do
entendimento e da sensibilidade. Ora, essa potência está implicada
na noção de dinamismo espácio-temporal. “Tudo muda quando se
afirmam os dinamismos, não como esquemas de conceitos, mas
como dramas de ideias. Porque se o dinamismo é exterior ao
conceito, e a esse título esquema, ele é interior à ideia, e a esse título
drama ou sonho.”267. Ou, mais precisamente ainda: “O dinamismo
compreende então a sua própria potência de determinar o espaço e o
tempo, já que encarna imediatamente as relações diferenciais, as
singularidades e as progressividades imanentes à Ideia.”
Exemplificando, Deleuze acrescenta: “O mais curto não é
simplesmente o esquema do conceito de recta, mas o sonho, o drama
ou a dramatização da ideia de linha, enquanto ele exprime a
diferenciação da recta e da curva. Distinguimos a ideia, o conceito e o

265
Mas o conceito de “plano de imanência” não existe ainda em DR. por isso,
em nosso entender, apesar de todo o seu pensamento o conduzir nessa
direcção, a “ontologia da diferença” permanece aí em estado de projecto.
266
DR, p. 355.
267
Idem.
134

drama: o papel do drama é de especificar o conceito, encarnando as


relações diferenciais e as singularidades da Ideia”268.
A ideia de linha contém uma multiplicidade de relações
diferenciais virtuais. O mais curto não é mais do que uma encenação,
um drama, na medida em que encarna num espaço determinado uma
determinada relação virtual (entre recta e curva) da ideia de linha.
Outras encenações seriam possíveis, de tal modo que traçariam
espaços diferentes. Para que o mais curto divida e determine um
espaço (tal como o esquema), é preciso que essa divisão espacial
seja primeiro sonhada como o pensamento (imaginação) de um
movimento que retoma o movimento de pensamento do próprio sonho
do espaço. O sujeito sonhador é uma larva269: as geometrias não-
euclidianas parecem existir para o provar. É necessário que o sujeito-
larva sonhe um espaço determinado (“o mais curto”) que una dois
pontos (singularidades) para que o dinamismo espácio-temporal
encarne uma relação diferencial. Mais uma vez: o movimento que
traça o espaço para que a linha se encarne no “mais curto caminho
entre dois pontos” coincide com o movimento de pensamento de “o
mais curto…”. (Não é aliás o que se encontra subjacente à afirmação
de Kant que diz que para obter a imagem da recta, se tem que “traçar
a recta pelo pensamento”270? Deleuze subverte a ideia kantiana de
esquematismo do conceito, transformando-a num drama da ideia).
Mas não significa – esta substituição do esquema pelo dinamismo
espácio-temporal -, que a problemática da actualização deve ser
tratada no plano da ontologia? (Assim, talvez resida aqui uma crítica
tácita ao que Kant faz do esquema, reduzindo-o a um mistério entre
os esquemas e os dinamismos espácio-temporais 271 ).

268
DR, p. 356
269
DR, p. 358.
270
Kant, Immanuel, Crítica da Razão Pura, ed. Port., p. 199. A163: “Não posso
ter a representação de uma linha, por pequena que seja, se não a traçar em
pensamento.”
271
V. DR, p. 355.
135

Esta ideia, fonte de dinamismos internos à Ideia encontra-se


curiosamente esboçada num texto dos anos cinquenta, sobre
“Causas e Razões das Ilhas Desertas”272. Aliás, neste texto de
Différence et répétition que estamos a comentar, Deleuze refere-se
(uns quinze anos depois) ao tema da ilha deserta.
Toda a ilha – quer seja do tipo continental ou do tipo oceânico,
quer se tenha formado por separação do continente ou por irrupção
de um fundo marinho – é necessariamente deserta, escreve Deleuze
neste texto. Mesmo povoada, a ilha é deserta porque os seus dois
tipos supõem movimentos ou de ruptura ou de começo. E a ruptura
marca um começo ou recomeço. “A ilha é também a origem, a origem
radical e absoluta”273. Por isso, os movimentos dos homens que vão
para as ilhas, e que as povoam, retomam afinal os mesmos
movimentos da formação das ilhas: separação e recomeço da origem.
Mas, na realidade, não acontece nunca que uma ilha seja
absolutamente deserta, porque nunca os movimentos dos homens
que a habitam retomam absolutamente o movimento que deu origem
à ilha. “Se é verdade que o movimento do homem na direcção da, e já
na ilha retoma o movimento da ilha antes dos homens, os homens
podem ocupá-la e nem por isso ela é menos deserta, mais deserta
ainda, pois basta que eles sejam suficientemente, quer dizer,
absolutamente separados, suficientemente, quer dizer absolutamente
criadores. Sem dúvida que isso nunca aconteceu, se bem que o
náufrago se aproxime de uma tal condição. Para que assim seja,
basta fazer crescer na imaginação o movimento que traz o homem à
ilha. Um tal movimento não vem senão na aparência romper o deserto
da ilha; na verdade retoma e prolonga o impulso que a produzia como
ilha deserta; longe de o comprometer, leva-o à perfeição, ao seu
cúmulo. […] Os homens que vêm para a ilha ocupam-na realmente e
povoam-na; mas, na verdade, se eles fossem suficientemente

272
Deleuze, Gilles, L’Ile Déserte et autres textes, (edição preparada por David
Lapoujade), Paris, Minuit, 2002, p.11-17.
273
Idem, p.12.
136

separados, suficientemente criadores, dariam apenas à ilha uma


imagem dinâmica dela mesma, uma consciência do movimento que a
produzia, a tal ponto que através do homem a ilha tomaria enfim
consciência de si como deserta e sem homens. A ilha seria apenas o
sonho do homem, e o homem, a pura consciência da ilha. Por tudo
isto, mais uma vez, uma única condição: seria necessário que o
homem se reduzisse ao movimento que o traz à ilha, movimento que
prolonga e retoma o impulso que produzia a ilha. Então a geografia e
o imaginário seriam uma e a mesma coisa.”274
Estamos em pleno movimento ontológico: espírito e matéria,
consciência e corpo são expressões diferentes de uma e mesma
coisa (ser). Os dinamismos que fazem de todas as ilhas ilhas desertas
reduzem-se a movimentos de expressão do ser. Mas no plano
ontológico a ilha já não é corpo e matéria, com o homem transforma-
se em pura consciência de si da ilha, quer dizer ele próprio devém
ilha. Para que os dois termos se tornem imanentes um ao outro,
realizou-se o que chamámos “ontologização dos dinamismos espácio-
temporais”, que aqui aparece de maneira clara.
Qual o operador desta ontologização? O sonho, quer dizer, a
imaginação. Nesta obra (Différence et répétition) em que muito pouco
se diz da imaginação (ou do imaginário), a imaginação irrompe aqui
violentamente, com uma operatividade decisiva, trabalhando
directamente no sentido da elaboração da ontologização. “Se cabe ao
pensamento explorar o virtual até ao fundo das suas repetições, cabe
à imaginação captar os processos de actualização do ponto de vista
dessas retomadas ou desses ecos. É a imaginação que atravessa os
domínios, as ordens e os níveis, abatendo as divisórias, coextensiva
ao mundo, guiando o nosso corpo e inspirando a nossa alma,
apreendendo a unidade da natureza e do espírito, consciência larvar,
indo sem parar da ciência ao sonho e inversamente.”275

274
L’Ile Déserte et autres textes, p.12-13.
275
DR. 358.
137

Se há encenação, sonho, drama, imaginação, então há


consciência. “A actualização faz-se segundo três séries: no espaço,
no tempo [graças aos “ritmos diferenciais”], mas também numa
consciência. Todo o dinamismo espácio-temporal é a emergência de
uma consciência elementar que traça ela própria as direcções, que
redobra os movimentos e migrações e nasce no limiar das
singularidades condensadas relativamente ao corpo ou ao objecto de
que ela é consciência. Não basta dizer que a consciência é
consciência de algo; ela é o duplo deste algo e cada coisa é
consciência porque possui um duplo, mesmo muito longe dela e que
lhe é muito estrangeiro.”276
A orientação ontológica deste texto não deixa dúvidas.
Do estudo do processo de passagem do virtual ao actual
decorrem várias consequências e questões:
1. O objecto dito empírico é constituído por duas metades
“desiguais ímpares”, uma actual outra virtual. O que a tradição
filosófica qualificou de empírico (referido apenas à experiência dos
sentidos e à consciência correspondente na recognição), revela-se,
pois, uma construção artificial. Não há objecto empírico, todo o
objecto é meio empírico ou sensível e meio transcendental ou virtual:
é empírico-transcendental podendo uma das valências pesar mais do
que a outra em infinitos graus.
2. Ontologicamente, qual a textura do mundo? Material, mas de
uma matéria que é pensamento. Incorporal, mas de uma
incorporeidade que reenvia a um “estado de coisas” (Logique du
sens). O virtual é a esfera da diferença, das unidades diferenciais
quando pensadas enquanto singularidades, e não como diferenças no
conceito (ou seja, como oposição). Por outro lado, acabámos de ver
que o processo de actualização é uma diferenciação: do objecto
extenso e das suas qualidades podemos dizer qualquer coisa; do
virtual e das suas determinações nada se pode designar: elas são

276
DR. 359.
138

inferidas a partir das insuficiências que a crítica deleuziana detectou


no discurso filosófico tradicional sobre o “sensível”. Como caracterizar
ontologicamente o virtual e a diferença? A dificuldade é tanto maior
quanto se trata de noções novas, conceitos inventados: referenciá-los
a outros, já conhecidos, é tirar-lhes uma parte da sua novidade; mas
como reenviá-los a outros, também absolutamente novos, sem supor
uma ontologia já elaborada, em ruptura com o passado?
Não possuindo ainda esta ontologia, Deleuze responde
imprecisa e enigmaticamente à questão:
“A diferença não é o diverso. O diverso é dado. Mas a
diferença, é aquilo pelo qual o dado é dado. É aquilo pelo qual o dado
é dado como diverso. A diferença não é o fenómeno, mas o mais
próximo númeno do fenómeno”277, ou: “A diferença tem a sua
experiência crucial: […] supõe uma abundância de diferenças, um
pluralismo de diferenças livres, selvagens ou não domadas, um
espaço, um tempo propriamente diferenciais, originais, que persistem
através das simplificações do limite e da oposição.”278
Entrámos na esfera do virtual. Esta não se situa num mundo
platónico das Ideias, mas no seio mesmo do “empírico”, no seio da
“ilusão do sensível”. Porque para além do sensível, na teoria
deleuziana do “acordo discordante” das faculdades, há o insensível
que só por si pode ser sentido; para além do imaginado, o
inimaginável que só por si (e não através de outras faculdades) pode
ser imaginado, e o mesmo para o pensado, etc. Em resumo, o virtual
coabita com o empírico e afecta, não um sujeito constituído, mas
apenas esboçado, “larvar”; implica, não uma experiência, mas uma
meta-experiência ou “experimentação” (arte).
Uma pequena observação sobre este processo de actualização
da Ideia virtual. No exemplo que Deleuze propõe, o da formação do
ovo (que é a formação do mundo), cada etapa de transformação (a
divisão do embrião; a formação do espaço como sonho do sujeito
277
DR, p. 361.
278
DR. p. 113.
139

larvar, etc.) implica a acção de um estilo, no sentido deleuziano.


Lembremos como Deleuze associa o estilo ao acaso e ao que ele
chama o jogo ideal (enquanto jogo de acaso absoluto). O estilo é uma
linha de variação contínua, uma linha de experimentação em que
experimentar é apostar absolutamente, deixar o acaso invadir, romper
todas as regras. E, porque o acaso é absoluto é necessariamente
vencedor. A variação contínua é feita destes sucessivos lances de
acaso absoluto que se conectam.
A formação ou génese do embrião ou do mundo é formação ou
génese de uma série de variações contínuas, ou seja de um estilo. O
Mundo é um estilo; mas o estilo como estilo do mundo não é apenas
um resultado, mas é-o só na medida em que age virtualmente na
actualização da Ideia, na sua dramatização, na sua diferenciação. É o
estilo como movimento que abala todos os determinismos,
instaurando a diferença em si de tal ou tal matéria em mutação, que
atravessa todo o processo de actualização.
Uma dificuldade surge quando nos interrogamos sobre o
estatuto destes dinamismos: se o mundo é um ovo, se é antes de
mais incessante movimento de actualização (que é repetição), se o
empírico é ao mesmo tempo virtual ou transcendental, que estatuto
ontológico atribuir a esse virtual-actual do mundo, a esse empírico-
transcendental da realidade, se o ser está unicamente do lado do
virtual? A dramatização inteira, enquanto tal, dos dinamismos
espácio-temporais, é da ordem do virtual (apesar das hesitações de
Deleuze neste campo) – como se passa afinal para o actual-empírico
que vai ser situado todo no plano da “ilusão do negativo”?
O que se pergunta aqui, é como os mecanismos virtuais dos
dinamismos produzem um ser ou objecto actual, com um estatuto não
ilusório do “empírico”. O pensamento de Deleuze cria um universo
outro, abre o imenso campo das diferenças e parece aí instalar-se
definitivamente. No entanto, se o que lhe interessa – a propósito de
tudo o que ele aborda e analisa – são os mecanismos
140

transcendentais-virtuais recobertos pelo, e existentes no seio do


empírico, não há contradição em por um lado rejeitar este último do
lado da “ilusão” do negativo e, por outro, caracterizar todo o objecto
como um duplo de virtual-actual ou de transcendental-empírico?
Porque, na verdade, Deleuze parte sempre do empírico e da
coisa dada. Parte da experiência – ousaremos dizer: fenomenológica
e, neste sentido, é um grande fenomenólogo -, para logo saltar para a
meta-experiência das intensidades e do virtual. Que se trate de
Bartleby, de Proust, das ilhas desertas, ou do que dizem as crianças,
o ponto de partida é empírico. Para muito rapidamente se descobrir
que aquele “sensível” não é empírico, mas transcendental. Mas como
legitimar então o “empirismo” do empirismo-transcendental
deleuziano?

a. Intensidades. A génese do negativo

Este é o momento de separação das duas estéticas: momento


em que a intensidade do virtual se perde na extensão e na qualidade.
Voltando à estrita problemática dos dinamismos como
processo de actualização, pode-se perguntar se as análises de
Deleuze não são finalmente tão obscuras como as descrições
kantianas do esquematismo dos conceitos. De onde vem a força dos
dinamismos para operar as criações-divisões espaciais dos primeiros
momentos da actualização do virtual? Essa força é interna e chama-
se intensidade (eis toda a diferença com Kant, cujo esquema,
segundo a crítica de Deleuze, não possui nenhum poder interno).
“Como é que a Ideia é determinada a incarnar-se em
qualidades diferenciadas, em extensões diferenciadas? O que é que
determina as relações que coexistem na Ideia a diferenciar-se em
qualidades e extensões? A resposta é precisamente dada pelas
141

quantidades intensivas. É a intensidade, o determinante no processo


de actualização. É a intensidade que dramatiza” 279.
Mas como é que a dramatização leva a Ideia a encarnar-se?
lembremos que a actualização como diferenciação (différenciation) de
séries de qualidades e extensões se distingue da “diferenciação”
(différentiation) das multiplicidades virtuais ou relações diferenciais na
Ideia280. São estas relações, assim como as singularidades virtuais
que se encarnam ou actualizam.
Se a Ideia entra num processo de dramatização, é porque as
multiplicidades de relações diferenciais que a compõem são
intensivas. As relações diferenciais são problemáticas; e todo o
problema implica uma tensão entre dois pólos, tensão que
precisamente define a intensidade. Entre E e E’ estabelece-se uma
diferença de “potência” que constitui a intensidade. E cada pólo E ou
E’ contém uma outra tensão e-e’, de tal maneira que e ou e’, por seu
turno, encerram a assimetria tensional ε-ε’ e assim indefinidamente.
Uma intensidade é envolvente e envolvida ao mesmo tempo. É
uma quantidade intensiva, não é nem simples qualidade, nem simples
quantidade.
Três traços a definem: ela contém o desigual em si.
“Representa a diferença na quantidade, aquilo que há de não anulável
na diferença de quantidade, de não igualável na própria quantidade:
ela é, portanto, a qualidade própria da qualidade.”281 Consideremos
um afecto e a intensidade no afecto: a sua quantidade é indivisível
(ou, ao dividir-se, muda de natureza) e única, incomparável, contendo
a diferença em si.
O segundo traço é que a intensidade afirma a diferença. Longe
da diferença decorrer da negação, é esta que surge depois daquela,

279
DR, p. 396.
280
Decidimos distinguir, como o faz Deleuze, em todos os textos de DR, entre a
tradução de différentiation e de différenciation, acrescentando aspas ao termo
correspondente à primeira noção: “diferenciação”. Tornamos assim mais clara a
tradução – na versão portuguesa de DR o mesmo termo traduz dois conceitos,
claramente diferentes.
281
DR, p. 376.
142

depois de uma série de transformações. Mas um afecto único afirma a


sua diferença pela intensidade que o caracteriza.
O terceiro aspecto interessa-nos agora mais: “a intensidade é
uma quantidade implicada, envolvida, ‘embrionada’”282. “Não
implicada na qualidade; isto ela é mas apenas secundariamente.
Antes de mais, ela está implicada em si mesma: implicante e
implicada. Devemos conceber a implicação como uma forma de ser
perfeitamente determinada. Na intensidade, chamamos diferença
àquilo que é realmente implicante, envolvente; chamamos distância
àquilo que está realmente implicado ou envolvido”283 .
Suponhamos ainda o afecto intensivo: nós percebemo-lo como
um bloco de pequenas percepções, uma força de que recebemos o
impacto. O impacto envolve-nos e ao mesmo tempo mostra-nos uma
diferença interna, uma modulação do conteúdo do afecto – é a sua
distância interna. Distância que não deve ser entendida num espaço
extensivo (digamos, euclidiano), mas um espaço intensivo a que
Deleuze chama spatium (ou profundidade topológica).
Sem mais desenvolvimentos, descreva-se apenas a
profundidade como a dimensão primordial, originária, segundo
Différence et répétition. Não a profundidade perspectivista que supõe
um espaço objectivo, mas “topológica”, própria do lugar: por exemplo,
nas grandes paisagens japonesas de mares revoltos, a profundidade
do espaço – uma cabana minúscula em primeiro plano mas ao longe,
por baixo de uma crista de onda gigantesca que vem do mar
longínquo para aquém do primeiro plano – não sendo gerada pela
perspectiva geométrica, condiciona todas as formas da composição
pela intensidade que dela emana.
Podemos agora compreender melhor os processos de
actualização das relações diferenciais e dos pontos singulares das
Ideias. Estas são multiplicidades virtuais intensivas; e porque são
problemas que procuram soluções, tarefas a preencher as Ideias não
282
DR, p. 384.
283
Idem.
143

existem senão para actualizar-se. Sabemos que os dinamismos


espácio-temporais são assim desencadeados, e que eles esboçam
espaços e ritmos diferenciais através de dramas, de um processo de
dramatização da Ideia. Agora sabemos que a força de dramatização,
a potência de encenação dos dinamismos reside na intensidade: “É
ela que se exprime imediatamente nos dinamismos espácio-temporais
de base, e que determina uma relação diferencial, “indistinta” na Ideia,
a encarnar-se numa qualidade distinta e numa extensão
distinguida.”284 .
A intensidade “implicada”, “embrionada” é levada a “explicar-
se”, a “desenvolver-se” segundo qualidades e extensões que
correspondem às relações diferenciais virtuais, mas que não se lhes
assemelham. Porque, ao dividir-se, a intensidade muda de natureza,
o actual difere do virtual.
A partir deste processo poderemos compreender melhor a
natureza daquilo que chamámos o actual empírico-transcendental.
Com efeito, uma dificuldade parecia subsistir na teoria dos
dinamismos: é que estes desembocam num empírico (quer dizer, em
“campos de individuação” espácio-temporais e em indivíduos) que se
apresenta como o inverso das determinações diferenciais virtuais da
Ideia. Neste sentido, o empírico significa aqui o empírico determinado
pela “experiência” perceptiva, tal como ela é pensada pela tradição
filosófica ( e, em particular, por Kant).
Teríamos assim um processo de actualização que
“desnaturaria” inevitavelmente as determinações e as singularidades
virtuais da Ideia. Obteríamos, sempre, necessariamente, no fim do
processo, extensões e qualidades que “anulariam” a diferença e a
intensidade. O actual seria afinal a realidade dóxica, perspectivada
pela doxa: pensada através da representação e da identidade que a
comanda.285

284
DR, p. 396.
285
“captar a intensidade independentemente da extensão ou antes da
qualidade nas quais ela se desenvolve, tal é o objecto de uma distorção dos
144

Ora, sabemos que não é assim. Há um actual extensivo e


qualitativo que não desnatura as Ideias, mas que se encontra
“recoberto” (vocábulo que Deleuze usa constantemente) pela
extensão identitária. A passagem do virtual ao actual – ou seja toda a
criação, todo o movimento do mundo – pressupõe assim três tipos de
“realidade”: o virtual, o empírico e o empírico-transcendental.
A dificuldade surge quando nos interrogamos sobre a natureza
do actual empírico: é uma desnaturação do empírico-transcendental?
Certamente. Toda a descrição dos dinamismos e do processo de
individuação se passa no plano transcendental – deveríamos assistir,
pois, à formação de um actual intensivo, de intensidades pré-
individuais e de diferenças sensíveis: ora, estes são impossíveis do
ponto de vista de uma experiência286 . Estaremos, pois, condenados
ao empírico? Contudo, o empírico-transcendental, a realidade
empírica-transcendental, existe: nas crianças, na arte, no
pensamento, sempre que acontece uma intensificação do actual e se
instaura um movimento de devir… Será que estes “casos” constituem
excepções? Será que o tempo e o espaço actuais estão condenados
à prevalência da identidade sobre a diferença, da indiferença sobre a
intensidade, da doxa sobre a criação?
O que significaria, afinal, que o empírico desnaturado, “o
negativo” teria mais potência ontológica do que o empírico-
transcendental, e mesmo do que a pura intensidade das
multiplicidades da Ideia. Também a potência de dissolução da morte
seria maior do que a potência de criação da vida. Na ordem
ontológica o não-ser seria primeiro, relativamente ao ser. Mas isto não
vai, de modo gritante, contra toda a filosofia da diferença de Deleuze?
Este não deixou de ter uma consciência aguda do problema.
Toda a última parte do capítulo V de Différence et répétition, “Síntese

sentidos. Uma pedagogia dos sentidos está voltada para esse objectivo”. DR,
p. 384.
286
Cf. DR, p. 394.
145

assimétrica do sensível”, é um esforço para resolver este problema,


quando ele se tece à volta do estatuto ontológico do Indivíduo.
Já a propósito do eterno retorno, que não deixaria afinal voltar
senão a diferença, o intensivo, o afirmativo, - e teríamos então um
actual, um mundo empírico-transcendental -, Deleuze escreve: “Isto
quer realmente dizer que nem a qualidade nem a extensão voltam?
Ou então seríamos levados a distinguir como que dois estados da
qualidade, dois estados da extensão? Um, em que a qualidade
fulgura como signo na distância ou no intervalo de uma diferença de
intensidade; a outra em que, como efeito, ela reage já contra a sua
causa e tende a anular a diferença. Um estado em que a extensão
permanece ainda implicada na ordem envolvente das diferenças, o
outro em que a extensão explica a diferença e a anula no sistema
qualificado. Esta distinção que não pode ser efectuada na experiência
torna-se possível do ponto de vista do pensamento do eterno
retorno.”287
E o que nos diz o pensamento do eterno retorno? Para
assegurar a primazia ontológica da realidade empírico-transcendental,
o eterno retorno promete-nos a utopia de um mundo futuro em que só
permanece o puro esplendor do intensivo: “E se o eterno retorno, mau
grado a nossa coerência e em benefício de uma coerência superior,
reconduz as qualidades ao estado de puros signos, e não retém das
extensões senão o que se combina com a profundidade original,
então aparecerão as qualidades mais belas, as cores mais brilhantes,
as pedras mais preciosas, as extensões mais vibrantes, já que,
reduzidas às suas razões seminais, tendo rompido toda a relação
com o negativo, elas [as qualidades] ficarão para sempre agarradas
(accrochées) ao espaço intensivo das diferenças positivas – então,
realizar-se-á, por sua vez, o vaticínio final do Fédon quando Platão
promete, à sensibilidade despojada do seu exercício empírico,

287
DR, p. 394.
146

templos, astros e deuses como nunca se viram, afirmações


inauditas.”288

Resta-nos conhecer os mecanismos que desnaturam a


actualização do virtual, anulando a intensidade em extensões e
qualidades. A actualização é afirmação pura: parte-se de um mundo
de “diferenças livres e selvagens”, de multiplicidades intensivas, e
chega-se a uma realidade empírica que é o inverso do virtual. Que
aconteceu? Como foi possível a transformação do intensivo em
indiferente, da diferença em homogéneo?
A questão é tanto mais intrigante quanto não existe qualquer
fundamentação ontológica para a emergência do negativo ou das
forças que recebem o actual do empírico dado numa representação.
(“Há um não-ser, e todavia não há negativo ou negação. Há um não-
ser que não é de modo nenhum o ser do negativo, mas o ser do
problemático. Este (não)-ser, este ? – ser tem como símbolo, 0”289 . Ao
negativo não corresponde nenhuma realidade ontológica: o negativo é
uma ilusão.
É verdade que a génese e o estatuto do negativo se revelam
questões decisivas para uma ontologia da diferença. Se alguma
positividade lhes fosse concedida, arruinaria o edifício completo do
pensamento da diferença. Esta deixaria de ser ontologicamente
primeira, a identidade, a representação, a doxa do senso comum e do
bom senso retomariam os seus privilégios no campo da filosofia.
Por isto tudo, a dificuldade que representa a desnaturação
inevitável (ou necessária?) do processo de actualização do virtual
deve ser resolvida. Deve ser possível dar conta da emergência e da
formação do negativo que transforma o transcendental em empírico,
sem ter de recorrer à fundamentação ontológica desse processo. (Os
termos deste problema, em Deleuze, assemelham-se aos que uma

288
DR, p. 394.
289
DR, p. 332.
147

certa tradição filosófica que ele critica, empregam relativamente à


problemática do estatuto ontológico do mal e do erro).
Qual a origem da negação e do negativo? Como sempre,
Deleuze aborda a questão sob múltiplas perspectivas, começando por
interrogar a própria natureza do negativo.
Em primeiro lugar há que distinguir dois tipos de negação: por
oposição (na proposição) e por limitação (na realidade). Ora, em
qualquer dos casos, quando se nega, faz-se uso de uma
representação identitária, criando uma relação dual. Esquece-se que
por detrás do que designa a representação, “formiga um mundo de
diferenças livres e selvagens”. Entre um nazi e um judeu existe
(ontologicamente, enquanto puros seres são, apenas, “uma vida”)
uma infinidade de multiplicidades diferenciais, de diferenças pré-
individuais. Mas a representação unifica, identifica, homogeneíza e
diferencia-se por oposição e limitação, quer dizer, neste caso, por
exclusão. A negação surgiu no próprio processo de diferenciação do
actual, mas de um actual em que as diferenças moleculares,
microscópicas, virtuais em vias de actualização, se transformaram em
relações macroscópicas na representação: é forçoso que nasça agora
a negação que “recobre” ou absorve as diferenças virtuais.
De certo modo, a negação forma-se a partir ainda do resíduo,
das diferenças, que ficou da absorção pela representação identitária.
Se a absorção tivesse sido completa, se a identidade tivesse
integrado a totalidade das diferenças livres, não haveria já esforço
para a oposição e a negação ( o nazi assimilaria todos, inclusive os
judeus, na essência do nazismo; teria uma acção de proselitismo, de
seita, e não de destruição do outro). Mas como permaneceu um resto
de diferença, este vai servir de indicador de direcção da nova relação
a estabelecer: Será por aí, por essa sombra da diferença que se
engendrará e tomará forma a negação. Bastará, para tanto, que essa
distância diferencial deixe de ser radical; se encontre cortada das
outras diferenças, agora reunidas numa identidade representada;
148

perca a dimensão da profundidade em que se encontra e seja


rebatida sobre o plano empobrecedor da representação ( o que se
tornou possível porque a sua intensidade, cortada agora da rede das
multiplicidades intensivas a que pertencia – pela ideia -, tende a ser
anulada).
Eis porque Deleuze caracteriza o negativo com expressões que
não pára de repetir: “ o negativo é a sombra da diferença”, o negativo
supõe “um elemento real e profundo”, sendo pois um elemento de
superfície, resulta de uma simplificação (homogeneização, redução
das diferenças à identidade), etc. Como é que a diferença é reduzida
ao negativo, à oposição, à contradição? “Precisamente quando a
forçaram a entrar numa identidade prévia, quando a colocaram nesse
plano do idêntico que a leva aonde a identidade quer, e a fazem
reflectir-se onde quer a identidade, quer dizer, no negativo” 290 .
Várias outras abordagens são possíveis para explicar a génese
do negativo: é a redução da questão-problema (extra-proposicional,
nas n dimensões do espaço da profundidade) a proposições-
hipóteses, decalcando-as das soluções empíricas. “Cada uma destas
hipóteses, enquanto proposições da consciência, é ladeada por um
duplo negativo: se o Uno é, se o Uno não é”291. Transforma-se assim
o problema em hipóteses, reduz-se as diferenças extra-
proposicionais, (diferenças moleculares, pequenas percepções
inconscientes) a proposições da consciência (representações), criam-
se hipóteses duplas e, mais uma vez, toma-se a diferença residual
extra-proposicional que separa ainda as hipóteses, por uma oposição
e negação. “A partir do momento em que o problema é traduzido em
hipótese, cada afirmação hipotética redobra-se numa negação, que
representa agora o estado do problema traído pela sua sombra. Não
há Ideia de negativo, como não há hipótese na natureza, se bem que
a natureza proceda por problema.”292

290
DR, p. 115.
291
DR, p. 333.
292
Idem.
149

O negativo é uma ilusão. Mas ilusão necessária, por assim


dizer, à maneira da ilusão transcendental kantiana, que provém do
próprio movimento de diferenciação (différenciation) do actual.
Porquê? Porque o movimento de diferenciação na actualização
implica o surgimento de extensões e qualidades. E as intensidades
diferenciais desenrolam-se, explicam-se, atenuam-se e tendem a
anular-se na extensão. “[A diferença] anula-se enquanto colocada fora
de si, na extensão e na qualidade que preenche essa extensão”293.
Basta então que a representação interfira para transformar o
movimento de diferenciação em oposição e negação empíricas.
Corta-se assim o próprio movimento intensivo de actualização do
virtual, substituindo-o por movimentos de negação. “As formas do
negativo aparecem sim nos termos actuais e relações reais, mas
somente enquanto se encontram cortados da virtualidade que eles
actualizam e do movimento da sua actualização. Então, e só então,
as afirmações finitas parecem limitadas nelas próprias, opostas umas
às outras, sofrendo de falta ou privação por elas próprias. Resumindo,
o negativo é sempre derivado e representado, nunca original ou
presente; o processo da diferença e da diferenciação é primeiro
relativamente ao do negativo e da oposição” 294.
Mas porque é que o movimento de actualização na extensão e
qualidade favorece o surgimento do negativo? Além das razões já
evocadas, uma há que diz respeito às características específicas da
extensão e da qualidade: a primeira está ligada a um sistema de
“conservação” que faz com que um acréscimo de extensão (“maior”)
não se compreenda sem um decréscimo numa outra extensão que
lhe está relacionada; e toda a qualidade parece ligada a um sistema
de “contrariedades”, mesmo de oposições (branco/preto, etc.). A
actualização em extensões e qualidades leva decididamente à ilusão
do negativo. Há como que uma inversão da diferença. Que passa a
ser vista de cabeça para baixo. Contrariedades e igualdades
293
DR, p. 370.
294
DR, p. 339.
150

(extensivas) são naturalmente reportadas à identidade na


representação, quando, afinal, constituem apenas um efeito de
intensidades diferenciais (agora anuladas, captadas do ponto de vista
do empírico. “É sob a qualidade, é na extensão que a intensidade
aparece com a cabeça para baixo, e que a sua diferença
característica toma a figura do negativo (de limitação ou de oposição)”
295
. A intensidade anula-se, mas fora de si própria, na extensão e na
qualidade, e ao mesmo tempo que esta transferência anuladora se
processa, a diferença inverte-se em negação. (O nazi opera a
transferência da intensidade da diferença que o separa do judeu, e ao
fazê-lo nega-o, recusa-o e esvazia-o de intensidade, redu-lo a zero de
diferença e de força: é agora ele, nazi, que possui toda a potência. A
intensidade do judeu anulou-se no ser nazi – a comparação com os
dois pólos intensidade/qualidade-extensão não é aqui senão
parcialmente pertinente, mas suficiente para ilustrar o processo geral
de inversão da quantidade intensiva).
A anulação da intensidade acompanha-se sempre de uma
captura de forças. Captura pela representação que possui um poder
entrópico, sugando pela imagem ou representação a força do
representado; captura pela criação de uma “falta ou privação”, como
se disse acima. Toda a génese do negativo supõe a construção de
uma falta que vem ocupar o lugar do signo pelo qual a intensidade se
indicava. De tal modo que se torna necessário, em cada caso,
examinar os mecanismos próprios da produção da falta no objecto
negativado. Passa a ser afectado por uma falta essencial que vai
aparecer de maneira pregnante. (Um exemplo desta produção da
falta, e portanto da anulação da intensidade, é-nos dada na
Genealogia da Moral de Nietzsche; e o Anti-Oedipe descreve
longamente a edipização como produção da falta).

295
DR, p. 381.
151

b. Profundidade

Quando o negativo recobre o intensivo, ele “afirma” a diferença


como oposição entre grandes unidades representativas. A percepção
do actual segue o ponto de vista do empírico: o espaço é objectivo, as
suas qualidades estimulam os sentidos. O mundo achatou-se: o
espaço da profundidade converteu-se num puro plano em que se
jogam unicamente relações (e não forças, intensidades, fluxos) de
limitação e oposição.
Como se passa da profundidade topológica ao mundo das
dimensões objectivas, comprimento, largura, altura? Como se
constituem os espaços não-intensivos da percepção comum? É outra
maneira de interrogar a desnaturação dos dinamismos espácio-
temporais, ou da transformação do empírico-transcendental em puro
empírico unificado na representação. Como surge a extensão
qualificada?
Há um curto texto de Différence et répétition que mereceria
longos desenvolvimentos sobre as modificações da percepção da
profundidade que levam ao seu achatamento e à anulação do
spatium, ou espaço intensivo (nem tri, nem n-dimensional, como
afirmámos; pois a profundidade intensiva, enquanto virtual, releva de
uma multiplicidade infinita de determinações diferenciais
(différentielles). Quais as dimensões daquele quadro de Matisse em
que o castanho do fundo parece cobrir a superfície das paredes, e as
arestas destas últimas definem uma outra superfície, enquanto uma
moldura “flutua” “entre” os dois?).
Resumamos as teses de Deleuze sobre a profundidade,
parcialmente contidas neste texto296:
A extensão nasce da profundidade;
A profundidade é a dimensão original;

296
DR, p. 373-377.
152

A profundidade é a dimensão da intensidade. A profundidade é


intensional;
A profundidade é uma dimensão implicada.

O desenvolvimento, ou “explicação” da profundidade como


dimensão implicada dá origem à extensão. Como? A descrição mais
pormenorizada desse processo faz do corpo seu operador essencial.
Eis o texto: “…o alto e o baixo, a direita e a esquerda, a forma e o
fundo (…) traçam na extensão quedas e subidas, correntes,
mergulhos. Mas o seu valor é apenas relativo, já que se exercem
numa extensão precisamente desenvolvida. Por isso, decorrem de
uma tendência mais “profunda”: a própria profundidade, que não é
uma extensão, mas um puro implexo. Sem dúvida, toda a
profundidade é um comprimento, uma largura possíveis. Mas esta
possibilidade não se realiza senão na medida em que um observador
muda de lugar, e reúne num conceito abstracto o que é comprimento
para ele e o que é comprimento para outrem: de facto, é sempre a
partir de uma nova profundidade que a antiga se tornou comprimento,
ou se explica em comprimento.”297
Trata-se de compreender como se forma o comprimento, a
partir da profundidade. Suponhamos um “sujeito” com o seu “corpo”,
imerso num espaço de profundidade (numa situação, por exemplo,
semelhante à da percepção da “profundidade” de uma estampa
japonesa, ou de um quadro de Matisse, ou de uma aguarela
vertiginosa da última fase de Turner): aí não há extensão, mas puras
intensidades. A profundidade de um ícone bizantino deriva da sua
aura e de outros factores não geométricos - como em Matisse ou em
Turner - não deriva da perspectiva geométrica. Mas se a explicarmos
ou a desdobrarmos, por exemplo, se recuarmos o corpo deslocando o
ponto de vista e desenhamos um outro ícone maior em primeiro
plano, interpondo um terceiro objecto entre o nosso corpo e o ícone

297
DR, pp. 371-372.
153

original – operação que equivale ao olhar do outro, que apreende já a


profundidade como comprimento -, o espaço primeiro de inversão
desdobrou-se, geometrizou-se, ganhou um outro tipo de profundidade
em que as distâncias ou comprimentos objectivos, condicionando o
tamanho relativo das coisas, parecem determinar a fundura
perspectivista. Mas é pura ilusão: “ a profundidade encontra-se
essencialmente implicada na percepção da extensão: não se avalia a
profundidade nem as distâncias pela grandeza aparente dos objectos,
mas, pelo contrário, a profundidade envolve em si própria as
distâncias que se explicam, por sua vez, nas grandezas aparentes e
se desenvolvem na extensão. É claro, também, que a profundidade e
as distâncias, neste estado de implicação, estão fundamentalmente
ligadas à intensidade da sensação: é o poder de degradação da
intensidade sentida que dá uma percepção da profundidade (ou
melhor, que dá a profundidade à percepção).”298
Uma última operação é, contudo, necessária, para que a
profundidade se desdobre e se desnature em extensão: as distâncias
homogeneizadas são subsumidas por um mesmo conceito “abstracto”
– o de “comprimento” -, determinado unicamente por quantidades
numeráveis. Mais uma vez a identidade da representação elimina as
diferenças e impõe-se como pensamento operativo, fechando a série
de transformações do espaço perceptivo inaugurado pela deslocação
do corpo. Sem mais explicitações, Deleuze supõe que a operatividade
do conceito de comprimento só resulta quando ela se exerce como
conceito da reflexão: e aqui, como conceito que se reflecte no que
para outrem é “largura”, adquirindo assim a objectividade necessária à
construção do “objecto perceptivo” (a três dimensões: o comprimento
orienta o olhar de fora para “dentro”, este, agora, puramente exterior,
na perspectiva geométrica).
Assim nasce a extensão neutra, assim se anula a intensidade
(como insensível, que no entanto só pode ser sentido “por si”), agora

298
DR, p. 373.
154

ligada à qualidade “sentida”. A extensão homogeneiza e extensiviza o


espaço e as distâncias, abolindo intensidades e diferenças na
profundidade topológica.
A análise deleuziana, além de extremamente complexa, parece
confusa, misturando imperceptivelmente dois níveis: o da
fenomenologia e o da ontologia das intensidades.
As descrições são fenomenológicas, pressupõem a percepção
e a coisa percebida, enquanto a afirmação da profundidade intensiva
implica o plano transcendental. Deleuze, como já tinha feito para a
génese do negativo, passa de um nível a outros sem mediação. Mais:
a desnaturação e a anulação da profundidade não parecem escapar
claramente à exigência de fundamentação ontológica.
Esta última questão confunde-se com a do estatuto do
negativo: enquanto ilusão – mesmo necessária -, não tem realidade
nem fundamento ontológico. No entanto, será que a solução
deleuziana – a de considerar o negativo como a sombra da diferença
- resolve satisfatoriamente o problema?
Uma das razões que explicam a ilusão do negativo é a
“inversão da diferença”: esta aparece “de cabeça para baixo”, sendo
segunda relativamente à oposição e à limitação, determinada por
uma distância na extensão e por uma contrariedade na qualidade. A
diferença subordina-se à negação, torna-se uma sua espécie e diz-se
por referência à identidade do conceito. Quer dizer: a intensidade que
a acompanha anula-se (porque a intensidade faz a diferença). Em
resumo, “é sob a qualidade, é na extensão que a intensidade aparece
de cabeça para baixo, e que a sua diferença característica toma a
figura do negativo (de limitação ou de oposição)”.299
A anulação e explicação da profundidade em extensão e
qualidade estão ligadas, assim, à ilusão do negativo. O texto que
acabámos de citar continua do seguinte modo: “A diferença não liga o
seu destino ao negativo senão na extensão, sob a qualidade que,

299
DR, p. 381
155

precisamente, tende a anulá-la. De cada vez que nos encontramos


diante das oposições qualificadas, e numa extensão em que elas se
repartem, não devemos contar, para as resolver, com uma síntese
extensiva que as ultrapassaria. Pelo contrário, é na profundidade
intensiva que vivem as disparidades constituintes, as distâncias
envolvidas, que estão na fonte da ilusão do negativo, mas que são
também o princípio de denúncia desta ilusão.”300
A ilusão do negativo surge ao mesmo tempo que a explicação,
o desenvolvimento e a desnaturação da profundidade na extensão e
na qualidade. Não haverá pois uma extensão e uma qualidade
intensivas, afirmativas de diferenças puras? A resposta de Deleuze é
clara e complexa: a profundidade, ao actualizar-se como dimensão
virtual, dá origem à extensão que recobre e envolve as diferenças
intensivas; isto não significa que estas sejam destruídas, podem ser
simplesmente veladas e aprisionadas. Ao mesmo tempo, essa
mesma desnaturação da profundidade fornece o princípio da sua
crítica, porque ela não é nunca total nem real, mas parcial e ilusória.
Por isso, porque o intensivo continua a circular “debaixo” da extensão
qualificada, e porque essa circulação se manifesta por sinais, há toda
uma “pedagogia dos sentidos” a desenvolver: “captar a intensidade
independentemente da extensão ou antes da qualidade nas quais ela
301
se desenvolve” . Ver, sentir, para além do sensível, o “insensível”
transcendental que nos dá a diferença em si mesma.
Mas porque é que a afirmação da diferença se inverte
necessariamente na ilusão do negativo? Porque é que a
profundidade, ao explicar-se, desenvolve qualidades e extensões que
necessariamente a traem? Não assistimos assim a uma
ontologização subreptícia do negativo?
Há uma página de Différence et répétition que expõe
claramente todas as dificuldades do problema, ao mesmo tempo que
pretende responder-lhes: primeiro, o processo de actualização cria
300
DR, pp. 381-382.
301
DR, p. 383.
156

diferenças “explicadas”, em que a intensidade se anula “fora de si”.


Assim se salva a ontologia do sensível (no insensível transcendental),
pois a diferença em si, “implicada em si”, “envolvente e envolvida”,
permanece intacta. Anulada só na superfície (como ilusão), fora de si,
a intensidade mantém a diferença recoberta pela ilusão da distância e
do contraste qualitativo. Segundo, forma-se assim uma outra ilusão
própria das intensidades: a de que a intensidade se desenvolve à
superfície da qualidade e da extensão, ilusão que não pode ser
evitada – mas que pode ser corrigida pela “pedagogia dos sentidos”, à
maneira da ilusão transcendental de Kant – e isto porque não se pode
impedir “o exercício empírico da sensibilidade”. Mas o que é o
exercício empírico da sensibilidade? De onde vem, sobre que solo
ontológico (ou outro) assenta? Ou não assentará em nenhum? Neste
último caso, como definir não ontologicamente uma ilusão necessária,
que não é uma aparência, mas produz objectos actuais?
Leiamos o texto inteiro: “Há uma ilusão ligada às quantidades
intensivas. Mas a ilusão não é a própria intensidade; é antes o
movimento pelo qual a diferença de intensidade se anula. Não que se
anule na aparência. Ela anula-se realmente, mas fora de si, na
extensão e sob a qualidade. Devemos assim distinguir duas ordens
de implicação, ou de degradação: uma implicação segunda, que
designa o estado em que as intensidades são envolvidas, nas
qualidades e na extensão que as explicam: e uma implicação
primeira, que designa o estado em que a intensidade está implicada
em si mesma, ao mesmo tempo envolvente e envolvida. Uma
degradação segunda, em que a diferença de intensidade se anula, o
mais elevado chegando ao mais baixo; e uma potência de
degradação primeira, em que o mais elevado afirma o mais baixo. A
ilusão é precisamente a confusão entre essas duas instâncias, entre
esses dois estados, extrínseco e intrínseco. E como poderia ser
evitada, do ponto de vista do exercício empírico da sensibilidade, visto
que este não pode senão captar a intensidade na ordem da qualidade
157

e da extensão? Somente o estudo transcendental pode descobrir que


a intensidade permanece implicada em si mesma e continua a
envolver a diferença, ao mesmo tempo que se reflecte na extensão e
na qualidade que ela cria e que, por sua vez, não a implicavam,
senão secundariamente, o necessário apenas para «a explicar». Sem
dúvida, a extensão, a qualidade, a limitação e a oposição designam
realidades; mas o ilusório é a figura que a diferença tem neste caso. A
diferença continua a sua vida subterrânea, quando se baralha a sua
imagem reflectida pela superfície. É próprio dessa imagem, mas
somente dela, baralhar-se, assim como é próprio da superfície anular
a diferença, mas somente na superfície.”302
Que nos diz Deleuze? Que o exercício empírico da
sensibilidade leva à confusão entre a intensidade implicada e a
intensidade explicada, tomando esta última pela primeira, fazendo da
diferença uma oposição ou uma limitação; que exercício é esse, que
compara e quantifica; enfim, que a ilusão, assim criada, de uma
diferença (tornada relação de negação ou de oposição) à superfície
da extensão e da qualidade, resulta de uma inversão na ordem de
subordinação do empírico e do transcendental, inversão ou confusão
inevitável pela natureza própria do empírico, não pela sua existência.
A ilusão (do negativo, ou da profundidade reduzida a uma qualidade
do espaço objectivo) não está na existência da oposição ou da
limitação, mas no lugar que ocupa a diferença quando se inverte a
ordem de subordinação ontológica. A negação é derivada e não
primeira, o negativo é ilusório porque não existe uma realidade
(ontológica) negativa.
Significa isto que as duas perspectivas – empírica e
transcendental – são legitimadas ontologicamente. A sua inversão é
que não o é. Mais: só a perspectiva transcendental é puramente
afirmativa. Se nós nos mantivéssemos de maneira permanente nela,
não haveria confusão e inversão da ordem de subordinação, não se

302
DR. pp. 388-389.
158

tomaria o empírico pelo transcendental, e não haveria ilusão das


intensidades. A questão transforma-se então numa outra: porque é
que se dá essa inversão ou confusão? Deleuze responde: ela dá-se
quando “caímos” no exercício empírico exclusivo da sensibilidade. E
porque é que “caímos”? A boa resposta final que acaba com a
tendência ao recuo infinito do questionamento sobre o “fundamento”
da ilusão ou do negativo, seria: levantar essa questão é já colocar-se
do ponto de vista mais estreito, do ponto de vista empírico que se
toma como primeiro, do ponto de vista de “baixo” como “alto”
invertido. Pois essa insistência não significa a pressuposição de um
fundamento unitário do negativo, quando a nova filosofia da diferença
proclamou o “universal afundamento” de toda a ordem de
fundamentação identitária? Perguntar pelo que permite
ontologicamente a confusão e a ilusão é, por outro lado – como se
sabe da filosofia tradicional – contraditório, porque se a ilusão tivesse
um fundamento deixaria de ser ilusória. Neste aspecto, Deleuze
parece continuar o pensamento filosófico clássico que recusa um
fundamento ao erro, ao falso e ao negativo – (se bem que o seu ponto
de vista, nietzscheano, afirme a “potência do falso”).
Nota-se, no entanto, que é o próprio Deleuze que levanta o
problema do estatuto ontológico da ilusão das qualidades intensivas e
do negativo. E é ele que dá como resposta uma explicação que não
elucida inteiramente a questão: porque é que existe a ilusão? Porque
é que há uma doxa? Porque é que a doxa é dominante, social e
historicamente? Essa prevalência, se não significa o seu valor de
universalidade e de necessidade, pode ser considerada irrelevante no
plano ontológico?
É verdade que a solução de Deleuze é mais complexa do que
o que dela já expusemos. Só a sua concepção do eterno retorno e da
dupla repetição (“nua” e “vestida”) pretende responder plenamente ao
conjunto das dificuldades encontradas, como veremos mais adiante.
159

Uma lacuna na descrição dos mecanismos de anulação da


profundidade parece, no entanto, não preenchida, ficando para
sempre aberta. A transformação da profundidade em comprimento
(profundidade perspectiva), envolve a posição de dois corpos no
espaço, duas perspectivas diferentes de uma dimensão do espaço
euclidiano e um movimento de pensamento que as reúne num
conceito abstracto. A descrição é fenomenológica, mostrando a
génese de uma ilusão (a profundidade geométrica). Mas não se vê o
que a permite, mais: o que a engendra é a profundidade como
dimensão ontológica primeira. Digamos, apenas, que há um hiato
entre o plano fenomenológico e o plano ontológico que o pensamento
de Deleuze deixa aberto.

2. Solução de Deleuze: como colmatar a cisão?

Mostrou-se anteriormente a importância dos dinamismos para


compreender o momento, o processo da separação das duas
estéticas. A separação ocorre no momento mesmo da actualização,
por diferenciação, as qualidades e as extensões perdem-se, esbatem-
se. O actual vai desnaturalizar o virtual. A partir de uma estética
bifurcarão duas.
Dá-se a separação, porque a incarnação do virtual vai-se
perder nas qualidades e extensões. Surgirão os objectos que, não
sendo estéticos, pertencerão ao mundo empírico. Sobre eles há toda
uma teoria do sensível - do real só se retém a conformidade com a
experiência possível. Aparecerá a equivocidade da ideia do sensível.
Como chegamos à percepção comum das extensões e
qualidades que anulam as intensidades? “«Há, nas percepções,
certas coisas que não convidam o pensamento a um exame, porque a
percepção basta para determiná-las, e há outras que o obrigam
160

inteiramente a este exame, na medida em que a percepção nada


fornece de sadio(…)» – Este texto [de Platão] distingue, portanto,
duas espécies de coisas: (…) As primeiras são objectos de
recognição”.303 Aí, o intensivo terá de homogeneizar-se, transformar-
se, as diferenças livres e selvagens que o constituem são anuladas,
capturadas (pela representação), recobertas pelo negativo. A
percepção poderá somente dar-nos uma verdade/experiência
possível, que não é independente de um estado dos que a
experimentam. Este negativo forma-se, sempre derivado, de um
“resto”, de uma “sombra da diferença”, que se reduz a uma identidade
(identidade de uma qualidade comum a duas sensações, por
exemplo), faltando-lhe “uma marca singular”. A génese do negativo
supõe então a construção de uma falta, explica-se pela “inversão da
diferença”. A diferença subordinar-se-ia à negação.

