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Pref6clo

Roland Chcmama, na série de cartas que endere-


\'ª ao seu correspondente, que pode ser cada um de
ni'is. seus leitores, trama os fios mestres da caracteri-
1.ai.;üp da depressão contemporânea e de seu possível
tratamento psicanalítico.
A depressão, mesmo não sendo caracterizada como
uma estrutura clínica, não deixa de estar relacionada com
cm.la forma clínica. Poderíamos dizer que o sujeito de-
primido é aquele que está mal em sua estrutura, que pode
ser neurótica, perversa ou psicótica. A depressão é uma
doença do desejo, constituída em torno de uma perda
narcisista signficativa, e quando estamos frente a uma
depressão profunda e estrutural, marcada pela extinção
do desejo e um desinvestimento narcisista extremo, po-
demos então falar em melancolia.
Contudo, dizer isso é ainda muito pouco para
podermos nos situar em relação aos sujeitos deprimidos
que hoje buscam o psicanalista e falam do mal que os
aflige. Neste sentido, Chemama não hesita em tomar
uma posição sobre o ponto de partida de sua concepção
da clínica psicanalítica: a clínica individual responde
ao que se passa na clínica social. Deste modo, o exame
do que se passa em nossa cultura esclarece aspectos
fundamentais do que emerge na fala individual, e esta,
por sua vez, confirma ou não aquilo que a teoria propõe
como hipótese. Em suas cartas sobre a depressão e
orientado pela afirmação lacaniana de que ··o incons-
ciente é o discurso do Outro", Chemama percorre os
detalhes do discurso social contemporâneo, para nele
situar as mpturas do laço social e seus efeitos subjetivos
8 Depressão, a neurose do contemporâneo

n.1 forma da depressão. Neste sentido, mais do que


n·pclir os significantes de Freud e de Lacan, ele se
propõe a interrogar suas articulações e colocá-los à
prova a partir da clínica psicanalítica. Pôr à prova a
teoria pela efetividade clínica, por meio de enunciJldos
hipotéticos e afirmações circunscritas ao particular, é
o que permite deixar cair a linguagem traumática que
tende a fixar o significante em um suposto significado
totalizante.
A hipótese de que a depressão está relacionada
com a queda do valor fálico já vem sendo discutida por
Chemama há bastante tempo. Em Elementos
lacanianos para uma psicanálise no cotidiano 1, ao
examinar a questão do tempo nas depressões neuróti-
cas, descreve os traços que conotam a depressão: aba-
timento, inibição do pensamento, sentimento de vazio,
cansaço, apatia, impossibilidade de amar, impotência
ou frigidez, sentimento de inferioridade, de inadaptação
ou de ausência de valor. Contudo, essa descrição que é
mais médica do que psicanalítica, não toca no ponto
que lhe parece decisivo: a questão do desejo, que está
subjacente à angústia, em geral difusa, que se apresen-
ta no sujeito deprimido. "Se, na angústia, o sujeito con-
fronta-se com a questão do desejo, nem que seja por-
que a angústia supõe a dimensão do desejo do Outro,
pode-se pensar que é por não ter sustentado seu dese-
jo como convinha que um sujeito pode estar deprimi-
do", afirma Chemama.
Contudo, Chemama não se dá por satisfeito com
o que ele mesmo formula e continua com a pergunta: o
que pode produzir a perturbação da relação com o tem-
po nos sujeitos deprimidos? Tomando por referência a
questão do trauma, ele percebe que nos deprimidos
parece não se dar o estabelecimento de um tempo
subjetivo, ou seja, "lá onde há uma história, não há
sujeito; lá onde.há um sujeito, não há história". Aventa
9

então a hipótese de que a relação perturbada com o


tempo está ligada à relação problemática com o que o
estrutura, isto é, com o próprio significante, à medida
que é o significante que dá à coisa sua dimensão tem-
poral. Ora, esta hipótese abre para a pergunta: qual é
então o significante que estaria implicado nessa per-
turhação da dimensão do tempo? Não vamos aqui se-
guir todo o desenvolvimento que é feito nesse livro, no
qual; Chemama já esboça sua concepção da
especificidade das análises com sujeitos deprimidos.
No verbete "depressão", que escreve para o Di-
cionário de Psicanálise,2 Chemama sinaliza que "o
sujeito deprimido vive em um tempo uniforme e mo-
nótono. Mesmo que apresente modificações do hu-
mor, estas, por serem cíclicas, não constituem, de modo
algum, verdadeiras mudanças. É isso, aliás, que cons-
titui todo o problema da relação do sujeito deprimido
com a análise. Como fazer para que ele possa se engajar
nela, se não pode espontaneamente interrogar o que
constitui sua história, em função da possibilidade de
uma mudança real? A resposta deve ser reinventada a
cada vez."
Chemama, em suas conferências no Brasil em
2002, ao propor uma "clínica da forclusão do falo",
situa a problemática da relação com o significante, e
trabalha então com a hipótese de que nos sujeitos de-
primidos teria ocorrido uma "forclusão do falo". Isso
determinaria as perturbações na vetorização do tempo
assim como a extensão do desinvestimento narcísico
nos sujeitos deprimidos. Em sua conferência "Clínica e
ruptura do laço social"3, ele retoma a hipótese inicial
de Lacan, em sua leitura do complexo de Édipo, de
que a energia do sujeito e, em particular, a evidência
de sua vida sexual, dependem da imagem do pai, e que
esta se encontra, em nossa estrutura social, profunda-
mente degradada. Hoje em dia, o pai estaria sempre
1O Depressão, a neurose do contemporâneo

humilhado e degradado, não podendo então exercer


seu papel interditor e aparecer como aquele que abre
o caminho do desejo. Neste contexto, o sujeito con-
temporâneo, nas palavras de Lacan, está destinado à
"grande neurose contemporânea", feita de impotên-
cia e utopia.
Para falar de modo mais específico, Chemama
introduz, ainda nessa conferência, o caso de Denfse,
que retoma nas cartas do presente livro. Essa jovem
mulher, além de sua história individual, testemunha o
que pode ser ruptura atual do laço social. Ou seja, a
depressão em nossos dias não pode ser analisada sem
levar em conta o discurso desinvestido no qual o sujei-
to está tomado. Isso o leva a precisar que, nos sujeitos
deprimidos, não se trataria de uma questão do
recalcamento que incide sobre a sexualidade, mas an-
tes da própria fala em si, que, devido à ruptura dos
laços sociais, o recalcamento incidiria de forma eletiva
sobre a possibilidade da enunciação como tal.
Em que medida uma análise é indicada para os
sujeitos deprimidos? Na conferência referida, ele afir-
ma que "lá, onde o sujeito não acreditava na possibili-
dade de ser ouvido, ele pode pelo menos se dar conta,
em primeiro lugar, de que alguma coisa no que ele diz
constitui o detonador de um endereçamento a outro
mais verídico. Assim, o discurso analítico constitui tam-
bém um laço social, um laço que pode antecipar o
reestabelecimento de outra relação com o mundo". Em
suas cartas, e então talvez possamos começar a enten-
der a razão de tal modo de endereçamento, ele nos
propõe que o sujeito depressivo, na falta de ter acesso
ao registro fálico, poderá estabelecer uma leitura do
saber inconsciente, e isso poderá sustentá-lo e funcio-
nar como uma suplência, no sentido proposto por
Lacan. Como essa suplência pode se constituir, suplên-
cia à carência do pai real, à não-disponibilidade do
11

significante fálico ou outras formas, não há como pres-


crever. Chemama nos alerta que a resposta deve ser
reinventada a cada vez.

MarioFleig

1 Porto Alegre, CMC Editora, 2001.


2 São Leopoldo, Unisinos, 2007.
·' Conferência proferida na Universidade de Caxias do Sul, em
novembro de 2002 e publicada em Scriptura 2, disponível em
www.freudlacan.com.br.
Preâmbulo

Depressão, a grande neurose contemporânea


constitui, de certa maneira, uma seqüência da obra pre-
cedente, Clivagem e modernidade'. Desde já, é preci-
so dizer algo a respeito do motivo pelo qual me refiro
a está obra.
Quando escrevi Clivagem e modernidade parti
de questões - e de dificuldades - relativas à minha prá-
tica. Falava da possibilidade de conduzir o tratamento
de sujeitos perversos, ou também de sujeitos tomados
pela perversão social. Se os primeiros estão convenci-
dos de saber qual é o objeto de seu gozo, e os segun-
dos fazem-se objetos do saber técnico que regula nos-
sas existências, então, como conceber que eles possam
realmente empreender um tratamento analítico? Este
não supõe que o sujeito aceite reconhecer em si a exis-
tência de questões que dizem respeito a todos, e, inici-
almente, daquelas que incidem sobre a identidade e a
posição sexuada?
É para tentar encontrar uma saída para essas
dificuldades que retomei o conceito de clivagem utili-
zado por Freud, principalmente quanto ao fetichismo,
dando-lhe uma maior abrangência. O uso desse con-
ceito me permitiu sustentar a possibilidade de um tra-
tamento analítico em casos que são freqüentemente
considerados como excluídos de nossa prática. O su-
jeito perverso, no meu entender, não está necessaria-
mente seguro de poder dominar o objeto que o com-
pletaria. Por estar clivado ele pode experimentar adi-
mensão da falta e isso pode ser suficiente para lhe fa-
zer empreender, e seguir, uma análise.
14 Depressão, a neurose do contemporâneo

Pouco a pouco, este estudo, que passou pelo


exame que Lacan faz da noção de clivagem, me permi-
tiu abordar não somente a perversão, mas também a
psicose, ou ainda o que chamamos atualmente de ca-
sos borderline - os casos limite - mesmo se esta últi- '
ma noção levante inúmeros problemas. Aliás, eu igual-
mente me referi à neurose, ainda que de uma maneira
mais restrita.
Este novo livro também parte de casos difíceis.
Não são mais os sujeitos que querem gozar a todo pre-
ço, são antes, sujeitos notórios por um radical
evitamento do desejo. Trata-se principalmente daque-
les a quem, correntemente, chamamos hoje em dia de
sujeitos "depressivos". Nós teremos de mostrar que aí
se apresenta uma segunda face, igualmente
preocupante, da clínica contemporânea.
Esta idéia de uma "clínica contemporânea" é
certamente essencial para mim. Ao longo de meu livro
precedente afirmei que a clínica individual responde à
clínica social. Se a clivagem tem uma posição tão im-
portante em nossos dias, ela não deixa de ter relação
com o que é determinante no âmbito coletivo. É esse
tipo de aproximação que hoje eu retomo. 2
Em Clivagem e modernidade utilizei uma for-
ma dialogada que privilegiava o questionamento em
detrimento da descrição ou da demonstração. De uma
forma geral foi bem acolhida. Entretanto, um amigo
lamentou que o "homem honesto" com o qual eu con-
versava não tivesse sido mais caracterizado. É verdade
que meu interlocutor variava ao longo das páginas sen-
do por vezes mais ingênuo, por vezes mais ardiloso,
por vezes também, bastante douto em matéria de psi-
canálise. Como ele poderia ter sido diferente? Esse
homem honesto fazia objeções que eu também podia
fazer a mim mesmo. Se eu tivesse caracterizado dema-
siadamente sua posição, Inês estaria morta. Eu teria
15

apenas que deduzir suas réplicas, em função de que,


inicialmente, eu teria insinuado seu personagem. Em
contrapartida, o tipo de escrita que adotei me condu-
ziu, mais de uma vez, a me deixar surpreender por uma
objeção não prevista. É nesse sentido que disse, no
preâmbulo da obra precedente, que me parecia difícil
falar da clivagem em um registro monocórdio.
Uma vez que aqui não estará principalmente
cm questão a clivagem, eu renuncio a forma dialoga-
da. Mas não ao que era, sem dúvida, o mais importan-
te, que dizer, a tentativa de não escrever apenas para
especialistas. É por isso que eu conservo ao menos um
traço de meu interlocutor. Ele será doravante aquele a
quem eu me endereçarei no decorrer das páginas que
se apresentarão como uma série de cartas, com uma
condição - espero que a concedam - segundo a qual
farei alusão às supostas objeções desse interlocutor,
sem ir até o ponto de escrever as respostas que ele
mesmo presumidamente me envia.
Retomemos, a propósito, ao conteúdo deste li-
vro. Tratar-se-ia apenas de se deixar levar pelo que se
tomou, a sua maneira, um fenômeno de sociedade? O
título poderia levar a pensá-lo, tanto mais que a de-
pressão parece constituir hoje a patologia dominante,
aquela que, em todo caso, é mais freqüentemente
evocada a respeito de dificuldades subjetivas, por ve-
zes bem diversas. Tratar-se-ia então de tomar esta rea-
lidade empírica por adquirida, e de limitar-se à descri-
ção do que, finalmente, nos é bem conhecido? Sim e
não. Está claro que não temos de negar que os casos
de depressão se multiplicam. Mas, sem dúvida, nós te-
mos os meios conceituais de conceber, de uma manei-
ra mais apurada, o que Lacan chamava de a "grande
neurose contemporânea". Lacan nos trouxe, já há lon-
go tempo, um primeiro esclarecimento do que não deve
ser concebido apenas como um humor sinistro, mas
16 Depressão. a neurose do contemporâneo

como uma paralisia da ação, que une a impotência e


a utopia. Eu não me atribuo outra tarefa, a não ser
tentar prolongar, tanto quanto possa, essa interroga~
ção clínica.

Notas
1 CHEMAMA, R. Clivage et modernité. Toulouse, Éres, 2003.
2 Esse novo livro deve muito às atentas observações que Jean-
Pierre Lebrun dadivosamente me fez ao longo do período no
qual eu o escrevia, assim como as trocas que tive com Christiane
Lacôte e Bernard Vandermersch, por ocasião de um seminário
em comum na Association lacanienne internationale.
A carênda de endereçamento

Caro amigo,

Já faz algum tempo que foi preciso interrom-


per nosso diálogo. Devo, hoje, admiti-lo para você?
Sem dúvida, para mim, é que ele foi mais útil, pois,
conversando com você, eu me obrigava a precisar meu
pensamento; eu deixava você fazer as objeções que eu
talvez não fizesse a mim mesmo. Por vezes, eu anteci-
pava sua desaprovação - e por outras, também seu
consentimento. O conjunto era bem estimulante!
Hoje você se distancia. Ou melhor, você já está
longe. Entretanto, eu não renuncio, de forma alguma,
11 me endereçar a você. Não é apenas para comunicar-
lhe ulgo que sem você eu já havia pensado, mas, tam-
h6m porque é somente a partir de você, a partir desse
endereço que você constitui para mim, e eu o sinto
durumente, que poderei articular algo das questões que
me proponho. Se não fosse por isso, por que eu o fa-
rl11 '! Você sabe que eu não me empenho em escrever
um11 obra douta, uma tese universitária, uma exposi-
~Ao que pretendesse a neutralidade e a objetividade.
Se cu escrevo para você, você percebe que se tratará
,l~ nutra coisa. Melhor ainda, você garantirá um pou-
1,•o, por sua leitura atenta e crítica, que eu não me pre-
l'ipltc cm uma tarefa que contradiga a minha experiên-
d11, rNNU experiência que os psicanalistas partilham, e
11uc exclui toda "objetivação".
Eu imagino que nesse ponto você já afaste um
l'""l'O CNlUN páginas de seus olhos e ponha-se a pensar
qur nno 11c.iu garantido, apesar do diálogo bem longo
11111• h•mos mnntido, que eu verdadeiramente lhe tenha
18 Depressão, a neurose do contemporâneo

falado dessa experiência. Bem, se eu devesse respon-


der a você, ou tentasse começar a fazê-lo, eu diria que 4
é uma experiência que, precisamente, diz respeito à
dimensão do endereçamento.
O que se passa em uma análise? Um sujeito em
dificuldades, um sujeito que sofre, vem falar. Não é,
certamente, para obter algum conselho ou algum tra-
tamento. Quero dizer, suas falas não são concebidas
como enunciados que descrevem uma doença ou um
mal-estar. Elas não constituem uma informação a par-
tir da qual o clínico poderia decidir por uma terapêuti-
ca. Sua fala constitui antes uma enunciação, uma quei-
xa ou uma demanda, em todo caso, um ato que deve
ser percebido como tal, porque ele aí engaja seu ser;
em suma, um endereçamento ao analista.
Além do mais, o que eu descrevi poderia ser
verdadeiro em outros casos. De certa maneira, a cada
vez que falamos esperamos do outro o sentido do que
dizemos. Esta mulher frente à qual eu arrisco uma pia-
dinha, como ela vai recebê-la? De acordo com a sua
maneira de responder eu saberei se fiz uma brincadei-
ra, ou se eu disse algo inconveniente.
É essa dimensão do endereçamento que define
para nós, para além do parceiro, para além do "peque-
no outro", o que nós chamamos de o "grande Outro"
ou mais simplesmente o Outro. Falar, falar verdadeira-
mente, é se endereçar ao Outro assim como ao outro.
Nós nos endereçamos a nosso semelhante, certamen-
te, mas também para além dele, ao que se pode conce-
ber como um lugar, o lugar do Outro, o lugar onde o
que nós dizemos pode adquirir sentido.
Sem dúvida, você já sabe de tudo isso. Sem
dúvida, também, você se pergunta por que eu tardo
nisso. É que isso constitui uma excelente porta de en-
trada para abordar algumas novas questões clínicas,
precisamente, aquelas que você almeja me ver tratar.
,\ arinda de e.ndaeçamalto 19

Você deixou claro, a partir do fmal de nossas conver-


sas, que estava bastante interessado no que eu dizia
para que ficássemos apenas nisso. Com efeito, você
me solicitou para retomar um pouco as questões do
ponto onde eu as deixara.
Eu não poderia, entretanto, proceder exata-
mente assim, como se houvesse um fio que eu pudesse
retomar. Na realidade, você verá que eu me inclino a
descrever uma face bem diferente da clínica analítica.
Contudo, penso que isso dará em uma clínica bem con-
temporânea.
Onde eu estava? A questão do endereço. Bem,
veja isto:
Há alguns anos, Denise veio para consulta em
um estado de enorme confusão. Nas primeiras entre-
vistas eu não chego a apreender exatamente o que a
fez vir. Ela fala, sobretudo, de uma determinada ma-
neira de se ausentar. Quando está com alguns amigos
ocorre-lhe sair bruscamente a perambular por lugares
onde ela não tem nada o que fazer. Ela pega um trem,
não importa qual. Ela fica em uma estação qualquer,
em uma cidade que ela não conhece e nem almeja co-
nhecer. Mas, mesmo quando ela fica com seus amigos,
ela se sente distante. Poderia ela mesma dizer que são
amigos? Ela é bem fria, indiferente. Quando lhe são
testemunhados a afeição, o amor, o desejo, ela faz com
que isso seja imediatamente destituído de significação.
Em síntese, o que mais me surpreende, de ime-
diato, é que essa jovem mulher acabou por vir consul-
tar. Geralmente, quando procuramos um psicanalista
podemos mais ou menos rapidamente precisar o que
nos leva a empreender um tratamento, podemos ao
menos formular uma queixa, relatar um sintoma. Mas
o que se passa quando o sujeito parece desinvestir de
tudo? Poderá ele então formular uma demanda? Pode-
rá estar presente em sua análise, já que não está pre-
20 Depressão, a neurose do contemporâneo

sente em seu entorno? Há aqui um tipo de carência de


endereçamento que parece comprometer, com antece-
dência, toda a esperança de mudança. ,
Casos assim são hoje muito mais freqüentes do
que se poderia acreditar. Diríamos que eles não forne-
cem as condições almejadas para começar uma análi-
se? Mas o problema aqui não é saber o que é almejável.
O problema é apreender por que são essas as condi-
ções que se apresentam cada vez mais freqüentemente
e, ainda, como nós podemos fazer para acolhê-las as-
sim como às outras, porque, acima de tudo, é nossa
tarefa fazê-lo.
Talvez, aliás, você já tenha compreendido de
que clínica eu quero lhe falar. Tal modo de entrada em
uma análise é representativo desses sujeitos que en-
contramos tão freqüentemente hoje em dia, e que cha-
mamos fundamentalmente de depressivos, porque a
depressão não se caracteriza inicialmente por uma tris-
teza qualquer. Ela representa bem mais um estado de
desinvestimento radical, tanto da vontade quanto do
desejo, e também um sentimento de que nenhum ato
seja possível. E se o tratamento parece, em tais casos,
tão difícil, é porque uma dificuldade mais geral parece
comprometer a própria fala, minando, assim, na base,
a empreitada que, apesar de tudo, nós ainda podemos
propor. Eu retomarei isso mais precisamente em mi-
nha próxima carta, se ao menos você manifestar algum
desejo de saber mais.
O que é a depreMio1

<'uro amigo,

l ·:u gostaria, inicialmente, de responder a uma


1lt- ,m,s observações, que eu considero muito justa. Se

1'11 insisto tanto no endereçamento, e em primeiro lu-


>(111", naquele em que me ponho ao escrever para você,
111io seria, você me diz, por me colocar na posição de
111111lisantc, mais do que na de analista?
Na análise o clínico fica mais silencioso; ele não
,Ma ouvir seus afetos, nem, aliás, suas interrogações.
l 0:ll' ahrc, com sua escuta, um lugar onde é o sujeito - o
111111lisante - que poderá tomar a palavra, fazendo de si
o suporte do Outro, no sentido em que já defini esse
h·nno. Será que aqui eu não estaria invertendo os pa-
pl~i s? O que certamente você compreendeu, é que uma
amílisc não funciona sem uma certa dissimetria Ferenczi
havia imaginado uma análise mútua que seria preciso
11r1icular em certos momentos delicados do tratamen-
to. Parecia-lhe, com efeito, que o analista corria o ris-
l'o de fazer obstáculo ao tratamento, se os sentimentos
1111c ele próprio experimentasse a respeito de seu
1111111 isante permanecessem inconscientes. De onde, ert-
tí\11, o projeto de tentar analisá-los com seu próprio
pnl'icntc 1• Mas Ferenczi teria chegado rapidamente à
1Mia de que havia aí um impasse. A propósito, como
clois sujeitos poderiam trocar assim suas posições?
< '11nm um deles poderia se confiar a alguém de quem
l'lc· havia. inicialmente, acolhido as dúvidas subjetivas?
A I rnnsfcrência não poderia se instaurar em tais condi-
~·1)1·,. l' sabemos que ela é essencial ao tratamento.
22 Depressão, a neurose do contemporâneo

Enfim, aqui, eu não estou praticando a análise,


apenas tento articular algumas questões. E a partir do
momento em que o faço, é verdade que eu adoto, por
assim dizer, uma posição que é sensivelmente difer&-
te daquela que eu ocupo na poltrona analítica. O pró-
prio Lacan dizia que em seu seminário ele falava como
analisante. Isso em nada o impedia de manter, viva-
mente, um questionamento analítico!
A respeito do que você mais me interroga, to-
davia, é sobre o uso que faço do termo depressão. Você
tem o sentimento de não reconhecer bem, em minhas
fórmulas gerais, o que se designa correntemente por
essa palavra. Entretanto, você há de convir que esse
termo, em seu uso trivial, é um tanto impreciso. Ele
permite reagrupar perturbações bem diversas, pertur-
bações das quais se pode ter a impressão de nada apre-
sentarem de específico. Esse diagnóstico é evocado
tanto nos momentos de ansiedade quanto nos momen-
tos de profundo sofrimento moral. Ele pode designar
tanto um estado que dura há muito tempo quanto uma
reação às dificuldades da vida.
Efetivamente, quando alguém perde seu traba-
lho, quando não acha outro, ele pode entrar, no correr
dos meses, em um processo que freqüentemente será
percebido como patológico. Ele não dorme mais, tor-
na-se irritável, deprecia-se, e não pode mais suportar a
companhia dos outros. Aqueles que o convidam para
alguma festa entre amigos ficam na mão, pois, como
ele poderia encontrar coragem para se divertir? Mas,
inversamente, aqueles que, como ele, encontram-se em
uma posição difícil, por exemplo, os outros desempre-
gados, estes o enervam ou não o suportam. Ele não
quer sua companhia, porque esta o lembra, em dema-
sia, de sua própria situação. Em suma, ele se isola em
uma solidão pesada e desesperada. Dir-se-á então que
ele está deprimido, que isso pode ser explicado por
O que é a deprasáo'? 23

sua siluação, mas também que isso compromete suas


dmnces de sair dela, e lhe será recomendado de boa
vonlade que vá consultar um médico ou um psicólogo.
Da mesma forma, quando duas pessoas se se-
param, não é raro que ao menos uma delas entre em
um estado bem vizinho. Estado que, por exemplo, será
acompanhado de um mal-estar quanto à sua própria
imagem: era seu companheiro quem reenviava para tal
jovem mulher certa imagem valorizada, era aos olhos
dele q1.1e ela era bela ou espirituosa. Doravante, e por
um tempo mais ou menos longo, ela não mais o é. Di-
gamos que ela não se percebe mais como tal, e que
desde então ela efetivamente se enfeia, ou renuncia a
sua vivacidade. Aliás, você conhece tudo isso e não há
razão alguma para alongar esses tipos de descrições.
Será isso a depressão? Sobretudo, você me
pergunta, no fundo ela verdadeiramente concerne ao
psicanalista? Essa questão poderia parecer surpreen-
dente, mas eu creio adivinhar o que você tem em men-
te. Tratando-se de uma patologia tão ligada a um con-
texto real, pensamos seguidamente que uma ajuda pon-
tual pode ser suficiente. Ajuda social, no caso de de-
semprego, mas certamente também ajuda médica. O
médico, que com bastante freqüência toma o termo
depressão como uma etiqueta cômoda, tem a sua dis-
posição os remédios que foram tão desenvolvidos a
partir de algumas décadas, os antidepressivos 2 • Ele os
prescreverá de boa vontade - o que o sujeito, por ve-
:r.es, suportará com dificuldade, porque ele aí verá o
risco de, daqui para frente, seu humor depender de al-
gumas moléculas químicas.
Mas enfim, quer ele o suporte ou não, será bem
preciso que ele o tome. Cada um, em tomo dele se
encarrega de lhe demonstrar a necessidade. A depres-
são, lhe dizem, é uma verdadeira doença, e que é tratá-
vel. No entanto, se o psicanalista emite alguma dúvida,
24 Depressão, a neurose do contemporâneo

