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A política nacional das relações de


consumo como modelo de democracia
deliberativa

Dennis Verbicaro
Doutor em Direito do Consumidor pela Universidade de Salamanca (Espanha).
Mestre em Direito do Consumidor (UFPA). Professor da Graduação e da Pós-
Graduação em Direito (UFPA e CESUPA). Procurador do Estado do Pará.

Artigo recebido em 2/11/2016 e aprovado em 16/10/2017.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Um novo olhar sobre a política nacional das relações de consumo a partir
de seu alcance trilateral 3 Espaços participativos nacionais subutilizados na relação de consumo
e suas potencialidades 4 O papel das associações representativas de defesa do consumidor no
contexto de uma democracia deliberativa 5 A experiência das associações representativas na
Espanha como paradigma de aperfeiçoamento cívico 6 Um breve diagnóstico da frágil experiência
brasileira no movimento associativo das relações de consumo 7 Há possibilidade de se retomar
o tempo perdido? Análise da efetividade dos espaços políticos de participação e deliberação em
matéria consumerista no Brasil 8 Conclusão 9 Referências.

RESUMO: O artigo propõe-se a analisar a formação da identidade cívica e a atuação


política do consumidor como expressões de um conceito instrumental de cidadania
em um modelo de democracia deliberativa. Essa cidadania pressupõe a participação
popular na Política Nacional das Relações de Consumo, sobretudo através das
Associações Representativas de Defesa do Consumidor no Brasil. Será redefinido o
papel do Estado como fomentador da atuação efetiva e permanente da sociedade
civil, mediando o diálogo entre consumidores e fornecedores, o que repercutirá
na prevenção e repressão aos ilícitos de consumo e garantirá o aprimoramento
da qualidade e a segurança dos produtos e serviços colocados no mercado. Foi
utilizado o método dedutivo de investigação, a partir de pesquisa bibliográfica
nacional e estrangeira, tendo como resultado a indicação de espaços políticos de
atuação qualificada do consumidor, com vistas ao aprimoramento da tutela jurídica
das relações de consumo.

PALAVRAS-CHAVE: Direito do Consumidor Política Nacional das Relações de


Consumo Associações Representativas Democracia Deliberativa.

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The national costumer relations policy as a model of deliberative democracy

CONTENTS: 1 Introduction 2 A new look on the national costumer relations policy from
its trilateral scope 3 National underused participatory spaces in the consumer’s relations
and its potential 4 The role of Consumer’s Associations in the context of a deliberative
democracy 5 The experience of Consumer’s Associations in Spain as a civic improvement
paradigm 6 A brief diagnosis of the fragile Brazilian experience in the associative
movement of consumer’s relations 7 Is it possible to recover the lost time? Analysis of the
effectiveness of political spaces for participation and deliberation on consumerist matter in
Brazil 8 Conclusion 9 References.

ABSTRACT: The article proposes an analysis of the civic identity formation and
consumer policy actions as expressions of an instrumental concept of citizenship
in a deliberative democracy model. This citizenship presupposes qualified public
participation in the National Policy for Consumer’s relations, in particular through
the Consumer Protection Representative Associations in Brazil. The State’s role as
developer of effective and permanent activities of civil society will be redefined,
mediating the dialogue between consumers and suppliers, which has repercussions in
the prevention and suppression of illicit consumption and ensures the improvement
of the quality and safety of products and services, placed on the economic market.
The deductive method of investigation was used, based on national and foreign
bibliographical research, resulting in the indication of political spaces of qualified
consumer action, with a view to improving the legal protection of consumer relations.

KEYWORDS: Consumer Protection Law National Policy for Consumer Relations


Representative Associations Deliberative Democracy.

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La política nacional de relaciones de consumo como un modelo de democracia


deliberativa

CONTENIDO: 1 Introducción 2 Un nuevo aspecto de la política nacional de relaciones de


consumo en su gama trilateral 3 Espacios participativos infrautilizados en la relación de consumo
y su potencial 4 El papel de las asociaciones de protección del consumidor en el contexto de
una democracia deliberativa 5 La experiencia de las asociaciones representativas en España
como un modelo de paradigma cívico 6 Breve diagnóstico de la frágil experiencia brasileña en
el movimiento asociativo de las relaciones de consumo 7 ¿Existe la posibilidad de reanudar el
tiempo perdido? Análisis de la eficacia de los espacios políticos de participación y deliberación
sobre el consumo en Brasil 8 Conclusión 9 Referencias.

RESUMEN: El artículo se propone analizar la formación de la identidad y las acciones


políticas de los consumidores como la expresión de un concepto fundamental de la
ciudadanía en un modelo de democracia deliberativa. Esta ciudadanía presupone la
participación cualificada de los consumidores en la Política Nacional de Consumo,
en particular, a través de las Asociaciones de Protección al Consumidor en Brasil. Con
ello, el papel del Estado como promotor de la actuación eficaz y permanentes de la
sociedad civil y como mediador del diálogo entre consumidores y proveedores, que
tiene repercusiones en la prevención y represión de las prácticas abusivas y lo que
asegura la mejora de la calidad y seguridad de los productos y servicios puestos en el
mercado. Se utilizó el método deductivo de investigación, a partir de investigación
bibliográfica nacional y extranjera, dando como resultado la indicación de espacios
políticos de actuación calificada del consumidor, con miras al perfeccionamiento de
la tutela jurídica de las relaciones de consumo.

PALABRAS CLAVE: Derecho del Consumo Política Nacional de las Relaciones del
Consumo Asociaciones de Protección al Consumidor Democracia Deliberativa.

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1 Introdução

O convite à educação cívica nada mais é do que uma provocação dirigida ao


indivíduo, precisamente, ao cidadão e, coletivamente, à sociedade. Há uma
provocação baseada na ideia de que o estado de apatia política que vem atingindo
as sociedades democráticas tem alimentado e às vezes fortalecido as próprias
vicissitudes do sistema político, as desigualdades entre os homens, a violação aos
direitos humanos e, em última análise, a injustiça social – o que, no âmbito das
relações de consumo, ganha uma dimensão ainda maior.
Conceitos como o de solidariedade, liberdade positiva e negativa, democracia
deliberativa e cidadania instrumental serão apresentados e correlacionados entre si,
de tal forma que seja possível visualizar seus elementos de conexão, na tentativa de
se elaborar uma proposta de emancipação social pautada na redescoberta da virtude
solidária e da participação política consciente no processo de aperfeiçoamento das
políticas públicas e normas jurídicas de consumo.
E será justamente a igual habilidade de intervir no processo político-deliberativo
de cada consumidor e de todos ao mesmo tempo que gerará o sentimento de
pertencimento ao grupo, forjando o novo conceito de cidadania instrumental para as
relações de consumo, sendo a Política Nacional das Relações de Consumo a melhor
expressão dessa ideia de autoridade compartilhada.
Ao romper com o individualismo das democracias liberais, fortemente
influenciadas pela ideia de prudência cívica, onde impera um sentimento de
indiferença, justamente para não comprometer a liberdade negativa (tão preciosa
no modelo econômico capitalista), pode-se visualizar as virtudes do instinto de
sociabilidade, único capaz de confrontar para corrigir as mazelas da democracia,
a saber: falta de compromisso e credibilidade na representação política,
supervalorização da regra da maioria, a discriminação por ela produzida e da própria
acomodação incômoda da cidadania, que faz dessa passividade um importante
mecanismo de alienação. O cidadão não pode continuar sendo o maior inimigo do
indivíduo, conforme alertado por Toqueville (1977).
Em um mundo globalmente capitalizado, o indivíduo se tornou refém de
seus impulsos materialistas que, sobrevalorizados pelos meios de publicidade e
convencimento em massa, são vendidos como verdadeiras necessidades de consumo,
supostamente fundamentais para o bem estar físico e, sobretudo, psíquico, o que
evidencia uma sociedade doente pelo consumo compulsivo e irresponsável pela
perda crescente de sua autoestima cívica, ao não mais acreditar que pode ocupar os