Por outro lado, surgirão objectos num espaço/tempo intensivo


em que a qualidade e a extensão não se anulam. Serão objectos de
uma estética artística que recolhem o real da realidade. A obra de arte
moderna, segundo Deleuze, reunirá as condições necessárias para
tal, porque “é um ser de sensação, e nada mais: existe em si.”304
Para Deleuze, partimos sempre do empírico e da coisa dada,
do concreto, para depois encontrarmos nesse sensível um não
empírico. Teremos um objecto, composto, que não é completamente
empírico. Será sempre duplo (virtual/actual) e desigual nas suas
partes, condicionado, ímpar – empírico-transcendental. Teremos uma
experimentação (transcendental). “Todas as coisas têm como que
duas «metades»”. É preciso que em cada coisa nada haja de idêntico,
a identidade seja “esquartejada numa diferença em que se desvanece
tanto a identidade do objecto visto como a do sujeito que vê.”305

303
DR, p. 239.
304
QF, p. 145.
305
DR, p. 122.
161

Neste caso, o mundo é assimilável a um “resto”306. Um resto


que apesar de tudo subsiste, rebelde. “Só pode ser sentido”, é um
αισθητεον.
Poderíamos cair num caos total, mas não caímos porque tudo
muda quando se afirmam os dinamismos. Tudo muda com a
intensidade (ela é a forma da diferença, a condição daquilo que
aparece), porque ela tem a tendência a negar o que a anula. Tudo
muda, também, no movimento empírico, quando se introduz um
elemento estranho, paradoxal, um movimento da imaginação do qual
resultam os dinamismos, que se desdobram em séries, diferenciando-
se. O intensivo continuará sempre a circular, ainda que
subterraneamente. Continuarão a haver distribuições “fantásticas”,
loucas repartições e anarquias coroadas.
O mundo não se perde totalmente na transcendência,
libertamo-nos das identidades fundamentais e das formas habituais.
O processo da diferença e da diferenciação é primeiro relativamente
ao negativo. O mundo intensivo e “anexacto” continuará a fazer-se
porque os cálculos divinos não são perfeitos. “Deus faz o mundo
calculando, mas os seus cálculos nunca estão correctos, e é mesmo
esta injustiça no resultado, esta irredutível desigualdade, que forma a
condição do mundo. O mundo «faz-se» enquanto Deus calcula; não
haveria mundo se o cálculo fosse correcto.”307 O essencial não é a
semelhança nem a identidade mas a diferença interiorizada que se
torna imanente.

Mas, como fazer desaparecer a cisão?


Precisamos:

1. De um outro tipo de cérebro que possa lidar com as zonas


de indistinção (que escapam aos esquemas cognitivistas) e atinja o
intensivo sem o desvirtuar. Do cérebro-árvore, para um cérebro-
306
DR, p. 361.
307
Idem.
162

sistema incerto-rizomático, que funciona por rupturas308. Entre a louca


diferença e a diferença anulada, existirá um “pensamento [que]
pense a diferença, este absolutamente diferente do pensamento que,
todavia, faz pensar”309.

2. De uma sensação que se abra à experimentação, à


imanência.

3. De outras coordenadas que não o alto/baixo,


direita/esquerda, Forma/fundo.

4. De captar a intensidade independentemente da extensão,


precisamos ver, sentir, para além do sensível. Precisamos de alguma
coisa que é contrária aos princípios do pensamento – do eterno
retorno; do corpo sem órgãos.

5. De saber porque é que a cada instante no mundo sensível


se abrem brechas e porque é que precisamos sempre de lá voltar.
Quer dizer a ilusão é necessária (talvez porque não suportemos
completamente a realidade), mas é preciso sair dela.

6. De reunir as duas estéticas. Não num objecto, mas num


certo tipo de encontro essencial que seja a condição da experiência
real.310

308
IT, 265- 280. Deleuze refere-se a um modelo de cinema cerebral, sistema
acentrado, espaço cerebral topológico, que descobre a criatividade do mundo,
“as suas cores suscitadas por um novo espaço-tempo, as suas potências
multiplicadas pelos cérebros artificiais”. A possibilidade de criar, de renovar
todo o nosso conhecimento cerebral deve-se ao facto de qualquer coisa ter
mudado, a saber, o nosso conhecimento científico do cérebro. Operaram-se
novas distribuições, das quais mais do que rupturas, produziram novas
orientações. “A nova imagem do pensamento é agora constituída por três
aspectos: topológico, probabilitário e irracional. Cada um deduz-se facilmente
dos outros e forma com eles uma circulação: a noosfera.” p. 281.
309
DR, p. 368.
310
DR, p. 450.
163

a. O eterno retorno ou o ser do devir

Em 1962, Deleuze, escreve um livro sobre Nietzsche e a


filosofia. Trata-se de um livro sobre o pensamento ou um modo de
pensar contra a dialéctica. Não é só um livro de um comentador sobre
um filósofo. O problema que o atravessa não é só de Nietzsche, é
uma longa história, diz Deleuze. Desde os pré-socráticos até hoje – o
eterno retorno, enquanto pensamento que se quer constituir numa
ontologia, promete-nos o futuro (ou uma “crença”), assegurando e
permitindo o acesso à realidade empírico-transcendental.
A exposição que a seguir se apresenta sobre o eterno retorno é
exclusivamente deleuziana. Partindo do primeiro livro de 62, centra-se
contudo no desenvolvimento elaborado em Différence et répétition e
na conclusão do capítulo XII de Critique et Clinique. Eventualmente
controversa, porque Deleuze não adere à interpretação tradicional do
eterno retorno como o eterno retorno do Mesmo, esta exposição
funda-se na ideia de que o eterno retorno deve ser pensado como
uma síntese onde a identidade não designa a natureza do que volta,
mas ao contrário o facto de voltar significa que volta o que difere.
Numa palavra, o eterno retorno não deve aqui ser interpretado como
o retorno do idêntico, mas como um pensamento que faz a subversão
completa do mundo da representação. Não é o Mesmo que retorna (o
que até pode parecer um contra senso). O círculo que faz retornar o
Mesmo deve ser abandonado para que se possa afirmar a pura
diferença. A figura do círculo (“entre os Antigos, gira-se”, “entre os
Modernos, vai-se a direito: esta oposição entre um tempo cíclico e um
tempo linear é uma ideia pobre.”311) não serve já porque não nos traz
nada de novo. O eterno retorno terá de “desfazer o seu círculo físico
ou natural, bem centrado de mais, e formar uma linha recta, mas que,

311
DR, p. 390.
164

levada pelo seu próprio comprimento, torna a formar um círculo


312
eternamente descentrado.”
O eterno retorno tem então um duplo aspecto: pode ser
exposto enquanto doutrina cosmológica e física313 , afirmando o ser do
devir; mas é também uma ontologia selectiva314
O mesmo só retorna para trazer o diferente. O eterno retorno
não faz “o mesmo” retornar, mas o retornar constitui o único Mesmo
do que devém. Pode pensar-se o mesmo a partir do diferente. O
eterno retorno é pensamento e é ser do devir315. Devir não é neste
sentido (uma operação de transformação) imitação, assimilação ou
analogia, em conformidade a um modelo, tão pouco é o resultado da
troca de dois termos, muito menos é uma evolução. Será evolução
não-paralela, dupla captura316 , entre-dois.
“Quando dizemos que o eterno retorno não é o retorno do
Mesmo, do Semelhante ou do Igual, queremos dizer que ele não
pressupõe qualquer identidade. Ao contrário, ele diz-se de um mundo

312
DR, p. 204.
313
N, p. 53.
314
N, p. 77.
315
No estudo sobre Nietzsche, a noção de devir aparece como multiplicidade,
diferença, possibilidade de afirmação do ser. Heraclito foi quem o compreendeu
melhor (segundo Nietzsche), fazendo do devir uma afirmação. Heraclito “é
aquele para quem a vida é radicalmente inocente e justa. Ele compreende a
existência a partir de um instinto de jogo, faz da existência um fenómeno
estético”(27), inocente. A luta dos inúmeros seres, o jogo, não é senão pura
justiça. Em dois tempos: afirmando o devir, afirmando o ser do devir. Dois
tempos que precisam de um terceiro termo ( o jogador, “artista ou criança”). Foi
o que fez Heraclito, afirmou o devir e o ser e relacionou-os. Mesmo sendo
considerado obscuro, sabemos que a afirmação do devir é a afirmação do ser,
uma dupla afirmação: o ser é o devir, o devir é o ser – “O jogador abandona-se
temporariamente à vida, fixa temporariamente o seu olhar sobre ela; o artista
está temporariamente na sua obra e temporariamente acima dela; a criança
joga, retira-se do jogo e volta.”(28). Voltar sempre, é o que faz a criança que
pode jogar repetidamente um (ou vários) jogo, ir-se embora, parecendo que o
jogo acabou e voltar ao mesmo (que não é já) ponto de onde tinha partido,
aparentemente com a mesma atenção. Até pode parecer aos olhos habituais
do adulto uma dispersão completa, uma desatenção, mas não é. A criança
volta, não ao mesmo jogo, mas ao mesmo jogo já diferente, jogando de cada
vez tudo quanto há para jogar, num único lance. Voltar é o ser do devir, ser que
se afirma no devir, jogo que se joga segundo uma lei – a do eterno retorno.
316
D, pp. 12-13. “É como os pássaros de Mozart: há um devir-pássaro nessa
música, mas apanhado num devir-música do pássaro, os dois formando um
único devir, um só bloco, uma evolução a-paralela, de modo nenhum uma
troca, mas «uma confidência sem interlocutor possível»”.
165

sem identidade, sem semelhança, sem igualdade. Ele diz-se de um


mundo cujo próprio fundo é a diferença e em que tudo repousa sobre
disparidades, diferenças de diferenças que se repercutem
indefinidamente ( o mundo da intensidade). (…) É preciso que as
coisas sejam esquartejadas na diferença e tenham a sua identidade
dissolvida para que venham a ser presa do eterno retorno e da
identidade no eterno retorno. Pode-se, então, medir o abismo que
separa o eterno retorno como crença «moderna», e até mesmo
crença do futuro e o eterno retorno como crença antiga ou
supostamente antiga.”317
Só Heraclito compreendeu este pensamento. O eterno retorno
é o resultado de um único lance. Não é um pensamento do idêntico,
mas um pensamento sintético, pensamento do absolutamente
diferente, que reclama um novo princípio. Não é a permanência do
mesmo, do estado de equilíbrio, nem do igual. O que volta não é o
Uno, mas o retorno é ele mesmo o uno que se diz somente do diverso
e do que ele difere. “Que o instante actual não seja um instante de ser
ou do presente «em sentido estrito», que ele seja o instante que
passa, força-nos a pensar o devir, mas a pensá-lo precisamente como
o que não pode começar e o que não pode acabar de devir.”318
Deleuze pergunta: “ Como é que o pensamento do puro devir
funda o eterno retorno?”
O instante tem de ser presente e passado, presente e futuro,
as relações entre todos os instantes é um problema de passagem
(Ariadne passa de Teseu a Diónisos) para o qual o eterno retorno é a
resposta319 .
O devir traz a diferença e nela é preciso que as coisas sejam
“esquartejadas”, quer dizer, seleccionadas, eliminando tudo o que é
intensivamente fraco, todas as forças reactivas que recobrem o
intensivo.

317
DR, p. 390.
318
N, p. 54.
319
V. toda a teoria das três sínteses do tempo, no capítulo II de DR.
166

É, pois, inevitável a absoluta necessidade do eterno retorno,


como “crença moderna”, ser selectivo. Concebê-lo como pensamento
selectivo e pensar a repetição no eterno retorno como selectiva é a
mais elevada prova da sua distinção. Eliminar o que o torna
impossível, o que não pode retornar jamais, eis a tarefa.
“Tudo depende da distribuição das repetições sob a forma, a
ordem, o conjunto e a série do tempo”320. Adquire-se um formidável
poder de selecção quando se reúnem e distribuem todas as
repetições e se introduz entre elas a diferença (é a diferença que
desfaz, extrai a forma pura, faz o tempo sair dos “eixos”). A diferença
estará atrás de toda a coisa não havendo nada atrás da diferença.
O eterno retorno consegue assim operar a verdadeira
selecção, porque elimina, dissolve identidades, semelhanças,
oposições, analogias, desfaz as categorias estabelecendo a
diferença. Elimina o que não tem força, o fraco e extrai o mais forte:
« a forma superior de tudo o que é». Esta selecção constitui a
ontologia de Nietzsche: o Ser pertence ao devir, está ligado a uma
transmutação. Temos um mundo novo onde todas as identidades são
por fim abolidas e dissolvidas, num movimento selectivo. Não vem em
primeiro nem em segundo lugar, não vem depois, mas já está
presente em toda a metamorfose, sem identidade e verdadeiramente
caótico. Traz o mundo das diferenças implicadas umas nas outras,
sem mediações, as ressonâncias e os movimentos forçados que
afirmam a divergência, a desconexão. Selecciona porque elimina,
espécie de plano de abolição, força expulsiva, centrífuga que distribui
a repetição “nos três tempos do pseudo ciclo [do eterno retorno] (…).
O negativo, o semelhante, o análogo são repetições, mas não
retornam, banidos para sempre pela roda do eterno retorno.”321

A afirmação que retorna já seleccionada faz-se entre o que não


retorna e é eliminado e o que retorna:
320
DR, p. 465.
321
Ibid. p. 468.
167

O que não retorna O que retorna:


e é eliminado:

O Mesmo/A Identidade O Diferente


O Semelhante O Dissimilar
O Igual O Desigual
O Ser como representação O Ser do devir
A Doença A Saúde
O Pré-determinado O Acaso
A Negação A Afirmação
O Fraco O Intensivo

O eterno retorno selecciona porque elimina. Retorna porque há


criação. É um segundo tipo de selecção.
A afirmação da diferença reconquista-se como Ariadne-
Diónisos e só se liberta no extremo da sua potência. “Passar de
Teseu a Diónisos é, para Ariadne, uma questão de Clínica, de saúde
e de cura. Para Diónisos também. Diónisos precisa de Ariadne.
Diónisos é a afirmação pura; Ariadne é a Anima, a afirmação
desdobrada, (…) o Eterno retorno é o produto de uma dupla
afirmação, que faz voltar aquilo que se afirma, e faz devir apenas
aquilo que é activo.”322
Sair dos eixos, em função do que lhe convém e não em função
de qualquer distribuição “sedentária”, conserva a vida. A
convalescença ou a cura de Zaratustra, o segredo de Diónisos são o
exemplo desta selecção: “não se trata já, pelo simples pensamento do
eterno retorno, de eliminar (…); trata-se, pelo eterno retorno, de fazer

322
CC, p. 144.
168

entrar no ser o que não pode aí entrar sem mudar de natureza.”323


Criar é “o riso, o jogo, a dança. Postos em relação com Zaratustra, o
riso, o jogo, a dança são as potências afirmativas de transmutação: a
dança transmuta o pesado em ligeiro, o riso, o sofrimento em alegria,
o jogo do lançamento (de dados), o baixo em alto.”324
O retorno é uma vida que luta por uma outra espécie de vida,
afirmando-se diferente, afirmando a sua diferença elevada à mais alta
potência. Para cada coisa é preciso, encontrar os meios particulares
pelos quais ela é afirmada, “pelos quais ela cessa de ser negativa”.
Quanta angústia, diz Deleuze, antes de extrair a alegria (singularidade
não permutável, insubstituível), antes de retornar o excessivo, antes
de afirmar a vida, a vida ligeira.
O que aqui está em questão é também a possibilidade de
produção de um movimento capaz de atingir a alma e que seja o
movimento da alma. É certo que a referência a este movimento diz
respeito a Kierkegaard, mas na mesma página325 Deleuze diz que
com Nietzsche isto acontece por maioria de razão. Dizendo ainda que
não nos podemos esquecer que o eterno retorno é um movimento
vertiginoso, dotado de uma força capaz de seleccionar, eliminar,
expulsar assim como de criar, de produzir, dotado de uma força capaz
de pensar. O movimento que nos restitui a alma, a força de o pensar
equivale a um roubo do que nos foi roubado.
Quanta angústia para reaver o que nos foi roubado por
Deus326 .
Não se trata de uma qualquer troca entre o homem e Deus,
mas sim de um roubo: “Os reflexos, os ecos, os duplos, as almas não
são do domínio da semelhança ou da equivalência [da generalidade];
e assim como não há substituição possível entre os verdadeiros
gémeos também não há possibilidade de se trocar a alma. Se a troca

323
N, p. 80.
324
N, p. 222.
325
DR, p. 53.
326
CC, p. 176.
169

é o critério da generalidade, o roubo e o dom são os critérios da


repetição.”327 Há mesmo uma impossibilidade de fazer tal troca.
O movimento capaz de atingir a alma, movimento vertiginoso
que ultrapassa as impossibilidades e as impotências é o que é
primeiro no pensamento: “é o roubo328. Sem dúvida, a impotência
pode permanecer impotência, mas ela apenas, pode ser elevada à
mais alta potência.”329
A grande ideia de Nietzsche seria fundar a repetição no eterno
retorno. A repetição, esta repetição é “o eco de uma vibração mais
secreta, de uma repetição interior e mais profunda no singular que a
anima.” Remete, portanto, para uma singularidade que é diferente,
por natureza, da generalidade. Tomar a repetição à letra é o que
propõe Deleuze330. Pensar a repetição na sua literalidade.
A repetição será então a novidade, ligada à prova selectiva,
ela elimina, mas também traz de novo a diferença. Se se morre por
causa dela, também nos podemos salvar, porque ela cura, cura-nos
da outra repetição, que analisaremos mais adiante. Nela, há
simultaneamente “todo o jogo místico da perdição e da salvação, todo
o jogo teatral da morte e da vida, todo o jogo positivo da doença e da
saúde (cf. Zaratustra doente e Zaratustra convalescente, graças a
uma mesma potência, que é a da repetição no eterno retorno).”331 O
roubo e o dom fazem a diferença entre a vida e a morte, entre viver e
morrer.

327
DR, p. 42.
328
“Dizemos o mesmo a propósito dos devires: não é um termo que devém
outro, mas cada um encontra o outro, um único devir que não é comum aos
dois uma vez que não têm nada a ver um com o outro, mas que está entre os
dois, que tem a sua direcção própria, um bloco de devir, uma evolução a-
paralela. (…) Encontrar é descobrir, capturar, roubar. Mas não há um método
para descobrir, apenas uma longa preparação. Roubar é o contrário de plagiar,
de copiar, de imitar ou de fazer como. A captura é sempre uma dupla-captura,
o roubo, um duplo roubo. É assim que se cria, não algo de mútuo, mas um
bloco assimétrico, uma evolução a-paralela, núpcias, sempre «fora» e «entre».
(…) Descobrir, encontrar, roubar, em vez de resolver, reconhecer e julgar.” D,
pp. 17-19. (sublinhado nosso).
329
DR, p. 329.
330
Em DR, Deleuze, propõe que a repetição se possa introduzir no estilo. 48.
331
DR, p. 48.
170

No fundo, Deleuze pretende aprofundar a teoria nietzschiana


do eterno retorno, resolvendo talvez as controvérsias à volta do
retorno como ciclo (da repetição do Mesmo) ou como afirmação da
diferença (ciclo sempre descentrado). Para tanto, Deleuze elabora
uma teoria extremamente complexa da repetição – que sustenta e
atravessa o seu grande livro matriz Différence et répétition.
Teoria que tenta resolver inúmeras questões: a formação das
dimensões do tempo e a resolução das suas aporias; a possibilidade
da criação do novo como diferença (com efeitos na psicanálise, na
filosofia da natureza, na moral, na teoria da arte e da literatura, na
própria vida quotidiana); a articulação da estética e da ontologia, em
particular com uma interpretação original da teoria do eterno retorno.
É esta última questão que estará no horizonte da breve e
sumaríssima exposição que se segue, pois interessa imediatamente a
matéria que nos propusemos tratar.
Há que considerar, segundo Deleuze, dois tipos de repetição: a
repetição “material” ou “nua” (como repetição do mesmo), e a
repetição “espiritual” ou “vestida” (que cria a diferença sem conceito).
A primeira não produz diferença pois remete o que se repete para
uma generalidade subsumida por um conceito, quer dizer, uma
representação identitária. Mas esta repetição nua é afinal uma ilusão:
ilusão, porque parece “natural” e “primeira”. De facto, ela é produto da
repetição vestida e, enquanto tal, é segunda.
Suponhamos um exemplo, a compulsão à repetição do
neurótico, cuja “causa”, Freud identifica ao instinto de morte em Para
Além do Princípio do Prazer. O que se repete – no caso Dora, por
exemplo – não é o amor de Dora pelo pai, ou antes ele só se repete
“através de outros papéis, representados por outros e que ela própria
representa por relação aos outros (…). Os disfarces e as variantes, as
máscaras ou os travestis, não vêm «por cima», mas são ao contrário
171

os elementos genéticos internos da própria repetição, as suas partes


integrantes e constituintes”332
Numa palavra, e extrapolando para todo o trauma, a repetição
deste não supõe um trauma originário e real333, mas pelo contrário só
é possível através dos disfarces e máscaras múltiplas que adopta. A
repetição do sintoma não provém de uma fixação num acontecimento
real da infância, mas a primeira repetição desse acontecimento no
fantasma supõe todas as outras repetições que mascaram,
simbolizando esse acontecimento (ele próprio fantasmado). Assim é o
disfarce que cria a diferença, é a repetição mascarada ou vestida”334
que extrai uma pequena diferença à repetição bruta do acontecimento
nu.
O exemplo da repetição na psicanálise vale para todo o género
de repetição. A festa, por exemplo, da tomada da Bastilha, repete a
tomada da Bastilha a qual celebra já, antecipadamente, as outras
maneiras (com outros símbolos mascarados), as outras cerimónias a
vir da cerimónia da Bastilha. Estas, repetem elevando à potência n, a
tomada da Bastilha, acontecimento “insubstituível”.
Dito de outra maneira: 1. É a repetição vestida que cria ou
extrai a diferença da repetição nua. Esta (como repetição do Mesmo),
enquanto pura repetição material é no fundo uma ilusão da
representação e do conceito. A repetição vestida, tomando outras
formas, outros rostos, outras vestimentas, revela a diferença que se
esconde na repetição nua. 2. Porque é que qualquer coisa se repete?

332
DR, p. 64.
333
Sobre este tema Deleuze refere-se várias vezes ao texto célebre de Leclaire
et Laplanche sobre Origem do fantasma e Fantasma originário em que os
autores mostram que o fantasma originário não se funda sobre um facto real
mas é ele próprio ficcionado.
334
DR, cf. pp. 64, 65 e seg. Sobre a repetição, relacionando-a com o trabalho
de Freud na psicanálise. Para Freud a cura e a não cura obtêm-se pela
transferência. Noção que Deleuze diz ser antes de tudo repetição. “Se a
repetição nos torna doentes, é também ela que nos cura; se nos aprisiona e
nos destrói, é ainda ela que nos liberta, (…). Toda a cura é uma viagem ao
fundo da repetição. (…) Com efeito, a reflexão sobre a transferência foi um
motivo determinante para a descoberta de um «para-além». É neste sentido
que a repetição constitui, por si mesma, o jogo selectivo da nossa doença e da
nossa saúde, da nossa perdição e da nossa salvação” p. 68.
172

Qual o movimento que leva à repetição se não visa a afirmação da


diferença? A pura repetição nua não justifica o próprio movimento da
repetição: só uma repetição que se mascara, “que representa outros
papéis” como no teatro, surge como fundamento do movimento da
repetição (de que sai a diferença).
A repetição vestida é pois primeira, é ela que cria a repetição
nua. É “vertical”, age subterraneamente sobre a segunda onde se
encontra “envolvida”, enquanto a repetição nua é superficial e
“desenvolvida”. Outras características as destinguem, que
apresentamos a seguir sucintamente335:

Repetição nua Repetição Vestida

Estática Dinâmica
em extensão Intensiva
Horizontal Vertical
igualdade/simetria desigualdade/assimetria
do mesmo diferença sem conceito
Material Espiritual
Desenvolvida Envolvida
tem lugares fixos/ é sucessiva desloca-se/ é coexistência
Negativa afirmada por excesso
Habitual Singular
Exactidão Selecção

Quando, no último capítulo de Différence et répétition, Deleuze


procura pensar a solução para a cisão das duas estéticas, é ainda

335
Para um inventário completo das diferentes características que as definem,
v. DR, p. 454.
173

aos dois tipos de repetição que recorre. A elas vai, no entanto,


acrescentar uma outra – a “repetição ontológica”.
Só a repetição vestida fará do eterno retorno um movimento de
que nascerá a diferença. A repetição material do Mesmo resulta
paradoxalmente da repetição como um resto ilusório representado no
conceito – isto porque a força da repetição vestida, o seu excesso que
vem do facto de ela elevar à potência n a repetição material, são
captados, pensados na identidade do conceito, na generalidade
indiferente do repetido como sempre igual a si mesmo, numa iteração
indefinida. Assim, a acção da repetição vestida é paradoxal: ela cria a
diferença, e ao mesmo tempo cria as condições para a anular (ou
melhor: para ser pensada como nula ou indiferente, a “diferença entre
dois conceitos”).
Como evitar que este resto seja assim pensado, captado como
o negativo de uma identidade prévia? É o mesmo problema da
génese do negativo. Nada nos garante que tal não aconteça, tanto
mais que “a segunda repetição [vestida] participa de todas as
ambiguidades da memória e do fundamento”336. Deleuze refere-se
aqui à memória transcendental de Bergson, cuja concepção adopta
(como dimensão necessária à compreensão da passagem do
tempo337), mas que recusa como fundamento das sínteses temporais.
Por isso afirma que “a distinção das duas repetições é ainda
insuficiente”338 .
Uma tal concepção da repetição vestida implica o retorno não
do Mesmo mas de totalidades que coexistem entre diferentes ciclos
ou “diferentes níveis ou graus”. Já não se trata da repetição vestida
que existe em profundidade na repetição nua superficial para lhe
extrair a diferença, mas da diferença entre grandes ciclos, grandes
níveis de repetições vestidas. Um risco surge agora: “como evitar que
esta profunda repetição não seja recoberta pelas repetições nuas que

336
DR, p.462.
337
V. DR, cap. II.
338
DR, p. 462.
174

ela inspira, e não se deixe apanhar pela ilusão de um primado da


repetição bruta? Ao mesmo tempo que o fundamento recai na
representação do que ele funda, os círculos põem-se a girar à
maneira [allure] do mesmo”339.
Como evitar este perigo? Construindo o pensamento de uma
terceira repetição em que as duas primeiras se desfazem numa
repetição de afundamento, pelo qual o fundamento “se aboliria num
sem fundo, em que as Ideias se desligariam das formas da memória
[do passado transcendental], em que a deslocação e o disfarce da
repetição viessem desposar a divergência e o descentramento como
potência da diferença”340. Ou ainda: “para lá da repetição fundada, e
da fundadora, uma repetição de afundamento, de que dependem ao
mesmo tempo o que aprisiona e que liberta o que morre e o que vive
na repetição. Para lá da repetição física [ou nua] e da repetição
psíquica ou metafísica [ou vestida], uma repetição ontológica?”341
Como é que esta repetição evita os riscos de recaída na
repetição do mesmo, na repetição nua, na ilusão do negativo?
“Fazendo jogar simultaneamente todas as repetições, com a sua
diferença de natureza e de ritmo, a sua deslocação e o seu disfarce
respectivos, a sua divergência e o seu descentramento, encaixando-
as umas nas outras e, de uma a outra, envolvendo-as em ilusões cujo
efeito varia em cada caso”342.
Deleuze refere-se aqui à distribuição nomádica e ao jogo ideal.
É impossível, também, não nos lembrarmos da maneira como ele
entende a construção do estilo artístico. Aliás, quem é capaz de uma
tal repetição ontológica? “A arte”343 . Porque é capaz de jogar o jogo
ideal, como diz Rimbaud344 . “A arte não imita, mas isso acontece,
primeiramente porque ela repete, e repete todas as repetições

339
Idem.
340
Idem.
341
Idem.
342
DR, pp. 462-463.
343
DR, p. 462.
344
DR, p. 448.
175

conforme uma potência interior (…)”345. Mais,: a arte tem talvez uma
vocação ontológica. Trata-se não já da representação ou de pura
imagem que remete para a vida como referente, mas da própria vida
que se exprime na imagem. “Quanto mais a nossa vida quotidiana
aparece estandartizada, estereotipada, submetida a uma reprodução
acelerada de objectos de consumo, mais deve a arte ligar-se a ela e
dela arrancar essa pequena diferença (…) para que, finalmente, a
Diferença se expresse com uma força de cólera ela mesma repetitiva,
capaz de introduzir a mais estranha selecção (…) isto é, uma
liberdade para o fim do mundo”346
A vocação da arte é a ontologia. Porque a obra de arte constrói
mundos, um universo, um Caosmos.

O eterno retorno enquanto “forma afectiva primitiva”347 poderia


dar conta das dificuldades (do mundo empírico, das forças reactivas
que recobrem o intensivo, etc.), no sentido em que ele é mesmo o
movimento ontológico (ou faria da ontologia um uso minoritário),
movimento do ser (univocidade do ser, realização efectiva desta
univocidade) que é ao mesmo tempo produção do mundo intensivo
(mundo da arte), chegando à “experiência real”. É na profundidade
onde reside o caos que evolui e se elabora o eterno retorno. O eterno
retorno afirma o caos da diferença. Mundo que não é finito nem
infinito, é Caosmos. E só tem um sentido: “ausência de origem
assinalável” = Diferença. Caos e eterno retorno não são duas coisas
distintas, mas uma mesma afirmação.”348 Afirmação do Pensamento.
Mas poderá este eterno retorno (em ruptura com o eterno
retorno do mesmo) retomar somente aquilo que é intensivamente
forte, a mais alta potência, resolver a cisão? Que espécie de mundo
teremos? Qual o estatuto do mundo empírico nestas condições?

345
DR, p. 463.
346
DR, pp. 462-463.
347
N, p. 71.
348
N, p. 123.
176

Dizendo de outro modo: a realização da ontologia faz-se


mesmo através do eterno retorno. Mas quem é o pensador do eterno
retorno? Quem o poderá realizar na prática? Como realizar a
repetição ontológica que reúne em si todas as repetições, realizando
a absoluta necessidade do acaso, das distribuições nomádicas, da
realização de um mundo de que o caos é o factor permanente da sua
consistência?

b. O jogo ideal

A articulação do (jogo) lançamento de dados (modelo do jogo


ideal) com o pensamento do eterno retorno é feita por Deleuze no
livro sobre Nietzsche. Deleuze encontra um jogo diferente dos jogos
comuns, para o qual à primeira vista é difícil encontrar o sentido e a
função: jogo da diferença e da repetição, solitário e divino. O jogo
ideal.
Um primeiro enunciado indica-nos já a natureza deste jogo: há
uma dupla implicação reciproca entre o jogo ideal e o eterno retorno.

O jogo ideal aproxima-nos do eterno retorno. Estão os dois


necessariamente implicados um no outro. Dupla implicação, que
como iremos ver se poderá materializar na arte.
Sabemos que o eterno retorno é um pensamento intensivo,
resultado e criação do jogo ideal, e a máxima intensificação do
acaso. Já sabemos também que não é um jogo colectivo, nem
humano.
Mas é preciso saber como se obtém a intensificação, é preciso
saber se se sabe jogar. Se conseguirmos um dispositivo349 de

349
Em Deux régimes de fous, edição preparada por D. Lapoujade com textos
de Deleuze de 75 a 95, p. 317, Deleuze responde à questão: o que é um
dispositivo? Dizendo (noção de Foucault) que é um labirinto, um conjunto
177

intensificação que atinja ou se aproxime do máximo de acaso teremos


a solução.
Para Nietzsche (eterno retorno e vontade de poder são
indissociáveis) esse dispositivo é a vontade de poder, para Proust350
ou Pessoa351 é o Corpo sem órgãos. Deleuze em Différence et
répétition e Logique du sens ainda não dispõe desse dispositivo352 .
O eterno retorno é potência de afirmar (é a afirmação do
aleatório, absolutamente diferente, que produzirá a necessidade e a
intensificação). Quer dizer, “ele diz-se da diferença”. Em Différence et
répétition, a diferença é a primeira afirmação, é o jogo, o eterno
retorno é a segunda, a repetição é a potência própria da diferença. “A
diferença só se reconquista, só se liberta no extremo da sua potência,
isto é, pela repetição no eterno retorno.”353 A intensificação máxima é
aqui produzida pela diferença. Só há intensidade máxima quando há

multilinear. Composto de linhas de natureza diferente. Linhas que são de


forças ou linhas de variação. Todo o dispositivo se define pela criatividade e
novidade. Traça processos sempre em desequilíbrio, segue direcções. Como
última dimensão do dispositivo, Deleuze considera a importância que Foucault
atribui aos critérios estéticos, como critérios de vida: “Quando lemos os últimos
livros de Foucault, devemos pelo menos compreender o programa que ele
propõe aos seus leitores. Uma estética intrínseca dos modos de existência,
como última dimensão dos dispositivos?” p. 321.
350
No final da segunda parte ( que só aparecerá na segunda edição, em 1970)
do livro sobre Proust, Deleuze interroga-se sobre a necessidade desse
dispositivo. Mostra a importância, na obra de Proust, de uma dimensão
transversal, dizendo que será a transversalidade (conceito de F. Guattari)
enquanto dimensão suplementar “que tem a potência de ser o todo das suas
partes sem as totalizar, a unidade de todas estas partes sem as unificar” (203).
Esta dimensão suplementar não representa a transcendência, será a
imanência, a dimensão do narrador. Mas, não será ainda o verdadeiro
dispositivo. Em 1976, será acrescentada à terceira edição, um texto que já
tinha sido publicado em 73, uma conclusão, aí Deleuze parece já ter
encontrado a solução: “Na verdade, o narrador é um enorme Corpo sem
órgãos. Mas o que é um corpo sem órgãos?” p.218.
Deleuze responderá no último parágrafo. A aranha, corpo sem órgãos,
apanha a mais pequena vibração que se propaga no seu corpo numa onda
intensiva…. O narrador deve ser dotado de uma sensibilidade extrema, de uma
memória prodigiosa, de um dispositivo, corpo sem órgãos. Dispositivo que
produz a máxima intensificação.
351
Sobre Fernando Pessoa, veremos em Qu’est-ce que la Philosophie?
Deleuze referir-se à comparação possível com Proust e ao seu dispositivo.
Conhecimento que vem do trabalho do filósofo José Gil, sobre Pessoa em
Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, ed. Relógio d’Água.
352
Mais tarde encontrá-lo-á no corpo sem órgãos que irá agir na estética.
353
DR, p. 472.
178

novidade máxima, quando há excesso, criação, quando a repetição é


repetição ontológica. Quando a afirmação é criação de imanência e
não de transcendência. Quando se pode jogar este jogo divino.
Só jogando podemos fazer voltar o eterno retorno. Mas é
necessário saber jogar.
Em Nietzsche et la philosophie, a noção de jogo aparece ligada
ao jogo de dados (jogo esse que afirmaria o devir). O eterno retorno
como o pensamento seriam então o resultado do lance de dados
(modelo do jogo ideal). Para Nietzsche o lançamento dos dados joga-
se em dois tabuleiros distintos: na terra e no céu. Na terra lançamos
os dados, que cairão no céu. Não é um jogo em que existam múltiplos
lances, pelo contrário trata-se de um só lance. Nele afirmar-se-á todo
o acaso.
O jogo é constituído então por dois momentos que são os de
um lance de dados (os dados que lançamos e os que caem). O lance
afirma o devir e afirma o ser do devir. Trata-se de um só lance. “Os
dados que lançamos uma vez são a afirmação do acaso, a
combinação que eles formam quando caem é a afirmação da
necessidade”.354 Este jogo, já sabemos, tem um só lance, que é
necessariamente uma “combinação vitoriosa”. Num só lance afirmam-
se todos os acasos. Não se procura ser ganhador através de uma
sucessão de lances, mas afirmando todos os lances, todas as
fórmulas. Como é evidente, afirmar todos os lances sem distinção
num só lance instaura a imanência. Nenhum lance prevalece sobre
outro, cada um exprime o todo do acaso. Na afirmação de todas as
fórmulas o que conta é que elas sejam sempre todas diferentes. Só
jogando podemos ganhar (a diferença).
Saber afirmar todo o acaso é o requisito para saber jogar355.
Mas saberemos nós jogar este jogo? “Diz-se, que o homem não sabe

354
N, p. 29.
355
“O Aiôn é o jogador ideal ou o jogo.” LS, p. 81.
179

[jogar356] brincar: é que, mesmo quando ele se dá um acaso ou uma


multiplicidade, ele concebe as suas afirmações como destinadas a
limitá-lo, as suas decisões como destinadas a conjurar-lhe o efeito”357.
Em Différence et répétition e Logique du sens o tema do jogo
ideal é retomado. O que caracteriza o jogo humano?
Habitualmente jogamos com regras pré-estabelecidas,
categóricas, e com distribuições fixas, numericamente distintas,
sabemos sempre de antemão as regras. Senão, sabemos pelo menos
a mais importante: tanto podemos ganhar como perder. Nesta lógica,
os maus jogos são os que perdemos, os bons, aqueles que
ganhamos. Corremos riscos, mas não são muitos, sabemos que
estamos a arriscar, por isso não arriscamos tudo. Estes, são jogos de
razão358, jogos parciais, que ocupam somente uma parte da
actividade dos homens, “fixam o acaso somente em certos pontos, e
deixam o resto para o desenvolvimento mecânico das consequências
(…). Forçosamente, sendo mistos, reenviam para um outro tipo de
actividade, o trabalho ou a moral, de que são a caricatura ou a
contrapartida, mas também porque integram elementos de uma nova
ordem.”359
São jogos que respondem a um certo número de princípios,
que podem, diz Deleuze, ser objecto de uma teoria. Conforme os
jogos, só a natureza das regras difere (há sempre um conjunto de
regras que pré-existe ao jogo). Afirmamos o acaso, mas não todo,
estabelecemos limites, não havendo lugar para excessos.
As regras determinam “hipóteses” que dividem o acaso em
ganhos e perdas, são elas que organizam e determinam todas as

356
Em francês jouer significa também brincar, expressão que é usada na
tradução portuguesa.
357
DR, p. 205.
358
Em N, p. 31, Deleuze refere-se à raiz destes jogos na razão, e a raiz seria:
“O espírito de vingança, nada mais que o espírito de vingança…”
359
LS, p. 75.
180

operações, os lances, que são numericamente distintos, “cada um


operando um distribuição fixa que recai sob tal ou tal caso”360
Serão, nesta lógica, bons, mesmo bons aqueles em que se
ganha? Provavelmente pode parecer, mas mau jogo é tanto o que
ganhamos como o que perdemos, mau jogo é aquele onde não
afirmamos, quer ganhemos ou percamos, todo o acaso. Também não
chega opor um jogo divino ao jogo humano, é preciso “imaginar”
outros princípios mesmo que inaplicáveis. Eis os princípios de um tal
jogo ideal:
Primeiro, é um jogo sem regras pré-existentes. O jogo, o
acaso, incidem sobre a sua própria regra. Esta (por exemplo, lançar
os dados sobre uma mesa) deve também ser objecto de jogo e
resultado de um acaso. Ao incidir sobre a sua regra, transformando-a
em acaso, o acaso não cessa de proliferar: esta nova regra que o
jogo (que o jogo incida sobre a regra) deve por seu turno ser objecto
de jogo, e assim indefinidamente. Desta forma, em cada lance afirma-
se todo o acaso, e o lance resulta necessariamente vencedor – pois
só há vencidos quando há graus de acaso numericamente fixos,
padrões imutáveis relativamente aos quais se perde ou ganha. Agora,
tendo desaparecido esses padrões porque o acaso invadiu o jogo
inteiro, só pode haver vencedores por cada lance assim jogado.
Os lances deixam de ser numericamente distintos: “Cada um,
necessariamente vencedor, implica a reprodução do lançar sobre uma
outra regra que recorta ainda todas as suas consequências nas
consequências do precedente”361 . Os lances distinguem-se apenas
formalmente, “sendo as diferentes regras as formas de um mesmo
360
LS, p. 74. Cf. “Há várias maneiras de jogar, e os jogos humanos e colectivos
não se assemelham a este solitário jogo divino. Podemos opor as duas
espécies de jogo, o humano e o ideal, segundo várias características.
Primeiramente, o jogo humano supõe regras categóricas preexistentes. Em
seguida, estas regras têm o efeito de determinar probabilidades, isto é,
«hipóteses» de perda e hipóteses de ganho. Em terceiro lugar, estes jogos
nunca afirmam todo o acaso; pelo contrário fragmentam-no e, em cada caso,
subtraem do acaso, exceptuam do acaso a consequência do lance, pois
consignam tal ganho ou tal perda como necessariamente ligado à
hipótese.”(DR, p. 447)
361
DR, p. 448.
181

lançar ontologicamente uno ao longo de todas as vezes”362. Os


resultados serão distribuídos segundo regras fixas ou hipóteses
probabilísticas (decorrendo das regras fixas e do números de lances)
mas num espaço de errância nomádica.
Este primeiro princípio implica os seguintes que o explicitam.
Segundo, não dividir, não fragmentar o acaso num número de
lances realmente distinto.
Terceiro, qualitativamente distintos, “todos são formas
qualitativas de um só e mesmo lançar, ontologicamente um. (…) O
único lançar é um caos, de que cada lance é um fragmento. Cada
lance opera uma distribuição de singularidades, constelação. Mas em
vez de partilhar um espaço fechado entre resultados fixos em
conformidade com as hipóteses, são os resultados móveis que se
repartem no espaço aberto do lançar único e não partilhado:
distribuição nómada, e não sedentária”363.
Este jogo sem regras, sem responsabilidade, “jogo da
inocência” parece não ter nenhuma realidade.
Para ser bom jogo tem de ser capaz de num só lance afirmar
todo o acaso.
Como vimos não se trata de um simples jogo de acaso, porque
não tem regras pré-definidas, pré-determinadas. Cada golpe, cada
lance, inventa as suas próprias regras. Não divide o acaso, não o
fragmenta, mas afirma-o em cada lance, todo o acaso se joga, todos
os lances num só. No processo de criação, o acaso aparece todo de
uma só vez, a cada instante. É um jogo de pura experimentação,
ideal.
Neste jogo, que não sabemos ainda se é possível jogarmos,
não chega dizer que é um jogo que surge por oposição aos maus
jogos. Neste (bom) jogo arriscamos tudo, ele será o “sistema do
futuro”.

362
Idem.
363
LS, pp. 75-76.
182

Não resulta, nem chega para a sua realidade, podermos dizer


que este jogo é aquele onde se dá a máxima intensificação do acaso.
Não só ideal como também impossível e irreal, talvez não possa
mesmo ser jogado. Mas pode ser pensado porque é “a realidade do
próprio pensamento. (…) insuflando por todo o lado o acaso e
ramificando cada pensamento, reunindo «numa vez» o «cada vez»
para «todas as vezes». Pois afirmar todo o acaso, fazer do acaso um
objecto de afirmação, só o pensamento o pode. E se tentamos jogar
este jogo de outra maneira, nada acontece, e se tentamos produzir
um outro resultado diferente da obra de arte, nada se produz. É então
o jogo reservado ao pensamento e à arte, aí onde não há mais que
vitórias para os que souberam jogar, quer dizer, afirmar e ramificar o
acaso, em vez de o dividir para o dominar, para apostar, para ganhar.
Esse jogo que não está senão no pensamento, e que não tem outro
resultado senão a obra de arte, é também isso pelo qual o
pensamento e a arte são reais, perturbam a realidade, a moralidade
e a economia do mundo.”364
Perturbam porque há no pensamento365 uma “desrazão”, aí o
caminho faz uma “dobra”, a razão mergulha num “além”. O que é, o
que devém inscreve-se precisamente no momento em que os dados
são lançados. Este “lançar que nos torna da raça dos deuses não é
todavia, o nosso. (…) Os imperativos são os do ser, toda a questão é
ontológica (…). A ontologia é o lance de dados – caosmos de onde o
cosmos sai.”366
Esta ontologia distingue-se aqui da má ontologia que Deleuze
em Différence et répétition quer “seleccionar”. Tal como o jogo divino
é totalmente distinto do jogo humano. O jogo da diferença e da
repetição é um jogo onde os dados são lançados “contra o céu, com
toda a força de deslocamento do ponto aleatório, com os seus pontos

364
LS, p. 76.
365
DR, pp. 438-439: “A teoria do pensamento é como a pintura: tem
necessidade dessa revolução que faz com que ela passe da representação à
arte abstracta; é este o objecto de uma teoria do pensamento sem imagem.”
366
DR, p. 328.
183

imperativos como relâmpagos, (…). Eles atiram-se sobre a Terra com


toda a força das soluções vitoriosas que restabelecem o lançar.”367
Também há uma filosofia que se distingue das outras. As
distribuições que presidem quer ao jogo, quer à ontologia ou à
filosofia são totalmente distintas (nómadas e não sedentárias,
irredutíveis e incompatíveis). São complexos de espaço e tempo dirá
Deleuze, descontínuos, complexos reais de lugares e momentos.
Mais longe ainda: “para além da representação supomos que haja
todo um problema do Ser posto em jogo por essas diferenças entre as
categorias e as noções fantásticas ou nómadas, a maneira pela qual
o ser se distribui aos entes – em última instância, a analogia ou a
univocidade?.”368

É este o nó central e “imperativo” do nosso problema.


Imaginemos que este problema se joga como num jogo de dados, o
problema está mesmo no lançamento ou melhor no lançar, na
capacidade de afirmar suficientemente todo o acaso.
Se o eterno retorno é o resultado do lance de dados, também a
ontologia o é. Ambos são então resultado de um jogo divino. A
ontologia recoloca-se e realiza-se enquanto espaço de jogo, do qual
nos aproximamos através da arte e do pensamento. “De Duns Scot a
Espinosa, a posição da univocidade esteve sempre baseada em duas
teses fundamentais”369 : Primeira: há sem dúvida formas do ser, mas
não dividem o sentido ontológico; segunda: “aquilo do qual o ser se
diz é repartido segundo diferenças individuantes essencialmente
móveis”.
Não é este o verdadeiro lance de dados? Não há lançamentos
formalmente distintos, num lance ontologicamente único?
O que faltou a Espinosa segundo Deleuze foi “realizar a
univocidade como repetição no eterno retorno”. De certa maneira,

367
DR, p. 449.
368
DR, p. 451.
369
DR, p. 476.
184

Nietzsche supera essa falta. O lance unívoco constrói um plano de


intensificação máximo (plano de imanência) onde todas as
possibilidades se realizam. Do lado da filosofia, o pensador do eterno
retorno, tal como o entende Deleuze, cria uma ontologia de
distribuições nomádicas, em que a unidade se diz segundo categorias
“fantásticas” ou delirantes, do tipo das de Whitehead, como vimos.
Porque, essas noções “são condições da experiência real, e não
apenas da experiência possível. É mesmo neste sentido que, não
sendo mais amplas que o condicionado, reúnem as duas partes da
estética (…), a teoria das formas da experiência e a da obra de arte
como experimentação.”370

Quem sabe antes de mais jogar este jogo? Quem realiza na


prática este pensamento? Quem é o pensador do eterno retorno? O
jogador do jogo ideal?
Se o homem habitualmente não sabe jogar, como poderá
descobrir essa outra maneira de jogar?
Com as crianças que estão sempre lá, na máxima
intensificação do acaso. Com a arte que, à sua maneira, “diz o que
dizem as crianças.” O artista pode jogar este jogo, repetindo e agindo,
criando vida que se confunde com a arte, e pode unir as duas
estéticas. É pelo processo criativo que o sentido do ser unívoco se
inscreve. Produzindo, criando o novo, o diferente, não por prazer mas
por necessidade, porque é uma fonte de vida371. “Um criador não é

370
DR, p. 450.
371
Nos D, Deleuze refere-se também ao encanto como fonte de vida dizendo
que: “Aqueles que não têm encanto não têm vida, são como mortos. Mas o
encanto não é de todo a pessoa. É aquilo que permite apreender as pessoas
como outras tantas combinações, e de acasos únicos de que aquela
combinação tenha sido retirada. É um lance de dados necessariamente
vencedor, porque afirma suficientemente o acaso, em vez de o recortar, de
probabilizar ou de mutilar o acaso. Além disso, por intermédio de cada frágil
combinação, é uma potência de vida que se afirma, com uma força, uma
obstinação, uma perseverança no ser sem igual." pp. 15-16.
185

um ser que trabalha por prazer. Um criador não faz senão aquilo de
que tem absoluta necessidade”372.
É o seu segredo, como o segredo de Heraclito é o instinto de
jogo. Instinto que lhe permite compreender a existência e fazer dela
um fenómeno estético373.