ele será rapidamente denunciado como um irresponsá-


vel, que assume o risco de deixar seus pacientes afun-
darem-se no sofrimento, com o perigo de suicídio 'lue
os acompanha.
Talvez você se espante, caro amigo, com o tom
irônico que eu adoto aqui. Porém, eu garanto a você
que sou menos virulento do que muitos de meus cole-
gas. Esses, com efeito, não estão longe de pensar que
"a depressão", em sua extensão moderna, e em sua
unidade fálica, é uma criação da indústria fannacêuti-
ca. Seria porque se pode produzir e vender
antidepressivos que certa quantidade de sintomas fo-
ram reagrupados sob o nome de "depressão".
Eu compartilharia facilmente, aliás, suas sus-
peitas sobre certos malefícios de nossa economia "li-
beral". Mas eu não diria, como eles, que a multiplica-
ção dos casos de depressão se explica unicamente por
razões econômicas. Realmente, a cada dia vêm con-
sultar no analista, pessoas que se queixam de um mal-
estar difuso, de uma inapetência para viver, de uma
impossibilidade de desejar e de agir. Sentimento de in-
capacidade, esgotamento, fortes angústias e insônias
acompanham esse quadro clínico, em proporções vari-
adas. Mas, mais do que detalhar os elementos desse
quadro, eu considero necessário tentar dizer a você
alguma coisa do que particulariza essas patologias. Eu
o farei ao distingui-las do que se entende, classicamen-
te, pelo termo neurose.
Na neurose os psicanalistas aprenderam, a par-
tir de Freud, a captar a presença de um desejo recalcado
que se manifesta no sintoma. Desde que nos conhece-
mos, você sem dúvida teve tempo de ler os cinco casos
clínicos. Assim, você pôde ver, em particular, como
Freud dá sentido aos sintomas histéricos. A afonia de
Dora representaria algo de um desejo sexual, aquele
que seu pai e a Sra. K experimentaram um pelo outro,
O que é a de.pressão1 25

e que, devido à impotência do pai, tomaria uma forma


hucogenital.
Na neurose obsessiva (e, por exemplo, para fi-
car nos cinco casos clínicos, no caso do "Homem dos
ratos") os sintomas exprimem, eles também, algo do
desejo. Assim, o aparente absurdo de certos atos ob-
sessivos não nos engana. O sujeito pode não saber o
que os determina e ele pode até mesmo julgá-los in-
sensatos. Contudo, a força da compulsão prova que
alguma coisa de essencial para ele está aí colocada. O
llomem dos ratos tropeça em uma pedra ao caminhar
cm umà estrada. Ele a levanta, mas, em seguida, diz a
si mesmo que isso é um absurdo, e que é conveniente
restabelecer o estado anterior. Ora, o primeiro movi-
mento estava associado à idéia de que o veículo de sua
hem-amada passaria por ali, e que aquela corria o risco
de se acidentar. Quando o Homem dos ratos recoloca
no caminho a pedra que ele havia deslocado, esse ato
curioso de restabelecimento de um estado anterior
mostra-se como a expressão de um desejo agressivo.
Você certamente observará que esse ato, nas
condições em que foi efetuado, permite uma dissi-
mulação do mesmo desejo, visto que, aparentemen-
Lc, nada se passou na realidade; visto que a pedra se
encontra na mesma posição original. Mas, mesmo
assim, nós estamos distantes do que, no meu enten-
der, caracteriza uma posição depressiva. Na verda-
de, você sabe que certos sujeitos nunca agem; sabe
que eles são inventivos na demonstração de que a
realidade só possa ser constituída pela desoladora
repetição da mesma coisa. Bem, é ao especificar o
que constitui essa posição que se poderá ter uma idéia
do que nós nomeamos "depressão".
A repetição, para os analistas, não é forçosa-
mente sinônimo de identificação total entre um acon-
tcci mento de um dado momento e sua reedição, um
26 Depressão, a neurose do contemporâneo

pouco mais tarde. No caso do Homem dos ratos, a


pedra no caminho, no momento t, não é a mesma pe-
dra no caminho, no momento t + 1. Ora, é iss(i} que o
sujeito deprimido nega. A pedra, para ele, é sempre a
pedra, pesada e imóvel. Quando nega toda possibilida-
de de mudança, por meio do que se poderia chamar de
a maior força de inércia, conforme o uso trivial da ex-
pressão, percebe-se que se trata, antes de tudo, de fazê-
lo de maneira tal que nenhum desejo possa advir.
Uma última coisa, se você me permite, antes
de colocar um ponto final nesta carta tão longa. Pare-
ce-me que não deveríamos considerar como supérflu-
os os determinantes circunstanciais de um estado
depressivo. Quando um homem, por exemplo, afunda
na depressão em decorrência da perda de seu trabalho,
não é preciso ser um bom clérigo para apreender que
esse trabalho lhe dava não só um valor, como também
referências. Em todo caso, se você quiser, alguma coi-
sa a partir da qual ele podia ser referido e nomeado. É
por isso que o trabalho que cada um exerce pode ad-
quirir um valor essencial no registro simbólico. É por
isso, também, que a perda do trabalho pode desarrimar
o sujeito. Não se tratam apenas de dificuldades com a
realidade, mas ainda de um verdadeiro desespero devi-
do à perda do que podia dar sentido à sua existência.
Porém, se tomamos as coisas dessa maneira, percebe-
mos que tal situação, sem dúvida, é apenas uma das
modalidades pelas quais um homem ou uma mulher
podem se encontrar privados de suas referências sim-
bólicas. E se essa privação, para alguns, pode se colo-
car de saída, como eu explicarei a você no decorrer
das cartas, a depressão poderá ser concebida como uma
estrutura psíquica particular da qual, em nossas cartas,
nós poderemos nos ocupar de maneira específica.
O que é a depressão? 27

Notu
1 Ver principalmente S. Ferenczi, Journal clinique, Paris, Payot,

1985. Conviria, sem dúvida, a respeito dessa tentativa de


Fcrenczi, que não ficasse em uma fácil ironia. Com efeito, ela
vem responder à dificuldade do trabalho analítico, principal-
mente com sujeitos psicóticos, para os quais a transferência se
apresenta em um registro bem particular. Assim, mesmo a idéia
de uma análise mútua mereceria, em Ferenczi, ser ressituada no
trabalho permanente que esse analista - segundo Lacan, "o mais
autêntico interrogador de sua responsabilidade de terapeuta" -
fez quanto à questão da condução do tratamento.
1 Todas as estatísticas atestam que a França é o primeiro país do

mundo no consumo de psicotrópicos ansiolíticos, antidepressivos,


soníferos, etc.
Um sqjelto sem história

Caro amigo,

Inicialmente, responderei a sua questão sobre


os medicamentos. Você não compreende minha posi-
~·ão. Por um lado, realmente, parece-lhe que eu consi-
dere com algum desdém a tentativa de levar à depres-
são uma resposta medicamentosa. Por outro lado, você
se surpreende com o fato de que eu recuse denunciar,
pura e simplesmente, a indústria farmacêutica. Será,
l'lltão, que eu deixo algum lugar para essas drogas tão
prescritas atualmente?
Efetivamente, eu não nego que em certas cir-
rnnstâncias o recurso a alguns antidepressivos possa
se revelar útil, paradoxalmente eu diria que é sobretu-
do no quadro de uma análise, em certos momentos de
uma análise. Na verdade, não é raro que o trabalho
analítico conduza um sujeito depressivo a sair um pou-
rn da inércia, a afrontar a realidade. Ora, essa confron-
1a~·ão pode se revelar difícil, sendo que pode acentuar
seu sentimento de impotência, ou lembrar-lhe os fra-
l'assos passados. Nesse caso, o uso pontual de alguns
medicamentos pode ser necessário, e ele também o é
para que o tratamento possa prosseguir.
Em contrapartida, não compreendi bem porque
você se surpreendeu com aquilo pelo qual eu comecei
minhas duas primeiras cartas. Você diz preferir que eu
rheguc mais rápido ao objeto que deve nos ocupar, a
l'sla clínica do sujeito contemporâneo pela qual você
\l' interessa cada vez mais. Por que será que a cada vez

t'II me detenho em questões concernentes ao analista,


110 que o coloca na posição do Outro, suporte de um
30 Depressão, a neurose do contemporâneo

endereçamento, ou ainda no que ele mesmo coloca em


ação quaI&do, como eu o faço aqui, ele tenta dar conta
de sua prática? Na verdade, você me acusa de tne
comprazer em uma autocontemplação, para não dizer,
em um gozo narcísico.
O que é isso, então? Você está brincando, eu
penso. Que eu saiba, foi você mesmo que me propôs
uma questão sobre a dimensão do endereçamento que,
acima de tudo, eu não faço mais do que responder.
Entretanto, vou acrescentar alguma coisa. Espero que
desta vez você se dê por satisfeito.
O que está em questão é que nós não podemos,
em caso algum, opor o que constituiria uma clínica
objetiva àquela que concerniria ao analista. Na realida-
de, o analista, ou pelo menos sua função, a maneira
como ele a sustenta, faz parte integrante do incons-
ciente!
Eu bem sei que você nunca almejou se subme-
ter à experiência de tratamento. Contudo, naquela cir-
cunstância, você me disse que muitas vezes havia fala-
do com pessoas que estavam em análise, ou ainda com
outras que a haviam concluído. E você trouxe o que
não deixa de surpreendê-las. Alguns anos após o fim
do tratamento, elas percebem que seus sonhos, por
exemplo, tomam-se menos legíveis. Não significa ape-
nas que não tivesse ninguém para interpretá-los. No
período de análise, ocorria-lhes fazer por si próprios
uma boa parte do caminho, quando a análise se inter-
rompia durante algumas semanas. Mas, naqueles mo-
mentos, certamente a transferência se mantinha, e as
questões inconscientes do sujeito, ao articularem-se aí,
tomavam-se de alguma maneira mais presentes, mais
localizáveis.
Aliás, é preciso ir um pouco mais longe. Não
pense que o sujeito que consulta possa, de saída, des-
crever uma patologia, uma "doença" da qual ele indi-
Um aq)elto sem história 31

ljUC os sinais, e o clínico simplesmente faça o diagnós-


1ll'O. Se podemos falar de neurose obsessiva é porque
determinado discurso, ao se desdobrar no tratamento,
udquire certas características.
Na última vez, eu falei a você sobre o Homem
dos ratos. É a respeito dele que Freud faz uma obser-
va1rão que poderia parecer curiosa aos olhos dos
neófitos. Ele diz que, no tratamento, o sintoma come-
'-ª por se reforçar e de alguma maneira ele encontra a
coragem necessária para se afirmar e se desenvolver. É
algo bem importante. Se o sintoma continuasse a se
dissimular parcialmente - e inconscientemente- como
ele o faz freqüentemente, ele ficaria fora do trabalho
da fala e das associações, e o sujeito teria poucas
chances de se desfazer dele.
Tudo isso, evidentemente, tem suas conse-
qüências. Diremos que a histeria, a neurose obsessiva,
a fobia e a perversão se apresentarão diferentemente
de acordo com nossa maneira de conceber o tratamen-
to, nossa maneira de conduzi-lo, nossa maneira de es-
cutar os sujeitos que vêm nos consultar. Dizê-lo assim
seria presunção ou modéstia? Em todo caso, a coisa é
inevitável. É a partir do dispositivo do tratamento que
as diferentes neuroses se colocam em perspectiva.
Mas também é daí que se precisa retomar à
depressão. Ela poderia perfeitamente ser abordada a
partir da própria definição do dispositivo do tratamen-
to, ou melhor, de sua orientação. Eu tive a oportunida-
de de participar, há alguns anos, de jornadas de estu-
dos que a Association freudienne 1 organizou sobre a
dcpressão2, nas quais tratei da questão do tempo nas
depressões neuróticas. Isso sempre me parece consti-
tuir uma questão importante e que se faz necessário
retomar.
Certamente, haveria muito a ser dito sobre essa
questão. O sujeito deprimido está tomado em um tem-
32 Depre.ssão, a neurose do contemporâneo

po circular. Tratar-se-ia apenas da projeção do retopio


periódico de seu humor depressivo? Ele tem a impres-
são de que sempre cairá na tristeza e no desânimo, não
importa o que faça. Contudo, talvez seja preciso ir um
pouco além, e interrogar o que constitui uma relação
particular com o tempo, a fim de apreender uma di-
mensão por si mesma patogênica.
Pode-se, aliás, objetar que o tempo circular que
descrevo não é outro senão a forma mais corrente da
temporalidade. É fato que nossa representação do tem-
po esposa a forma circular do relógio, ou seja, a proje-
ta no retomo das estações.
É necessário então precisar: o tempo, para um
sujeito deprimido, aparece como uma entidade sem
contornos definidos, sem verdadeiro relevo, sem futu-
ro e, logo, sem verdadeiro passado. Apreender a im-
portância de um acontecimento passado já seria indi-
car a possibilidade de outros acontecimentos sobrevi-
rem e mudarem o curso das coisas.
A questão, certamente, é menos a do aconteci-
mento do que a da possibilidade de subjetivá-lo. Para
explicar seu estado, o sujeito deprimido pode dizer que
foi vítima de um traumatismo. Mas, como ele não se
implica subjetivamente no que declara, esse acidente,
que se mantém para ele totalmente estranho, não per-
mite qualquer instalação de uma história, ou pelo me-
nos de uma história que seria verdadeiramente a sua.
O que eu tentava dizer naquela intervenção é que, na
depressão, ali onde há uma história, não há sujeito e ali
onde há um sujeito não há história.
Entretanto, talvez você saiba que Lacan, em um
dado momento, definiu a própria psicanálise como aqui-
lo que permitia "reordenar as contingências passadas
ao lhes dar o sentido das necessidades vindouras3". Não
pretendo que essa seja a definição derradeira, nem a
melhor. Mas ela conserva sua pertinência. Ora, a de-
33

pressão pode ser exatamente pensada como o que


ohstaculiza esse encaminhamento.
O sujeito deprimido não quer dar ao passado
11111 novo sentido em função de um futuro: o futuro, ele
,e recusa a imaginá-lo. Ele repete, aliás, como qual-
11ucr um. Mas ele garante que essa repetição seja um
l'l~tomo do mesmo. Aqui eu apenas forço o traço. Ele
pode reconhecer com rapidez que é essa sua posição.
A prova é o fato de que, ao surgir algo favorável em
sua exi~tência, de maneira geralmente inesperada, ele
pode cair no maior desespero.
Por que isso é assim? Você compreende que eu
não posso lhe esclarecer esses mecanismos de uma só
tacada. Em contrapartida, o que me proponho a fazer,
l~m uma próxima carta, é falar da evolução histórica de
nossa relação com o tempo. Você verá que ela não é
estranha às questões de nossa clínica.

rlotu
'Denominada posteriormente de Association lacanienne
lnternationale.
1 O texto desta intervenção, "A questão do tempo nas depressões
neuróticas", foi publicado em meu livro Elementos lacanianos
,,,,ra uma psicanálise no cotidiano, Porto Alegre, CMC Edito-
rn, 2002. As páginas que seguem aqui retomam parcialmente
l'SNC texto, mas constituem também a ampliação de uma outra
mtcrvenção, "Representações do tempo e da depressão" feita na
Jornada da Association lacanienne internationale em março
1004.
' I.ACAN, J. "Fonction et champ de la parole et du langage
,·111 psychanalyse". Em Écrits, Paris, Seuil, 1996.
A relação com o tempo

Caro amigo,

Então, você não se opõe que eu trate destaques-


li'h I inesperada, a de nossa relação com o tempo! Você
podl· objetar, todavia, não sem humor, que eu não
11111darei trunca. Mais do que ficar sabiamente nas des-
' 11\·úcs clínicas, ainda vou embarcar em algumas con-
""ll·ra~·ões gerais sobre nosso social, considerações mais
1111 menos pertinentes, mas que terão ao menos a van-
1agl'lll de satisfazer a mim mesmo. Tudo o que você
pl·1k, conforme diz, é que antes de chegar lá, eu fale
11111 pouco mais sobre a importância para o sujeito de-
primido, do retomo do mesmo, bem como sobre sua
11·jl·ição a quaisquer mudanças, principalmente às fa-
v, ll'iÍvcis.
A propósito, mesmo relendo-o várias vezes, não
"l'Í se você notou a maneira como se encerra esta ob-
"l'l'vação que você me faz, e que acabo de transcrever
,k maneira mais precisa. Você inicia mencionando mi-
nha rejeição às mudanças ... Nesse caso, o que o inte-
1l'ssa é a rejeição da mudança no sujeito deprimido.
É preciso dizer, caro amigo, que a rejeição às
mudanças é a coisa do mundo melhor partilhada. Nós
ll'lllOs necessidade de um ponto fixo, de um hábito, de
11111 comportamento mais ou menos ritualizado, que nos
.,.aranta nossa identidade. Esses comportamentos po-
11l-111 ser desastrosos. Entretanto, de certa maneira nós
, '" amamos, visto que os repetimos.
Porém, o sujeito depressivo vai mais longe, ao
llll'nos no meu entender. Ele ama não apenas a situa-
\' fio que se repete, seja ela desastrosa, mas a própria
36 Depressão, a neurose do contemporâneo

repetição. No fundo ele está apegado a uma forma de


lógica particular que lhe faz pensar que, assim como
foi uma vez, nunca pode mudar. E o que é caro,p ele é,
sem dúvida, a lógica que organiza tudo isso, essa lógi-
ca circular que estrutura sua relação com o tempo.
Por que isso é assim? Tratar-se-ia de se con-
vencer que o acontecimento desagradável que ele não
pára de repetir é produzido por uma necessidade abso-
luta a qual não poderia não ter acontecido? Tratar-se-
ia de poder deixar de lamentá-la? Ou, mais obscura-
mente, se trataria de desculpar Àquele que seria a cau-
sa da infelicidade primeira (pai ou amigo) demonstran-
do que ninguém poderia ter feito melhor, que ninguém
poderia ter evitado qualquer drama passado e, então,
o sujeito não cessaria, em sua vida, de percorrer os
infelizes rastros? Penso em casos de pessoas que rece-
bo em análise, casos que não almejo falar em detalhes,
e que, de fato, são bem distintos uns dos outros. Mas
estou certo, que aquilo que lhe indico evocará, para
você, muitas pessoas, suas conhecidas. Em todo caso,
essa lógica da repetição do mesmo se encaminha para
uma negação de toda história possível. Foi para tratar
dessa negação ativa que, na última vez, propus-lhe
voltar ao que pode se modificar, historicamente, em
nossa relação com o tempo. A esse respeito, no entan-
to, não parto do nada. Atualmente, começamos a ver o
surgimento de estudos bem interessantes que se ligam
a essa questão. Encaminho-o a uma entre elas, no li-
vro de François Hartog, recentemente lançado e que
se chama Regimes de historicidade 1• O livro é consa-
grado à descrição e ao esclarecimento de diversas "ex-
periências do tempo" que se sucedem na história. Se,
no antigo regime de historicidade, o passado esclarece
o futuro - pelo peso de toda tradição - concebe-se que
a Revolução Francesa tenha modificado a relação com
o tempo, orientando prioritariamente o olhar na direção
,\ Nlação com o tempo 37

de um futuro a ser construído. Sempre parece, ao ler o


livro. que o autor privilegia uma outra ruptura, que se
Mllmria no início do século XX.
Essa ruptura é marcada, por exemplo, na arte,
pl'lo surgimento de movimentos como o do futurismo.
1·'.stc, com efeito, poderia constituir apenas uma das
novas formas que um tempo adquire orientado em
direção ao futuro, e, sobretudo, extremamente acele-
nulo. Mas F. Hartog cita Marinette, grande teórico do
hlturismo, quando este proclama que "o tempo e o es-
paço morreram ontem". Nós já criamos, diz ele ainda,
"11 eterna velocidade onipresente". Isso não equivalerá
u dizer que, se o mundo atual for de alguma forma pré-
l'iµurado por esses tipos de concepções, ele privilegia-
rn o presente? E será este um presente sempre reduzi-
do à dimensão mais efêmera daquilo que surgirá e de-
,aparecerá com a maior rapidez? É a isso que F. Hartog
rhamará de o "presentismo" 2 •
Mantenha presente - eu penso que isso terá
rcrta importância clínica - a idéia de que a aceleração
do movimento, que poderia parecer voltar o homem
para o futuro, na verdade, o confina em um presente
sem perspectiva. Então, sigamos um pouco Hartog: a
l'poca contemporânea desvalorizou o passado. Mas se
o futuro, nesse início do século XXI, nem sempre é
positivo, e é útil explicar no quê, só restará o presente.
F Hartog sustenta que o próprio museu, que deveria
1cprcsentar a possibilidade de confrontar o presente a
uma espessura temporal, pode abandonar esse objetivo.
Hartog se refere assim ao projeto do Centre
Pmnpidou que era explicitamente o de expor me-
"' is arte moderna do que arte contemporânea e,
111ais ainda, de mostrar a arte sendo feita. O que
,·stá sendo feito, o que está em curso, eis o que
hoje é privilegiado.
38 Depressão, a neurose do contemporâneo

Será que essa valorização do imediato, do que-


está-em-curso, não evoca nada para você? De minha
parte, isso me faz irresistivelmente pensar na
onipresença, no discurso contemporâneo, cPd referên-
cia ao "tempo real".
O que é o tempo real? Mesmo que essa noção
diga respeito a processos técnicos diversificados, ela
evoca, sobretudo em nossa civilização, esta forma de
temporalidade que é a dos traders, aqueles que apli-
cam na bolsa os capitais dos quais estão encarregados.
Quando fazem uma operação, eles podem ver os efei-
tos, ganho ou perda, imediatamente, porque é imedia-
tamente que os números aparecem na tela.
Dessa forma, o mundo contemporâneo é o
mundo do computador, no qual as operações se efetuam
mais rápido, sem cessar, mas, também, o de uma eco-
nomia na qual o valor, essencialmente, não pode mais
se referir a uma duração; a do tempo necessário à fa-
bricação da mercadoria, ela mesma reunida a uma ou-
tra duração diferentemente mais longa, onde se consti-
tuiu o capital fixo, aquele da produção dos meios de
produção. Mesmo sendo mercadorias que se trocam -
e não ações ou moedas - o essencial é não apenas pro-
duzi-las mas também criar a necessidade de adquiri-
las, e de estocá-las o mais rapidamente possível na par-
te do mundo onde melhor serão vendidas.
Nessa configuração, é preciso dizê-lo, o pró-
prio sujeito não pode mais atribuir valor, em seu traba-
lho e em sua vida, ao duradouro, mas apenas ao que
parece responder, no momento, às exigências de uma
ordem que ele não pode dominar. Você acredita que
isso possa ter algum efeito sobre ele?
Eu ficarei nisso por hoje.
,\ ~ o com o tempo 39

1 HARTOG, F., Regimes d 'historicité. Présentismeetexpérience

,/11 temps, Paris, Seuil, 2003.


1 E Hartog cita um estudo de Éric Michaud, inédito, que chama
11 atenção para o destaque feito ao presente nos Pófrios títulos
dos manifestos das vanguardas deste período: Simultanefsmo,
Nunismo (de nun, em grego), lnstantanefsmo, Prwentismus -
t' PREsentismus.
O édipo e o tempo

Caro amigo,

Desta vez, está dito, você está furioso. Você


111\11 aprcdou de forma alguma que eu o tenha deixado
, 11111 uma fórmula elíptica, ainda mais que no seu en-
h·11tll·r o conjunto de minha carta não permitia ver onde
,·11 queria chegar.
É verdade que eu poderia - seria essa sua ex-
111'\'lativa? - tentar extrair de imediato uma perspecti-
vII mais analítica. Por exemplo, tome a questão do "tem-
po real". Em uma série de conferências feitas em
e '111'i1iha, no Brasil, Charles Melman abordou o "tem-
po real" dizendo que se pode concebê-lo como "o fato
ill' l'star implicado por um elemento que não é prepara-
do por nenhum discurso 1". Ora, é sempre um discurso
qUl' nos permite analisar um acontecimento. Na ausên-
n11 de todo discurso, o sujeito se encontra de algu·ma
11 ,, ma cm face de um traumatismo, equivalente à cena
primitiva que a psicanálise define classicamente como
o momento no qual a criança é confrontada, de manei-
111 mais ou menos brutal, com a sexualidade de seus
puis. Essa idéia me parece importante, ao relacionar de
11111ncira bem direta nossa maneira de viver o tempo
-.odal e o que lhe corresponde na constituição da sub-
1<'1 ividade. Ainda seria preciso tentar seguir de maneira
mais precisa essa articulação, e efetivamente eu não
huvia almejado fazê-lo no final de minha última carta.
De fato, se eu parei, é porque senti que arrisca-
vu chegar a um desenvolvimento que diz respeito à
hist6ria da Filosofia. Eu pensava fazer referência a uma
mutação em profundidade da relação com o tempo,
42 Depressão, a neurose do contemporâneo

mutação que fora perceptível na filosofia de Descar-


tes, e igualmente, aliás, na de Malebranche. Você teria
verdadeiramente ficado contente de me ver derivar na
direção de tais considerações? Não nego que não as
retomaremos, mas talvez possamos, por 'fmquanto, ir
por outro caminho.
Para concluir é preciso acrescentar alguma coisa
à questão que eu evocava. Tratava-se, você se lembra,
de descrever essa tirania do imediato da qual nós to-
dos somos vítimas. Em nosso mundo contemporâneo
o sujeito deve estar incessantemente disponível. Pode-
se muito bem reduzir seu tempo de trabalho, fazê-lo
passar para 35 horas semanais! Mas você sabe que isso
é a acomodação do que aparece claramente como uma
extensão da "flexibilidade". O ideal, no fundo, é que
ele esteja disponível para a empresa, no momento pre-
ciso e onde ele seja necessário, quer seja em um do-
mingo ou em um feriado. Está aí o sentido que se pode
dar à banalização da segunda-feira de Pentecostes, se
pelo menos você me permitir adentrar um pouco mais
em nossa controvertida atualidade social e política.
Ora, você notará de imediato, com o que se
passa aqui, com a nova agenda da vida social, que al-
guma coisa do simbólico está mal colocada. Quando
falo de simbólico não penso necessariamente, é preci-
so especificá-lo, em uma dimensão mais ou menos re-
ligiosa. Os domingos não se apresentam mais como
dias sagrados e nem mesmo a segunda-feira de Pente-
costes, mesmo sendo um feriado, nunca constituiu um
dia sagrado. O simbólico, eu o havia definido - desde
o início de nossas conversas - como sendo a própria
ordem da linguagem, uma vez que tem um funciona-
mento próprio e que comanda o sujeito. Mas você cer-
tamente apreendeu que o simbólico, precisamente, in-
clui tudo que constitui regra e regulação, desde a proibi-
11 ...lpo e o tempo 43

\i111,t,, incesto às formas mais cotidianas da limitação


tl11 •~ozo.
A esse respeito, é permitido pensar que a divi-
1o íl11 ,to tempo pode constituir um aspecto não