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espaços políticos de deliberação criados pelo Direito do Consumidor em sua clara


feição plural.
Não há dúvida de que essa realidade é fruto, além de muitos outros fatores1, do
próspero fortalecimento das democracias prudenciais ou de cunho representativo,
pautadas na ideia de que a única liberdade a ser preservada pelo Direito é a negativa,
até porque a positiva (sequer considerada para efeito de formação do conceito
unívoco de liberdade), seria desgastante.
Por consequência, para o consumidor padrão, cuja individualidade já se mostra
combalida pelos efeitos nocivos do assédio da indústria cultural, a liberdade
positiva não gera um interesse natural, pois a intervenção na esfera pública e
coletiva é quase sempre vista como uma atribuição exclusiva do Estado por meio
dos representantes políticos. Não interessa participar nem decidir e, às vezes, os atos
de eleger e tomar decisões se revelam tarefas tão cansativas e inoportunas que, se
fosse possível, também poderiam ser ignoradas ou transferidas a terceiros. Decidir
é assumir responsabilidades. Será que o consumidor de hoje quer assumir essas
responsabilidades? A delegação dessa capacidade decisória aos representantes
políticos não garantirá mais tempo para os projetos de consumo de acordo com um
modelo de qualidade de vida proposto pela indústria cultural? Não seria mais fácil
continuar acreditando que o Estado será o redentor dos conflitos de consumo da
sociedade pós-moderna, em uma espécie de devoção comodista?
É preciso rever a premissa equivocada de um pseudo protagonismo estatal
no cenário político que acaba por simplificar o alcance da Política Nacional das
Relações de Consumo a uma mera norma programática de definição de competências
administrativas. No entanto, o objetivo central desse artigo é apresentar a Política
Nacional das Relações de Consumo como um compromisso tripartido entre Estado,
sociedade civil e fornecedores, sob a mediação qualificada do ente público,
identificando-se as ferramentas jurídicas colocadas à disposição do consumidor para
a efetiva ocupação desses espaços, com especial ênfase na atuação das associações
representativas de defesa do consumidor, tendo como espelho o modelo espanhol.
A partir da delimitação do problema e do objetivo central da presente pesquisa,
o artigo propõe-se a analisar a formação da identidade cívica e a atuação política

1 Dentre esses fatores, cita-se o grande avanço industrial e dos meios de produção, o crescimento
das cidades pautado na concepção muitas vezes errônea de prazer e felicidade da vida urbana,
desenvolvimento tecnológico da comunicação e das técnicas agressivas de publicidade etc.

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do consumidor brasileiro como expressões de um modelo democrático deliberativo,


através do método dedutivo e de estudo teórico-bibliográfico nacional e estrangeiro.
Nesse contexto, serão apresentados os espaços de participação popular
qualificada na Política Nacional das Relações de Consumo, com especial ênfase
à atuação concertada das Associações Representativas de Defesa do Consumidor,
assim como o papel do Estado como mediador responsável do debate político-
deliberativo entre a sociedade civil e os agentes econômicos do mercado.
Como consequência do maior empoderamento político do consumidor, ele
poderá reposicionar sua liberdade decisória no mercado, pois, ao atuar a partir de
uma perspectiva de grupo, terá melhores condições de influir no aprimoramento
dos deveres éticos do fornecedor, o que repercutirá em maior qualidade e segurança
dos produtos e serviços, transparência nas relações, bem como influirá na melhor
prevenção e repressão aos conflitos de consumo.

2 Um novo olhar sobre a Política Nacional das Relações de Consumo a partir de


seu alcance trilateral

A sociedade de consumo evoluiu de tal maneira que, conquanto haja normas


tão modernas nesse sentido, hoje em dia é muito mais fácil e convidativo, na esfera
individual de interesses imediatos e pela política de recompensas econômicas,
questionar um comportamento ilícito do empresário do que a conduta de um
político, pois nesse último caso opta-se, quase sempre, por um protesto silencioso
por meio da abstenção eleitoral e pelo sentimento geral de desencantamento com
o regime democrático.
Em que pesem os tradicionais obstáculos processuais, não há medo de se
recorrer ao Judiciário para propor uma demanda de consumo, exigindo obrigações,
impondo deveres ou, até mesmo, pedindo indenizações com duplo caráter –
repressivo e compensatório – em face de eventuais danos produzidos por produtos
ou serviços viciados ou defeituosos. Contudo, na esfera política, via de regra, haverá
uma tímida contrariedade quanto aos defeitos da representação política, onde muito
dificilmente se consegue visualizar medidas efetivas de insurgência qualificada.
Todavia, a tutela jurídica do consumidor não pode ficar confinada a um modelo
judicial de ações individuais e pulverizadas de pouca ou quase nenhuma influência
na prevenção e repressão efetiva de conflitos de consumo, sem falar que a litigância
repetitiva do fornecedor se mostra economicamente vantajosa se comparada aos
custos de investimento para o aprimoramento da qualidade e da segurança dos

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bens de consumo colocados diariamente no mercado. O consumidor é lesado no


atacado e condenado no varejo.
É preciso pensar além da judicialização de conflitos, pautada na recompensa
imediata e individual, sendo que a melhor alternativa para essa aparente falta de
perspectivas está na ocupação efetiva dos espaços políticos de deliberação criados pela
Lei no 8.078/1990 – Código de Defesa do Consumidor– (BRASIL, 1990), em especial a
partir do exercício do novo modelo de cidadania instrumental estimulado pela Política
Nacional das Relações de Consumo. Essa política foi concebida com a finalidade de
disciplinar o comportamento do Estado como grande mediador de interesses contrapostos
da sociedade de consumo e dos agentes do mercado, concretizando o princípio da
harmonia das relações de consumo de relevo constitucional pela compatibilização da
livre iniciativa e da proteção do consumidor como pilares da ordem econômica, nos
termos do artigo 170, caput e seu inciso V, da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Em um primeiro momento, se poderia imaginar que as normas, princípios e
diretrizes previstos nos artigos 4o e 5o do Código de Defesa do Consumidor – CDC,
relativos à Política Nacional das Relações de Consumo, seriam dirigidos apenas ao
Estado, pois é inegável que a partir deles exsurgem metas e programas políticos
de ação para o poder público. Mas, em verdade, o alcance do dispositivo é muito
maior, não se limitando a uma função meramente programática, pois objetiva
integrar, através de uma rede de diálogos políticos, o próprio Estado, a sociedade
de consumidores e os fornecedores, ou seja, tem-se a concretização do ideal de
solidariedade emancipatória por meio de um debate permanente e racional entre
os partícipes das relações de consumo, com vistas a aperfeiçoar sua normatização
jurídica e melhor balizar a atuação administrativa e judicial de todos os órgãos
integrantes do sistema nacional das relações de consumo. É a concretização da
ideia de democracia participativa com um viés deliberativo, pois se estimula a via
procedimental para a efetivação dos interesses individuais e coletivos do consumidor.
A Política Nacional das Relações de Consumo pode ser concebida, nessa
perspectiva, como um compromisso tripartido entre o Estado, a sociedade civil e
o empresário, promovendo não apenas um compartilhamento de poder do Estado,
mas também buscando incentivar o resgate da autoestima cívica do grupo, que se vê
como categoria de consumidores, possuindo melhores instrumentos para a defesa
de seus interesses.
O alcance do dispositivo não se limita à tutela dos interesses dos consumidores
individualmente considerados ou que estejam pulverizados na sociedade ­— os quais,

