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XXV ENCONTRO DA ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE

Movimento Freudiano

Rio de Janeiro, 04//12/2004

As máscaras do feminino
em Ana Cristina Cesar *

por

Nonato Gurgel

* Este texto é dedicado a Beatriz Resende,


Bethânia Guerra, Constância Duarte, Fátima Araújo,
Fernanda Lemos, Ilza Matias, Iracema Macedo, Numa Ciro,
Valéria Cardoso e Terezinha Bezerra.

Elas sabem por quê.


2

As máscaras do feminino em Ana C.


Nonato Gurgel*

Freud e eu brigamos muito.


Irene no céu desmente: deixou de
trepar aos 45 anos...

(Ana Cristina Cesar, A teus pés)

Demorou muito para que a mulher, o gênero feminino fizesse


sua inscrição na história de nossa literatura. Passados mais de três
séculos de historiografia literária brasileira, somente no século XIX a
estética parnasiana nos legou o solitário nome da paulista Francisca
Julia e o seu volume de poemas intitulado Mármores (1895). Depois da
poeta de “Musa Impassível” e seus mármores partidos, algumas outras
autoras fizeram, no início do século XX, a sua inscrição nessa história.
Mas foi apenas em 1919 que foi publicado o livro Espectros de Cecília
Meireles. A partir daí surgia uma intensa produção poética, cuja letra e
cujas etéreas impressões musicais – repletas de espelhos, nuances e
essências – marcariam definitivamente o discurso literário feminino feito
no Brasil.
Francisca Júlia, Gilka Machado, Cecília Meireles, Henriqueta
Lisboa, Hilda Hilst, Olga Savary, Adélia Prado, Ana Cristina Cesar... Aos
poucos, as mulheres foram pontuando esta história agora relida, como
demonstra mais de uma centena de poetas reunidas em Tirando do
baú: antologia de poetas brasileiras do século XIX 1. Poetas e não
poetisas, como também preferia ser chamada Ana Cristina Cesar que
nasceu no Rio de janeiro em 1952. Quatro anos depois, ela ditava seus

1
Bezerra, Kátia da Costa. Tirando do Baú: antologia de poetas... 2003
3

primeiros versos para a mãe. Em 1959, foi publicada na Tribuna da


Imprensa, sob um sugestivo título: “Poetisas de vestidos curtos.”
Curta foi também a vida da poeta. Ana viveu intensamente 31
anos. Sua existência por várias cidades – Rio, Niterói, Brasília, Londres,
paris – foi marcada pela rapidez, pela brevidade, e pela construção de
uma letra que suaviza e corta, e que pode ser associada, na leitura do
poeta Armando Freitas Filho, a uma “pedra de gelo”, a um “ferro em
brasa”. Ana Cristina César teve uma vida ao pé da letra. Na inscrição
dessa letra, o discurso estético e cultural da mulher e a temática do
feminino são recorrentes; embora rótulos como o de feminista não
colem num universo heterogêneo, mutante e polifônico como o dela,
onde não apenas o discurso, o texto, mas também a postura política e o
comportamento existencial possuem um peso diferenciado, se
comparados com o que vivemos neste início de milênio. É que ainda
havia, nos tempos da Contracultura e da chamada poesia marginal, um
certo culto às utopias e a crença em projetos grupais. Naquele contexto
da ditadura militar, a atitude existencial era válida; o comportamento,
passou a ser lido “como elemento crítico” (Heloísa Buarque de
Hollanda).
Como a maioria dos poetas de sua geração, Ana gostava de
passar para o papel muito do que vivenciava na pele batida pelos ventos
alternativos e marginais. A dezena de livros que compõe sua bibliografia
o comprova, nos mais variados gêneros e nas múltiplas formas
literárias. Seja nas cartas ou nas micro-narrativas, nos ensaios ou
poemas, seja nos escritos acadêmicas ou nas traduções que fez de autoras
como Silvia Platz, Katherine Mansfield ou Emily Dickinson, há na poética de Ana C.
uma visível “consciência erótica do literário”. Essa “consciência” pode ser aferida
na inscrição do discurso do corpo feminino, na questão das máscaras
sociais construídas pela mulher numa sociedade extremamente
repressora e na problemática do desejo que serve de combustível para a
4