3. Arte, eterno retorno e jogo ideal: para não termos árvores na


cabeça

Somente pela arte se resolve o problema da cisão. Num só


plano, porque é o plano da vida. Para não perdermos por completo o
mundo. “Há apenas um plano, no sentido em que a arte não comporta
outro plano senão o da composição estética”374.
Citemos um texto de uma psicanalista sobre o belo. Antes de
mais, o belo “deve existir. Creio que é o primeiro sentimento de todo o
ser humano: o sentimento do belo, associado às primeiras
percepções por altura do nascimento.(…) É um facto, é uma
observação. É belo, ligado ao masculino e ao feminino, ou somente
ao feminino; belo para mulher, belo para homem, belo masculino, belo
feminino, belo vegetal, belo animal, belo imóvel, belo móvel, belo
cósmico. O belo é a quinta-essência do humano, esse sentimento
precoce que está ligado ao odor do corpo da mãe, ao brilho do seu
olhar (…). É a alegria, é de um só lance [de uma só vez] uma força de
irrupção de vida.”375 Texto de cariz claramente deleuziano.
Este sentimento do belo é para Françoise Dolto qualquer coisa
de divino e está no começo da vida, quando se nasce há uma

372
Deux régimes de fous, p. 294.
373
N, p. 27; Na Origem da tragédia, Nietzsche fala de um “mesmo instinto que
exige a arte para a vida, (…) que faz da arte um encantamento que nos impele
a continuar a viver”. ed. port. p. 74.
374
QF, p. 172.
375
Françoise Dolto, Solitude, ed. Ergo, 1988, p. 50.
186

“irrupção da vida-bela”. No começo do mundo, no começo do


pensamento, a irrupção é uma pura captação de forças.
Podemos encontrar esta mesma “alegria” em Deleuze. O
pensamento estético é um modo de pensar, com sensações. A vida
empenha-se imediatamente nele, e arrisca, produzindo, criando. Este
sentimento precoce não foi ainda recoberto pela vida quotidiana,
como o serão outros mais tarde. A arte, o artista, por necessidade,
procura também captá-lo, usando matérias e criações que têm o
poder de transformar todas as outras. O artista realiza na arte esta
mesma irrupção de vida que no bebé é espontânea e vital. É o
mundo, a natureza, na sua poderosa produção de vida.
Deleuze premonitoriamente aproxima-se desta lei da criação
que age não por prazer mas por necessidade. Para o filósofo, para o
artista, não é de um mero sentimento que se trata mas de um “afecto”.
De um excesso que falha a medida, a correcção dos cálculos, numa
zona de indeterminação, de indiscernibilidade, em que um fluxo de
pensamento ou um bloco de sensações entra num devir outro (fluxo
de pensamentos ou bloco de sensações).
Não haveria mundo se os cálculos fossem correctos mas há
mundo. Há mundo porque há uma espécie de injustiça nos cálculos
há mesmo “muita inverosimilhança geométrica, muita imperfeição
física, muita anomalia orgânica, do ponto de vista de um modelo
suposto, do ponto de vista das percepções e afecções vividas, mas
estes sublimes erros acedem à necessidade da arte se são os meios
interiores de a manter em pé (…). Manter-se de pé por si só não é ter
um alto e um baixo, não é ser direito (porque até as casas são
pendentes e de esguelha), é apenas o acto pelo qual o composto de
sensações criado se conserva em si próprio.”376
A arte, como a repetição, “recolhe tudo de uma certa maneira;
de uma outra maneira destrói tudo; e de outra maneira ainda

376
QF, p. 145.
187

selecciona tudo.”377 O movimento mais mecânico, habitual,


quotidiano, estereotipado encontra o seu lugar na obra de arte. A arte
não representa o mundo. É o mundo tornado imanente. Todos os
domínios se integram, confundem, na arte e na vida. O problema
estético é mesmo o “da inserção da arte na vida quotidiana”. Porque
deve a arte, cada vez mais, ligar-se à nossa vida quotidiana?
Para nos salvar (e resolver de vez a infeliz cisão) da
reprodução acelerada de objectos de consumo, arrancar a esta vida
uma pequena diferença, introduzindo a mais estranha selecção,
mesmo que seja uma contracção aqui e ali, um estilhaçamento,
apenas repetido. “Cada arte tem as suas técnicas de repetições
imbricadas, cujo poder crítico e revolucionário pode atingir o mais
elevado ponto para nos conduzir das mornas repetições do hábito às
profundas repetições da memória e, depois, às repetições últimas da
morte, onde se joga a nossa liberdade.”
A arte opera uma verdadeira transmutação da matéria, opera
rupturas e conserva. Resiste. É mesmo, para Deleuze, a única coisa
do mundo que resiste à morte e se conserva. As condições para
pensar a arte, hoje, já não são as mesmas (por exemplo distinções
entre clássico e moderno). Os fluxos, as resistências, o inesperado,
as redistribuições impensadas mudam tudo sem cessar, deslocando,
disfarçando, divergindo.
Pela arte a filosofia pode fugir à imagem dogmática do
pensamento, diz o filósofo. A arte servir-nos-á como “instrumento”
para nos aproximarmos das respostas que procuramos. É a vida e a
morte que estão aqui em jogo.
Porque temos de atenuar constantemente o delírio, o
inexplicável, o paradoxo? Não sentimos nós constantemente que há
alguma coisa, um excesso contrário às leis da natureza que nos
apanha, que é criação pura?

377
DR, p. 462.
188

TERCEIRA PARTE

Estética

1. A génese do estilo

A análise precedente permitiu-nos destacar certos aspectos


essenciais da articulação do pensamento estético de Deleuze com a
sua ontologia.
Presentemente, trata-se não de um estudo exaustivo (de
obras ou de autores) mas antes de traçar as linhas centrais que
constituem este pensamento. Um estudo exaustivo exigiria a análise
de todas as obras que Deleuze consagrou a esta problemática e que
atravessam todos os domínios da arte: pintura, literatura, música,
poesia, cinema, etc. Não sendo possível, a nossa investigação
centrar-se-á nas obras que nos parecem decisivas: Francis Bacon:
logique de la sensation, Mille Plateaux, Qu’est-ce que la Philosophie?,
L’Image-temps. Será através delas que entraremos no que julgamos
ser o mais importante, neste momento da nossa investigação.
É do seio mesmo do pensamento estético, quer dizer do seu
interior, que temos agora de partir. Quando Deleuze e Guattari em
Mille Plateaux, reservam um dos seus mais longos capítulos ao
problema do mundo da criação, estão a dar-nos indicações precisas
para a elaboração de uma espécie de cosmogonia da arte. Perguntar
quando começa a arte, num certo sentido é o mesmo que perguntar
quando, em que tempo e em que espaço começa o mundo. Averiguar
o que há de criação no criado é uma forma de tentar saber algo sobre
esta génese (ainda que Deleuze diga que não há propriamente uma
génese, a menos que seja uma “heterogénese”). Se partimos do
189

mundo já inscrito, criado, será preciso ir ao princípio do mundo,


admitir pois um princípio, entrar nas aporias clássicas da origem.
Tarefa infindável e sem dúvida inconclusiva. No entanto, Deleuze,
pretende alcançar um começo do mundo, uma génese, se bem que
situando-se num plano totalmente diferente.
Se a criação da obra de arte e a criação do mundo se podem
pensar em simultâneo (na condição de poder pensar a criação
artística como modelo de toda a criação), de uma certa maneira
podemos pensá-las a partir do caos.
Numa primeira hipótese, a criação do mundo dependeria da
forma como se organizaram as formas e as substâncias, dependeria
de um artista que seria como Deus. A partir do caos organizar-se-ia a
vida. No princípio era o caos...
Poder-se-á, numa segunda hipótese, com o caos, pensar de
outro modo (o par matéria-forma, substituir-se-ia por: material-forças).
Esta hipótese que também pensa a partir do caos é a que nos vai
interessar. Primeiro porque não há propriamente uma dependência da
divindade como na primeira hipótese, há antes, uma autonomização
que se produz, não a partir de formas e substâncias organizadas,
regras, etc., mas sim a partir de uma matéria não formada ou da
dissolução das formas e das matérias, quer dizer do interior do próprio
caos, de um puro caos. Como produzir então um mundo? Como sair
do caos e conquistar esta autonomia?
Como caracterizar o artista capaz de o fazer? Qual ou quais os
procedimentos (processos) por ele utilizados? Mesmo que cada
artista tenha um modo concreto de produção, e pretenda resolver
problemas diferentes, como nasce o seu estilo?

O “universo, o cosmos é feito de ritornelos”378

378
MP, p. 380. A noção de ritornelo é comum a Deleuze e Guattari. Aparece
em Mille Plateaux em 1980, contudo, já tinha aparecido, com Guattari, em
L’inconscient machinique, Paris, Recherches- Encres, 1979, pp. 244 - 314. Cf.
Pascale Criton, A propósito de um curso do dia 20 de Março de 1984. O
190

O ritornelo é um movimento (de criação). “Improvisação” que


captura forças (é preciso que uma força se exerça, esteja nas próprias
coisas, seja condição – para haver captura - para a formação e
génese do cosmos), intensidades, estados de velocidade.
Deleuze e Guattari iniciam o capítulo (“plateau”) sobre o
ritornelo com um exemplo que nos é a todos familiar: a criança que,
para adormecer, para espantar o medo, canta uma canção que a
tranquiliza. Um outro exemplo, o mesmo processo: conta-se que
durante os bombardeamentos de Londres (na Segunda Grande
Guerra), as mulheres voluntárias recolhiam e protegiam as crianças
órfãs num lugar bem escuro no “metro”. Para afastar o medo
cantavam sem parar, em conjunto com as crianças, pequenas
canções repetitivas que se prolongavam tanto tempo quanto
durassem os bombardeamentos. Sabe-se que funcionava, as
crianças tranquilizavam-se e adormeciam. As canções iam ao ritmo
dos bombardeamentos, quer dizer, acelerando mais ou menos.
É verdade, que às vezes (quase sempre) as crianças
acompanham a voz com movimentos, saltam, embalam-se, “no seio
do caos”. É já a canção que é um salto, diz Deleuze, “ela salta do
caos, há um início de ordem no caos.”
A criança no seu salto, e graças ao ritmo, captura forças que
lhe permitem acalmar-se, que lhe devolvem o mundo, aparentemente
mais seguro.
É uma questão de forças (no ritornelo afrontam-se e
concorrem em conjunto as forças do caos, as forças terrestres e as
forças cósmicas.). Mas não só. O que faz a criança quando canta,
baixinho, rebolando-se na cama? A canção até pode ser inventada,
muitas vezes é, e repete, repete até à exaustão qualquer coisa, uma
improvisação (um lá, lá, lá). Uma mãe que conta, por desejo da
criança, a mesma história durante três meses, com pequenas
variações, inventadas em cada noite, mas sempre a mesma história,

ritornelo e o galope, in “Gilles Deleuze: uma vida filosófica”, São Paulo, editora
34, 2000, pp. 495-505.
191

por pura alegria, ou canta um mesmo hum, hum, hum, hum, para a
criança que está noutra divisão da casa e quer explorar a casa
através da voz da mãe. É já também uma questão de espaço,
território, presença do mundo, e não angústia ou medo. O “hum” ou o
“lá” deixam marcas num certo espaço, nos objectos que estão no
espaço, nas paredes e até no ar e no tempo. “O ritornelo fabrica
tempo”379. É um bloco de espaço-tempo.
No ritornelo há “toda uma actividade de selecção, de
eliminação, de extracção, para que as forças íntimas terrestres, as
forças interiores da terra, não sejam submersas, para que possam
resistir, ou mesmo que possam ir buscar qualquer coisa ao caos
através do filtro ou do crivo do espaço traçado.(...) Um erro de
velocidade, de ritmo ou de harmonia seria catastrófico, pois destruiria
o criador e a criação trazendo de novo as forças do caos.”380
Para que o criador e a criação resistam é necessário que as
forças do caos encontrem uma região, um ritornelo. Os seus
“motivos” podem ser diferentes: de medo, angústia, territoriais,
amorosos, de trabalho, etc., mas o que se pretende é encontrar o
mundo ou confundir-se com ele ou mesmo deixá-lo.
Traçar um território, é o que faz o ritornelo. Territorial ou “lugar
de passagem” (porque se entra e sai), o ritornelo é um “agenciamento
territorial”. Um território é, como veremos mais adiante, um “acto que
afecta os meios e os ritmos, que os territorializa. O território é o
produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos (...) constrói-
se com aspectos ou porções de meios”381.
Um território, na verdade, é feito de meios, ou melhor, contém
em si três tipos de meios que Deleuze e Guattari já tinham referido no
terceiro capítulo382 de Mille Plateaux. “Num sentido geral, chamamos

379
MP, p. 431.
380
MP, p. 382.
381
MP, p. 386.
382
V. MP, pp. 65-68. Neste capítulo sobre a geologia da moral, caracterizam-se
diversos tipos de meios: exteriores (constituídos por materiais fornecidos por
um substrato, por exemplo a sopa pré-biótica); interiores (constituídos por
elementos e compostos de um estrato regulam os graus na complexidade e a
192

ritornelo a todo o conjunto de matérias de expressão que traça um


território, e que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens
territoriais (...). Num sentido restrito, falamos de ritornelo quando o
agenciamento é sonoro ou «dominado» pelo som”383 .
Um dos seus componentes é o espaço (outro será o tempo –
um tempo liberto da medida). Traça-se um círculo, forma-se um
contorno que deixa de fora as forças do caos, permitindo que no seu
interior residam “as forças germinativas” de uma obra que se há-de
fazer. Em alguns jogos (infantis, no desporto, em certas cerimónias
primitivas, rituais, etc.) traçam-se literalmente círculos no chão, é
dentro deles que o jogo irá decorrer, eles marcam o território do jogo,
é uma espécie de espaço sagrado. Noutros jogos pode mesmo só
traçar-se uma linha, (ou até não se traçar linha nenhuma, sabendo
que ela está invisível num determinado sítio) será ela a definir o
espaço real onde decorrem os acontecimentos. Dentro das linhas, a
criança joga ou dança em segurança, no seu território. Os pássaros
(como outros animais de modos diversos, por exemplo com cores
vivas, ou cheiros, marcas no espaço, etc.) com os seus cantos
marcam o seu território, lançam o seu ritornelo.
Consideremos então os aspectos do ritornelo que Deleuze
acha que, não sendo momentos sucessivos numa evolução, se
encontram de qualquer modo misturados. Em síntese: 1. “o caos é um
imenso buraco negro e esforçamo-nos para aí fixar um ponto frágil
como centro”; 2. “o buraco negro” torna-se um território; 3. sai-se do
território (desterritorialização). Partimos do caos até um agenciamento
territorial e depois saímos dele.

diferenciação das partes de um organismo); entre os dois, o limite, a membrana


que regula as trocas e a transformação da organização, as distribuições
interiores ao estrato, um meio intermediário (estes trazem novas figuras dos
meios ou materiais, mas também dos elementos e compostos). Deleuze
designa estes por epi-estratos. Finalmente, um terceiro, um meio associado ou
anexado.
383
MP, p. 397.
193

Zourabichvili384 refere estes três aspectos, ou tríades, da


seguinte maneira: Primeira tríade: “1. Procurar encontrar o território,
para esconjurar o caos, 2. Traçar e habitar o território que filtra o caos,
3. Sair do território ou desterritorializar-se num cosmos que se
distinga do caos.”
Em seguida uma segunda tríade (não a partir de Mille Plateux
mas de Qu’est-ce que la Philosophie?: “1. Procurar um território, 2.
Partir ou desterritorializar-se, 3. Voltar ou reterritorializar-se”.
Não há incompatibilidades entre as duas versões. Numa ou
noutra, vai-se do caos para um agenciamento territorial, organiza-se o
agenciamento, sai-se para outros agenciamentos ou para outro lugar
qualquer. Quer dizer, há um movimento de territorialização e
desterritorialização. Podendo dizer-se ainda que formamos territórios,
saímos deles e num terceiro movimento, não menos importante,
refazemos um território385.
Não há incompatibilidade, há planos que diferem encontrando
entre si relações e uma evolução a-paralela. O que se passa, quando
a criança canta baixinho porque tem medo ou traça um círculo no
chão, ou quando o pássaro canta, é que se está “no plano de
imanência: multiplicidades povoam-no, conectam-se singularidades,
desenvolvem-se processos ou devires, intensidades sobem ou
descem.”386
O ritornelo está em relação com o território, e “exprime a
tensão do território com qualquer coisa de mais profundo, que é a
Terra.”387 O território está, portanto, em relação com a terra. No
território há sempre um lugar onde todas as forças se reúnem, “num
corpo-a-corpo de energias. A terra é esse corpo-a-corpo.”388

384
F. Zourabichvili, Le vocabulaire de Deleuze, Paris, ed. Ellipses, 2003, p. 74.
385
QF, p. 62. Cf. nesta página o exemplo do hominídeo ou “cada pessoa, em
qualquer idade, tanto nas mais pequenas coisas como nas maiores provações,
procura encontrar um território, suporta ou organiza desterritorializações, e se
reterritorializa em qualquer pequena coisa, lembrança, «fetiche» ou sonho.”
386
P, p. 201.
387
P, p. 200.
388
MP, p. 395.
194

Em Qu’est-ce que la Philosophie? os autores referem-se a


esta relação dizendo: “vimos já que a terra não cessa de operar um
movimento de desterritorialização no mesmo lugar através do qual
ultrapassa qualquer território: é desterritorializadora e
desterritorializada. Ela própria se confunde com o movimento
daqueles que abandonam em massa o seu território, lagostas que se
põem a caminhar em fila no fundo da água, peregrinos ou cavaleiros
que cavalgam uma linha de fuga celeste. A terra não é um elemento
entre os outros, reúne todos os elementos num mesmo abraço, mas
serve-se de um ou de outro para desterritorializar o território. (…) São
duas componentes, o território e a terra, com duas zonas de
indescernibilidade, a desterritorialização (do território para a terra) e a
reterritorialização (da terra para o território). Não se pode dizer qual é
que aparece primeiro.”389
Provavelmente tudo acontece ao mesmo tempo. A terra é de
qualquer modo um “abraço” gigantesco onde energia e materiais,
processos e devires se encontram em condições ideais para
engendrar a vida e dar-lhe a multiplicidade que conhecemos. O
território reenvia para esse “abraço” intenso que é “como a pátria
desconhecida, fonte terrestre de todas as forças, amigáveis ou hostis,
e onde tudo se decide.”390
A terra é um transdutor e as zonas de indescernibilidade
funcionam como um dispositivo de expressão (das matérias de
expressão), criação e de autonomização. Operacionalizam-se em três
movimentos que captam forças, libertando-as em domínios vitais.

O ritornelo é um território “afectado” por Meios e Ritmos (nas


cosmogonias antigas estes terão nascido do caos).
Os Meios (sejam exteriores, interiores, intermediários e
anexados) são feitos “de qualidades, substâncias, potências e
389
QF, p. 77.
390
MP, p. 395.
195

acontecimentos”391 , são codificados (código que se define pela


repetição periódica e “está num estado de perpétua
transcodificação392 ou transdução”), e estão sempre numa certa
relação uns com os outros, servindo de base ou estabelecendo-se
sobre um outro, dissipando-se ou constituindo-se ( o ser vivo, diz
Deleuze, tem então um meio exterior que reenvia aos materiais, um
interior que reenvia “aos elementos componentes e substâncias
compostas”, um intermediário que reenvia a membranas e limites, e
um anexado que diz respeito às fontes de energia e às percepções-
acções). A noção de meio não é “unitária”, não opera num espaço-
tempo homogéneo, não é um território. Cada meio é vibratório, existe
por uma repetição periódica, é um bloco de espaço-tempo
heterogéneo, sempre aberto no caos, que o ameaça.
Quando os meios são ameaçados pelo caos a sua resposta é
o ritmo. O que é então um ritmo? É um efeito, nasce da produção de
uma diferença, e opera com blocos de espaço-tempo heterogéneos.
Tem algo de comum com o caos, é ritmo-caos ou caosmos de onde o
cosmos sai393. De um modo geral, o ritmo, porque está entre dois
meios, tem a possibilidade de inscrever sobre um plano que é
diferente do plano da acção, quer dizer, ritmo e ritmado nunca estão
no mesmo plano .

391
CC, p. 87.
392
Transcodificação não é o mesmo que descodificação. Não se trata aqui de
um qualquer código que se descodifica, quer dizer a passagem à
descodificação não faz o devir, a passagem do caos ao ritmo. Um código ( e
são as formas que reenviam aos códigos e dependem deles) é inseparável de
um processo de descodificação. A transcodificação é um outro fenómeno,
fundamental nos devires, é a maneira do meio servir de base a um outro,
fenómeno de tradução que permite aceder “a uma concepção científica do
mundo. O mundo científico (Welt, por oposição à Umwelt animal) aparece com
efeito como a tradução de todos os fluxos, partículas, códigos e
territorialidades dos outros estratos num sistema de signos suficientemente
desterritorializados, quer dizer numa sobrecodificação própria à linguagem. É
esta propriedade de sobrecodificação ou de sobrelinearidade que explica que,
na linguagem, não haja somente independência de expressão relativamente ao
conteúdo, mas independência da forma de expressão relativamente às
substâncias: a tradução é possível porque uma mesma forma pode passar de
uma substância para uma outra, contrariamente ao que se passa no código
genético, por exemplo entre as cadeias de ARN e ADN.” MP, p. 81.
393
DR, p. 328.
196

Entre o caos e o ritmo o que há de comum é um entre-dois (o


que anteriormente já designamos por evolução a-paralela). Não
progressivamente, o caos devém ritmo. “Há ritmo desde que haja
passagem transcodificada de um meio para outro, comunicação de
meios, coordenação de espaços-tempos heterogéneos.”394

Assim, há ritmo desde que haja tradução de todos os fluxos,


partículas, códigos e territorialidades. Ele age na passagem
transcodificada de um meio para outro.
O mundo físico é animado por ritmos permanentes, siderais,
solares e lunares, a sucessão dos dias e das noites, das estações do
ano, as oscilações das marés. A articulação dos vários ritmos é
condição de sobrevivência das espécies. Quando os meios externos
são ameaçados pelo caos, os seres vivos precisam para sobreviver
de ajustar os meios internos aos externos, têm de mudar de meio ou
têm de dispor de mecanismos de variação, como por exemplo, o
repouso e a actividade, acelerações, suspensões, expressões
rítmicas.
Durante muito tempo acreditou-se que as variações do meio
biológico seguiam passivamente as variações do meio físico.
Múltiplas observações e experiências têm vindo em sentido contrário:
mostram como são numerosos os organismos que possuem
espontânea e autonomamente ritmos próximos uns dos outros
(externos e internos) e mesmo assim evoluem diferentemente, a-
paralelamente (porque podem ser transcodificados, porque se pode
passar de um meio para outro) existindo sempre momentos críticos,
de passagem, nestes procedimentos. A semente que se transforma e
cresce e não está em consonância com a estação do ano em que foi
semeada, mas sim com o dia e a noite. Supostamente não resistiria,
no entanto, o seu ritmo é outro, difere e por isso resiste. Ao contrário,
também, a sincronização individual (desigual em cada caso) de certos

394
MP, p. 385.
197

ritmos aumenta as oportunidades que são favoráveis à vida, criando


outros ritmos. Nos dois casos, o novo ritmo é uma consequência, uma
solução que é também uma antecipação, uma diferença que resolve
a “aporia”. Periodicamente, certos animais hibernam, migram.
Repetem, produzindo uma diferença (que é “rítmica) pela qual podem
passar para outro meio e garantir a vida. O ritmo é então na sua
diferença uma das “chaves certas” que marca relações entre os
meios, um desencadeador “desigual”. Pode parecer que um ser tem
uma existência do tipo “tudo ou nada”, mas geralmente (se olharmos
atentamente a natureza) a existência é sempre entre- dois, (entre a
vida e a morte, entre o dia e a noite, entre…).
O ritmo não é uma cadência (que é uma forma de medir,
homogénea, supondo formas codificadas, por exemplo o pêndulo),
não é um “tam-tam” nem mesmo um “1,2,3” (como na valsa). Também
não é homogéneo. Não é dogmático, diz Deleuze, mas crítico,
operando com blocos heterogéneos. O ritmo é “o Desigual ou o
Incomensurável” é o próprio plano da diferença. Não está no mesmo
plano da “acção”, esta ocorrerá no interior de um meio, enquanto ele
está entre dois. Deleuze pergunta como poderemos afirmar este
desigual constituinte do ritmo, já que os meios existem por repetições
periódicas, e elas não têm outro efeito senão produzir uma diferença
pela qual ele (o ritmo) passa para um outro meio. Responde quase a
seguir dizendo que é “a diferença que é rítmica, e não a repetição
que, entretanto a produziu”.
Vimos anteriormente que o ritmo, desigual e incomensurável, é
o único que pode operar a transformação de um meio noutro meio,
através de uma transcodificação, numa evolução a-paralela. A
formação do ritmo é então da maior importância no processo de
“génese” do estilo que estamos descrevendo, porque é ele que vai
modificar, conseguindo a desfuncionalização de uma componente de
um meio para outra que passa a ser expressiva, conseguindo uma
compreensão “estética”. É ele que opera como que uma “abstracção”
198

(ou “extracção”) decisiva da componente de um meio, permitindo a


sua utilização expressiva num outro meio. O ritmo é um transdutor. O
ritmo é qualquer coisa que sai do caos e pode voltar para lá.
É virtual, um virtual envolvido numa cadência que pode ser
medida se puder ser desenvolvida. E é um virtual que contém todos
os ritmos, por isso, pode ser mesmo o transdutor de uma
multiplicidade infinita de ritmos (blocos de sensações) que se
actualizam em um ou dois.
Invocámos antes um exemplo do ioga, que retomaremos de
seguida, desenvolvendo-o melhor. Vimos que uma postura (Âsana) –
chamar-lhe “exercício” como na ginástica é completamente
inadequado, mas pode servir para melhor compreendermos – faz
parte de uma parte de uma aula. Aula que é feita de um conjunto
muito mais vasto de “exercícios” (uns mais visíveis, outros menos ou
completamente invisíveis), iniciando-se por um “aquecimento” que
também não serve simplesmente para aquecer ou “forçar” o corpo,
uma vez que logo aí se quer ritmar os movimentos (do corpo e da
respiração simultaneamente, por exemplo). O que está imediatamente
presente é essa necessidade de conectar, dentro do mesmo corpo,
“corpos” diferentes e desiguais, fazê-los evoluir de modo não paralelo,
não simétrico. Como se disse anteriormente, não se trata de
movimentos vazios e desarticulados no espaço e no tempo, como
também não são, não podem ser automáticos (repetitivos, “sem
pensar”, quebrados, como se pode fazer na ginástica, ou noutros
domínios, como por exemplo na nossa vida quotidiana). Trata-se de
uma multiplicidade de movimentos que são meios e ritmos, os quais,
conjugando-se ( como para aprender “a nadar, ou a dançar, é preciso
que os meus movimentos e os meus repousos, as minhas
velocidades e as minhas lentidões tomem um ritmo comum com os do
mar, ou do parceiro, segundo um ajustamento mais ou menos
durável”395 ) ajustam-se e preparam o corpo para as posturas (meios),

395
CC, p. 192.
199

uma primeira em que se fica algum tempo, seguindo-se um momento


de pausa, uma segunda, um segundo momento de pausa (que é uma
outra postura, dizendo-se de “compensação”) e assim até ao fim da
aula, num ritmo que se torna expressivo.
Numa outra aula, no entanto, (e é este desenvolvimento mais
preciso que agora nos interessa) pode distribuir-se o tempo de outra
maneira, criando outros meios. Os mesmos cinquenta minutos que
antes foram usados para fazer cinco ou seis posturas (mais tempo em
cada uma delas, maior lentidão, outro ritmo) serão agora usados
numa outra sequência ou cadência. Antes era: postura, pausa,
postura, pausa... Agora, (é preciso que o praticante já conheça as
posturas e os tempos que lhe convêm em cada uma delas – cada um
tem o seu tempo e espaço próprios) sem pausas, deve-se fazer
rapidamente cinco ou seis posturas permanecendo muito menos
tempo em cada uma. São outros meios, e as passagens são feitas a
uma outra velocidade. Ritmo implica expressividade.
Numa linha contínua (não unificadora nem unificada) e não
quebrada, as cinco posturas feitas rapidamente formam um único
movimento, podendo eventualmente dizer-se uma única postura. A
linha contínua consegue-se porque entre os meios, nas passagens de
uma postura a outra, traça-se, melhor dizendo, circula um ritmo
diferente para cada indivíduo (como circula dentro do próprio meio)
que concentra numa intensa onda uma multiplicidade de posturas,
movimentos, respirações, etc. Pode dizer-se de quem o faz desta
maneira ( se não podemos ainda dizer que tem um estilo), que no seu
movimento (que contém as várias posturas numa só) há uma
emergência de matérias de expressão, que é já de uma certa maneira
sublime. A Postura das posturas torna-se então expressão.
Ou então, pode acontecer que estes “exercícios” se façam sem
se conseguir uma linha contínua. Podem ser “exercícios” quebrados
por pausas voluntárias ou involuntárias, e então em vez de linhas
teríamos pontos. O que quereria dizer que se tinha falhado o ritmo,
200

sem que se tivesse propriamente obtido uma transdução de um meio


(postura) para outro meio (outra postura).
Deleuze apresenta ainda um outro exemplo: “quando os
biólogos falam de ritmos, eles encontram questões análogas.
Também eles não acreditam que os ritmos heterogéneos se possam
articular, entrando sob o domínio de uma forma unificadora. As
articulações entre ritmos vitais, por exemplo os ritmos de vinte e
quatro horas, não procuram uma explicação do lado de uma forma
superior que os unifique, nem mesmo do lado de uma sequência
regular ou irregular de processos elementares. Eles procuram de facto
algures, a um nível sub-vital, infra-vital, no que eles chamam uma
população de osciladores moleculares capazes de atravessar
sistemas heterogéneos, nas moléculas oscilantes acopladas que,
desde logo, atravessarão conjuntos e durações díspares. A
articulação não depende de uma forma unificável, ou unificadora, nem
métrica, nem cadência, nem qualquer medida regular ou irregular”396,
dependerá de ritmos.
Finalmente, quando há expressividade do ritmo temos um
território.
Retomando o que atrás se disse sobre o território, este é um
produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos. Há território
desde que exista expressividade do ritmo. É a emergência de
matérias de expressão (qualidades) que vai definir o território (a urina,
os excrementos, o odor, cores vivas, etc.) e não a delimitação
objectiva de um lugar geográfico. O ritornelo traça-o num acto que
afecta os meios e os ritmos. Desse acto resulta uma marca
(redistribuindo o fora e o dentro, cria-se a distância crítica entre dois
seres da mesma espécie). Dele devem ainda ressaltar dois aspectos:
1. assegurar a regra da coexistência dos membros da mesma
espécie; 2. ao separá-los, tornar possível a coexistência com um
máximo de espécies diferentes num mesmo meio, especializando-

396
Deux régimes de fous , pp. 143-144
201

as.), um “índice” construído (ou retirado de ) com “aspectos e


porções” dos meios internos, externos, intermediários e anexados.
O território não é primeiro em relação à marca, fornecida pelas
matérias de expressão. É a marca que faz o território. A marcação do
território deixa de ser funcional e passa a ser dimensional, expressiva.
Mas só o é, se não for transitória (por exemplo uma cor, um cheiro,
uma postura, etc.), se adquirir uma “constância temporal”, uma
permanência e um “alcance (portée) espacial”, uma distância. Neste
caso, temos uma marca territorial, uma “assinatura”. Marcar as
distâncias (o que é meu é a minha distância, coloco barreiras,
cartazes) desencadeia “matérias de expressão”.
Deleuze refere-se aqui ao exemplo do pássaro Scenopoïetes
dentirostris397 que através da inversão de uma folha produz uma
matéria de expressão. Todas as manhãs o pássaro corta e deixa cair
folhas de árvore, fazendo a sua “assinatura”, quer dizer marcando as
balizas do seu território. O que aqui há de diferente relativamente a
outros pássaros que podem fazer o mesmo é que este, quando as
corta, vira-as do avesso “para que a sua face interna mais pálida
contraste com a terra: a inversão produz uma matéria de
expressão”398. A inversão tem efeitos na expressão, é ela que traça,
assinala a marca. O Scenopoïetes (o pássaro mágico) não tem cores
especialmente vivas, mas o seu canto ouve-se muito longe. Canta
sobre um ramo, mesmo por cima “da cena que preparou” (marcação
feita pelas folhas que fazem contraste com a terra). “Torna-se visível e
ao mesmo tempo sonoro.”399
São conhecidas estas marcas tanto entre os animais, como
entre os seres humanos. Eles inscrevem os seus territórios (de caça,
de linguagem, domicílio, sexualidade, família, luto, etc.) através das
cores, odores, sons, posturas, gestos, fluidos, etc. Através, diz

397
MP, p. 388.
398
Idem.
399
MP, p. 408.
202

Deleuze, do “ devir-expressivo do ritmo ou da melodia, quer dizer, na


emergência de qualidades próprias”400 .
E pergunta: “Podemos chamar Arte a este devir, a esta
emergência?” Mesmo antes do homem. Poderemos nós dizer que é
artístico o canto de certos pássaros, ou admirar, admitindo que certas
construções da natureza são arte?
“O território será o efeito da arte. O artista, o primeiro homem
que faz uma marca (…) porque a arte é em primeiro lugar affiche,
pancarte”401. É o que dizem Deleuze e Guattari, embora, mais adiante
digam também qualquer coisa que se não for determinante, pelo
menos define uma orientação fundamental no seu pensamento
estético: “Não somente a arte não espera pelo homem para começar,
como podemos perguntar se a arte aparece alguma vez com o
homem, salvo em condições tardias e artificiais. (…) Contudo, esta
observação não tem mais importância do que aquela que faz começar
a arte com o homem…”402
O que estivemos a analisar mostra onde e de onde nasce a
expressividade do ritmo, onde e de onde nasce a arte. O território e a
expressividade “constituem um ter mais profundo que o ser”403 . As
qualidades, as matérias de expressão desenham um território, elas
mesmas são assinatura, são “a marca constituinte de um domínio, de
uma permanência, não de um sujeito. A assinatura não é a indicação
de uma pessoa, é a formação aleatória [hasardeuse] de um
domínio.”404 É esse ter mais profundo que o ser que é já ready-made.
Deleuze chama-lhe também “arte bruta”, não por ser primitiva ou
patológica, uma primeira etapa incipiente mas, em seu entender, por
se tratar de uma constituição própria, de uma libertação de matérias
de expressão, num movimento de territorialidade: “o alicerce ou o solo
da arte. De qualquer coisa, fazer uma matéria de expressão. O

400
MP, p. 388.
401
MP, p. 389.
402
MP, p. 394.
403
MP, p. 389.
404
Idem.
203

Scenopoïtes faz arte bruta. O artista é scenopoïtes”405. O Scenopoïtes


faz ready-made. A arte não é então um privilégio do ser humano. Não
começa com o ser humano.
Há pássaros artistas como existem pássaros que o não são.
Devemos procurar então o factor determinante “precisamente no
devir-expressivo do ritmo”.
O que faz o Scenopoïtes? O seu acto, de inversão da folha,
consiste em distinguir e fazer distinguir as duas faces da folha. Trata-
se de um agenciamento, e o que o define são “as matérias de
expressão que se tornam consistentes, independentemente da
relação forma-substância; das causalidades ao contrário ou dos
determinismos «avançados», dos inatismos descodificados (…).
Assim como os meios oscilam entre um estado de estrato e um
movimento de desestratificação, os agenciamentos oscilam entre um
fechamento territorial que tende a re-estratificá-los, e uma abertura
desterritorializante que os conecta ao contrário com o Cosmos. (…)
[A diferença estará] entre os dois limites de todo o
agenciamento possível”.406
Pelo canto e pela inversão o Scenopoïtes conecta-se com o
Cosmos. O seu ritornelo é arte. Neste sentido, a arte só existe numa
relação (“hasardeuse”) de abertura desterritorializante sobre o
Cosmos.
As matérias de expressão desenham uma marca quando
encontram uma “constância temporal” e um “alcance [“portée”]
espacial”, uma distância, quer dizer, quando encontram “uma
objectividade no território que traçam”.
Esse “movimento objectivo”, já sabemos, é em primeiro lugar,
marca, cartaz, mas ainda não é estilo. No entanto, segundo Deleuze
não permanecerá para sempre assim. “Ele passa por lá, é tudo. Mas a
assinatura vai tornar-se estilo.”407

405
Idem.
406
MP, p. 416.
407
MP, p. 390.
204

Com a formação do território e a transformação dos ritmos em


matérias expressivas, encontramo-nos à beira do surgimento da arte
e do estilo. O cartaz, enquanto ready-made, é já afirmação da arte,
escrevem Deleuze e Guattari; e, no entanto, não é ainda plenamente
artístico porque o movimento que leva o Scenopoïtes a inverter as
folhas é ainda pulsado, conserva um laço, mesmo que muito ténue,
com funções orgânicas e depende de um meio exterior.
Para que se atinja o estado do estilo é necessário que todos
esses movimentos e “rituais”, todos esses ritornelos deixem de ser
pulsados, quer dizer, adquiram uma autonomia plena. O que significa
que as matérias de expressão adquirem auto-movimento. A
autonomia que assim se conquistou implica que as matérias de
expressão entraram em relações entre elas que constituem o motor
do seu próprio movimento de expressão. Movimento que já não
depende nem das impulsões internas nem dos estímulos vindos de
um meio exterior. Como escrevem Deleuze e Guattari: “as qualidades
expressivas ou matérias de expressão entram, umas com as outras,
em relações móveis que vão «exprimir» a relação do território que
elas traçam com o meio interior das impulsões, e com o meio exterior
das circunstâncias. Ora exprimir não é depender”408.
Texto extraordinário: 1. Ele descreve o processo de formação
dos motivos territoriais e do contrapontos territoriais que marcam o
estado máximo de autonomia das matérias de expressão. 2. As
relações entre as matérias de expressão vão exprimir a relação com o
território e com o meio exterior, e não com um “interior”, uma “alma”,
um “não-expresso” que se esconderia num “fundo” endo ou
filogenético qualquer. 3. As relações das matérias de expressão entre
elas adquirindo autonomia, deixando de ser pulsadas, vão-se
complexificar e dar origem ao estilo. Precisamente, na expressão há
autonomia. E por aí sairemos do estado da assinatura. As relações
em que as matérias de expressão entram são variáveis ou constantes

408
MP, p. 390.
205

para constituir “motivos” e “contrapontos”, destas não resultam mais


assinaturas, mas um estilo.
Como é que as matérias de expressão ganham a autonomia
necessária para deixarem de ser cartazes? Como é que elas se
desligam das impulsões internas e das circunstâncias exteriores?
O motivo territorial nasce da impulsão interna, mas por assim
dizer “substitui-a”, transforma-a e transfere-a para outra impulsão,
sobrepõe-se-lhe, etc.409 Como é que se autonomiza? Enquanto signo,
e enquanto movimento. Deleuze e Guattari preferem chamar aos
motivos territoriais (movimentos de caça, de sinalização, de perigo, de
construção do ninho, por exemplo), personagens rítmicas. Porquê?
Porque a autonomização verifica-se quando o ritmo se funde com a
impulsão ou com o sujeito, deixando de lhe estar simplesmente
“associado”: “agora é o ritmo que é toda a personagem”410 . Por outras
palavras, ao ritmar a impulsão interna, desposando e captando toda a
sua força, o ritmo corta a impulsão (movimento) do seu meio interno,
e move-se por si próprio. Torna-se signo expressivo.
Porquê, signo? Porque todo o signo, antes de se referir a um
referente, significa-se a si mesmo como signo. E o signo torna-se
plenamente signo expressivo ou signo artístico quando a sua auto-
referenciação, enquanto signo, prevalece sobre a sua função
referencial. O cartaz passa a ser estilo. Ao estender-se a toda a
impulsão interna, o ritmo “é toda a personagem”. Deixa de ser
pulsado, é auto pulsado, pela contínua transformação-captura da
força da impulsão interna operada pelo corte da autonomização
resultante da impregnação total da impulsão pelo ritmo.
Enquanto signo expressivo, o motivo territorial ou personagem
rítmica exprime, agora, para além do laço com o território, a relação
com a Terra. Por isso mesmo não há motivo territorial sem
contrapontos territoriais.

409
Cf. MP, p. 390.
410
MP, p. 391.
206

Estes, a que Deleuze e Guattari preferem chamar paisagens


melódicas, marcam também a autonomia máxima das matérias de
expressão relativamente às “circunstâncias exteriores”. Paisagens
melódicas: primeiro os movimentos contrapontísticos constituíram-se
como independentes porque o eco das impulsões externas se tornou
inscrição, traço no meio interno (assim como a impulsão interna se
inscreveu e fundiu num ritmo ou movimento num meio exterior,
“mesmo se este não existe”411); em segundo lugar, essas inscrições
entraram em relação com os motivos territoriais e ganharam auto-
movimento. Este desenha paisagens, quer dizer segue linhas de
imagens virtuais com os seus pontos intensivos, as suas
acelerações, lentidões, velocidades variáveis.
Resumindo, a autonomização das matérias de expressão,
como a constituição das personagens rítmicas e das paisagens
territoriais, resulta de uma dupla captura recíproca das impulsões
internas pelos ritmos exteriorizantes e expressivos; e das forças das
circunstâncias exteriores pela inscrição contrapontística no meio
interno segundo linhas e trajectos de mapas virtuais. Essa dupla
captura recíproca transforma as matérias de expressão, cortando-as
dos seus meios internos e externos. Ao fazê-lo, ela instaura as
condições de uma dupla exploração dos meios a que estavam ligadas
as matérias de expressão412. Exploração que vai ser operada pelo
estilo.
Forma-se assim uma linha de variação contínua, por
“articulação do ritmo” e “harmonização da melodia” (variações na
velocidade, ritmo, etc. da circulação do movimento não-pulsado,
contínuo, em constante dupla captura recíproca e expressão das
forças da Terra): é isso o estilo, um perpetuum mobile de variações
expressivas, em relação com as forças da Terra.
“O que distingue objectivamente um pássaro músico de um
que o não é, é precisamente essa aptidão para os motivos e
411
MP, p. 391.
412
MP, p. 391.
207

contrapontos que, variáveis ou mesmo constantes, fazem algo


diferente de um cartaz, fazem um estilo, uma vez que articulam o
ritmo e harmonizam a melodia. Podemos dizer então que o pássaro
músico passa da tristeza à alegria, ou então saúda o nascer do sol,
ou põe-se ele próprio em perigo para cantar, ou canta melhor que um
outro, etc. Nenhuma destas fórmulas contém o mais pequeno perigo
de antropomorfismo, ou implica a mais pequena interpretação. Será
mais um geomorfismo. É no motivo e contraponto que é dada a
relação com a alegria e com a tristeza, com o sol, o perigo, com a
perfeição, mesmo se o termo de cada uma destas relações não é
dado. É no motivo e no contraponto que o sol, a alegria ou a tristeza,
o perigo, se tornam sonoros, rítmicos ou melódicos.”413
Ao mesmo tempo, desenvolvem-se motivos e contrapontos,
reorganizam-se as funções, reagrupam-se as forças. O território
desencadeia qualquer coisa que o vai ultrapassar.

Jean-Clet Martin414 , a este respeito diz: “a mais pequena


vibração, a mais pequena dissonância podem engendrar todo um
mundo de formas novas, exprimir outros mundos possíveis, produzir
uma passagem da natureza de aparência permanente. Engendrar
acordos dissonantes no meio de uma matéria sinalética, produzir um
pequeno choque, um lance de dados de consequências colossais, diz
mesmo respeito ao percurso do ritornelo. (…) Como diz Deleuze,
trata-se, em suma, de manter à distância as dissonâncias do caos
que nos batem à porta. Quando o caos cresce à nossa volta, é
importante traçar um arabesco, uma figura, um estilo que possa
conectar-nos com o mundo”415.
Do estilo virá a arte e, mesmo que num primeiro momento
ainda não se tenha autonomizado, pode, contudo, engendrar acordos

413
MP, pp. 391-392.
414
Jean-Clet Martin, Variations, La philosophie de Gilles Deleuze, Paris, 1993.
415
Op. cit., p. 237.
208

ou operar as passagens e ser expressiva, é já um ritornelo que nos


liga no seu movimento ao movimento do mundo.

Não há dúvida, a propósito da música (humana) – mesmo


enquanto age como cartaz - “há já muito de arte nessa maneira de
escutar a música”.
Quanto mais a obra se desenvolve, mais motivos se conjugam
e conquistam o seu próprio plano, mais autonomia se ganha. Os
motivos tornam-se independentes das personagens e das paisagens,
para se tornarem eles mesmos paisagens melódicas e rítmicas. Esses
devires “marcam esse momento da arte que deixa de ser uma pintura
muda sobre uma tabuleta. Talvez não seja a última palavra da arte,
mas a arte passou por lá, tal como o pássaro, motivos e contrapontos
formam um auto-desenvolvimento, quer dizer um estilo.”416
Estabelecer distâncias criticas, quer dizer (no caso da música,
como noutras artes, no ritornelo da criança, etc.), manter à distância
as forças do caos que nos batem à porta, é de tal maneira importante
que quando o caos nos ameaça, sair dele significa traçar um “território
transportável e pneumático”. O corpo de cada um (em certos animais
e no homem – por exemplo, manipulações que furam o corpo,
tatuagens, piercings, o próprio vestuário, etc.) pode ser e é um
território desse tipo. A sua distância crítica é um ritmo, ritmo que é
tomado por um devir que capta as distâncias entre personagens,
traçando entre elas intervalos mais ou menos distantes, variáveis.
Margens livres que onde quer que apareçam induzem a possibilidade
de diferenciação.
Chegados aqui, dizem os autores, sabemos que “fomos das
forças do caos às forças da terra. Dos meios ao território. Dos ritmos
funcionais ao devir expressivo do ritmo. Dos fenómenos de
transcodificação aos fenómenos de descodificação. Das funções do
meio às funções territorializadas. (…) As qualidades expressivas,

416
MP, p. 393.
209

aquelas que nós chamamos estéticas, não são certamente qualidades


«puras», nem simbólicas, mas qualidades-próprias, quer dizer
apropriativas, das passagens que vão das componentes do meio às
componentes do território. O território é ele mesmo um lugar de
passagem. O território é o primeiro agenciamento (…). Passagem do
Ritornelo. O ritornelo vai em direcção ao agenciamento territorial,
instala-se ou sai.”417
Assim, é preciso perguntar: o que é que faz a articulação de
toda esta complexificação? Não se trata de perguntar pela unidade
ou pela unificação, mas sim, por um movimento que mudou de
natureza. “E, com efeito, não é mais um movimento nem um ritmo de
meio, também não é um movimento nem um ritmo territorializantes ou
territorializados (…). Não são já as forças territorializadas, reunidas
em forças da terra, são as forças encontradas ou libertadas de um
Cosmos desterritorializado. Na migração, o sol não é já o sol terrestre
que reina sobre o território, mesmo aéreo, é o sol celeste do
Cosmos”.418 É o Estilo.
Neste movimento – que é um movimento de consistência -
existe agora o Cosmos. Ele vai encontrar, num plano “propriamente
cósmico”, a maneira de convocar todas as dissonâncias e
heterogeneidades, elaborando um material cada vez mais rico, apto a
captar as forças mais intensas. Sobre o plano cósmico ou de
consistência organizam-se os estratos e é nesses estratos que o
plano se constrói e opera. Esse mundo que já não pode fazer parte
das matérias expressivas, sai desse movimento. O jogo do mundo
muda, é um jogo de variações expressivas, é o jogo do estilo.
Na conclusão de Mille Plateaux veremos, mais uma vez, que é
“sobretudo, entre dois estratos ou entre duas divisões de estratos
[que] há fenómenos de interestratos (…). Os ritmos reenviam a esses
movimentos interestráticos, que são também actos de estratificação.
A estratificação é como a criação do mundo a partir do caos, uma
417
MP, p. 397.
418
MP, pp. 401-402.
210

criação continuada, renovada. E os estratos constituem o juízo de


Deus. O artista clássico é como Deus, faz o mundo organizando as
formas e as substâncias, os códigos, os meios e os ritmos.”419
Trata-se, é certo, de uma espécie de começo, é preciso
sempre passar por aí, mas não se permanece sempre nesse estado.
Nem se poderá dizer, com o que já vimos, que seja aí que a vida
começa, há uma vida muito mais intensa e potente que emerge deste
movimento cósmico.
Das forças da terra até às forças do Cosmos. Que significado
tem aqui a palavra Cosmos? Como falar deste último movimento
cósmico?

Em Qu’est-ce que la Philosophie?, Deleuze e Guattari, referem-


se ao cosmos, universo, como o terceiro elemento da sensação (o
primeiro seria a carne, o segundo, a casa). O cosmos aparece aqui
como uma superfície, plano (“aplat”420). “A carne, ou antes, a figura, já
não é o habitante do lugar, da casa, mas o habitante de um universo
que suporta a casa (devir). É como uma passagem do finito ao
infinito, mas também do território à desterritorialização.”421
O cosmos (“aplat”) vibra, comprime-se ou fende-se, é portador
de forças pressentidas. O ser de sensação é um composto “das
forças não-humanas do cosmos, dos devires não-humanos do
homem”. Não é daí mesmo que a arte emerge e produz? Não é isso
mesmo a obra de arte?
Já vimos que o território implica a emergência de qualidades,
que são traços de expressão, como já vimos também que, essa
expressividade está desde sempre ligada à vida, “o simples lírio dos
campos celebra a glória dos céus”422. Esta emergência é já arte pelas
razões que antes analisámos, mas também porque é uma “irrupção

419
MP, p. 627.
420
A noção de “aplat” será também entendida por nós, pedindo emprestado à
pintura, como “superfície lisa” ou “pincelada lisa”.
421
QF, p. 159.
422
QF, p. 162.
211

de traços, de cores e de sons, inseparáveis na medida em que se


tornam expressivos (…). O Scenopoïetes dentirostis, pássaro das
florestas chuvosas da Austrália (…), constrói assim uma cena como
um ready-made, e canta precisamente por cima dela (…), é um artista
completo. Não são as sinestesias em plena carne, são esses blocos
de sensações no território, cores, posturas e sons, que esboçam uma
obra de arte total.”423
Para se ser artista completo é necessário ser como o artista de
Paul Klee, isto é, estar atento e olhar para tudo à sua volta, explorar
todos os meios, interessar-se, não numa perspectiva científica, pelo
microscópico, pelos cristais, moléculas, átomos, electrões, partículas
ínfimas, plâncton, pelo pó que atravessa os raios de luz que entram
num quarto na penumbra, pelas nuvens, pela energia vital. É preciso
ser como as crianças que têm constantemente “êxtases”, que não
cessam de explorar todos meios, materiais, e acontecimentos. Estão
mesmo sempre, em todos os momentos, mergulhadas num meio
qualquer, simplesmente por causa do movimento, do “movimento
imanente” de onde extraem esses blocos de sensações.
Deleuze não se cansará de dizer que a “ arte também alcança
este estado celeste (…). À sua maneira, arte diz o que dizem as
crianças”424 . Que não param de dizer aquilo que estão a fazer ou a
tentar fazer e que pode muito bem ser: “captar o traço da criação no
criado”.
Este artista abre-se ao cosmos para captar as forças numa
«obra» e numa operação muito precisa. Para tal dizem, Deleuze e
Guattari, em Mille Plateaux, são necessários meios muito simples,
puros e quase infantis. São também cruciais as forças “de um povo, e
isso falta ainda”.