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às vezes, colidem entre si e adotam posições antagônicas — mas sim ao fortalecimento


de um interesse comum e coletivo através do sentimento de empatia social, que
passará a ter legitimidade para participar de um processo político-deliberativo com
vistas a aprimorar a própria tutela jurídica do consumidor.
Como já referido, não se está diante de uma mera referência de obrigações
administrativas para o Estado, mas do estabelecimento de mecanismos que favoreçam
um debate permanente entre os três atores políticos. Há um viés procedimentalista,
em que o conceito de cidadania emerge da identidade política comum de que todos
têm que participar desse diálogo, muito embora a tutela substantiva de direitos
também se faça presente através de referências principiológicas e conceituais
que indicam uma preocupação sensível com o conteúdo das decisões oriundas do
debate político. Vê-se não apenas a definição dos papéis sociais, mas as indicações
consistentes de como deverão ser exercidos por meio de um consenso racional.
Fica evidenciado o apelo à solidariedade, uma vez que o indivíduo é instado a
pensar a partir de uma perspectiva de grupo, abdicando de um conceito de liberdade
negativa, de um individualismo que, durante muito tempo, lhe conformou a ser um
mero espectador da realidade e que, agora, lhe impõe novas prerrogativas e regras
de atuação política, porquanto não lhe é facultada a possibilidade de atuar neste
cenário decisório, mas dele se espera o dever de participação, tudo em prol da
harmonia nas relações de consumo.
A partir dos artigos 4o e 5o da Lei no 8.078/1990, o Direito do Consumidor
ganhou uma roupagem diferente e se tornou um Direito do Consumo, porque
busca um equilíbrio de forças entre o Estado, o consumidor e o fornecedor,
estabelecendo metas, princípios, prioridades e ações concretas. Esse ordenamento
possibilita: minimizar a falta de interesse governamental em uma tutela efetiva do
consumidor; combater a falta de receptividade do segmento empresarial à mudança
de comportamento ético, através do aprimoramento tecnológico da qualidade e
da segurança dos produtos e serviços colocados no mercado – que, naturalmente,
impactam a margem de lucro dos fornecedores – bem como estimular um maior
nível de interesse gregário do consumidor em se articular como categoria e não
mais apenas sob a ótica individual.
No que pertine aos compromissos estatais, tem-se a obrigação de criar e
aparelhar órgãos de defesa do consumidor, de modo a favorecer o controle e a
fiscalização da qualidade e segurança dos produtos colocados no mercado, fazendo

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também referência aos novos mecanismos de defesa coletiva do consumidor através


da sociedade civil organizada.
No Brasil, a ideia de uma política nacional para as relações de consumo
surgiu a partir de uma obrigação internacional. Nesse contexto, a Resolução no
39/248, de 1985 (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1985), acenou para um
comprometimento internacional dos Estados, no sentido de implementarem
políticas públicas de defesa do consumidor e reconhecimento da sua vulnerabilidade
na relação de consumo. O art. 4o do CDC é justamente a materialização desse
compromisso assumido pelo Brasil a partir da referida resolução internacional.
É importante destacar que essa interação entre os partícipes redundará na
elevação do patamar de tratamento dos consumidores e da redescoberta de sua
capacidade de intervenção no modo de produção, pois decidirão quais produtos
e serviços serão colocados ou mantidos no mercado de consumo e terão grande
influência no modo como os agentes econômicos deverão se comportar para possuir
condições de competitividade.
Neste particular, percebe-se uma grande mudança quanto ao manejo do poder
decisório no âmbito da relação de consumo, pois quando o consumidor é considerado
individualmente, sobressaem-se os atributos da vulnerabilidade e, muitas vezes,
também, sua hipossuficiência.
Todavia, quando se amplia a perspectiva para a ideia de grupo ou coletividade
de consumidores, observa-se que seu poder deliberativo é muito maior e sua rede de
influência e sua articulação política acabam por impingir aos agentes econômicos
de mercado a mudança de comportamentos, seja voluntariamente – sob a forma
de marketing de aproximação –, seja coercitivamente – pela sujeição jurídica às
normas administrativas, civis e penais de proteção ao consumidor, cuja exigibilidade
é garantida pela atenta e oportuna atuação cívica da sociedade e pela fiscalização
diligente do Estado.
Nesse sentido, González pondera:

A necessidade de diminuir os riscos por parte dos fornecedores leva à


necessidade de estudar o que, de fato, quer o consumidor antes de decidir
o que irá produzir. Nessa situação final, se exerce uma maior pressão sobre
as empresas concorrentes e se desenvolve um maior nível de aproximação
entre o fornecedor e o consumidor através do mercado. Agora, para que
isso ocorra, se faz necessário contar com um movimento consumerista
adequadamente articulado e suficientemente profissionalizado, que atue
como regulador da economia, dando segurança às empresas num modelo
de livre concorrência. (2010, p. 73, tradução nossa).

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À luz dessa conjuntura, poderá haver uma ação governamental por iniciativa
própria, quando são criados órgãos como PROCON e INMETRO com funções
específicas na fiscalização da relação de consumo, sendo aquele o executor da
política, exercendo o poder de polícia, e este responsável pelo assessoramento
técnico quanto às especificações de qualidade, quantidade e segurança dos produtos
e serviços. Essa é a iniciativa direta do Estado.
Em resumo, a Política Nacional das Relações de Consumo vai espelhar muito
claramente a existência de novos espaços políticos, ou seja, há cenário propício à
deliberação popular acerca das principais controvérsias da relação de consumo e à
divulgação dos novos instrumentos de participação política junto ao Estado (tutela
administrativa) e perante o Judiciário (tutela jurisdicional). Há clara afinidade com
o modelo de democracia participativa, cuja identidade cívica se forma pela igual
capacidade de todos os consumidores influírem no debate acerca da criação e do
aperfeiçoamento das normas de consumo.