sua escrita. Na poética de Ana C, corpo e desejo são signos de uma


tessitura na qual, muitas vezes, não discernimos os dados biográficos
dos elementos bibliográficos.
No ensaio “Literatura e Mulher: essa palavra de luxo”, a poeta
carioca trata de duas autoras que são fundamentais para a leitura da
mulher e a problemática da inscrição do feminino na poesia brasileira.
São elas: a carioca Cecília Meireles (1901 - 1964) e a mineira
Henriqueta Lisboa (1901 - 1985). O ensaio de Ana C. não critica; trata
da recepção das obras de Cecília e Henriqueta, e do lugar que seus tons
e suas imagens inauguram em nossa literatura. Embora inclua em seu
ensaio a escritora mineira Adélia Prado como uma “produção alternativa
de mulher”, em relação às duas autoras consideradas ícones da
modernidade e celebradas pelos nossos melhores críticos, é nas
estéticas de Cecília e Henriqueta que Ana centra o seu alvo.
Principalmente em Cecília.
Lendo a sexualidade volátil e intelectiva dos eus estetizados
pela autora de Canções, Ana examina como a dupla de poetas
modernas contribui para inscrever uma identificação entre o que o censo
comum considera poesia (principalmente os elementos naturais) e o
ideário feminino (algo que remete, desde o Romantismo, ao inefável, ao
inatingível, ao idealizável). No exame dessa identificação entre o censo
comum e esse ideário, a autora de Escritos no Rio relê a dicção e a
“marca” feminina que as duas autoras nos legaram sem, no entanto, se
colocarem como mulher. Nessa releitura, diz Ana 2:

Tudo resvala, flui e anda nesta poesia. Em


tudo isto é de feminina delicadeza, aflorando as
coisas, os seres, com dedos fugidios, tocando-os de
encantamento. Já aí começa a fugir. Esses dedos não
2
Cesar. Ana Cristina. Escritos no Rio. 1993. p. 139.
5

agarram; intuem para logo transfigurar. As mãos a


que pertencem são de fadas. A sensualidade
volatiliza-se ou afunda-se em golfos de afetividade
tão arguta e dilatada que leva à intelecção do
mundo. Como os ouvidos de um cego que chegam a
substituir a vista, o sentimento de Cecília Meireles
ganha olhos que ultrapassam os fenômenos até as
essências.

Essa leitura dialoga, de certa forma, com o “distanciamento


do real imediato” e com o “sentimento de ausência” que Alfredo Bosi
configura, em sua História Concisa da Literatura Brasileira, ao ler a
poética ceciliana como representativa das tendências contemporâneas
de nossa literatura. Em “Literatura e Mulher: essa palavra de luxo”, Ana
sugere que, para acentuar as máscaras desse universo de fugas e vôos,
de sentimentos e essências, na poética de Cecília Meireles as coisas se
tornam “a imagem de um sentimento, de uma experiência psíquica”. Ou
seja: as coisas só existem em sua concrtude, a partir de uma remissão
ao sentir. Sentida e musical, Cecília herdou, junto ao seu gosto pelas
formas clássicas, o amor pela oralidade, pelos sons que se armazenam
na mente, nas entranhas; isso, nem sempre da forma suave como
muitas vezes ouvimos em suas canções.
Além dessa leitura do sentimentalismo impregnado nos
elementos dessa poética, a ensaísta assinala nessas duas autoras o
excesso de nobreza, o lirismo em altas doses e a linguagem repleta de
pudor. Essa leitura das performances literárias de Cecília e Henriqueta
tem por base o contexto irônico e renovador do Modernismo. Ana C. é
apaixonada pelos autores modernos.
Além dos intertextos e simulacros que constrói a partir da
poética de Bandeira, como lemos na epígrafe deste texto, além de
6

dialogar com as “letras” de Cecília e Hanriqueta, a autora de A teus pés


mantém intertextos com outros autores representativos da modernidade
como Jorge de Lima, Carlos Drummond e, dentre outras, Elizabeth Bishop e
Gertrude Stein, autora da Autobiografia de Alice B. Toklas – livro fundamental
para as vanguardas dos anos 1910, 20 e 30.
É nesse período que o nosso Modernismo solidifica-se. Como
sabemos, a estética moderna valoriza, ao ser inaugurada no Brasil, a
fragmentação do texto, a síntese, os temas extraídos do cotidiano, a
linguagem coloquial e um certo desprezo pelo rigor gramatical; tudo isso
na tentativa de inscrever uma identidade nacional mais próxima da fala
brasileira. Ao lermos a produção de Ana C e das duas principais autoras
por ela lidas em seu ensaio de Escritos no Rio, percebemos que,
quanto mais próximo dessa linguagem brasileira criada pelos nossos
primeiros autores modernistas, mais nos sentimos na direção feminina
que Ana viria a estetizar em suas múltiplas máscaras de mulher
construídas a partir de tons que oscilam entre a suavidade e o corte.
Essa oscilação é audível em trechos como este 3: “Fiquei à escuta, tentei
brincar de acordar sozinha, chamei Ângela cortante, às tesouradas,
touradas, trovoadas de verão, punhal de prata.”
Se demorou muito para a mulher, para o gênero feminino e
suas formas inscreverem-se em nosso cânone literário, demora não
houve na leitura das máscaras que nossas autoras mais representativas
construíram no final do século XX. A pluralidade de eus e de tons
estetizados na poética de Ana C. (e na grande maioria das poetas
contemporâneas) é exemplar de como a autora mascara as heterogênas
vozes de seu texto. Em sua poética, a autora desdenha o feminino de
dicção nobre, isola os meio tons e as surdinas, e mescla um vocabulário
culto com termos chulos, introduzindo no texto um olhar que, ao
encarar o claro e a escuridão, faz desistir as lupas (“Onde os seus olhos
3
Cesar. A teus pés. 1982. p. 84.
7