1u·v.li~cnciável do simbólico. Isso já é verdade no que


11111~~c ao social. Em um sistema de organização da pro-
1 h1\·ilo que distingue claramente os momentos de tra-

h11lho e os de não-trabalho, o trabalhador sabe ao que


,·1,· renuncia, mas, também, do que ele pode dispor.
1sh, fornece um quadro, uma referência, em relação ao
'llll' adquire sentido e também à aplicação em seu tra-
hul ho e sua busca de uma satisfação exterior àquele.
Quando essa alternância se encontra
,t,~srcgulada, ele não sabe mais no que se fixar. Por
111L·nos que seja um empregado, ou que esteja no qua-
1lrn de uma empresa muito ativa e sensível às exigênci-
us do mercado, ele pode não conservar a menor auto-
11u111ia em relação ao que lhe será pedido incessante-
mente. Ele se submete a um sistema de obrigações quase
morais, ilimitados e mais imaginários do que simbóli-
,·os. Ele constituirá um simples apêndice da empresa,
llll:apaz de sustentar suas próprias expectativas, inca-
pu:r. de se "separar" dela2 •
Você me acompanha quando afirmo que a divi-
s1lo simbólica do tempo de trabalho e do tempo de não-
trnhalho é, no fundo, bem vizinha das proibições for-
muladas à criança? O menino não tem acesso, de ime-
diato, a essa mulher especial que é a sua mãe. Mas essa
proibição comporta uma promessa, a de poder mais
tarde afirmar um desejo masculino com uma outra
mulher. Ora, esta dupla dimensão, da proibição atual e
, la promessa de uma satisfação vindoura, atualmente
,·stü cm declínio. Assim, pode-se, sem dúvida, fazer
11111 paralelo entre o que desregula a organização do
44 Depressão, a neurose do contemporâneo

tempo do trabalho e o que desregula a relação particu-


lar com o tempo de existência subjetiva tal como se
elabora no quadro familiar.
Sem dúvida você se pergunta, ~o ponto em que
estamos, por que eu fiz esse longo desvio? Seria ele
mesmo necessário, uma vez que se tratava de retomar
a essa boa e velha interdição edipiana? Mas penso que
você rapidamente apreenderá que justamente lhe pro-
ponho ler o édipo em uma perspectiva um tanto nova.
Aqui, o que me interessa no édipo não é realmente o
amor pela mãe e a ri validade com o pai, mas o fato de
que o édipo introduz a criança em uma ordem tempo-
ral, e, sem dúvida, é nessa que o édipo vale, particular-
mente, como simbólico. O simbólico tomado nesse sen-
tido implica a dimensão do tempo, da duração, da his-
tória.
B. Vandermersch trouxe uma interessante con-
tribuição à questão da temporalidade na psicanálise,
em sua ligação com a reformulação, por Lacan, do
édipo3• Seu texto diz respeito ao "menino Hans", céle-
bre caso de fobia infantil desenvolvido por Freud em
"Análise da fobia de um menino de cinco anos". Lacan
mostra, ao retomar o texto de Freud, que o pai de Hans
era muito gentil e, então, não podia liberá-lo totalmen-
te do desejo da mãe: carência de pai real da qual nós
voltaremos a falar. B. Vandermersch, de sua parte, se
detém na única interpretação dada a Hans por Freud
quando de sua única entrevista (era o pai de Hans que
o analisava!). Essa interpretação tem a seguinte for-
mulação: "Bem antes que você tivesse vindo ao mun-
do, eu já sabia que um Hans nasceria um dia, que ama-
ria tanto sua mãe que seria forçado a ter medo de seu
pai e, eu já havia dito isso a seu pai." O que é impor-
tante aqui não é o conteúdo da interpretação edipiana,
aliás, psicologicamente inexata, uma vez que o pai de
Hans não é tão assustador, mas, antes, a introdução do
O édipo e o tempo 45

"11í .ií" ligado a um "não ainda" em uma estrutura tem-


poral que não cessará de voltar aos mitos que Hans
n 111slruirá em sua análise. B. Vandermersch é bem con-
v111rente quanto ao fato de que o entrar em jogo de
11111a particular temporalidade, onde as coisas, ainda não
.,,.mio, já estão alí há longo tempo, permite a Hans sair
d1· !-.lia posição fóbica.
Se levarmos isso a sério, o que poderemos di-
11·1'! Parece que por meio da interpretação edipiana, o
itlll' l,.reud procede de fato, é a organização de uma
11nkm temporal na qual tudo não é situável no mesmo
11•111po, na qual há certamente o "vindouro", mas que
,h·pende de um "já af'.
Essa estruturação temporal tem, por si, vários
l'l,·ilos. Ela, sem dúvida, permite estabelecer que nada
1111 mundo tem um estatuto de contemporaneidade ou
d1• imediatismo e que tudo é possível ao mesmo tem-
i'º· Essa lembrança é essencial para o sujeito.
Se a estrutura temporal tem tal importância é
porque ela participa da dimensão do Outro em relação
11 ,,uul um sujeito pode se situar. Nisso ela é parte inte-
11.1 nnte do Simbólico como tal.
O Simbólico é o que distingue as gerações. É o
qm· vem dizer ao sujeito que ele não pode partilhar o
v.111.11 da geração precedente, e que ele deve esperar
1 ,1111 vez. Mas é também o que lhe permite garantir para
,., , ,lesdc então, que o gozo ao qual ele terá acesso,
•,1•1 (1 kgítimo. Tendo renunciado a uma parte do gozo
11111s também ao imediatismo da satisfação - poderá
, '"lumhrar, mais tarde, um prazer apenas diferido4.
O que eu falo para você me parece estar
1' ,11111111ente na seqüência do deslocamento que Lacan
,,p,·111 cm relação à questão do édipo. O que ele man-
11•111 ni!-.so é essencialmente a castração, a lei que se
111111111nite de uma geração à outra. Mas, desde que eu
llw 1li>1.a isso, você apreenderá a que ponto esta formu-
46 Depressão. a neurose do contemporâneo

lação não é possível em um sistema de representação


que abole toda a continuidade temporal.
Não poderemos nós, a partir daí, conceber que
às mutações históricas da relação com o tempo
corresponde o enfraquecimento da lei simbólica tal
como a percebemos atualmente? Aliás, no sentido es-
trito, eu não pretendo que haja mais incestos no mun-
do contemporâneo do que no de nossos avós. Mas é
preciso retomar essas questões de uma maneira mais
ampla.
Com efeito, por um lado, no social há essa
focalização no presente, um presente sem duração, do
qual eu falei a você. Mas, por outro lado, essa dimen-
são se encontra necessariamente na esfera privada.
Assim, o sujeito não pode mais aprender a diferir seu
desejo e seu gozo, e parece que ele poderia conceber
ainda menos que seria preciso ensinar a criança a espe-
rar. O ponto extremo é que a criança, recém distinta
do adulto, partilhará seus prazeres assim como suas
apreensões. Tanto a mãe quanto o pai não se entre-
gam, freqüentemente, a atos incestuosos, mas eles dei-
xam a criança ver todos os movimentos passionais que
os animam, o que reforça, de alguma maneira, suas
pulsões, voyeuristas e exibicionistas, sob o manto, às
vezes, de um "naturalismo" ideologicamente assumi-
do. Eis aí um movimento ao qual seria difícil retomar.
Pelo menos, é preciso convir que isso produz uma pro-
miscuidade que não se dá sem problemas.
Evidentemente seria preciso ressituar, em um
quadro ainda mais geral, o que falo a você e que diz
respeito a nossa relação contemporânea com tudo o
que poderia comportar uma dimensão dessimétrica.
Atualmente nós temos tendência de apagar todas as
disparidades subjetivas, embora se trate da relação com
aqueles aos quais delegamos certo poder elidindo-os
do rapport5 entre os sexos e da relação entre as gera-
O ..Slpo e o tempo 47

\On. Exclusivamente, esse processo que


homogeneíza todas as posições da estrutura social
p111kria desencaminhar o sujeito. O que eu acrescento
11q11i é que a perda de um quadro temporal coerente
, 1111trihui amplamente para essa desordem.
Que soluções o sujeito poderá encontrar nessa
, 1111figuração? Seja aparentemente fazendo o que se
''"lwra dele, põe-se a consumir o momento presente e
,, sutisfação que este possa lhe trazer, seja experimen-
1111uJo um forte desprazer frente ao que haja de efêmero
,. de inconcluso. Ele se dobra, então, em uma inatividade
11111is ou menos entristecida nesta depressão da qual
111h tentamos ter alguma idéia ao longo destas cartas.
Suiha que nós não perdemos de vista as questões liga-
tlus a nossa clínica contemporânea.
Eu almejava, já há alguns dias, lhe dar a co-
nhecer uma outra observação. Eu havia lhe dito que
11 temporalidade contemporânea privilegia o presen-
tl' imediato, o instante destacado de toda continuida-
1k histórica. Você me acompanharia se eu acrescen-
tussc a que isso pode conduzir? Paradoxalmente à
itléia de uma ordem imutável, na qual a diacronia
tende a desaparecer em proveito do imediato, o pró-
prio instante não é mais uma simples mediação entre
um antes e um depois. Ele se toma o horizonte
111transponível - e logo permanente - de tudo o que
é. A isso corresponde, em nossa clínica, a ligação do
sujeito à dimensão do mesmo: a impossibilidade de
projetar qualquer futuro que seja.
Depressão. a neurose do contemporâneo

notas
1 MELMAN, C. Novas formas clínicas no início do terceiro

milénio, Porto Alegre, CMC Editora, 2003.


2 A respeito dessas questões, ver CHEMAMA, R. "Le travail

aujourd'hui", em Le discours psychanalytique (Revista da


Associationfreudienne internationale), nº 12, outubro de 1994.
3 VANDERMERSCH, B. "Hypothese sur l'efficacité de l'unique

interprétation de Freud à Hans", em Bulletin de l'Association


freudienne internationale, nº 60, novembre de 1994, retomado
em Essais nº 8, Fenétres sur corps, Toulouse, Éres, outono de
2001.
4 Se o que se transmite de geração em geração, é antes de tudo a

proibição, a castração pode inversamente se definir como trans-


missão, quer dizer, o desdobramento do eixo do tempo.
5 Por sugestão de Charles Melman, durante o seminário "Como
alguém se toma paranóico? De Schreber a nossos dias", na
Unisinos, Rio Grande do Sul, maio de 2007, conservaremos o
termo francês, rapport, sempre que se referir a rapport sexuel,
visto que se distingue do termo relation (relação). Rapport, nes-
se caso, é utilizado no sentido matemático da proporção. A clás-
sica expressão de Lacan, "il n'y a pas de rapport sexuel" poderia
ser traduzida por "não há proporção sexual". N.T.
•o Inconsciente é a políttca•

Caro amigo,

O que lhe disse na última vez parece ter tido


1111·-. de lhe agradar. Em todo o caso, você protesta
1111•1111s do que de costume. Entretanto, você almeja que
1111-. cklcnhamos um momento para precisar alguns
p11111os de ordem geral, que dizem respeito às relações
1•111n· o individual e o coletivo.
Na verdade, eu concebo que as discussões que
11111111,vcmos recentemente não tenham parecido indi-
' 111 daramente para você qual a idéia que tenho dessas
11•111\·c)cs. Mas eu não sei muito bem se poderia acres-
' ,·111ar a isso grande coisa! Contudo, lembraria a você
,il.!&llls elementos tentando precisá-los.
Os psicanalistas repetem freqüentemente que
1'111'11 Lacan, "o inconsciente é o social". De minha
pune. cu nunca encontrei em sua obra esta fórmula
1·111111ciada exatamente dessa forma'. Mas vê-se bem
1'111 llllC ela contempla uma vigorosa idéia de Lacan. É
c111l~ o inconsciente, o que vale para cada um como in-
' 1111sl'icnte, depende dos discursos sociais.
Lacan, bem cedo, formula a idéia de que o in-
ni11scicnte é transindividual. Você pode apreendê-lo a
p11r1ir do que dissemos quanto ao endereçamento. Se
111110 discurso é "endereçado", isso serve também para
111111clc que nós não pudemos sustentar. O que é in-
L e111scicnte, o que é recalcado é inicialmente o que pa-

11111 na beirada de nossos lábios, o que nós nunca pude-


mos dizer, e que, finalmente, nós não podemos mais
ll'l'Onhecer para nós mesmos. É, diz Lacan, "essa par-
h' do discurso concreto, como transindividual, que faz
50 Depressão, a neurose do contemporâneo

falta ao sujeito para restabelecer a continuidade de seu


discurso consciente2".
Daremos um passo adiante interrogando sobre
o Outro ao qual cada um se endereça. Você sabe que
ele não se reduz ao interlocutor. A esse respeito é sufi-
ciente pensar no diálogo interior que nós não cessa-
mos de fazer - menos conosco mesmo do que com
alguma instância cuja presença nós experimentamos
mais ou menos confusamente. Será tão inconcebível
pensar que essa instância pode ser representada pelo
social, ou melhor, pelos discursos que o organizam? É
em função desses discursos que nós falamos, que nós
nos calamos, que nós depreciamos o que teríamos de
dizer. É em função deles, igualmente, que emitimos
alguns protestos que tomam facilmente a forma de sin-
tomas. Como eu havia lhe dito, quando de nossas dis-
cussões, pode-se sem dúvida considerar que o incons-
ciente é aquilo de inaudível no discurso dado. Ou ain-
da: a clínica individual responde à clínica social.
Todavia, talvez você sustente, assim como al-
guns de meus colegas, que essa instância do Outro tende
a desaparecer da subjetividade moderna, porque esta
se organiza em tomo da horizontalidade da relação com
o semelhante, e que ela exclui assim todo além, todo
terceiro. Isso procederia da saída da religião, da
deslegitimação dos poderes, da ideologia contempo-
rânea que não cessa de preconizar um igualitarismo
abstrato - mesmo que as desigualdades de todos os
tipos se multipliquem.
Poder-se-ia desenvolver cada um desses pon-
tos referindo-nos a algumas obras psicanalíticas con-
temporâneas, mas igualmente a alguns livros escritos
por autores que não são analistas, e que esclarecem
muito nossa reflexão.
Tome, por exemplo, uma obra como a de
Marcel Gauchet. Ele mostra de maneira bem forte, em
"O lnc:omdenteéa polítka" 51

111111s diferentes obras, que em nossas sociedades, du-


11111tc longo tempo, a religião foi estruturante no senti-
cl11 de que ela comandava a forma política das socieda-
tlc·s e definia a economia do laço sociaP. Colocando
11111a ordem transcendente, ela permitia fundar a
clisparidade das posições entre governantes e governa-
dos - disparidade essencial, mesmo em uma democra-
ri u, e talvez, sobretudo, em uma democracia, se não
quisermos que o poder eleito seja a cada instante
clcslegitimado por aqueles que se apressam em substi-
1uí-lo. Ora, de acordo com M. Gauchet, atualmente
m~s deixamos a religião. Não é que as religiões tenham
deixado de existir-certas formas particulares, princi-
pulmente sectárias, ao contrário, conhecem um grande
desenvolvimento. Mas elas não determinam mais a for-
ma do poder político nem a ordem coletiva. Isso signi-
licará que nossas sociedades são privadas de toda re-
ferência a uma dimensão de alteridade que regularia as
diferenças e os conflitos da sociedade civil?
Não podemos pensá-lo. A idéia de um estado
regulador evidentemente não desaparece totalmente,
mesmo que esse estado abdique com freqüência em
relação a outras exigências, que são as da economia de
mercado em escala internacional. Mas M. Gauchet
mostra que a nova organização do poder inverte a or-
dem tradicional. O poder real, por exemplo, "repre-
senta o outro a fim de produzir o mesmo". Entenda-
mos que o rei representa a ordem divina, mas, "através
da mediação real, a coletividade humana se une em seu
fundamento invisível e, ao mesmo tempo, se identifica
rnmalmente com o poder que a rege - o corpo político
reside no corpo do rei". Ao contrário, o poder demo-
crático "representa o mesmo, mas produz o outro: o
ideal democrático implica, com efeito, em que a socie-
dade, ao delegar seu poder, represente-se a si própria
através dele. Mas se ela quer fundá-lo realmente como
52 Depressão. a neurose do contemporâneo

poder, ela deve fazer dele outro4 • Pode-se mesmo di-


zer, à proporção que esta alteridade não esteja garanti-
da desde o início, ela deve, na prática, ser marcada de
maneira ainda mais forte.
Você pensaria, caro amigo, que nós teríamos
aqui uma nova maneira de fundar esta idéia de uma
clivagem constitutiva da modernidade da qual havía-
mos longamente falado? Fazer o mesmo a partir do
Outro, isso se concebe. M. Gauchet fala de maneira
bem precisa de um mecanismo de identificação, e é
verdade que os sujeitos podem, sem maior dificuldade,
pensar no que circula na ordem social a partir do prin-
cípio Um que eles reconhecem. Sem dúvida é mais di-
fícil proceder ao contrário. O poder, que deveria cons-
tituir, no coletivo, uma dimensão Outra é ao mesmo
tempo reconhecido, mas sempre suscetível de ser ques-
tionado, rejeitado, recusado. Não haverá aí, no que tan-
ge à política, uma clivagem inseparável da
modernidade? E se "o inconsciente é a política", será
que essa clivagem não representará o que atualmente
está em operação no inconsciente? Um Outro
dessacralizado: eis a partir do que nós temos de pensar
a clínica contemporânea.
"O blClDl8denteéa polílim" 53

notas
' 1!m contrapartida, podemos encontrar o enunciado "o incons-
1 lente é a política" no seminário A lógica do fantasma,
hwC'iation lacanienne internationale. Paris, 2003, lição de 10
,Ir maio de 1967.
1 I .ACAN, J., "Fonction et champ de la parole et du langage en

111,yrhunalyse". Em Écrits, Paris, Seuil, 1996.


1 Vl•r, por exemplo, a esse respeito, GAUCHET, M. La religion
,11111., la démocratie. Paris, Gallimard, 1998.
1 C>utro que nós escreveríamos, de nossa parte, com um O mai-
1IMnalo. Trata-se de fundar na escala social uma instância que
111111 11c reduza ao jogo da concorrência dos interesses particula-
1rN. Aproveitamos esta nota para indicar uma obra que apresen-
111 ,lc maneira bastante clara como nós poderemos trabalhar jun-
11111 noções extraídas dos diferentes campos da psicanálise e das
1 l~ncius sociais. Trata-se de A arte de reduzir cabeças, de Dany-

lfohcrt Dufour (Rio de Janeiro, Cia. de Freud, 2005). Esse autor


mo'llra, particularmente, como uma mesma perturbação afeta,
1111 plano metafísico, a representação do Ser, no plano político, a
,lo Um, do Grande Sujeito, que permitiria ordenar o conjunto
1l11r. outros sujeitos, enfim, no plano simbólico, a do Outro, que
hlrntificamos ao terceiro necessário em toda relação. E ele reto-
11111 oportunamente a idéia lacaniana de que o Outro é incomple-
111, quer dizer, que ele não contém, no final das contas, a respos-
1111lltima ao que é esperado do sujeito. Ao que nós acrescentare-
"'"" ljUC a dimensão do Outro permite inscrever verdadeiramen-
111 ,~11111 questão, o que é suficiente para que o sujeito possa en-

' onlrnr algum fundamento.


Modernidade, pós-modernidade,
blpermodernldade

Caro amigo,

Parece-me que minha última carta o encorajou


11 rl•clamar ainda mais de mim. Você diz que compre-
1•mlc melhor minha concepção da relação entre o soci-
al e o individual. É sem dúvida, acrescenta você, por-
que cu mostrei claramente no que a democracia, por si
llll'sma, poderia mudar nossa relação com o Outro e
nos introduzir no sentido de uma clivagem, essa
divagem a qual eu havia dado certo alcance clínico.
Mas isso o leva a ponderar numerosas questões, às quais
t\ preciso, no momento, tentar responder.

De alguma maneira você só levanta a primeira


questão por razões de consciência. Eu rejeitaria a de-
mocracia porque ela deslegitima esse Outro tão essen-
l'ial para o sujeito? Você duvida que não: dos sistemas
políticos, não é dos piores. E mesmo que alguns de
seus efeitos subjetivos se revelem, pouco a pouco, tão
problemáticos, nós só poderemos levá-los em conta, e
nos esforçarmos como cidadãos e como psicanalistas,
para responder a eles da maneira mais adequada.
A segunda questão diz respeito à idéia que te-
nho do que é determinante em nossa configuração so-
dal. Você diz surpreender-se ao me ver privilegiar a
organização política da sociedade. Eu não o havia dei-
:\ado entender, em nossos encontros, que era a econo-
mia de mercado que nos tinha encerrado em nossa atual
relação ao objeto, quer dizer, na idéia que todo o objeto
pode se tomar objeto de gozo, que nenhum objeto é
.56 Depressão, a neurose do contemporâneo

proibido? Você sabe bem quais são as conseqüências


disso. Se todo objeto é de direito disponível, o objeto
do desejo não pode mais se distinguir do objeto da
necessidade. Facilmente acessível, ele é destinado por
isso mesmo a perder, mais ou menos rapidamente, todo
o seu valor psíquico.
Aliás, eu não havia sustentado também que é a
ciência, e em particular a ciência aplicada, que levava à
idéia de que tudo é possível, idéia, ela mesma solidária
da relação que nós estabelecemos com um universo
doravante redutível ao desenvolvimento contínuo de
nossas manipulações técnicas? O sujeito moderno, eu
havia insistido bastante nisso, é o sujeito da ciência. E
eu não creio mesmo necessário, para hoje, lembrar o
que eu lhe disse a esse respeito da leitura lacaniana de
Descartes.
Você duvida, caro amigo, que eu não vá des-
mentir o que eu lhe disse. Mas por que seria preciso
que ficássemos reduzidos a só adotar uma explicação
com a condição de recusar as outras? Todas essas de-
terminações evidentemente não se contradizem. An-
tes, elas estão de acordo, por darem conta de um efei-
to cumulativo, aquele de evoluções de ordens diversas
que fizeram do social e do sujeito o que eles são
atualmente.
É exatamente por levar em conta esta
pluralidade de determinações, que não aprecio muito,
como eu já dissera para você, o conceito de "pós-
modernidade". Eu bem sei que atualmente esse termo
tem se imposto. Jean-François Lyotard o justifica, por
exemplo, pela necessidade de situar uma nova relação
entre ciências e meta-narrativas 1• À medida que a ciên-
cia, diz ele, "não se reduz a enunciar regularidades úteis
e que ela busca o verdadeiro", ela vai manter sobre seu
próprio estatuto um "discurso de legitimação". Quan-
do esse metadiscurso recorre a tal grande narrativa
rnmo a narrativa das Luzes2, chamamos moderna a ci-
~nl:ia que a ela se refere para se legitimar. Atualmente
nós estaríamos, acrescenta ele em essência, em um pe-
rfo<lo de incredulidade a respeito das grandes narrati-
vus. É o que nos obrigaria a nomear pós-modernidade
11 condição do saber nas sociedades mais desenvolvi-
llus. Você observará, entretanto, que Lyotard vê nessa
1ncrcdulidade um efeito do progresso das ciências. Ora,
vmculá-la assim ao desenvolvimento da própria ciên-
du, não será fazê-la depender do momento no qual
cNla surgiu, quer dizer, do que encontra sua origem na
1dude moderna? Isso me incitará a não estabelecer rup-
1ura entre modernidade e pós-modernidade.
Tal preocupação, aliás, está presente, segun-
do me parece, em numerosos teóricos de nossas so-
ciedades. Aqui, remeto-lhe ao último livro de Gilles
l .i povctsky, Os tempos hiper-modernos3. O autor re-
conhece que a expressão "pós-moderno", da qual ele
mesmo se servira, era "ambígua", atravessada, para
niln dizer "vaga[ ... ] Posto que, acrescenta ele, certa-
mente referira-se a uma modernidade de outro tipo
,1uc tomava corpo, não uma ultrapassagem qualquer
duquela".
G Lipovetsky propõe a seguir o conceito de
hipermodernidade, que antes designaria uma
"modernidade elevada à potência superlativa". Mas
devo dizer que a ambigüidade se mantém. A
hipcnnodernidade seria apenas uma nova nominação
,1uc evitaria se fechar nas dificuldades do termo de
p6s-modernidade? Ela parece, finalmente, levar o
leitor a se representar em uma nova mutação de nos-
~u sociedade, "como se tivéssemos passado da era
'p,h' à era 'hiper' ."4
Devo lhe dizer o que está no fundo do meu
pensamento? Eu temo um tanto que o conceito "pós-
modcmo", como o conceito hipennodemo, não sejam
58 Depressão, a neurose do contemporâneo

pós-modernos. Eu quero dizer com isso que eles se ins-


crevem, sem dúvida, em uma representação do tempo da
qual eu já lhe falei, e que fixa a atenção sobre o que é
mais imediato. Você se lembra do que nós dissemos do
presentismo. Para quem restitui o universo contemporâ-
neo na história plurissecular à qual ele se opõe, mas tam-
bém se vincula, sem dúvida seria melhor considerá-lo
não como o panorama inédito que descobriríamos após
ter virado a última página da história, mas como uma
exacerbação de tendências que se desenvolveram duran-
te um período mais longo. Sendo assim, finalmente, es-
colher para falar de nosso tempo, a expressão mais neu-
tra, e simplesmente designá-lo como o universo contem-
porâneo.
Uma vez mais, o que é essencial para nós é ver
como se articulam as mutações lentas com as mudanças
mais rápidas e apenas com essa condição é que nós as
veremos mais claramente no universo contemporâneo.
A esse respeito, eu considero notável o duplo procedi-
mento de Marcel Gauchet. Em seu livro sobre O desen-
cantamento do mundo5 , sustenta a tese segundo a qual a
história das religiões não equivale a de um desenvolvi-
mento, mas a de um abandono, lento e radical, da religi-
osidade original e do "reino do invisível". No que se re-
fere a isso, o cristianismo é definido como "a religião da
saída da religião". E isso em nada o impede de também
propor, em A religião na democracia, uma análise
centrada em uma temporalidade muito mais curta que
mostra de que maneira esta saída da religião pode se ace-
lerar na sociedade contemporânea, isto é, a partir de 1970.
Hoje, eu proponho a você, ficar por aqui. Com
efeito, desta vez sou eu quem tem vontade de retomar
suas habituais críticas. Essas questões têm realmente tal
amplitude que talvez não seja preciso procurar formar
dela, inicialmente, uma representação muito definitiva.
l'lod1•1mldade, pós-modernidade, hipennodemldade 59

' Ver a esse respeito LYOTARD, J.-F. La condition postmoderne.