3 Espaços participativos nacionais subutilizados na relação de consumo e suas


potencialidades

Muito embora os espaços participativos nacionais sejam mais propícios à


participação plural de grupos representativos, tais como as Associações Civis de
Defesa do Consumidor, não se pode ignorar que a participação individual ou a ação
por meio de outros mecanismos de inserção política, ambas igualmente relevantes,
também poderão ser viabilizadas, através de conferências, conselhos e audiências
públicas, as quais terão suas características e traços distintivos resumidamente
apresentados abaixo.
Neste particular, Gurutz Jáuregui afirma:

Na medida em que o poder é pulverizado na sociedade e na medida em que


existe uma pluralidade de centros de pressão, surge uma variada disputa
competitiva de formulações políticas e de centros de decisão. A política
de governo é resultado de um processo de oferta e procura, negociação,
barganha e compromisso entre os diversos grupos de poder. (JÁUREGUI,
1994, p. 108, tradução nossa).

As conferências podem ser compreendidas como espaços participativos,


convocados pelo poder Executivo com certa periodicidade para a interlocução
racional entre representantes do Estado, do mercado e da sociedade com o
objetivo de discutir e consolidar propostas para determinada política pública,

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sempre de modo transitório embora não pontual. Essa transitoriedade sugere que
tais conferências sejam convocadas com finalidades específicas por um período
determinado (TEIXEIRA; SOUZA; LIMA, 2012, p. 14-15).
Essas conferências possuem quatro objetivos específicos: 1) agendamento:
quando articulam a difusão de ideias e de atores, afirmação de compromissos,
fortalecimento de redes, debates e troca de experiências; 2) análise: realização
de diagnósticos de problemas e avaliação de políticas; 3) participação: ampliação
ou fortalecimento de espaços participativos na gestão de políticas públicas; e 4)
proposição: formulação de estratégias ou políticas para a garantia de direitos,
articulação entre entes federados e financiamento de ações, identificação de
prioridades de ação para órgãos governamentais, além de intenções específicas
de criação ou reformulação de planos, programas, políticas e sistemas (TEIXEIRA;
SOUZA; LIMA, 2012, p. 19).
À guisa de ilustração, a I Conferência Estadual de Defesa do Consumidor, realizada
em Belém/PA no ano de 2008, permitiu a definição das metas governamentais para
a efetivação da presença do Estado e da sociedade civil nas relações de consumo,
em permanente diálogo construtivo com o segmento empresarial.
Por sua vez, os conselhos são espaços para um debate ainda mais qualificado,
compostos por representantes do poder público e da sociedade civil, e podem
assumir tanto a função consultiva, como a deliberativa, pressupondo certa
constância no tempo, de modo a favorecer um maior nível de intervenção nas
políticas públicas. São, portanto, órgãos de manifestação política colegiada que
trazem como traço característico marcante a intencionalidade de um debate
contínuo. Cada reunião não pode ser concebida como um evento aleatório, mas
sim integrante de um processo sistemático de construção de políticas públicas
(TEIXEIRA; SOUZA; LIMA, 2012, p. 14-15).
Os conselhos podem atuar em três finalidades específicas, a saber: 1) definição
de políticas públicas (Conselho Nacional do Meio Ambiente, Conselho Nacional
de Segurança Pública, Conselho Nacional de Saúde etc.), 2) aperfeiçoamento de
direitos de categorias específicas, via de regra, marginalizadas (Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher, Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de
Deficiência, Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Conselho Nacional
dos Direitos do Idoso etc.); e 3) administração de fundos e recursos públicos
direcionados a determinada política (Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa

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dos Direitos Difusos, Conselho Curador do Fundo de Garantia Por Tempo de Serviço
etc.) (TEIXEIRA; SOUZA; LIMA, 2012, p. 16-18).
As audiências ou consultas públicas são exemplos de participação política
ocasional, convocadas de acordo com circunstâncias e temas específicos de interesse
comum ao grupo, seja no âmbito de processos administrativos, como, por exemplo,
nas hipóteses de estudos de impacto ambiental, seja para alinhavar planos diretores
para as cidades, ou na instrução de processos judiciais complexos e de relevância
social, como verificado nos últimos anos no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Não se pode perder de vista que a eleição de um grupo ou de representantes para
um conselho, conferência ou mesmo audiência pública é uma tarefa estratégica, pois
se pauta na premissa de que o escolhido possui as raríssimas condições necessárias
à exceção, ou seja, possui a habilidade de representação dos interesses do grupo e
assim terá melhores condições de fornecer uma visão mais completa da realidade e
das necessidades sociais.
É imperioso ressaltar que a participação do consumidor nesse contexto é
fundamental, seja porque revela uma espiral virtuosa de comprometimento pessoal,
exercício da liberdade positiva e engajamento cívico para com o grupo no contexto
político de sua proteção jurídica; seja porque estimula, por meio do permanente
debate, a construção de estratégias e difusão de expectativas pelos próprios sujeitos,
sob a intermediação do Estado, para a transversalização de demandas ligadas aos
seus mais legítimos interesses, enquanto categoria economicamente marginalizada
pelos agentes econômicos do mercado.

4 O papel das associações representativas de defesa do consumidor no contexto


de uma democracia deliberativa

Há que ser considerada a necessidade de se compartilhar a autoridade política


do Estado com a sociedade civil, o que ocorrerá por intermédio das associações
representativas de defesa do consumidor, conforme preconiza o artigo 4o, inciso
II, b, do CDC: “[...] por incentivos à criação e desenvolvimento de associações
representativas” (BRASIL, 1990).
A partir da leitura do dispositivo supracitado, em cotejo com os incisos do art. 5o
da Lei no 7.347/1985, é possível visualizar os legitimados a agir na defesa coletiva do
consumidor, onde há a previsão de atuação do próprio Estado, através das entidades

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federativas (Município, Estados Membros, Distrito Federal e União2) e do Ministério


Público, e também das associações representativas de defesa do consumidor. Com
efeito, o Estado, diante da sua impossibilidade material de implementar isoladamente
essa política nacional, buscará dividir tal responsabilidade com a sociedade civil,
contando com as associações representativas para alcançar a melhor forma de
operacionalização de seus novos compromissos.
Nessa linha de raciocínio, a sociedade civil, representada pelas associações de
consumidores, pode ser considerada uma força contramajoritária em relação ao poder
econômico dos fornecedores no mercado de consumo, devendo funcionar como importante
elemento de conexão entre os cidadãos e a real consecução das políticas públicas.
Ainda sobre esse trunfo político3, oportuna é a contribuição de Keynes (1986,
p. 34), ao formular a Teoria da Demanda Efetiva, por meio da qual se conclui que a
demanda cria a própria oferta, ou seja, são as próprias demandas dos consumidores
a principal força motriz da atividade econômica.
Indo ao encontro das ideias de empatia social e desenvolvimento de uma
subjetividade coletiva é que se apresenta o desafio das associações representativas
de defesa do consumidor. Para González:

Nesse sentido, está cada vez mais difícil contrapor o poder empresarial
no mercado apenas sob a via individual, sendo necessária a ação conjunta
dos consumidores, que progressivamente vão adquirindo consciência de
pertencimento a um mesmo grupo. Este é o fundamento que dá origem ao
movimento associativo consumerista, fomentado, em muitos casos, pelo
poder público, ao considerá-lo como um elemento indispensável para um
adequado funcionamento do sistema econômico de livre mercado. (2010,
p. 38-39, tradução nossa).