423
QF, p. 163.
424
CC, p. 92.
212

a. Que artista pode então ter tais características?

O artista clássico, o artista do romantismo ou o moderno?


O primeiro é como Deus, a sua tarefa é fazer o mundo
(organizando o caos) organizando as formas e as substâncias, os
códigos, os meios e os ritmos. Organiza-os compartimentando-os,
estabelecendo hierarquias e distribuições (segundo duas operações
coexistentes: numa, as formas diferenciam-se seguindo distinções
binárias; noutra, as substâncias, os meios, etc. entram numa ordem
de sucessão que pode ser igual nos dois sentidos). A sua aventura é
arriscada e perigosa porque afronta o caos e as suas forças, “as
forças de uma matéria bruta indomada, às quais as Formas se devem
impor para fazer substâncias, Códigos, para fazer meios.”425 Separa
meios, regula mudanças, impõe formas. Procede binariamente, é
como se no começo do mundo não tivessem existido mais do que
dois sobre a terra, matéria-forma, ou forma-substância. O ritornelo,
neste caso, é feito de partes consonantes, que se procuram e
correspondem.

O segundo não se identifica já à Criação, mas ao fundamento,


é ele que é criador. Não é como o primeiro, que era como Deus,
porque quer ser um herói que desafia Deus, é essa a sua tarefa.
“Se tentamos definir sumariamente o romantismo, vemos bem
que tudo muda.(…). Com o romantismo o artista abandona a sua
ambição de uma universalidade de direito e o seu estatuto de criador:
territorializa-se, entra num agenciamento territorial”426. O ritornelo é
aqui uma canção territorial, mas dissonante, não é já começo do
mundo.
Este artista não se confronta mais com o caos, mas com “o
inferno e o subterrâneo, o sem-fundo”. A dissonância vai produzir um
425
MP, p. 417.
426
Idem.
213

desfasamento que faz com que ele (o artista) viva o território, “mas
vive-o necessariamente como perdido”. O que o caracteriza é o
desfasamento.
Nesta perspectiva, o romantismo trouxe inovações
fundamentais: as substâncias ou as matérias informadas não mais
correspondem às formas ou os meios aos códigos, etc. A forma torna-
se uma forma em desenvolvimento contínuo, quer dizer, matéria e
forma deixam de ser conteúdo para serem expressivas. Não há mais
um caos para dominar e organizar. Variação contínua da matéria e
desenvolvimento contínuo da forma asseguram ainda uma
inteligibilidade do mundo.
Trouxe também novas relações com “o perigo, a loucura, os
limites”. O que lhe falta “é o povo”. O herói é um herói terrestre, com
sentimentos. O que faz o romantismo é reclamar “um outro nome, um
outro cartaz”.

Finalmente, o artista moderno. Se existe uma “idade moderna”


é a que traz este artista.
O artista moderno apresenta-se numa relação directa material-
força. Não há mais matéria que encontre na forma o seu princípio de
inteligibilidade.
O material é uma matéria molecularizada, desterritorializada.
As matérias de expressão (que correspondiam antes ao estado do
“cartaz”) desaparecem e dão lugar a um material de captura. “O
agenciamento não se confronta já com as forças do caos, não penetra
já nas forças da terra ou nas forças do povo, mas abre-se sobre as
forças do Cosmos.”427 São forças de uma outra ordem,
desterritorializadas ( não podemos já falar de formas e matérias de
expressão, como na territorialidade romântica), não pensáveis, que
são capturadas. São as forças de “um Cosmos energético, informal e
imaterial” que constituem agora densidades e intensidades decisivas.

427
MP, p. 422.
214

Caracteriza-o uma abertura para um espaço infinitesimal, nele


residirão as forças imensas do cosmos. O seu problema não é o de
uma origem ou começo, torna-se antes um problema de consistência.
“Como consolidar o material, torná-lo consistente, para que ele possa
captar essas forças não sonoras, não visíveis, não pensáveis?”428
Quando terminámos o capítulo sobre a perspectiva de Deleuze
do eterno retorno de Nietzsche, perguntámos: quem o poderá realizar
na prática? Ou, como realizar a repetição ontológica que reúne em si
todas as repetições, realizando a absoluta necessidade do acaso, das
distribuições nomádicas, da realização de um mundo de que o caos é
o factor permanente da sua consistência?
Agora, neste momento da análise do capítulo sobre o ritornelo
encontramos uma referência que nos permite recordar a importância
do que antes tratámos. Recordemos a ideia de Nietzsche, dizem
Deleuze e Guattari em Mille Plateaux: “o eterno retorno como
pequena lengalenga, como ritornelo, mas que captura as forças
mudas e impensáveis do Cosmos.”429 E faz com que a música se
liberte (será Deleuze a dizê-lo em Critique et Clinique) e seja “preciso
passar para o outro lado, para onde os territórios tremem, ou as
arquitecturas desabam, onde os ethos se misturam, onde se liberta
uma poderosa canção da Terra, o grande ritornelo que transmuta
todos os ares que arrebata e faz voltar. (…) O labirinto sonoro é a
canção da Terra, o Ritornelo, o eterno retorno em pessoa.”430

b. O que é um ritornelo?

É um conteúdo431 ou um bloco de conteúdo que contém um


conjunto de matérias de expressão que se tornarão um bloco de
expressão ou bloco de devir.

428
MP, p. 423.
429
Idem.
430
CC, p. 143.
431
“Chamávamos conteúdo as matérias formadas, que deveriam desde logo
ser consideradas de dois pontos de vista, do ponto de vista da substância
215

Mas o ritornelo não é somente um bloco de conteúdo (é


também o seu efeito), porque parece haver uma espécie de
correspondência entre este e o bloco de expressão. Mais
exactamente, não se trata de uma correspondência, mas de
interferência. Não haveria bloco de expressão se o próprio conteúdo
não interferisse sem cessar com a expressão. Definir o conteúdo traz
agora algumas dificuldades (haveremos mais adiante de as
esclarecer), por isso Deleuze e Guattari começam o capítulo com o
exemplo mais simples de ritornelo, o da criança que canta antes de
dormir (depois desenvolver-se-ão outros, dos quais nos pareceu mais
importante o do pássaro mágico da Austrália, o Scenopoïetes
dentirostis). Através dos exemplos encontramos os motivos, que
podem ser de angústia, medo, alegria, amor, trabalho, territoriais, etc.,
e chegamos à actividade do ritornelo. Actividade que é de selecção,
eliminação, extracção e filtro. O ritornelo selecciona e extrai todos os
tipos de forças, filtra-as e afecta os meios e os ritmos que fez nascer
do caos. Com estes, constrói os blocos de expressão e produz uma
resistência e uma residência, quer dizer, num movimento de criação
que contém em si, antes mesmo de o ser, a possibilidade de capturar
forças, engendra-se uma “obra” que resiste.
No seu movimento concreto, a criança que canta e salta, ao
mesmo tempo que faz saltar o ritornelo, conserva e encontra uma
nova morada (sonora, audível e portanto visualizável) para o mundo
(para os planetas e plantas e pequenos animais, para a natureza em
geral, para a morte, alegria, amigos, pais, para o nascimento, etc.). O
salto implica um ritmo que se repete e repete, e produz um efeito (o
bloco de expressão) e um resultado. O ritmo faz emergir as matérias
de expressão e torna-as materiais-expressão. Daí resulta a marca, a
assinatura, o cartaz.

enquanto tais matérias eram ‘escolhidas’, e do ponto de vista da forma


enquanto eram escolhidas numa certa ordem (substância e forma de
conteúdo).” MP, p.58.
216

Neste processo, a constância no tempo e a permanência


espacial (do cartaz), transformam o ritornelo num bloco de espaço-
tempo. Marcar as distâncias desencadeia materiais de expressão, faz
um ready-made, o solo da arte, a arte bruta. Desencadeando mais
fortemente um devir, o bloco de expressão-ritornelo vai eliminar o
transitório e tornar-se estilo, autonomizando-se.
Sem entraves, o ritornelo entra em relações móveis (motivos e
contrapontos), num auto-movimento, dupla captura, formando uma
linha contínua de variação – o estilo. “Suponhamos que um pintor
«representa» um pássaro; de facto, é um devir-pássaro que não se
pode fazer senão na medida em que o próprio pássaro está prestes a
tornar-se outra coisa, pura linha e pura cor.”432
Autonomizando-se, o ritornelo-estilo movimenta-se nas suas
“margens livres” em direcção ao cosmos. No seu movimento livre e
sem medida constitui o próprio cosmos e constitui-se a si
cosmicamente.
Não há, portanto, um começo nesta génese, mas desde logo
um lugar de passagem (o ritornelo) num plano onde simultaneamente
se constrói e opera. Nesse plano, “o artista” (moderno) torna o
material (os blocos: de expressão, de sensação) consistente e
resistente.
Mais uma vez, a consistência é o ritornelo que a faz, numa
operação de devir (criança, música, pássaro). As marcas tornam-se
motivos e contrapontos, as assinaturas e cartazes fazem um estilo.
Quer dizer, quando as marcas se tornam motivos obtém-se
necessariamente um ganho de consistência ou “uma captura de
marcas de uma outra qualidade, uma ramificação mútua de sons-
cores-gestos (…). A consistência faz-se necessariamente de
heterogéneo a heterogéneo.”433 De resto, esta outra qualidade não é
senão uma relação “original” entre as matérias de expressão e a

432
MP, p. 374.
433
MP, p. 407.
217

matéria. À medida que se tornam consistentes, as matérias de


expressão constituem “semióticas”.
Quando há consistência (ou conjuntos de consistência)
encontramos heterogeneidade (que não é exclusiva de formas vitais
complexas) nas partículas mais elementares. Através delas (das
partículas, das ordens, das formas, das substâncias, etc.) e do
cósmico passa o estilo (há uma comunicação entre o elementar e o
cósmico feita pelo molecular, uma vez que ele opera a dissolução das
formas e garante uma variação contínua434), capturando forças e
libertando matérias. É então sobre um material seleccionado puro e
simples, “prodigiosamente simplificado” que o estilo trabalha. Numa
classificação final do ritornelo435 , Deleuze e Guattari, propõem um
ritornelo molecularizado. O cosmos é um ritornelo.
“A figura moderna não é a da criança nem a do louco, ainda
menos a do artista, é a do artesão cósmico (…). A invocação do
Cosmos não opera de todo como uma metáfora; pelo contrário, a
operação é efectiva desde que o artista relacione um material com as
forças de consistência ou de consolidação”436

O que foi até aqui analisado (do capítulo sobre o ritornelo em


Mille Plateaux) é uma descrição de uma génese, ou melhor, de uma
heterogénese. Descrição da criação do mundo – mundo expressivo
como mundo dos signos. O modelo etológico serviu para mostrar
como surge a arte, a partir do próprio movimento da vida (estilo) e
como se exprime, capturando as forças inteiras do território, da terra,
do Cosmos. Vimos como o ritornelo faz nascer o estilo e como não há
ritornelo sem estilo. Ao mesmo tempo que se forma o estilo, ele
arranca, extrai ao ritornelo o conteúdo que se vai tornar bloco de
expressão. O estilo já está no movimento de produção que levará ao

434
Cf. MP, p. 379.
435
MP, p. 429.
436
MP, p. 426.
218

estilo, porque é ele próprio (talvez ainda não consistente ou


consolidado) que vai até à consistência máxima.
A natureza, no movimento de produção de si, é já, também,
ela própria natureza, e esse movimento de produção que
descrevemos, é sem cessar o mesmo, a saber: movimento de criação
e criado. Natureza = Estilo.
O que devimos também devém num duplo devir que forma um
só bloco, um estilo, um ritornelo, a natureza. O que implica uma certa
produção do tempo.

De qualquer modo, no fim do capítulo pergunta-se novamente


o que é um ritornelo e a resposta é: “Glass harmonica: o ritornelo é
um prisma, um cristal de espaço-tempo. (…) O ritornelo tem também
uma função catalítica (…) será então do tipo cristal ou proteína. (…) O
ritornelo fabrica o tempo.”437
De que ponto de vista Deleuze e Guattari descrevem a
emergência/surgimento do estilo? Em Mille Plateaux, os autores,
assim como o estilo, situam-se claramente no plano de imanência,
quer dizer, num plano contínuo de circulação de intensidades, no qual
todos os acontecimentos e os signos que os significam – do território
ao Cosmos; os signos correspondentes – são produzidos pelo
ritornelo.
O que quer dizer que o “modelo etológico” adquire um sentido
ontológico, como se vê nos desenvolvimentos finais do capítulo sobre
o ritornelo. Ou seja: o estilo abre e capta as forças do Cosmos – e são
estas que estão já agindo nos diversos “aspectos”438 do ritornelo. São
estas forças que fazem o território, depois o cartaz, enfim o estilo. São
elas que extraem, arrancam o estilo aos estratos. Forças que formam
o próprio estilo: assim, a descrição da génese do estilo dá o estilo
como génese do movimento expressivo do mundo, como génese dos
signos e da autonomia das matérias de expressão. É o estilo (virtual)
437
MP, p. 430.
438
MP, p. 383.
219

que se actualiza nas artes, segundo diferentes modos. O movimento


de surgimento da arte (e do estilo) é o estilo do movimento que vai do
caos ao cosmos. O universo, o Caosmos (ou caos composto que se
torna sensível) têm um estilo, são o movimento ontológico do estilo.
A génese do estilo é o estilo da génese.

2. Estilo e heterogénese da obra de arte - Descrição do processo


criativo: do bloco de sensações ao plano do Cosmos

Numa outra perspectiva, exposta sobretudo no capítulo VII de


Qu’est-ce que la Philosophie?- a da formação do objecto de arte –
Deleuze e Guattari desenvolvem os mesmos pressupostos
ontológicos.

O processo criativo é descrito através da formação da obra de


arte moderna. Ora acontece que esta formação (sensações, afectos;
percepções, perceptos, visões….) é paralela à (acompanha – passa
pelos mesmos aspectos que) formação do estilo.
A exposição deste processo criativo culmina, tal como no
ritornelo, no estilo. É o estilo que, ao formar-se, arranca os perceptos
às percepções, os afectos às afecções, forma as Visões e Audições,
etc. É o estilo que cria o plano de consistência (Bacon) ou plano de
composição (plano do cosmos).

A arte conserva, e é a única coisa do mundo que se conserva.


Conservar significa “manter-se de pé”, manter-se por si própria,
suster-se, durar (não no sentido de fazer durar a coisa, mas porque a
coisa se torna independente do seu “modelo”). A “coisa”, a obra de
220

arte, ganha autonomia, torna-se independente. É um “ser de


sensação”, autónomo. O homem ou o sorriso fixado na pedra, na tela
ou ao longo das palavras é outro: é um composto de perceptos e de
afectos, é, não já o homem ou o sorriso, mas um bloco de sensações.
Um percepto não é uma percepção (que é, na sua definição
geral, o recebido, o percebido, resultado ou dado da percepção) não
remete para um objecto – referência. Um percepto é sem referência,
sem objecto (mas podem ser telescópicos ou microscópicos). Deleuze
e Guattari definem percepto como o que torna sensíveis as forças
insensíveis que povoam o mundo e que nos afectam, como uma
paisagem não humana da natureza.
Se o percepto não é uma percepção, o afecto também não é
sentimento ou afecção, mas uma força que excede a força dos
sentimentos e afecções. O afecto não é, portanto, um sentimento ou
estado pessoal, nem um temperamento ou carácter subjectivo – mas,
por exemplo, os acordes, os acordes de tons ou de cores são os
afectos de música ou de pintura. Não são também passagens de um
estado vivido para outro. Apesar disso, os afectos podem encadear-
se ou derivam em compostos de sensações que se transformam,
vibram, comprimem ou fendem. Os afectos são devires não humanos
do homem. Não são mudanças de estado, mas devires – devir árvore,
devir criança, etc.
Nem os perceptos nem os afectos são misturas ou se
misturam. As misturas são “massas de variáveis independentes,
partículas-trajectórias ou signos-velocidades”. São actualidades
(ainda que não sejam corpos, nem mesmo coisas, unidades ou
compostos), estados de coisas439 que saem do caos virtual em
condições limitadas, conectadas de uma certa maneira com um
referente. Por exemplo, o amor é uma mistura de corpos, que pode
ser representada como um encontro de almas gémeas.

439
Estado de coisas, define-se neste contexto “como um tempo [no plano do
vivido] entre dois instantes, ou tempos entre muitos instantes.” QF, p. 139.
221

Quando se passa da mistura à interacção, a percepção já não


é um estado de coisas, mas um estado do corpo enquanto induzido
por um outro corpo, e a afecção, a passagem deste estado a um
outro.
Nem misturas, nem interacção, os perceptos e os afectos
formam compostos, blocos.
Um bloco é um devir. “Se o devir é um bloco (bloco-linha) é
porque constitui uma zona de vizinhança e de indiscernibilidade, um
no man’s land, uma relação não localizável”440 , que não atinge uma
forma. Na linha ou no bloco de devir há como que uma
desterritorialização. Na coexistência de dois movimentos assimétricos
que formam bloco, a linha ou o bloco não religam nem conjugam nem
misturam (não há identificação, nem imitação) coisa nenhuma, pelo
contrário desterritorializam-se.
O bloco é o que passa entre. Move-se no meio, não tem ponto
de origem ou começo, nem coordenadas horizontais e verticais, cria
as suas próprias coordenadas, num “tempo não pulsado”441 . O bloco
é um intermezzo442.
Um bloco de devir é um bloco de expressão, (e inseparável de
um bloco de expressão é um bloco de conteúdo). Falámos já em
bloco de conteúdo, definindo-o como o que contém um conjunto de
matérias de expressão que se tornarão um bloco de expressão ou
bloco de devir. Definimo-lo anteriormente como um ritornelo, embora
o ritornelo não seja somente um bloco de conteúdo, porque há uma
interferência com o bloco de expressão. Quer dizer, não haveria bloco
de expressão se o próprio conteúdo não interferisse sem cessar com
a expressão443.

440
MP, p. 360.
441
MP, p. 364.
442
MP, p. 365.
443
O que é uma expressão? “Chamávamos expressão as estruturas funcionais
que deveriam elas mesmas ser consideradas de dois pontos de vista, o da
organização da sua própria forma, e o da substância enquanto elas formavam
os compostos (forma e substância da expressão).” MP, p.58.
222

Se procuramos uma ajuda na música, encontramos a definição


de bloco ou “molécula sonora” (como Varèse explica444), como o que
se dissocia “em elementos dispostos de diversas formas segundo
relações de velocidade variáveis, mas mesmo também como outras
tantas vagas de fluxo de uma energia sónica irradiando por todo o
universo”445
É o elementar e o cósmico ( o molecular tem a capacidade
para fazer comunicar estes dois, “precisamente porque opera uma
dissolução da forma que põe em relação as longitudes e as latitudes
mais diversas, as velocidades e as lentidões mais variadas, e que
assegura um contínuo, estendendo a variação bem para lá dos seus
domínios formais.”446) que fazem um bloco, que é “fibra do universo”.
Com o que nos é dado à percepção ou nos afecta, já vimos,
produzimos opiniões. Em síntese, a doxa apresentar-se-á do seguinte
modo: “dada uma situação vivida perceptivo-afectiva (por exemplo,
traz-se o queijo para a mesa do banquete), alguém extrai dele uma
qualidade pura (por exemplo, o odor fétido); mas ao mesmo tempo
que abstrai a qualidade, ele próprio se identifica com um sujeito
genérico que experimenta uma afecção comum.(…) retira [-se] da
percepção uma qualidade abstracta e da afecção um poder geral”447
A opinião propõe-se então como uma certa relação entre uma
percepção exterior com um estado de um sujeito e uma afecção
interior ou sentimento, molda-se e tem como modelo a recognição (já
desenvolvemos este problema anteriormente).
Ora, justamente, não é nada disto que a arte pretende
conservar.
O artista cria blocos de perceptos e de afectos. Cria
sensações, num acto (específico) “pelo qual o composto de
sensações criado se conserva em si próprio”. O artista faz com

444
MP, p. 380.
445
Idem.
446
MP, p. 379.
447
QF, p. 129.
223

sensações (“puras sensações”), seres que valem por si próprios,


excedem todo o vivido, conservam-se e conservam.
O que se conserva é um bloco de sensações. A única coisa
mesmo que se conserva no mundo. O que é então uma sensação?
Vimos antes, numa breve referência a Françoise Dolto que o
primeiro sentimento de todo o ser humano é para ela o sentimento do
belo, associado às primeiras percepções por altura do nascimento. Há
um belo masculino, feminino, vegetal, animal, imóvel, móvel, cósmico.
São sensações. A quinta-essência do humano, precoce, ligado ao
odor do corpo da mãe, ao brilho do seu olhar. Apresentar-se-ia numa
“alegria”, de uma só vez, numa força de irrupção de vida. Nasce-se,
de uma “irrupção da vida-bela”.
No começo, quando há irrupção e captação de forças, a vida
empenha-se imediatamente e arrisca, produzindo, criando. Este
sentimento precoce não foi ainda recoberto pela vida quotidiana,
como o serão outros mais tarde. É já uma sensação estética.
Pode, no entanto, começar por ser sensação confusa,
sensações “que trazemos quando nascemos, dizia Cézanne”448,
traços de sensação que são “irracionais, involuntários, acidentais,
livres, ao acaso.” Logo de início, espontâneos e vitais ( a expressão
da natureza na sua poderosa produção de vida).
A recognição, a vida quotidiana, a aprendizagem, encarregam-
se de extrair sensações, percepções e afecções que têm uma certa
consistência (e uma acção imediata sobre o sistema nervoso), que
produzem conhecimentos, saberes, etc., e que vão recobrindo as
primeiras percepções.
Há, no entanto, na vida, zonas a que as percepções e as
afecções vividas não acedem. Deleuze e Guattari definem essa zona
(de sensação) como “uma zona de indeterminação, de
indiscernibilidade, como se coisas, animais e pessoas (Achab e Moby
Dick, Pentasileia e a cadela) tivessem atingido em cada caso esse

448
FB, p. 66.
224

ponto conduzindo ao infinito que precede imediatamente a sua


diferenciação natural”.449
A vida cria tais zonas de indeterminação, a partir do momento
em que um certo material se transfere para a sensação. Quer dizer,
qualquer coisa acontece nessa zona.
Há uma “mudança de percepção” que faz ou produz
passagens. E vai dar uma sensação, já composta, feita de perceptos
e de afectos (que desterritorializa o sistema de opinião, que reuniu as
percepções e afecções). Estas sensações serão sempre compostas
ou então serão blocos, são as sensações estéticas (aquelas que aqui
nos interessam). Como se chega até aqui?
Tem de haver um fundo capaz, operando essa mudança, de
dissolver as formas e de impor a existência de uma tal zona – de
excesso. Não se trata, como veremos, de um fundo simples de
transformação, mas algo (um devir) que passa para uma zona de
indeterminação, de indiscernibilidade. Um lugar irredutível de forças
onde não se reproduzem ou inventam formas, mas captam forças. A
força está assim numa relação estreita com a sensação: é preciso que
uma força se exerça sobre um corpo para que haja sensação. “Mas
se a força é a condição da sensação não é porque ela seja sentida,
uma vez que a sensação «dá», quer dizer, devém uma outra coisa
completamente diferente a partir das forças que a condicionam”450
Esta sensação conserva e conserva-se com um material capaz
de durar ( e mesmo que o material não dure senão alguns instantes,
esta sensação tem o poder, numa estranha relação com o tempo, de
durar). No entanto, não é a mesma coisa que o material (que é a
condição de facto), e distingue-se do que se conserva, que é o
percepto ou o afecto, ela é diferença, exprime uma diferença. É
vibração elástica, fluxo intensivo, passagem para lá do vivido, mas
também é vazio. Quer dizer, a sensação só se realiza quando o
material passa inteiramente para a sensação, o percepto ou o afecto.
449
QF, p. 156.
450
FB, p. 39.
225

Trata-se de uma potência vital - ritmo - que transborda e atravessa


todos os domínios, ultrapassa o organismo e torna-se expressiva.
Estas sensações estão no corpo: “é no corpo que qualquer
coisa se passa: ele é fonte de movimento”451. É nele que as forças se
exercem. Não é portanto, um problema de lugar, mas de saber o que
acontece (nessa mudança) às sensações, e o que há a fazer.
Sabemos desde logo, com Deleuze, que o que há a fazer diz
respeito às sensações em devir. Voltar-se-ão sobre si, distendendo-se
ou contraindo-se, para captarem no “material” as forças não dadas.
Passam de um lado para o outro, para uma zona onde já não se sabe
quem é o quê, “um fundo capaz de dissolver as formas” e que não é
senão a sensação: “O ser da sensação, o bloco do percepto e do
afecto, surgirá como a unidade ou a reversibilidade entre aquele que
sente e o sentido”. Surgirá de um isolamento, é preciso isolar, tirar do
contexto trivial, descontextualizar, desterritorializar.
É necessário, enfim, arrancar o percepto às percepções de
objecto e aos estados de um sujeito de percepção, arrancar o afecto
às afecções como passagem de um estado a outro. Extrair um bloco
de sensações, com um método que varia com cada autor. Fazer
“explodir as percepções vividas” e alcançar esse excesso que são os
perceptos e os afectos em blocos ou compostos de sensações. Ter
esse poder de elevar o vivido ao percepto e ao afecto, sair do
vivido…pelas sensações e pensá-las esteticamente. O que surge tem
então uma outra consistência, tornou-se mais sólido e durável,
sustém-se (e não por uma possibilidade física, mas por uma
“possibilidade pictural”), é um monumento ( um monumento não é
neste contexto, o que comemora o passado, pelo contrário “é um
bloco de sensações presentes que só devem a si próprias a sua
conservação”), sensações que vibram conservando-se porque
conservam, formando-se e compondo-se.

451
FB, p. 16.
226

Estes compostos amplificar-se-ão, tornar-se-ão intensivos,


vibrarão, unindo-se, abrem-se, escavam-se, estendem-se, contraem-
se ou dilatam-se, diástole e sístole coexistindo. A percepção mudou
porque, ao passar nessa zona de devir, amplificou uma força inaudita,
que vai exceder e fazer explodir o vivido, autonomizando-se. “Os
movimentos e os devires, quer dizer, as puras relações de velocidade
e de lentidão, os puros afectos, estão abaixo ou acima do limiar da
percepção”452. O que se tornará sempre difícil será então dizer onde
acaba e onde começa a sensação.
Só por um “excesso”, um salto em que se pode não sair do
mesmo lugar, libertador, que torna a vida mais agitada e
simultaneamente em repouso (repouso cercado da maior agitação),
se acede a estas “passagens”, da “endo-sensação à exo-sensação”.
E aquele que as vê será alguém que vê demais, que vê o
“excesso”, alguém que de alguma maneira “excede os estados
perceptivos e as passagens efectivas do vivido. É um vidente, alguém
que devém.”453 É um atleta que pratica “um atletismo afectivo”: uma
criança, um louco, um artista.
A questão de saber se as drogas ajudam o artista a criar esses
seres de sensação, se o ajudam a mudar de percepção, é posta por
Deleuze e Guattari a propósito desta problemática, como já tinha sido
antes, em Mille Plateaux. Aí, já a questão da droga é tratada como
uma experimentação que pretende mudar as coordenadas
perceptivas do espaço-tempo454, fazendo-nos entrar num universo de
micro percepções. Esta experimentação muda de facto a percepção,
que não estará já numa relação de um sujeito e de um objecto, mas

452
MP, p. 344.
453
QF, p.151.
454
Uma das hipóteses seria: em condições de “prudência” a droga, controlada,
poder desencadear um plano onde se conjugassem todos os devires. A
percepção tornar-se-ia necessariamente molecular. Reenviando para uma
percepção molecular, toda a questão continuaria a ser a da possibilidade
efectiva de traçar um plano autónomo, produzir desterritorializações
(alucinações, delírios, falsas percepções, fantasmas, etc.) que podem não ser
consistentes.
227

“no movimento que serve de limite a esta relação”455. A percepção


está neste caso confrontada com os seus próprios limites. Mas o que
é que com isso se pode obter?
A “droga faz perder as formas e as pessoas, joga com loucas
velocidades de droga e prodigiosas lentidões após-droga, acopla
umas e outras como lutadores, dá à percepção a potência molecular
de captar micro-fenómenos, micro-operações, e, ao percebido, a força
de emitir partículas aceleradas ou retardadas, segundo um tempo
flutuante que não é já o nosso, e hecceidades que não são mais
deste mundo (…). Nada mais senão o mundo das velocidades e das
lentidões sem forma, sem sujeito, sem rosto. Nada mais que o zig-zag
de uma linha”456
Ora o que se sabe é que esta mudança se arrisca sempre a
ser influenciada por outras causalidades, e a enfrentar perigos
específicos que desfazem toda a possibilidade de ser bem sucedida.
Quer dizer, esta mudança de percepção não produzirá um “manter-se
de pé”, não será suficiente para dar consistência a um plano que
corre o risco de falhanço porque múltiplas outras causalidades aí
intervêm. Em vez de sensações suficientemente ricas para que as
intensidades passem, as drogas esvaziam e desfazem o corpo
(territorializa-se o corpo artificialmente, com substâncias químicas). O
que o drogado obtém, não poderia ser obtido de uma outra maneira?
No limite, drogar-se sem droga. Uma vez que a droga não muda
suficientemente as condições gerais da percepção do espaço e do
tempo, porque não “embriagar-se com água pura”457?
Para mudar a percepção, esta forma de pensar (estética)
“específica”, que pensa por sensações e é sem objecto (sem
referência), inventa novos processos de cada vez, e com cada autor:
esculpe, escreve, pinta, etc. Exige mesmo um “método” e é com ele,
como já vimos, que arranca “o percepto às percepções de objecto e

455
MP, p. 345.
456
MP, p. 346.
457
MP, p. 204.
228

aos estados de um sujeito de percepção”, arranca “o afecto às


afecções como passagem de um estado a outro”, isola, extrai,
amplifica e cria um “material complexo” expressivo, que não está na
memória nem na habilidade do artista e que depende do “poder de
um fundo capaz de dissolver as formas, e de impor a existência de
uma tal zona onde já não se sabe quem é animal e quem é humano”.
Sabe-se que daqui resulta o poder de acrescentar novas variedades
ao mundo. Para J.-C. Martin: “os elementos a priori do estilo
relacionam-se com uma experimentação inédita segundo uma relação
variável que podemos qualificar por afrontamento. A relação dos
elementos estilísticos com as circunstâncias, os meios e as condições
históricas definem os conceitos, os dinamismos espácio-temporais
sobre o modo da luta, o afrontamento ou a resistência. Mas este
afrontamento, este choque do fora não têm nada de empírico.”458
Sem este choque a arte não poderia criar nada de novo que
resistisse.
É o “objectivo da arte” (os escritores, por exemplo, fazem-no
com a sintaxe), produzir, criar um monumento, pela “fabulação”. Para
a qual não é necessária a memória mas um “material” que está nas
palavras, nos sons, no metal, no barro, no ferro, etc. A fabulação não
tem nada a ver com a recordação, é antes “fabricação de gigantes”459
Há mesmo um mal entendido, segundo Deleuze, quando se julga
poder utilizar as recordações, os arquivos, as viagens, os fantasmas,
etc., há um equívoco com o vivido, principalmente na literatura. Não
se trata pois do vivido – e sai-se dele e do equívoco pela fabulação
criadora. O artista excede os estados perceptivos e as passagens
efectivas do vivido. É um atleta, um vidente, vê e devém.

458
J.-C. Martin, Variations, p. 166.
459
QF, p. 151. A propósito da fabulação, Deleuze e Guattari referem-se em
nota, nesta página, à noção de fabulação em Bergson como uma faculdade
“visionária muito diferente da imaginação, que consiste em criar deuses e
gigantes, «poderes semipessoais ou presenças eficazes». Ela exerce-se antes
de mais nas religiões, mas desenvolve-se livremente na arte e na literatura.”
229

A partir desta produção de monumentos, retiramos tipos ou


variedades. Os seres de sensação são variedades de compostos de
sensação: 1. A “vibração”- que caracteriza a sensação simples mas
que é já composta ( implica uma diferença de nível constitutiva); 2. “o
abraço ou o corpo a corpo”, que são as “energias” que resultam da
ressonância e união, estreitamento de duas sensações num corpo a
corpo formando um ritmo que se liberta e é vibração que atravessa o
corpo inteiro, aumento ou diminuição de potência (“quantidade
virtual”), ressonância460. Qualquer coisa que sai e que se conserva e
que é de uma outra natureza. A união das sensações diversas em
dois corpos faz a “luta”461, ou o abraço, o estreitamento de duas
sensações, o mais difícil, corpos que o desejo mistura, lugares de
luta, “combate-entre”; 3. O “recuo, a divisão, a distensão”, quando
duas sensações se desviam, se desligam, autonomizam e formam um
bloco que se sustém por si.
“Vibrar a sensação – unir a sensação – abrir ou fender, escavar
a sensação”, mudar a percepção, é o que faz o estilo. Autonomia e
expressividade plena de onde virá a arte, com a qual se fará a obra
de arte. O estilo liberta o que sempre esteve prisioneiro, selecciona e
elimina “tudo o que é desperdício, morte e supérfluo, tudo o que cola
às nossas percepções correntes e vividas”462.

Interessa-nos, agora, analisar o que o estilo cria, tal como é


exposto em Qu’est-ce que la Philosophie? - as figuras estéticas.
As figuras estéticas são as sensações: perceptos e afectos.
São diferentes das personagens conceptuais463 , não se trata do

460
FB, p.49.
461
Cf. CC; FB; PS: Luta é o corpo a corpo.
462
QF, p. 152.
463
QF, p. 60: “A diferença entre as personagens conceptuais e as figuras
estéticas consiste primeiro nisso: umas são potências de conceitos, outras,
potências de afectos e de perceptos. Umas operam num plano de imanência
(…), outras, num plano de composição”.
230

mesmo devir464, não têm nada a ver com semelhança nem com a
retórica, mas enquanto “alteridade estabelecida numa matéria de
expressão” são a condição para que as artes produzam afectos de
pedra e de metal, de cordas e de sopros, linhas e cores, num plano
de composição de universos. A arte e a filosofia recortam o caos, e
enfrentam-no, mas não é o mesmo plano de corte, não é a mesma
maneira de povoar, nem de encarnar ou incorporar. O ser da
sensação surgirá “entre aquele que sente e o sentido (…) , à
semelhança das mãos que se apertam” e sob a acção das figuras
estéticas.
A carne (chair) será a primeira figura, separar-se-á
“simultaneamente do corpo vivido, do mundo percebido, e da
intencionalidade de um a outro”. Já não se trata da carne do mundo
vivido, mas também não é a sensação. Ela é, na própria definição de
Deleuze e Guattari, “o termómetro de um devir”465.
Da carne decorre a segunda figura: a armadura, a casa, o
devir. O que a define são porções de planos diversos (verticais,
horizontais, oblíquos, rectilíneos, esquerda, direita, etc.) que dão à
“sensação o poder de se manter por si só em enquadramentos
autónomos. A junção finita dos planos, de mil modos possíveis, define
a casa. São as faces do bloco de sensação.”466 A casa não nos abriga
das “forças cósmicas”, mas enquanto participa de todo um devir pode
seleccioná-las, pode torná-las forças que nos convêm (no sentido
espinosista). É o território (o animal demarca-o e faz uma “casa”),
onde a arte pode talvez começar. Ele implica, como já vimos, “a
emergência de qualidades sensíveis puras, sensibilia que deixam de
ser unicamente funcionais e tornam-se traços de expressão,
possibilitando uma transformação das funções. Sem dúvida que esta
expressividade está desde logo difundida na vida”467.

464
Cf. QF, p. 156. Faz-se nesta página a distinção entre um devir sensível e
um devir conceptual.
465
QF, p. 158.
466
Idem.
467
QF, p. 162.
231

Diferente das duas primeiras surge a terceira figura: o universo,


o cosmos. A segunda figura abre-se sobre esta terceira, quer dizer, a
casa, abre-se através de uma janela, de uma porta, de uma fenda
qualquer e comunica com a paisagem. O universo aqui, já não é a
casa nem a carne. Aparece, no limite, como “aplat”: “o único grande
plano, o vazio colorido, o infinito monocórdico.”468 Vazio colorido que
é, antes de mais, força. Em suma, diz Deleuze, o «aplat» vibra,
comprime-se ou fende-se, é portador de “forças pressentidas”. Poderá
ser mesmo a melhor definição para percepto, que em devir torna
sensíveis essas forças pressentidas (e serão elas mesmas que nos
farão devir).
Quase no final de Différence et répétition, Deleuze chegava à
conclusão de que o único problema estético era o da inserção da arte
na vida quotidiana. Problema que se resolvia nesta obra do seguinte
modo: a arte devia ligar-se à vida, diremos agora, num “abraço ou
corpo a corpo”, arrancaria dela “esta pequena diferença” e introduzia
“a mais estranha selecção, mesmo que seja uma contracção aqui e
ali, isto é, uma liberdade para o fim do mundo.”469
Esta liberdade para o fim do mundo seria agora, neste
contexto, o percepto “em pessoa” e a sua definição poderia traduzir-
se numa possibilidade: “tornar sensíveis as forças insensíveis que
povoam o mundo, e que nos afectam”470. Numa palavra, tornar
sensíveis as forças que nos fazem devir (pintando-as, tocando-as,
escrevendo-as, esculpindo-as, etc.). A sensação, como foi antes
definida (enquanto algo que passa numa zona de indeterminação, de
indiscernibilidade, como lugar irredutível de forças onde não se
reproduzem ou inventam formas, mas captam forças.) revela as
forças “escondidas no «aplat» (Bacon).” Mais uma vez, é preciso que
uma força se exerça sobre um corpo para que haja sensação, neste
caso, para que haja Universo, cosmos.

468
QF, p. 159.
469
DR, p. 463.
470
QF, p. 161.
232

As forças insensíveis, escondidas e pressentidas, tornam-se


sensíveis, tornam-se sensação estética porque são “arrancadas” e
encontram a zona “favorável” para se revelarem, embora aí se
“torçam e rodopiem”. Estas forças cósmicas ou “cosmogenéticas” são
ou correspondem elas mesmas ao devir (animal, vegetal, mulher,
criança, molecular), são potências imperceptíveis, já “difundidas na
vida”. Seres de sensação, “composto das forças não-humanas do
cosmos, dos devires não-humanos do homem”471.
A arte começa com a “casa” (posturas, cores, cantos que se
tornam compostos, por exemplo: uma postura e um canto, uma
cantilena e um salto, um canto e uma cor, etc.), depois (que não é
resultado de ordenação sucessiva) abre-se para as forças cósmicas.
Vai-se da casa para o universo. E se a natureza for como a arte,
então, conjugará “de todas as maneiras esses dois elementos vivos: a
Casa e o Universo”472
É ainda necessário, segundo Deleuze e Guattari, operar sobre
os enquadramentos (o que se opera no território), a saber, uma
desterritorialização (que, como já antes vimos, não se sabe quando
vem, se antes ou depois). Uma “espécie de desenquadramento”. Para
passar para o Cosmos é preciso “um vasto plano de composição” – o
plano do Cosmos. Nele, dissolvem-se as identidades, separam-se os
planos, (por exemplo, na pintura, podem ser: lados que não se unem,
fragmentos, pontos, furos e rasgões na tela, tudo o que permita sair
dela), acaba-se com a representação. Na literatura parece ser a
mesma coisa, quer dizer, numa situação diferente os escritores fazem
os desenquadramentos, fazendo entrar ou sair elementos,
experimentando o que for necessário para extrair, arrancar, os
perceptos e os afectos. Este plano constrói-se à medida que a obra
avança, faz, desfaz, refaz, como Penélope eternamente à espera do
seu amado. Penélope que soube alargar até ao infinito a vida, superar
a morte, libertando-se, desconectando-se do que a aprisionou. Foi
471
QF, p. 161.
472
QF, p. 164.
233

tecendo, durante o dia, uma teia sumptuosa, secretamente, durante a


noite desfazia o trabalho que tinha feito durante o dia. Da coisa finita
ao ser de sensação, que desfazendo-se a cada instante não deixa de
se conservar, “mas em fuga num plano de composição do Ser”473.
Num só plano, mas com múltiplas linhas de fuga que formam
“constelações de universos”.
O que se conserva escapa-se, cria as suas próprias linhas de
fuga, são «seres de fuga»474 que apelam para outros elementos
heterogéneos. A obra de arte é heterogénese como o pensamento é
heterogénese.

3. O que é o estilo?

Depois da análise das criações do estilo, as figuras estéticas, é


preciso tornar claro o que se disse nas páginas anteriores sobre o
afecto e o percepto, sobre o método, quer dizer sobre o estilo.

Deleuze usa, ele mesmo o diz, a definição de Espinosa no que


diz respeito aos afectos e perceptos. Em Critique et clinique há uma
esclarecedora exposição que constitui, de resto, o capítulo final da
obra e que tem como título: “Espinosa e as três «éticas»”. Apresentá-
la-emos, em seguida, sinteticamente.
Aos afectos (signos) e aos perceptos (essências) junta-se um
terceiro elemento que são os conceitos (noções). Todos constituem
formas de expressão a que correspondem modos de existência e de
expressão. Os primeiros, que parecem uma forma de expressão e
que o não são na verdade, deverão ser vistos como “uma experiência
onde encontramos por acaso ideias confusas de misturas entre
corpos, imperativos brutos para evitar tal mistura e para procurar outra

473
QF, p. 167.
474
Idem.
234

(…). É mais uma linguagem material afectiva do que uma forma de


expressão”.475
No entanto, duas páginas antes, Deleuze tinha dito dos
afectos: serão sempre efeitos (são marcas de um corpo sobre outro,
“o estado de um corpo enquanto sofre a acção de outro; é uma
affectio”) e de vários tipos. Um tipo seria, por exemplo: a expressão
do nosso estado num dado momento do tempo, que determina um
aumento ou diminuição (uma expansão ou uma restrição) “da nossa
existência na duração”. Estes efeitos sobre a duração, a nossa
própria duração (prazer, dor, alegria, tristeza), “são passagens,
devires, subidas e quedas, variações contínuas de potência”, que vão
de um estado a outro e a que chamaremos afectos.
Em oposição a estes, surgem os conceitos (são conceitos de
objectos, e os objectos são causas). Têm uma estrutura, uma relação
composta, “de movimento e repouso, de velocidade e de lentidão. (…)
A estrutura é ritmo, quer dizer, encadeamento de figuras que
compõem e decompõem as suas relações. Ela é a causa de não-
conformidades entre corpos, quando as relações se decompõem, e
de conformidades quando as relações compõem um novo. Mas é uma
dupla direcção simultânea. Estrutura e composição idênticas às que
se encontram no quilo e na linfa (exemplos escolhidos por Deleuze).
O quilo e a linfa são dois corpos apanhados em duas relações
que constituem o sangue sob uma relação composta, correndo o
risco de um veneno decompor o sangue. Se aprendo a nadar ou a
dançar, é preciso que os meus movimentos e os meus repousos, as
minhas velocidades e as minhas lentidões tomem um ritmo comum
com os do mar ou do par, em conformidade com um ajustamento
mais ou menos durável.”476
A linfa é um fluido transparente, meio de transporte. A vida e a
morte dependem destes sistemas de transporte, precisamente,
porque passam neste meio grandes quantidades de nutrientes que
475
CC, p. 194.
476
CC, p. 191-192.
235

serão consumidos pelo organismo, garante-se, pois, através das


passagens, a capacidade energética que alimenta todas as células do
corpo, o contacto com o meio externo, de onde provém o sustento
que conserva a vida. Mas passam e geram-se também nestes fluidos
quantidades correspondentes de desperdícios tóxicos (o veneno que
pode matar). É, portanto, um meio de trajectos (em dois sentidos
simultâneos), uma passagem facilitadora de resposta do corpo aos
afectos e afecções. Constituída por elementos não figurados, o
plasma, faz a drenagem/limpeza de fluidos patológicos dos espaços
intersticiais e ao mesmo tempo, como já vimos, dissemina/espalha
substâncias não desejáveis para o organismo e desencadeia a
infecção, a doença.
Este sistema composto de pequenos vasos finos, formando
uma rede complexa, encontra-se por todo o corpo na proximidade
íntima das veias. São capilares que drenam plasma e removem
agentes nocivos, como bactérias e toxinas, vão desde a derme até ao
mais interior do corpo. É uma zona de risco, ou melhor, de ritmo.
Como o quilo e a linfa o conceito compõe-se e estrutura-se.
Tem uma estrutura formada, pelo menos, por dois corpos, cada um
deles formado também por dois ou mais até, “ao único objecto de
toda a Natureza, estrutura infinitamente transformável e deformável,
ritmo universal, Facies totius Naturae”477.
A oposição ou distinção entre os dois primeiros elementos
parece, diz Deleuze, insuperável. Os afectos “são ideias inadequadas
e paixões”, Os conceitos “são ideias adequadas de onde emanam
verdadeiras acções”. O que significa nesta perspectiva, o que
dissemos antes: os afectos não podem ser forma de expressão. Mas,
então como formar um conceito que o seja? O que é necessário
fazer?
É “preciso que certos signos nos sirvam, pelo menos, de
trampolim, e que certos afectos nos dêem o impulso necessário”. É

477
CC, p. 192.
236

num encontro casual entre corpos que surge a selecção (certos


corpos estão em conformidade com os nossos, dão-nos alegria,
aumentam a nossa potência) que vai poder fazer com que a nossa
potência seja de tal maneira aumentada que nos apossamos dela.
Esta selecção que é difícil, e sem a qual estaríamos condenados,
segundo Deleuze, vai permitir soltar as alegrias, reprimir as tristezas
(libertar os agentes nocivos que nos podem matar). Ela será a própria
condição para sair desta ainda não expressão (os afectos, mantêm-
se, perdendo a sua exclusividade, sabemos que as tristezas são
inevitáveis), ou a “primeira condição do nascimento do conceito”.
O terceiro elemento (percepto) não é da mesma natureza dos
anteriores: “É outro estilo, quase outra língua”. Aparecerá numa
terceira Ética (que talvez exista), representada pelo livro V.
Deleuze quase no fim de Critique et clinique, conclui que, com
este último modo de expressão ( o percepto) , “temos a sensação de
lá chegar, mas ele estava lá desde sempre.”478
Não são os afectos, nem os conceitos, mas os perceptos que
são expressão. Estes últimos são puras figuras de luz, são em si
mesmos, «contemplações», velocidades absolutas. Como se chega
aqui, que método distinto se utiliza? Para Deleuze, não são simples
procedimentos de facto mas, “todo um procedimento em linha recta”.
O que quer isto dizer?
O método ao nível dos conceitos é um método de exposição e
“saturação”, mas aqui é um método de invenção com “estranhos
poderes” de composição, que vai proceder por intervalos e por saltos,
hiatos e contracções.
Este método “tem como função aproximar ao máximo termos
distantes como aqueles [o nosso corpo e um outro] e assegurar,
desse modo, uma velocidade de sobrevoo absoluta. As velocidades
podem ser absolutas e, no entanto, mais ou menos grandes. A
grandeza de uma velocidade mede-se precisamente na distância que

478
CC, p. 199.
237

ela transpõe de uma só vez, quer dizer, no número de intermediários


que ela envolve, sobrevoa ou subentende (aqui, pelo menos dois). Há
sempre saltos, lacunas e cortes como caracteres positivos do terceiro
género [perceptos]”479.
Sobre Espinosa e sobre o mesmo problema, em Pourparlers,
Deleuze refere-se ao “método” em filosofia. Aí, define-se o estilo
filosófico (que é uma questão de sintaxe) como um estado de tensão
que vai na direcção do movimento do conceito, movimento que “nos
inspira novos perceptos e novos afectos, que constituem a
compreensão não filosófica da própria filosofia. (…). O estilo em
filosofia dirige-se para estes três pólos, o conceito ou as novas
maneiras de pensar, o percepto ou as novas maneiras de ver e
entender, o afecto ou as novas maneiras de experimentar. É a
trindade filosófica, a filosofia como ópera: são precisos os três para
fazer o movimento.”480 Embora, Deleuze diga, na mesma página um
pouco mais adiante: “ele [Espinosa] vai ainda mudar de estilo e falar-
nos por perceptos puros, intuitivos e directos. (…) Ele faz vibrar três
línguas (…). São necessárias estas três asas pelo menos para fazer
um estilo, um pássaro de fogo.”481
Em Qu’est-ce que la Philosophie?, o mesmo método (mas
distinto, se estamos a falar do estilo estético) arranca, abre ou fende,
extrai, escava, mas também é “saturação”. Muitas vezes e em muitas
obras, Deleuze refere-se à resposta que Virginia Woolf dá (resposta
“que vale tanto para a pintura ou para a música como para a escrita”):
“O método”, o estilo, que torna a obra de arte um bloco de sensações
que conservam e se conservam, conseguem, precisamente: “«saturar
cada átomo», (…) ficar apenas com a saturação que nos dá um
percepto”482. Também aqui é a sintaxe483 que faz balbuciar a língua

479
CC, p. 202.
480
P, p. 224.
481
P, p. 225.
482
QF, p. 152.
483
Cf. Ronald, Bogue, Deleuze on Music, Paiting, and the Arts, N. York,
Routledge, 2003, p. 193.
238

“ou tremer, ou agitar ou mesmo cantar”. Mais ainda, no caso do


escritor, ele “retorce a linguagem, fá-la vibrar, constrange-a, fende-
a”484.
Se voltarmos um pouco mais atrás, encontramos em Proust et
les signes, que analisámos na primeira parte, a mesma definição: o
estilo é explicação dos signos, a velocidades de desenvolvimento
diferentes, seguindo cadeias associativas próprias a cada um deles,
“começa com dois objectos diferentes, distantes, mesmo se são
contíguos: pode acontecer que estes dois objectos se pareçam
objectivamente, sejam do mesmo género; pode acontecer que eles
estejam ligados subjectivamente por uma cadeia de associação.”485
Os “efeitos” produzidos por ele (a ressonância, os movimentos
forçados são selectivos, extraem, eliminam, rasgam, introduzem o
caos), ressoam e amplificam-se. No seu interior (da frase, do som, do
traço, da cor, etc.), no silêncio e nas palavras, no que diz e não diz,
na sintaxe, no vocabulário particular, multiplicam-se os efeitos,
produz-se o estilo. Esta produção em “estado puro” encontra-se na
artes, sobretudo na música. A mesma coisa se dirá em Qu’est-ce que
la Philosophie?: é “precisamente a tarefa de toda a arte, e a pintura,
a música não fazem mais do que arrancar às cores e aos sons os
novos acordes, as paisagens plásticas ou melódicas, as personagens
rítmicas que as elevam até ao canto da terra e ao grito dos homens: o
que constitui o tom, a saúde, o devir, o bloco visual e sonoro.”486
O que conta, para esta clarificação, é que duas sensações,
quando elas se ligam uma à outra, como no exemplo de Proust: “Tais
eram a sensação do violino e do piano na sonata. ‘Era como no
começo do mundo, como se não tivesse havido senão dois sobre a
Terra, melhor neste mundo fechado a tudo o resto, construído pela
lógica de um criador e onde eles não serão jamais os dois: esta
sonata’. (…) O que conta, é que as duas sensações se agarram como

484
QF, p. 155.
485
PS, p. 199.
486
QF, p. 156.
239

«lutadores» e formam um «corpo a corpo de energias», mesmo se é


um corpo a corpo desencarnado, de onde se destaca uma essência
inefável, uma ressonância, uma epifania dirigida para esse mundo
fechado.”487
Finalmente, em Mille Plateaux, também o estilo arranca e extrai
variações expressivas, formando uma linha de variação contínua, por
“articulação do ritmo” e “harmonização da melodia” (variações na
velocidade, ritmo, etc., da circulação do movimento não-pulsado,
contínuo, em constante dupla captura recíproca e expressão das
forças da Terra). O que distingue um pássaro músico de um que o
não é, é, como vimos, essa aptidão para os motivos e contrapontos
que, variáveis ou mesmo constantes, fazem um estilo.
É no motivo e contraponto ( que são duas sensações que se
“agarram”) que é dada a relação com a alegria e com a tristeza, com o
sol, etc. É no motivo e no contraponto, quando eles se encontram
num “abraço ou corpo a corpo”, que o sol, a alegria ou a tristeza, o
perigo, se tornam sonoros, rítmicos ou melódicos.