l'"ris, Minuit, 1979.
' Nessa narrativa, escreve J.-F. Lyotard, "o herói do saber traba-
11111 pura um bom fim ético-político, a paz universal". Lyotard
1•v11L'U igualmente, entre outras grandes narrativas, "a

hrnncnêutica do sentido, a emancipação do sujeito da razão ou


1111hulhador, o desenvolvimento da riqueza".
' J.IPOVETSKY, G Les temps hypermodernes. Paris, Grasset
,'li 1"11s4uelle, 2004.
4 1.IPOVETSKY, G loc. cit., p. 78.
'C.AUCHET M. Les désenchantement du monde. Paris,
1985.
1 lnllimard,
Uma temporalidade cartesiana

Caro amigo,

Eu admiro sua perspicácia. Você adivinhou que


llll'llS últimos desenvolvimentos (no fundo bem sumá-
, tos quànto ao que resta ser dito) a respeito das obras
dl• Marcel Gauchet não tinham apenas uma visada
111clodológica. Se me referi ao que ele diz da religião
nilt 1 foi apenas a título de exemplo, mas para interrogar
1111ssa maneira de designar o universo contemporâneo.
V, 1l'ê duvida que a questão da religião, ou melhor, da
,·volução das formas de religiosidade, seja essencial para
"l' referir ao sujeito contemporâneo, assim como a sua
p111ologia. Não tardaremos a voltar a isso, mas hoje eu
111\11 o farei.
Se, aliás, eu peço a você que espere um pouco,
1' para responder à outra de suas questões. Minhas alu-

,i'll'S recentes a Descartes e a Malebranche ficaram enig-


111a1 icas para você. E, apesar de seu pouco gosto pela
l I lc 1sofia mais abstrata - pouco gosto, mais pretendido
do que real - você finalmente me pede para dar algu-
11111 idéia do que eu havia dito a esse respeito.
Eu começarei por responder a essa última per-
1•11111a. Com efeito, o que é interessante nisso que se
pode apreender de uma filosofia do tempo em Descar-
ln, 1· cm Malebranche é ao que ela está ligada, quando
do nascimento da ciência, ou mais exatamente no que
.. ua metafísica permite o desenvolvimento da física clás-
, 1rn. Assim, teremos uma oportunidade para voltar ao
•,1111·i10 moderno como sujeito da ciência. e é somente
i1 partir daí que, a seguir. nós poderemos nos interro-

1•.11 sohre o desenvolvimento de certas formas de reli-


62 Depressão, a neurose do contempoaâneo

giosidade, que de certa maneira vem contrabalançar o


peso contemporâneo do discurso da ciência.
Eu, aliás, me autorizarei, no que diz respeito
a Descartes e a Malebranche, a destacar alguns ele-
mentos particulares em sua filosofia, e a considerá-
los apenas pelo ponto de vista que me interessa. Pare-
ce-me que se pode encontrar, em sua obra, um pri-
meiro corte que prepara as representações contem-
porâneas do tempo.
De fato, tudo isso prolonga o que eu havia lhe
dito, quando de nossas discussões, a respeito da livre
criação das verdades eternas em Descartes 1• Você sem
dúvida lembrará o que lhe mostrei ao desenvolver al-
gumas indicações de Lacan. Se o Deus cartesiano cria
livremente até mesmo as verdades da matemática e da
física, nós não temos mais de nos interrogar sobre suas
razões, nós não temos mais de questionar os fins divi-
nos. O caminho está desde já aberto para uma ciência
que, fora de toda consideração ao teológico, se consti-
tuirá como uma teoria independente, com um saber
doravante assimilável ao agenciamento organizado das
"letras minúsculas" da álgebra.
Pode-se pensar que a representação cartesiana
do tempo também vai desempenhar um papel maior
para a constituição de uma física matematizada, e mais
exatamente geometrizada. O que nos diz Descartes,
principalmente, para fundar o princípio da inércia? Se
um corpo em movimento segue seu movimento em li-
nha reta, segundo ele, é porque a vontade de Deus,
que é imutável, determina instante por instante, um
movimento que conserva a mesma direção. Digamos
que a continuidade não está nas coisas. O mundo é
feito de uma sucessão de estados que somente Deus
garante a coerência.
Poder-se-ia também, nesta perspectiva, falar do
ocasionalismo ~e Malebranche que, parece-me, vai ain-
63

du mais longe nessa direção. Para Malebranche, as cau-


""" naturais não têm eficácia, elas não passam de oca-
111til'S que permitem dar à eficácia divina a forma de
11111a lei. Mas por que se deter nessa questão, uma vez
,1uc de toda maneira eu abro mão de introduzi-lo nos
,ll-talhes das análises? Talvez você já se interrogue a
n·spcito do que poderia aparecer como uma presença
induzida da divindade, na ciência?
De fato, trata-se, sobretudo, de uma das ver-
1110cs de uma idéia essencial da modernidade, segun-
do u qual não há por que dar atenção à própria dura-
\ l\c I dos seres já que estes não têm duração autônoma.
1~11su idéia concorda, historicamente, não só com certa
rrprcsentação de Deus, mas também com o que é
nrl'cssário para a ciência moderna, a saber, suprimir
lt 1<lo o ser no que se toma simplesmente uma ques-
1no de equação.
Descartes, em uma perspectiva mecanicista,
n·jl'ita qualquer permanência que seja fundada em subs-
1ttncias. Conseqüentemente, o tempo cartesiano, e ain-
1111 mais o tempo malebranchiano, não é outro senão o
d,· uma física direcionada para a geometria, quer dizer,
1111 instantâneo. E o laço entre os instantes sucessivos
do universo é pura exterioridade. Está apenas garanti-
do por um Deus, que de alguma forma, não inscreveu
1111 ~cr as condições da permanência. É por isso que o
~lljl'Ílo pode renunciar a buscar o Ser nas coisas.
Como avaliar, do ponto de vista do que diz res-
p,· ilo ao sujeito moderno, o que aí se passa? Evidente-
11w11lc, nós não poderíamos retomar a um pensamento
11111uralisla do universo. Se os corpos caem, não é por-
q111· eles tenderiam a voltar a seu lugar natural. A ciên-
, 111 loma as coisas diferentemente: muito bem. Mas,
1·111ü11, é preciso apreender que isso modificou radical-
1111·11lc a representação do tempo.
64 Depressão, a neurose do contemporâneo

Bergson, por exemplo, diz isso quando obser-


va que a partir da ciência moderna, "nós podemos, nós
devemos dividir (o tempo) conforme nos agrada2". Mas
essa possibilidade infinita e arbitrária de dividir deixa
mal nossa representação do que constitui o tempo con-
creto, ou ainda, a experiência do movimento. "O mo-
vimento, diz Bergson, para nós é uma posição, e após,
uma nova posição e assim por diante indefinidamen-
te3 ."Concebe-seque esta representação anula ames-
ma que pretende apreender. Um movimento se man-
tém verdadeiramente concebível se ele se define nes-
ses termos?
Eu não vou me deter em Bergson. Não que ele
mereça a reputação de pensamento ultrapassado, como
se lhe atribuía outrora: Heidegger o cita em suas duas
teses de 1914 e 1915, em um momento no qual se pode
pensar que se preparam suas próprias teses sobre o
tempo. Em contrapartida, eu não estou certo de que
sua filosofia da duração possa dar ao sujeito contem-
porâneo uma relação mais satisfatória com a
temporalidade. Com efeito, ela pressupõe o que
atualmente é tão difícil: experimentar uma continuida-
de entre o passado e o presente, destacar-se da per-
cepção do tempo como série descontínua de instantes
sem relação entre si. Ora, essa dificuldade, atualmente
tão sensível, você sabe onde eu mais a encontro? Não
alhures, imagine você, mas nos sujeitos depressivos.
Quando é dito a um de meus analisantes, escultor, que
se admira sua obra, isso lhe provoca a maior aflição,
porque ele considera que nada pode lhe garantir que
amanhã ele poderá conservar - ou encontrar - a possi-
bilidade de criar. Pode-se certamente pensar que aqui
as coisas são peculiares, uma vez que se trata precisa-
mente da criação artística, sempre aleatória. Mas pare-
ce-me que muitos sujeitos experimentam, de maneira
depressiva, que seu ser não tem nenhuma consistência.
...........pondklade autesiana 65

rfo1i u·lornaremos oportunamente à relação paradoxal


q11I' 111110 isso possa ter com a questão da criação divina.
1~is, em todo caso, uma das questões fundamen-
t ,11 •, que· atualmente concerne ao social. Onde o sujeito
I''""""ª encontrar uma relação satisfatória com a
11·111p11rnlidade? Será que deveríamos remontar a uma
,• 11111 ·11 pré-moderna? É o que, por exemplo, alguns his-
1111 rndores da Idade Média, como Jérôme Baschet, po-
d,· 111 ll~I' a tendência de fazer. Em seu recente livro so-
hu· A civilização feuda/4, encontramos uma bela des-
' 11i.- Ih, do tempo medieval, ritmado pelas festas religi-
' '""" l~ as atividades tradicionais - um tempo que nós
,111111111os ser mais organizado pelo simbólico - e, em
, ,1111rnponto, uma crítica do tempo moderno, tempo
,1h1'11rnto, unificado e dividido em unidades precisas, e
l 11111lmcnte reduzido a uma sucessão de instantes
,·tt'meros. Mas nós sabemos que não retomaremos à
u·prcscntação pré-moderna da temporalidade. É me-
lhe 1r seguir os efeitos, e inicialmente os efeitos clínicos,
ilu percepção do tempo, do nosso tempo.
A propósito, eu temo ter desenvolvido hoje,
11111 tanto demoradamente, considerações demasiado
Jtl·rnis, que talvez possam lhe aborrecer. Então, você
111c permitirá remeter à minha próxima carta algumas
,,·llcxões que me ocorrem no momento.

fitotas
1 ( 'HEMAMA, R. Clivage et modernité. Toulouse, Éres, 2003,
p t,7-71.
'IIERGSON, H. "L'évolution créatrice". Em <Euvres, Paris, PUF,
111,CJ, p. 775.
'IIERGSON, H. "La pensée et le mouvant". Em <Euvres, Paris,
l'll F, 1959, p. 1380
• HASCHET, J. La civilizacionféoda/e. Paris, Aubier Flarnma-
2004.
111111,
Sobre uma versão depressiva
da repetição

Caro amigo,

O que me diz você? Nossas trocas tiveram um


d1·110 paraçloxal? Eis que você me faz saber que se-
1111111 l·studos de filosofia! E mais ainda, isso não deixa
, li- ln relação com nossas trocas a respeito da psicaná-
h·,1· 1
Inicialmente, reconheço que fiquei profunda-
1111·11te surpreso quando da leitura dessa novidade. É
•llll', mesmo que tenhamos falado, freqüentemente, de
li luso fia, eu não o encorajei muito, penso eu, a empe-
11har-sc de uma maneira sistemática. Isso, sem dúvida,
1·,1,1 ligado a algo de muito complexo na relação entre
l'"1n111álise e filosofia.
Sobre o filósofo, Freud essencialmente dizia -
1·11 não vou tirar um tempo para ir conferir - que ele
h'dm os buracos do universo com pedaços de seu rou-
p1lo. Entenda-se que ele não agüenta qualquer fenda
1111 suhcr e que não há intervalo que ele não tente suturar,
111111 tudo o que lhe caia nas mãos.
Quanto a Lacan, ele era ainda mais duro, se é
ljlll' isso seja possível. A filosofia era para ele uma va-
11a111c do discurso do mestre - digamos que ela dê ao
111,·strc os instrumentos de seu poder.
Você sabe, porém, que Lacan havia lido muito
m fil6sofos e que ele faz com gosto desvios em seus
1·111111ciados, o mais freqüentemente, é verdade, para
11·111tcrpretá-los ou deslocá-los.
A meu ver, você não ignora isto, foi pela filo-
.,, ,fia que eu comecei, foi com ela que me ocupei em
68 Depressão, a neurose do contemporâneo

minha juventude. Talvez seja por isso que, ao me tor-


nar analista, eu inicialmente me distanciei dela. Eu pen-
so, com efeito, que todo clínico que verdadeiramente
pratica a psicanálise só pode fazê-lo se liberando de
um pensamento que estaria congelado por sua forma-
ção de origem, seja ela médica, psicológica, filosófica
etc. Está aí o verdadeiro sentido da posição de Freud
quanto à "análise leiga 1". Creio presentemente poder
voltar um pouco a isso, situando melhor em que ela
pode nos dizer respeito.
Quanto a você, seus primeiros passos parecem
ser bem promissores. Aparentemente, você sabe bas-
tante para me endereçar uma observação tão precisa.
Você me pergunta se a concepção cartesiana do tem-
po, a respeito da qual eu lhe havia mostrado a relação
com uma teoria da criação, não encontraria algum eco
na filosofia do conhecimento. Você, efetivamente,
aprendeu, desde seus primeiros passos nesse donúnio,
que Descartes desconfia da dedução, ou, pelo menos
que ele tenta absorvê-la em uma série de intuições su-
cessivas, que para ele têm a vantagem de tirar sua cer-
teza de uma percepção instantânea. A hipótese que você
levanta me parece bem justa, e ela confirma a maneira
como a obra de Descartes nos introduziu em uma re-
presentação do tempo sempre divisível e descontínua.
Era aí, no fundo, que nós estávamos na última
vez, sob a condição de ainda fazer uma parte do cami-
nho para se aproximar do mais empírico, e de voltar a
nosso sujeito moderno, que não encontra mais, em sua
relação com o tempo, as referências que lhe permitiri-
am experimentar sua existência em uma continuidade.
Aliás, estão aí idéias que eu já evoquei em mi-
nhas cartas anteriores. Mas eu gostaria de retomar al-
gumas, talvez um tanto diferentemente, a fim de tentar
ir um pouco mais longe, em nossas questões clínicas.
O sujeito não está forçosamente à vontade, você
o concebe bem, no tempo da modernidade. Esse tem-
I'" qu,· lluase não propõe mais referências simbólicas,
, ""'' h·mpo que se toma cada vez mais precipitado,
1,,l\11'/ de seja tentado a recusá-lo. Nessa perspectiva,
l'ndn se-ia, em uma primeira aproximação, pensar a
il1•1m·!'lsão como uma rejeição da temporalidade pró-
111111 110 mundo contemporâneo. O sujeito deprimido
, , 1111 freqüência testemunha sua impossibilidade de se
'""''' ir cm nossa modernidade. Ele se sente pouco à
\'11111mlc, ele tem a impressão de não poder participar
,li· ""11 atividade febril, ele denuncia voluntariamente o
l'""rn sentido de um mundo que corre não se sabe
h1•111 para onde.
Não é por isso, entretanto, que ele sempre sai-
h11 nonde vá. Porque, para ir a algum lugar, é preciso
l""lcr se apoiar em uma relação com o Outro da qual
l 111. parte a relação com o tempo, ou deveria fazer par-
11·. <>ra, precisamente, o sujeito deprimido não encon-
1111 esse apoio. Isso sem dúvida mostra que, mesmo
•llll' ele proteste contra a relação moderna com a
h·mporalidade, ele a ilustra a sua maneira. Veja então,
, , 11uc hoje eu vou tentar sublinhar: nossa representa-
i.-llo do tempo, se ela está constituída desde o século
XV 11, se a seguir ela tão-somente se desenvolve e se
u·força, ela tem um poder muito forte sobre cada um.
e> sujeito deprimido é apenas, nesse sentido, mais de-
l'l'lu.lente do que ela tem de mais problemático.
Para apreendê-lo, você inicialmente considera-
•l'i que aquilo que normalmente poderia estruturar nos-
"11 relação com o tempo é uma lógica essencial à subje-
1ividade, e que se pode designar como lógica do
,-i>,\nificante. Ora, esta se define como repetição (se nós
1111s encontramos no mundo é porque o retomo de cer-
1os significantes nos permite alguma referência); con-
ludo, ao mesmo tempo, o significante nunca se repete
ulênlico a si mesmo (se digo um termo qualquer em
duas circunstâncias diferentes, sua incidência, seu va-
70 Depressão, a neurose do contemporâneo

lor, necessariamente variará de uma situação a ou-


tra). Assim, o que se repete comporta normalmente
uma série de deslocamentos, a partir dos quais pode-
mos apreender tempos sucessivos.
E o que se dá então com o sujeito deprimido?
A respeito de si mesmo, ele diz freqüentemente que
isso não cessa de se repetir. Nós, todavia, já interro-
gamos a maneira como ele experimenta essa repeti-
ção. Para ele, ela só pode ser um estrito retomo do
mesmo, da infelicidade ou da impotência. É aí que
podemos ver a que representação do tempo está for-
temente afetada. Eu falava, em uma carta anterior,
do tratamento como aquilo que permite "reordenar
as contingências passadas lhes dando o sentido das
necessidades vindouras". O sujeito deprimido tem a
maior dificuldade de fazê-lo. Paradoxalmente - mes-
mo que ele freqüentemente evoque o que foi ruim
em sua história, mesmo que ele pareça ligado
neuroticamente ao passado - ele é ainda mais do que
qualquer outro, o sujeito dessa temporalidade atual
que, ao homogeneizar os instantes, aliviando de toda
a significação simbólica, reduz tudo a um presente
efêmero, sem passado nem futuro.
É por isso que, quando de maneira aleatória
alguma coisa de positivo lhe acontece, ele não con-
segue imaginar que isso possa se inscrever e se repe-
tir de maneira favorável. O significante é anulado
em proveito de um descrédito que incide sobre o que
é percebido da realidade. Descrédito que não deixa
nenhuma chance à mudança, a uma mudança que o
momento precedente poderia tomar mais propícia.
Era um pouco isso o que eu lhe dizia na última vez,
como eco a esta questão da "criação continuada".
Imagine um sujeito para o qual nada do que se passa
em um dado momento possa verdadeiramente pre-
parar o que acontecerá no dia seguinte, no instante
....... 1111111 wnio de.pnBlha da no.petição 71

•u•11111111c. Imagine que esse sujeito não tenha à sua


,l1111t11si\'.ào alguma teoria de um Deus que sustenta-
1111 11 mundo a cada momento - e também a ele pró-
11111, cm sua existência. Bem, você tem aí o sujeito
il1•1ucssivo. Ele experimenta um sentimento de va-
, 1,1, ,lc grande fragilidade, de dissolução de seu ser.
l'111111loxalmente, o retomo do mesmo - sob a forma,
f. vrnludc, do mais penoso retomo - não lhe garante
11 111,•nor permanência.
Não.digo, entretanto, que a análise nada pos-
"" No fundo, é para refletir a respeito da direção do
1111111mcnto que eu tento dar conta do que lhe falo
huw. 1'~ por isso que eu gostaria de encerrar em duas
11luu:rvações, que são relativas a dificuldades parti-
• 11 laarcs. Identificar essas dificuldades é um tempo
m•l·cssário para saber como responder às mesmas.
A primeira diz respeito à escansão, e até mes-
mu à duração das sessões. Quando o analista inter-
111111pc uma sessão, eventualmente ao cabo de pouco
11•111po, ele forçosamente não participa do movimen-
111 ,lc precipitação da modernidade. Ele interrompe
,·111 um ponto que tem um valor significante e que
11hrc para a retomada do questionamento na série das
'"'"'''ks. Mas não é certo que isso possa ser entendi-
'"' dessa maneira quando o sujeito está incapacitado
1111111 se localizar na inscrição do tempo. Somente após
11111 longo trabalho é que o uso da escansão toma-se
pm ve1.es possível, e, então, tão pertinente como nos
11111ms tratamentos. Nos primeiros tempos, o analis-
111 t levado a sublinhar, no final da maior parte das
1irsM"tcs, algum significante que o sujeito forçosamen-
h· mlo havia localizado, mas que serviria como um
l 11111uc enodaria a sessão que se encerra com aquela
qut· virá a seguir.
Segunda dificuldade: acontece que um sujei-
111. cm um estado depressivo, cala-se freqüente e
72 Depressão, a neurose do contemporâneo

longamente. Ora, recentemente uma analisante escla-


receu, a si própria e para mim, o que se passava. Com
efeito, ela observou que formar uma frase toma tem-
po. Mais ou menos tempo de acordo com o que busca-
mos dizer. Mas em todo o caso, esse tempo está sim-
plesmente ligado à dimensão diacrônica da frase.
Bem, ela reconhecia recuar freqüentemente di-
ante ao fato de dever se empenhar nessa diacronia. Em
outras palavras, ela era desencorajada por antecipação
da necessidade de inscrever seu dizer em uma
temporalidade. Isso deve acontecer mais
freqüentemente do que se crê, e é alguma coisa na qual
os analistas deveriam prestar atenção.
Caro amigo, no momento de concluir esta car-
ta, eu a releio e fico bem confuso. Dou-me conta que
nas últimas linhas, eu me enderecei a você um pouco
como eu o faria a um colega, sem nada esconder de
minhas questões sobre nossa clínica. Creia-me, é ape-
nas um efeito da estima que tenho por você e pela cer-
teza que tenho de que você pode entender tudo isso.
73

t,ota
' liNNIIS linhas foram escritas em uma época em que o legislador,
I"'' ler se preocupado em regulamentar as psicoterapias, neces-
•11ru,mcnte, está confrontado com a especificidade da psicanáli-
•r Freud havia tratado disso desde os anos 1925-30, quando
prr~·1sou defender Theodor Reik, psicanalista não-médico, que
l111vi11 ,;ido acusado do exercício ilegal da medicina. É nesta opor-
11111iJude que ele escreve um texto essencial sobre A questão da
1111,W.1·,• profana (ou ainda melhor: leiga). Por vezes pensa-se
1111r nesse texto se trata apenas de defender os analistas não-
111c"dicos. Seriam eles os "leigos" da análise, por oposição aos
·'i ·ll'rigos", quer dizer, aos analistas médicos. Mas Freud vai muito
,Mm disso. Para justificar que a análise possa ser praticada por
111l11 -médicos, ele retoma a apresentação desta práxis e demons-
1111 NIIU especificidade radical. Se a psicanálise não se confunde
, 11111 11 medicina, ela se confunde menos ainda com a psicologia.
11111 consiste em ouvir o mais singular discurso, o do inconscien-
lr, ,• 110 mesmo tempo em ouvi-lo em sua relação com as deter-
11111111çõcs mais universais, uma vez que cada fala verídica inter-
vl'111 1mbre um fundo cultural que o analista deve levar conta. A
•·-~,· respeito ele deve ser um letrado. Ele não poderá ouvir o que
,,•11 pudente diz se sua fonnação estiver encerrada nos limites
,Ir 1111111 disciplina universitária, ainda com maior razão em nos-
"' 111111ca de progressivo esfacelamento dos saberes. Freud preco-
111111v11 4ue o analista conheça, além de sua própria teoria, a lite-
111111111 internacional, a história das religiões, a mitologia, e ain-
il11 muitos outros domínios.
Sobre o que Incide o
recalcamento'I

C'aro amigo,

Finalmente, foi pelo final de minha carta que


\ 111 í' ficou mais interessado. É, sem dúvida, você o
1"'""ª· porque ela estabelece uma relação entre a pato-
'"•''ª do sujeito depressivo com o próprio estilo da fala.
1 111 "uma, você acrescenta que, à força, se toma bem
l,11 ,111iano!
Muito bem! Isso, então, me encoraja a retomar
1111111 questão que você me havia colocado há algum
11·111pn, e que eu havia deixado completamente em
•,tlltjll'llSO.
É uma questão que dá ares de não ter impor-
1n11riu. Você salientou que eu falo tanto do sujeito "de-
p11111ido", como do sujeito "depressivo". E você se
1•1·1 JtUnta se podemos realmente usar indiferentemente
1'""'l'S dois adjetivos.
Não se faça de ingênuo. Se você propõe essa
qm·stiio, é porque você sabe muito bem que o campo
1111 llllal chamamos correntemente de depressão é par-

11n1lurmente heterogêneo. É verdade que assim se fala


ptrl'crcntemente de sujeito "deprimido" quando se tra-
1,1,k uma depressão "reativa". Aliás, fala-se muito dis-
"'' Basta que alguém se encontre um pouco maltrata-
do pelas dificuldades da vida, por exemplo, por uma
111p111ra, é suficiente que perca o sono ou a vontade de
•,,. ll-vantar pela manhã, para que nos inquietemos, e
q11t· se lhe aconselhe, principalmente, o recurso dos
,1111idepressivos. Em contrapartida, quando se fala de
•,111t•i10 "depressivo" pensa-se mais em algum processo
76 Depressão, a neurose do contemporâneo

interno, sem causa diretamente assinalável. No máxi-


mo, estaríamos frente a um tipo de disposição consti-
tucional, uma melancolia inata, mesmo que ela não seja
forçosamente psicótica.
Você duvida, caro amigo, que não seja por aí
que eu tomaria as coisas. Para a depressão, como para
todas as formas de patologia psíquica, eu não renunci-
aria a meu método. Minha idéia, você a sabe, é que
toda neurose constitui a sua maneira, um discurso, um
modo de tomar posição no diálogo que o sujeito man-
tém com o Outro. Assim, quando vemos, por exem-
plo, uma fobia se desencadear em um sujeito qualquer,
a questão deveria ser sempre: a que ela responde?
Trata-se do mesmo para a depressão, talvez,
exceto ao que ela venha responder, ou seja, uma
inquietude que diz respeito à própria possibilidade da
fala.
O que eu quero dizer? Talvez você se lembre
da jovem da qual fiz alusão em uma de minhas primei-
ras cartas. Eu a chamara de Denise. Eu havia dito a
você poucas coisas dela: eu havia feito alusão as suas
errâncias sem destino; eu havia tentado descrever sua
frieza e sua indiferença; sobretudo, eu havia tentado
situar, a partir dela, o que eu chamava de uma falha de
endereçamento. O que se passaria, perguntava-me,
quando o sujeito parecia desinvestir de tudo? Poderia
ele investir em uma demanda? Poderia ele estar pre-
sente em sua análise mesmo não estando presente em
seu entorno?
Talvez, hoje, eu possa levar essa questão um
pouco mais adiante. Acontece que o caso de Denise é
exemplar, e permitiria introduzir numerosas questões
das quais eu penso, oportunamente, poder falar mais
detidamente a você.
Como analista freudiano (porque os lacanianos
continuam freudianos!), eu poderia começar pela
...... o que lndde o ra:alcame.nto? 77