Em uma perspectiva clássica, podemos definir a participação política através de


quatro exigências indissociáveis, a saber: 1) a ação deve ser concreta, por meio de um
comportamento externo de insurgência concreta; 2) os atores não podem integrar
o poder político institucionalizado; 3) a ação deve ter por objetivo a realização
de demandas concretas e 4) os destinatários da ação não serão necessariamente
representantes do Poder Público.

2 Para um melhor aprofundamento sobre a atuação das entidades federativas na tutela coletiva do
consumidor, Cf. SOARES, 2002, p. 81-96.

3 Expressão aqui apartada do seu sentido original concebido por Dworkin, mas compreendida no sentido
de prerrogativa decisória no embate permanente da coletividade de consumidores e agentes econômicos
do mercado.

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A crise em referência decorre da deficiente representatividade dos partidos


políticos e da falta de coerência ideológica entre seus membros, do distanciamento
do grupo em relação ao processo político majoritário, vicissitudes da regra da maioria
e da consequente crise de governabilidade inerente às democracias representativas.
Conforme muito já se discutiu, um dos direitos básicos do consumidor é o de
ser ouvido em suas reivindicações e necessidades, através de canais de comunicação
dinâmicos e facilitados com o Estado e com os fornecedores de produtos e serviços, o
que acaba por influenciar diretamente na elaboração da política nacional das relações
de consumo, tornando o consumidor peça fundamental na engrenagem do mercado,
pragmatizando o inciso V do artigo 170 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
É importante observar que as associações representativas devem atuar como
interlocutores sociais, tanto no trato com os poderes públicos, como em relação ao
setor empresarial, tornando efetiva a participação no contexto político decisório e,
com isso, favorecendo a própria democratização do mercado.
Para reafirmar essa ideia, veja-se a opinião de García-Pelayo:

O poder social e a possibilidade de influir nos centros de decisão política


já não se subjetiva através de pessoas privadas, mas sim é condensado
em grandes organizações e nos executivos que as representam, ou seja, os
indivíduos só podem influir nas decisões públicas através da mediação das
associações. (1977, p. 94, tradução nossa).

Conforme já explicitado no decorrer do presente trabalho, percebe-se um


esgotamento das garantias metassociais, em especial daquelas provenientes do
próprio Estado, visto que, diante do fenômeno da globalização, ele próprio vem
perdendo seu protagonismo decisório no contexto do mercado econômico, seja por
ter sido compelido a compartilhar sua autoridade política com a sociedade civil,
seja porque tem sido confrontado em sua soberania, até então exclusiva, com a
intensificação das relações comerciais internacionais.

5 A experiência das associações representativas na Espanha como paradigma de


aperfeiçoamento cívico

No direito espanhol, igual relevância é atribuída às associações representativas,


que têm um grande protagonismo não apenas no diálogo com os fornecedores para
o aperfeiçoamento do mercado através dos vários instrumentos extrajudiciais de
conciliação, como convênios e acordos de cooperação e arbitragem de consumo,
como por meio da atuação judicial nas mais diferentes espécies de ações coletivas.

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548 A política nacional das relações de consumo como modelo de democracia deliberativa

De modo a viabilizar esse considerável espaço político, o Real Decreto Legislativo


1/2007, de 16 de novembro de 2007 — pelo qual se aprovou o texto atualizado da
Lei Geral para a Defesa dos Consumidores e Usuários e outras leis complementares,
publicado no Boletim Oficial do Estado de 30 de novembro de 2007 — albergou várias
referências às associações representativas, que serão melhor explicadas a seguir.
Segundo a referida lei, para efeito do seu artigo 23, considera-se associação
representativa de consumidor a organização sem ânimo de lucro, que seja
constituída conforme as exigências da legislação sobre associações e que reúna
os requisitos específicos da finalidade estatutária para a defesa dos interesses
legítimos dos consumidores, incluindo sua informação, formação e educação,
podendo integrar-se em uniões, federações ou confederações que tenham idênticos
fins, desde que preservada sua independência em relação aos fornecedores
e aos poderes públicos, sem que a obtenção de financiamento público possa
comprometer tal independência (ESPANHA, 2007).
No artigo 24, apresenta-se o alcance da legitimação das associações de
consumidores e usuários e das cooperativas com o mesmo objeto, como autorizadas
para atuar na defesa dos interesses coletivos da sociedade; caso contrário, em não
havendo o cumprimento dos requisitos, os efeitos práticos de sua atuação ficarão
circunscritos aos associados ou cooperados, o que, no âmbito processual, equivaleria
à noção de representação e efeito inter partes da decisão, em contraponto à valiosa
substituição processual e os efeitos erga omnes e ultra partes na tutela metaindividual
do consumidor (ESPANHA, 2007).
No artigo 27, impõem-se às associações de consumidores as seguintes vedações
em prol da independência e da transparência: a) incluir como associadas as pessoas
jurídicas com intuito lucrativo; b) perceber ajudas econômicas ou financeiras de
empresas ou grupos de empresas que disponibilizem produtos ou serviços no
mercado de consumo; c) realizar comunicação comercial (oferta e publicidade)
de bens e serviços; d) autorizar o uso de sua denominação, imagem ou qualquer
outro sinal representativo na publicidade comercial dos agentes econômicos do
mercado ou não realizar as medidas necessárias a impedir tal utilização, a partir
do momento que dela tomou conhecimento; e) dedicar-se a atividades distintas da
defesa dos consumidores ou usuários; f) descumprir as obrigações de transparência;
g) atuar com manifesta litigância de má-fé, o que será apurado judicialmente; e h)
descumprir qualquer outra obrigação imposta às associações de consumidores e
usuários, do ponto de vista legal ou regulamentar (ESPANHA, 2007).

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Neste particular, acerca das consequências para o descumprimento dos requisitos


legais, observa-se que a legislação brasileira é lacunosa, porquanto embora o CDC
e a Lei de Ação Civil Pública – LACP promovam a organização cívica da sociedade
para a defesa coletiva do consumidor, o fazem de maneira genérica, sem enfrentar
questões do plano concreto, como é caso das penalidades por atuação ilegal, falta de
transparência, apoio publicitário ao fornecedor etc., o que se atribui, naturalmente,
ao nível de amadurecimento histórico do instituto na Espanha em relação ao Brasil.
A constatação acima, num primeiro momento, poderia ser vista como uma
crítica ao microssistema legal brasileiro, mas revela, na verdade, uma sábia omissão
do legislador, pois vislumbrou – em uma eventual previsão legal de requisitos mais
específicos de formação e atuação das associações representativas e penalidades –
um obstáculo natural à formação desses grupos conscientes de participação cidadã.
No âmbito judicial, as associações podem propor ações civis coletivas, exercitar a
ação penal popular e impugnar atos e disposições administrativas que prejudiquem
os interesses e direitos legítimos dos consumidores (GONZÁLEZ, 2010, p. 310).

Podemos concluir, pois, que a atividade protetora dos consumidores e


usuários se fundamenta num tríplice sistema que consiste, em primeiro
lugar, na intervenção direta do setor público, mediante a adoção de
medidas de controle, autorização e regulação que se aplicarão sobre os
produtos e mercado, garantindo a saúde dos consumidores e usuários
e seus interesses econômicos. Juntamente com essa prática, serão os
próprios consumidores, por si só ou através das associações que venham
a constituir, que adotarão as medidas em face das práticas abusivas em
relação aos seus direitos. Por último, se contempla a participação direta
nos processos deliberativos na gestão administrativa. (TERRÓN SANCHES,
2006, p. 207-208, tradução nossa).