Tentemos então, uma exposição clara das características do


estilo, segundo Deleuze.
Deleuze refere-se ao estilo de um “grande escritor” ou de um
“grande autor”. Mas, nem todos os escritores ou autores têm um
estilo. A ideia tradicional de estilo é a de uma elaboração sofisticada
da língua comum, da língua materna. Elaboração da forma.
O “escrever bem” resultaria do uso particularmente exímio,
virtuoso, da gramática tal como ela é usada. No limite, o estilo seria
quase uma questão de retórica488. Por outro lado, o estilo estaria
ligado à “personalidade” do autor. “O estilo é o homem”.

487
V. FB, p. 46.
488
Até ao século XVIII, o estilo foi entendido simplesmente como “maneira de
escrever”, objecto de uma arte ou técnica da linguagem. Ligado a uma
finalidade pragmática sofrerá alterações consideráveis com o Romantismo. Nos
finais do século XIX aparece a Estilística, que pretende de forma mais científica
identificar os efeitos de estilo. Dela decorre uma nova definição de estilo como
busca de originalidade, recusa do trivial e selecção de signos mais expressivos.
240

Deleuze vai recusar todas estas concepções e introduz uma


totalmente nova. Como vimos, Mille Plateaux, por exemplo, descreve
o estilo como um “procedimento de variação contínua”489.
Resumamos as características do estilo, na literatura, como
variação contínua:

1. O estilo é uma língua estrangeira dentro da língua materna.


2. O estilo introduz um “fora” dentro da língua.
3. O estilo implica um cromatismo alargado.
4. O estilo é “agramatical”.
5. O estilo é um movimento de variação contínua de todos os
elementos da língua.

Com ele elevam-se as percepções vividas ao percepto, as


afecções vividas ao afecto. É uma linguagem das sensações, sempre
necessária. Quer dizer, uma “linguagem afectiva, intensiva, e não já
uma afecção daquele que fala”490.
Não é qualquer coisa que se aprenda por imitação ou
assimilação, fazendo como, se há estilo é por evolução não paralela,
“fazendo com alguém que não tem relação de semelhança com o que
aprendemos.”491
É a sintaxe de um escritor, modos e ritmos de um músico,
traços e cores de um pintor. É uma noção literária. Mas, também
podemos falar de estilo nas ciências (onde não há sintaxe). Ou no
desporto, no ioga (de que já falámos), etc.

O autor busca sons, palavras e construções novas que produzam um valor


expressivo (para isso serve-se de inúmeras figuras de retórica ou outros
processos de valorização estilística, por exemplo, o uso ou omissão do artigo, o
valor afectivo do pronome, a expressividade do adjectivo, do verbo, do
advérbio, interjeição, sinais de pontuação, etc.) Cf. L. Cintra, Nova gramática
do português contemporâneo, e M. Carmo, Introdução ao texto literário.
489
MP, p. 123.
490
CC, p.147.
491
PS, p. 32.
241

No desporto, por exemplo, Deleuze menciona-o em


492
Pourparlers , o estilo estaria, associado ao novo, à invenção. O
equivalente da sintaxe seria um novo encadeamento de posturas, que
se faz sobre a base de um estilo precedente e em ruptura com ele. O
“estilista”, o inventor, produz o inesperado, a “nova sintaxe” ou o seu
equivalente, com ela traz novas variedades ao mundo. Neste e
noutros domínios é preciso falar de estilo como criação, criação de
traçados entre impossibilidades. “Um criador é alguém que cria as
suas próprias impossibilidades, e que cria o possível ao mesmo
tempo”493. O seu problema não se põe diferentemente em literatura
ou nas outras artes. (É a sua convicção: “simplesmente ainda não tive
oportunidade de fazer para a literatura o livro que desejava”494 , quer
dizer, na altura ainda não o tinha feito.)

O problema do estilo na literatura (tratado por Deleuze,


provavelmente, da forma que desejou, em Critique et clinique), é
também o problema da escrita, já posto por Proust (e referido por
nós): inventar na língua uma nova língua, “inventar uma língua
estrangeira de uma espécie qualquer”. E deste problema decorrerá
um outro: o problema de ver e de ouvir.
Em Critique et clinique, como veremos, estes problemas
concentram-se e desenham um conjunto de “caminhos” uns mais
curtos outros mais longos, mas cruzando-se, separando-se ou
aproximando-se sempre, indo até pelos mesmos lugares.
Quando se cria uma outra língua dentro da língua, tudo é
arrastado para fora dos seus “sulcos habituais”, tende para limites
(«assintácticos», «agramaticais» ou para um que comunica com um
«fora»). O escritor cria novas potências gramaticais ou sintácticas na
fronteira da linguagem. Veremos e ouviremos entre as palavras,
teremos visões e audições ou delírios. Tudo é arrastado, significa: que

492
P, pp. 179 e seg.
493
P, p. 182.
494
P, p. 196.
242

o estilo arrastará tudo “como um rio arrasta os materiais do seu


leito.”495 As palavras serão arrastadas “de uma ponta à outra do
universo”496.
No estilo ou na escrita a tarefa difícil é a tarefa “de devir”. Não
se trata simplesmente de impor uma forma (identificação, imitação),
mas encontrar uma sensação (uma sensação estética, um bloco).
Que não vai numa linha direita, mas que se desvia sempre. Por aí,
encontra-se uma sintaxe, um conjunto de desvios necessários para
revelar a vida nas coisas. Como faz, por exemplo, a sintaxe de um
escritor (que corresponderá aos modos e ritmos de um músico, os
traços e cores de um pintor).
O que o escritor, segundo a concepção de Deleuze, não deve
fazer é evocar ou convocar antigas afecções e percepções,
memórias, recordações. “Não se escreve com recordações de
infância”. É necessário algo mais violento, da ordem do retorcer,
constranger, vibrar, arrancar, desfazer, abrir, fender, escavar…
Ou passar “como «uma lâmina através de todas as
coisas»”497, como passa Mrs. Dalloway498 , eliminando tudo o que é
“desperdício”.
Numa palavra, não se escreve com opiniões, mas com a
“fabulação criadora”. As percepções e afecções de um romancista
medíocre e tudo o que se lhes “cola” deve ser eliminado. O estilo que
faz devir o escritor surge, não de estados vividos, nem de imitações,
mas (e mais uma vez correndo o risco da repetição) de “uma extrema
contiguidade, num estreitamento de duas sensações sem
semelhança, ou pelo contrário no afastamento de uma luz que capta
as duas num mesmo reflexo.”499

495
PS, p. 199.
496
CC, p. 10.
497
QF, p.149.
498
Personagem central e título do romance que Virginia Woolf publicou pela
primeira vez em 1925.
499
QF, p. 153.
243

A sintaxe criada e criadora (o estilo) faz então balbuciar,


gaguejar, tremer a língua materna, quer dizer, abre intervalos entre as
palavras, vazios, que não existiam antes, na própria sintaxe, nas
frases, na organização da língua – o que provoca um caos da matéria
e exige uma nova organização sintáctica500.
Esboça-se aí uma espécie de língua estrangeira. As novas
sequências linguísticas, do novo estilo, encadeiam-se, conectam-se
formando uma linha contínua (direita que se desvia sempre)
incessantemente variável e vão buscar elementos, fonemas, palavras,
frases, etc., em todos os domínios da língua (cromatismo alargado).
Não é outra língua, nem um dialecto, mas como diz Proust, é “um
devir outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio
que a arrasta (…). Criação sintáctica, estilo, é este o devir da
língua.”501
Embora Deleuze se refira a uma “decomposição ou a uma
destruição da língua materna”, apesar da decomposição da língua
materna que parece existir, não é de uma destruição que se trata,
mas de uma invenção de uma nova língua dentro da língua. É
verdade que a língua materna é tomada por um delírio, que a faz
saltar dos eixos. Delirar é isso mesmo, fazê-la saltar, levando-a a uma
oscilação, um limite, que a vira do avesso e cria um “fora”. Para
escrever “talvez seja preciso que a língua materna seja odiosa, mas
de tal modo que uma criação sintáctica trace aí uma espécie de
língua estrangeira”502.
Destruição, aqui, parece-nos, não querer dizer, destruição
literal e absoluta da língua materna, mas uma transformação mais ou
menos radical, conforme os casos. Por exemplo, no caso do Livro do
Desassossego de F. Pessoa, a linguagem está certamente longe da
língua materna, mas continua a conservá-la. O que é destruído é uma
certa comunidade trivial da língua ( da doxa).

500
Cf., Gilles Deleuze, Superpositions, Paris, Minuit, 1979, pp. 106-108.
501
CC, p. 15.
502
CC, p. 16.
244

O que a língua estrangeira (língua secreta, calão, lengalengas,


feita de quedas de letras, ausências de pausas e pontuação, etc.) faz,
é pôr em estado de variação o sistema das variáveis da língua
materna. Cada autor, escritor, tem o seu procedimento (de variação
contínua) – Pessoa, Kafka, Beckett, Luca, Proust, Balzac, Virginia
Woolf, Celine, Joyce, Guimarães Rosa, Melville, Artaud, Espinosa,
Nietzsche…
Pôr em variação contínua ou traçar uma linha503 plástica, de
variação, é “fazer passar o enunciado por todas as variáveis,
fonológicas, sintácticas, semânticas, prosódicas, que o podem afectar
no mais curto momento do tempo (o mais pequeno intervalo)”504.
No mais pequeno intervalo, “diabólico”, passará uma matéria
intensa, que se liberta e expande. “Assiste-se a uma transformação
das substâncias e a uma dissolução das formas, passagem ao limite
ou fuga dos contornos em proveito de forças fluidas, dos fluxos, de ar,
de luz, da matéria que fazem com que um corpo ou uma palavra não
parem em nenhum ponto preciso.”505
Neste procedimento de variação contínua não há possibilidade
de distinguir forma de expressão e forma de conteúdo. As diferenças
são “infinitamente pequenas” e surgirão numa só e mesma matéria
(“libertada, sem figuras, deliberadamente não formada”). Numa louca
produção de velocidades e intervalos, num procedimento que não é
“nem sincrónico nem diacrónico, mas assíncrono, cromatismo como
estado variável e contínuo da língua.”506

503
A “história do estilo não desenha uma linha única e ascendente, mas
desenvolve-se num plano multilinear com uma linha orgânica, uma linha
inorgânica e uma linha de afrontamento que vai de uma à outra, linha mediana
que torna possível uma classificação infinita das imagens e dos signos. Este
conjunto multilinear designa o princípio de classificação que Deleuze
desenvolve no seu Bacon, no seu livro sobre o cinema, e ainda esse programa
semiótico que realiza a sua obra sobre a filosofia, Qu’est-ce que la
Philosophie?.” J.-C. Martin, Variations, p. 165.
504
MP, p. 119.
505
MP, p. 138.
506
MP, p. 123.
245

O que quer que aconteça na variação contínua (rupturas ou


cortes) vai “desencadear esta linha virtual, este contínuo virtual da
vida, «o elemento essencial ou o real por detrás do quotidiano».”507
Mas esta linha é “a-pertinente, assintáctica ou agramatical,
assemântica. A agramaticalidade, por exemplo, não é já um carácter
contingente da palavra que se oporá à gramaticalidade da língua, é
ao contrário o carácter ideal da linha que põe as varáveis gramaticais
em estado de variação.”508

Explicitemos numa pequena análise fenomenológica as duas


seguintes questões: o que é escrever? Pôr-se “diante da página
branca”?
Comecemos:
1. Quer-se dizer qualquer coisa de uma certa maneira (matéria
de conteúdo), da ordem do sentido e da existência ao
mesmo tempo. Como que um sentido incrustado nos
movimentos da vida.
2. Experimenta-se tal modo de escrever, vai-se buscar tal
estilo. Fazem-se tentativas para acertar no estilo certo.
Como dizer o que nunca foi dito para que, uma vez dito,
passe a existir (passe do virtual – inconsciente - ao actual)?
3. Não se podem alinhar frases após frases de qualquer
maneira.
É preciso que o escritor entre nesta zona de fronteira entre as
palavras, os enunciados já conhecidos, e a vida que está para ser
dita. É preciso que ele entre numa zona de forças próprias,
específicas que atravessa, preenche e empurra as palavras. Ao
mesmo tempo dá-se uma comparação com o mesmo devir dentro da
língua comum, dentro dos estilos emprestados, etc. E de repente,
produz-se um caos em que certos enunciados emprestados entram
em contacto com enunciados novos, com gritos e forças de natureza
507
MP, p. 139.
508
MP, p. 125.
246

diferente, ligados a palavras, a frases diferentes. Caos, mas já uma


nova linha de fluxo se desenha que arrasta palavras e frases.
As “vozes”, os ritmos, o ilocutório da língua é o que interessa à
nossa concepção pragmática da língua segundo Deleuze. Todo
aquele movimento da língua em ritmo, entoação, tempo de dicção
interior, forma o ilocutório, o “corpo da língua”. Cada escritor ouve e
vê para lá da percepção trivial. “É um vidente e um ouvinte”. Um
vidente enquanto “alguém que devém” e pode começar a sua escrita.
Mais uma vez, Virginia Woolf, à pergunta: “em que consiste a
escrita?” responde “quem é que vos fala em escrever? O escritor não
fala disso, ele está preocupado com outra coisa.”509

“Escrever é muito simples”, é uma forma de Deleuze


responder. “A escrita não tem outra finalidade (…) – libertar na vida o
que pode ser salvo, (…), libertar no devir o que não se deixa fixar num
termo. Estranha ecologia: traçar uma linha, de escrita, de música ou
de pintura. São longas correias agitadas pelo vento. Um pouco de ar
que passa. (…). A escrita é feita de agitação motora e de
catatonia”.510 Ou ainda, em Mille Plateaux, “não tem senão linhas
ascéticas, um pouco de erva e água pura.”511
Foi o que tentou Wolfson. O estilo da sua escrita (capítulo II de
Critique et clinique) pretende retirar da língua materna uma espécie
de língua estrangeira. O autor, americano, escreve livros em francês.
Tem um procedimento: o estrangeiro é criado com sons ou fonemas
semelhantes nas duas línguas. Neste caso, o autor quer matar a
língua materna (num “combate de todos os instantes, e desde logo
um combate contra a voz da mãe”512). Deleuze, considera que
Wolfson não é tão bom como Artaud. Falta-lhe “uma sintaxe
criadora”. Terá falhado o procedimento. O que seria necessário para
que isso não acontecesse teria sido o poder arrancar à língua
509
CC, p. 17.
510
D, p. 94.
511
MP, p. 125.
512
CC, p. 24.
247

materna “palavras-sopros” e ao organismo “um corpo sem órgãos”.


Mas Wolfson não descobriu os sopros nem as letras nas palavras
estrangeiras.
Para que este procedimento não tivesse falhado era
necessário que ele tivesse introduzido um “fora”. Que tivesse
arrastado a língua para um limite, o que não acontece. Talvez, diz
Deleuze, Wolfson permaneça no limiar, prisioneiro da loucura. “De
certo modo, o seu procedimento mantém-se improdutivo. E, no
entanto, é uma das maiores experimentações feitas neste domínio.”513
Só esta experimentação justifica que Deleuze lhe consagre o
segundo capítulo de Critique et clinique.
Mais adiante, no capítulo VII, sobre Masoch e a sua escrita,
Deleuze volta a falar das formações delirantes como esboços de arte.
Masoch aparece, neste contexto, como uma literatura de minorias e
portanto como uma literatura que define um tratamento da língua
maior. Tratamento (mais que procedimento) que faz sofrer a língua
maior, melhor, ela treme, é afectada por um “tremor”. A língua começa
a gaguejar, a balbuciar. “Deste modo, fazer gaguejar a própria língua,
no mais profundo do estilo, é um procedimento criador que percorre
grandes obras. Como se a língua se tornasse animal. (…) Existem
muitos indícios ou procedimentos diversos que o escritor pode aplicar
através da língua para fazer um estilo. E de cada vez que uma língua
é submetida a esses tratamentos criadores, é toda a linguagem que é
levada ao seu limite, música ou silêncio. (…) A suspensão dos corpos
e o balbuciamento da língua constituem o corpo-linguagem, ou a obra
514
de Masoch.” O seu procedimento não é falhado, nem improdutivo,
tem um estilo.
Segue-se nesta linha de análise, Whitman, ou a escrita
fragmentária. Com o seu procedimento, o mundo aparece como
“conjunto de partes heterogéneas: patchwork infinito, ou muro

513
CC, p. 34.
514
CC, p, 79.
248

ilimitado de pedras soltas”515 . Os fragmentos são extraídos,


seleccionados, por um acto especial que consiste numa escrita com
um tipo particular de frase que modula o intervalo. É como se a
sintaxe que compõe a frase libertasse uma frase assintáctica. Os
fragmentos são espontâneos. O seu estilo é “paradoxal”, os
fragmentos constituem o elemento através do qual, ou nos intervalos
do qual se acede às grandes visões e audições. A lei do seu
procedimento é a “lei da fragmentação”. De fragmento em fragmento,
constrói-se uma experimentação.
Se os fragmentos não podem ser unificados, totalizados, pelo
menos entre eles existirá um estado de autonomia das matérias de
expressão que produzirá um tipo de relação que já conhecemos,
intensiva, entre a criação e a destruição. Da aptidão para articular
contrapontos e motivos, como no caso do “pássaro músico”, e neste
caso, contrapontos e “responsos”, resultará o estilo. Relação ou
articulação entre dois, como duas sensações que se agarram num
corpo a corpo. “Por toda a parte as relações de contraponto estão por
inventar e condicionam a evolução. Na escrita opera-se a invenção de
um mundo heterogéneo.
O mesmo se passa nas relações do homem com a Natureza.
Whitman instaura uma relação gímnica com os jovens carvalhos, um
corpo-a-corpo: ele não se funda neles nem se confunde com eles,
mas faz com que algo passe entre os dois”516.
Se Whitman tem um procedimento especial, Bartleby tem a
fórmula517 .
A fórmula agramatical: “EU PREFERIA NÃO (I would prefer not
to), é uma fórmula destruidora, não deixa subsistir nada. É
devastadora, não fica pedra sobre pedra, depois dela passar.
“Bartleby «vira a língua» dos outros”, desmonta-a, “desliga-a”.
Impiedosamente elimina o preferível “seja qual for o não preferido”.

515
CC, p. 81.
516
CC, p. 84.
517
CC, p. 96.
249

Abre uma sensação, tal como já definimos antes: “uma zona de


indiscernibilidade, de indeterminação, que não cessa de aumentar
entre actividades não-preferidas e uma actividade preferível.”518 Toda
a referência é abolida. Cria-se um vazio na linguagem , as palavras já
não se distinguem.
Bartleby trabalha na língua uma espécie de língua estrangeira,
tem uma fórmula e aplica-a tratando da língua trivial de modo a
extrair dela uma língua original desconhecida. Não gagueja, não
dispõe de um “Procedimento”, no entanto, obtém resultados. Faz
“baloiçar” a língua no silêncio.
“É como se três operações se encadeassem: um certo
tratamento da língua; o resultado desse tratamento, que tende a
constituir na língua uma língua original; e o efeito, que consiste em
arrastar toda a linguagem, em fazê-la fugir, puxá-la até ao seu próprio
limite para lhe descobrir o Fora, silêncio ou música.”519
Bartleby está num devir minoritário, sem referências, sem
propriedade, cerca ou medida, sem qualidades, sem particularidades,
sem fronteira. É demasiado liso, diz Deleuze, quer dizer, há qualquer
coisa nele que não se deixa codificar, uma espécie de caos-errância.
Dos “cacos” retirará um traço de expressão, uma sensação e
estabelecerá uma “função de fraternidade universal”, autonomia.
Resta-lhe uma, a sua «originalidade», um som, um ritornelo.
Melville, com o seu estilo, faz sempre fugir qualquer coisa
“sobre a linha do horizonte (…), uma música na língua que gagueja,
um som puro e acordes desconhecidos em toda a linguagem”. Ainda
que Bartleby não gagueje, catatónico e anoréctico, quase mudo, ele
anuncia uma comunidade nova520.
Deleuze, em Critique et clinique consagra ainda alguns
capítulos a Alfred Jarry, T. E. Lawrence, Nietzsche, Platão, Espinosa.
Não fizemos uma análise senão de alguns capítulos (os que mais

518
CC, p. 99.
519
CC, p. 101.
520
Cf, Giorgio Agamben, Bartleby ou La création, Circé, 1995
250

directamente nos interessaram para a questão do estilo). Falta ainda


referir dois capítulos, onde não se tratando de nenhum autor em
especial se trata especificamente da questão do estilo.
Saliente-se que Critique et clinique não é uma recolha dispersa
de estudos feitos por Deleuze. Pelo que já pudemos ver, um forte
nexo os une. A linha que os atravessa é uma linha de variação
contínua. Os autores têm procedimentos ou fórmulas ou tratamentos
diferentes, mas reenviam uns aos outros, passam uns entre os outros,
cruzam-se. Critique et clinique pode finalmente traçar a linha do
estilo521 .
Vejamos então, por último, os capítulos XIII e IX.
O estilo, podemos dizer, é um agenciamento de enunciação. A
terceira possibilidade a que se refere Deleuze no capítulo XIII de
Critique et clinique: “quando dizer é fazer…” é a possibilidade de
numa só vez, numa linha de fuga, fazer variar duas sensações, dois
movimentos. O que só pode acontecer quando se faz balbuciar,
gaguejar a língua, porque a gaguez só se introduz nas palavras que
afecta, liga e selecciona. Ser gago da língua não é um impasse, uma
paragem que estagna a expressão, pelo contrário, do gaguejar extrai-
se um devir que faz libertar uma matéria pura. Tudo o que muda,
agencia-se e passa por essa linha.
As forças do escritor “vêm-lhe de uma minoria muda,
desconhecida, que só lhe pertence a ele. É um estrangeiro na sua
própria língua: não mistura uma outra língua à sua própria língua,
talha na sua língua uma língua estrangeira que não preexiste.”522
Torna-se gago numa operação que é poética. Quando isto acontece,
a língua vibra, balbucia, treme, murmura, tem ritmos próprios. Uma
521
“A crítica e a clínica deveriam confundir-se estritamente; mas a crítica seria
como o traçado do plano de consistência de uma obra, um crivo que separaria
as partículas emitidas ou captadas, os fluxos conjugados, os devires em jogo; e
a clínica, de acordo com o seu sentido exacto, seria o traçado das linhas no
plano, ou a maneira como essas linhas traçam o plano: quais estão em
impasse ou bloqueadas, quais atravessam os vazios, quais se continuam e
sobretudo, como é que a linha de maior inclinação arrasta as outras, e para
que destino.” D, p. 144.
522
CC, p. 149.
251

espécie de qualidade atmosférica (climas metaestáveis) põe tudo em


perpétuo desequilíbrio. Tudo se bifurca de acordo com o modo
próprio, o ritmo, como cada um percorre esta zona de variação
contínua (Melville, Masoch, Kafka, etc.). Um cantor gago não gagueja
quando canta, tem um estilo (que lhe vem talvez do facto de ser gago)
que impede, que transforma a sua impossibilidade da fala numa
possibilidade de ritmo, de canto. Ele é gago somente na fala. Um
escritor é gago na língua, no seu caso tem mesmo de gaguejar,
porque a gaguez produz um movimento que ressoa, para fazer sair os
ritmos e articulá-los com as melodias e assim atingir o estilo. São
gaguejares diferentes, é uma gaguez criadora, inventiva.
Requer-se uma resposta para a pergunta já antes feita: “pode-
se progredir se não se entrar nas regiões longe do equilíbrio?”
Fazer vibrar a língua, fazê-la gaguejar, “inventar um uso menor
da língua maior”, fazê-la fugir, não é entrar nessa região? O boom e o
krach referidos por Deleuze estão mesmo nessa zona, longe do
equilíbrio. Estamos a falar de um duplo processo a que podemos
também submeter a língua: “boom” e “krach” (expansão e queda ou
falência. “Keynes fez progredir a economia política, porque a
submeteu a uma situação de «boom» e não de equilíbrio”). O estilo é
feito também destas duas operações. É uma espécie de economia da
língua. Como já antes vimos, um frente a frente, fazendo-a gaguejar e
ao mesmo tempo indo até ao seu limite, ao seu fora, ao seu silêncio.
É a gaguez criadora que leva a língua para essa região sempre longe
do equilíbrio. Será então um estilo boom e simultaneamente krach.
Submeter a língua a este processo, quer dizer: “num estado de
boom, próximo do krach” é levá-la através desse processo duplo à
ruína, à desmaterialização, à queda, mas também à expansão e à
libertação. É levá-la a poder sair e entrar no caos e não falhar o estilo.
Arriscando a morte, pode experimentar-se, faz-se o que se pode
fazer, simultaneamente “dizer é fazer”, estreita combinação e
entrelaçamento dos dois processos: do “ruído” (diástole), e da “voz”
252

(sístole) à “palavra”. Diástole, sístole, são aqui os processos de devir


mais importantes.
Sintaxe “em devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a
língua estrangeira na língua, uma gramática do desequilíbrio” que
leva a língua ao limite assintáctico – o Fora. As palavras podem então
pintar ou cantar ou ficar em silêncio, porque foram viradas do avesso.
Quando a língua está assim tão fora de si que começa a
gaguejar, ou a murmurar, a balbuciar, atinge o limite (a fronteira com o
seu “fora”) e confronta-se com o silêncio. A linguagem sofre uma
pressão, excedem-se as possibilidades da fala. Fica-se embriagado
com água. Pode entrar-se em transe. “É o que chamamos um estilo,
que pode ser a coisa mais natural do mundo.”523
É o que acontece à criança no escuro antes de adormecer, o
seu ritornelo é acompanhado de movimentos do corpo. O seu corpo e
a sua voz começam a rodar, da direita para esquerda, embalando-se,
baloiçando-se. São dois gaguejares dos quais sai um bloco que
afronta o caos e vai “em direcção a um corpo sem órgãos”524.
O estilo define-se como o que faz nascer a nova língua e é, já
antes de o ser, língua estrangeira na língua materna. Esteve sempre
lá.
Ou então, é preciso ainda falar de “não-estilo”. O estilo que vai
mais longe ainda. Aquele que chega “às regiões sem memórias,
quando é preciso destruir o eu.”525 Não chega ser um “grande”
escritor, os meios parecerão sempre inadequados. Para o estilo se
tornar não-estilo, a língua tem de deixar escapar uma língua
estrangeira desconhecida, até se atingirem os limites da linguagem, o
devir. Já não importa o estilo “certo”, as frases bem escolhidas e
coerentes, a palavras exactas, porque haverá uma gaguez que
contaminará a vida toda.

523
MP, p. 123.
524
CC, p. 151.
525
CC, p. 154
253

Quando essa gaguez se tornar uma necessidade, e é preciso


que se torne; quando se puder devir gago, porque se “inventou um
prodigioso gaguejar”, então chega-se ao não-estilo que contamina a
própria natureza.
Chegados aqui, compreenderemos um pouco melhor que se
chame ao estilo, “encanto”.
Se entendermos que o “encanto” é um devir, e também um
gaguejar, mas de ordem diferente, um passar entre, expressivo, de
certa forma inatingível que pode vir de uma ligeireza ou de uma
ingenuidade, de uma espécie de virgindade, uma virgindade de
sensações ou da criação de uma atmosfera ( de encantamento) que
reenvia para longe, podemos então dizer que o “encanto” é o estilo,
imprevisível e sem limites.
“Há na vida uma espécie de falta de perícia, de fragilidade
física, de constituição fraca, de gaguez vital que é o encanto de cada
um. O encanto, fonte de vida, como o estilo, fonte de escrita. A vida
não é a vossa história. Aqueles que não têm encanto não têm vida,
são como mortos. Mas o encanto não é de todo da pessoa. É aquilo
que permite apreender as pessoas como outras tantas combinações,
e de acasos únicos (…).”526
“Encanto”, estilo, fonte de vida e de escrita são ainda
inadequados. Seria necessário encontrar outros termos. Para
Deleuze, quer na vida quer na escrita trata-se de uma mesma
potência. A vida e a escrita confundem-se, qualquer coisa passa entre
as duas. Uma espécie de “saúde”.

Como com as crianças que não param “de dizer o que faz[em]
ou tenta[m] fazer”527. As crianças pequenas são um bom exemplo do
que pretendemos dizer sobre o estilo ou o “encanto”. São, sem dúvida
o lugar irredutível de forças e onde elas mais fortemente se revelam.
O que está contido numa vida e que se exprime de uma forma
526
D, p. 15.
527
CC, p. 81.
254

espontânea, sem limites, nem propriedades ou cercas, adivinha-se


numa criança.
As crianças são velozes, são rápidas, sabem deslizar em
“zigzag”, estão sempre em devir, “qualquer coisa que passa ou que
se passa entre dois como sob uma diferença de potencial”528. O que
se passa, passa-se numa dupla captura – achar, encontrar, explorar é
o que acontece quando se vê “algo demasiado grande”. Por isso,
excedem as possibilidades ordinárias da vida, inventam um “uso
menor” por onde se exprimem inteiramente, vivem todo o tempo numa
zona de variação contínua, de heterogénese, de experimentação,
numa região longe do equilíbrio. Num planalto, um “plateau”, região
de desejo, do estilo.
Para as “apanharmos” precisaríamos de rodopiar em todas as
direcções em que vão, ziguezaguear, porque elas estão num “máximo
de forças possíveis”. Capturam as suas forças numa “minoria muda
desconhecida” que lhes pertence só a elas (nas pedras, nos planetas,
nas pontes, nas árvores, nas folhas, nos grãos, nos esquilos, nas
nuvens, em tudo o que está e esteve sempre aqui, ali, em qualquer
lado.). Têm condições de percepção singulares que lhes permitem
aceder às verdadeiras “Visões e Audições”, porque a sua vitalidade
lhes permite uma relação que não é mais do que a relação do corpo
com as forças imperceptíveis de que se apoderam. Um modo vital e
único de produzir novas variedades de mundo, de tornar audível o
que o não é, tornar sensível as forças que são insensíveis. Porque
têm um modo único (um não-estilo) que reúne o dizer e o fazer, uma
espécie de estilo radar ou “estado segundo” (e apesar de estarem
sempre a dizer e a fazer, de não pararem de dizer aquilo que fazem e
dizem, nós não sabemos como são as visões e as audições das
crianças. Embora, alguns de nós tenham ténues recordações de
visões e audições que um dia já tiveram).

528
D, p.13.
255

Estilo radar ou uma potência máxima e contudo ou mesmo por


isso sempre a cada instante em risco. É necessário que qualquer
coisa as faça viver em cada dia, será isso que vai fazer a diferença
entre a vida e a morte. Uma espécie de “saúde”, como acabámos de
ver.
As crianças pequenas “são atravessadas por uma vida
imanente que é pura potência, e mesmo beatitude através dos
sofrimentos e das fraquezas.”529 O seu “encanto” vem das
singularidades, de um sorriso, de um gesto, uma careta,
acontecimentos que não são de natureza subjectiva. Essa beatitude
das crianças, esse “estado celeste”, um grande escritor pretende-o
também. Porque conserva e é a única coisa que se conserva. Será
essa saúde a que se referirá Deleuze?

Por exemplo, logo no momento em que nascem é visível a


Vida que têm, a “pura potência” que se exprime em micro
acontecimentos, como já antes vimos. Começaram já os “trajectos” e
as listas ou constelações de afectos e perceptos, os blocos de
sensações, o estilo. Num corpo que não é senão um feixe de forças
em desequilíbrio, o estilo é um meio de relação, revelador único, um
modo de situar e fazer um corpo e um pensamento.

Também a obra de arte, enquanto retoma o caminho que vai


dos ruídos, do território (da marca), à voz ( à desterritorialização) e da
voz à palavra, aos interstícios entre as palavras, aos sons e às cores,
reencontra aí, a autonomia, a fórmula, o procedimento que faz o
estilo, a “saúde”. As crianças e a obra de arte dão-nos o que
procuramos em vão na vida, para o qual não há nenhum método nem
receita (talvez só um “pressentimento” ou uma intuição).
“À sua maneira, a arte diz o que dizem as crianças.”530

529
IUV, p. 6.
530
CC, p. 86.
256

4. Da negação da fenomenologia da arte à necessidade do


“Corpo sem Órgãos”

Resumamos o caminho percorrido:


A obra de arte é um bloco de sensações, não um bloco
qualquer, mas um composto que mantém as sensações de tal modo
que estas se conservam e conservam (forças). Arranca os afectos às
afecções. Dessubjectiva, para atingir uma potência superior à do
homem; compõe as sensações, os blocos de sensações
precisamente para se manterem de pé.
Como manter um bloco de pé (“ou deitado, ou sentado”)?
Como compor os perceptos e os afectos de tal maneira que “se
conservem em si”, que durem por si mesmos com a mesma força do
“primeiro dia”? Porque é que tal quadro, que conseguiu compor as
sensações segundo uma “necessidade interior”, como diria
Kandinsky, irradia ou vibra ainda, vários séculos depois da sua
criação, com a mesma intensidade? É uma questão de construção,
afirma Deleuze, ou de saber compor as sensações umas com as
outras de maneira que a sua combinação ou agenciamento ganhe
consistência.
Mas é necessária uma dupla construção quando se compõe
um poema, uma música ou um quadro: construção de um conjunto de
sensações que forme um bloco, e construção de um plano de
consistência que conserve as sensações tornando-as duráveis. A
primeira não se concebe sem a segunda. Dever-se-á compreender
que uma vem depois da outra? Ou que a construção do bloco de
sensações equivale à do plano de consistência? Certamente, o bloco
de sensações, a obra, o quadro, constituem um plano; mas este bloco
contém por sua vez outros blocos, por exemplo, uma parte do quadro
257

num pedaço de tela, e abre-se para outros blocos de sensações,


outros quadros mais ou menos próximos (como no caso das séries de
Nymphéas de Monet, ou das Baigneuses de Cézanne). E o conjunto
de todos estes conjuntos (a obra total do artista) forma ainda um
plano que dá consistência às sensações e aos seus blocos. O plano é
portanto mais vasto que o bloco, mas de certa maneira o bloco é já
um plano porque por um lado ele existe em si mesmo, basta-se a si
próprio e no entanto, não poderia subsistir senão participando num
plano maior que o ultrapassa.
Todo um trabalho é necessário para construir o bloco e o
plano, não há momentos sucessivos que marquem o surgimento de
um e de outro. É combinando as sensações, isolando-as e
agenciando-as - de um ponto de vista material sensível, sensações de
azul acrílico ou amarelo de óleo ou de castanho terra - que se forma
o plano. Mas, à medida que o trabalho de construção das sensações
avança, constata-se que o plano estava por assim dizer já lá, que ele
orientava a composição das sensações. O plano edifica-se
paralelamente aos blocos e, paradoxalmente, quanto mais a obra
avança, mais a acção do plano aparece como conduzindo desde o
início e antes mesmo do “início”, toda a arte de combinar e compor as
sensações.
O plano estava lá antes de estar: não há começo da obra
porque não há nem página branca nem silêncio original nem tela
virgem; mas sobre estes suportes projectam-se já inúmeras imagens
conhecidas, “clichés” que o artista arrasta consigo e que tentam
impor-se e inscrever-se no papel ou na tela.
Em geral, esses “clichés” que tornam às vezes a invenção do
novo particularmente difícil trazem com eles sedimentações de
estratos de subjectivação bem precisos: são formas ligadas a
sensações aprisionadas no vivido que compõem um “sujeito”.
Sensações que reenviam a um sujeito (afecções) e a um objecto
(percepções). Ora, as sensações de que é feita a obra de arte não
258

pertencem nem ao sujeito nem ao objecto, apenas a elas próprias.


Toda a sua consistência ou força de subsistência vem de uma
existência própria, como seres autónomos para aquém e para além
do humano. Dar aos afectos a sua autonomia de ser, é dar-lhes toda
a sua potência - a potência de sentir.
Por isso, Deleuze insiste numa operação: “arrancar”. “O
objectivo da arte, com os meios matéricos, é arrancar o percepto às
percepções de objecto e aos estados de um sujeito percepcionante,
arrancar o afecto às afecções como passagem de um estado a
outro”531.
Arrancar: a operação ocorre frequentemente nos textos de
Deleuze, designada quase sempre por este verbo que conota
violência. “Arrancar-se ao cliché”532, “arrancar a Figura ao
533
figurativo” , “arrancar a consciência ao sujeito para fazer dele um
meio de exploração, arrancar o inconsciente à significância e à
interpretação”534, “arrancar o corpo ao organismo”535, “arrancar a
imagem visual ao cliché nascente para se arrancar a si próprio à
ilustração e à narração nascentes”536. Porquê este gesto violento, se
Deleuze recomenda sem cessar a prudência quando se trata de
desfazer estratos?
A prudência “como dose, como regra imanente à
experimentação”537, é apenas uma estratégia que não exclui a
violência; pelo contrário, a prudência é o único método que permite
uma violência conseguida, não catastrófica. Em matéria de arte, como
em outras, “rebentai os estratos sem prudência e matar-vos-eis,
enfiados num buraco negro ou mesmo arrastados numa catástrofe em
vez de traçar o plano” 538.

531
QP, p.158.
532
FB, p. 61.
533
FB, p. 13.
534
MP, p. 198.
535
idem.
536
FB, p. 61.
537
MP, p. 187.
538
MP, p. 199.
259

Se se trata da obra de arte, arrancar-se aos estratos e aos


clichés sedimentados “com um gesto demasiado violento” significa
precipitar-se no caos, e dele nada extrair, nenhum benefício,
nenhuma indicação para a construção de novas formas. Ora, como se
verá mais adiante, é preciso preparar a entrada no caos.
A prudência é o meio apropriado para desviar o estrato ou o
cliché em seu proveito. Duplamente: retirando do estrato forças e
fluxos que o atravessam e animam apesar da sua tendência à
estratificação, à fixidez; e assim voltar a violência do estrato contra ele
mesmo, quer dizer, contra a sua tendência à captura. Procedimento
geral muito deleuziano, muito diferente do trabalho dialéctico do
negativo, ou da desconstrução do sentido e das estruturas.
Procedimento afirmativo, e tanto mais subversivo quanto implica a
imperceptibilidade e prepara para o devir. “Eis pois o que se deveria
fazer: instalar-se num estrato, experimentar as oportunidades que ele
nos oferece, nele procurar um sítio favorável, movimentos de
desterritorialização eventuais, linhas de fuga possíveis testá-las,
assegurar aqui e ali conjunções de fluxo, tentar segmento por
segmento contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço
de uma nova terra.”539
Todo o estrato se situa num plano de consistência primeiro e
constitui como uma sua coagulação ou sedimentação local - ele é
portanto necessariamente percorrido por movimentos de
“desterritorialização relativa”, que é preciso desviar em proveito da
construção de um novo plano: “é que os estratos são eles próprios
animados e definidos por velocidades de desterritorialização relativa;
melhor, a desterritorialização absoluta está lá desde o início, e os
estratos são recaídas, densificações num plano de consistência
presente em toda a parte, em toda a parte primeiro sempre
imanente”540.

539
idem.
540
MP, p. 90.
260

Tomemos um exemplo simples, na criação artística de hoje:


como se desfazer do kitsch enquanto estrato de subjectivação
massificada na afecção aparentemente mais íntima, mais profunda,
mais extática? Deleuze diria: é uma questão prática, é preciso saber
arrancar os afectos à inflação sentimental do kitsch instalando-se
nela. Não é de resto o que fez Duchamp com certos ready-made
(como a Pharmacie), ou com a Mariée mise à nu par ses célibataires,
même, esse monumento de kitsch voltado ironicamente contra o
kitsch? Ou ainda Andy Warhol e tantos outros? A descontextualização
do urinol é um arrancar inicial a um estrato; a maquinização dos
fluxos desterritorializados do pathos do kitsch (cena do casamento,
arte naturalista, art pompier, arte simbolista), e a sua transformação
num imenso plano de consistência do olhar pictural como olhar
perverso, eis como Duchamp construiu o Grand Verre.
Há dois aspectos no gesto de arrancar os afectos às afecções
e os perceptos às percepções. Primeiro um movimento negativo de
dessubjectivação e de desobjectivação: trata-se sempre de libertar a
sensação do estrato que a aprisiona. O segundo diz respeito à arte de
compor as sensações: trata-se então de elevar a sensação à sua
máxima potência. É claro que os dois movimentos se conectam e se
transferem incessantemente um para o outro.
Força e prudência para arrancar um afecto à afecção,
desembaraçar-se dos clichés que perseguem o artista que começa
uma obra, equivale a entrar no caos sem no entanto perder os seus
poderes. Neste aspecto, há um arrancar do afecto ao organismo que
prepara a construção do “corpo sem órgãos”.
Felix Guattari dizia que não havia nunca a garantia de sair do
caos. Mas há precauções que são como regras de prudência que
previnem parcialmente contra a loucura ou a autodestruição. A
prudência é uma regra geral. Por exemplo, nas terapias primitivas que
devem passar pelo caos e transe, e que utilizam drogas, estas são
administradas por fases, e sempre num contexto preparatório. É
261

preciso aprender a entrar no caos se se quer conservar a


possibilidade de dele sair. Para um artista que quer criar o novo - e
toda a obra de arte é, sempre o resultado de um acto criador - e cujo
desejo de caos é a condição da invenção, como preparar o caminho
para o caos sem se impor a si próprio normas, protecções que a ele
lhe impediriam o acesso?
Ora, o arrancar aos estratos habituais de subjectivação e de
objectivação leva ao caos. Como procede o pintor, por exemplo,
Francis Bacon? Primeiro, vai abolir os clichés, trabalho prévio ao acto
de pintar: lançar marcas ao acaso sobre a tela, varrer, limpar,
manchar com cor, novamente limpar com um trapo. Estas marcas
suscitam imagens que existiam já na cabeça do pintor de maneira
mais ou menos virtual. “Por exemplo a cabeça: limpa-se uma parte
com a escova, uma vassoura, uma esponja ou um trapo. É o que
Bacon chama um Diagrama: é como se de repente se introduzisse um
Saara, uma zona de Saara na cabeça; é como se aí se esticasse uma
pele de rinoceronte vista ao microscópio; é como se se separassem
duas partes da cabeça com um oceano; é como se se mudasse de
unidade de medida, e se substituísse às unidades figurativas
unidades micrométricas, ou ao contrário cósmicas. Um Saara, uma
pele de rinoceronte, tal é o diagrama bruscamente traçado. É como se
uma catástrofe tivesse acontecido na tela, no meio dos dados
figurativos e probabilitários”541.
Retenhamos deste texto que a tela está já povoada de formas,
antes mesmo que o pintor comece a pintar; que a perturbação que ele
introduz quebra literalmente a figuração, a macro percepção, a
narração, instalando um novo olhar milimétrico, uma escala plástica
que disjunta as redes de percepções, tornando os perceptos
disponíveis para um outro tratamento, para outros agenciamentos -
ora um Saara (termo de Bacon; mas Giacometti dizia: há um deserto
entre os dois olhos de uma cara), ora amplificações de formas até ao

541
FB, p. 65.
262

infinito “é como o surgimento de outro mundo. Porque essas marcas


esses traços, são irracionais, involuntários, acidentais, livres, ao
acaso”542.
Deleuze refere-se então ao “caos” de Klee, e à sua
cosmogénese; e ao “abismo” de Cézanne; mas poderia também citar
o “abismo branco” de Malevitch, ou o de Kandinsky ou de Gauguin...
Trata-se sempre de mergulhar no caos para dele fazer sair um
mundo.
Como construir um mundo? “A arte é a linguagem das
sensações, quer passe pelas palavras, quer pelas cores, quer pelos
sons ou pelas pedras”543 . Como compor sensações com cores, linhas,
sons, palavras? Estas questões supõem pelo menos dois problemas:
primeiro, a que tratamento submeter os materiais de maneira a fazer
deles os elementos de uma linguagem de sensações; e como compor
sensações para fazer falar esta linguagem? Em segundo lugar, como
constituir o próprio ser da sensação estética? Como traçar a figura
que exprime a sensação, de modo a que ela se sustenha, quer dizer
se conserve por si? Já respondemos pelo menos parcialmente como
surge e se operacionaliza o estilo.
Poder-se-ia ainda ver nestas questões a retoma de outras
clássicas já presentes na Crítica da Faculdade de Julgar, e que Kant
reuniu sob o conceito de “esquematismo estético” ou “esquematismo
das faculdades”. No entanto em Deleuze não se trata nem do belo
nem do sublime; e o esquematismo estético toma um sentido preciso:
não se trata de saber como uma forma sensível encarna uma ideia
inteligível, ou como a imaginação trabalha sem conceito mas como
um bloco de sensações pode adquirir uma consistência tal que lhe
oferece a duração de um monumento - que é a obra de arte.
Ora a primeira condição para conservar a sensação consiste
em elevá-la à mais alta potência do sentir. É necessário pois,
concentrar as forças da sensação, intensificá-las, agenciá-las e
542
FB, p. 66.
543
QP, p. 166.
263

libertá-las de maneira a que o seu movimento se alimente, por assim


dizer, de si próprio.
Esta é uma ideia essencial da estética de Deleuze: o afecto
desencadeia intensidades desmesuradas, para além do humano. Os
afectos e os perceptos estéticos excedem qualquer experiência
vivida. E obter-se-ão sensações tanto mais poderosas e autónomas
quanto os afectos e os perceptos provierem de zonas milimétricas,
entre duas macro-percepções ou duas macro-afecções. No entre-dois
meios, no interstício entre dois ou vários estratos estão afectos
intensivos, prisioneiros, entalados em sedimentos ou dobras. Ora,
“trata-se sempre de libertar a vida onde ela se encontra prisioneira ou
de o tentar num combate incerto”, como escreve Deleuze amiúde. Um
afecto é um acontecimento, situa-se entre dois tempos, numa zona de
indiscernibilidade intensiva.
Arrancar os afectos, combiná-los com os perceptos é compor
sensações. Como vimos, Deleuze chega assim a vários tipos de
compostos que descreve em Francis Bacon e Qu’est-ce que la
Philosophie?: a vibração que caracteriza a sensação simples; o
abraço ou o corpo a corpo por ressonância recíproca de duas
sensações; o recuo, a divisão, a distensão de sensações. É toda uma
tipologia que Deleuze esboça; mas afirma também que ao artista
cabe sempre criar novos afectos, novas sensações, novas variedades
de compostos de sensações.
A ideia central é que o monumento se mantém por
intensificação e libertação do máximo de vida, através do estilo. A
obra medíocre caracteriza-se pela sua fraca potência: não dura, não
atinge a eternidade própria do monumento. Há monumento porque há
vida em demasia. O artista é um atleta, pratica um “atletismo afectivo”,
é um campeão das intensidades. Os artistas “são, a esse respeito,
como os filósofos, eles têm muitas vezes uma saúde demasiado frágil,
mas não é por causa das suas doenças nem das suas neuroses, é
porque eles viram na vida algo demasiado grande para quem quer
264

que seja, demasiado grande para eles, e que neles pôs a marca
discreta da morte”544. O poeta como Vidente, o artista como ser que
sente e vê de outra maneira e maior, porque experimenta nele devires
que o ultrapassam...
A ideia de que a arte contém e emite intensidades excessivas,
quase insuportáveis para aquele que cria, mas libertadoras de vida,
leva Deleuze mais uma vez a resolver singularmente um problema
central da estética: quem é o sujeito da arte? No entanto, neste
terreno Deleuze, encontra o trabalho aparentemente em parte
efectuado: a fenomenologia, e a fenomenologia da arte em particular,
tinham já subtilmente transferido do sujeito para a Carne a tarefa de
dar conta das operações estéticas fundamentais. Pedir um sujeito
para a arte significa muito simplesmente que se lhe atribui o papel de
operador das sínteses que constituem a obra artística. Sínteses
múltiplas (do conteúdo e da expressão, da força e da forma, do tempo
do material e da eternidade da Figura, do espaço percebido e do
spatium da sensação como ser estético, etc.) que Deleuze resume
numa única, que vai ser objecto da sua investigação: quem pode
reunir o percepto e o afecto e “constituir o ser de sensação”?545
Duas vezes, respectivamente em Francis Bacon e Qu’est-ce
que la Philosophie?, Deleuze interroga a fenomenologia como se ela
se tivesse aproximado de uma solução viável, como se de uma certa
maneira ela representasse um desafio. É preciso dizer que em dez
anos, do Bacon de 1981 a Qu’est-ce que la Philosophie? de 1991, a
resposta de Deleuze e as distâncias que toma relativamente à
fenomenologia da arte se reforçam: apesar das simpatias manifestas
de autores como Henri Maldiney ou Erwin Straus, rejeita a concepção
fenomenológica da carne. Melhor: em Qu’est-ce que la Philosophie?
atribui-lhe uma função menor na sua própria concepção da arte.
Qual é o problema? Sem recorrer directamente ao sujeito
transcendental, a carne parece apta, em certos fenomenólogos como
544
QF, p. 163.
545
QF, p. 169.
265

Merleau-Ponty, a preencher as funções de operador das sínteses


estéticas.
A Carne, corpo sensível, Leib segundo Husserl, asseguraria a
inteligibilidade dos processos de criação das formas, a partir de uma
Urdoxa, ou “opinião originária”. Em Merleau-Ponty, em particular, as
operações anónimas da carne (reversibilidade do corpo sentiente-
sentido, do visível e do invisível, entrelaçamento e quiasma,
envolvimento do visível pela visão, etc.) fundam toda uma teoria da
arte que não recorre à noção de sujeito.
Uma primeira vez, Deleuze encontra a fenomenologia da arte,
a propósito dos “níveis de sensação” (em Francis Bacon). Trata-se de
saber segundo os próprios termos de Bacon, “porque é que uma
pintura atinge o sistema nervoso”546, quer dizer porque é que há sentir
da sensação. Como compreendê-lo sem admitir um elemento
diferencial no interior mesmo de cada sensação? E esse elemento
reduplica-se, multiplica-se numa série de sensações que constituem a
Figura. Esta não é nem a forma pintada ou desenhada reportada ao
objecto (chamando-se então, figuração), nem a forma de uma Ideia
encarnada - é a forma reportada à sensação de uma certa maneira, é
a forma do bloco de sensações. Pode-se dar numa série de
simultaneidade (como nos Trípticos de Bacon) ou de sucessão; nos
dois casos “é cada sensação que se situa em diversos níveis (...) de
tal maneira que não há sensações de diferentes ordens, mas
diferentes ordens de uma e mesma sensação. Pertence à sensação
envolver uma diferença de nível constitutiva, uma pluralidade de
domínios constituintes. Toda a sensação e toda a Figura [têm
portanto] um carácter irredutivelmente sintético (...) Perguntar-se-á
então de onde vem este carácter sintético pelo qual cada sensação
material tem vários níveis, várias ordens ou domínios. O que são
estes níveis, e o que faz a sua unidade sentiente e sentida?”547

546
FB, p. 28.
547
FB, pp. 28-29.
266

Tomemos uma marinha de Turner. A Figura548 não é nem


ilustração de tal marinha objectiva, mimetizada numa representação,
nem a encarnação da Ideia de marinha. Mas, nesta figura, uma
multiplicidade de marinhas-sensações, ou de sensações de marinha,
desdobra-se, é uma sensação daquela Figura que atravessa uma
diversidade de níveis. A visão estética do quadro induz em cada
espectador uma multiplicidade de sensações, e em cada elemento de
uma multiplicidade, múltiplas outras sensações, segundo as tensões
das cores, da luz, do espaço, do tempo...
O que é que faz “a unidade material sintética de uma
sensação”? Como entender a unidade “sentiente e sentida” de uma
multiplicidade de níveis diferentes, também eles “ sentientes e
sentidos”? Apesar de se recolher nesta expressão como que um eco
da sensação vivida, a fenomenologia como filosofia centrada na
unidade originária do sujeito não pode responder a estas questões.
Tanto mais que o sujeito auto constituído numa Urdoxa não poderia
fundar afectos intensivos para além do vivido, ou perceptos para além
do senso comum. Mas a Carne não garantiria a unidade de uma
multiplicidade heterogénea de sensações, de ordens e domínios
diversos? Num maravilhoso condensado da teoria fenomenológica,
Deleuze mostra como a concepção do ritmo (com referência evidente
a Maldiney) procura dar conta da unidade sintética das sensações
oriundas de órgãos de sentidos diferentes: “Entre uma cor, um gosto,
um tacto, um cheiro, um ruído, um peso haveria uma comunicação
existencial que constituiria o momento “páthico” (não representativo)
da sensação (...). Caberia ao pintor fazer ver uma espécie de unidade
original dos sentidos e de fazer aparecer visualmente uma Figura
multi-sensível”549. Operação que requer uma potência, o ritmo que
investe e cria os níveis diferentes de sensação por onde passa.