,11111111m·sc, com a condição de resumi-la consideravel-


1111•111l· por razões de discrição. Denise tinha um irmão
,1l1 rn1lasta e toxicômano, e se ela nunca o havia segui-
do 11,·ssc terreno, ela pensava poder compreender de
111111w1rn bem clara o que o teria levado a isso. Ela des-
' 11•v111 um meio familiar no qual nada de afetivo pode-
1111 11purccer. Um meio onde, por exemplo, o menor
,111,11 de desejo do pai em relação à mãe teria sido total-
1111•111c inconcebível. Você vê tudo o que podeáamos
11·1u111ar, até aqui, quanto à função paterna em casos
IM'IIIClhantes.
Você, contudo, observará - e isso também nos
1111pnrta - que além da problemática familiar, Denise,
1111 lundo, era bem sensível ao que se pode chamar de
11,•Mrnlaçamento social contemporâneo. Ela descrevia
11111 universo de pseudo-comunicação, o dos e-mails,
11111s também o do fechamento de cada um frente a al-
111111s sites privilegiados na internet, um mundo onde
, allla um, no fundo, é indiferente aos outros. Como se
,•11p11nlar com o fato dela não desejar mais se inscrever
m~Kse universo?
Eu poderia ter, dessa maneira, me colocado na
1111uução de "compreender" suas reticências. Entretan-
to, me pareceu necessário interrogar o ponto onde ela
uiulmente estava. Foi o que fiz durante as primeiras
rntrcvistas. Como ela vivia? Em que circunstâncias ela
huvia sido levada a interromper seus estudos? Ela vi-
VIII de expedientes, certo, mas quais? Ela era ajudada
jK1r seus pais, que seja, mas de que maneira? Parece-
me que era absolutamente indispensável ser um pouco
preciso a respeito de tudo isso. Por outro lado vê-se
n un nitidez o que corria o risco de acontecer. Essa
1uvem corria o risco de se fechar em um discurso, tal-
Vl' /. pertinente de certa forma, mas no fundo
,lt·sinvestido, cada vez mais abstrato e pobre, um dis-
nirso que rapidamente a desencorajaria. Em
78 Depressão. a neurose do contemponineo

contrapartida. interrogando as condições sociais de sua


existência, eu a levava a prestar atenção às referências
simbólicas, aos vestígios de uma relação com o Outro
bastante perturbada.
Retomo, pois, ao ponto que hoje eu gostaria
de sublinhar, e eu vou trazer-lhe um sonho bem sim-
ples que Denise me conta ao final de alguns meses de
análise, e que marca de alguma maneira sua verdadeira
entrada no tratamento.
Ela se encontra na Itália e, após uma longa
deambulação, ela decide entrar em um restaurante cujo
bufê, repleto das iguarias mais diversas, lhe parece atra-
ente. Uma vez sentada, ela observa que poucos clien-
tes vão diretamente se servir nas mesas do bufê. Mui-
tos parecem esperar que lhes seja apresentado o car-
dápio, e pelo que ela pode julgar, o que lhes é servido
em seguida é bem menos apetitoso. Quanto a ela, pa-
rece ser longamente ignorada. Quando, enfim, alguém
se aproxima dela, ela se dá conta de uma dificuldade.
Ela gostaria de dizer que é o bufê que a interessa, mas
ela não fala italiano. E ela se dá conta, com horror, que
isso ela mesma não saberia dizer. Com efeito, o que lhe
vem aos lábios é o equivalente, em inglês ou em espa-
nhol, ao que ela gostaria de dar a conhecer afim de que
lhe fosse facilitada a tarefa: eu não falo italiano. O so-
nho, bem curto, pára nessa impressão de impotência.
Esse sonho pode não surpreender. Se eu o con-
tasse a qualquer pessoa um pouco a par da psicanálise,
esta sem dúvida consideraria que se trata de um banal
sonho de histérica. O desejo de Denise, que se exprime
no plano da oralidade, fica insatisfeito. Mas, seria nes-
se sentido, precisamente, que ele poderia se manter
como desejo e a impotência que ela experimentava ao
término do sonho mostraria que, afinal, esse desejo
remete a alguma frustração sexual, eventualmente a
alguma inveja do pênis.
.....,o que lnddeo recalcamento'? 79

Não foi, de maneira alguma, a isso que o trata-


mento conduziu naquele momento preciso. Você nota-
11\ inicialmente que nada estava mais distante de Deni-
"", cm todo caso nesse momento, do que suas
rnnotações sexuais. Forçar a significação nesse plano
111'10 teria sido apenas inábil, mas errôneo. Aliás, no
momento em que ela mesma quer interrogar a dimen-
11no da oralidade, ela comete um tipo de lapso, e fala de
"o oral". Ora, é precisamente disso que se trata. O que
11 sutisfaria, mas ao que ela não pode aceder, não é o
nlimcnto .que se pode ou não lhe propor, é o ato da
l11lu, como o que está precisamente em questão no tra-
111111cnto. Digamos que ela bem sabe, pelo que lhe tra-
/.l'm algumas amigas, que outros se contentam com
11u11s próprias associações, durante as sessões. Mas ela
vem dizer a seu analista que está longe disto, e que ela
tampouco conhece os rudimentos da língua necessári-
1,s para se endereçar a ele, bem como para realmente
11c endereçar aos outros.
Nós sabemos, caro amigo, que há em nós um
1111hcr inconsciente, quer dizer, letras ou significantes
tiuc insistem e que tem diversos efeitos. Esse saber,
nós o interpretamos, desde Freud, como produzido por
um recalcamento que incide sobre a sexualidade. To-
1h1via, será preciso pensar que deve ser sempre o mes-
mo? Deveríamos conservar a idéia de que aquilo que
11c esconde, mas que também se revela no discurso, é
sempre o sexual? Talvez não. Não é impossível que
uma questão preliminar, atualmente, diga respeito à
pn\pria fala. Acima de tudo, não se vê mais, em nossa
"ociedade, em que alguma coisa de sexual teria de ser
recalcada. Sobre esse plano, o imperativo mais comum
t o de nada esconder. Além disso, que uma pessoa sus-
tente verdadeiramente um discurso firme em seu nome
t~ l'Om a autoridade que isso supõe, não é evidente. Em
"uma, tratar-se-ia menos, nos sintomas de nossa
80 Depressão, a neurose do contemporâneo

modernidade, de uma dimensão sexual que estaria


1
recalcada da fala, e mais de um recalcamento que
1

i1
incidiria sobre a possibilidade de enunciação como tal.
Você vê onde eu quero chegar. Desde o início,
eu não escondi de você que a própria idéia de fazer da
depressão uma entidade específica não era evidente.
Certos sujeitos parecem se fechar de saída em uma
existência triste, inibida e empobrecida. Mas falar da
depressão como uma entidade suporia poder dizer, es-
truturalmente, o que pode orientá-los nesta direção.
Será realmente o caso? Bem, eu creio que sim. Com
efeito, parece-me, que a cada vez, se pode localizar
aquilo frente ao qual o sujeito pára, frente ao qual ele
se cala como sendo a própria possibilidade da fala. A
fala, pode-se dizer que ele não tem a coragem de crer
nela.
Você almejaria que, para concluir, eu retomasse
à distinção entre "depressivo" e "deprimido"? Aqui ela
não me parece essencial. Por vezes, entretanto, a re-
nuncia à fala é constante numa vida. Algumas vezes,
ela pára e se reativa por algum acontecimento doloro-
so. Mas eu penso que há, além dessas diferenças, uma
localização realmente estrutural da qual eu espero ter
1 lhe dado alguma idéia.
Uma mística Nlll Deus

Caro amigo,

Eu não esqueci o que havia lhe prometido. Eu


,lrvcria tentar situar a clínica da qual lhe falo e em par-
llnalar a cltnica da depressão em relação a uma das
questões que dizem amplamente respeito a nossa
11 u,demidade, a do lugar que a religião ai pode ocupar.
Para dizer a verdade, a questão não é simples,
11inda mais que eu não pretendo, para expô-la a você,
111c distanciar da vivacidade que tentamos manter em
nossas trocas. Mas como fazê-lo? A posição da reli-
v.1110 no mundo contemporâneo já foi objeto de análi-
'll~s hem fundadas, mas divergem de uma maneira que
pnrcce bem radical. Como poderia eu meter minha co-
lher nisso?
Você lembrará, por exemplo, da alusão que fiz
1\s leses de Marcel Gauchet, que dizem respeito à saída
da religião, ao abandono progressivo, na modernidade,
lln religiosidade original. Nós certamente devemos es-
lur atentos ao que esse autor sustenta, porque seus tra-
hulhos muito podem ensinar aos analistas sobre os dis-
c:ursos sociais. Ao mesmo tempo, nós podemos tão-
somente constatar, de maneira certamente mais descri-
tiva, a consolidação das religiões tradicionais em suas
formas fundamentalistas. E nós lembramo-nos da pre-
visão de Lacan: que a religião triunfaria 1•
Proponho-lhe, se você quiser, começar por
l·trnnciados gerais, por uma análise que pretenda intro-
duzir aqui alguma verdade universal. O analista, acima
de tudo, se autoriza tão-somente pelo discurso que ele
82 Depressão, a neurose do contemporâneo

pode ouvir e que é sempre o de um indivíduo, um ou


uma analisante.
Eu tive a oportunidade de receber durante vá-
rios anos uma moça nascida em tomo do ano de 1968
e que eu chamaria de Thérese. Ela era filha de um ho-
mem engajado no movimento daquela época que foi,
como você sabe, não apenas político, mas, em geral,
"contestatório".
O pai de Thérese, com o qual ela vivia após o
divórcio parental, era ateu. Ele havia tentado transmi-
tir a sua filha uma concepção de mundo da qual toda
crença nos valores tradicionais estava excluída. Diga-
mos que as regras usualmente adotadas na existência
social lhe pareciam sem fundamento racional e, então,
quase religiosas.
Apoiando-se em uma teoria abstrata das rela-
ções entre indivíduos, ele recusava, por exemplo, o mal
estar de sua filha nas freqüentes situações em que es-
colhia para amantes as próprias amigas da filha. Para
ele, "objetivamente", não havia razão para tanto.
Era um homem moderno. Ele conhecia muito
bem os últimos desenvolvimentos da pedagogia, e se
vangloriava de seu saber racional em psicologia. Mas,
sem dúvida, esse saber não incluía a noção de ordens
de relações que comportassem algum limite.
Eu penso que a racionalização, aquela que se
refere, por exemplo, ao sujeito concebido pelas ciênci-
as humanas, constitui facilmente uma tentativa de do-
mínio da realidade que pretende descrever. Um domí-
nio que não coloca nenhum limite entre ela e qualquer
objeto de desejo que se possa conceber. Assim, a raci-
onalização psicologizante se toma, facilmente, uma
apologia do gozo, sob formas que podem
freqüentemente ter efeitos repulsivos.
Em todo caso, Thérese devia responder à lógi-
ca paterna e ela o fez sob duas formas sucessivas. Após
IIIM miltlcaNm Deus 83

11111&1 11dolescência na qual ela ia de braço em braço,


,,1,•tccendo seu corpo para obter ternura, ela encontra
1111111 solução bem diferente. Uma vez que o ateísmo
11,11rd11 implicar uma posição subjetiva que a perturba-
v1t, ,·lu gira para uma posição mística. Essa posição lhe
1l1tv11 abrigo em relação ao gozo paterno, asseguran-
1111 lhe, ao mesmo tempo, este outro gozo que o sujei-
111 husca no Pai divino. Aliás, no que diz respeito à
11111·11tão da sexualidade, ela escolhe, nesse momento,
11111 namorado mais ou menos impotente.
Como você pode notar, as coisas, aqui, são
, 11111plexas. O pai, marcado por certo discurso ideoló-
tt lrn, encontra na referência à ciência, alguma coisa
1111c rnnforta sua busca de gozo. E sua filha, por reação,
lc·ntu se garantir de um gozo Outro que passa pela re-
llti.iilo. Isso já dá algumas pequenas indicações quanto
1111 ponto em que estamos, nós, os modernos. O discur-
111, da ciência pode parecer nos autorizar a recusar qual-
quer protesto subjetivo frente a algumas formas da re-
111\·iio com o gozo. ("Objetivamente", para o que eles
iirrvem?) Mas, nesse mundo onde ele é objetalisado, o
11ujcito pode pensar não ter outro lugar de asilo que
uno seja a religião.
Você notará que, aqui, as coisas podem pare-
n·,· bem claras, porque Thérese, em pouco tempo, pas-
,11 do apartamento ocupado por seu pai e suas jovens
,111umtes à igrejinha onde se opera sua conversão. O
pmccsso não é tão evidente, mas talvez não menos
dctivo, quando, pouco a pouco, a religiosidade se ins-
lula, e sob formas que de saída não são aparentes.
Sob que formas? Ora, tão estranha como lhe
possa parecer, considero que seja na patologia
,lt·prcssiva que poderemos encontrar um forte eco do
ilt·scnvolvimento da religiosidade. De maneira que os
1l11is fenômenos poderão se esclarecer mutuamente.
84 Depres.Yo. a neurose do contemponineo

A propósito, retomemos ao sujeito depressivo.


Eu diria que nele, o que predomina não é um sintoma
como expressão de U[!l desejo recalcado. Sua tristeza
corresponde mais a uma renúncia radical ao desejo.
Mas como se apresentaria essa renúncia? Nós poderí-
amos dizer que, freqüentemente, o sujeito depressivo
renuncia à vaidade dos bens comumente buscados.
Isso, acima de tudo, tem lá sua pertinência. Nós
sabemos que a procura da satisfação, a busca do gozo,
conduz freqüentemente nossos contemporâneos - e
também nós mesmos - a buscar prazeres fúteis ou que
saturam. Nesse sentido, há uma verdade na posição do
sujeito depressivo. Ela testemunha uma parte de nossa
realidade. Entretanto, o problema é que são todos os
bens e é tudo o que se poderia desejar que lhe parecem
sem nenhum interesse. E ele mesmo se julga
desinteressante, mau, nulo, vazio ... morto.
Em resumo, seu discurso tem um tom bastante
particular. Nós entendemos claramente, nesse discur-
so, uma espécie de eco da posição religiosa que de-
nuncia a vaidade dos objetos do mundo. Eu diria, en-
tão, que tudo se passa como se a religiosidade parado-
xal de nossa época tivesse invadido a existência do
sujeito depressivo.
Em que sentido eu falo de uma religiosidade
paradoxal? Eu o remeterei a alguns pontos de nossas
discussões anteriores 2 • Antes, eu lembrarei a você que,
no meu entender, se o desenvolvimento da ciência põe
em descrédito a teologia, se ele desvia o homem de
uma interrogação racional sobre os fins divinos, ele
perfeitamente poderia estar acompanhado, em
contrapartida, de uma nova maneira de se dirigir à von-
tade divina, de um sacrifício de toda a aspiração
subjetiva.
Você veria algum eco desse sacrifício que o
sujeito depressivo não cessa de afirmar, se fosse ver-
l1t1• mmka sem Deal9 85

,liull' ttue mesmo sua mais extrema apatia constitui


1111111 tomada radical de posição em relação ao dese-
111'! lJma negação do desejo, certamente, mas que
, unstitui, por isso mesmo, um empenho ativo do su-
1,•110. Eis, então, uma de minhas teses. A depressão é -
1111m mística sem Deus, uma das formas dissimula-
1lus do triunfo da religião.
Por que não retomar a questão que eu coloca-
~ li no início de minha carta? M. Gauchet, que citei vá-
1111s vezes, féJ].a do ~o@_4ª.re~gi~o. Mas, é no sen-
llllo cm que e!l!~-ª9 .Q9cie mais determinar as formas da
l'"istência social. Em contrapartida, ele não nega que
L'lu possa conservar um sentido marcante para tal ou
lul indivíduo.
Seria ainda preciso se referir aqui ao que a psi-
nmálise pode contribuir. É fácil conceber que o senti-
do ao qual se refere o indivíduo religioso pode ser tão
ulirmado que constitua para ele um refúgio, aí onde,
precisamente, a religião não desempenha um papel so-
cial, ou ainda um papel simbólico, em todo caso um
papel organizador.

fllotas
1 A idéia de que a religião triunfará é geralmente retomada como
uma das teses de Lacan. Na realidade, ele a enuncia por ocasião
de uma simples entrevista para a imprensa, no Centre Culturel
français, em Roma, em 29 de outubro de 1974. Jacques-Alain
Miller acreditou, aparentemente, dever dar a esse enunciado ( O
triunfo da religião) um grande valor ao tomá-lo título de um
livro, que reúne, além desta entrevista, duas palestras feitas em
Bruxelas (Discurso aos católicos).
2 Ver a esse respeito, CHEMAMA, R. Clivage et modernité.

Toulouse, Éres, 2003. p.76-9.


Um sacrlfido sem Umlte

Caro amigo,

Então minha última carta o deixou perplexo!


Não é porque você obrigatoriamente recusaria o que
afirmo, mas você acha, mais uma vez, que eu vou um
tanto rápido na tarefa. Você quer levar em conta a idéia
de que a religiosidade da qual eu lhe falo bem distante
das formas comuns do sentimento religioso, mas você
se pergunta se poderemos utilizar o mesmo termo para
falar de fenômenos que têm efeitos subjetivos muito
diferentes. Parece-lhe, com efeito, que as formas do
sentimento "religioso" às quais eu faço alusão, as que
conduzem o sujeito a uma exaltação gozosa ou
sacrificial, referem-se mais ao engajamento nas seitas
do que à pertença a religiões.
Inicialmente eu aprovo - você duvida disso! -
esta idéia de comparar os fenômenos sociais, sobretu-
do, em função de seus diferentes efeitos subjetivos. É
um procedimento que convém perfeitamente ao ana-
lista. Aliás, é verdade, e eu concordo plenamente, que
a religião, normalmente, impõe apenas um sacrifício
parcial e que este tem nitidamente um efeito de autori-
zar o desejo. O homem religioso sabe o que ele deve a
Deus. No momento em que ele quita sua dívida (sacri-
fício animal ou renúncia às ações imorais), ele vai ter
hoas razões para agir e relançar algum desígnio pesso-
al, e mesmo o desejo sexual será de, alguma maneira,
ratificado por Deus se ele não se desviar de uma pro-
criação que é, então, o sinal da bênção. Nesse sentido,
a religião, que garante ao homem o valor de sua exis-
88 Depressão, a neurose do contemporâneo

tência, deveria antes, você supõe, protegê-lo da de-


pressão.
Mas não é precisamente disso que se trata aqui.
Trata-se, como você se dá conta, da emergência de
certas formas peculiares de religiosidade; mas este não
é o único feito das seitas. Mesmo nas religiões propri-
amente ditas, o que atualmente é dominante, não é a
teologia como discurso organizado, a partir do qual o
sujeito poderia se situar, mas antes uma exaltação do
sentimento, e como eu o dissera, um tipo de chama-
mento ao inteiro abandono à vontade de Deus. Isso
será apenas acentuado quando o sujeito não souber mais
a que divindade dedicar o sacrifício.
Efetivamente, quanto mais as religiões oficiais
decaem na polis mais, no âmbito individual, o sujeito é
reduzido a se devotar ao serviço de um Outro sem ros-
to. E ele só pode fazê-lo de maneira completa. A pro-
pósito, como ele poderia conceber um sacrifício parci-
al? A um Outro indeterminado, a um Outro obscuro,
que dom particular poderia convir? A religiosidade da
qual eu falo é aquela em que o sujeito entrega inteira-
mente seu ser a esse Outro privado, ainda que ele seja,
de certa maneira, divino. Ele está reduzido a lhe ofere-
cer tudo, a lhe entregar tudo. Ele está doravante para-
lisado, porque todo ato poderia contradizer as exigên-
cias das quais ele não consegue situar nem a origem,
nem a extensão. Assim essa religiosidade particular in-
fla o desejo mais do que o autoriza.
Eu suponho que você almeje, nesse ponto, que
eu não fique na abstração, e que lhe traga um novo
caso tirado de minha clínica, a fim de ilustrar o que lhe
falo. Eu, na realidade, reconheceria que sou bastante
reticente a esse respeito. Não é apenas devido às habi-
tuais razões de discrição. por vezes tão difíceis de con-
tornar - pode-se muito bem alterar algumas circuns-
tâncias particular~s -, mas eu tenho o sentimento de
11111 ..aUidosem Hmlte 89

1111111lmente correr o risco de, a cada instante, lhe falar


1•111 demasia de tal ou tal analisante. Entretanto, a ver-
1l111leira dificuldade, é que bem depressa, em um trata-
1111•1110, é na transferência que esse tipo de religiosida-
il1• se reorganiza, quer dizer, esses sujeitos estão
11,·,1Ucntemente prontos a tudo esperar de sua análise,
1111111 também a tudo sacrificar por ela. O tratamento,
p11rn eles, não é um empreendimento leigo, mas tende
11 11r confundir com uma religião. Eles consagram a ele
ludo o seu tempo e, por vezes, uma parte importante
1lr seus rendimentos, e o analista ficará seguidamente
ll'nlado a intervir para limitar o sacrifício. Mas, a partir
1IINso, você poderá conceber que, se eu retomasse em
1lclulhes, para ilustrar o que tenho dito, o discurso que
''"'ies sujeitos me endereçam, no fundo eu apenas esta-
11&1, ao utilizar o que eles me confiam, homologando a
posição subjetiva que eles adotam, a de tentar oferecer
1udo a seu analista, de se entregar a sua discrição.
Nós, sem dúvida, teremos a oportunidade, em
uma próxima carta, de tomar de uma maneira bem di-
lcrcnte essa questão da transferência no sujeito depri-
mido. Ocorre que numerosos analistas a abordam a
purtir da idéia de uma patologia do narcisismo, como
"e a dificuldade viesse de uma peculiar fragilidade do
,~u. Talvez você duvide que isso possa verdadeiramen-
te nos convir. Eu creio ter-lhe dito, em nossas discus-
Mks, que o eu, para Lacan e para os que o seguiram, é,
Nnbretudo, uma função de desconhecimento, é isso pelo
11ual o sujeito se atribui uma imagem mais ou menos
ilusória de si mesmo. Nós não procuramos reforçar o
,~u. Entretanto, é possível que talvez ocorra no sujeito
depressivo, uma particular dificuldade nesse âmbito, e
11(,s teremos de retomar a isso. Em contrapartida, aquilo
110 qual desde já é preciso se deter, é que ele sempre
visa um Outro que não pode faltar, e esse como ser
M1prcmo, deve ser sempre pleno. Quanto ao próprio
90 Depressão, a neurose do contemporâneo

sujeito, ele partilha essa plenitude nos raros momentos


em que ele consegue se içar imaginariamente ao nível
deste Outro. E quando se distancia dele (apenas fisica-
mente, por ocasião das férias do analista) tem a im-
pressão de se confrontar com um buraco radical - mais
do que com uma simples falta.
Talvez seja o momento, presentemente, de di-
zer-lhe uma palavra a respeito do estilo das relações
do sujeito depressivo com seus parceiros da vida coti-
diana. As coisas aqui são muito diferentes do que se
passa no tratamento. Ainda que o sujeito depressivo
sacrifique bastanle ao Outro, é preciso conceber que
comumente e]e recusa o desejo do Outro enquanto
encarnado pelo semelhante, pe]as raras pessoas que ele
encontra. Por meio do semelhante, ele poderia ter aces-
so a seu próprio desejo. Ele poderia, por exemplo, de-
senvolver algum sentimento de inveja, que indicaria que
algo de particular poderia lhe faltar, o que seria tam-
bém dizer que ele poderia se lançar em alguma procu-
ra, em alguma troca. Ele deveria então, efetivamente,
saber o que ele pode oferecer de particular para atingir
seus fins, que dom, forçosamente limitado, mas por
isso mesmo precioso, poderia tocar o outro e dispô-lo
favoravelmente a seu respeito. Mas é isso, precisamen-
te, que para ele é inacessível: ele pode apenas se sacri-
ficar inteiramente a um Outro sem limites, e
freqüentemente se colocar como escravo.
Eu terminarei minha carta com uma última ob-
servação. Eu havia lhe dito, na última vez, que o sujei-
to depressivo rejeita qualquer busca dos bens desse
mundo. Digamos que lhe falte totalmente o apetite pela
vida. Você vê onde nós podemos chegar. Nós teríamos
de retomar aqui a questão da anorexia, uma vez que
depressão e anorexia coexistem freqüentemente, e
atualmente, em particular, em numerosas mulheres. Ora,
acaba de ser lançado um livro bem interessante sobre a
•• . .,tffdo sem Umlte 91

que, precisamente, a relaciona com um par-


.. 111111•11111,
ti. 11 l 111
fenômeno religioso, o das mulheres místicas que
111111 rnmiam nada além da hóstia (inédia 1) Pascal
1 111111,-:um.12, o autor desse livro, não identifica as místi-
' ,111 "" unoréxicas, o que evidentemente seria redutor.
I' 1,, prnsa, ainda, ser possível esclarecer a própria
,m111rxia a partir da inédia, o que já exprimia muito
'"'"' rsla frase de D. Guillet que ele cita: "Este jejum
,, , t 111ordinário que é a anorexia mental poderia
1•11•h•itamente ser também um giro aplicado por uma
• 111 poreidade, que se mantém cristã sem que o saiba-
1111111." Essa é um pouco a minha questão. A patologia
,111 ,mjcito contemporâneo teria guardado algo de cris-
tnu'! Sem dúvida, mas em um nível que, certamente,
11R1, se o espera.

not.as
1 Do latim inedia, abstinência de todo o alimento, ou espaço de

lcmpo em que há abstinência de todo o alimento. N.T.


1 GUINGAND, P. Anorexie et inédie: une même passion du rien?,

Toulouse, Éres, 2004.


