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Jung: pegando Buda pra Cristo

Carl Gustav Jung in Memórias, sonhos e reflexões

Na Índia encontrei-me pela primeira vez sob a influência direta de uma civilização
estrangeira altamente diferenciada. O que me preocupou acima de tudo foi o problema da
natureza psicológica do mal. Fiquei profundamente impressionado com a forma como esse
problema se integra na vida do espírito indiano e, através desta constatação, adquiri uma nova
concepção. Analogamente, conversando com os chineses cultos, sempre fiquei impressionado
em ver que era possível integrar aquilo que é considerado "mal", sem por isso "passar
vergonha". Entre nós, no Ocidente, não ocorre o mesmo. Para um oriental, o problema moral
não parece ocupar o primeiro plano, tal como ocorre conosco. Para ele, pertinentemente, o bem
e o mal são integrados na natureza e, em suma, são apenas diferenças de grau de um único e
mesmo fenômeno.

Espantava-me o fato de que a espiritualidade indiana contivesse tanto o bem como o


mal. O cristão aspira pelo bem e sucumbe ao mal, o indiano, pelo contrário, sente-se fora do
bem e do mal, ou procura obter esse estado pela meditação ou a ioga. Neste ponto, no entanto,
é que surge minha objeção: numa tal atitude, nem o bem, nem o mal têm contornos próprios e
isso leva a uma certa inércia. Ninguém acredita verdadeiramente no mal, ninguém acredita
verdadeiramente no bem. Bem ou mal significam, no máximo, o que é o meu bem ou o meu
mal, isto é, o que me parece ser bem ou mal. Poder-se-ia dizer, paradoxalmente, que a
espiritualidade indiana é desprovida tanto do mal como do bem, ou, ainda, que se acha de tal
forma oprimida pelos contrários que precisa a qualquer custo do Nirdvandva, isto é, da liberação
dos contrastes e das dez mil coisas.

A meta do indiano não é atingir a perfeição moral, mas sim o estado de Nirdvandva.
Quer livrar-se da natureza, e por conseguinte atingir pela meditação o estado sem imagens, o
estado do vazio. Eu, pelo contrário, tendo a manter-me na contemplação viva da natureza e das
imagens psíquicas, não quero desembaraçar-me nem dos homens nem de mim mesmo, nem da
natureza, pois tudo isso representa, a meus olhos, uma indescritível maravilha. A natureza, a
alma e vida me aparecem como uma expansão do divino. O que mais poderia desejar? Para mim,
o sentido supremo do ser consiste no fato de que isso é, e não o fato de que isso não é ou não
é mais.
Para mim não há liberação à tout prix (a todo o custo). Não poderia desembaraçar-me
de algo que não possuo, que não fiz, nem vivi. Uma liberação real só é possível se fiz o que
poderia fazer, se me entreguei totalmente a isso, ou se tomei totalmente parte nisso. Se me
furtar a essa participação, amputarei de algum modo a parte de minha alma que a isso
corresponde. O homem que não atravessa o inferno de suas paixões também não as supera.
Elas se mudam para a casa vizinha e poderão atear o fogo que atingirá sua casa sem que ele
perceba. Se abandonarmos, deixarmos de lado, e de algum modo esquecermo-nos
excessivamente de algo, correremos o risco de vê-lo reaparecer com uma violência redobrada.

Em Konarak (Orissa), encontrei um pandit que me guiou e instruiu por ocasião de uma
visita ao templo e ao grande "Templo-carro". Da base ao cume o pagode é coberto de esculturas
obscenas e refinadas. Conversamos demoradamente sobre esse fato insólito; meu guia explicou
que se tratava de um meio de atingir a espiritualização. Objetei - mostrando um grupo de
camponeses jovens que olhavam essas maravilhas, de boca aberta - que eles não pareciam a
caminho da espiritualização, mas que se compraziam em fantasias sexuais. Ao que meu
interlocutor respondeu: "Mas é justamente disso que se trata! Como poderiam eles se
espiritualizar, se não realizassem primeiro o seu carma? As imagens obscenas aí estão para
lembrar-lhes seu dharma (lei); de outro modo, esses inconscientes poderiam esquecê-lo!"

A colina de Sânchi representava para mim algo de central. Lá, o budismo revelou-se a
mim numa nova realidade. Compreendi a vida do Buda como a realidade do si-mesmo que
penetrara uma vida pessoal e a reivindicara. Para o Buda, o si-mesmo está acima de todos os
deuses. Ele representa a essência da existência humana e do mundo em geral. Enquanto unus
mundus, ele engloba tanto o aspecto do ser em si, como aquele que é reconhecido e sem o qual
não há mundo. O Buda certamente viu e compreendeu a dignidade cosmogônica da consciência
humana; por isso via nitidamente que se alguém conseguisse extinguir a luz da consciência, o
mundo se afundaria no nada. O mérito imortal de Schopenhauer foi o de ter compreendido ou
redescoberto esse fato.

Cristo também - como o Buda - é uma encarnação do si-mesmo, mas num sentido
muito diferente. Ambos dominaram o mundo em si mesmos: o Buda, poder-se-ia dizer,
mediante uma compreensão racional; o Cristo, tornando-se vítima segundo o destino; no
cristianismo, o principal é sofrer, enquanto que no budismo o mais importante é contemplar e
fazer. Um e outro são justos, mas no sentido hindu o homem mais completo é o Buda. Ele é uma
personalidade histórica e, portanto, mais compreensível para o homem. O Cristo é, ao mesmo
tempo, homem histórico e Deus, e, por conseguinte, mais dificilmente acessível. No fundo, ele
sabia apenas que devia sacrificar-se, tal como lhe fora imposto do fundo de seu ser. Seu sacrifício
aconteceu para ele tal como um ato do destino. Buda agiu movido pelo conhecimento, viveu
sua vida e morreu em idade avançada. É provável que a atividade de Cristo, enquanto Cristo, se
tenha desenrolado em pouco tempo.

Mais tarde, produziu-se no budismo a mesma transformação que no cristianismo:


Buda tornou-se então a imago da realização do si-mesmo, um modelo que se imita, pois, como
disse ele, todo indivíduo que vence a cadeia dos nidanas pode tornar-se um iluminado, um Buda.
Acontece o mesmo com o cristianismo. Cristo é um modelo que vive em cada cristão, expressão
de sua personalidade total. Mas a evolução histórica conduziu à imitatio Christi, segundo a qual
o indivíduo não segue o caminho de seu próprio destino para a totalidade, mas, pelo contrário,
tenta imitar o caminho que Cristo seguiu. Da mesma forma, no oriente isso conduziu a uma fiel
imitação do Buda. O fato de que o Buda se tenha tornado um modelo a ser imitado era, em si,
uma debilitação de sua idéia, exatamente como a imitatio Christi é uma atecipação da detenção
fatal da evolução da idéia cristã. Buda, pela virtude de sua compreensão, elevava-se acima dos
deuses do bramanismo; do mesmo modo, Cristo podia gritar aos judeus: "Vois sois deuses!"
(João, 10:34); mas os homens foram incapazes de compreender o sentido dessas palavras. Pelo
contrário: o Ocidente chamado "cristão" caminha a passos de gigante para a possibilidade de
destruir o mundo, em lugar de construir um mundo novo.

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