548
Noção que Deleuze vai buscar a Jean-François Lyotard, cf. Lyotard, Discours,
Figure, Paris, Klincksieck, 1971.
549
FB, p. 31.
267

Mas Deleuze recusa esta solução se bem que ela pareça


responder a uma série de problemas levantados a propósito das
relações Cézanne- Bacon.
Uma segunda vez, Deleuze encontra a fenomenologia da arte:
em Qu’est-ce que la Philosophie?, quando se torna necessário definir
o ser de sensação enquanto potência ultrapassando todo o vivido. A
crítica deleuziana torna-se mais precisa (assim como os autores a que
se refere, nomeadamente Mikel Dufrenne e Merleau-Ponty): é sempre
a incapacidade da fenomenologia em dar conta da intensidade e da
diferença intensiva das sensações que afasta Deleuze da Carne.
No caso dos níveis de sensação, a identificação do corpo
vivido fenomenológico com um organismo tornara-a inaceitável.
Porque, só uma “Potência mais profunda e quase invivível” pode
assegurar a unidade do ritmo; porque, “nós não a podemos procurar
senão onde o próprio ritmo mergulha no caos, na noite, e onde as
diferenças de nível são perpetuamente sacudidas com violência”550.
E, bem entendido, o vivido de um sujeito, a sua “experiência” segundo
a expressão consagrada, desenrolam-se num espaço demasiado
restrito, demasiado homogéneo, demasiado humano para conter as
sensações criadas pela obra de arte: estas, cósmicas, a-humanas,
animais ou vegetais infra-humanas, implicam devires que vão para
além das possibilidades de um vivido consciente unitário. Qual é
essa potência, única capaz de suportar o afecto, infinitamente mais
intenso que a afecção vivida, e constituir o percepto que vê mais
longe e mais profundamente que toda a percepção? É o corpo sem
órgãos (CsO), “corpo intenso, intensivo”.
Quanto à Carne, que talvez pudesse fundar o ser de sensação
em “apriori materiais”, perceptivos e afectivos garantindo a relação
ordenada do corpo e do mundo, ultrapassando mesmo, neste sentido,
a experiência vivida – também nem ela, na sua unidade demasiado

550
FB, p. 33.
268

tenra (“Demasiado tenra é a carne”551) poderia suster-se por si,


suster-se sob as intensidades diferenciais que a atravessam quando o
artista experimenta os devires que constituem todo o ser de
sensação. Devir-animal, devir não-humano do afecto – eis o que não
afectaria a Carne, o corpo sentiente vivido do homem sem o destruir,
sem o precipitar no caos. O que explica que, uma vez mais, uma
outra instância, diferente do corpo de carne, vai tomar a cargo e reunir
afecto e percepto e garantir a consistência do bloco de sensações.
Mas, curiosamente, em Qu’est-ce que la Philosophie?, não se fala
mais no CsO. No seu lugar – ou quase no seu lugar – aparece um
“plano de composição”.
Poder-se-ia julgar que a noção de CsO é abandonada, mas tal
não é o caso552. O seu uso é plenamente operatório em Francis
Bacon: é a onda de amplitude variável que o percorre que nele traça
os níveis diferentes de sensação. Esta não é senão o resultado do
encontro da onda com forças exteriores – o que determina um órgão,
uma zona de condensação e de emissão de intensidades. Os órgãos,
ou zonas, inscrevem-se na superfície do CsO, como uma zona de
intensidade de um quadro, constituída por um bloco parcial de
sensações, define uma unidade de cor-espaço-forma, ela mesma em
sobreposição, em fronteira, em indiscernibilidade com outro bloco
parcial de sensações, outros complexos de cor e de matéria,
passando de uma para os outros, em devires que compõem os
devires do próprio quadro, ou da Figura, como CsO de visão.
Toda uma dinâmica de sensações é assim assegurada pelo
CsO que lhes dá consistência. O próprio “corpo sem órgãos” sofre
transformações constantes que permitem que as fortíssimas
diferenças de intensidade que atravessam o corpo não o rebente ou

551
QF, p. 169.
552
Numa entrevista a Uno Kuniichi Felix Guattari, poucos anos antes de
morrer, nega que tenha abandonado a noção de CsO, justificando a sua pouca
utilização, em benefício da noção de plano de imanência, pelo facto de
existirem múltiplos CsO. O “abandono” é pois por razões de facilidade de
linguagem. Ver Chimères , Hiver 2002-2003, nº 48.
269

fragmente. Mais: essas transformações que formam uma série (corpo


destituído de órgãos, pura superfície de intensidades; corpo tornado
num só órgão polivalente, por exemplo um buraco, ou um poro que na
pele se torna ânus, boca, orelha, olho…; corpo de órgãos temporários
que se transformam um no outro), e que têm uma importância
decisiva para a heterogénese de um bloco de sensações, são
possíveis pela unicidade da onda única que reúne afectos e
perceptos, e sensações com outras sensações heterogéneas.
O conceito de CsO deixa de ser um conceito, para se tornar
num plano de consistência, plano essencial para compreender os
processos estéticos. Em Francis Bacon, múltiplos problemas
fundamentais, tais como a pintura como histeria, ou a “captura de
forças” pelas formas – que a fenomenologia explicava pelo ritmo –
são tratados a partir do CsO (por exemplo, o ritmo é assegurado,
como unidade de multiplicidades de sensações, pela intensidade
única da onda emitida pelo CsO, que traça a linha de devir, a forma
da Figura que se desenrola por entre aquelas zonas de
indiscernibilidade dos devires que desfazem as formas triviais das
percepções. É toda uma teoria da “percepção estética” que Deleuze
esboça e desenvolve)553 . Tanto em Francis Bacon, como em Qu’est-
ce que la Philosophie?, o problema dos níveis de sensações e da
constituição do ser da sensação estética é um único: trata-se de
saber o que dá consistência, inseparabilidade à conexão afecto-
percepto. Como é que uma forma combina um percepto com um
afecto para dar origem a uma sensação estética? É uma outra
maneira de formular a questão do “esquematismo estético”. Ora o
CsO, como onda única que se modula em diferentes níveis de

553
Por exemplo, não se pode dizer que a Figura é o que está traçado no
quadro como forma: uma casa, ou uma cara, árvores, ou traços, manchas.
Isso ainda é uma percepção trivial. Mas, o pintor pinta estas formas para fazer
deslizar o olhar para a visão de forças que não é da ordem do visível. Haveria
pois três níveis de formas: a percepção trivial, ligada à opinião, a Figura, e a
forma intermédia que induz o Acontecimento como Figura. E a forma da tela, a
forma intermédia não é mais do que a mise-en-forme, ou mise-en-visible deste
processo de entrada numa zona de indiscernibilidade das formas triviais.
270

intensidade, suporta e cria o ritmo, a amplificação intensiva de um


afecto num devir-outro, transforma o corpo num só órgão, num olho, o
corpo é agora somente visão, corpo de visão em que se dissolvem (e
“transduzem”) todos os outros afectos como afectos de visão. O
percepto devém afecto e o afecto é percepto, visão. Nasce a
consistência da sensação, constitui-se o ser de sensação como
durável, feito de elementos inseparáveis.
Um outro exemplo da importância do CsO, na estética de
Deleuze: quando este descreve o “grande momento no acto de
pintar”554 – a passagem do Diagrama do caos à Figura -, é por
referência ao CsO que ele explica a emergência da pintura. O acto de
pintar, por assim dizer o “primeiro” que instaura a pintura para além
dos traços diagramáticos, é um agenciamento entre o olho e a mão,
como trabalho de uma “visão háptica”, como se os gestos manuais de
que o diagrama é feito se transmitissem ao olhar e nele induzissem o
seu movimento. Daí a passagem das sugestões de formas, ou
“possibilidades de facto”, ao próprio “facto pictural”, do caos à
necessidade. Necessidade não das formas individuais que, de certo
modo, continuam a ser acidentais, mas do movimento que as dissolve
porque as atravessa, ultrapassa e as leva numa linha gótica ou
serpentina de devir. Há aqui uma necessidade da conexão e do
agenciamento, não das formas consideradas de per si. Porque se
arrancou o afecto e o percepto ao organismo e se entrou no caos e se
passou à cosmogénese, esta passagem que implica um trabalho
sobre o acaso constitui o primeiro bloco consistente de sensações
picturais: a pintura começa quando várias formas são captadas e
agenciadas numa única Figura, quer dizer, na presença do CsO. E
Deleuze acrescenta: “Claro, há ainda uma representação orgânica,
mas assiste-se mais profundamente a uma revelação do corpo sob o
organismo, que faz rebentar ou inchar os organismos e os seus

554
FB, p. 102.
271

elementos, lhes impõe um espasmo, os põe em relação com


forças.”555
Mais uma vez, o “arrancar” supõe dois movimentos: um, por
assim dizer, vertical, de arrancamento do afecto à organização
orgânica dos órgãos, que corresponde à passagem da profundidade à
superfície – e à dissolução do “sujeito”, do “eu”, etc.; outro, horizontal,
de construção do CsO, com a transformação da violência primeira em
caos, depois em fluxos de intensidades à superfície do CsO com
agenciamentos de sensações.
O CsO responde claramente aos problemas da constituição da
unidade estética, a sensação e o bloco de sensações.
Compreende-se mal, pois, como Qu’est-ce que la Philosophie?
pode fazer a economia do CsO. O caminho, aqui, é outro e de certo
modo mais ambicioso. Trata-se de alargar o âmbito da resposta a dar
à questão da Carne, como instância operadora das sínteses estéticas,
e das correspondências sensação-mundo.
“Demasiado tenra é a carne”, escreve Deleuze. Não só não
está apta a elevar a sensação à sua máxima potência, mas ela
própria tem que ser sustida, sob pena de se dissolver no seu próprio
caos. Porque a Carne está próxima do caos, basta ver as
representações pictóricas da pele, os tons esbatidos, a fusão das
cores.
A Carne marca assim uma zona de indiscernibilidade entre o
animal e o ser humano. Quer isto dizer que a Carne fenomenológica,
como corpo sentido e experiência vivida, não poderia aguentar um
devir-animal, um devir-mineral, sem ameaçar dissolver-se no caos.
Então Deleuze vai perguntar: o que impede a Carne de se
dissolver sob a força das intensidades necessárias à constituição do
ser de sensação? É o plano de composição, plano que se constrói por
enquadramentos de planos que formam eles próprios elementos –
territórios – a Casa, o Universo. Para que o corpo-sensível

555
FB, p. 102.
272

desenvolva ou “revele” a sensação, é-lhe necessário um território, o


quarto ou a casa. E o Universo, como terceiro “território” é a
passagem ao infinito, desterritorialização. Há um plano de
composição da arte, como plano de enquadramento de espaços, que
trabalha no interior mesmo do gesto do artista. Assim, a pintura
monocromática é passagem do finito ao universo infinito. É possível
detectar na obra de um pintor (em Van Gog, em Monet), como na
história da pintura, um movimento geral de passagem de fluxos
intensivos, do corpo ao quarto e à Casa, da Casa ao Universo, ou
reciprocamente, quando a Casa e o Corpo se tornam universo e
infinito.
O plano de composição toma a cargo, de certa maneira, as
funções do CsO em Francis Bacon. Mas com um efeito claro: parece
já não haver necessidade sequer de um operador de sínteses
intensivas, numa unidade que cria e reúne, dá consistência a uma
multiplicidade de diferenças. O operador confunde-se com a
operação, o plano de composição traça-se à medida que se tece cada
território.
A “potência de um fundo capaz de dissolver as forças”556,
atravessa a Casa, o Quarto, o Universo e surge na tela porque “a
figura é aptidão de universo”557 . É o plano de composição que,
constantemente é atravessado por forças cósmicas e forças de
desterritorialização.
No limite, haverá ainda necessidade de dar um lugar à parte ao
artista ou à Carne, à própria arte como criação de formas e de forças
captadas em formas singulares? Claro, a Carne é “reveladora” de
sensação, mas não é a sensação nem a constitui. O plano de
composição que sustém a actividade artística não difere, afinal, do
plano de composição da natureza. Anuncia-o. E nesta natureza
nasce já a arte.

556
QF, p. 153.
557
QF, p. 173.
273

A natureza esboça a arte, conjuga de todas as maneiras a


Casa e o Universo. Porque a arte sai da natureza, esta assemelha-se
àquela. Os planos de composição da arte e da natureza são o direito
e o avesso de um mesmo plano de imanência que se vai conectar
com a imanência do pensamento.
Podemos ver então que a estética deleuziana vai da negação
do sujeito à negação da Carne, até ao CsO, plano de composição que
é já o plano de imanência (percurso que dá à ontologia a
possibilidade de se expressar na estética).

5. Diagrama e Corpo sem Órgãos

a. O que é um diagrama?

Em Francis Bacon et la Logique de la Sensation, Deleuze


expõe as suas ideias estéticas de maneira quase sistemática, ao
mesmo tempo que analisa a obra do pintor inglês558. Aí explora duas
noções essenciais para compreender o processo criativo, noções que
nos interessam particularmente: o diagrama, e o corpo sem órgãos.
Como veremos, estes conceitos designam processos práticos pelos
quais todo o artista (e não só o pintor) tem que passar, e que se ligam
estreitamente ao estilo, e à questão mais geral da relação entre a
estética e a ontologia.

O diagrama não é um conceito estético559. Com um alcance


muito mais vasto, é contudo aplicado à pintura de Bacon.

558
A tal ponto que M. Buydens pode, no seu comentário à estética deleuziana,
recorrer quase unicamente a esta obra. V. M. Buydens, Sahara L’esthétique de
Gilles Deleuze, Vrin, Paris, 1990.
559
“ Com efeito, o diagrama diz mais respeito a um plano pré-filosófico, pré-
estético, pré-científico, como imagem do pensamento. O diagrama é de facto
inseparável de uma imagem do pensamento. É ele que desenha as orientações
e as coordenadas segundo as quais um conceito se vai desenvolver para
274

O que é um diagrama, no plano em que se situa Mille Plateaux,


o plano transcendental?
Diagrama é um delineamento, não tem forma nem substância,
conteúdo ou expressão. É feito de matérias não formadas, funções
não formais, por capturar e que se formalizarão por exemplo numa
obra de arte, num processo de cura, etc. Os traços, ou melhor, os
traçados ou trajectos que são não formados, são um trabalho
preparatório, invisível, silencioso e muito intenso, profundamente
instável e flutuante.
Cada coisa no mundo tem o seu diagrama. Quer dizer, cada
coisa no mundo expõe-se, cruza-se e é sugerida pelo diagrama que
atravessa e coexiste em todos os espaços (os diagramas são físicos,
científicos, económicos, artísticos, políticos, ecológicos, cósmicos,
perceptivos, afectivos, semióticos, etc.).
As relações de forças que atravessam cada coisa passam
necessariamente pelo diagrama, “fora informal”, aéreo ou oceânico,
atmosfera, ou somente o seu confim, zona onde domina a turbulência,
um outro espaço, incerto. E é aí mesmo, nesse espaço, que a vida
(mesmo não orgânica ) mais intensa e mais potente, germina. Esse
espaço é uma zona de superfície, espaço de fronteira, confim do
corpo, na relação com outros corpos, redes ou cartas que tecem ou
traçam com outros e os outros com ele.
Ter corpo para não ter corpo (ter consciência dele e precisar
não ter para se poder viver na escala macro) ou não ter corpo e
passar a tê-lo (numa escala micro. Por exemplo, com uma carícia ou
um beijo – para a criança, o beijo da mãe sara todos os seus males e
também o dela sara os da mãe - ou as sensações suscitadas por uma
estalada, ou um cheiro ou um som, qualquer coisa da ordem do

produzir o seu arabesco no interior de uma variedade de espaços sem orla


comum. O estilo, por sua vez, qualifica todo o movimento que vai do diagrama
aos conceitos e dos conceitos à constituição dos blocos espácio-temporais no
quadro de uma história natural. Estilos, diagramas, conceitos, blocos de
espaços-tempos constituem os elemento puros de uma história natural.” J.-C.
Martin, Variations, p. 169.
275

imperceptível, etc.), ou viver na zona crítica (por exemplo


experimentações com drogas, doenças ou certas manipulações do
corpo). Precisamente, estas passagens (estes afectos e trajectos, que
produzem metamorfoses, dão corpo e fazem-no, modificam-no)
ocorrem nesta atmosfera, nesta zona de influência ou confim. Afectos
e trajectos. Às suas sobreposições, Deleuze chama-lhes diagrama.
Como já sabemos, neste lugar agitam-se pontos singulares e
relações de forças entre os pontos. As singularidades560 não têm
forma, não são corpos visíveis nem pessoas. Estão envolvidas num
espaço, num “meio” qualitativo especial, rarefeito, um deserto
(povoado) aéreo. É aí mesmo que passam as forças, os micro fluxos.
Nesta zona de confim da atmosfera, ou de fronteira, de zona crítica. O
que acontecer nessa zona determinará de forma absoluta tudo o que
acontecer em todos os tempos e espaços, nos corpos.
Para Deleuze, trata-se de uma catástrofe ou de um elemento
atmosférico561. Com efeito, trata-se da própria atmosfera562,
“substância não estratificada”, “é como uma zona de turbulência e de
tufão, onde se agitam pontos singulares, e relações de forças entre os
pontos. (…) A cada estado atmosférico, nesta zona, corresponde um
diagrama das forças ou das singularidades apanhadas nas relações:
uma estratégia. Se os estratos são da terra, a estratégia é aérea, ou
oceânica.”563
Nesta camada de confinamento acontecem as coisas mais
importantes: micro acontecimentos vitais, camadas ínfimas, matérias
impalpáveis, processos de distribuição e redistribuição de afectos e

560
São singularidades apanhadas nas relações de forças, singularidades de
resistência e também selvagens, pré-individuais.
561
F. p.129.
562
Atmosfera (um corpo) é o lugar de encontro de todos os acasos, está num
rizoma, numa floresta, num continente, num ser humano, na linfa, numa célula,
num cromossoma, num gene, numa obra de arte, num processo de cura, numa
criança, na possibilidade de amar desta maneira: “Amar os que são assim:
quando eles entram num compartimento, não são pessoas, temperamentos ou
sujeitos, é uma variação atmosférica, uma mudança de cor, uma molécula
imperceptível, uma população discreta, um nevoeiro ou uma chuva de gotas.”
D, p. 81.
563
F, p.129; MP, pp. 597 e segs.
276

trajectos, composição e decomposição, deslocamento, captura e


perda, precipitação, destruição, transferência/influência, projecção,
alimentação, etc.
Podemos definir um diagrama de muitas outras maneiras que
se encadeiam, por exemplo: como uma multiplicidade espácio-
temporal ou um modo de fazer funcionar relações de forças ou de as
apresentar (como determinação de um conjunto de relações de
forças).
Um diagrama define sempre possibilidades, probabilidades de
interacção. Foucault define-o mesmo como: “uma emissão, uma
distribuição de singularidades”564, e Deleuze também, salvo alguns
aspectos que julga diferentes e que clarifica no capítulo 5 de Mille
Plateaux.
Noutro contexto, diagrama é o que se destaca e destaca,
sugere. É a repartição dos poderes de afectar e ser afectado.
Flutuante e instável aparece numa zona de turbulência, não
estratificada, informal, faz e desfaz, produz mutações. É uma carta de
relações de forças, carta de densidade, de intensidade. “É que as
forças aparecem em «toda a relação de uma ponta à outra»: um
diagrama é uma carta, ou melhor uma sobreposição de cartas.”565
Todo o diagrama é constituído por pontos de conexão e por
pontos relativamente livres e desligados, selvagens, pontos de
criatividade e mutação, de resistência. Forma um conjunto operatório
de linhas566 e zonas, manchas a-significantes e não representativas

564
F, p. 80.
565
F, p. 51.
566
O que são linhas? São fios, traços, lineamentos, tracejados, itinerários, etc,
elementos constituintes das coisas e dos acontecimentos, multiplicidades que
se encontram sempre sobre um plano. Umas são linhas concretas, outras
abstractas, há linhas que fazem contornos outras que não, linhas de fuga, de
erro, molares, moleculares, de feiticeira, de “fora”, linhas de
desvio/afastamento, dinâmicas, criadoras, etc. São linhas que flutuam, oscilam,
cruzam-se e misturam-se, endurecem ou transformam-se em linhas de fuga,
sempre múltiplas e imanentes. Tudo se joga entre elas e a construção do plano
de composição. Todas as vidas são feitas de linhas. Linhas que se estendem e
esticam, atam e cruzam umas com as outras (numa mão, num rosto, na pele,
na rua, no deserto, etc.), compõem sensações, atravessam tudo.
277

que traçam o plano de consistência ou composição,


diagramatizando-o.

O traçado do plano de composição de uma obra e o traçado


das linhas sobre o plano ou a maneira como as linhas traçam o plano
confundem-se “estritamente”, no diagrama. Pensar um conjunto de
linhas que funcionam ao mesmo tempo e pensá-las como “elementos
constituintes das coisas e dos acontecimentos” é pensar não com o
propósito de representar, interpretar ou simbolizar mas somente fazer
cartas, traçar linhas, diagramatizar, trabalho preparatório. Este
pensamento, numa primeira definição, é ele mesmo feito de diferentes
linhas que se cruzam, conjugam ou embaraçam e usa como regra
não a sabedoria mas a “prudência” - “regra imanente à
567
experimentação” .
Pensamos combinando-as, formando trajectos e afectos com
linhas que se encontram por toda a parte. O que distingue a vida nos
seres é esta possibilidade de juntar, combinar trajectos e afectos;
experimentação pura, capacidade de unir afectos e factos e usá-los
em conjunto para fazer variar a vida, para produzir, para criar numa
enorme diversidade ( da experiência, da estética, da ética, da política,
da ciência, da religião, etc.), multiplicidades prudentes – linhas - que
garantem o plano da natureza e se apresentam em cartas ou mapas
ou diagramas.
O diagrama é uma produção concreta de uma “máquina
abstracta” , produção de excesso e germinação, poder de demolição
“Por isso cada coisa tem a sua geografia, a sua cartografia, o seu diagrama .
E não há nenhum privilégio da linha sobre o plano. O que há a fazer é a análise
das linhas. Ao conjunto de linhas diversas funcionando ao mesmo tempo
(traçados de linhas) Deleuze chama “carta” podemos também chamar-lhe
mapa. As linhas da mão ou do rosto formam então uma carta. Mas podemos
desenhar uma carta num muro, concebê-la como obra de arte, acção política,
meditação, etc. O corpo inteiro lê-se no rosto, no pé ou na mão ou na orelha,
num fio de cabelo, lê-se mesmo fora de si. No corpo inteiro, no pé ou na mão
lê-se também o mundo. Como se lê no deserto (os itinerários nómadas), no
céu, na rua, na pele de um rinoceronte vista ao microscópio, no azeite que cai
num prato de água, na areia da praia junto ao rebentar das ondas, nos genes,
no ADN.
567
MP, p. 187.
278

e captura. Ponto exacto de entrada e saída do caos, misto de


dependência e liberdade. “É que uma máquina abstracta ou
diagramática não funciona para representar, mesmo qualquer coisa
de real, mas constrói um real por vir, um novo tipo de realidade. Ela
não está, pois, fora da história, mas sempre ‘antes’ da história, a cada
momento onde constitui pontos de criação ou de potencialidade. (…)
É um Absoluto, mas que não é nem indiferenciado nem
transcendente. Além disso, as máquinas abstractas têm nomes
próprios (e também datas) que, na verdade, não designam já pessoas
ou sujeitos, mas matérias e funções. (…)
Há diagrama sempre que uma máquina abstracta singular
funciona directamente numa matéria. ”568.
Como construir e utilizar um diagrama? O que de certo modo é
o mesmo que perguntar, como se chega ao plano de consistência?

Passando para o plano mais restrito da criação artística, quais


as funções que aí assume o diagrama? Em particular, se nos
referirmos à obra pictural de Francis Bacon, a que é que ele chama
Diagrama (lembremos que o termo e a noção são também por ele
empregues)? Ou ainda em “que consiste [o] acto de pintar?”
O acto de pintar consiste num Diagrama. O pintor traz na sua
cabeça imagens, clichés, padrões, assim como a tela supostamente
virgem está já povoada de imagens, figuras invisíveis, prontas a
serem inscritas. Trata-se de começar a partir do zero. Para tanto é
necessário varrer clichés e figuras virtuais. A tela “branca” não é o que
parece. A pintura moderna foi invadida por clichés que se instalaram
na tela antes mesmo do pintor ter começado a trabalhar. É um erro
pensar que o pintor trabalha sobre uma superfície branca e virgem. A
superfície está já inteiramente investida virtualmente por todas as
espécies de clichés com os quais é preciso romper. Já lá estão os
dados figurativos virtuais e actuais. É com estes dados que o pintor

568
MP, p.178.
279

“luta”. Todo um trabalho preparatório começa ou começou (não se


sabe bem quando), dependendo da maneira como cada um trabalha (
diferente em cada caso). De qualquer modo há, neste trabalho que é
intenso, sempre uma invisibilidade e um silêncio que antecede o acto
mesmo de fazer marcas ao acaso (traços-linhas), de limpar, varrer,
esfregar, raspar, amarrotar os sítios, as zonas já manchadas, voltar a
recobri-las. De certa maneira, revirginizá-las, tornar a tela branca
(sem clichés). Pintando, lançando tinta, pintura a velocidades
variáveis em ângulos que até o pintor desconhece. Os traços são
manuais, são traços de sensação, inicialmente, confusos.
Na tela, violentamente surge uma catástrofe. O pintor usa
objectos violentos: a esponja, a tesoura, a faca, a vassoura, a
borracha, o diluente, etc. Lança, fisicamente, manualmente, a tinta
com as mãos. Fica cansado. E, no entanto, parece, diz Deleuze, que
as mãos já são comandadas por forças estranhas. As mãos ganham
uma independência, uma autonomia. As marcas, os traços, as linhas,
as confusões, as manchas, já não dependem da sua vontade, nem da
sua vista. Elas são “quase cegas”. O pintor é uma espécie de profeta,
a tinta sai em direcção à tela, sem que ele disso tenha uma
consciência trivial (se assim podemos dizer). É como se ele estivesse
num outro estado da consciência. Cegas, as marcas, “testemunham
então a intrusão de um outro mundo no mundo visual da figuração”569.
A tela nunca mais pode ser a mesma. As mãos produziram tais
sacudidelas e reviravoltas, que “não se vê mais nada, como numa
catástrofe, num caos.” Dessas marcas e dos intervalos, vai sair o
diagrama.
O diagrama abre espaços entre as marcas, isola os elementos
picturais. É como se de um golpe introduzíssemos um Saara, uma
zona de Saara. É como se esticássemos uma pele de rinoceronte e a
víssemos ao microscópico. É como o surgimento de um outro mundo.
Pois, as marcas, os traços são acidentais, livres, ao acaso. São não

569
FB, p. 66.
280

representativos, não ilustrativos, não narrativos, são traços a-


significantes. São traços de sensação, mas de sensações confusas.
É lá mesmo que o pintor opera. É como se a mão se tornasse
independente e passasse ao serviço de outras forças, traçando
marcas que não dependem mais da nossa vontade nem da nossa
vista.
O diagrama é então o conjunto operatório de linhas e de zonas,
de traços e de manchas a-significantes, não representativas. E a
operação do diagrama, a sua função, diz Bacon, é a de sugerir
(Balzac tinha um não-estilo que não sugeria, explicava, era de um
outro tipo570).
O seu estilo, o seu diagrama sugerem. Mais rigorosamente,
introduzem possibilidades de facto (que não são ainda factos).
Podemos não somente diferenciar diagramas, mas datar o
diagrama de um pintor. O diagrama é bem um caos, uma catástrofe,
mas também um germe de ordem e ritmo. É um violento caos
relativamente aos dados figurativos, mas como germe de ritmo
relativamente à nova ordem da pintura, também abre domínios
sensíveis. O diagrama situa-se precisamente no momento em que
termina o trabalho preparatório e começa o acto de pintar. Ele é uma
zona de indiscernibilidade, uma zona frenética. É um ponto de
paragem ou de repouso e simultaneamente de enorme agitação. Por
ele, entra-se e sai-se do caos. O quadro inteiro torna-se um caos ou
um diagrama, como por exemplo em Pollock.
O diagrama é ainda, exactamente, o que Cézanne chamava
motivo (que é feito de duas coisas: sensação e ossatura [charpente] ).
É o entrelaçamento da sensação e da ossatura, porque uma
sensação, um ponto de vista, não chegam para fazer o motivo;
mesmo colorida, a sensação é efémera e confusa, falta-lhe duração e
claridade. Mas a ossatura é ainda mais insuficiente: é abstracta571.

570
Cf. PS, p. 198.
571
As formas abstractas pertencem a um novo espaço puramente óptico que
não se subordina já aos elementos manuais ou tácteis. Elas distinguem-se de
281

Para dar à sensação duração e claridade é necessário tecê-la com a


ossatura.
É preciso fazer um uso temperado do diagrama, fazer a
experiência intensa do caos, da catástrofe, mas lutando para a
controlar, para a limitar. Conforme o grau de complexidade, as linhas
sobrepõem-se, são atravessadas, cruzam-se, libertam-se, constituem
uma re-orientação fundamental para nos localizarmos, para podermos
pensar os pontos, os impasses, os obstáculos, a doença, o
impensável, etc. As linhas são condições de inteligibilidade do
movimento do pensamento. Depois, já sabemos, formam cartas. E
com estas orientamo-nos ou entramos definitivamente no caos.
Ora, é necessário, para não mergulharmos no caos, e não
temos outra forma de o fazer, observar certos critérios, certas regras.
Serão as regras da diagramatização. Deleuze não desistirá de as
procurar, de as analisar (porque “as continuidades, as emissões e
combinações, as conjugações [os diagramas] não se fazem de
qualquer maneira.”572 ). E há sempre o risco de falhar o diagrama. Se
nada “sai” deste diagrama, falha-se o quê? O estilo.
Bacon não cessa de dizer que é absolutamente necessário
impedir o diagrama de proliferar, salvar o contorno é o mais
importante. Uma linha que não delimita nada não tem ela mesma um
contorno. É preciso que o diagrama não arruíne todo o quadro, que
ele permaneça limitado no espaço e no tempo, para que a catástrofe
necessária não afunde tudo. O diagrama é uma possibilidade de
facto, não é o próprio facto. Os dados figurativos não devem
desaparecer todos e sobretudo uma nova figuração, a da Figura573,

formas somente geométricas pela “tensão”: a tensão, é o que interioriza no


visual o movimento manual que descreve a forma e as forças invisíveis que a
determinam. (a pintura abstracta substituiu o diagrama por um código).
Segundo Deleuze, Bacon não foi atraído por esta substituição do diagrama
pelo código da pintura abstracta porque o código é forçosamente cerebral,
falta-lhe a sensação, a realidade essencial da queda, quer dizer a acção directa
sobre o sistema nervoso. P.70.
572
Idem, p. 91.
573
A Figura é neste sentido “a forma sensível relacionada à sensação” FB, p.
27. É o contrário de figuração.
282

deve sair do diagrama e tornar a sensação clara e precisa. “Sair da


catástrofe” eis o que é necessário.
Quer dizer, então, que qualquer coisa deve sair do diagrama. E
sai o quê? Uma “nova claridade”. A “revelação do corpo sob o
organismo, que faz rebentar ou dilatar os organismos e os seus
elementos, impondo-lhes um espasmo, relacionando-os com forças,
seja com uma força interior que os erga, seja com forças exteriores
que os atravessem, seja com a força eterna de um tempo que não
muda, seja com as forças variáveis de um tempo que se esgota”574
ou, dito de outro modo: “criação de relações originais que se
substituem à forma”575 e fazem aparecer um novo mundo.
Precisamente o estilo de Bacon não é uma questão de forma, mas de
criação de relações originais que a vão substituir.
Sai uma “nova claridade”, das sensações confusas, sensações
“que trazemos quando nascemos, dizia Cézanne”576, traços de
sensação que são “irracionais, involuntários, acidentais, livres, ao
acaso, sai um bloco de sensações. Uma série ou o conjunto figural. O
diagrama age, impondo uma zona de indiscernibilidade, ou
indeterminabilidade objectiva entre duas formas.
Não sendo uma catástrofe não deve provocar catástrofe.
Sendo uma zona de confusão e de mistura não deve misturar ou
tornar confuso o quadro, por exemplo. Sendo mistura não deve
misturar as cores, mas romper os tons…o essencial do diagrama, é o
que ele faz para que qualquer coisa saia e o que sai, a Figura, sai de
uma vez, bruscamente. Aí a pintura deve descobrir no fundo dela
mesma e à sua maneira o problema que a ocupa. Já não tem nada
para contar nem para representar (o que não é, nesta perspectiva,
muito diferente de outras artes).
O diagrama tem de proceder por ligações primárias não
localizáveis e passar a cada instante por todos os pontos e por todas

574
FB, p.102.
575
FB, p.101.
576
FB, p. 66.
283

as linhas (numa linha de variação contínua). Pontos singulares que


marcam de cada vez a aplicação de uma força, acção ou reacção de
uma força relativamente a outras (afectos). Simultaneamente opera
ao acaso, actualizando-se continuamente. É como já vimos, excesso,
caos, catástrofe, arrisca a loucura, o suicídio, a morte. Habita essa
zona de confim. Por isso, e em segundo lugar, só pode experimentar-
se e procurar fazer dele um uso moderado, contido. Utilizando doses
de prudência. Parece ser a maneira.
É necessário pois, uma longa preparação e aí utilizar muita
prudência para se poder experimentar577. Neste sentido, a prudência
deve ser utilizada como regra imanente à experimentação, é assim
que Deleuze em Mille Plateaux578 a concebe.
Eis então o que é preciso fazer: instalar-se sobre um estrato,
experimentar a sorte que ele nos oferece, procurar aí um lugar
favorável, movimentos de desterritorialização eventuais, linhas de
fuga possíveis, experimentá-las, assegurar aqui e ali as conjunções
de fluxos, procurar segmento por segmento contínuos de
intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra.”579
É um trabalho meticuloso que deve ser feito suavemente,
lentamente e não por um sujeito, um eu, que sente e age. Não são
actos que se possam explicar, sonhos ou fantasmas que se possam
interpretar, recordações de infância, palavras com significado. Um
trabalho prudente para conectar, conjugar, continuar ou mesmo
desfazer, diminuir ou limpar cores e sons, devires e intensidades.
Porquê tanta prudência? Podemos dizer que a todo o instante
tudo, mesmo tudo, está ao mesmo tempo perto da ruína, da violência,
da morte, do caos. “Além disso, todos os empreendimentos de
desestratificação ( por exemplo, exceder o organismo, lançar-se num
devir) devem em primeiro lugar observar regras concretas de uma
prudência extrema: toda a desestratificação demasiado brutal arrisca-
577
D, p.76. “Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo,
fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência”
578
MP, p.187 e segs.
579
MP, p.199.
284

se a ser suicida ou cancerosa, quer dizer ora se abre sobre o caos, o


vazio e a destruição, ora fecha sobre nós os estratos que endurecem
ainda mais e perdem os seus graus de diversidade, de diferenciação
e mobilidade.”580
Logo no início da Logique de la Sensation, Deleuze anuncia
que a ordem da análise que se seguirá vai do mais simples ao mais
complexo, se bem que esta ordem seja relativa e só tenha validade
“do ponto de vista de uma lógica geral da sensação”581 . O mais
complexo diz respeito à nossa questão: o “essencial do diagrama, é
que ele é feito para que qualquer coisa saia dele, e falha se nada
sai.”582

Em síntese, o diagrama é um conjunto operatório de linhas e


zonas, traços de sensação. A catástrofe e o caos são introduzidos por
estes traços e serão eles mesmos e com eles mesmos que se abrirão
“domínios sensíveis”. O diagrama terminará o trabalho preparatório, a
sua independência dará origem a uma “outra potência”. Violento
arrancar (do caos) das percepções e afecções, para ganhar
consistência, construir um Corpo sem órgãos.
Primeiro, partir de uma “sensação confusa” (efémera, faltando-
lhe sempre claridade e duração), segundo, proceder de modo preciso
para utilizar o excesso e o rasgar ou arrancar da figuração. Em cada
momento, da catástrofe “sairá” qualquer coisa.
Este trabalho preparatório que pertence completamente à
pintura e que precede todo o acto de pintar ajuda-nos
(simultaneamente) também a pensar e a traçar linhas de intersecção
com o que se passa de misterioso na cabeça de uma criança ou num
processo de escrita ou de cura.
“Não há pintor que não faça esta experiência do caos-germe
em que não vê mais nada e arrisca-se a mergulhar no abismo:

580
MP, p.628.
581
B, p.7.
582
B, p.102.
285

desmoronamento das coordenadas visuais. Não é uma experiência


psicológica, mas uma experiência propriamente pictural, se bem que
ela possa ter uma grande influência na vida psíquica de um pintor. O
pintor enfrenta aí os maiores perigos, para a sua obra e para si
mesmo. É uma espécie de experiência sempre recomeçada entre os
mais diversos pintores: ‘o abismo’ ou a ‘catástrofe’ de Cézanne, e a
probabilidade deste abismo dar lugar ao ritmo; o ‘caos’ de Paul Klee,
o ‘ponto cinzento’ perdido, e a probabilidade que fará com que este
ponto cinzento ‘salte por cima de si mesmo’ e abra as dimensões
sensíveis… De todas as artes, a pintura é sem dúvida a única que
integra necessariamente, ‘histericamente’ a sua própria catástrofe, e
se constitui desde logo como uma fuga para a frente. Nas outras artes
a catástrofe não está senão associada. Mas o pintor, passa pela
catástrofe, entra no caos e procura sair dele.”583
“Sistema de alta precisão” o diagrama produz uma “mistura”
que é uma limpeza, uma interferência, como um furacão ou
tempestade, que impõe uma “zona de indiscernibilidade”. Sensação
elástica, fundo capaz de dissolver as formas e de impor a existência
de uma zona onde já não se sabe quem é o quê. Se bem que se
saiba de uma oscilação, de uma experimentação, um salto em que
não se sai do mesmo lugar, que liberta, que é vida da mais agitada,
lugar irredutível das forças, criação de um novo modo de existência.
Qual é a fórmula ou o procedimento de Francis Bacon? Melhor,
qual é o seu Diagrama? Bacon evoca uma fórmula geral que julga
“apta a exprimir o diagrama e a sua acção de mistura, de limpeza,
pode propor uma fórmula linear tanto como colorista, uma fórmula-
traço, tanto como uma fórmula-mancha, uma fórmula-distância tanto
como uma fórmula-cor.”584
Daí sairá uma linha diagramática, sairá mesmo um “programa”.
E tem de valer sempre a exigência de Bacon: é preciso que o
diagrama permaneça localizado no espaço e no tempo, controlado,
583
FB, p. 67.
584
FB, p.101.
286

circunscrito a certas regiões e momentos. Ao mesmo tempo,


introduzindo novas distâncias, novas relações. Há uma necessidade
absoluta de o impedir de proliferar, porque tem sempre efeitos que o
ultrapassam. “Lugar comum dos quentes e frios, das expansões e
contracções” é preciso utilizá-lo de uma certa maneira, fazer dele um
uso temperado, uma espécie de “via média”. A modulação permite ao
diagrama ser operatório, por ela compreendemos a mudança de
natureza, a presença imediata e propriamente estética. Um diagrama
existe no corpo e na cabeça (é espacial, mas pode ser topológico e
fazer-se à distância, situar-se algures).
De qualquer modo, o que é fundamental é que os meios
violentos não se soltem, e que a catástrofe necessária não se espalhe
por todo o lado. Fazer marcas ao acaso, poder usar o acaso, saber
manipulá-lo, exige um “como fazer?” que pode parecer, e é de certo
modo, um caos, um não saber como fazer.
A “manipulação”585 do caos quer dizer, justamente, usar a
contenção, a prudência, esse primeiro critério que Deleuze diz ser
imanente à experimentação e que se deve usar em doses, muitas
doses, mas não só. Entre o que já existe e o que há-de vir, que não
são da mesma natureza, produz-se um salto ( “um salto sem sair do
mesmo lugar”) uma diferença de natureza, uma heterogeneidade que
é invenção radical, decomposição e composição, diástole e sístole.
Produz-se um estilo.
Não é uma organização reflectida, nem uma estrutura
significante, nem uma inspiração espontânea. Trata-se de um poder
(que o artista desconhece que tem) que rasga a homogeneidade. É
uma potência de vida que se afirma como força, vitalidade atlética,
impessoal, indomável. Linha de criação, movimento do pensamento
que nasce estético sem o saber. Como podemos então falar de estilo

585
B, p. 61, “Ora é na manipulação, quer dizer na reacção das marcas manuais
sobre o conjunto visual, que o acaso se torna pictural ou se integra no acto de
pintar.”
287

ou não-estilo em Bacon? Poderemos dizer (como Deleuze já disse de


Balzac ou de Proust) que Bacon não tem um estilo?
O estilo de Bacon é um estilo Saara. Saara porque é “um
imenso espaço-tempo que reúne todas as coisas, mas introduzindo
entre elas as distâncias de um Saara, os séculos de um Aiôn”586, é
um estilo diagrama587 . Um não-estilo. Uma “longa preparação” numa
linha de variação contínua. São as relações de “entre-dois” presentes
no “como fazer?”.
Como faz concretamente, fisicamente, o pintor, no seu atelier?
Já o descrevemos antes. A tinta, ou a mão, ou a esponja, saem
em direcção à tela, sem que ele tenha disso uma certa consciência. É
como se estivesse num outro estado de consciência. Como se
naquele momento pudesse “sair de si próprio” ( sair de si próprio, é o
que podem fazer os “artistas originais”, como diz Proust, e enquanto o
puderem fazer, “nós teremos sempre mundos à nossa disposição”588)
e as marcas que daí resultam “testemunham então a intrusão de um
outro mundo no mundo visual da figuração”589. A tela nunca mais
poderá ser a mesma. As mãos e esse “estado” em que o pintor está
produziram tais sacudidelas e reviravoltas que se pode perguntar pela
consistência do que fica na tela, ou não fica. Como pode a ausência
de estilo produzir aqui “a força genial de uma nova” pintura?
No seu não-estilo, Bacon utiliza procedimentos quase
rudimentares para isolar a Figura, para acabar com a representação.
Poderia fazê-lo através da abstracção, mas vai fazê-lo por extracção
ou isolamento.

586
FB, p. 56.
587
“Um estilo é uma variável, um conjunto espácio-temporal unido por uma
conveniência num bloco em que a harmonia não é dada, procura-se e pode
sempre desfazer-se. É por isso, que em cada estilo, que podemos notar dobras
e flexões capazes de arrastar um bloco de espaço-tempo, conceitos e redes
de conceitos para novos devires. Um estilo define sempre uma série de
relações heterogéneas entre conceitos, um diagrama.” J.-C. Martin, Variations,
p. 160.
588
PS, p. 194.
589
FB, p. 66.
288

Isolar a figura é condição primeira. O meio mais simples de


romper com a representação, partir a narração, impedir a ilustração é
libertar a Figura.
São dois, os seus procedimentos: os traços a-significantes e o
procedimento de limpeza local. Constituem um sistema original, a que
Deleuze chama sistema de alta precisão. A este sistema de alta
precisão corresponde um indefinido. Que não é obtido por indistinção,
mas por uma operação que consiste em destruir a clareza pela
clareza, ou por procedimentos de marcas livres ou de limpeza (estas
marcas, estes traços são irracionais, involuntários, acidentais, livres,
ao acaso. São os traços a-significantes. São traços de sensação,
marcas manuais).
As marcas, os traços, as linhas, as confusões, as manchas, já
não dependem da sua vontade, nem da sua vista. Elas são “quase
cegas”, simultaneamente, podem tornar-se aéreas ou tombar.
Portanto, podem “sugerir”, têm um “efeito”: vão produzir ressonâncias
e não simples vibrações. Fazem-no porque são já sensações em
bloco (num diagrama as linhas não unem senão sensações, no caso
de uma sensação simples, os níveis diferentes pelos quais ela passa
necessariamente constituem já parelhas de sensações. O
emparelhamento, a ressonância, não é contudo o único
desenvolvimento da sensação complexa, teremos ainda o movimento
forçado). Sensações pintadas, ritmos, que depois se libertam e
ressoam.
Com o estilo, abrem-se domínios sensíveis e com o movimento
forçado adquire-se autonomia590. Produz-se “o mais estranho
fenómeno de recomposição, de redistribuição”591 , invertem-se as
relações do modelo e da cópia. É uma experiência que tem de ser
levada ao seu limite maior.