IJm dedínlo da Imago patema

Caro amigo,

Você está surpreso que em minha primeira car-


111 ,·u não tenha empregado o termo castração. Parece-
lhl' lfUe é dhiso que se trata nesse sacrifício parcial que
11111oriza o desejo, o que não seria proibido, encontran-
do-se desde já autorizado. E você prossegue com fine-
111: será que o sacrifício total, por sua parte, constitui-
nn, paradoxalmente, um evitamento da castração, um
,•viiamento das conseqüências dramáticas, certamen-
h', mas não obstante um evitamento?
Eu só posso ir nessa sua direção. Talvez acres-
L"Crttando o seguinte: o que fazemos freqüentemente
pura evitar a castração, é que de saída nós recusamos a
dn Outro. Se nós atribuimos a algum Outro a possibi-
lidade de ser intocável, nós mesmos podemos partici-
par desta dimensão, ou ao menos esperar fazê-lo. As-
sim, o modo transferencial que eu descrevia a você
l'Onstitui certamente uma forte defesa em relação à
l'astração ... e também em relação ao desejo.
É certo, aliás, que há na depressão uma manei-
ra particular de evitar a castração. O sujeito que no
extremo nunca se confronta às necessidades da exis-
tência evita, por isso mesmo, deixar que apareçam suas
falhas e, eventualmente, por si mesmo tomar consciên-
cia delas. Isso talvez lhe pareça trivial. Entretanto, é
essencial. porque em cada caso uma virada só terá lu-
gar se essa posição se modificar. A experiência prova
que é possível.
Por que. então, inicialmente eu não empreguei
o termo castração? Por que será que eu não me referi a
94 Depressão, a neurose do contemporâneo

este que continua sendo um conceito importante da


teoria psii.;analítica? É que no fundo as coisas me pare-
cem mais complexas. O que faz falta na depressão é a
castração, mas ao mesmo tempo, não é absolutamente
ela. O que, sobretudo, faz falta, é uma operação que
prolongue a castração, e como eu lhe havia dito em
nossas discussões, é por meio dela que um pai real in-
tervém como detentor do trunfo dominante. Um pai,
então, que transmite o significante fálico, aquele que
segundo nosso entender simboliza a castração, mas que
igualmente tem efeitos imaginários, aqueles por meio
dos quais é vetorizada certa energia, certo apetite pelo
viver. Você certamente me dirá que esse segundo as-
pecto já está presente no primeiro, se for verdade que
a castração, ao mesmo tempo, é o que autoriza o sujei-
to a desejar. Mas talvez seja melhor distinguir os dois
tempos.
De fato, para dizer-lhe tudo, eu considero in-
dispensável retomar agora tudo isso passo a passo. Teria
certamente uma maneira abreviada que consistiria em
abordar de frente a questão de nossa definição do falo.
Mas, em contrapartida, isso tem lá suas dificuldades,
eu prefiro retomar inicialmente alguns desenvolvimen-
tos que se desdobram pouco a pouco na obra de Lacan.
Eu vou, então, no momento, propor-lhe percorrer al-
guns de seus textos, de maneira quase cronológica.
Penso que consagraremos a isso várias cartas. Entre-
tanto, não hesitarei em romper essa apresentação para
prolongar algum tema que apareça nos meus desen-
volvimentos.
Talvez, apesar de tudo, haja ainda uma questão
preliminar. Será que todo o nosso trajeto, aquele no
qual eu esperava lhe engajar a partir de hoje, nos aju-
dará no plano clínico? E mais precisamente, Lacan nos
dá os meios de esclarecer isso com o qual nos ocupa-
mos, a depressão que atualmente está tanto em ques-
IIIH declinlo da Imago pat.e.ma 95

11111'! Os especialistas sem dúvida objetarão que rara-


11w111c ele emprega esse termo. Contudo, penso que se
11,11,· justamente da depressão, em um de seus primei-
" 1111 artigos, que ele consagra em 1938, aos "comple-
rn111 lamiliares 1" e onde está em questão "a grande neu-
111111,· contemporânea".
Um texto que, considerando bem, é completa-
11u·11tc siderante. Tomou-se atualmente banal salientar
11 mal-estar do sujeito contemporâneo, e de atribuí-lo

l\111 lrnnsformações das relações entre pais e filhos, ou


u111da às do rapport entre os sexos. Cada um pode ob-
~,·,var o declínio da autoridade na família e em particu-
1111 du autoridade paterna. Vê-se comumente aí a causa
ti,, perda das referências, e considera-se que tal muta-
\ l\o produza novas formas patológicas. Entretanto,
quando se tenta situar o início desses fenômenos, e sua
l'Vl'ntual causa, evocam-se freqüentemente os movi-
111<'11tos sociais e ideológicos de revolta e de contesta-
\ Ih,. cujo momento decisivo seria constituído, na Fran-
\11, pelo movimento de Maio 68. Então, é impressio-
111111tc ver que Lacan pode, trinta anos antes, se dar
rnnta do que começava a aparecer, e dessa maneira
,mtccipar os fenômenos que se desenvolveram princi-
pnlmcnte na segunda metade do século XX.
Em todo caso, eu proponho a você retomar ra-
pidamente esse artigo. Certamente não está em ques-
1no analisá-lo inteiramente. Eu vou apenas tentar resu-
mi lo para você, e comentar um pouco alguns pontos
que. nesse texto, se situam no final da primeira parte.
Lacan lembra o que enfim é bem conhecido:
que o psiquismo do sujeito é formado pela imagem do
mlulto e contra sua vontade. Mais precisamente, en-
tretanto acrescenta ele, em relação à imagem do pai,
que representa inicialmente, para os dois sexos, o pólo
oposto ao pólo matemo. A distinção é importante: se
l11r cm relação à mãe que o desejo começa a se formar,
96 Depressão, a neurose do contemporâneo

tanto para um sexo quanto para outro, o desejo pela


mãe é marcado pela ambivalência, principalmente para
a jovem.
Lacan, devo reconhecê-lo, não desenvolve
muito esse ponto, mas você sabe que ele não deixou de
sustentar, nos anos e nas décadas seguintes, que o laço
com a mãe corre o risco de ser sufocante para o sujei-
to, se um terceiro não intervém. Se a criança é serva da
demanda da mãe, se ela fica totalmente dependente de
seu amor, como seu próprio desejo poderia acontecer?
Lacan, então, inscreve pelo lado do pai a formação de
um ideal do eu que em certo sentido inibe a função
sexual, mas por isso mesmo "a preserva no inconscien-
te". Você já percebe a orientação desse texto, e no que
ele pode ser oposto a tantas representações contem-
porâneas. Não é por "tomarmos consciência" que um
desejo estará mais protegido.
Talvez você manifeste aqui sua surpresa. A psi-
canálise não constitui uma tentativa de tomar consci-
ente o que é inconsciente? Ao que eu responderia que
é bem diferente dizer, no tratamento, o que antes nun-
ca havia sido dito do que se precipitar inicialmente na
idéia de que tudo pode ser afirmado, mostrado, reivin-
dicado. Essa última idéia remete, com efeito, à utopia
da transparência, que faz com que o sujeito não possa
mais encontrar nenhum abrigo subjetivo, e que ele deva
desde já tentar fazer coexistir esse imperativo com o
que restar de uma dimensão de censura. É aí que nós
encontraríamos a própria dimensão da clivagem, da qual
eu lhe havia tão longamente falado.
Retomemos, entretanto, ao texto que seguimos
aqui. Na medida em que Lacan afirma a importância
de um adulto forte, de um pai ao qual a criança vai se
opor, considera-se que ele seja levado a falar da fanú-
lia moderna. Aliás, ele toma a precaução de dizer que
ele não é daqueles que se afligem por um pretenso rela-
11111 cledínlo da Imago patana 97

, ,1111,~nto do laço familiar. Inicialmente não se trata de


1h ,11 aflito e isso é importante para os analistas. Nós
111111 lemos de lamentar uma idade de ouro, mas anali-
"'" o que se passa atualmente. Em seguida, é necessá-
1lt, 11rccisar: a questão não diz respeito ao laço familiar
1•111 ~cral, ou ao seu relaxamento. Não é, por exemplo,
11 ll'nômeno das farm1ias recompostas que a partir de

1•111110 não cessa de se renovar. O que se passa, Lacan


v111 dizer, é que há uma carência contemporânea da
1wrsonalidade do pai. "Uma grande quantidade de efei-
h ,s psicológicos, afirma ele mais precisamente, nos
parecem remontar de um declínio social da imago pa-
h·rna."
Do que se tratará aqui? Você notará que, na
~pm:a, Lacan enuncia essas questões no registro da
1111ago2, no que hoje chamamos de imaginário. Diga-
mos que a imagem que se pode ter do pai lhe parece
1<•1· -se enfraquecido. Nisso pode haver diversas razões.
1.al"an evoca a concentração econômica, ou ainda as
ratástrofes políticas, e concebe-se facilmente que um
homem que está em sérios apuros no plano social terá
11111is dificuldade para ocupar a posição que ele deveria
11l·upar em sua farm1ia. Aliás, depois pôde-se conside-
rnr, que os pais haviam sido ainda mais desacreditados
110 período ulterior, e que os revoltosos de 1968 eram
os filhos daqueles que não haviam podido evitar a vi-
1t\ri a, mesmo que provisória, do nazismo e do
rnlaboracionismo.
O que quer que seja o plano estritamente polí-
tko, ele não é o único a intervir aqui. Há também uma
rnusalidade antropológica que funciona em uma dura-
,_ ão mais longa e, certamente, é dela que se trata quan-
do Lacan evoca as transformações nas "exigências
matrimoniais". Dito de outra maneira, mesmo se ele
passa rápido por essa questão, o fato é que algo na
98 Depressão, a neurose do contemporâneo

família contemporânea se encaminha para o


matriarcado.
Sem dúvida, não é muito politicamente correto
dizê-lo assim, mas forçosamente os analistas não pre-
cisam ser politicamente corretos. Eles estão aí parn
apreender o que se passa. Apreender o que toma mais
difícil a posição do pai, no que ela tem de específica.
Ora, em 1938, se isso ainda não era muito aparente,
nós sabemos desde então, a que ponto o discurso con-
temporâneo ordena os homens a renunciar a tudo o
que poderia evocar, de perto ou de longe, o machismo.
Após o que se disse sobre os "novos pais", devotados,
assim como a mãe, aos cuidados cotidianos, sem dúvi-
da decorre a dificuldade que atualmente pode haver
para determinar o que seja uma função especificamen-
te paterna.
Prossigamos um pouco mais, precisamente,
nessa função, tal como Lacan a concebeu em 1938.
Ele não diz apenas que o pai proíbe (que ele se inter-
põe, que ele separa a criança da mãe). O pai também
dá um "exemplo singularmente transgressor".
Quer dizer, se uma lei limitar a expressão do
desejo sexual, ao mesmo tempo, será importante que
haja aí pelo menos um que pareça poder ir além do
limite. Isso não suprime o limite, mas de alguma forma
representa uma transposição autorizada do limite. É
nesse sentido que se pode dizer que o pai é menos aquele
que interdita o gozo do que aquele que o prescreve.
Por seu exemplo, ele indica a via de uma relação com
o desejo, que certamente é remetida para mais tarde,
mas que não estaria muito entravada.
Você vê o quanto nós estamos longe de um
chamamento à autoridade que apenas cuidaria de esta-
belecer uma ordem social e de limitar o desejo. Trata-
se antes de permiti-lo, mesmo quando a questão do
limite é evocada.·
l lltl dedínlo da hlJago pat.ana 99

Em todo caso, Lacan conclui o capítulo com o


•1111· ,·lc chama de a grande neurose contemporânea.
1 lt- 11 rnloca em relação com "a personalidade do pai
1i1111· l~ atualmente), de qualquer maneira, sempre ca-
11·111l·. ausente, humilhada, dividida ou postiça". O pai,
,1t, .. ill' já, não pode desempenhar seu papel de interdi-
\ íl11 l' ao mesmo tempo de transgressão. O sujeito não
11111k mais se opor a ele, identificando-se com ele. Pelo
111111 dessa ~ência, vemos se enfraquecer, ao mesmo
h'lt1po, o elã instintivo e a possibilidade das sublima-
\ll1·11. "Madrinhas sinistras instaladas em tomo do ber-
\ 11 tio neurótico, a impotência e a utopia cerceiam sua

,1111hi4rão, seja porque sufocam nele as criações que, o


1111111do no qual ele nasce, espera dele, seja porque, no
,,hicto que ele propõe para sua revolta, ele desconhece
~,·11 próprio movimento3 ."
Estão aí, com efeito, os termos que Lacan em-
111 ,. ~urá, os que para ele parecem caracterizar melhor a
111•11msc contemporânea: impotência e utopia. É disso
q111• seria preciso falar no momento. Mas você não acha
,111,· cu já me alonguei demais? Permita-me remeter isso
pum uma próxima carta.
100 Depressão, a neurose do contemporâne.t

1 "Os complexos familiares na fonnação do indivíduo". Este

artigo havia sido publicado no tomo VIII da Encyclopédie


française. Houve algumas reedições, e foi recentemente retoma-
do em LACAN J. Autres écrits, Paris, Seuil, 2001.
2 Entende-se classicamente por "imagos" representações incons-

cientes que remeteriam a figuras que tiveram um papel essenci-


al na existência da criança, em primeiro plano, certamente, es-
tão os pais. É preciso, contudo, observar que, nessa perspectiva.
as imagos se definem como imagens, ou pelo menos esquemas
imaginários. Ora, o que constitui, propriamente falando, o in-
consciente, é o significante ou a letra, quer dizer não por repre-
sentações, mas por representantes de representações. Concebe-
se que, pela seqüência, Lacan se exprimirá diferentemente, e
falará de um declínio, não da imago paterna, mas dos Nomes-
do-Pai. Nós definiremos mais adiante, de maneira mais precisa.
o Nome-do-Pai. Aqui é suficiente lembrar que pertence ao registro
do significante, quer dizer, ao registro simbólico.
3 LACAN, J. op. cit., p.61.
O lugar do pai

<'nro amigo,

l>evo dizer que você me surpreende,


, 1111111111cnte tão pronto a discutir e a criticar, eis que
,., "fl ,lt'ixa passar minha última carta sem me dizer gran-
,le, 11111111, como se, acima de tudo, o que eu havia lhe
,11111 losse óbvio. Isso me deixa o sentimento de que
1ttl vr, 11cja preciso que eu comece por interrogar a mim
1111•1111110, e desta vez sem o auxílio de sua crítica solici-
lit\All, sobre o alcance do passo de Lacan.
Eu havia lhe dito que seu texto data de 1938.
V11d1 talvez saiba que, naquela época, ele não dispu-
11h11 ,le uma teoria constituída que seria a que diz res-
p,1110 uos três registros, que se tomariam para ele es-
"""':iuis, os do real, do simbólico e do imaginário 1• No
•1111· \.'Onceme a esse último, antes de 1938 ele trouxe
1111111 primeira aproximação em seu texto sobre o está-
11111 ,lo espelho. Mas o conceito de simbólico não esta-
\·11 rluborado, e muito menos, sem dúvida, o de real.
Por que será que eu sublinho tudo isto? Pare-
' ,. me interessante apreender como, mesmo aquém da
,, l11horação conceituai, um tipo de intuição inicial ori-
1•11111rá todo o questionamento de Lacan. Quando eu
lulu de "intuição", não faço, aliás, alusão a nada de
11 rncional. Trata-se antes da percepção clara e direta,
11,• um dado essencial, ou antes, de vários dados, pois
1u1 fundo essa intuição é tripla.
Inicialmente há a idéia de que as patologias
•mhjelivas não são realidades anistóricas. Elas depen-
1lrm da história das sociedades. Freud, certamente, já
lmvia ligado o individual ao social. Mas, de acordo com
l 02 Depressão, a neurose do contemporâneo

o que sei, ele não havia tentado relacionar as estrutu-


ras clínicas às mutações históricas. Ora, certamente é
isso que está em jogo na idéia de uma "grande neurose
contemporânea". É uma mutação histórica, uma mu-
tação social que produziu, no coletivo, esses efeitos
neuróticos.
A segunda intuição de Lacan é que o ponto
decisivo dessa mutação está ligado à transformação do
lugar do pai. Pode-se, a partir disso, perguntar se uma
boa parte da elaboração ulterior, em tomo do Édipo e
da "metáfora paterna" - a respeito da qual certamente
nós insistiremos-, não terá por fim, sobretudo, forne-
cer os meios teóricos para pensar essa transformação.
Enfim, parece-me necessário ressaltar também
um terceiro elemento, mesmo se este não aparecer de
imediato. Não é garantido que aqui seja necessário se
deter na transformação do lugar ou do estatuto do pai.
Se esse tem uma dimensão social, é verossímil que ela
só constitua a face mais visível de outra mutação. Ora,
parece-me que essa outra mutação ... é simplesmente
uma mutação do Outro. Outro que de qualquer forma
é a referência de toda a problemática humana, e que
não é composto apenas pelo código linguageiro, se pelo
menos entendermos por isso uma dimensão indepen-
dente da sucessão histórica das diversas formas cultu-
rais. Na realidade, o Outro, como determinante do su-
jeito é composto pelos discursos coletivos a partir dos
quais se constitui sua fala singular, e também é com-
posto pelas mutações destes discursos que agem em
última análise para modificar a subjetividade.
Com efeito, você o verá, essas três questões se
entrelaçam nas sucessivas elaborações de Lacan. É pre-
ciso, entretanto, distingui-las, para tentar situar o que
é determinante em cada nível.
Então, veja o seguinte: a questão do pai nos
remete àquela das mutações do Outro. E, no entanto,
O lugar do pai 103

ela não é reabsorvida pelas mutações do outro. Eu vou


tentar fazer-lhe apreender o que está em jogo nessa
questão, de maneira bem rápida. Eu terei oportunida-
de de retomá-la mais tarde.
No artigo de 1938, Lacan fala do declínio da
imago do pai. Eu havia lhe dito que essa formulação
remete à dimensão imaginária. Lacan, e ainda mais os
lacanianos, na seqüência falaram de preferência de um
declínio do Nome-do-Pai, ou dos Nomes-do-Pai,~ que
é bem outra coisa.
Terei aqui, necessidade de retomar a definição
do Nome-do-Pai? Trata-se, inicialmente, você o sabe,
do pai simbólico, daquele no qual, na fala materna, uma
referência terceira pode constituir lei: separar a crian-
ça da mãe, e por esse meio introduzir a criança em seu
próprio desejo. É, diz Lacan, "o que, no Outro, como
lugar do significante, representa o Outro como lugar
da lei2".
Por que falar, no plural, de um declínio dos
Nomes-do-Pai? Essa forma gramatical se encontra em
Lacan, mas isso não é uma razão suficiente! Não é sim-
plesmente uma razão suficiente porque ela aparece com
freqüência em problemáticas tão diferentes daquela que
hoje em dia eu tenho em mente. É o caso, por exem-
plo, quando ele apresenta Real, Simbólico e Imaginá-
rio como três Nomes-do-Pai.
Eu penso, com efeito, que o que constitui lei
para o sujeito humano tem sempre uma dimensão ini-
cialmente cultural. Ou mais precisamente, que são os
discursos sociais que comandam e interditam. Esses
certamente são difundidos pela fann1ia. Mas é para dar
conta do fundo sobre o qual se inscreve o interdito
paterno que se empregará o plural. E se afirmará que o
declínio dos Nomes-do-Pai priva o sujeito do acesso a
fortes referências simbólicas, e o entrega a certa de-
sordem.
104 Depressão, a neurose do contemporâneo

Poder-se-ia, entretanto, dar um passo adiante.


Se, inicialmente, o interdito se encontra nos discurso~.
de fato, não estará efetivamente na própria linguagem?
Disse-lhe suficientemente, em nossas discussões, que
desde que falamos, não temos acesso direto ao objeto
de nosso desejo. Mas, então, você perguntará se isso
não esteriliza de saída a análise lacaniana das muta·
ções da função do pai, quer seja imaginária ou simbó-
lica. Ou então, se isso não nos conduz, pelo menos, a
deslocar nosso centro de interesse, a situar as muta-
ções detenninantes de nossa modernidade em um ou-
tro nível.
Está bem aí, de certa maneira, a posição de al-
guns de meus colegas. As referências simbólicas do
sujeito, sustentadas por eles, não estão necessariamen-
te ligadas a uma forma particular de autoridade, diga-
mos ao patriarcado. Procedem da dimensão Outra que
está incluída na linguagem e nos discursos sociais. É
ela que deve separar a criança do gozo alienante de
sua mãe. É ela quem deve permitir, até na existência
do adulto, o acesso ao desejo. Uma vez que a dimen-
são Outra possa se manter, sob novas formas, o essen-
cial fica preservado. Aliás, eles lembram que Lacan
reinterpretou o édipo como um mito, fez dele uma sim-
ples apresentação imaginarizada da estrutura, quer di-
zer, de nossa relação com a linguagem e a lei.
Eu estou, veja você, de acordo com esses cole-
gas. Penso, entretanto, que para além do próprio papel
da linguagem como tal, o pai conserva um lugar abso-
lutamente necessário. Mas esse lugar, eu o atribuiria
mais ao pai real, de quem voltaremos a falar. Ou então,
a esse pai que, no texto de 1938, dá um exemplo
"transgressor". Que dá ao sujeito a coragem de sus-
tentar seu desejo. Nós também voltaremos a falar dis-
so, certamente.
Para hoje eu penso que você esperava que eu
abordasse um pouco as patologias que podemos
e, lugar do pai 105

1t111grupar sob o título de "grande neurose contempo-


11l11ca". Mas visto ter me demorado em questões mais
J&l·rais, contentar-me-ei com uma observação.
Você observara que em Os complexos familia-
,, •.~, Lacan não designa estruturas neuróticas bem des-
11 ilas, como a histeria ou a neurose obsessiva, aliás,
11rm os sintomas principais dessas neuroses. Impotên-
• 111 e utopia se apresentam como dificuldades que cada
11111 pode experimentar em seu vivido subjetivo, na con-
t1,mtaç~o cotidiana com o mundo da reflexão e da ação.
l'nlvez seja essa, no fundo, a clínica social: atenção às
modificações tão difusas quanto difundidas, cujo as-
pecto patogênico é inegável. Isso, nesta situação, dá à
,·xistência de muitos de nós, um fundo depressivo.

1 l .cmbremos que o imaginário designa o registro das relações


,Ir. identificação e de rivalidade com o parceiro, relações "em
,•r.pelho". O simbólico designa a ordem estabelecida pelo
M"nilicante, quer se trate das relações de parentesco, da perda
rnusada pelo significante (a castração) ou ainda do desejo, uma
vr,. que este se inscreve na metáfora ou na metonímia. Quanto
1111 real, que aqui seja suficiente dizer que se trata daquilo que
l'Nl:apa tanto à simbolização como à representação imaginária.
' I .ACAN, J. "D'une question préliminaire à tout traitement
po~sihle de la psychose". Em Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 583.
lmpotênda sexual
e desvalorização do falo

Caro amigo,

Ora - retomemos nesse ponto - Lacan fala, a


partir de 1938, da impotência e da utopia, essas madri-
nhas sintstras que se instalam no berço do neurótico
rnntemporâneo.
A impotência, evidentemente, você compreen-
deu que é preciso entendê-la em um sentido amplo,
wncebê-la como essa impossibilidade radical para o
agir que pode paralisar o sujeito. Entretanto, você me
rnnfiou que ao ler-me, inicialmente pensou em uma
outra impotência, a sexual. Uma vez que Lacan, em
seu texto, fala de impotência, será que essa não permi-
te, você me pergunta, esclarecer as disfunções da
genitalidade masculina que constituem, atualmente,
tantos casos e que, segundo você, se multiplicam? E
você evoca tudo o que a mídia diz quanto à difícil situ-
ação do homem contemporâneo (do macho contem-
porâneo!) que, em nossa configuração, com as novas
regras do jogo entre os sexos, ver-se-ia desfalcado de
sua virilidade.
Considero, caro amigo, que possa haver aqui
um problema, que certos analistas salientaram. Note,
uma vez que você fala de genitalidade, que esta não se
coloca no plano de funcionamento do órgão. Não sig-
nifica que os homens contemporâneos sejam mais
freqüentemente impotentes. Acontece que eles temem
sê-lo, mesmo quando nada, na realidade, venha corro-
borar com este temor.
l 08 Depressão. a neurose do contemporâneo

Algumas vezes tenho a oportunidade de escu-


tar homens jovens, que têm uma ou várias amantes,
que fazem amor freqüentemente e, conforme suas pró-
prias palavras, por vezes longamente e renovando vá-
rias vezes a operação em uma mesma noite. Eu só apre-
sento isso para fazê-lo sabedor de um detalhe suple-
mentar, com o qual o analista aprendeu a não se sur-
preender. É que alguns desses homens podem, por
exemplo, ter a idéia obcecada de que de fato ele seja
impotente, que doravante ele não poderá mais ter acesso
a uma mulher, concebida, aliás, como um ser perfeito
(e desde já inacessível?). Basta que no curso das carí-
cias, ditas preliminares, ele perca a ereção porque sen-
te uma terrível angústia de não encontrá-la. E essa an-
gústia se repetirá nas relações seguintes, ao menos até
que ele considere ter a prova de que ele se beneficia de
uma integridade masculina sem falhas.
Você se dá conta do que se trata. Esse homem
coloca a questão da sexualidade nos termos que são os
do ser. É preciso que ele seja potente como se fosse
um ser que devesse se manter de maneira permanente,
como se a ereção devesse acontecer e, isso ao extre-
mo, mesmo na ausência da parceira. Isso certamente
tem sentido em uma problemática singular, pois nem
todo homem reage assim. Entretanto, está sem dúvida
acentuada por uma inquietude atualmente muito difun-
dida. Como se os homens não pudessem mais se con-
tentar em se identificar como aquele que, no momento
oportuno, poderia fazer uso do órgão - órgão valen-
do, na descontinuidade, como sigrJficante das idas e
vindas do desejo. Eu me perguntaria, então, se não é
precisamente porque hoje em dia, alguma coisa amea-
ça a possibilidade que os homens têm de entrar, com
armas legítimas, no jogo do desejo, que eles têm mais
necessidade, imaginariamente, de uma segurança má-
xi ma e não podem mais sair, doravante, da problemáti-
lmpotênda sexual edesvalortzação do falo 109

l' 11 da identidade, com todos os temores que a estas


estão ligados.
Será preciso aqui, caro amigo, que eu insista
na diferença entre identidade e identificação? Ela é es-
sencial para apreender ao que pode remeter esse temor
da impotência, em última análise, a uma confusão bem
comum, aquela que nos faz acreditar que possuímos
uma identidade de homem ou uma identidade de mu-
lher, uma vez que "hornem,, e "mu lher,, valem, sobre-
tudo, como significantes por meio dos quais nós tenta-
mos nos !dentificar1, o que não se dá sem certa dimen-
são de semblante2• Mas sem dúvida, tudo isso supõe
retomar a questão a certa distância.
Certamente, existe um paradoxo da psicanáli-
se. Ela não cessa de colocar a questão do que pode
distinguir os sexos, e ao mesmo tempo, ela nos coloca
em guarda contra a ilusão de poder dar uma resposta.
Freud se perguntava, por exemplo, se não seria a opo-
sição atividade-passividade que representaria a dife-
rença dos sexos no inconsciente. Não estamos mais
nesse ponto. Quem atualmente poderia crer que as
mulheres poderiam parecer particularmente passivas?
Muito mais interessante, certamente, é a insta-
lação que ele propõe ao introduzir o conceito de falo.
Ele escreve em seu texto sobre "A organização genital
infantil" que para a criança, e, aliás, "para os dois se-
xos", um único órgão genital, o órgão masculino, de-
sempenha um papel. Não existe um primado genital,
mas um primado dofalo" 3 •
Esse texto ficou célebre, mas também deu lu-
gar a diversos mal entendidos. Com efeito, é a partir
do que Freud aí afirma, que se acreditou poder opor
aqueles que possuiriam o falo aos que não o possuiri-
am. Entretanto, é preciso salientar que não se trata de
uma posse tranqüila. Está claro, no que tange as mu-
lheres, mas é verdade também para os homens: aquele
11 O Depressão, a neurose do contemporâneo

que está provido de um pequeno apêndice está, sobre-


tudo, na situação de imaginar que este ter é bem frágil,
pois outros não o têm. Assim o falo, pode valer, sobre-
tudo, como símbolo da falta, a mesma falta que DO!.
leva a desejar4.
Talvez você conheça este aforismo de Lacan.
que para muitos de seus leitores ocasionais, ficou tão
célebre quanto enigmático: "Não há rapport sexual."
(Inicialmente ele dissera: "Não há ato sexual.") O que
é que ele quer dizer com isso?
Eu não responderei, de maneira completa, a uma
questão que vai muito mais longe do que você poderia
crer. Digamos que essas frases nos dão a entender que
não se pode escrever a fórmula de uma relação que
remeteria um ao outro, Homem e Mulher, "como se
encaixam, para o serralheiro, o elemento macho e o
elemento fêmea. " 5
Você entende aqui, para além da metáfora téc-
nica, que Homem e Mulher não se relacionam um com
o outro de maneira natural. Nenhum instinto os ajusta,
porque a sexualidade humana é inteiramente tecida pela
linguagem, porque se organiza em torno desse
significante particular que é o falo. Dessa maneira,
pode-se dizer que é por ser o mundo humano um mun-
do de linguagem (um mundo organizado pela função
fálica) que não há rapport sexual. Mas pode-se tam-
bém dizer que por não haver rapport sexual que ho-
mens e mulheres têm de se situar em relação a esse
significante particular que é o falo.
Ora, o que se passa hoje em dia? Você me dis-
pensará de tentar uma análise demasiadamente geral.
Eu lhe remeterei apenas, para ir rápido, a um filme,
Romance X, de Catherine Breillat, no qual se vê uma
mulher entregar-se a diversas experiências eróticas, que
mobilizam principalmente fantasmas masoquistas. Você
viu esse filme? E interessante lembrar o ponto de par-
11.1.