Em linhas gerais, o papel das associações representativas em matéria de


consumo no direito espanhol se resume às seguintes diretrizes: a) são instrumentos
de participação cidadã, indispensáveis para o funcionamento da livre concorrência,
surgindo nos países democráticos com economia de mercado, fruto da ação reformista
do Estado social; b) a nova conformação dos mercados lhes permite assumir um
novo e necessário objetivo: a interlocução social entre empresas e consumidores;
c) a celebração de acordos e convenções entre associações de consumidores e de
empresas deve se submeter a um rigoroso marco regulador que impeça a perda
de sua necessária independência e garanta o cumprimento de sua finalidade; e d)
devem ser reconhecidas como uma modalidade associativa específica de relevância

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550 A política nacional das relações de consumo como modelo de democracia deliberativa

constitucional para a defesa dos legítimos interesses e direitos dos consumidores


(TERRÓN SANCHES, 2006, p. 353-368).
No direito comunitário europeu, com a finalidade de se favorecer um maior
nível de penetração política das organizações de consumidores, foi instituído o
Conselho Consultivo de Consumidores, que assumiu o compromisso de difundir
o favorecimento da representatividade coletiva dos consumidores no âmbito
das políticas públicas dos Estados membros; de conceder ajudas econômicas ou
técnicas a projetos e medidas que estimulem a participação associativa no mercado
de consumo e de estimular o intercâmbio de informações e experiências em um
diálogo permanente de entendimento entre produtores e consumidores (REYES,
2009, p. 64).
Da mesma maneira, não se pode olvidar do reconhecimento de legitimação
processual para as associações representativas e os consumidores, pela Diretiva
98/27/CE do Parlamento Europeu, quanto à propositura das acciones de cesación,
congênere espanhola da ação inibitória brasileira, prevista no artigo 84 do CDC.

6 Um breve diagnóstico da frágil experiência brasileiro no movimento associativo


das relações de consumo

Todavia, no Brasil, há um sentimento de desperdício de toda essa evolução


paradigmática, pois a ideia de associação civil está limitada a um contexto lúdico,
recreativo, de lazer e, na melhor das hipóteses, cultural. A sociedade civil não
incorporou esse aspecto da cidadania participativa extremamente importante, o
que provoca, inclusive, a falta de efetividade de muitas normas relativas à defesa
do consumidor, pois é muito difícil para o Estado, de modo isolado, atender às
necessidades coletivas da forma que idealmente se espera por depreensão da lei.
Definitivamente, a sociedade civil não incorporou essa participação, com exceção
de alguns estados como São Paulo, Distrito Federal, Minas Gerais, Pernambuco e Rio
Grande do Sul, em que existem associações com grande poder de convencimento
e de influência na relação econômica de consumo, muito embora seja muito pouco
para afirmar que, nesses estados, a democracia não é meramente representativa, mas
participativa.
A associação de donas de casa de Minas Gerais promove ações judiciais, faz um
acompanhamento semanal dos preços nos estabelecimentos comerciais, disponibiliza
inúmeros testes, resultados e recomendações na Internet, justamente para que o
consumidor saiba com quem deve e com quem não deve se relacionar. No estado

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de São Paulo, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC já conseguiu


inúmeras vitórias judiciais na defesa dos interesses dos seus associados, através de
ações de vanguarda e campanhas de esclarecimento e divulgação, assim como o
Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor – BRASILCON, que edita a
Revista de Direito do Consumidor e igualmente tem papel fundamental nesse contexto.
Infelizmente, órgãos como o Ministério Público e a Defensoria Pública não
têm a onipresença para acompanhar todas as mazelas do mercado de consumo e
agir para solucioná-las, embora já façam bastante. A sociedade civil, pelos próprios
deveres estabelecidos pela Política Nacional das Relações de Consumo, tem uma
parcela de responsabilidade relevante na ausência de efetividade de algumas
normas consumeristas.
É preciso compreender que as associações representativas de defesa do
consumidor podem exercer um papel fundamental no funcionamento da economia
de mercado, como consequência natural do compartilhamento de autoridade com
o Estado, ou seja, servem de ponte para a participação direta dos cidadãos na
economia, corrigindo as distorções do sistema de mercado no sentido de equilibrar
sua posição em relação aos poderosos grupos empresariais, bem como para exercer
uma interlocução social ante os órgãos estatais no que pertine à concretização de
seus legítimos interesses.
Neste particular, é oportuna a expressão de Galbraith, de que as associações
representativas de consumidores funcionam como autêntico contrapoder no mercado
(GALBRAITH, 1963 apud RUIZ GONZÁLEZ, 2010, p. 25), ou seja, um elemento
compensador para conseguir um equilíbrio social entre a livre iniciativa e o
consumidor, contando, naturalmente, com incentivo estatal e, desse modo, conseguir
fortalecer sua posição negociadora no mercado.
Em outras palavras, as associações de consumidores desencadeiam um
novo modelo de corporativismo social por se constituírem em instrumentos de
participação e renovação democrática da sociedade, possibilitando a participação
dos consumidores no sistema econômico através de sua representação.
Não se pode perder de vista o caráter global que tem associativismo em
matéria de consumo como resposta aos processos de diversificação do mercado,
consequência da mundialização da economia, da massificação das práticas
empresariais e da difusão do crédito. O fenômeno consumerista, fruto de um longo
processo evolutivo, é uma realidade que hoje transcende fronteiras estatais e passa
a atingir um conceito muito mais amplo de comunidade internacional.

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552 A política nacional das relações de consumo como modelo de democracia deliberativa

Nesse sentido, não é rara a identificação de alguns de seus institutos sob a tutela de
uma quarta dimensão de direitos fundamentais, como é o caso do comércio eletrônico,
do controle do superendividamento do consumidor, da definição das garantias
internacionais de segurança e adequação de bens de consumo, do alcance e eficácia de
normas e métodos extrajudiciais de relações de consumo supranacionais etc.
Ainda com relação às associações representativas, nos incisos I e II do art.
5 da Lei no 7.347/19854, impõem-se dois requisitos para que possam gozar da
o

legitimidade extraordinária: um de ordem temporal, exigindo sua constituição há


pelo menos um ano, e outro de ordem formal, que impõe uma previsão específica no
estatuto social de que seu objeto também será a defesa do consumidor.
No art. 5o dessa Lei, ver-se-á que os referidos requisitos poderão ser afastados
em algumas circunstâncias, pois, no seu § 4o, tem-se a possibilidade de afastar o
requisito formal na hipótese de manifesto interesse social evidenciado pela dimensão
ou característica do dano ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido. Nesse
caso, o legislador permite que o requisito temporal da pré-constituição seja afastado
na hipótese de dano de relevância social.
Outrossim, é importante observar a necessidade de atuação independente
das associações representativas, à semelhança do que ocorre no direito espanhol,
porquanto, para manter uma atuação firme e permanente no balizamento do
comportamento dos agentes econômicos do mercado, não poderão receber
qualquer tipo de financiamento privado, aceitar publicidade comercial, descumprir
as convenções coletivas de consumo, tampouco atuar em juízo de modo temerário.
Tais deveres decorrem da previsão expressa ou implícita do sistema.
No direito espanhol, também há igual e melhor normatizado espaço de atuação
para as associações representativas de defesa do consumidor, tanto por força do
artigo 38 do Código Civil, da Ley de Enjuiciamiento Civil, da Ley General para la Defensa
de los Consumidores y Usuarios – LGDCU quanto por outras para assuntos específicos:

Ao que se refere às associações, o artigo 38 do Código Civil lhes permitia,


desde muito tempo, ‘exercitar ações civis ou criminais, conforme as leis e
regras de sua constituição’, ainda que na perspectiva atual a novidade esteja
na existência de organizações privadas especialmente qualificadas para a
proteção de grupos socialmente frágeis e difusos. Precisamente, uma das
escassas disposições da LGDCU referidas no processo contempla, no artigo
20, a atuação processual das associações de consumidores e usuários e o

4 Há idêntica previsão legal nesse sentido no art. 82, IV, do CDC.

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Real Decreto 825/1990 desenvolve essa regulação geral. (BUJOSA VADEL,


2006, p. 254, tradução nossa).

Ainda sobre a habilitação processual das associações civis no direito espanhol,


Bujosa prossegue:

Assim, pois, a LGDCU, ao habilitar as associações de consumidores para sua


atuação no processo (art. 20.1), expressamente lhes permite o exercício de
três tipos de pretensões: exercitar uma legitimação extraordinária na defesa
dos interesses de seus associados, exercer uma legitimação estritamente
ordinária na defesa de interesses subjetivos e interesses legítimos que
a associação possa vir a ter como pessoa jurídica e, finalmente, uma
legitimação ordinária sui generis em relação aos interesses gerais dos
consumidores. (BUJOSA VADEL, 2006, p. 261, tradução nossa).

Logo em seguida, foram aprovadas outras leis no ordenamento jurídico


espanhol acerca da legitimação coletiva, tais como a Ley General de Publicidad, que,
ao lado do reconhecimento da legitimação pública e individual, previu a legitimação
de associações de consumidores e usuários na defesa de interesses de grupo em
sentido estrito, tais como ações de cessação da publicidade ilícita5; o que também
se verifica na Ley de Condiciones Generales de la Contratación, com igual extensão da
legitimação coletiva, e mais especificamente a Ley de Enjuiciamiento Civil de 2001
(mesmo que de forma indireta em seu artigo 11); tudo em sintonia com a Diretiva
98/27/CE (BUJOSA VADEL, 2006, p. 261).
No Brasil, as especificidades quanto ao objeto e aos interesses atingidos pela
ação são indicadas logo na propositura da petição inicial, por iniciativa do legitimado
coletivo (art. 82, II, CDC). Essa indicação, quanto ao objeto e aos interesses, terá efeito
quase que vinculante para o órgão jurisdicional, seja para acolher a pretensão nos
exatos limites objetivos e subjetivos em que foi proposta (princípio da demanda),
seja por rejeitá-la quanto ao mérito, ou mesmo, imprecisão técnica dos pedidos
quanto ao seu alcance e sujeitos beneficiados (efeitos da coisa julgada coletiva).
Nessa linha de raciocínio, a jurisdição civil coletiva brasileira, instrumentalizada
pelo microssistema legal de proteção do consumidor, sugere que apenas na fase de
cumprimento da sentença coletiva (execução do julgado) sejam realizados esforços
para uma melhor determinação dos grupos ou sujeitos individualmente atingidos
pelos efeitos da decisão judicial.

5 Cuja congênere no Brasil seria a Ação Inibitória, prevista no artigo 84 do CDC.

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554 A política nacional das relações de consumo como modelo de democracia deliberativa

Isso ocorrerá apenas na hipótese de interesses individuais homogêneos e em


razão do caráter genérico da decisão ante a possibilidade de liquidação e execução
judicial do título executivo judicial, sendo contraindicado fazê-lo antes, conforme
propõe o artigo 94 do CDC, quando se conclamam os consumidores individualmente
atingidos pela prática ilícita a se habilitarem como litisconsortes, o que se revelará
prejudicial à possibilidade de relativização da coisa julgada coletiva prevista no
parágrafo 2o do artigo 103 da mesma lei (BRASIL, 1990, art. 94-98; 103).
Conquanto haja requisitos expressos para o reconhecimento legal das
associações de consumidores, bem como diretrizes orientadoras para a consecução
de suas legítimas finalidades, não se pode perder de vista que estão inseridas dentro
do contexto maior do direito de associação, previsto no inciso XVII do artigo 5o
da Constituição Federal (BRASIL, 1988), pelo qual se reconhece implicitamente
a liberdade de criação, ampliação da competência e alteração estatutária das já
existentes liberdade de organização e funcionamento interno sem interferências
exteriores, assim como a liberdade do consumidor de não associar-se e desfiliar-se
da associação em respeito ao exercício pleno da autonomia de sua vontade.

7 Há possibilidade de se retomar o tempo perdido? Análise da efetividade dos


espaços políticos de participação e deliberação em matéria consumerista no Brasil

Não basta apenas proclamar as virtudes dos novos espaços políticos de


deliberação propostos pela Política Nacional das Relações de Consumo, é preciso que
a coletividade de consumidores acredite verdadeiramente nessas virtudes e possa
visualizar, com clareza, a conexão entre esse modelo de democracia participativa
com os resultados idealizados, ou seja, o consumidor que participa, assim como
aquele que apenas observa, precisa reconhecer a efetividade dessa atuação cívica, o
que seria materializado na sua capacidade, enquanto categoria, de influir, controlar
e decidir sobre a execução da política pública.
Da mesma maneira, não há dúvida de que a ampliação e consequente ocupação
desses espaços políticos pelo consumidor que acredita na efetividade do processo
têm o condão de aprimorar o próprio regime democrático de várias maneiras, dentre
as quais se podem destacar as seguintes: a) formação de cidadãos mais capacitados
para a ação política coletiva e para o exercício da liberdade positiva; b) favorecimento
do aprimoramento técnico do empresário quanto à qualidade e segurança de
produtos e serviços, bem como no que dista ao melhor atendimento das demandas
de consumidores; c) implementação de uma maior transparência, racionalidade

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e eficiência do serviço público e, por conseguinte, do papel regulador do Estado


nesse segmento; d) adequação da função governamental para a concretização de
ações inclusivas do consumidor, não apenas em razão de sua vulnerabilidade, mas
sobretudo por sua hipossuficiência; e e) reconhecimento de um canal aberto para a
canalização das demandas do consumidor.
Neste particular, é muito esclarecedora a visão de Adrián Gurza Lavalle,
ao reconhecer efeitos sociais e psicológicos imediatos da participação política
sobre os sujeitos:
A participação como escola da cidadania, capaz de cultivar o civismo e
de elevar o egoísmo à compreensão do bem público, é uma tese clássica.
Incrementos na autoconfiança ou na autopercepção do senso de eficácia do
cidadão é outro efeito de índole psicológica associado à participação. Nesses
dois efeitos, os positivos seriam capazes de deflagrar círculos virtuosos em
que a participação gera mais participação – ora pelo engajamento cívico ou
pela autoconfiança. Ainda dentro dos efeitos de socialização e psicológicos,
supõe-se também que o engajamento participativo incrementa o senso de
pertencimento do cidadão à sua sociedade. Nesse sentido, a participação
não apenas fortaleceria a formação de identidades políticas amplas, mas
contribuiria para a legitimação das instituições políticas.