590
Deleuze refere um caso de Bacon: ele queria fazer um pássaro de uma
certa maneira, mas os traços de repente tornaram-se independentes e
sugeriram outra coisa completamente diferente. V. FB, p. 100.
591
FB, p. 49.
289

O estilo está já antes de terminar o trabalho preparatório, e


começará com o acto de pintar. Onde os pintores diferem (no seu
estilo) “é na sua maneira de abraçar este caos não figurativo, e
também na sua avaliação da ordem pictural por vir, da relação desta
ordem com este caos.”592 Não podem contentar-se em transformar os
clichés. Deleuze a este propósito cita D. H. Lawrence: “Depois de uma
luta encarniçada de quarenta anos ele [Cézanne], conseguiu todavia
conhecer uma maçã, plenamente um vaso ou dois. Foi tudo o que ele
conseguiu fazer. Parece pouca coisa (…). Mas é o primeiro passo que
conta, e a maçã de Cézanne é muito importante (…). Ele queria
exprimir qualquer coisa, mas, antes de o fazer, tinha de lutar contra o
cliché (…). Cada um deve por si próprio criar um novo e diferente.”593
Só depois o trabalho pode começar. Para Bacon, a pintura
antes de pintar não pode escapar ao acaso. Primeiro, o acaso é
rejeitado no “pré-pictural”; segundo, o acaso pertence ao acto de
pintura. O pintor tem mais ou menos uma ideia na cabeça, a ideia é o
pré-pictural. Na tela há “toda uma ordem de probabilidades iguais e
desiguais. E é quando a probabilidade desigual se torna quase uma
certeza que eu posso começar a pintar. Mas nesse momento, quando
comecei, como fazer para que isso que eu pinto não seja um cliché?
É preciso muito rapidamente fazer «marcas livres» no interior da
imagem pintada, para destruir nela a figuração nascente (…). Essas
marcas são acidentais, «ao acaso» (…). O acaso, segundo Bacon,
não é separável de uma possibilidade de utilização. É o acaso
manipulado, por diferença com as probabilidades concebidas ou
vistas.”594
Há um conjunto de dados que exprimem um estado pré-pictural
da pintura e que não serão integrados no acto de pintar, e há outros,
a-picturais que se integrarão. São estes últimos que vão arrancar a
Figura que a vão extrair. O que aqui conta é saber manipular o acaso.

592
FB, p. 67.
593
FB, p. 58.
594
FB, p. 61.
290

Mas o que salva o pintor que começou já a pintar “é que ele


não sabe como aí chegar, ele não sabe como fazer o que ele quer
fazer. Só chegará aí saindo da tela. O problema do pintor não é entrar
na tela, uma vez que ele já lá está (mancha pré-pictural), mas sair, e
por aí mesmo sair do cliché, sair da probabilidade (mancha pictural).
São as marcas manuais ao acaso que lhe darão uma ocasião.”595
Dos seus procedimentos ou fórmulas, quer dizer, do estilo,
dependerá a sua salvação.
Na obra sobre Proust, que já referimos tantas vezes, Deleuze
define estilo ou a sua génese como o momento em que dois objectos
diferentes, distantes (sensações, blocos sonoros, visuais palavras,
etc.) podem parecer-se, ser de um mesmo género. A mesma
definição em Francis Bacon: primeiro, referindo-se ainda a Proust, diz
que o que conta é que duas sensações se agarrem como dois
lutadores e formem um «corpo a corpo de energias»…finalmente, a
fórmula “constante de Bacon: fazer parecer, mas por meios acidentais
e não parecidos.”596
E se considerarmos o quadro, “na sua realidade”? Se o
consideramos de uma só vez, a sua realidade está na
“heterogeneidade do diagrama manual e o conjunto visual marca bem
uma diferença de natureza ou um salto”, mas se o consideramos
enquanto processo “há mais injecção contínua do diagrama manual
no conjunto visual, «gota a gota», «coagulação», «evolução», como
se passássemos gradualmente da mão ao olho”597
Brusca ou decomponível, esta passagem é o grande momento
no acto de pintar. O pintor (a pintura) tem de descobrir no fundo de si
mesmo e à sua maneira “o problema de uma lógica pura: passar da
possibilidade de facto ao facto.” O problema é que é também o de
“uma lógica geral da sensação”.

595
FB, p. 62
596
FB, p. 63.
597
FB, p. 102.
291

O que é pintar uma sensação? O que é uma sensação em F.


Bacon?
São linhas e cores. O objecto da sua pintura – “a violência da
sensação”.
Num texto de 1981598, Deleuze responde à pergunta – “como
se escreve um livro sobre a pintura: convocando coisas ou seres da
literatura: aqui Kafka, Proust, Beckett?”-: “O que chamamos em
literatura um estilo existe em pintura, é um conjunto de linhas e de
cores.”599 É o problema da pintura. E a pintura ajuda-nos, porque
quando pensamos nela compreendemos melhor a linha e a cor de
uma frase, como se o quadro nos dissesse qualquer coisa sobre ela,
diz-nos mais adiante. Ainda sobre Bacon, Deleuze fala de um
encontro que teve com ele (dizendo “sente-se nele potência e
violência, mas também um grande encanto”.600) e da sua aspiração
ao realizar Lógica das sensações: “aproximar qualquer coisa que seja
um fundo comum de palavras, de linhas e de cores e mesmo de
sons.”601
A sensação é então o que é pintado. Pode ser esse fundo. O
pictural, que é o corpo, uma zona de indiscernibilidade, o que já
definimos também como bloco de sensação. Esta sensação de que
queremos falar não é qualitativa ou qualificada, “ela não tem senão
uma realidade intensiva que não determina já nela dados
representativos, mas variações alotrópicas.”602

A sensação é então o contrário do fácil e do já feito, do cliché,


mas também do sensacional. Ela tem uma face virada para o sujeito
(o sistema nervoso, o movimento vital, o instinto, o temperamento…)
e uma face virada para o objecto (o facto, o lugar, o acontecimento).

598
Texto recolhido por Hervé Guibert, em Le Monde, 3 de Dezembro de 1981,
a propósito do livro sobre Bacon, que aparece agora na edição preparada por
D. Lapoujade, Deux régimes de fous, ed. Minuit, Paris, 2003, pp. 167-169.
599
Op. cit., p. 168.
600
Op. cit., p. 170.
601
Op. cit., p. 171.
602
FB, p. 33.
292

Ou melhor, diz Deleuze, ela não tem faces de todo, é as duas coisas
indissoluvelmente, pode ser o ser-no-mundo como dizem os
fenomenólogos. No limite, é o mesmo corpo que a dá e que a recebe.
“A cor está no corpo, a sensação está no corpo e não no ar. A
sensação é o que é pintado.”603 É o corpo.
Há duas maneiras de ultrapassar a figuração: através da forma
abstracta e através da Figura. A esta última chamou Cézanne a
sensação. A Figura é a forma sensível relacionada com a sensação.
Estas considerações muito gerais ligam Bacon a Cézanne: Pintar a
sensação. Quando Bacon fala da sensação, ele quer dizer coisas
muito próximas de Cézanne, embora já esteja muito longe dele.
Por um lado, diz que a forma relacionada com a sensação
(Figura), é o contrário da forma relacionada com um objecto que ela é
suposta representar (figuração). Por outro, não cessa de dizer que a
sensação é o que se passa de uma “ordem” para outra, de um “nível”
para um outro, de um «domínio» para um outro. É por isso que a
sensação é especialista de deformações, agente de deformações do
corpo. Quer dizer, cada ordem, cada nível, cada domínio
corresponderá a uma sensação especificada.
À violência do representado (o sensacional, o cliché) vai opor-
se a violência da sensação. É esta sensação que não é fácil de
construir. Não pode ser efémera. Tem de ter duração e claridade.
Nada mais senão afectos.
A hipótese mais interessante será, contudo, a que Deleuze vai
designar por hipótese motriz. “Os níveis de sensação seriam como
paragens ou instantâneos de movimento que recomporiam o
movimento sinteticamente na sua continuidade, velocidade e
violência”604. Uma espécie de elasticidade da sensação. Não é o
movimento que vai explicar os níveis da sensação, são os níveis de
sensação que explicam o que subsiste de movimento. Um espasmo,

603
FB, p. 27.
604
FB, p. 30.
293

um movimento sem sair do lugar, que explicaria “a acção sobre o


corpo de forças invisíveis”.
Deleuze refere-se ainda a uma outra hipótese
(fenomenológica). Como vimos já, onde os níveis de sensação seriam
verdadeiramente domínios sensíveis reenviando aos diferentes
órgãos dos sentidos. Pertenceria então ao pintor fazer ver uma
espécie de originalidade dos sentidos. Esta sensação teria de ter uma
potência, um ritmo, um fundo, unidade rítmica dos sentidos. Que não
pode ser descoberta senão quando se ultrapassa o organismo. A
hipótese fenomenológica torna-se então insuficiente. Ela invoca
somente o corpo vivido. Ora, a unidade do ritmo, precisamos procurá-
la mais longe, lá onde ele “mergulha no caos, na noite, e onde as
diferenças de nível são perpetuamente agitadas com violência.”605
Se é verdade que a sensação não está nem no objecto
representado, nem no elemento empírico, nem mesmo num simples
sentimento, então ela poderá ser sobretudo um efeito de fronteira, de
contexto e de diferença, para lá do organismo.
A pintura (a arte) tem então a tarefa mais difícil. Deve arrancar
a Figura ao figurativo, extrair essa sensação, enquanto realidade
intensiva, mas que ainda não se sabe bem onde está. Para lá do
organismo, mas também como limite do corpo vivido, onde há um
corpo intenso e intensivo, percorrido por uma onda que traça níveis,
domínios, zonas, onde existem sensações espasmódicas, que
rompem os limites da actividade orgânica. Em plena carne, elas são
directamente levadas com a onda nervosa ou emoção vital.
A sensação será como o reencontro da onda com as Forças
agindo sobre o corpo; quando está assim em relação com o corpo
deixa de ser representativa e torna-se real, ela reduz-se à acção das
forças sobre o corpo.
Então, pintar é pintar forças. Mas é também um problema da
arte em geral.

605
FB, p. 33.
294

Há um problema comum às artes: não se trata de reproduzir ou


inventar formas mas captar forças. Tornar visíveis as forças que não
estão lá.
A noção de força aparece numa relação estreita com a
sensação: é preciso que uma força se exerça sobre um corpo, quer
dizer, sobre um local da onda, para que haja sensação. Mas se a
força é condição, não é no entanto ela que é sentida, uma vez que a
sensação produz uma outra coisa a partir das forças que a
condicionam.
Como pode a sensação, nos seus movimentos, distender-se
ou contrair-se para captar as forças não dadas, para fazer sentir
forças insensíveis e elevar-se até às suas próprias condições? Como
tornar “audíveis forças não audíveis”? Ou visíveis? Ou sensíveis?
É um problema de captura de forças. Deleuze propõe fazer
uma lista empírica das forças que Bacon detecta e capta. As primeiras
forças invisíveis são de isolamento; as segundas, são forças de
deformação; as terceiras, são forças de dissipação. Mas existem
muitas mais. Deleuze termina o capítulo oitavo, precisamente
referindo-se a essas outras. Que dizer “dessa força extraordinária de
emparelhamento que vem tomar dois corpos com uma energia
extraordinária, [ou o que são] (…) a Vida , o Tempo, tornados
sensíveis, visíveis? (…) Tornar o Tempo sensível em si mesmo, tarefa
comum ao pintor, ao músico, algumas vezes ao escritor. É uma tarefa
fora de toda a medida ou cadência.”606

Como ganha consistência a pintura, o estilo de Bacon?


Numa proximidade absoluta com o caos, mais próximo da
catástrofe, com o diagrama bruscamente traçado. Qualquer coisa
vem, directamente do toque, da mão, do cheiro, da audição, da
respiração, da captura, da relação do corpo que traça, e tende a
escapar-se. Há sempre qualquer coisa que necessita escapar-se,

606
FB, p. 43.
295

quer dizer exprimir-se. “Proust sabia-o bem”. Sairá “pela arte,


somente pela arte”. Também, para Bacon se trata de sair. Mas como
fazer sair, como exprimir?
Em Mille Plateaux, uma das respostas pode passar por “uma
questão de velocidade, no mesmo lugar. (…) fechar os seus próprios
olhos, e fazer do seu corpo um raio de luz que se move a uma
velocidade sempre maior (…), são necessários todos os recursos da
arte, e da mais elevada. É preciso toda uma linha de escrita, toda
uma linha de picturalidade, toda uma linha de musicalidade.”607
“Todo o corpo se escapa pela boca que grita.”608 Em Bacon há
sempre um corpo que tenta escapar-se por um dos seus órgãos. Um
corpo sem órgãos que é carne e nervos. Um corpo que não tem
órgãos, mas tem níveis ou limiares. Um corpo sem órgãos. Uma onda
percorre-o, traçando nele níveis.

Os três elementos base da sua pintura são a Estrutura, a


Figura, e o Contorno, como limite dos dois primeiros. Estes não
cessam de constituir o sistema da mais alta precisão e é nesse
sistema que se produzem as operações de confusão (de cruzamento
de sinais), os fenómenos de indefinido, os efeitos de afastamento ou
desvanecimento, tanto mais fortes quanto eles constituem um
movimento ele próprio preciso neste conjunto. Suponhamos que a
Figura efectivamente desaparece não deixando senão um rasto vago
de uma antiga presença. Ao mesmo tempo na zona de confusão e
limpeza que fizeram surgir a Figura vai aparecer uma pura Força sem
sujeito. No seu processo de criação há um primeiro movimento
(“tensão”) que vai da estrutura à Figura, a estrutura vai apresentar-se
como uma superfície (“aplat”) que se vai enrolar em torno do
contorno. O contorno, por sua vez, apresentar-se-á como um isolante
e a Figura é isolada no contorno, último território da Figura. Uma

607
MP, p, 228.
608
FB, p.23.
296

segunda tensão vai da Figura à estrutura material, o contorno muda, a


Figura vai contrair-se ou dilatar-se, experimentando um devir
extraordinário e tende a reencontrar o aplat, a dissipar-se na
estrutura. Tudo se reparte em diástole e sístole que se repercutem em
cada nível. A sístole, que aperta o corpo e vai da estrutura à Figura; a
diástole, que o estende e dissipa, da Figura à estrutura. Mas já há
uma diástole no primeiro movimento quando o corpo se alonga para
melhor se fechar e há uma sístole no segundo movimento, quando o
corpo se contrai para se escapar e mesmo quando o corpo se dissipa
fica ainda contraído pelas forças que o engolem.

b. A importância do Corpo sem Órgãos na estética de Deleuze

Noção retomada a Antonin Artaud609 e desenvolvida por Deleuze,


o CsO é um corpo de transformações, pura superfície de intensidades
(no grau zero das intensidades).
Corpo sem órgãos ou corpos sem órgãos, o que são?
Não são os corpos vividos da fenomenologia, os corpos
orgânicos ou metafóricos. Mas também não são o contrário dos
órgãos. São corpos não corporais, não orgânicos. Como Deleuze
repete amiúde, o corpo sem órgãos não se opõe aos órgãos mas ao
organismo, a uma certa organização-estratificação dos órgãos.

O corpo fenomenológico, como corpo vivido ou viver incarnado,


revela-se como um ser de sentido e de linguagem, como um corpo de
sentido. Sem dúvida, o corpo é o lugar por excelência da passagem
de vida, no seu jogo livre dela consigo própria. É a afirmação da vida,
de uma potência, de forças. E se já não há nada para contar nem
para representar, ainda assim há uma representação orgânica,
assistimos a uma revelação de um corpo sob o organismo que põe
609
A noção aparece pela primeira vez no poema de Antonin Artaud “Pour en
finir avec le jujement de Dieu”.
297

forças em relação, sejam forças interiores, forças exteriores, eternas,


variáveis.
Embora não saibamos ainda o que é viver num corpo e o que é
o viver de um corpo, parece que a cada instante sabemos que o
corpo é o nosso corpo. Dele temos uma certa experiência, vivemo-lo.
Mas não é bem este corpo vivido que interessa a Deleuze.
De uma parte de si próprio, do corpo, pelo menos, podemos
dizer que é ao mesmo tempo sensação ou sensações e movimento,
afectos, paixões, pensamentos. Não é somente um instrumento mais
ou menos bem adaptado às necessidades da vida, perecível ou
corruptível, mas é também uma espécie de manifestação da
incorruptibilidade. Ele é (um corpo físico, dispositivo orgânico, e
também um corpo de pensamento, espiritual, etc. ) de tal forma que
desafia os seus limites factuais: pela imaginação pode, por exemplo,
“transportar-se”, (transformar-se) para onde quer e quando quer - o
que não quer com certeza dizer que o que se imagina assim seja o
que se descobrirá do sensível, se o corpo para aí se deslocasse
“realmente”. Qualquer coisa se escapa (e escapa ao corpo) do corpo
e não sabemos ainda o que é.
A hipótese fenomenológica deixa, segundo Deleuze, muitos
problemas por resolver.
No capítulo VI de Francis Bacon, Deleuze refere-se ao corpo
como um corpo de sensação. Mas há diferenças consideráveis
quando nos referimos à noção de sensação (por exemplo entre Bacon
e Cézanne), e entre as várias hipóteses de resposta aparece a
hipótese fenomenológica (a sensação remeteria para o “ser-no-
mundo”, o corpo, objecto e sujeito que experimenta, vive sensações)
a que já nos referimos antes.
Segundo Deleuze a sensação ou domínio sensível seria, nesta
última hipótese, o que reenvia para os diferentes órgãos dos sentidos,
havendo uma “maneira” de fazer tal “comunicação”. Maneira ou
operação que não é possível “senão quando a sensação de tal ou tal
298

domínio (aqui a sensação visual) é directamente dominada por uma


potência vital que transborda todos os domínios, atravessando-os.
Esta potência, é o Ritmo”610. Mas o ritmo será então uma unidade de
sentido, um “fundo” que não é possível alcançar pela fenomenologia
(ela é insuficiente), quer dizer, pelo corpo vivido, pelo organismo. Há
“uma Potência mais profunda e quase invivível”, uma unidade do
ritmo que não podemos encontrar “senão aonde o ritmo mergulha no
caos”. Para lá do organismo, ultrapassando o corpo vivido, onde a
poderemos procurar?
Numa unidade original dos sentidos, através de uma
“operação” rítmica que vai para lá do organismo. O ritmo atravessa o
corpo inteiro quando o “meio” é ameaçado pelo caos. O ritmo nasce
da produção de uma diferença, e não é uma cadência. Já vimos, com
Deleuze e Guattari, que é o “Desigual ou o Incomensurável”, de onde
podem emergir matérias de expressão que se transformam em
materiais de expressão.
Para Deleuze, nesta obra, ritmo611 é “pintar a sensação”. Na
“sensação simples, o ritmo depende ainda da Figura, apresenta-se
como a vibração que percorre o corpo sem órgãos, é o vector da
sensação, o que a faz passar de um nível para outro. No
emparelhamento de sensação, o ritmo liberta-se, porque confronta e
reúne os níveis diversos de sensações diferentes: ele é agora
ressonância, (…); ele é diagrama”612 .
Nos trípticos, que não iremos tratar, mas que nos podem servir
de exemplo, Deleuze diz que o ritmo ganha uma amplitude
extraordinária, autonomiza-se, os limites da sensação são
completamente ultrapassados. Numa situação desse tipo, irão
produzir-se redistribuições, recomposições, combinações de todos os
tipos de ritmos, que fazem “nascer em nós a impressão do Tempo”.

610
FB, p. 31.
611
Em FB, p. 48, Deleuze faz uma classificação de ritmos: 1º «activo», de
“variação crescente ou amplificação”; 2º «passivo», de “variação decrescente
ou eliminação”; 3º «testemunho» ou a “medida” dos dois primeiros.
612
FB, p. 48.
299

Os ritmos pela sua própria natureza complexificam-se. Por


exemplo, no ritmo “activo” é a queda que afirma a diferença de nível.
É uma “passagem da sensação como diferença de nível
compreendida na sensação”, descida, problema de intensidade (na
queda experimenta-se uma diferença de intensidade). A queda
intensiva pode coincidir com uma descida espacial, mas também com
uma subida. Ela pode coincidir com uma diástole ou uma sístole, uma
dilatação ou uma dissipação, mas igualmente com um aumento ou
uma contracção. Uma queda é tudo o que se desenvolve (há
desenvolvimentos por diminuições). A queda é exactamente o ritmo
activo que se opõe e desenvolve com o segundo ritmo, passivo. O
terceiro, para ser medida dos outros dois não é “crescimento nem
decréscimo, sem aumento nem diminuição” tem um valor constante.
Tudo parece coexistir e “a oposição, variar ou mesmo inverter-se
segundo os pontos de vista adoptados, quer dizer, segundo o valor
considerado. (…) No limite, o que conta nos dois ritmos opostos é que
cada um seja a «retrogradação» do outro, uma vez que o valor
comum e constante aparece no ritmo-testemunho”613.
Pintar a sensação é, neste contexto, essencialmente, fazer um
corpo sem órgãos. O “grande momento no acto de pintar”614, de onde
emerge da pintura de Bacon.
Uma diferença importante “insinua-se” desde já, relativamente
à sensação trivial vivida. Uma primeira catástrofe: “a forma cai,
inseparável de uma queda. A forma não é já essência, tornou-se
acidente,(…). O acidente introduz um entre-dois planos, onde se faz a
queda.”615 Elimina estratos, transformando, produz um corpo. Corpo
sem órgãos, feito de linhas e planos, (de composição, de
consistência), níveis, gradientes616, corpo limite, intenso e intensivo,

613
FB, p. 54.
614
FB, p. 102.
615
FB, p. 87.
616
Já no Anti-Oedipe, como refere José Gil : “O corpo sem órgãos é um ovo,
atravessado por gradientes, latitudes, longitudes, eixos que marcam e
situam os percursos das intensidades e dos devires.” V. art. De José Gil,
300

anárquico. Não se opõe aos órgãos porque, muito simplesmente, não


precisa dos órgãos do corpo orgânico. “Ele é percorrido por uma onda
que traça no corpo níveis ou limiares de acordo com as variações da
sua amplitude. O corpo não tem órgãos, mas limiares ou níveis. (…)
Sabemos que o ovo apresenta justamente este estado do corpo
«antes» da representação orgânica: eixos e vectores, gradientes e
zonas, movimentos cinemáticos e tendências dinâmicas”617 .

Há já em Différence et répétition uma intuição deste corpo,


embora ainda não se fale de CsO (o que só acontecerá em Logique
du sens). Mas fala-se de um embrião antes do embrião (que é suporte
geral de qualidades e de partes): “sujeito individual e paciente de
dinamismos espácio-temporais, o embrião como sujeito larvar”618.
Os dinamismos serão aqui o “vivido do embrião”619 , como antes
vimos, são encenações resultantes do movimento da imaginação; do
sonho do sujeito larvar. São, portanto, dramatizações, “diferenciação
de diferenciação”.
A força dos dinamismos vem da intensidade, que é o
620
“determinante no processo de actualização” . É ela que dramatiza,
exprimindo-se imediatamente nos dinamismos e “determina uma
relação diferencial «indistinta»”. A intensidade desenvolve-se
determinando o movimento de actualização.
Como pode ela desempenhar um papel tão importante, é o que
pergunta Deleuze. Mas pode, na medida em que se torna
independente “tanto da diferenciação como da explicação que dela
procede”621, pelo processo de individuação. Processo que aqui é
definido como “o acto da intensidade que determina as relações
diferenciais a actualizarem-se, de acordo com linhas de diferenciação

“Un tournant dans la pensée de Deleuze” in Gilles Deleuze une vie


philosophique (org. Eric Alliez), Institut Synthélabo, 1998, p. 81.
617
FB, p. 33.
618
DR, p. 351.
619
Idem.
620
DR, p. 396.
621
DR, p. 397.
301

(…). A individuação não supõe qualquer diferenciação, mas provoca-


a. As qualidades e as extensões, as formas e as matérias, as
espécies e as partes não são primeiras; elas estão aprisionadas nos
indivíduos como em cristais. E é o mundo inteiro, como uma bola de
cristal, que é lido na profundidade movente das diferenças
individuantes ou diferenças de intensidade.”622
A dramatização que se faz na cabeça do sonhador, sob o olho
crítico do cientista, faz-se também, podemos agora dizer (com Bacon,
por exemplo), com a mão do artista. É uma catástrofe, “todo o
dinamismo é uma catástrofe”623. Ou é uma crueldade. “Há
necessariamente algo de cruel nesse nascimento de mundo que é o
caosmos, nesses mundos de movimentos sem sujeito, de papéis sem
actor. Quando Artaud falava do teatro da crueldade, ele definia-o
somente por um extremo «determinismo», o da determinação
espácio-temporal, na medida em que ela encarna uma Ideia da
natureza ou do espírito, como um «espaço agitado», movimento de
gravitação que gira e fere, capaz de tocar directamente o organismo,
pura encenação sem autor, sem actores e sem sujeitos. Só se cavam
espaços, só se precipitam ou desaceleram tempos à custa de torções
e deslocamentos que mobilizam e comprometem todo o corpo.
Pontos brilhantes atravessam-nos, singularidades arrepiam-nos.”624
A dramatização é, numa palavra, “o acto mais intenso”. Só as
larvas são capazes de o suportar. As condições da vida embrionária
são tais que o embrião experimenta e sofre estados, “empreende
movimentos”, torções, deslocamentos, migrações, traçados,
deslizamentos e rotações, que não são viáveis no organismo já feito.
Estes proto-organismos ultrapassam os limites da espécie, do género,
da ordem ou da classe. Só eles podem viver assim, e podem porque
estão mais próximos do virtual, numa consciência elementar que

622
DR, pp. 398-399.
623
DR, p. 357.
624
Idem.
302

nasce no limiar de singularidades condensadas relativamente ao


corpo.
O ovo, enquanto sede dos primeiros movimentos exprime
relações diferenciais como uma matéria virtual a ser actualizada num
indivíduo. “Os sonhos são os nossos ovos, as nossas larvas ou os
nossos indivíduos propriamente psíquicos”.625 Ou ainda: “O embrião é
uma espécie de fantasma dos seus pais”, uma quimera, “apto para
funcionar como esboço e para viver o que é inviável para todo o
adulto especificado. Ele empreende movimentos forçados, constitui
ressonâncias internas, dramatiza relações primordiais da vida.”626 O
ovo é então uma espécie de corpo esvaziado com eixos e simetrias.
Esvaziado porque os elementos que faltam, de facto, não estão lá. O
interior vem ou está à superfície, a noção de profundidade altera-
se627 . O ovo será o campo onde o embrião pode ser puro indivíduo.
O que é um indivíduo no ovo? É, segundo Deleuze, uma
verdadeira queda, indo do mais alto ao mais baixo, ritmo ou ritmos,
como vimos há pouco.
O mundo é um ovo, diz Deleuze, há um mundo no ovo. O ovo
fornece-nos o “modelo” , espécie de terceiro ritmo, intensidade
primeira (ou “meio de intensidade pura, o spatium e não extensio, a
intensidade Zero como princípio de produção”628) medida “desigual e
incomensurável”. Mas, porque esvaziado, terá de ser “preenchido”,
começou nele o “reino caótico da individuação”. “Seria preciso que
este preenchimento fosse imediato, o mais precoce e não tardio”629.
Desenvolvendo-se, a vida destrói irreversivelmente as condições do
seu próprio aparecimento.
Por isso, o embrião vive, prematuramente, “proezas” que
consistem em viver o invivível. Quer dizer, a sua vida é feita, por

625
DR, p. 403.
626
Idem.
627
V. art. De José Gil, “Un tournant dans la pensée de Deleuze” in Gilles
Deleuze une vie philosophique (org. Eric Alliez), Institut Synthélabo, 1998.
628
MP, p. 202.
629
DR, p. 404.
303

exemplo, de movimentos que só ele pode fazer ou suportar, de


amplitudes de movimentos forçados que se se nos aplicassem,
quebrariam “todo o esqueleto ou romperiam os ligamentos”. O
exemplo do que acontece com crianças pequenas630 pode-nos servir.
O bebé nasce de um corpo num momento preciso, em que ele
(corpo) é plenamente o que havemos de chamar CsO ( e antes foi
“ovo” e embrião), o próprio corpo do bebé faz um só com o corpo da
mãe, são ambos um CsO. Um corpo afectivo, intensivo e intenso,
“anárquico”, um feixe de vibrações que traz consigo uma vitalidade
não orgânica, forças e potências imperceptíveis que se pressentem
na sua “vivacidade”, no seu querer viver obstinado, inflexível, teimoso,
indomável, irredutível, como se se tratasse de um “combate” (e já é
assim antes do nascimento, num momento qualquer logo após a
fecundação, bastante cedo, confirma-o a biologia, no estado de
embrião ou de ovo de que falamos também ).
Com um bebé nestas condições só podemos ter “relações
afectivas”, não orgânicas, “atléticas” impessoais, uma relação “vital”.
Porquê? O bebé, diz Deleuze está em “combate” e faz-nos rodopiar
para o “apanhar” em todas as direcções porque ele está num “máximo
de forças possíveis”. O combate é aqui uma poderosa vitalidade não
orgânica que completa a força com a força e enriquece aquilo de que
se apropria. O bebé concentra na sua pequenez uma energia
poderosa, onde não há ainda eu nem Eu. Depois é muito tarde, com
uma criança pequena já temos uma relação pessoal orgânica.
É muito tarde, quer dizer, aqui o orgânico não é a vida mas o
que a aprisiona. O corpo vivo e liberto será aqui um corpo não
orgânico.

630
Um pediatra muito conhecido nos EUA fez há poucos anos uma
experiência com bebés e com adultos. Muito simplesmente, os adultos que
eram atletas de alta competição, portanto “em forma”, tinham, durante um
dia, de repetir todos os movimentos, gestos, deslocações, etc. de um
bebé. No fim do dia os atletas estavam completamente esgotados e os
bebés continuavam como se nada durante o dia os tivesse fatigado.
304

A formação ou génese do embrião ou do mundo é a formação


ou génese de uma série de variações contínuas, ou como já se disse
de um estilo que nos permite “ver” como poderia ser “antes”. O mundo
é um estilo, na sua dramatização, na sua diferenciação. O estilo é o
movimento que abala todos os determinismos, instaurando a
diferenciação. Experimentação de forças puras, traçados dinâmicos,
é ainda antes de tudo “uma linguagem que fala antes das palavras,
gestos que se elaboram antes dos corpos organizados”631.
Podemos ter deste corpo não orgânico, proto-organismo onde
passa a vida mais intensa, mais do que uma intuição. Deleuze,
partindo do corpo empírico, vivido vai para além dele. Para David
Lapoujade todos “os textos sobre o Corpo-sem-órgãos são, no fundo,
textos de embriologia. Há em Deleuze uma verdadeira embriologia
transcendental: o corpo como ovo. Como suportar, então, o
insuportável, como viver o inviável (quer dizer, como criar para si um
Corpo-sem-órgãos?), o que significa evidentemente, uma outra
maneira de perguntar: que pode o corpo?”632
Esta questão é o título do capítulo XIV do livro de Deleuze
sobre Espinosa. Perguntar pelo que um corpo pode ou qual a sua
estrutura (“fábrica”) é perguntar pela composição da sua relação, pela
natureza e limites do seu poder de ser afectado. Não sabemos
mesmo o que pode um corpo, diz Espinosa e diz Deleuze. Quer dizer
não sabemos de que afecções somos capazes, nem sabemos até
onde vai a nossa potência.
A introdução da explicação da noção de “Conatus”633 em
Espinosa permite-nos compreender que há uma essência ou grau de
potência que se quer preservar na existência. Designa, portanto, a
função existencial da essência. O conatus de um corpo simples só

631
DR, p. 55.
632
Lapoujade, David, “O corpo que não aguenta mais”, in Nietzsche e Deleuze
(org. Daniel Lins, Sylvio Gadelha), ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2002,
pp. 81-90.
633
Cf. Hardt, Michael, Gilles Deleuze an Apprenticeship in Philosophy, London,
Minnesota Press, 1993, p. 93.
305

pode ser um esforço para conservar o estado para o qual ele foi
determinado. O conatus de um corpo composto é um esforço para
conservar a relação de movimento e repouso que o define634. Numa
palavra, para Deleuze o conatus é o desejo.
Podemos ainda neste contexto perguntar, porquê então o
termo corpo?
Na verdade, está-se sempre a falar de um plano (de
pensamento, de consistência, de imanência, de movimento), de
ondas e gradientes, níveis, etc. O corpo que desfaz o organismo não
quer ser organismo, mas não o destrói, esvazia-o, ultrapassa-o. No
limite, arranca perceptos e afectos, abre-se. É um corpo aberto, quer
dizer, desarticulado, oscilante, indeterminado, “Corpo sem órgãos”.
“Como descrever esse corpo intenso que desfaz toda e qualquer
organização do sentido e da linguagem?” Pergunta que José Gil faz
quando analisa a evolução desta noção, desde Logique du sens até
ao Anti-Oedipe.635 Da noção ainda ambígua até à noção que se
transforma “e adquire uma precisão e uma consistência” é, diz José
Gil, “o desejo inteiro que nele se joga”.

No início do capítulo de Mille Plateaux, intitulado: “Como fazer


para si próprio um corpo sem órgãos”, Deleuze escreve que desde o
momento em que se deseja já se está no CsO (mesmo que ele não
esteja construído). Existe pois uma vocação própria do desejo para
construir corpos sem órgãos.
O desejo como se sabe, cria agenciamentos. O movimento de
agenciar abre-se sempre para novos agenciamentos, porque o desejo
não se esgota no prazer, mas aumenta ao agenciar-se. É assim
infinito, não parando de criar agenciamentos quando não há forças
exteriores que o entravem, o cortem, o rompam.

634
Deleuze, Gilles, Spinoza et le problème de l’expression, ed. Minuit,
Paris,1968, p. 210.
635
V. art. já citado, José Gil, pp.69-88.
306

O desejo visa, pois, antes de tudo, desejar. Agenciar ou


desejar é a mesma coisa. Porque o agenciamento do desejo abre-o e
prolonga-o.
Se o agenciamento abre o desejo e o aumenta, é porque se
tornou matéria do desejo, não pelo seu objecto, mas na sua própria
textura, participando na sua força, na sua intensidade. Dito de outra
maneira, o desejo não é só desejo de agenciamento, ele é
agenciamento, transforma o que “produz” ou constrói em si próprio.
Se o desejo de um pintor consiste em agenciar tais cores de tais
maneiras, é porque a força do quadro que daí resulta é desejo. As
cores e os espaços agenciados desejam.
Qualquer que seja o tipo de agenciamento, o desejo procura
fluir através dele. No pensamento, como no fazer do artista, ou no
desejo de falar ou de conectar com um outro fluxo de desejo, desejar
é agenciar para fluir, agenciar para que a sua própria potência de
desejar aumente, sem nada ter de esconder. O que faz com que o
desejo traga até si, transforme, metabolize todos os elementos em
que toca, atravessa ou integra. Para o desejo, tudo se deve tornar
desejo (e não desejável, objecto de desejo, ou melhor,: o desejável
não é senão o que se pode transformar em desejo).
Estas duas proposições - a. O desejo deseja agenciar ; b. O
desejo deseja fluir - exigem um espaço, um território para que o
desejo possa desejar. O que nos conduz a uma terceira proposição
sobre o desejo; c. É que lhe é necessário construir esse espaço ou
plano em que ele circule e se expanda, segundo a sua própria
potência. Um espaço de onde os obstáculos, as máquinas de quebrar
fluxos, de os contrariar, cortar, vampirizar, sejam varridos pela própria
intensidade do desejo.
O espaço é o CsO. Não se pode desejar sem ele. Temos,
então, de o desejar, porque é por ele que desejamos.
Vimos a propósito da estética de Deleuze que é o CsO que
assegura a “consistência” ( o suster em conjunto) das sensações. Ou
307

de blocos de sensações mais heteróclitos e mais intensos. Sem este


plano, que todo o artista constrói a obra não se sustentaria por si.
Porque toda a obra de arte é o resultado de visões “demasiado
fortes”, de sensações “demasiado potentes”, de combinações de
perceptos e de afectos que, precisamente, pela sua intensidade
ultrapassam toda a percepção e afecção. De maneira geral, a questão
torna-se então a de saber como construir um plano em que se
inscrevam essas forças heterogéneas e intensas. Não pode ser um
plano de inscrição de formas comuns; mais, as próprias formas
supõem uma matéria que as compõe, e é essa matéria que delas
constitui o suporte estético, que oferece ao trabalho do artista um
plano de consistência (“plano de composição”) das forças e das
sensações.
Eis porque Deleuze diz, em Mille Plateaux, que o CsO é antes
de mais uma questão de matéria: “O CsO faz passar intensidades,
que ele mesmo produz e distribui num spatium intensivo, inextenso.
Ele não é espaço nem está no espaço, é matéria que ocupará o
espaço (...).Ele é a matéria intensa e não formada, não estratificada, a
matriz intensiva, a intensidade=0, mas não há nada de negativo neste
zero, não há intensidades negativas nem contrárias. Matéria igual a
energia. Produção do real como grandeza intensiva a partir do
zero.”636 (É evidente que o plano tem que ter uma intensidade=0 para
nele deixar passar fluxos de intensidade máxima).
Ou ainda: “O CsO é feito de tal matéria que ele não pode ser
ocupado, povoado, senão por intensidades. Só as intensidades
passam e circulam”637.
O CsO é pois, antes de mais, uma questão de matéria.
Construir um CsO consiste em determinar a boa matéria a que
convém ao corpo que se quer edificar: um corpo de sensações
picturais, um corpo de “ondas doloríferas” no masoquista, um corpo

636
MP, pp. 189-190.
637
MP, p. 189.
308

de afectos amorosos no apaixonado, um corpo de pensamento no


filósofo.
De cada vez, o desejo escolhe a matéria adequada. Mas esta
matéria torna-se ela própria textura e matéria do desejo. “É que há
uma alegria imanente ao desejo como se ele se preenchesse de si
mesmo e a das suas contemplações.”638 É o desejo como desejo de
imanência, porque imanente a ele mesmo.
Parte-se do corpo orgânico, do “corpo próprio”, e constrói-se
um CsO. Desejar é exsudar uma matéria que envolve e impregna
todas as matérias transformando-as para as tornar aptas para toda a
espécie de operações. Quer dizer, precisamente, àquelas que são
necessárias à construção do CsO.
Por exemplo, o desejo transforma o corpo próprio: primeiro,
abre nele uma “profundidade” (spatium) que não é extensiva, abre
pois um corpo feito de órgãos e de vísceras, em seguida, ele dilata o
espaço do corpo assim criado, o qual é atravessado por um
movimento incessante de “assimilação”: o mundo torna-se desejável,
na medida em que ele se transforma em desejo.
É preciso partir do corpo próprio, do corpo organismo. Porquê?
Porque estamos sempre já presos nos estratos, que constituem um
obstáculo ao movimento do desejo. Mas também porque o corpo
próprio não é mais do que o resultado de uma interpretação-
construção do corpo, prestes a desfazer-se. O corpo empírico,
simplesmente empírico, não existe. Se partimos dele para construir
um CsO, é porque ele é feito dos materiais mais aptos a entrar na
confecção dessa matéria de que é feito o CsO.
Por outras palavras, o corpo dito empírico contém já – se
olharmos a uma escala “molecular” – tudo o que é necessário para
que ele seja transformado num outro tipo de corpo e de espaço. Em
particular, para que ele se torne um CsO. O corpo humano é o único
capaz de fornecer os materiais adequados à construção de um CsO.

638
MP, p. 192.
309

Então para responder à pergunta de Mille Plateaux, “como


fazer para si mesmo um corpo sem órgãos?” Deleuze e Guattari
dedicam-lhe um capítulo completo do livro. Referem-se longamente
ao “programa” do masoquista, ao corpo gelado do drogado, aos
procedimentos de prudência que é preciso adoptar para não “quebrar
os estratos”.
Não podemos desejar, “sem fazer um”. É uma experimentação
inevitável, a experimentação como operação. Este parece ser o
problema mais complexo. Como fazer um? Quais são as operações,
as condições, que o permitem? “Encontrem o vosso corpo sem
órgãos, saibam fazê-lo, é questão de vida ou de morte, de juventude
e de velhice, de tristeza e de alegria. E é aí que tudo se joga.”639
Fazer para si próprio um CsO não tem, afinal, regras pré-definidas, ou
mesmo quaisquer regras. Tudo é permitido desde “que não seja
exterior ao desejo nem transcendente ao seu plano, mas não pode
ser também interior às pessoas. A mais pequena carícia pode ser tão
forte quanto um orgasmo”.640
Há, portanto, que distinguir, o que se passa no CsO e a
maneira como se faz um. A dificuldade aumenta quando pensamos
que existem muitos tipos de CsO, quer dizer, o que se passa em cada
um é diferente, bem como os procedimentos, os meios e os modos,
etc. Haverá, perguntam Deleuze e Guattari, “um conjunto de todos os
CsO?”
Encontraremos a resposta mais adiante: ”O CsO é o campo de
imanência do desejo, o plano de consistência próprio ao desejo
(aonde o desejo se define como processo de produção, sem
referência a nenhuma instância exterior…).”641
Para constituir um CsO intensivo, podemos começar por ver a
formação de um “circuito” de intensidades. O exemplo que a seguir se
apresenta mostra-o: “Em 982-984 fez-se uma grande compilação

639
MP, p. 187.
640
MP, p. 194.
641
MP, p. 191.
310

japonesa de tratados taoístas chineses. Observamos aí a formação


de um circuito de intensidades entre a energia feminina e a energia
masculina, a mulher desempenhando o papel de força instintiva ou
inata (Yin), que o homem rouba ou que se transmite ao homem, de
tal maneira que a força transmitida pelo homem (Yang) se torna por
sua vez ainda mais inata: aumento de potências. A condição desta
circulação e desta multiplicação é que o homem não ejacule.”642
Tudo é permitido para que o campo de imanência ou plano de
consistência possa ser construído. Há mesmo uma inevitabilidade
(masoquista ou outra), ele constrói-se e surge em formações e
agenciamentos muito diferentes – “perversos, artísticos, científicos,
místicos, políticos”. Pode até construir-se “pedaço a pedaço”,
desarticulando-se do organismo.
Em síntese: há muitos e diferentes Corpos sem órgãos; o que
se passa e circula em cada um é também diferente; podemos falar de
um “conjunto eventual de todos os CsO, o plano de consistência (o
Omnitudo,643 a que chamamos por vezes CsO).”644 Mas, sendo o
plano de imanência sempre único, “sendo ele mesmo pura variação”
pode ainda discutir-se ( Deleuze e Guattari fá-lo-ão em Qu’est-ce que
la Philosophie?) e ter-se-á de explicar “por que razão há planos de
imanência variados, distintos, que se sucedem ou rivalizam na
história. (…) O plano é, pois, o objecto de uma especificação
infinita.”645
O problema é complexo. Não se trata somente de saber como
fazer ou construir um CsO, ou como produzir as intensidades
correspondentes sem as quais permaneceria esvaziado. Trata-se sim
de perguntar: “como chegar ao plano de imanência?”

642
MP, p. 194.
643
Em QF, cap. 2, a noção de “Omnitudo” vai corresponder a “Um-Todo”
poderoso, não fragmentado, ilimitado “que os compreende a todos num
mesmo e único plano[o planómeno]”.
644
MP, p. 195.
645
QF, p. 39.
311

Corpo sem órgãos ou plano de imanência interessam-nos aqui


especialmente porque, com estas duas noções, entramos no próprio
cerne do que é o processo de produção ou criação (de um corpo
mesmo, de um corpo de pensamento, de um corpo artístico, etc.). De
um corpo que é um “Lugar”.
Desfazer o organismo, apagá-lo (por exemplo, como faz
Bacon), deformá-lo, escavá-lo, desestratificá-lo, levá-lo a um limite, ao
maior limite, é fazê-lo devir. “Abrir o corpo” significa que ele fica
mesmo aberto (ou porque foi literalmente aberto, rasgado, estilhaçado
ou, ao contrário, porque foi orgânica e fisicamente fechado,
bloqueado e por isso pode abrir-se tornando-se outro, ou ainda,
porque é só um feixe de forças naturalmente aberto, cheio de
entradas e saídas, um corpo onde circulam intensidades máximas,
completamente desconectado com o que vai ser o corpo-organismo)
a novos circuitos e conexões, agenciamentos, blocos de sensações
(perceptos e afectos), posturas, movimentos, linhas guias para
direcções múltiplas, novas disposições, etc. Pode portanto escapar à
representação (noção desenvolvida por nós na primeira parte) e devir
noutras distribuições (nómadas) e hierarquias (ontológicas), entrar
noutros territórios, desterritorializar-se, quer dizer, tornar-se corpo
expressão, corpo de criação. É possível ter o corpo aberto, quando
num certo instante não se tem mais órgãos, ou ainda não se tem
órgãos ou se tem outros órgãos. O próprio corpo empírico646, mas já
não o corpo empírico trivial, expande-se e transforma-se num material
plástico, feito de matérias livres que se exprimem através de palavras,
cores, sons, movimentos, através de um estilo.
Existem seres que têm natural e espontaneamente o corpo
aberto, outros que nunca o tiveram, outros que o podem vir a ter,
outros que o podem produzir (construir ou fabricar). Para a sua
construção criar-se-ão condições tais que o que antes era sujeito
646
Este corpo que aqui é o “corpo empírico-transcendental [e que] entretém
uma relação especial com o paradoxo”. Para José Gil este corpo não pode
ser senão um “corpo paradoxal”. V. artigo do autor: “O corpo paradoxal” in
Nietzsche e Deleuze, ed. Relume Dumará, pp. 131-149.
312

transformar-se-á agora em “fluxos de intensidade, os seus fluidos, as


suas fibras, os seus contínuos e as suas conjunções de afectos, o
vento, uma segmentação fina, as micro-percepções”647

Mas pode-se falhar este CsO, e falha-se quando não se resiste


ao seu pior “inimigo”: a “organização orgânica dos órgãos”. Há até
muitas maneiras de o falhar.
O que devemos então fazer para não falhar?
1.“Arrancar a consciência ao sujeito para fazer um meio
de exploração, arrancar o inconsciente à significância e
à interpretação para fazer uma verdadeira produção, o
que não é certamente nem mais nem menos difícil do
que arrancar o corpo ao organismo”648.

2. Instalarmo-nos “num estrato, experimentar as


oportunidades que ele nos oferece, procurar aí um lugar
favorável, movimentos de desterritorialização eventuais,
linhas de fuga possíveis, experimentá-las, assegurar
aqui e ali conjunções de fluxos, procurar segmento por
segmento contínuos de intensidade, ter sempre um
pequeno pedaço de uma nova terra.”649

3. A três páginas do fim do capítulo sobre o CsO, em


Mille Plateaux, Deleuze e Guattari “aconselham” ainda
que se tenha uma relação “meticulosa” com os estratos;
um «diagrama» contra os programas ainda significantes
e subjectivos; “fazer bascular o agenciamento muito
docemente”.

647
MP, p. 200
648
MP, p. 198.
649
MP, p. 199.
313

Se chegamos ao plano de consistência, estamos aptos a


seleccionar ou a rejeitar, a fazer escolhas relativamente ao “bom”
CsO. Teremos finalmente os meios para eliminar os corpos vazios
que rivalizam com o CsO.
Vejamos como pode Bacon construir CsO:
Partamos do corpo vivido, se não temos escolha, do espaço de
figuração. Dele sairá a Figura, (corpo enquanto acontecimento, CsO),
o corpo que procura escapar-se dele mesmo, por um “espasmo”. O
corpo escapa-se ou como também já vimos abre-se. Ainda que
bloqueado, resta-lhe o “grito”. Pode contrair-se ao máximo e passar
por um pequeno orifício. “O grito de Bacon é a operação pela qual o
corpo inteiro se escapa pela boca.”650
Todo o corpo se escapa porque devém. O devir do corpo
permite-lhe ultrapassar o organismo e alcançar a potência mais
profunda e quase invivível.
Escapar-se ou exprimir-se desfazendo o organismo. O corpo é
percorrido por uma onda que traça linhas segundo a variação da sua
amplitude, aparecendo nesse momento uma sensação (determina-se
um órgão, que é sempre provisório).
Bacon que continuamente pintou corpos sem órgãos, segundo
Deleuze, consegue-o por duas vias: primeiro, porque isola e extrai do
figurativo, pré-pictural, a figura; rompe, rasga, parte, para libertar o
que está aprisionado; limpa com trapos, varre, apaga. O que parece
rudimentar é um “sistema de alta precisão”. A Figura é obtida numa
“operação que «consiste em destruir a clareza pela clareza», (…)[ou é
obtida] por procedimentos de marcas livres”651, acidentais, a-
significantes, que vão re-orientar o conjunto visual para extrair a
Figura reencontrada.
O diagrama (que já analisámos anteriormente) intervém,
partindo da figuração, para “misturar”, e dele deve sair uma outra
Figura. Um outro corpo. Quando mistura as linhas figurativas
650
FB, p. 17.
651
FB, p. 12.
314

prolongando-as, tracejando-as, induz entre elas distâncias e relações


novas. Assistimos à revelação de um corpo para lá do organismo.
Corpo que fende os organismos e os seus elementos impondo-lhes
um “espasmo”.
No caso de Bacon, segundo Deleuze, a pintura instala-se no
momento preciso em que o corpo se escapa. Traçam-se marcas ao
acaso, depressa… ( Em Mille Plateaux já tínhamos visto que depois
da marca, da assinatura, que é a formação aleatória (hasardeuse) de
um domínio652 , virá o estilo) depois com “prudência” surge a Figura.
As qualidades expressivas, as matérias de expressão entram em
relações variáveis libertam-se e libertam um material que capta forças
(captar forças é também a tarefa da pintura).
O acto de pintar, o estilo do pintor, conseguirá abrir, num rosto,
na pele de um rinoceronte vista ao microscópio, numa rua, um
deserto, um caos, mas com “prudência”. Para não se fixar no caos, o
diagrama não deve proliferar. O pintor deve fazer dele um uso
temperado. Surge então uma sensação. Uma onda percorre o corpo,
num tal nível ou limiar e um órgão determina-se, segundo a força
reencontrada, e este órgão mudará se a força mudar ou se
passarmos de nível.
“O corpo sem órgãos é então o lugar de uma variação intensiva
dos órgãos, uma espécie de linha de histeria que não se divide sem
mudar de natureza”653.
Linha que está demasiado presente. Uma espécie de histeria
que a pintura torna arte. O histérico, diz Deleuze, é aquele que impõe
a sua presença, “mas também aquele para quem as coisas e os seres
estão presentes, demasiado presentes, e que dá a toda a coisa e
comunica a todo o ser este excesso da presença”654. Que histeria é
esta? É a que dá a ver directamente a presença. Com as cores e com
as linhas torna o olho um órgão provisório, “indeterminado e

652
MP, p. 389.
653
J.-C. Martin, Variations, pp. 49-50.
654
FB, p. 36.
315

polivalente” que não dura senão o que dura a passagem da onda.