llcln. A jovem gostaria mais de fazer amor, simples-


mrnte, com o homem que ela ama. Mas ele se mantém
indiferente. Não é que ele seja fisicamente impotente,
11111s isso não o interessa. Talvez seja preciso salientar
"" primeiras imagens do filme. O jovem posa para uma
11110 pub1icitária. Ele é fotografado ao lado de umajo-
vrm. Ambos estão vestidos como toureiros, é preciso
1111.ê-lo, com o viés um pouco ridículo que adquire uma
11imulação quando se trata de imitar uma prática que
11upõe o máximo de empenho. Em todo caso, o homem
r II mulher a serem fotografados são quase idênticos.
Mos, uma vez que serão fotografados da cintura para
dma, o homem se coloca na ponta dos pés para pare-
cer um pouco mais alto do que sua vizinha. Há pouco
eu falava para você de uma dimensão de semblante.
Aqui diz mais de um falso-semblante, um falso-sem-
hlante que começa por eliminar toda a diferença para
em seguida fazê-la ressurgir através de um meio mais
ridículo. Bem, se você me permite ir um pouco mais
rápido, penso que a depressão contemporânea se nu-
tre desse tipo de falsos-semblantes.
Mais uma coisa. Você vê o que está em ques-
tão aqui. Nós encontramos um dos temas do qual eu
lhe falei quando de nossas discussões, o de uma for-
clusão6 social do falo. Você bem sabe que atualmente,
mesmo que não seja bem visto insistir no que implicam
as diferenças de geração, ainda é pior insistir no que se
refere à diferença dos sexos, de nos interrogarmos so-
bre as conseqüências subjetivas de certos modelos con-
temporâneos da unisexuaJidade. Por pouco que se faça
alusão a essas questões e por pouco, certamente, que
se faça parte dos indivíduos de sexo masculino, corre-
mos sempre o risco de sermos acusados de querer res-
tabelecer não se sabe qual poder machista. Conseqüen-
temente a questão se coloca: Como o sujeito pode se
situar em tal configuração?
1 12 Depressão, a neurose do contemporâneo

Um dia desses, será preciso que eu retome com


você o tema da forclusão do falo. Será preciso, sobre-
tudo, que eu busque dar-lhe uma ancoragem estrutu-
ral. O que penso, com efeito, é que esta "forclusão
social do falo" só pode produzir efeitos subjetivos se
ela for substituída por um mecanismo do mesmo tipo
no nível do sujeito individual. Ora, alguns de meus co-
legas, os mais próximos, sustentaram que era dificil-
mente concebível, ao menos nos casos de neurose.
Outros se alarmaram, aliás, pelo tema de uma "forclusão
parcial" pelo qual eu parecia abordar patologias que
não se inserem facilmente na psicose, não mais, aliás,
do que na neurose, pelo menos na acepção comum.
Permita-me não retomar essa discussão hoje, e de pro-
por-lhe uma hipótese mais simples. Mesmo se o falo
não for verdadeiramente forcluído, é possível que em
certas configurações ele seja depreciado, desvaloriza-
do, tomado inútil (como símbolo!). Ele poderia, entre-
tanto, encontrar uma função na economia psíquica, mas
isso suporia um processo bem longo permitido, por
vezes, pela análise.

1 Se a questão da identidade sexuada não encontra resposta ga-

rantida, é preciso, sem dúvida, deslocar o problema. A questão


será menos a da identidade do que a da identificação. O sujeito
não sabe o que é, por exemplo, ser um homem, mas ele tenta se
garantir de sê-lo, pelo menos em sua relação com as mulheres, e
se identificando com aquele que lhe aparece como homem. Ele é
homem, de alguma forma, por procuração, o que introduz a ques-
tão do pai.
2 Pelo termo semblante, Lacan designa um modo de aparecer da

posição subjetiva, com a idéia de que a dimensão do aparecer


não deve ser desqualificada como tal, que ela é o único modo de
manifestação da verdade. Assim, o que vale como masculino
aparece em uma dimensão de semblante, em um "se fazer de
homem", que não se confunde com "fazer o homem". Sobre esta
questão do semblar_ite, ver CHEMAMA, R., VANDERMERSCH,
lmpotmdase.mal e ~ d o falo 113

li. (org), Dicionário de psicanálise, São Leopoldo, Unisinos,


,11Kl7.

' t-'REUD, S. "L'organisation génitale infantile". Em La vie


,·,·iuelle, Paris, PUF, 1969. Termos em itálico são do texto de
hcud.
4 Aliás, está claro que o falo, uma vez que desempenha um papel

fundamental para os dois sexos não se confunde com o órgão


masculino. Acima de tudo, organicamente falando, homern e
mulher não se confundem. O que nós chamamos de falo Vale,
por conseguinte, como objeto de investimento imaginário, rne-
lhor aindà, como significante no questionamento que cada um
pode ter a respeito da questão do sexo.
\ LACAN, J. Seminário XIV, A lógica do fantasma. Inédito,
lição de 10 de maio de 1967.
• O termo "forclusão" foi proposto por Lacan como tradução do
termo al~mão Verwerfung. Lacan distingue a forclusão do
recalcamento. No recalcamento a representação rejeitada P<>de
retornar, de maneira geralmente deformada, por exemplo, em
um sonho, ao passo que na forclusão não houve simbolização,
nada de inscrição do conteúdo rejeitado, o que faz com que este
só possa retomar do exterior, do real, sob forma, por exernplo,
de alucinação. Lacan considera que é a forclusão do Nome-do-
Pai que conduz o sujeito a um destino psicótico. Ele também
evoca outras forclusões, como a da castração, ou mesmo a do
sujeito. Isso já é problemático, à medida que a forclusão, como
operação, é melhor concebida no que diz respeito ao significante.
Aliás, de outro modo do que, por simples analogia, pOde-se
descrevê-la pelo social? Isso suporia, no que concerne ao falo,
que o significante que simboliza a diferença dos sexos, não en-
contraria seu lugar no discurso contemporâneo coletivo. Isso não
é impossível: não se pode certamente dizer que não distingamos
mais homem e mulher, mas de certa maneira não queremos sa-
ber mais nada das implicações desta distinção, como a que apa-
rece no novo Direito de famt1ia, ou ainda nos Gender Studies.
Aliás, alguns colegas objetam, que em todo o rigor lacaniano, 0
que está forcluído do simbólico retoma no real, e que não se vê,
na idéia de uma forclusão social do falo, como conceber esse
retomo. Pode-se, entretanto, pensar no que se passa, por exem-
plo, no que concerne à pedofilia. Na realidade, ela não é mais
freqüente do que antes. Mas ela adquire, para o homem contem-
porâneo, que a vê em tudo, um peso de real quase alucinatório.
A lmpotênda, a Inibição, a utopia

Caro amigo,

Certamente, "desvalorização" se constitui em


uma metáfora que remete ao domínio da economia 1•
Por que não? Lacan não se priva quando, por exem-
plo, em A lógica do fantasma, evoca o Valor de troca
do falo: se o pênis não é reduzido a um gozo auto-
1•r6tico, ele pode valer como símbolo de uma troca,
quer dizer, do que aproxima os indivíduos, na falta de
rnnstituir verdadeiramente uma relação. Freud falava
de um "ponto de vista econômico" em um sentido bem
diferente. Com isso, ele designava tudo o que se refere
1) hipótese segundo a qual os processos psíquicos con-
sistem na circulação e na repartição de uma energia
,1uantificável. Isso aproximava a psicanálise da física.
Não pense você que seja mais justo deixar transparecer,
l'lll nossos próprios conceitos, que o sujeito do desejo
tão-somente se dá na relação com o sujeito da troca
social, inclusa a troca mercantil?
Você me coloca, aliás, uma questão peculiar.
Você se pergunta se o que eu introduzi na última carta
não teria o inconveniente de falar exclusivamente dos
indivíduos de sexo masculino. Desta maneira, eu teria
dado apenas elementos para abordar as inquietudes
masculinas ou ainda a indiferença, esta impotência psí-
quica a qual os homens estão ligados. Eu nem mesmo
sublinharei que foi você, também, quem me arrastou
para esse terreno: o fato é que eu me engajei sem reti-
l·ências. Mas, sobretudo, eu lhe diria que tal objeção é
a cada dia desmentida pelas mulheres que recebo em
análise. Alguma coisa traduz, com efeito, em seu trata-
l 16 Depressão, a neurose do contemporânet,

mento, a ansiedade contemporânea em relação à im


potência. Mais essa, dirá você? As mulheres não po
dem, se elas não deliram, questionar o funcionamenh,
de um órgão que elas não possuem. Certo! Mas elas
podem, perfeitamente, em contrapartida, exprimir dl·
maneira amarga, sua decepção frente à impotência dl'
seu parceiro - ou de seu analista, que não chega a lhes
ajudar a ir em frente. Elas também podem se interro-
gar metaforicamente sobre sua impotência subjetiva
questionando, por exemplo, seus fracassos e suas con-
quistas na esfera profissional. Assim elas se juntam aos
sujeitos masculinos de nossa modernidade, que sequei-
xam sem cessar de não poder ir até o fim de seu proje-
to. Um "não poder concluir" que ilustra bem, metafo-
ricamente, as formas diversas de perturbação do "ato".
Você vê o que me permite essa referência às
mulheres. Ela confirma o mal-estar atual em relação à
sexualidade. Mas ela espicha sensivelmente a questão
da impotência. Trata-se bem, você duvida disso, dessa
incapacidade geral de projetar, de agir, de desejar, da
qual nós falamos desde o início. E lembro-lhe o que
nós havíamos encontrado em Os complexos familia-
res: que um sujeito que não se choca com um pai forte,
um pai que apara o golpe, que persegue por si próprio
algum objetivo, não saberia conduzir sua vida e sua
ação de maneira a obter algum resultado efetivo.
Entretanto, uma questão se coloca. Como será
preciso conceber a relação que pode haver entre uma
impotência e uma outra, entre o que afeta claramente a
esfera da sexualidade, e o que é aparentemente de uma
outra ordem?
Eu proponho a você, para discutirmos, in-
troduzir aqui o termo inibição. É um termo de uso
corrente, mas também um termo freudiano
( I !(,mmung) que os analistas deveriam, atualmente,
retomar o estudo2•
AImpotência.. a Inibição. a utopia 117

Freud dizia que uma função podia estar ini-


ltttlu quando sua significação sexual aumentava.
l)mmdo a escrita toma a significação simbólica do
1111to ou quando a caminhada se toma o substituto
1111 pisotear sobre o corpo da mãe terra, escrita e ca-
111111hada são abandonadas porque elas voltariam a
1•1tccutar o ato sexual interditado. Dito de outra ma-
neira, para Freud, a inibição é a conseqüência de uma
11cxualização. Certo, ela testemunha a rejeição dessa
11cxualizaç.ão. Mas ao mesmo tempo, ela constitui o
iiigno da existência dessa sexualização, assim como
11 denegação trai o desejo recusado. Bem, parece-me,
u partir de alguns tratamentos que conduzi, que há
uma outra dimensão de inibição, muito mais radical.
Não significa que o sujeito evite uma ação particular
4ue teria metaforicamente tomado um sentido sexu-
al. Na falta de dispor das coordenadas simbólicas que
u permitiriam, o sujeito evita se meter nessa ação, de
maneira a não encontrar esse tipo de questões. As-
sim, o único laço que a inibição, nesses casos, con-
serva com a questão do sexo, é que, de saída, ela
constitui o rastro de um evitamento. Mas esse laço,
por tênue que seja não pode ser esquecido.
Toda a ação, certamente, não tem um sentido
sexual, mas toda a ação é suscetível de adquirir um,
porque toda a ação pode metaforizar o desejo e a
posição sexuada do sujeito, toda a ação pode instalar
o que nós chamamos de gozo fálico. O gozo fálico
vai bem além do exercício efetivo da sexualidade.
Ele supõe, pelo lado do sujeito, um certo empenho,
um balizamento um tanto impreciso de sua posição
sexuada e, inicialmente, da diferença dos sexos. Ora,
é justamente isso que atualmente está perturbado, e
é essa perturbação que encontra seu aval no que nós
designamos de impotência, ou ainda no que pode-
mos conceber como uma inibição generalizada.
118 Depressão, a neurose do contemporân ..•

A utopia no presente. É sem dúvida pelo la111


do sujeito se achar freqüentemente em uma situ.1\·1111
de impotência que ele se volta em direção a ela. A his
tória devia, alguns decênios após o artigo sobre os com
plexos familiares, verificar em larga escala esse tipo lk
análise. Para muitos dos jovens dos anos 1960-70
para numerosos entre nós ! - a política, por exemplo,
se definia em termos de ideais generosos que raramcn
te a experiência ratificava. E o que freqüentemente eles
desconheciam é a que ponto esses ideais (é proibido
proibir, por exemplo) tentavam responder a dificulda-
des que também tinham seu lado pessoal.
Você me censura por essa incursão um tanto
direta no registro da política? Ela não inclui nenhuma
apreciação ou depreciação das orientações de quem
quer que seja. Mas ela me pennite discutir, um pouco,
uma análise que se começa a ver surgir sobre a "revolta"
de Maio 68.
Você sabe que Maio de 68 desorganizou os
valores tradicionais, os princípios morais, os interditos
de qualquer sorte. Pôde-se, então, dizer que ela prepa-
rava os jovens - os atuais homens "maduros" - a não
mais se desconcertar com os limites, o que tomava os
sujeitos perfeitos para o neo-liberalismo. Justamente
onde nenhum princípio regula ou limita o apetite pela
satisfação, o capitalismo triunfante poderá vender suas
inovações de todo tipo, inclusive suas drogas ou seus
objetos pornográficos. Não contesto que a palavra de
ordem de tal movimento da época ("Tudo") podia aí
brotar. Mas, é igualmente evidente que 1968 também
incluía uma contestação da sociedade de consumo que
chegava ao ascetismo ... e à depressão.
Poderei eu, a esse respeito, sugerir-lhe a leitura
de um romance contemporâneo 3 ? Foi escrito por um
dos atores desta época, um dos responsáveis pelo mo-
vimento maoísta de então, Olivier Rolin. O autor mos-
4 lmpatinda. a Inibição, a utopia 119

111111 11'\gica da luta contra a "civilização burguesa" que


h•,·nvu a censurar numerosos desejos e prazeres, entre
1111 ,111uis, por exemplo, a apreciação da beleza de uma
11111lhcr ou de uma paisagem. E também comportava
··um tipo de repugnante sacralização do mal".
'i11aalização do mal, na qual não estou longe de ver
11111 traço constitutivo da posição depressiva. Seria pre-
" um, então, admitir que o movimento dessa ép0ca, que
1111110 marcou toda uma geração, organizava elll gran-
,lc escala o f~hamento depressivo assim como a bus-
na do gozo objetal.

Notas
1 Poder-se-ia dizer que o significante fálico constitui, no sujeito

depressivo, um tipo de moeda desmonetarizada, uma divisa fora


de uso.
2 Pode-se inicialmente observar que a inibição não se confunde

com o sintoma. como já o deixa supor o título de FREUD, s.


lnhibition, symptôme et angoisse, Paris, PUF, 1951.
l ROLIN, O. ngre de papier. Paris, Seuil, 2002. O leitor que
almejar uma referência aparentemente menos anedótica se lem-
brarei que Lacan retoma, freqüentemente, em sua obra, à incli-
nação do sujeito humano à representações ilusórias, onde ele
desconhece a realidade das relações sociais e de seu papel ai
desempenhado. Dessa maneira, Lacan atribui um estatuto analí-
tico à categoria hegeliana da "bela alma", aquela que não reco-
nhece no mundo a desordem que também a afeta. Notar-se-á,
aliás, que também nisso não estamos longe do tema da depres-
são que constitui o fio dessas cartas.
A metáfora paterna

Caro amigo,

Você me diz que não temos mais nenhuma ques-


llio em específico para retomar ou para debater. Além
tlisso, você_ me sugere retomar, na seqüência das car-
ias, o projeto que eu havia lhe proposto, o de uma apro-
itimação histórica da contribuição de Lacan quanto à
neurose contemporânea.
Na verdade, tenho dificuldade em não tumul-
luar esse plano histórico. Se tivesse me detido estrita-
mente no artigo "Os complexos familiares", ainda es-
lnria falando do declínio da imago paterna. Finalmen-
le. não foi o que fiz. Abordei várias outras questões
porque isso me pareceu indispensável. Então, talvez
não seja proibido dizer alguma coisa a respeito da ma-
neira como Lacan, nas duas décadas seguintes, preci-
sará suas análises, principalmente distinguindo pai ima-
ginário, pai simbólico e pai real. Eu falo de duas déca-
das; no entanto, exagero, porque isso supõe que ele
lenha necessitado desse tempo todo para chegar a for-
mulações satisfatórias. Porém, o fato é que sua teoria
não surge de uma só tacada.
Há um artigo de 1953 que se chama "O mito
individual do neurótico 1". Nele, o pai real se confunde
com o da realidade familiar, com todas as suas particu-
laridades, suas escolhas, suas dificuldades. A respeito
desse pai, na época, Lacan disse que dele é esperado
muito: que sustente a lei simbólica, quer dizer essenci-
almente a proibição do incesto, mas que ao mesmo tem-
po permita ao sujeito aceder ao seu desejo. Em sínte-
'l\ o que nós já havíamos visto no texto de 1938. No
122 Depressão. a neurose do contemporâneo

entanto, poderia o pai real representar "em toda a


sua plenitude, o valor simbólico cristalizado em sua
função"? Lacan nos indica que podemos duvidar dis-
so. O recobrimento do simbólico e do real nunca podl·
ser apreendido como tal. "O pai é sempre, por qual-
quer lado, um pai discordante em relação à sua fun-
ção, um pai carente, um pai humilhado[ ... )".
Certamente, 1953 é uma data importante, pois
trata-se do ano no qual uma primeira cisão divide o
movimento psicanalítico francês, Além disso é o ano
em que Lacan pronunciará a primeira conferência
que apresenta de maneira sistemática suas idéias 2•
Mas será nos anos seguintes que Lacan, em seu se-
minário, irá verdadeiramente avançar no que se re-
fere à concepção da função do pai.
Você deve lembrar do rápido resumo que eu
lhe havia proposto, quando de nosso diálogo a res-
peito da teoria lacaniana da metáfora paterna. Lem-
bro-lhe que se refere à operação estruturante pela qual
o Nome-do-Pai se substitui ao desejo da mãe. De
certa maneira, nós já começamos a retomar o texto
de 1938, mas, sem dúvida, é preciso entrar um pou-
co mais nos detalhes.
Em seu seminário sobre As formações do in-
consciente3, Lacan consagra várias lições a essa ques-
tão. Ele mostra que é preciso conceber três tempos
diferentes, três tempos cronológicos, sobretudo, ló-
gicos. No primeiro, a criança parece totalmente to-
mada no desejo da mãe. Conhecemos descrições tri-
viais. Ao lhe prodigalizar seus cuidados, a mãe pro-
longaria o tempo da gravidez, ela faria de seu bebê
um simples apêndice, que sem dúvida lhe garante,
como mulher, que nada lhe falta. Em suma, para o
analista, a criança tende, nesse estágio, a se confun-
dir com o falo da mãe. No entanto, reteremos que,
para Lacan, a partir ~esse estágio, mesmo que a rela-
123

\ llo pareça dual, o pai está presente, ele está de algu-


maneira "em potencial".
11111
No segundo tempo, a mãe se revelará interdi-
lmla. Esse interdito representa a operação propriamente
dita da castração que supõe o significante do Nome-
,lo-Pai. Quer dizer que é na fala e na linguagem que se
lormula a lei humana, a lei de proibição do incesto,
ficando bem entendido que essa geralmente não é pro-
ferida sob essa forma. Digamos que a criança ouve na
fula da mãe uma referência terceira, suficiente para
separá-la daquela, e que doravante lhe permite aceder
n seu próprio desejo.
Talvez fosse conveniente esclarecer, aqui, de
uma maneira mais precisa, o que leva Lacan a falar de
uma "metáfora" paterna. Uma metáfora é uma substi-
tuição de significante, pela qual, você o sabe, um ter-
mo vem no lugar de um outro, dizendo as coisas de
maneira mais "imagética", produzindo efeitos de sen-
tido. Então, é preciso conceber que o essencial da fun-
ção paterna consiste em uma operação desse tipo.
Novos significantes, de alguma forma, vêm "no lugar"
daqueles que representam o desejo da mãe. Eles ofere-
cem à criança uma nova referência que orientará de
maneira diferente seus atos e seu pensamento. Já lhe
falei de castração, mas, você compreende a partir do
que acabo de lhe dizer, que essa castração é tão-so-
mente a outra face do acesso ao desejo.
Além disso, é preciso salientar outra coisa quan-
to à operação da castração. No seminário sobre A re-
lação de objeto4, anterior As Formações do inconsci-
ente, Lacan fazia do pai real o agente da castração. De
certa maneira isso nos lembra o que ele dizia anterior-
mente, ou seja, espera-se do pai da realidade que sus-
tente a função simbólica do pai. Mas em As Forma-
ções do inconsciente ele chegará a dizer que a mãe
real, como pai real, pode fazer a função de agente da
124 Depressão, a neurose do contemporâneo

castração. Porém, é no terceiro tempo da metáfora


paterna que o pai real parece, naquele ano, verdadei-
ramente exigível. Eu suponho que seja para preser-
var o valor particular desse terceiro tempo e a fun-
ção específica que o pai aí desempenha, que seu pa-
pel é menos acentuado ali onde está em questão "ape-
nas" a castração.
De que se trata nesse terceiro tempo? Você se
lembrará do que havíamos dito. É nele que o sujeito
tem relação com o pai como detentor do falo, poden-
do pelo menos transmitir a promessa de tê-lo - de tê-
lo ao dá-lo ou ao recebê-lo. Quando de nossas discus-
sões, eu havia emitido a hipótese conforme a qual, em
certos casos, o segundo tempo possa funcionar e o ter-
ceiro não. Disso teria se desencadeado o que eu nome-
ava "forclusão do falo". Pareceu-me poder fundar um
pilar da clínica específica que eu havia abordado ao
discutir o termo "caso limite" (borderline), mas que já
me conduzia à evocação da depressão. Bem, ei-nos
aqui, uma vez mais, nessas questões. Desta vez não
poderemos mais evitá-las. Mas elas são tão cruciais e
tão delicadas, que eu quero lhes consagrar uma carta
inteira - a próxima, se você me permite.
125

Notall
1 LACAN, J. Le myte individuei du névrosé ou poésie et vérité
dans la névrose, Éditions des grandes têtes molles de notre
époque, sem data.
2 A cisão em questão, que divide a Société psychanalytique de

Paris, é devida ao contestado projeto de desenvolvimento em


separado, com bases burocráticas, de um Instituto de fonnação.
Lacan havia sustentado a posição de contestação desse projeto
formulada por numerosos alunos. Quanto à conferência,
"Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse",
esta constitui seu pronunciamento no Congresso de Roma, em
26-7 de setembro de 1953, e se acha publicada nos Écrits. Paris,
Seuil, 1966.
3 LACAN, J. Séminaire V. les formations de /'inconscient, 1957-

58, Paris, Seuil, 1998.


