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PERFIL

(Este perfil foi extraído do guião de reportagem “Peças de Vida” sobre transplantação hepática realizado por mim no
âmbito da disciplina de Laboratório de Investigação Jornalística.)

“Se não tivesse sido transplantada, não estaria cá para


contar a história.”

Ao abrir a porta da sua pequena mas aconchegante casa no bairro da Pontinha, Maria
Mota abre-nos igualmente a porta a uma vida cheia de peripécias, de determinação e
de incontáveis episódios que tanto gosta de partilhar. Com a simpatia da humildade,
dirige-se rapidamente ao quarto, ao fundo do corredor. Ao regressar, traz, entre as
mãos enrugadas pelo tempo mas mais fortes do que as de muita juventude, um
grande envelope branco cujo conteúdo se revela, sem demoras. São as fotografias do
congresso que assinalou a comemoração dos mil transplantes hepáticos do Hospital
Curry Cabral que decorreu em Novembro passado, na Fundação Calouste Gulbenkian
e do qual foi convidada de honra. As presenças foram ilustres - desde o Primeiro-
Ministro, à ministra da saúde e ao Dr. Eduardo Barroso passando, é claro, pela
primeira pessoa a sobreviver a um transplante de fígado em Portugal. Ela mesma,
Maria. «E já lá vão 17 anos», destaca, orgulhosamente.
Hoje com 77, esta antiga técnica de radiologia nascida em Vila Nova da Rainha,
Tondela, pode definir-se como a genica em pessoa. Muitas décadas ficaram para trás
desde os tempos em que Maria, com apenas 7 anos, guardava o rebanho dos pais na
companhia do irmão mais novo que, rebelde, fugia para o meio das ervas e a deixava
em maus lençóis: «Ele era terrível e depois eu não sabia a quem acudir, se a ele se às
ovelhas!», conta, entre risos que ecoam pela sala.
Até à adolescência, a rotina não sofreu mudanças de destaque. Maria não andou na
escola, pelo menos não na idade habitual, porque «lá na terra não havia escola para
raparigas» pelo que continuou a trabalhar no campo. Só quando tinha 15 anos abriu o
ensino feminino, visto que nenhuma rapariga sabia ler e a leitura era uma competência
fundamental para conseguir entender o jornal da Acção Católica. «Tive seis meses de
aulas mas a professora não ficou lá muito tempo e, entretanto, eu vim para Lisboa.
Depois de alguns anos a morar na Pontinha, descobri que havia aqui uma escola que
dava aulas a adultos e eu inscrevi-me. Andei lá outros seis meses e aprendi a
escrever, porque ler já sabia ler tudo. Também aprendi a fazer umas continhas, um
bocadinho de Geografia, História e Ciências. Então, fui fazer o exame da quarta classe
e passei!»

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Veio para Lisboa aos 16 anos para trabalhar numa casa de família. Mas, insatisfeita
com o pequeno ordenado, não demorou muito até regressar a Tondela. «Sempre fui
uma pessoa muito determinada, nunca me deixei ir atrás do que os outros impunham.
E, como não estava contente com aquilo, fui-me embora!».
O regresso serviu para cimentar a paixão pelo marido, com quem partilhava a
naturalidade. Três anos depois, de volta à capital, Maria começou a trabalhar a dias.
Aos 21 anos casou e, com o nascimento da filha Rosa, a maternidade transformou-se
numa tarefa a tempo inteiro. Os dedos enrugados apontam para uma moldura,
pousada sobre o móvel impecavelmente limpo, onde a filha, muitos anos mais nova do
que hoje, mostra um sorriso parecido com o da mãe.
Imparável, Maria empregou-se mal pôde num laboratório de produtos químicos e
farmacêuticos e foi aí que se abriu o caminho para a profissão que mais tarde veio a
exercer, sem qualquer formação que não a prática. «A partir daí acabei por ir parar ao
consultório de radiodiagnóstico do Dr. Simões Raposo, porque precisavam de alguém
de confiança que fizesse limpezas.»
O que parecia ser temporário veio a prolongar-se durante 26 anos e, com a sua
enorme e característica vontade de aprender, Maria foi mudando de funções. «Às
vezes ia faltando uma ou outra técnica. Por isso, eu ia ajudando aqui e ali. Foi assim
que fui aprendendo».
Foi, também, assim que descobriu a essência do trabalho pelo qual se apaixonou.
«Aprendi a revelar manualmente, a tirar radiografias e passado não muito tempo já me
entregavam os doentes todos. Fazia tudo sozinha, desde radiografias aos ossos até
às vesículas e tudo o que mais houvesse. Ainda ensinei muitos licenciados que tinham
acabado o curso mas não tinham muitos conhecimentos práticos e eles adoravam-
me!», relembra com saudade mas sem perder a alegria.
A vida havia, longos anos mais tarde, de dar-lhe um enorme desgosto. Uma reforma
antecipada depois do diagnóstico de uma cirrose biliar primária. «Foram os meus
patrões os primeiros a reparar que eu não estava bem, eles preocupavam-se sempre
muito comigo. Eu comecei a andar muito cansada e eles mandaram-me fazer análises.
Tinha as plaquetas muito baixas e os glóbulos brancos muito baixos, viu-se que o
problema era mais grave do que se pensava.»
Após saltar de médico em médico, acabou, por indicação de um deles, por ir parar às
mãos da Dra. Estela Monteiro, do Hospital Curry Cabral. Corria o ano de 1992. «Ela
viu as análises e só me disse: "Pois é, D. Maria...isto é para transplante!"». Perguntou-
me se eu queria que ela me pusesse em lista de espera e eu disse logo que sim. Os
transplantes iam começar a fazer-se em Julho daquele ano».