“Não é uma histeria do pintor, é uma histeria da pintura.” O CsO
histérico com órgãos provisórios, que capta forças, por isolamento,
deformação, dissipação, etc., encontra a sua consistência na sua
expressão. Quer dizer, existem ainda forças que o pintor tem de
tornar visíveis, como por exemplo as forças do tempo, porque é essa
a sua tarefa, mas tornar “o Tempo sensível em si mesmo, tarefa
comum ao pintor, ao músico, às vezes ao escritor. É uma tarefa fora
de toda a medida ou cadência.”655
Francis Bacon é uma obra sobre a lógica da sensação e esta
“lógica” constitui a pintura. Mas as leis, diz Deleuze, não têm nada a
ver com uma fórmula consciente a aplicar. A lógica é “irracional”, não
há leis nem regras. A sensação vai abrir-se num CsO, intenso e
intensivo. O Tempo torna-se sensível.
O pintor pode conseguir um máximo de unidade, “um imenso
espaço-tempo que reúne todas as coisas, mas introduzindo entre elas
as distâncias de um Saara, de séculos de um Aiôn”.656Nos quadros, o
espaço é a cor, o tempo a luz, e há corpos, muitos corpos. Os
quadros de Bacon são feitos de pura matéria intensiva, fundo comum
às palavras, às linhas, às cores e aos sons.
“Não é o mesmo movimento de criação: um vai do soma ao
germe, e o outro do germe ao soma. O ritornelo do pintor é como o
avesso do do músico”657 . Se assim é, o ritornelo do pintor é de
qualquer modo um “prisma, um cristal de espaço-tempo”.658

O Corpo sem Órgãos é um conceito fundamental da filosofia


deleuziana e, em particular, da sua ontologia. Resumiremos e
ordenaremos em seguida os diversos aspectos que acabámos de
analisar:
655
FB, p. 43.
656
FB, p. 56.
657
MP, p. 430.
658
Idem.
316

1. O CsO resulta de uma transformação do corpo trivial, do


“corpo próprio”, em corpo intensivo de desejo, ou melhor, em
superfície única que induz e favorece a circulação de fluxos de
desejo na sua intensidade máxima. É uma superfície paradoxal,
sem interior, sem orifícios, plana (assim o masoquista constrói o
seu CsO cosendo a boca, o nariz, as orelhas, o ânus, etc.).

2. Os fluxos de intensidade circulam entrando em


combinação com outros fluxos diferentes. O CsO permite a
coexistência e conexão dos elementos (intensidades, ritmos,
fluxos) mais heterogéneos e mais díspares, sem que a energia
desencadeada o rompa (o rompimento, o falhanço podem
acontecer antes ou no decurso da construção do CsO: é o caso
dos drogados e de todos os que quebram brutalmente os estratos,
sendo estes sedimentações de toda a espécie, de organizações
sensório-motoras, de pensamento, etc., que impedem o livre fluir
da energia). O CsO é um plano de consistência.

3. O CsO não é “contra” os órgãos, mas contra o organismo,


quer dizer contra os estratos e organizações interiorizadas,
incorporadas numa fisiologia energética de que os órgãos, e
mesmo os sistemas anatómicos (como a Medicina descreve), são
os alicerces. É contra este tipo de organismo e de organização
que se elabora o desejo e, portanto, o CsO. Não sendo contra os
órgãos, uma vez constituído, o CsO apela à criação de outros
órgãos, pontos singulares intensivos, emissores de intensidades
em conexão com outros pontos singulares (por exemplo, o corpo
do masoquista, depois de transformado, cosido, fechado, cria os
seus próprios órgãos de prazer de onde partem ondas doloríferas
que vão de um ponto (órgão) a outro. O masoquista não se faz
apenas chicotear em tal parte do corpo: a dor que sente encadeia-
se com outras ondas de prazer doloríferas, com posturas rituais e
317

palavras pronunciadas em tal momento, etc. Os ouvidos, a pele,


as posições corporais, o sofrimento moral (humilhação), etc.,
formam mecanismos complexos do CsO masoquista em que
novos órgãos se fixaram).
4. CsO é virtual. Os fluxos de intensidades diferenciais são
virtuais, o que não significa “latentes” ou “potenciais”, mas pelo
contrário, reais. Virtual=real para Deleuze. E tudo o que se passa
no CsO (formação de singularidades ou “hecceidades”), é virtual e
da mais poderosa textura do real. As intensidades que emanam
de tal quadro de Bacon ou de Velasquez estão num plano virtual
de imanência. O “vivido” é aqui, pois, transformado: não é o
vivido da consciência fenomenológica, mas o devir intenso do
pensamento e do corpo (imanentes um ao outro), da sensação e
do conceito, dos afectos e das “subjectividades” (que não são o
sujeito659). No CsO, o pintor, o escritor entram em múltiplos
devires nos respectivos planos de imanência, devir-mulher, devir-
animal, devir-rapariga, devir-imperceptível, devir-mineral. Sendo
múltiplos e feitos de múltiplas matérias, os CsO dos pintores têm
uma textura diferente das dos escritores (CsO de palavras), etc.
Assim, a superfície plana do CsO é o palco de intensos
movimentos de uma extrema complexidade: circulação, conexão,
agenciamentos de fluxos, devires que logo se encadeiam e se
desfazem com as velocidades e lentidões mais variáveis, criações
de espaços (e espaços-tempos) mais insólitos obedecendo a
geometrias não-euclidianas (por isso Deleuze refere-se amiúde a
Rieman e a espaços fractais).

5. Finalmente, para o que nos interessa directamente, é


evidente que o estilo nasce num CsO, que ele supõe um CsO,
que ele pode contribuir, na sua própria construção, para a
construção do CsO. Só há estilo num CsO, sendo ele uma “linha
659
“Subjectividade” é um conceito que Guattari foi buscar a Foucault e que
Deleuze poucas vezes emprega.
318

variável contínua” (implicando o abalo da língua materna (estrato)


e a integração intensiva dos elementos mais heteróclitos
transformados em afectos e perceptos, Visões e Audições). Só
um suporte, num meio de circulação de intensidades
heterogéneas, um meio muito particular tal como o CsO, lhe daria
a consistência para que ele pudesse suster-se por si, como o
bloco de sensações que ele cria.

6. Neste sentido, cabe falar aqui no estilo como “linha de


universo”. A continuidade, o desenrolar-criação do estilo
desenham uma “linha de universo”, o que o enquadra
imediatamente no pensamento ontológico deleuziano. O CsO,
enquanto CsO de todos os CsO ou matéria de todas as matérias
é o plano em que a arte traça as suas linhas, do corpo ao cosmos.
O CsO é Caosmos, enquanto ele é espaço de criação, o espaço
único de criação (de tal forma que se poderia dizer, à maneira das
primeiras linhas do capítulo de Mille Plateaux, “como fazer para si
próprio um corpo sem órgãos”, quer se queira ou não, se se cria,
já se está criando um CsO).
319

CONCLUSÃO

Estética e Ontologia - A Imagem-Cristal

660
Como observa François Zourabichivili a noção de “imagem-
cristal” é das mais difíceis do pensamento de Deleuze, porque parece
condensar numa só ideia toda a sua filosofia. Poderíamos acrescentar,
com Christine Buci-Glucksmann661, que não é uma ideia sem
ambiguidades, dando às vezes a impressão de estar em contradição
com certos textos de obras anteriores à L’ Image-Temps onde ela se
elabora.
Surgindo na continuidade de uma série de análises sobre a
“história do cinema”662, o seu alcance cobre todo o domínio das artes,
como o próprio Deleuze escreve. É, pois, uma noção-chave da
estética deleuziana.
Nas suas obras sobre o cinema, Deleuze663 divide essa história
em duas grandes etapas: a do cinema da imagem-movimento e a do
cinema da imagem-tempo. A grande ruptura, entre os dois tipos de
imagens que o cinema utiliza, situa-se por volta da Segunda Grande
Guerra, sobretudo depois do neo-realismo dos anos cinquenta. Não
sendo uma história linear (teremos então duas imagens de natureza
diferente e heterogéneas, uma a que poderíamos chamar clássica e
outra moderna), já antes da guerra grandes autores de cinema
experimentam e utilizam a imagem-tempo: Ozu, Max Ophuls…
No total, os cineastas que Deleuze toma como mais inovadores
na construção da imagem-tempo ou imagem-cristal são: Alain
Resnais, Orson Welles, Godard, Renoir, Rivette.

660
François Zourabichvili, Le vocabulaire de Deleuze, Paris, Ellipses, 2003,
pp. 19-27.
661
Christine Buci-Glucksmann, La folie du voir, Paris, Galilée, 2002.
662
Concebida de um modo bem particular, ver Pourparlers, p. 67.
663
Cf. Giorgio Agamben, Image et mémoire, Paris, Desclée de Brouwer,
2004, pp. 88-92.
320

O que é a imagem-cristal? Por oposição à imagem-movimento,


dir-se-á, em primeiro lugar, que ela não está subordinada à
representação do movimento. Na sua primeira etapa, o cinema
procura dar a impressão de um tempo cronológico, sucessivo,
narrativo664, submetendo as técnicas da montagem à representação
do movimento. Este, resultando da decomposição das suas diferentes
partes (como nas fotografias de Muybridge), e da sua recomposição
fazendo passar mais de vinte e quatro imagens por segundo, estava,
no fundo, ligado a esquemas sensório-motores; e se o movimento
dava a representação do tempo (sobretudo da narração), estava
também directamente subordinado ao movimento dos seres filmados,
da sua marcha, da sua expressividade, das suas posturas, dos seus
comportamentos. Numa palavra, o cinema da imagem-movimento
prendia o tempo a esquemas sensório-motores.
Ao contrário, a imagem-tempo (espécie de regime cristalino)
desprende-se da representação das figuras em movimento, para
ganhar uma independência plena, relativamente à imagem-
movimento (espécie de regime orgânico). São dois regimes
diferentes. Deleuze mostra como a introdução e a pregnância que
certos signos ópticos e sonoros (“opsignes” e “sonsignes”) tomam na
imagem, relativamente à representação do movimento, transformam a
imagem cinematográfica (mas também a contribuição de outros
elementos decisivos como o plano fixo e a “montagem-cut”665).
Que acontece, então? A construção de uma imagem, que vai
além da imagem-movimento no que dá a ver. “Uma situação
puramente óptica e sonora não se prolonga em acção, como também

664
Depois, a narração, não pode já ser considerada como um dado primeiro,
quer dizer, não é dada directamente na imagem. Na verdade, surgirá de
consequências indirectas que decorrem da organização dos signos na imagem.
A existir, a narração dependerá então do que nós pudermos ver no tempo e no
movimento presentes na imagem.
665
Sobre tudo isto, e a complexidade deste processo de “inversão” da imagem-
movimento em imagem-tempo, ver L’Image-Temps, Cinema 2, Paris, Minuit,
1985, cap. 1.
321

não é induzida por uma acção. Ela leva a captar, é suposta levar a
captar qualquer coisa de intolerável, de insuportável. Não uma
brutalidade como agressão nervosa, uma violência amplificada que se
pode sempre extrair das relações sensório-motoras na imagem-
acção. Não se trata também de cenas de terror, se bem que possa
haver às vezes cadáveres e sangue. Trata-se de qualquer coisa de
demasiado poderoso, ou de demasiado injusto, mas por vezes
também de demasiado belo e que, desde logo, excede as nossas
capacidades sensório-motoras. «Stromboli»: uma beleza demasiado
grande para nós, como uma dor demasiado forte. […] De qualquer
modo, alguma coisa se tornou demasiado forte na imagem.”666 Ou
ainda: “Do próprio insignificante, [Ozu] extrai o intolerável, com a
condição de alargar à vida quotidiana a força de uma contemplação
cheia de simpatia e de piedade. O importante é sempre que a
personagem ou o espectador, e os dois juntos, se tornem visionários.
A situação puramente óptica e sonora acorda uma função de
vidência, ao mesmo tempo fantasma e constatação, crítica e
compaixão, enquanto que as situações sensório-motoras, por mais
violentas que sejam, dirigem-se a uma função visual pragmática que
«tolera» ou «suporta» mais ou menos tudo, desde que seja inserido
num sistema de acções e reacções.”667
A imagem-tempo arranca os afectos às afecções quotidianas,
cria Audições e Visões, situações-limite estéticas. Ao mesmo tempo
que a imagem-tempo acede a um excesso muito para além do
sensório-motor, é toda a “representação” do tempo que muda: “A
imagem-movimento não desapareceu, mas não existe já senão como
primeira dimensão de uma imagem que não cessa de crescer em
dimensões. Não falamos das dimensões do espaço, já que a imagem
pode ser plana, sem profundidade, e tomar, por isso mesmo, ainda
mais dimensões ou potências que excedem o espaço. (…) [Como por
exemplo], enquanto a imagem-movimento e os seus signos sensório-
666
IT, p. 29.
667
IT, p, 30.
322

motores não estavam em relação senão com uma imagem indirecta


do tempo (dependente da montagem), a imagem óptica e sonora
pura, os seus opsignos e sonsignos ligam-se directamente a uma
imagem-tempo a que se subordina o movimento. É esta inversão que
faz não já do tempo a medida do movimento, mas do movimento a
perspectiva do tempo: constitui todo um cinema do tempo, com uma
nova concepção e novas formas de montagem (Welles, Resnais).”668
Uma nova concepção que se quer libertar também dos clichés,
romper com um certo tempo empírico e entrar em relações que vindas
de outras forças dão a ver directamente o tempo.
Um terceiro aspecto marca a diferença entre a imagem-tempo
e a imagem-movimento: a referência a personagens exteriores, ao
objecto filmado, ao “referente”, em suma, deixa de dominar a imagem
e “subordina-se agora aos elementos e relações interiores que
tendem a substituir o objecto, a apagá-lo à medida que ele aparece,
deslocando-o permanentemente. […] O cinema vai constituir uma
analítica da imagem […]. Mesmo móbil, a câmara não se contenta já
ora de seguir o movimento dos personagens, ora de operar ela
própria os movimentos de que eles não são senão o objecto, mas em
todos os casos ela subordina a descrição do espaço às funções do
pensamento.”669
Este último aspecto que liga estreitamente a imagem-tempo ao
pensamento vai ter, como veremos adiante, incidências sobre a
própria ideia de uma “estética ontológica”.
O que é então a imagem-cristal? É, por assim dizer, a
“essência” da imagem-tempo, o tempo em estado puro, o que esta
revela (e nos revela) da sua natureza mais íntima na sua relação ao
tempo670.
Se a imagem-tempo não representa já directamente o objecto,
e se ela apresenta directamente o tempo, então a apresentação do
668
IT, p. 34.
669
IT, pp. 34-35.
670
Tempo ou ideia de tempo em que todos os níveis da duração parecem
poder coexistir.
323

objecto depende da maneira como ela faz com o tempo. (É, como diz
Deleuze, a maneira própria do cinema moderno operar a sua
revolução copernicana). Ora a questão da apresentação do objecto é
fundamental para toda a espécie de arte (e não só para o cinema).
“O cinema não apresenta imagens, rodeia-as de um mundo”671 –
enunciado válido para toda a forma de arte672.
Toda a imagem de objecto implica um mundo de imagens que
forma um mundo. Imagens-recordações, imagens-sonho, imagens-
mundo. Não há percepção actual de um objecto que não suponha
todo o tipo de imagens virtuais – Deleuze vai recorrer aqui, como em
toda a sua teoria do cinema, a Bergson, de que retoma,
transformando-a, a ideia de virtual.
Assim, na percepção do objecto actual, existem dois circuitos
de imagens virtuais: um circuito “longo” que contém as imagens-
recordações, etc., e um circuito “curto”, o “mais pequeno circuito” de
imagens virtuais que remetem directa e indirectamente para o objecto.
São “reflexos”, como a imagem do espelho; são as recordações em
conexão imediata com a percepção. Ora, se pensarmos que este
circuito curto é uma espécie de “curto-circuito” do circuito vasto de
todas as recordações mais longínquas, uma espécie de resultado da
contracção do circuito “largo”, poderemos dizer que cada objecto
percepcionado é formado por uma face virtual (um “reflexo”) e uma
face actual. A “contracção” significa aqui que na percepção se
concentraram imagens virtuais que não “vemos” normalmente, mas
sem as quais seria impossível percepcionar, dar significações aos
elementos sensoriais captados no objecto actual. Se este se
reduzisse ao “apenas visto”, não seria visto, nada seria
percepcionado. Há pois que admitir que toda a imagem actual se

671
IT, p. 92.
672
Como o afirma ainda Deleuze em Francis Bacon, este enunciado
aparentemente trivial põe problemas estéticos fundamentais, como veremos.
Ver, por exemplo, Nelson Goodman Ways of Worldmaking, Hackett Pubblishing
Company,1978.
324

reduplica numa imagem virtual correspondente (a sua imagem virtual,


e não qualquer outra).
Uma outra razão, mais forte, obriga-nos a afirmar a existência
de uma face virtual do objecto. Razão que remete para a teoria
bergsoniana do tempo e, em particular, para a maneira como Deleuze
a reformula em Différence et répétition, na sua própria elaboração da
construção das dimensões temporais673.
O argumento é bergsoniano, reproduzido em Différence et
répétition e em L’ Image-Temps: se o presente não fosse já passado,
ou se não contivesse uma dimensão do passado (desse passado
“transcendental” bergsoniano, que nunca foi presente), então seria
incompreensível que ele jamais passasse. Assim, no presente, nós
somos ao mesmo tempo infância, juventude, velhice – repete Deleuze
em L’ Image-Temps, citando Fellini. Coexistem múltiplos passados no
nosso presente; coexistem com o presente (e também com o futuro
em que se projecta o presente).
Não existe pois um presente isolado, estanque, separado do
passado. E todo o objecto dado no presente, tem, nesse presente, a
sua imagem virtual; é um objecto “biface”. 674
Se isto é verdade para a percepção não estética, esta
intensifica estas características, transformando-as de um certo modo.
É a imagem-tempo que melhor apresenta o carácter duplo
virtual-actual, do objecto. Em primeiro lugar, as duas faces da imagem
não são separáveis: “há «coalescência» entre as duas. Há formação
de uma imagem biface, actual e virtual”675. O “e” revelar-se-á
essencial, como partícula gramatical marcando a coalescência do
virtual e do actual com um cunho ontológico. Por outro lado, esta
unidade muito especial (unidade diferencial e diferenciante) indica que
não se trata de dois aspectos ou duas partes do objecto, mas que

673
Ver, DR, cap. II.
674
As duas partes do Anexo: cap. V, “O actual e o virtual” de Dialogues,
resumem explicitam de maneira extremamente clara os circuitos e trocas do
virtual e do actual que são expostos na IT, publicados dez anos antes.
675
IT, p. 93.
325

esta é, internamente, simultaneamente e inseparavelmente, virtual e


actual. Seria pois impossível considerar a face virtual, por exemplo,
independentemente ou fazendo abstracção da face actual.
Em segundo lugar, e como que decorrendo desta unidade
paradoxal, uma dinâmica particular não pára de “deslocar” as duas
faces: “É como se uma imagem em espelho, uma foto, um bilhete
postal se assinassem, adquirissem independência e se transferissem
para o actual, mesmo que a imagem actual volte ao espelho, retome
lugar no bilhete postal ou na foto, segundo um duplo movimento de
libertação e captura.”676
Esta dinâmica implica uma reversibilidade constante do actual
e do virtual, à volta do ponto de coalescência, ou de
indiscernibilidade. Porque a propriedade maior da imagem biface é
que separa o objecto em duas imagens distintas mas indiscerníveis.
“… este ponto de indiscernibilidade é precisamente o mais pequeno
círculo que o constitui, quer dizer a coalescência da imagem actual e
da imagem virtual, a imagem biface, ao mesmo tempo actual e virtual.
[…] eis que o opsigno [agora cortado do seu prolongamento motor]
encontra o seu verdadeiro elemento genético quando a imagem
óptica actual cristaliza com a sua própria imagem virtual, no pequeno
circuito interior. É uma imagem–cristal que nos dá a razão, ou antes, o
«coração» dos opsignos e das composições. Estas não são já senão
estilhaços da imagem- cristal.”677
As duas faces, virtual e actual, não se confundem, mas trocam
de lugar constantemente, de tal modo que se torna impossível dizer o
que é actual e o que é virtual. Se olharmos bem um rosto – quer dizer,
à escala das pequenas percepções leibnizianas – vemos bem uma
figura já conhecida mas que se povoa de repente de múltiplos traços,
expressões, sentidos, movimentos que surgem como pela primeira
vez e que não apareciam na percepção actual. Há “confusão” entre o
virtual e o actual, mas “a confusão faz-se apenas «na cabeça» de
676
IT, p. 93.
677
IT, pp. 93-94.
326

alguém. Enquanto que a indiscernibilidade constitui uma ilusão


objectiva: ela não suprime a distinção das duas faces, mas torna-a
indeterminável, cada face representando o papel da outra numa
relação que se deve qualificar de pressuposição recíproca, ou de
reversibilidade. (…) São ‘imagens mútuas’, como diz Bachelard, em
que se opera uma troca.”678
Por isso se podem dizer imagens-cristal. Como o cristal, as
suas faces difractam outras imagens que podem ser bifaces, como
no mais pequeno circuito, ou proliferar em circuitos cada vez mais
vastos. A imagem-cristal propriamente dita, - aquela de que partem as
outras faces e as outras imagens virtuais - é biface, sendo as duas
faces distintas mas indiscerníveis. (No cinema, o “hors-champ” será
interpretado por Deleuze como o espaço reservado à outra face,
virtual ou actual. Por exemplo, a imagem no espelho, em Ophuls ou
Losey, deixa “hors-champ” a imagem actual ficando apenas o virtual
no campo do olhar679).
As imagens actuais podem “cristalizar”, concentrando em si um
duplo virtual, ou circuitos mais ou menos vastos de imagens-memória.
A “cristalização” vai assim formar um processo de certo modo inverso
ao da “actualização” a partir do virtual, “actualização” ou
“diferenciação” que Différence et répétition tão longamente estudara.
Aliás, cabe aqui marcar alguns pontos de comparação com
Différence et répétition: limitar-nos-emos, por agora, à própria noção
de “cristalização” e à ideia do objecto actual ter sido caracterizado,
mais acima, a propósito dos dinamismos espácio-temporais,
estudados em Différence et répétition, como “empírico-
transcendentais”.
A imagem-cristal forma-se quando os circuitos de imagens
virtuais “cristalizam” à volta de uma imagem actual, quer dizer,
incorporam-se nesta, tornando-se dela indiscerníveis.

678
IT, p. 94.
679
IT, pp. 94-95.
327

Ora, a imagem-cristal cinematográfica, tal como o mostra o


exemplo célebre, várias vezes citado por Deleuze, da cena dos
espelhos da Dama de Xangai de Orson Welles, dá a ver (como um
revelador) o virtual nas suas superfícies cristalinas. Isto é válido para
todas as imagens-cristais de toda a forma estética. Pode-se então
afirmar que a imagem artística revela as imagens virtuais do que
apresenta no plano do actual. Revelação que pode ser instantânea ou
seguir um processo mais longo. De qualquer modo, a cristalização
como processo inverso da actualização – na medida em que a
revelação faz parte do processo, e vai do actual ao virtual, - não lhe é
simétrica. Estamos longe da complexidade dos mecanismos descritos
em Différence et répétition – de que fazem parte os dinamismos
espácio-temporais, a dramatização, a diferenciação.
No entanto, a imagem-cristal implica um outro tipo de
complexidade: “Distintos, mas indiscerníveis, tais são o actual e o
virtual que não param de se trocar. Quando a imagem virtual se torna
actual, ela é então visível e límpida, como no espelho ou na solidez
do cristal terminado. Mas a imagem actual torna-se virtual por si só,
remetida para alhures, invisível, opaca e tenebrosa, como um cristal
acabado de ser extraído da terra. O par actual-virtual prolonga-se,
pois, imediatamente em opaco-límpido, expressão da sua troca.”680
Retenhamos que a dinâmica da troca virtual-actual inverte
constantemente o processo de cristalização em actualização e
reciprocamente. Assim, o que chamámos “cristalização” comporta ao
mesmo tempo uma virtualização e uma actualização. Esta última é o
virtual tornado actual, por troca de lugar com a imagem actual que se
torna virtual, adquirindo uma opacidade que não tinha.
Qual a relação entre esta actualização e a actualização-
diferenciação-individuação que nos é descrita em Différence et
répétition? O que em L’Image-temps aparece como instantâneo ou
quase poderá incluir em si a formação do objecto actual através dos

680
IT, p. 95.
328

dinamismos espácio-temporais? Ou haverá diferença ou mesmo


incoerência dos dois processos? O pensamento de Deleuze quanto
ao virtual e à sua actualização ter-se-á modificado tanto, dos textos
de Différence et répétition aos de L’ Image-Temps que não se poderá
já reconhecer os primeiros nestes últimos?
Inclinamo-nos para a hipótese contrária, mas com uma
ressalva: o pensamento expresso em L’Image-Temps afinou-se,
elaborou-se, de certa maneira retomando mas simplificando (e dando-
lhe um outro tipo de complexidade) a ideia de actualização, expressa
em Différence et répétition. Para justificar esta posição, daremos
alguns exemplos: 1. No Anexo dos Dialogues com Claire Parnet, de
1995, - data posterior à da publicação de L’ Image-Temps, de 1985, -
Deleuze, ao mesmo tempo que explicita o movimento da imagem
virtual, e dos dois circuitos (curto e longo) das imagens virtuais,
refere-se aos dinamismos espácio-temporais681. Numa palavra, a
captação do virtual pela imagem actual equivale a todo um processo
de criação dinâmica de espaços-tempos actuais. 2. Lembremos que
no fim da exposição dos dinamismos espácio-temporais, as fórmulas
deleuzianas contraem-se, reúnem-se em enunciados-síntese que se
assemelham aos de L’ Image-temps. Em Différence et répétition por
exemplo, diz-se muito pouco sobre imaginação (ou o imaginário), a
imaginação surge, no entanto, com uma operatividade decisiva. “Se
cabe ao pensamento explorar o virtual até ao fundo das suas
repetições, cabe à imaginação captar os processos de actualização
do ponto de vista dessas retomadas ou desses ecos. É a imaginação
que atravessa os domínios, as ordens e os níveis, abatendo as
divisórias, coextensiva ao mundo, guiando o nosso corpo e inspirando
a nossa alma, apreendendo a unidade da natureza e do espírito,
consciência larvar, indo sem parar da ciência ao sonho e
inversamente.”682

681
D, p. 179.
682
DR, p. 358.
329

Já antes comentámos este texto, contudo neste momento


podemos analisá-lo com os elementos novos de que dispomos. A
imaginação neste texto é o que permite orientar o processo de
actualização, que, nos seus movimentos capta também movimentos
que atravessam tudo e fabricam imagens.
Numa entrevista com o titulo: “Sur le régime cristallin”683
Deleuze responde, a propósito do imaginário, começando por
questionar o próprio conceito, dizendo mesmo que não é um conceito
a que atribua muita importância. O que nesta resposta (e também nos
seus livros sobre o cinema) conta para Deleuze não é reflectir sobre o
imaginário, mas sim tratar do fenómeno cristalino e no que nele
ocorre. O imaginário supõe uma cristalização física, química ou
psíquica, não sendo por aqui que se encontra uma boa definição. O
que é realmente importante é que na imagem-cristal se define um
circuito de trocas. Trocas entre imagens, o virtual torna-se actual e
inversamente, o mesmo para os pares opaco-límpido e germe-meio.
Resumindo: o imaginário caracteriza-se por uma espécie de
ambiguidade, por um lado, seria o conjunto das trocas, a imagem-
cristal, por outro, não definiria nada. Imaginar, por seu lado, seria
“fabricar imagens-cristal, fazer funcionar a imagem como um cristal.
Isso não é o imaginário é o cristal que tem uma função heurística.”684
A imaginação terá então em ambos os textos uma função muito
específica: fabricar e captar um certo tipo de imagens.
As imagens por ela fabricadas estão numa “troca dissimétrica,
desigual e sem equivalente” que as autonomiza. As relações com o
tempo já não são empíricas, nem metafísicas, mas transcendentais e
directas. O cristal assegura o desdobramento, a troca incessante.
“Nós estamos na situação de uma imagem actual e da sua própria
imagem virtual, se bem que já não haja encadeamento do real com o
imaginário, mas indiscernibilidade dos dois, numa perpétua troca. (…)
Elevando-se à indiscernibilidade do real e do imaginário, os signos de
683
In Hors Cadre, nº4, 1986, pp. 39-45. Retomada mais tarde em Pourparlers.
684
PP, p.94.
330

cristal ultrapassam toda a psicologia da recordação e do sonho, e


também toda a física da acção. O que nós vemos no cristal não é já o
curso empírico do tempo como sucessão685.
A imagem ou o objecto é virtual-actual, transcendental-
empírica, cristal.
Vimos como uma tal ideia do objecto “empírico-transcendental”
- como o qualificámos, o termo que o designa não sendo de Deleuze,-
supõe uma crítica do “empírico” puro, como resultado de uma
construção da doxa da filosofia (Kant)686. Ora o que é o objecto
biface, actual-virtual do Anexo dos Dialogues e de L’ Image-temps,
senão um objecto empírico-transcendental? Mais: a crítica ao
empírico kantiano, objecto da experiência sensível, surge agora, em
L’Image-temps, explicitamente formulada.
Como? Vimos que a estrutura da imagem-cristal implica a
coalescência do actual-virtual, e do límpido-opaco. Uma outra
propriedade pertence ao cristal: a de transformar o meio, informe, a
que o germe do cristal dará forma e consistência. A operação
genética da estrutura cristalina é um devir. “O cristal não se reduz
mais à posição exterior de dois espelhos frente a frente, mas à
disposição interna de um germe relativamente a um meio”687. O meio
reenvia ao todo das imagens virtuais opacas, ainda informes; mas no
plano do cristal existe sempre uma imagem-germe, límpida e
cristalina, que faz germinar, proliferar e actualizar o meio, de maneira
a que ele ganhe a limpidez do actual.
Assim, “a troca ou a indiscernibilidade prosseguem, pois, de
três maneiras no circuito cristalino: o actual e o virtual (ou os dois
espelhos frente a frente [na obra de Zanussi]); o límpido e o opaco; o
germe e o meio.”688 Estes três aspectos da dinâmica da estrutura

685
IT, p. 358.
686
IT, p. 355: “No cinema moderno, ao contrário, a imagem-tempo não é mais
empírica, nem metafísica, ela é «transcendental» no sentido que Kant dá à
palavra: o tempo sai dos seus eixos, e apresenta-se em estado puro.”
687
IT, p. 96.
688
IT, p. 96.
331

cristalina fazem do cristal a superfície indiscernível da tripla


indiscernibilidade. O cristal é o entre dos três pares da troca de
imagens no movimento da imagem cristal.
A “irreductibilidade” da imagem cristal reside, no entanto, “na
unidade indivisível de uma imagem actual e da «sua» imagem-
virtual.”689 Retomando a ideia de Bergson, já referida, que o presente
tem de ter já passado para que possa passar, fazendo assim coexistir
o passado (transcendental) e o presente, Deleuze afirma: “o presente
é a imagem actual, e o seu passado contemporâneo é a imagem
virtual, a imagem em espelho”690. A partir daqui, decorre um
enunciado fundamental para a teoria da imagem-cristal: o cristal dá a
ver a cisão do presente e do passado, ao mesmo tempo
indiscerníveis e distintos. Ora “o tempo consiste nessa cisão, e é ela,
é ele que se vê no cristal”691 . O tempo forma-se ao desdobrar-se “a
cada instante” em presente e passado. “É preciso que o tempo se
cinda ao mesmo tempo que se afirma ou se desenrola: ele cinde-se
em dois jactos dissimétricos dos quais um faz passar todo o presente
e o outro conserva todo o passado.”692
É esta cisão, como “operação mais fundamental do tempo”693
que constitui a imagem-cristal. Assim a cisão entre passado e
presente faz passar o tempo, não o tempo cronológico, Chronos, mas
o Tempo não-cronológico, Cronos694.
A introdução deste tempo, Cronos, não-cronológico, mas que
se desenrola e se dá a ver na imagem-cristal, remete para as
dimensões temporais do Acontecimento (analisadas em Logique du
sens, e que Deleuze caracteriza como Chronos – tempo do estado de
coisas, tempo empírico -, e Aïon – tempo intemporal, incorporal do
Acontecimento, tempo do sentido). De certo modo, aqui também, na

689
IT, p. 105.
690
IT, p. 106.
691
IT, p. 109.
692
Idem.
693
IT, p. 108.
694
IT, p. 109.
332

cisão entre Chronos e Aïon, há como que a cisão que faz surgir a
estrutura cristalina do tempo. Mas agora, a cisão do presente e do
passado inaugura a fundação da passagem do tempo actual-virtual,
tempo não empírico, tempo “empírico-transcendental”, na terminologia
de Différence et répétition.
O que se vê no cristal é essa cisão como passagem do “Tempo
em estado puro”, “o tempo em pessoa”695. E o cristal situa-se no ponto
exacto de indiscernibilidade das duas imagens ou dimensões. A
fundamentação do tempo – a cada instante de cada presente – pela
cisão, faz desenrolar o tempo, constituindo-o em passado, presente e
futuro. É toda uma teoria da formação das dimensões do tempo que
se expõe em L’Image-Temps e que retoma, transformando-a, a
exposição de Différence et répétition: “Os circuitos mais ou menos
vastos e sempre relativos, entre presente e passado, remetem, por
um lado, para um pequeno circuito interior entre o presente e o seu
próprio passado, entre uma imagem actual e a sua imagem virtual;
por outro lado, para circuitos eles próprios virtuais cada vez mais
profundos, que mobilizam de cada vez todo o passado, mas nos quais
os circuitos relativos se banham ou mergulham para se desenrolar
actualmente e trazer a sua colheita provisória. A imagem-cristal tem
esses dois aspectos: limite interior de todos os circuitos relativos, mas
também invólucro último, variável, deformável, nos confins do mundo,
para além mesmo dos movimentos do mundo. O pequeno germe
cristalino e o imenso universo cristalizável: tudo está compreendido
na capacidade de amplificação do conjunto constituído pelo germe e o
universo. As memórias, os sonhos e mesmo os mundos não são
senão circuitos relativos aparentes que dependem das variações
deste Todo.”696
É todo o tempo e todo o cosmos que encerra o cristal nos seus
circuitos. Desenvolvendo e complexificando a sua teoria com os

695
IT, p. 110.
696
IT, p. 108.
333

conceitos de “lençois do passado” e “pontas de presente”697, é uma


teoria completa do tempo que nos apresenta Deleuze em L’Image-
Temps.
Assim, é exacto afirmar-se que a noção de imagem-cristal
condensa, como diz François Zourabichvili, o pensamento inteiro de
Gilles Deleuze:
a. Retoma e reformula a teoria do tempo;
b. Precisa e desenvolve os conceitos de virtual e actual,
centrando a filosofia da diferença à volta deste par conceptual;
c. Propõe uma nova imagem do pensamento698;
d. A estética deleuziana implica uma teoria da expressão e da
formação de matérias expressiva, como vimos. Ora é isso mesmo que
constitui o cristal: “O cristal é expressão. A expressão vai do espelho
ao germe. É o mesmo circuito que passa por três figuras, o actual e o
virtual, o límpido e o opaco, o germe e o meio. Com efeito, por um
lado o germe é a imagem virtual que vai fazer cristalizar um meio
actualmente amorfo; mas por outro, este deve ter uma estrutura
virtualmente cristalizável, relativamente à qual o germe tem agora o
papel de imagem actual. Aí, ainda, o actual e o virtual trocam-se
numa indiscernibilidade que deixa subsistir de cada vez a
distinção.”699 O circuito entre o actual e o virtual, a sua troca e
indiscernibilidade condensam os processos descritos em Différence et
répétition, Logique du sens, Mille Plateaux. No cristal em expansão,
em formação, cabem os dinamismos espácio-temporais (Différence et
répétition), assim como a dinâmica das matérias de expressão e do
ritornelo700. Por outro lado, a dinâmica do cristal compreende os
devires, com os seus pontos e superfícies de indiscernibilidade. Da

697
IT, cap. V, pp. 129-151.
698
“São estes três aspectos, topológico, probabilitário e irracional, que
constituem a nova imagem do pensamento. Cada um deduzindo-se facilmente
dos outros, forma com eles uma circulação: a noosfera.” IT, p. 281.
699
IT, p. 100.
700
Cf. IT, pp. 122 e segs.: “A imagem cristal não é menos sonora que óptica, e
Felix Guattari tinha razão ao definir o cristal de tempo como sendo um
«ritornelo» por excelência.”
334

imagem virtual à imagem actual, os circuitos mais ou menos longos


implicam constantes devires, diferenciações em diferentes “lençóis de
passado” e “pontas de presente”. O conceito de imagem-cristal
encerra em si o conceito de devir. O mesmo se pode dizer das noções
de rizoma, cartografia intensiva, corpo sem órgãos, espaços lisos e
estriados, etc.. E, como é evidente, a dinâmica do virtual-actual rejeita
toda a transcendência: é no plano de imanência (indiscernibilidade)
da superfície cristalina que se operam todas as trocas;
e. O vitalismo de Deleuze condensa-se também na noção de
imagem-cristal. “O que se vê no cristal é sempre o brotar da vida, do
tempo, no seu desdobramento ou na sua diferenciação"701 ;
f. Abre uma nova perspectiva sobre a estética já exposta em
obras sobre pintura e textos sobre pintura ou música, condensando
na dinâmica cristalina movimentos estético-ontológicos como os de
plano de imanência ou de consistência;
g. Neste aspecto, seria necessário um estudo minucioso de
muitos outros conceitos desenvolvidos em L’ Image-Temps, à volta da
noção de imagem-cristal, por exemplo, a noção de “interstício” que
marca, mais uma vez, a primazia ontológica da diferença sobre a
semelhança, aprofundando e reafirmando o que fora exposto em
Différence et répétition e Logique du sens702.

Tudo isto nos mostra a importância da imagem-cristal. Em


particular, os dois últimos aspectos evocados interessam-nos para a
questão da concepção ontológica de Deleuze, e para o problema
central do presente trabalho, a articulação entre a estética e a
ontologia.
Na medida em que a imagem-tempo cinematográfica convoca,
pela sua natureza, todo o tipo de imagens de todas as formas de arte,
o discurso deleuziano sobre o cinema vale para toda a filosofia da

701
IT, p. 121. O exemplo que as páginas seguintes vão dar de obras de Fellini,
confirmam plenamente esta afirmação.
702
V. IT, pp. 234-235.
335

arte, integrando-se no seu discurso estético. O que a imagem-tempo


diz sobre a imagem-cristal e a dinâmica cristalina vale para toda a
estética, e não só para o cinema703. De tal forma que se poderia dizer
que a unidade estética mínima se torna, combinando o “bloco de
sensações” de Qu’est-ce que la Philosophie? com a imagem-cristal de
L’ Image-Temps, o bloco de sensações-imagem-cristal .
O “interstício” é o espaço vazio entre duas imagens, o
movimento de espacialização “que faz com que cada imagem seja
arrancada do vazio e nele recaia”704 . O interstício é o que une e
separa duas imagens; mas longe de as associar, estabelece entre
elas uma diferença primeira. “Por outras palavras, é o interstício que é
primeiro relativamente à associação, ou é a diferença irredutível que
permite escalonar as semelhanças”705.
Reportemos estas palavras ao objecto-cristal. Entramos no
domínio da ontologia: a diferença é primeira, é ela que individua ou
singulariza o objecto biface, actual-virtual. Mais: a primazia da
diferença esconjura toda a filosofia do Um e do Mesmo. Eis o que
escreve Deleuze a propósito do cinema do interstício, e que se pode
sempre extrapolar para a esfera da ontologia: “A fenda tornou-se
primeira, e alargou-se enquanto tal. Não se trata já de seguir uma
cadeia de imagens, mesmo por cima de vazios, mas de sair da cadeia
ou da associação. O filme deixa de ser «imagens em cadeia… uma
cadeia ininterrupta de imagens escravas umas das outras» e de que
somos o escravo […]. É o método do ENTRE, «entre duas imagens»,
que esconjura todo o cinema do Um. É o método do E, «isto e depois
aquilo», que esconjura todo o cinema do Ser = é. Entre duas acções,
entre duas afecções, entre duas percepções, entre duas imagens
visuais, entre duas imagens sonoras, entre o sonoro e o visual: fazer
ver o indiscernível, quer dizer a fronteira […]. O todo sofre uma

703
Assim o compreendeu Christine Buci-Glucksmann no seu livro La folie du
voir, pour une esthétique du virtuel. Mas a afirmação é aceite pela maioria dos
comentadores, sem mais problemas.
704
IT, p. 234.
705
IT, p. 234.
336

mutação porque cessou de ser o Um-Ser, para se tornar o «e»


constitutivo das coisas, o entre-dois constitutivo das imagens.”706
De certo modo, é toda a sua ideia de ontologia que Deleuze
expõe aqui. O que diz sobre a recusa do Um como primeiro, e de
prevalência da preposição “e” sobre a forma verbal “é”, não é novo.
Mille Plateaux repete-o inúmeras vezes, assim como Dialogues.
Convém, no entanto, lembrar, que este tema é central na teoria
das multiplicidades (e do rizoma). Em Mille Plateaux, Deleuze
escreve: “O rizoma não se deixou reduzir nem ao Um nem ao
múltiplo. Não é o Um que se torna dois, nem mesmo que se tornaria
directamente três, quatro ou cinco, etc. Não é um múltiplo que deriva
do Um, nem ao qual o Um se juntaria (n + 1). Não é feito de unidades,
mas de dimensões, ou antes de direcções móveis. Não tem começo
nem fim, mas sempre um meio, por onde cresce e transborda.
Constitui multiplicidades lineares a n dimensões, sem sujeito nem
objecto, exponíveis num plano de consistência, e do qual o Um está
sempre subtraído (n-1). Uma tal multiplicidade não varia as suas
dimensões sem mudar de natureza nela mesma e se
707
metamorfosear.”
Ontologicamente, estas afirmações valem para todos os entes.
A subtracção do Um que faz com que a multiplicidade seja sempre
regida por um princípio da diferença, é o um da Substância ou do
Todo. Como se opera a subtracção do Um de uma multiplicidade a n
dimensões? Em L’Image-Temps, a resposta vale para o cinema como
para toda a forma da arte: é o interstício como corte irracional, um
contínuo de imagens que se subtrai aos dois conjuntos que ele
separa, impedindo-os de se unificar. Daí uma concepção do Todo,
que “deixa de ser o Um-Ser” para se tornar um Todo-Fora, ou
(Deleuze citando Blanchot) o todo como a “dispersão do Fora”, ou o
“vestígio da espacialização [espacement]”. O Todo é o Fora em que
os elementos são ligados por um “e” constitutivo da sua natureza
706
IT, pp. 234-235.
707
MP, p. 31.
337

enquanto entes. Não se trata pois de conjuntos no Todo, nem de um


Todo-Um708, mas de um Todo constitutivo de actuais e virtuais,
intotalizável, que por isso, constitui o “impensado profundo do
pensamento”, “o irracional próprio do pensamento.”709
É esse ponto irracional que torna o Todo constantemente
mutável, tal como as multiplicidades não variam de dimensão sem
mudar de natureza. Daqui decorre uma afirmação ontológica, que
Deleuze expõe apenas no plano do cinema, mas que, mais uma vez,
se transferiria facilmente para toda a arte: o cinema torna a dar-nos a
crença no mundo. Como? Com o interstício, o ponto irracional que é

708
Nota sobre a controvérsia Badiou/Deleuze:
A propósito da ontologia da diferença, de Deleuze, desenvolveu-se um
debate à volta desta noção, depois da morte do filósofo. Curiosamente, a
controvérsia prolongava a que Alain Badiou tinha tido epistolarmente com
Deleuze, e a que este pôs termo; proibindo depois, abruptamente, a Badiou a
publicação das suas cartas, anunciando-lhe que tinha queimado todas as
cópias desses textos.
Após a morte de Deleuze, Badiou decidiu publicar um livro, Deleuze, «La
clameur de l’être», como para “terminar uma amizade que nunca aconteceu” –
de facto, para relançar ou ter a última palavra num debate já terminado.
Aconteceu que o livro de Badiou provocou reacções muito duras nos meios
deleuzianos, dos quais restam três textos publicados no n.º 43 de Futur
Antérieur (último número da revista que desapareceu) de Eric Alliez, Arnaud
Villani e José Gil, a que Badiou respondeu num capítulo do seu livro Breve
Tratado de Ontologia transitória (já citado por nós), e no n.º 1 da revista
Multitudes.
Como a discussão continua, subterrânea e pontualmente, através de notas
de rodapé (por exemplo, no Vocabulaire de Zourabchvili), de observações aqui
e ali de Agamben, de Villani, em artigos ou ainda no livro de Véronique Bergen,
sobre a ontologia de Deleuze, não a apresentamos, nem sequer resumindo a
argumentação de uma parte ou de outra.
Poderemos, contudo, dizer que as teses de A. Badiou (que aliás, variam do
primeiro para o segundo livro) se resumem a afirmar que a ontologia de
Deleuze é uma falsa ontologia da diferença; que as “diferentes vozes” de um
“só clamor, de uma só Voz do Ser” constituem uma reafirmação da ontologia
do Uno e do Mesmo. Os argumentos de Badiou baseiam-se, segundo ele, na
teoria dos conjuntos, enquanto os de Deleuze (sempre segundo Badiou),
fundam-se numa filosofia do cálculo diferencial. Badiou nega radicalmente a
noção de virtual, “sem a qual todo o edifício do pensamento deleuziano se
desmorona”. As respostas de Villani, José Gil, assim como as observações de
Zourabichvili ou de Agamben tendem a mostrar que A. Badiou não
compreendeu Deleuze, fazendo da sua filosofia uma espécie de neo-
platonismo.
Queríamos, apenas, fazer notar que é em IT que se podem encontrar talvez
os melhores argumentos contra Badiou (no uso e sentido da noção de Uno-
Todo (l’Un-Tout), de que A. Badiou dá uma interpretação claramente não
deleuziana, ou da relação tempo-virtual de imagem-cristal também muito
nitidamente desvirtuada).
709
IT, p. 237.
338

“o inevocável de Welles, o inexplicável de Robbe-Grillet, o indecidível


de Resnais, o impossível de Marguerite Duras, ou ainda o que se
poderia chamar o incomensurável de Godard (entre duas coisa).”710
Ou com o que antes vimos (em Critique et Clinique), na literatura: na
tentativa de Wolfson, no gaguejar, balbuciar de Masoch, etc., no
fragmentário de Whitman, no I would prefer not to de Bartleby, numa
palavra, na sintaxe em devir de todos os que atingem esse ponto.
Emerge assim, em Mille Plateaux, uma crítica à ontologia
clássica (talvez não à ontologia em geral), a do Todo-Um que é a da
afirmação do Ser como Um. “A árvore impõe o verbo « ser », mas o
rizoma tem por tecido a conjunção « e…e…e ». Há nesta conjunção
força suficiente para abanar e desenraizar o verbo ser.”711 Trata-se de
“instaurar uma lógica do E, derrubar a ontologia, destituir o
fundamento, anular fim e começo.”712
Como entender o papel da estética nesta ontologia tão
particular? Provavelmente a questão está mal posta, porque são
talvez os enunciados da estética que permitem pensar
ontologicamente. Não só os que o cinema suscita, mas toda a arte.
Neste aspecto, cabe enfatizar o papel do estilo na construção
desta estética que é ontológica. A conjunção “e” faz parte de uma
multiplicidade. O “e“ é o que conecta a face actual de uma coisa à sua
face virtual; é o ponto de indiscernibilidade de um devir, o impensável
do pensamento, e o que o faz pensar. O “e…e…e“ é a linha de
universo, a linha de Wörringer que vai do caos ao cosmos; é também
a que percorre e liga um Todo (n-1), os circuitos cada vez mais vastos
da proliferação de imagens provocada pelo germe de cristal. É, para
resumir tudo o que acabámos de seriar, o que constitui a linha de
variação contínua como estilo. O que liga subterraneamente o
contínuo, a força que o faz variar e o que faz exprimir essa força. O
estilo como surgimento a cada instante e auto–movimento de

710
IT, p. 237.
711
MP, p. 36.
712
MP, p. 37.
339

expressão da força que nasce e se capta na “potente vida inorgânica”


do cosmos…
Como se diz em Proust et les signes: “o estilo que vale para
todas as imagens”.713
A estética exprime a ontologia, assim como o objecto de arte
exprime, na sua diferença, a univocidade do ser.

713
PS, p, 134.
340

Bibliografia das obras de Deleuze714

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philosophie (avec André Cresson), Paris, PUF, 1952.

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Minuit, 1968.

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DELEUZE, Gilles, Spinoza, philosophie pratique, Paris, PUF, 1970


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DELEUZE, Gilles et GUATTARI, Félix, L’Anti-Oedipe, Paris, Minuit,


1972.

DELEUZE, Gilles et GUATTARI, Felix, Kafka – Pour une littérature


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DELEUZE, Gilles et GUATTARI, Felix, Rhizome, Paris, Minuit, 1976,


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1996 (1ª edição,1977.)

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Vídeo
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Cursos de Gilles Deleuze, 1971-1987. http:// www. deleuze. fr. st.
Cursos parcialmente disponíveis, transcritos por R. Pinhas
(www.webdeleuze.com)

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