[...] Assim, a participação incrementaria os estoques de confiança disponíveis


em uma determinada coletividade, viabilizando a cooperação e a criação
de respostas coletivas a problemas comuns. E por motivos similares,
fortaleceria as associações ou a sociedade civil e, embora por caminhos
pouco especificados, estimularia o bom governo. De fato, a ideia da arte
da associação como antídoto ao autoritarismo do poder centralizado dos
governos foi formulada pela primeira vez no século XIX. (2011, p. 38).

Há que se promover uma verdadeira arquitetura institucional, expressão utilizada


por Brian Wampler (2011, p. 48), para favorecer o sentimento de empatia social e a
formação de laços de solidariedade entre os cidadãos-consumidores.
Com efeito, Wampler explica tal expressão nos seguintes termos:
A arquitetura institucional das IP’s liga os movimentos sociais e as
lideranças comunitárias em um processo contínuo, que pode construir a
confiança por meio de interações repetidas. Os cidadãos têm, através deste
canal, meios para compartilhar seus problemas, bem como para estabelecer
‘laços de solidariedade’ com indivíduos e grupos que enfrentam problemas
semelhantes. A construção da confiança foi citada frequentemente nos
anos 1990 e 2000 como um componente fundamental na criação de
instituições mais eficazes. Assim a arquitetura institucional fornece os
meios para que os cidadãos possam desenvolver fortes laços com seus
concidadãos, bem como com representantes do governo. (2011, p. 48).

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556 A política nacional das relações de consumo como modelo de democracia deliberativa

Essa arquitetura institucional, inerente aos novos espaços políticos de


participação, deverá estar em sintonia com os postulados da transição paradigmática
em direção à solidariedade, donde se percebe um círculo virtuoso no modelo
emancipatório, pois quanto maior o grau de envolvimento do consumidor no
contexto decisório, melhores serão os resultados e mais consistentes as mudanças,
o que gerará mais confiança, aguçando o sentimento de empatia ou pertença ao
grupo, tudo isso multiplicado sucessivamente.
Em outras palavras, a Política Nacional das Relações de Consumo, ao mesmo
tempo em que amplia os espaços de deliberação política, traz regras claras de
estímulo à sua ocupação e, ainda, fornece subsídios para garantir a efetividade
dessa deliberação, o que não nos impede de reconhecer alguns obstáculos.
Esses obstáculos seriam, em síntese, os seguintes: a) imaturidade política da
maioria; b) influência do bem jurídico em discussão (vida, segurança, expectativa,
incolumidade do consumidor, grau de relevância ou interesse imediato do grupo
em sua preservação); c) o impacto e os efeitos colaterais de questões conflituosas
(deve-se criar procedimentos para melhor administração dos conflitos com intuito
de se favorecer um ambiente propício ao atendimento das condições mínimas ao
consenso); d) autointeresse (a participação cívica se justifica, na maioria das vezes,
pela vontade direta dos participantes de resolver questões, embora coletivas, afins a
seus interesses imediatos e concretos, e não pelo espírito altruísta de deliberar pelo
grupo, o que não é de todo mal, ao contrário, esse autointeresse acaba funcionando
como ponto de partida e motivação para o debate); e e) argumentos estratégicos
para a legitimidade democrática (ALMEIDA; CUNHA, 2011, p. 113-116).
A legitimidade democrática estaria relacionada à ideia de boa deliberação,
pela qual se requer o movimento em direção ao consenso, tentando minimizar ou
suprimir os elementos de conflito existentes, seja na opinião ou nos interesses dos
participantes, havendo dois limites a serem observados: a difícil conexão entre
bem comum e interesses parciais (minoritários) e a difícil institucionalização de um
processo decisório baseado no consenso, sem que se utilize de outras estratégias de
negociação (ALMEIDA; CUNHA, 2011, p. 116).
Quanto à institucionalização do consenso, é possível que a visão de mundo dos
partícipes não mude, mas sua forma de concretização sim, através de uma alteração
na percepção acerca do melhor caminho para transformação da realidade (common
ground), ou seja, os interesses coincidem muitas vezes apenas na identificação desse
caminho para direcionar as políticas públicas.

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Não há dúvida, portanto, que o fortalecimento político do consumidor depende,


também, do fortalecimento de seus vínculos associativos.

8 Conclusão
O grande ponto de conexão teórica do trabalho entre os aspectos políticos e
jurídicos reside na identificação das expressões da solidariedade emancipatória
nas relações de consumo no Brasil, o que restou evidenciado pela nova roupagem
interpretativa do que seriam o alcance e a finalidade da Política Nacional das
Relações de Consumo, contemplada nos artigos 4o e 5o da Lei no 8.078/1990, com
as atenções voltadas para a sociedade civil, através da articulação política das
associações representativas de defesa do consumidor.
A Política Nacional das Relações de Consumo será desenhada como um
compromisso tripartido entre o Estado, a sociedade civil e o empresário, promovendo
não apenas um compartilhamento de poder do Estado, mas também buscando
incentivar o resgate da autoestima cívica do grupo, que se vê como categoria de
consumidores, possuindo melhores instrumentos para a defesa de seus interesses.
O novo status político do consumidor o elevará a uma condição de maior
empoderamento no mercado, a partir do fortalecimento de um interesse comum
pelo sentimento de empatia social e que dotará a categoria de consumidores de
legitimidade para participar de um processo político-deliberativo com vistas a
aprimorar a tutela jurídica dos agentes econômicos do mercado.
É importante repisar que o conceito de cidadania para o consumidor brasileiro
emerge justamente da identidade política comum de que todos têm de participar
desse debate político qualificado.
O sucesso da Política Nacional das Relações de Consumo depende, em grande
parte, da crença do consumidor de que pode transformar a realidade social, política
e econômica do país. Caso tais vias de atuação cidadã não propiciem mudanças
concretas ou não sejam percebidas como canais democráticos eficientes, haverá a
perda de credibilidade dessas vias e o consequente desinteresse do consumidor em
continuar investindo nessa linha de atuação.
É importante perceber que essa perspectiva solidária de consumo não depende
exclusivamente de garantias metassociais (que muitas vezes viciam a atuação do
indivíduo a uma espécie de dependência de um modelo paternalista de Estado),
bem como fortalece uma via deliberativa paralela às omissões do poder público,
às frágeis — e muitas vezes promíscuas — interações partidárias, e busca favorecer

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558 A política nacional das relações de consumo como modelo de democracia deliberativa

mudanças muito mais rápidas e com maior grau de eficácia por meio de novos
pontos de conexão entre cidadãos diferentes, que têm suas preferências individuais
agregadas pelo consenso e que alcançam uma identidade política quando vistos
como consumidores titulares de interesses transindividuais.
Não se pode perder de vista que a efetividade deliberativa dos novos espaços
políticos existentes no âmbito nas relações de consumo tem o condão de potencializar
a redistribuição dos investimentos e das políticas públicas específicas de proteção
do consumidor através da inserção gradual do cidadão no contexto decisório.

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