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Apesar de todo o desconhecimento e de se tratar de uma prática recém-nascida em
Portugal, Maria não hesitou um instante. Ao contrário do marido, a quem a ideia não
agradou por não perceber como é que ela poderia sobreviver «com um bocado de
outra pessoa», avançou com determinação e confiança para a única coisa que poderia
devolver-lhe plenamente a qualidade de vida. «Nem pensei duas vezes, aceitei sem
medo nenhum. Eu ia para morrer ou para viver e a maneira como eu andava já nem
era viver. Não podia trabalhar, não podia fazer nada... estar parada não era o que eu
queria para mim.»
Com o apoio incondicional da equipa de médicos que a seguiu, Maria encarou o
desafio olhos nos olhos. Depois do aparecimento do primeiro órgão compatível,
recebeu a chamada do Hospital a dar a novidade. «Nesse dia havia greve de metro e
de autocarro, portanto eu fui a pé do consultório onde eu trabalhava, que era na
Alexandre Herculano, até ao Curry Cabral.» Porém, uma febre altíssima impediu-a de
seguir para o bloco operatório. A segunda pessoa da lista foi para transplante no seu
lugar, sem sucesso. Maria havia de ser a segunda, mas a primeira. «O Dr. Eduardo
Barroso levou-me para o bloco operatório, pôs-me a mão em cima do ombro e disse:
"A senhora é católica, não é? Então olhe, nós também somos todos católicos e
amanhã vamo-nos todos ver, se Deus quiser". Quando acordei, tinha um fígado
novo.» O fígado de um rapaz de 20 e poucos anos que perdeu a vida num acidente de
mota, dando a alguém cuja vida ameaçava perder-se uma nova oportunidade para
viver. «O que foi curioso foi ter morrido num acidente de mota, coitado, e ter dado o
fígado à Maria Mota!», brinca, sempre agradecida.
Superadas duas rejeições, Maria viveu já dezassete anos de saúde e sonha, quem
sabe, chegar aos vinte anos de transplantada. Hoje, vive sem quaisquer limitações.
Mesmo depois de reformada por invalidez, continuou, rebeldemente, a marcar
presença no consultório de radiodiagnóstico, aproveitando as férias de outras
funcionárias e a bondade dos patrões, que tanto a estimavam. «Às vezes nem fazia
nada, mas adorava lá estar, comunicar com as pessoas. Não queria parar.» E, até o
consultório mudar de proprietários, não parou.
Os excessivos cuidados ficaram no passado, ainda que alguns medicamentos sejam
companhia constante do dia-a-dia, mas a independência e a qualidade do quotidiano
possibilitam-lhe idas a Tondela, às compras e ao café do bairro, como tanto gosta e
não dispensa. «Ir ao café tomar o meu galãozinho com café de máquina é o único
desporto que eu tenho. Não vou para teatros, não vou para cinemas... aliás, eu é que
faço os teatros: onde vou, ponho toda a gente a rir! No café conto imensas anedotas.»
O seu espírito animado cativa, inevitavelmente, tudo e todos por onde passa. «Há um
vizinho meu, que me conhece há 14 anos, que me chama Maria Bicicleta, porque eu

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não tenho mota mas ando sempre por aí toda ligeirinha!», partilha, a sorrir, arrumando
as várias fotografias lado a lado sobre a mesa de madeira escura da sala, com
precisão.
Maria não perde, também, a saudável vaidade. Ainda que a maioria das roupas que
usa lhe sejam oferecidas por amigos e familiares, gaba-se de «saber combiná-las», já
que gosta sempre «de andar muito bem arranjada».
Os dias pacatos na Pontinha são, ainda, ocupados com a lida doméstica, tão
apreciada por si. «Só não gosto limpar o pó», confidencia, defendendo-se ao
argumentar que, por outro lado, gosta de «tudo o que sejam outras tarefas
domésticas, de tudo o que obrigue a fazer movimentos» . Em casa, a cozinha é a sua
grande paixão e o local onde passa longas horas, entre tachos, colheres de pau e a
massa dos salgados que a todos deliciam, para seu contentamento. «Só não tenho
mãos para bolos, mas gosto sempre de fazer rissóis, croquetes, pastéis de bacalhau e
para isso tenho muito jeito, são gabados em todo o lado. A minha neta, por exemplo,
perde-se pelos meus pastéis de bacalhau!»
Suspira. É fim da tarde, denunciado pela luz fosca que entra pela janela. «Pronto, foi
assim a minha vida...» parece finalizar, não sem antes dizer o mais importante, na
ausência de quaisquer dúvidas: «E foi boa! Tão boa que ainda cá estou e espero
continuar. Não me arrependo nada de ter feito o transplante. Caso contrário, não
estaria cá para contar a história.»
Maria sabe que nunca ninguém pode «adivinhar o que nos espera», mas sabe ainda
melhor que são muitos os galões de máquina que deseja ainda beber num café da
Pontinha e que, enquanto a saúde o permitir, continuará a perseguir a felicidade dos
pequenos momentos de cada dia como sempre fez.

TEXTO: Catarina Ferreira

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