estão/ as lupas desistem”). Com base nestes procedimentos, Ana cria


um recorte vocabular onde o hímen, o sovaco, o pau, a bota, a bicha e o
batom, por exemplo, não ficam de fora.
Esse recorte dialoga pouco, nos poemas e nas micro-
narrativas de Ana, com as nuvens, os despedaços e as canções que
durante muitas décadas povoam o imaginário poético do feminino no
Brasil. Quando os inscreve – as nuvens, os despedaços e as canções –,
a poeta geralmente rasura a leitura original do signo. Essa rasura parece
ter a ver com, dentre outros, a introdução do desejo em sua poética. E
quando o desejo se faz presente nesta letra, há sempre um tom que
resvala entre o afetivo, o contraditório e o cruel; inscreve-se um
“embaraço”, uma “pontada” ou uma certa “maldade”, como ouvimos
nestas desejantes vozes a seguir:

“Movida contraditoriamente/ por desejo e ironia...”


(A teus pés, p. 37)

“A crueldade é o seu diadema...” O meu embaraço te deseja,


quem não vê?. Consolatriz cheia das vontades. ...”
(A teus pés, p. 41)

“Por afrontamento do desejo


insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos” ...
(Cenas de Abril, p. 67)

“O desejo é uma pontada de tarde”


(Luvas de Pelica, p. 95)
8

De ouvido nos discursos dessas máscaras, leio o desejo como


um dos principais “personagens” dessa poética. Nela, a consciência
literária de quem cria erige uma metalinguagem erótica, onde as
relações entre o corpo e a escritura destacam-se como procedimento
estético. Isso pode ser aferido mesmo quando o poema – curto e
certeiro, como às vezes sugere o contexto da espera – apresenta quatro
personagens masculinos com o mesmo nome. Vejamos:

“NESTAS CIRCUNSTÂNCIAS
O BEIJA-FLOR VEM SEMPRE AOS MILHARES”

Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha.


Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá.
Caso ele me cheirasse... Ai que enjôo me dá o
açúcar do desejo.

(Cenas de Abril, p. 63)

O poema dá voz a uma mulher que pode se dar ao luxo de


enjoar a construção da cena do próprio desejo. Aqui o feminino se cansa
e rasura os signos, a ele sempre atribuído, da espera e da fragilidade,
da resignação. A afirmação esse olhar enjoado – esse outro jeito de
esperar – inscreve o desejo sem ansiedade; instaura uma outra ordem
corpórea e subjetiva, influindo na construção da identidade e da
escritura. Em conexão com elas, o corpo e seus discursos desejantes
erigem outras máscaras, constroem outra visibilidade poética.
A visibilidade caracteriza a letra de Ana C. Se Cecília é lida
como a poeta da musicalidade, das coisas efêmeras e fugidias, Ana pode
ser vista como poeta da visibilidade, das coisas velozes, mutantes. Ao
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inscrever esses elementos em sua escrita, ela ostenta uma outra


máscara poética, assim revista4:

Onde se lia flor, delicadeza e fluidez, leia-


se secura, rispidez, violência sem papas na língua. Sobe à
cena a moça livre de maus costumes, a prostituta, a
lésbica, a masturbação, a trepada, o orgasmo, o palavrão,
o protesto, a marginalidade.

Claro que outras vozes – delicadas e sutis – dialogam com


essa “moça livre” cujo desejo gera o texto. A pós-modernidade pôs em
cena essa relação entre desejo e escritura, corpo e linguagem. O texto
pós-moderno encena a afirmando do corpo feminino como algo
imprescindível para a construção dessa linguagem. Mais
especificamente: para a construção de uma sintaxe. Numa carta de
Correspondência Incompleta, Ana assume descaradamente sua
paixão pelas “sintaxes coleantes” (o que nos remete à prosa
assumidamente desejante de Luvas de Pelica). Diz a poeta em uma de
suas cartas5: “É na sintaxe que pinta o meu desejo”.
Parte da gramática que trata da função e da disposição das
palavras nas orações, e do lugar dessas orações no discurso, a sintaxe
conduz o desejo no texto de Ana C. É através dela – a sintaxe – que a
poeta veicula as máscaras do seu discurso, dando a impressão que
escancara para o leitor seu desejo. Isso ocorre, por exemplo, em
“Samba Canção”, cujo título sinaliza a forma como as canções, as
melodias são “entoadas” por Ana 6:

4
Cesar. Op. Cit. 1993. p. 145.
5
Cesar. Correspondência Incompleta. 1999. p. 42.
6
Cesar. Op. Cit. 1982. p. 43.
10

...eu fiz tudo pra você gostar,


fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia)...

Essa “estratégia” é aqui lida como uma das muitas máscaras


que o feminino constrói nas suas releituras. Mas nada é simples nem
direto nesta poética de vozes desejantes que dialogam com vozes de
outras esferas da arte (como no clássico “Taí”, do repertório da cantora
Carmem Miranda, “eu fiz tudo pra você gostar”). O desejo serpenteado
na sintaxe poética delineia uma pluralidade de frases, possibilita a
construção de orações e períodos que tecem outras formas e outros
ritmos de dizer. Ou seja: trata-se de uma “estratégia” de linguagem; e
nisso a gramática, sabemos, é rigorosa. A frase, por exemplo,
caracteriza-se pela entonação que lhe assinala o começo e o fim.
Oração sem verbo, nem pensar... O sujeito, os predicados, os períodos
simples, os compostos... a sintaxe surfa de tanto desejo nas ondas da
superfície, vejam, sem levar em conta o sexo de quem senta ao lado:

Mas agora vem um vento frio sobre a minha


pele quente, e mais quente ainda neste braço de poltrona
11

onde se encontra outro braço, outra pele batida pelo


vento...”

Nesta poética, são muitas as máscaras (as “estratégias”) de


que se vale o feminino para a inscrição do seu desejo, do seu discurso.
Às vezes, a própria poeta dá bandeira, e revela sua opção pela máscara,
como demonstra o seguinte trecho de uma carta: “Fico nas
interioridades, nos conteúdos, nos recados convincentes, mas ai como
namoro a rua, a cenografia o batom”.
Mas nem só dessa relação entre o que tenta convencer a
partir dos interiores e o que propõe a visibilidade dos cenários urbanos,
nem só de sintaxes desejantes é feita essa letra. A preocupação com
quem lê, o canal aberto ao outro, constitui um outro “traço” do que se
convencionou chamar de literatura feminina, seu desejo de confissão.
Em Escritos no Rio, a poeta lembra que esse feminino não é
necessariamente escrito por mulher, e cita Guimarães Rosa como
exemplo; o que nos conduz ao Grande Sertão: Veredas. Nesse texto,
além de atentar para o interlocutor, o mineiro abusa no uso dos
diminutivos e seus enunciados afetivos, geralmente mais audíveis no
discurso feminino. Riobaldo é fogo; Diadorim, sua neblina. Rosa mistura
fogo e neblina. Ana C. sabia que, entre os sexos, as diferenças são
geralmente mais culturais. Ou seria esse saber uma outra máscara da
poeta?

BIBLIOGRAFIA

BEZERRA, Kátia da Costa. Tirando do baú: antologia de poetas


brasileiras do século XIX. Pedro Leopoldo: Faculdade de Pedro
Leopoldo, 2003.
CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Brasiliense, 1982.
____ Inéditos e Dispersos. Freitas Filho, Armando. Org. e Introdução.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
12

____ Escritos no Rio. Freitas Filho, Armando. Org. e Prefácio. Rio de


Janeiro / São Paulo: Brasiliense, UFRJ Editora, 1993.
____ Correspondência Incompleta. Freitas Filho, Armando e
Hollanda, Heloísa Buarque. Org. Rio de Janeiro: IMS/ Aeroplano
Ed., 1999.
Gurgel, Nonato. Luvas na Marginalia. O narrador pós-moderno na
poética de Ana C. (Dissertação de Mestrado). Natal: UFRN, 1996.

Texto publicado na Revista da Unigranrio, Duque de Caxias, 2005

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