4 LACAN, J. Seminário IV. la relation d'objet, 1956-57, Paris,

Seuil, 1994.
Uma fordusão do falo1
Retomo à questão da cllvagem

Caro amigo,

Quem cala consente! Como você não se opôs,


eu retomo.
Breve histórico: quando de nossas discussões
eu havia abordado casos que desconcertam todos os
analistas, porque eles se dão mal nas habituais descri-
ções das psicoses e não melhor nas das neuroses de
transferência 1• Eu havia me proibido de dar por adqui-
rida a facilidade que consiste em se referir a estruturas
intermediárias, borderline, ainda que o próprio Lacan
faça uso dela em pelo menos um caso. Uma vez que
ele faz esse uso no O homem dos lobos 2, então, eu
havia pensado poder avançar nessas questões retoman-
do o caso desse célebre paciente de Freud, Serguei
Constantinovitch Pankejeff, caso que é tão complexo
quanto apaixonante.
Você se lembra que foi nesse texto de Freud
sobre o Homem dos lobos, que Lacan buscou o termo
Verwerfung, que traduziu por forclusão. Haveria em
Serguei uma rejeição radical da castração. Esta, não
tendo sido simbolizada, só poderia voltar do real, sob
forma alucinatória. Porém, eu havia salientado que
havia, de acordo com Freud, três correntes psíquicas
que coexistiam no Homem dos lobos. Uma delas ape-
nas consistia nessaforclusão, enquanto a segunda des-
sas correntes - se pudermos dizer assim-, abominava
a castração. A terceira estava pronta para admiti-la e
para se consolar com a feminilidade como substituta.
Ora, a coexistência dessas correntes me parecia tanto
128 Depressão, a neurose do contemporâneo

mais possível quanto mais se parecesse com a do reco-


nhecimento da castração e de sua recusa, no mecanis-
mo da clivagem que eu havia retomado a respeito do
fetichismo, mas para além dessa estrutura específica.
Se em alguns casos, em um mesmo sujeito e no
que concerne a uma mesma operação (a da castração).
uma forclusão pode coexistir com outros mecanismos.
não estaremos embasados para falar de uma forclusão
parcial? Eu colocava a questão, mas forçosamente, não
a resolvia3 •
Além disso, também pensava poder me apoiar
em uma observação de Marcel Czermak na apresenta-
ção de Patronymies4, em que ele se remetia a uma con-
versa privada com Jacques Lacan, na qual este teria
evocado a questão da "extensão da forclusão". Se a
forclusão puder ser mais ou menos extensa, isso não
explicaria, pelo menos, que a psicose não constitui um
campo homogêneo e que teria conseqüências
casuísticas consideráveis? Um psicótico poderia estar
menos "marcado" pela forclusão do que outro. Tal su-
jeito em específico, no qual poderia haver forclusão e
mesmo forclusão do Nome-do-Pai poderia, ao mesmo
tempo e na maior parte das circunstâncias levar a vida
comum de um neurótico.
Marcel Czermak, com quem depois eu discuti,
não consente em falar de forclusão parcial, porque.
como ele já diz em seu livro, a forclusão constitui "um
registro absoluto e irreversível". De fato, pode-se pen-
sar assim. Se a forclusão consiste em uma não-
simbolização, como poderia haver aí simbolização par-
cial? Salvo se vislumbrarmos a existência de várias
correntes psíquicas. Portanto, se diria que em uma
mesma corrente psíquica haveria ambas, quer seja
forclusão (absoluta, irreversível), quer seja ausência de
forclusão. Mas, a forclusão no âmbito de uma corrente
psíquica poderia dar lugar, no âmbito de uma outra
Uma. fOldusão do falo? Retomo à que.stão da c:Uwagem 129

corrente psíquica a uma ausência de forclusão, a uma


simbolização. Haveria então, evidentemente, que
problematizar inicialmente essa disparidade. Voltarei a
ela em alguns instantes.
Só uma observação a respeito do que Marcel
Czermak propõe em relação à psicose e que sempre
considerei notável. Por isso, não aprovaria um acordo
se ele mesmo não o reconhecesse, mas creio ver em
seus livros elementos que corroboram com esta idéia
de uma pluralidade de correntes psíquicas em um mes-
mo sujeito. É o caso que Czermak evoca quanto à
mulher erotômana5 (erotomania "atípica"), na qual co-
existem diversas respostas à intrusão de um falo ima-
ginário atribuído, inicialmente, a dois psicanalistas per-
versos6. Se, com efeito, a primeira "resposta" se limi-
tar à denúncia dessa efração, a paciente encontrará re-
cursos de diversas maneiras, mas em particular em uma
resposta esperada de um Outro pacificante que será o
novo analista que ela consulta. Enfim, você lerá tudo
isso7.
Retomo agora, de uma maneira mais precisa
ao que eu evocava no final de minha última carta. Po-
der-se-ia verdadeiramente isolar algo que chamaríamos
de "forclusão do falo"? Numerosos analistas contes-
tam a idéia de que se possa separar a questão do falo
daquela do Nome-do-Pai, a forclusão de um e a
forclusão de outro. Há, nesse sentido, uma só opera-
ção, a que constitui, como tal, o Nome-do-Pai. Se essa
não tiver lugar, será a psicose. Se ela tiver lugar, o
significante fálico, em tomo do qual se organiza o de-
sejo do neurótico, não estará forcluído. Aliás, como
ele seria? O falo é para nós um símbolo da falta. Ora,
sem esse símbolo, diz Bernard Vandermersch, o
pulsional se toma errático e não subjetivante. Eu po-
deria observar que a depressão, com a qual me ocupo
sobremaneira aqui, comporta precisamente uma difi-
130 Depressão, a neurose do contemporâneo

culdade específica para simbolizar, para subjetivar a


relação com a diferença sexual. Mas fiquemos no de
bate de fundo.
Mantenho que é preciso distinguir dois momcn
tos. Nos casos dos quais tento falar, teve lugar a opc
ração pela qual se simboliza o Nome-do-Pai. Não ha
nenhum fenômeno maciço de delírio ou de alucinaçfü >'.
E acima de tudo, eu conviria, de bom grado, que tam
bém o falo como significante, no absoluto, não cst;í
indisponível. Simplesmente, pelo fato da carência do
pai real ele não preenche sua função, ou ele só a precn
che parcialmente9 • Em síntese, o sujeito foi confronta
do ao que estrutura a todos nós. Mas ele não o registra
e isso o deixa na beira do caminho.
Você aceitará uma aproximação, que de minha
parte, considero esclarecedora? Em nossas discussõc~.
eu havia distinguido dois tempos a respeito do
fetichismo. Aquele no qual a criança percebe a ausên
eia de pênis na mulher e aquele no qual ela deveria
registrar esta ausência, mas a recusa. Talvez seja a uma
distinção dessa ordem que aqui somos conduzidos.
Mas, você dirá, se o falo está disponível de ccr
ta maneira, trata-se verdadeiramente de forclusão, de
Verwerfung? Será que essa última aproximação qul'
acabo de lhe propor, não nos levaria a Verleugnunx.
ou a uma clivagem, a uma Spaltung? Será que o sujei
to depressivo que poderia ter acesso ao significante
fálico, mas que refuta essa possibilidade, não se en
contrará na clivagem?
Bem, isso me parece absolutamente possível l'
me surpreendo de não ter feito essa hipótese, já na época
de nossas discussões. Talvez isso provenha da reticên
eia que todos nós temos de vincular à mesma estrutura
entidades fenomenologicamente diferentes, como po
dem ser, por exemplo, o fetichismo e a depressão.
Mas por se tratar de fenomenologia, por qul'
não evocar, mes~o rapidamente, uma sessão bem n·
lma fan:lusio do falo? Ret.omoà questão da dhagem 131

ccnte? A jovem que eu recebo, apreende muito bem,


l'nmo em um momento dado de sua história a questão
do pai real se colocou; como seu desejo foi invalidado
pela mãe e como ela mesma dispunha de elementos
necessários para ir além dessa invalidação. Eu diria que
u significante fálico estava claramente em jogo, quase
mais do que nos casos de neurose onde ele está dissi-
mulado. Mas há como que uma fatalidade: o que foi
invalidado parece não poder mais ser colocado em jogo;
portanto, há como que uma forclusão, uma ausência
rndical que coexistiria com a própria presença do que
está ausente, mas em outro patamar. A partir de então,
essa jovem não cessa de testemunhar, em sua vida, os
efeitos deletérios do que foi perdido dessa estranha
maneira.
Você vê que toda a especificidade do caso se
11t~m aqui ao que eu chamava de correntes psíquicas
1it~paradas 10 • Por razões ligadas a nossos discursos so-
riais, levanto a hipótese de que esta noção deva,
11tualmente, ser retomada de maneira mais freqüente
do que habitualmente a fazemos. Não será o próprio
11ocial que hoje propõe os mais contraditórios impera-
tivos? Não será ele que mantém, custe o que custar,
rxigências nonnativas, desacreditando por antecipação
o que estava tradicionalmente ligado a certa nonna,
lurllo quanto a sua transgressão, o pai real?
132 Depressão, a neurose do contemporâneo

r.otu
1 Faço aqui o uso desse termo, corrente em Freud, para designar

as neuroses das quais eu falo desde o início dessas cartas, neuro-


ses nas quais o desejo é representado no sintoma, mas também
se pode dizer que em um discurso endereçado ao analista. É a
essas neuroses que eu oponho o que seriam personalidades
depressivas.
2 FREUD, S. L'homme aux loups, Paris, PUF, 1990.
3 Contudo, como conceber que Lacan tenha falado, em 7 de de-
zembro de 1955, em seu seminário sobre as psicoses, de "aluci-
nação episódica na qual se mostram as virtualidades paranóicas
do Homem dos lobos"?
4 CZERMAK, M. Patronymies, Paris, Masson, 1998.
s CZERMAK., M. op. cit., p. 93-5.
6 M. Czermak fala, não de clivagem, mas de "disparidade
subjetiva", termos que ele retoma do título do Seminário VIII de
Lacan, Le transfert dans sa disparité subjective. Sem mesmo
tomar cuidado, acabo de empregar esse termo, para retomar a
idéia freudiana de uma pluralidade de correntes psíquicas.
7 Eu poderia acrescentar aqui, que em Clivage et modernité eu
havia ilustrado a questão de uma "forclusão parcial" do Nome-
do-Pai por referência a casos nos quais a origem, em uma famí-
lia, havia sido dissimulada, e o patronímico alterado, para apa-
gar todo o rastro dessa dissimulação. Sem que a palavra do pai
seja contestada, havia, nesse tipo de caso, efeitos vizinhos àque-
les em que a mãe não dá nenhum lugar para o pai. Eu creio
então poder aproximar esse tipo de caso daquilo que M. Czermak
sustenta nos casos de amnésia de identidade: uma recusa da fun-
ção simbólica que representa o patronímico. Será demasiado fa-
zer desse um dos elementos do Nome-do-Pai? E o que dizer da-
quilo que M. Czermak designa, fora do campo das psicoses, como
"modalidades segundo as quais o Nome-do-Pai é triturado" (em
Uma fordusão do falo? Retomo à questão da diw.gem 133

função da globalização das trocas, dos fenômenos migratórios,


das diversas perturbações das relações entre os sexos e as gera-
ções)?
" Ocorreu-me observar que os sujeitos depressivos, que
freqüentemente não têm nenhuma vida sexual, podem, em cer-
tos momentos, de maneira súbita e por vezes brutal, ter numero-
sas aventuras sem futuro. Então, não é raro que tal mulher, por
exemplo, perceba em tais ocasiões, de maneira quase alucinatória,
o pênis de seu parceiro. Ele irrompe no âmbito da imagem, ele a
esfacela por sua insustentável crueza, ele participa mais do real,
no sentido la~aniano, do que da realidade.
9 Se é o Outro que nos determina a linguagem, não há Outro do

Outro, não há significante que viria dizer o verdadeiro do verda-


deiro. Como então conceber o que poderia interromper o
deslizamento de significante em significante? O significante
fálico, para Lacan, é o que estabiliza o simbólico, o que dá las-
tro, o que evita que o próprio sujeito não seja aspirado pelo apelo
de um sentido infinito. Poder-se-ia, conseqüentemente, pensar
que o campo da clínica se divide de maneira estrita entre estru-
turas com falo e estruturas sem falo (psicóticas). Entretanto, não
se pode desconsiderar que a experiência mostra estruturas me-
nos decididas, que são apresentadas neste livro. O leitor interes-
sado pela topologia verá em M. Darmon, em seus Essais sur la
topologie /acanienne, Paris, Association lacanienne
intemationale, 2004, p. 248-50, um tipo de formalização que
permite pensar o modo particular de presença de um falo que
não seria forcluído, mas que apareceria como contingente, que
em parte preencheria sua função, sem, entretanto, aparecer como
uma singularidade. B. Vanderrnersch propõe distinguir, ao me-
nos topologicamente, dois modos de incidência do falo, o falo
cuja presença ou ausência condicionam a neurose por um lado e
a psicose por outro; e o segundo que divide os sexos distinguin-
do os gozos. Mesmo se nossa modernidade atenuasse a diferen-
ça dos sexos, e mesmo se ela forcluísse (nesse sentido) o
significante fálico, contudo ela não torna todo sujeito psicótico.
rn Pode-se, sem dúvida, notar que o termo Spaltung foi utilizado
por Bleuler no sentido de uma dissociação ou de uma
deslocalização da vida psíquica. Ele o faz para falar inicialmen-
te da esquizofrenia, o que está bastante distante de nosso propó-
sito, mas ele também vislumbra a possibilidade de uma extensão
importante desse conceito.
O falo e os Jogos da sedução

Caro amigo,

Então, você diz que considera que minha úJ-


11 ma carta, apesar do exemplo final, ficou um tanto
difícil, um tanto abstrata. Talvez, pensará você, por
fnlta de não ter retomado de modo mais descritivo a
função do pai real ali onde ela não está carente e a
função do significante fá1ico a1i onde não há
forclusão, nem recusa.
O que você compreendeu, conforme me diz,
~ que se o pai simbólico representa o lugar que o pai
pode adotar na fa]a da mãe, então o pai real será
insubstituível, desde que se trate de transmitir outra
rnisa, esse famoso falo como símbolo do desejo se-
,mal.
A esse respeito, precisamente, você almeja que
l'U adote um ponto de vista mais descritivo. Disse-me
não esquecer que em certos textos de Lacan, que eu
mesmo lhe havia indicado, o pai real é simplesmente o
pai que existe na realidade, aquele que tem seu estilo,
suas exigências, seu lado violento ou indulgente. Em
suma, é o homem da mãe. Porém, de que maneira a
presença ou a atitude concreta desse homem irá pro-
duzir efeitos tão importantes?
Caro amigo, é verdade que eu hesito
freqüentemente em entrar em um terreno descritivo,
"psicológico". Seguidamente, sob o pretexto de dcs-
ncver o que se passa, esquece-se daquilo que consti-
tui a própria estrutura do que está em jogo, detendo-se
,·m detalhes contingentes. Mas tentemos.
136 Depressão. a neurose do contemporâneo

Quando a mãe manda para a cama seu rebenh 1,


ela pode fazê-lo por duas razões. Isso pode ser apena~
porque é bom que as crianças durmam em uma hora
conveniente, que elas tenham suas contingentes hora~
de sono. Quem poderia recriminá-la por ter preocupa
ções desse tipo? Isso é o que aparece com maim
freqüência, ao longo das noites, mais ou menos difí
ceis, que reservam as tarefas educativas.
Entretanto, parece-me útil que a lei que distan
eia a criança da saia de sua mãe não se reduza a essa~
considerações quase médicas. Se a querida criança pres-
sente que sua mãe tem necessidade de um momento de
intimidade e que será partilhado com um homem que a
deseja, o efeito de injunção será bem diferente. A cri-
ança terá alguma idéia, geralmente inconsciente, do que
pode valer como causa de um desejo que não se redu:.r.
à sua pessoinha, um desejo que se situa além da rela-
ção dual. O que nós chamamos de "falo", ou ainda
significante fálico é o que representa esse desejo "para
além" e é, não cesso de dizer-lhe, a forclusão ou ades-
valorização desse significante que será particularmen-
te patogênico.
Prevejo que você fará uma objeção. O que se
passa com as mães cujos acasos da vida levaram-nas a
viver sozinhas com sua prole? Elas podem introduzir
um terceiro abstrato, uma simples referência à lei. Mas
um homem que as deseja! Está claro que não podería-
mos lhes prescrever que se precipitem em qualquer
união, sob o único pretexto de que será útil para seu
filho.
Bem, mesmo nesse caso, parece-me que nem
todas as situações sejam equivalentes. A experiência
mostra 9ue certas mães que vivem sozinhas com seu
filho podem fazer crer que tudo isso é perfeito, porque
os homens não valem grande coisa. Outras, ao contrá-
rio, não renunciam, por exemplo, a uma certa "femini-
O ralo e os jogos da sedução 137

lidade". Eu o escrevo entre aspas porque, evidente-


mente, esse termo levanta questões, mas por que não
l'rttendê-lo aqui, precisamente, como a possibilidade,
para uma mulher, de se manter aberta à eventualidade
de um encontro? Essa feminilidade é o que toma pos-
sível o lugar de um homem, é o que permite que se
e x.erça, finalmente, a função do pai real.
Eu tomo, muitas precauções! No seminário
sobre As formações do inconsciente, Lacan tomava bem
menos cuidado, talvez porque lhe fosse preciso inter-
vir em um terreno que não era o seu, um terreno que
ele ainda não havia remodelado. Ele dava por certo -
eram as formulações da época-, que no édipo o sujei-
to pudesse assumir seu sexo, o tipo viril para o ho-
mem, "um certo tipo feminino para a mulher 1". Mas
vê-se nas páginas que seguem, que masculinidade e
feminilidade não são modos de ser que teriam uma
consistência natural nem às quais o sujeito deveria ne-
cessariamente chegar.
Um homem, diz em essência Lacan, certamen-
te pode retomar as insígnias do pai, ele pode, para se
fazer, se identificar com aquele. Mas "isso quer dizer
que, uma vez viril, um homem é sempre mais ou me-
nos sua própria metáfora". O que, acrescenta ele, só se
dá ao atribuir ao termo virilidade uma "sombra de ridí-
culo". Porém, as mulheres não precisam fazer essa iden-
tificação, pois sabem de que lado ir buscar o falo, do
lado do pai, do lado dos homens. Mais ainda do que
aos homens, talvez seja ao significante fálico que elas
se refiram. Isso não as impede, certamente, de alegar
alguma dimensão de alteridade, de exceção, no que
consistiria sua feminilidade. Mas, Lacan fala a esse res-
peito de uma dimensão de álibi2.
Terminarei minha carta em uma última refe-
rência ao seminário sobre As formações do inconsci-
ente. Ela talvez lhe permita apreender um pouco mais
138 Depressão. a neurose do contemporânec,

como o falo pode funcionar como símbolo, quer dizer.


não como real, nem como imagem, mas como essa pre-
sença bem particular que, ao mesmo tempo, está au-
sente, como a indicação de uma falta, que vale como
significante do desejo. Na verdade, trata-se de respon-
der a uma de suas questões, a que diz respeito ao fun-
cionamento "comum" do significante fálico.
Você salientará que é a uma mulher e precisa-
mente a uma histérica, que Lacan empresta um exem-
plo particularmente significativo daquilo que é preciso
sustentar. Trata-se, com efeito, de um exemplo que
Lacan toma emprestado de Freud, mais precisamente,
de seu livro sobre A interpretação dos sonhos3. Você
mesmo encontrará uma análise mais detalhada no ca-
pítulo XXI desse seminário4.
Trata-se de um sonho aparentemente inofensi-
vo, mas que segue um outro, sonhado pela mesma "do-
ente" e no qual Freud já havia indicado - por meio das
associações sobre um açougue que não está fechado e
em função das expressões imagéticas da língua vienense
popular - uma alusão ao órgão sexual masculino, que
poderia se perceber acaso o estabelecimento estivesse
aberto. Logo, ainda que "o órgão" seja evocado, ele
não é nomeado como tal. A dimensão fálica está ligada
à possibilidade de um jogo metafórico. Devido ao
recalcamento, em um sonho, por exemplo, o falo ge-
ralmente não intervém como imagem do pênis ereto,
mas sob a forma de um significante que substitui a ou-
tro, sendo este, por definição, inacessível. No máxi-
mo, o falo não é nada mais do que o próprio significante
da apreensão da linguagem no sujeito, uma vez que ela
organiza o desejo por meio dessas substituições5•
No sonho que nos interessa, o que pode ser
percebido encontra-se mais pelo lado da sonhadora.
Para seu marido que pergunta se não seria preciso afi-
nar o piano, a sonhadora responde que "não vale a
O falo e os jogos da sedução 139

pena". Ela acrescenta que é necessário, inicialmente,


cobri-lo. Ora, "não vale a pena" remete à proposição
que lhe foi feita na casa de uma amiga, quanto a tirar
seu casaco: "Não vale a pena, preciso ir logo", mas
isso também remete, em um segundo tempo, ao gesto
que ela tivera na véspera, em seu analista, colocando a
mão neste mesmo casaco onde um botão acabara de
desabotoar. O que Lacan comenta de maneira magis-
tral: "Por que não vale a pena? Bem entendido, porque
está fora de questão que se olhe atrás, porque, atrás,
certamente ç onde está o falo. De fato, não vale a pena
ir olhar. Es lohnt nicht, porque justamente ali ele não
será encontrado".
Você vê, caro amigo, de que maneira encon-
tram-se aqui decodificados, em um gesto que designa
tanto quanto esconde, todos os jogos do pudor e da
sedução, todos os jogos do desejo. Esses jogos, o que
os permite, é o lugar peculiar que adquire tanto para
uma mulher como para um homem, o significante fálico.
Significante que, talvez, não seja outra coisa do que
aquilo mesmo que permite levar a supor a presença do
que se demonstra a ausência-, eu insisto com isso que
presença e ausência, comumente, não devam ser situa-
das em correntes psíquicas separadas. Dir-lhe-ei, en-
tão, que é a possibilidade de jogar com a presença e a
ausência, que não é mobilizável nos sujeitos ditos
depressivos.
140 Depressão, a neurose do contemporâneo

notas
1 LACAN, J. Séminaire V. Les formations de l 'inconscient, l lJ:'i 7

58, Paris, Seuil, 1998, p.166.


2 LACAN J. Op. cit., p. 195. Lacan vai ao ponto de dizer ,1ur

nessa perspectiva "as verdadeiras mulheres, têm sempre algun111


coisa de perdida".
3 FREUD S. L 'interprétation des rêves, Paris, PUF, 1950.
4 LACAN, J. Op. cit., p. 374-80.
s Na nota 9, p. 133 faço referência a uma apresentação topológirn
lacaniana que faz do falo o ponto que vem fechar (pode-se di1.r1
compactar) um simbólico que de outra maneira seria instávd
Pode-se lembrar aos especialistas, que esse ponto está situ111J11
no cross-cap, no centro de um "aro", recortado por uma duph1
volta que atravessa duas vezes a linha de intersecção. O impu1
lante para nós é que, por essa operação, onde se inscreve a cons
tituição do objeto a, causa do desejo, Lacan atribui ao falo 11
propriedade mrebiana de colocar em continuidade, na linguu
gem, a face do significante e a do significado, quer dizer, linul
mente, permitir o jogo da metáfora.
O te~lro campo da clínica

Caro amigo,

Como você é irônico! Minha referência ao


espartilho da histérica lhe divertiu, mas você me per-
~unta, de maneira bem brincalhona, se a depressão
IK>de, verdadeiramente, se reduzir à dificuldade de cer-
t11s mulheres para se mostrarem coquetes. Entretanto,
você sabe que esse é apenas um dos aspectos que pode
tomar uma incapacidade de se engajar em qualquer
desejo. Você sabe também que nós teremos a oportu-
nidade de retomar a apresentação do que constitui uma
patologia anuladora.
Você sabe, caro amigo, por que eu lhe perdôo
todas as brincadeiras? Porque, algumas vezes, você
propõe questões de uma pertinência notável. Você apre-
ende bem, conforme o diz, no que o significante fálico
pode estar indisponível para o sujeito deprimido. Não
é, você compreende, no sentido de que ele estaria
recalcado, pois essa é a condição subjetiva comum. É
11ntes porque ele não pode servir de vetor inconsciente
de um desejo. Assim, você retoma a sua questão: se o
sujeito deprimido não pode, nesse sentido, ter acesso
110 uso do falo simbólico, não lhe restará o recurso de
iier o falo, retomando aqui a temática lacaniana do ser
t· do ter?
Além disso, você prossegue em termos sempre
rutegóricos: a demanda imperiosa do sujeito depressivo
dirigida ao Outro, não será demanda de ser amado?
<'ertamente, essa demanda é comumente dissimulada:
,·le geralmente afirma não merecer a menor atenção.
No entanto, essa é uma maneira de dizer que ele espe-
142 Depressão, a neurose do contemporâneo

ra que se o ame, apesar dessa indignidade. Não estara


nisso querer forçosamente ser o falo, de acordo co111
você?
Para mim, é difícil lhe dar aqui uma resposta
geral, em função da maneira como os "casos" diferem.
Entretanto, pode-se ligar sua questão àquela da carê11
eia paterna. Não seria adequado acreditar que a carê11
eia do pai, uma vez que não separa a criança de sua
mãe, deixe o filho necessariamente na posição de falo,
de objeto privilegiado para sua mãe. Numerosos sujei
tos depressivos experimentam, ao contrário, a sensa
ção de nunca terem servido para sustentar a mãe, ela
própria depressiva e, em uma palavra, impotente. <>
que acontece é que a criança não vale, nem mesmo por
um instante, como falo (antes de ser expulsa deste lu·
gar), se o falo paterno não tiver um sentido para a mãe.
Ora, isso nem sempre estará garantido, porque depen
derá principalmente da maneira como a mulher assu
me sua relação com os homens.
Assim, você vê que eu não creio que a deman-
da imperiosa de amor, em certos sujeitos depressivos,
testemunhe que eles ficaram em posição fálica; ao con-
trário, esta é particularmente frágil para eles, sendo o
que constitui seu tormento: eles não podem renunciar
a ser o que eles não estão garantidos de terem sido.
Digamos ser importante que algo tenha podido indicar
à criança que ela tinha algum valor fálico, ainda que a
castração leve a supor que disso ela estivesse
despossuída. Em caso contrário, o sentimento de de-
preciação é assaz invasor. Nós teremos que voltar a
falar dessa questão. Por hora, vou retomar à questão
que você colocava em uma de nossas últimas cartas.
De fato, você a especifica. O que você interrogava.
conforme me diz, era, especialmente, sobre o que pode
dar sentido às manifestações do discurso, a medida que
elas produzem efeitos subjetivos, ou seja, os efeitos
O tamro campo dadínlca 143

dínicos que tentamos descrever. Ora, se você aceitou


hazer esse pequeno desvio histórico por textos bem
1mtigos, se você ficou interessado pelo fato de que,
desde 1938, Lacan faz menção a um declínio das imagos
pulemas, então, você julga saber, tão-somente por nos-
sus discussões, que a mutação essencial, para ele, na
verdade diz respeito à emergência do discurso da ciên-
cia. Não seria hora de voltarmos ao que acontece nes-
se âmbito?
Novamente, meu caro amigo, você faz ape-
nas uma antecipação do que eujá pensava desenvol-
ver. Efetivamente, eu estava a ponto de retomar a
questão do discurso da ciência. Portanto, será ade-
quado mostrar-lhe que, mesmo nos textos que a acen-
tuam, a referência ao declínio da função paterna nun-
ca desaparece completamente, mas, de alguma ma-
neira, toma lugar nesta nova configuração. Então,
sigamos passo a passo.
Você sem dúvida se lembrará que em uma car-
lu recente eu fiz alusão ao "Discurso de Roma", quer
dizer, à conferência de 1953, que Lacan consagrara ao
que a partir de então se constituirá nas categorias fun-
damentais de sua teoria 1• Ora, nesse artigo, há uma
passagem bem interessante, na qual Lacan distingue os
diferentes domínios da clínica. Ele o faz em função da
relação com a fala e com a linguagem. Ele diz que são
lrês os paradoxos das relações da fala e da linguagem.
l>ar-lhe-ei uma idéia dos três campos que ele nos apre-
senta a partir disso, ainda que nos interessemos, sobre-
1udo, por apenas um. Com efeito, o próprio fato de
,1ue ele os apresente juntos, por assim dizer no mesmo
nível, é por si só apaixonante.
O primeiro nível, o primeiro campo da clínica,
~ aquele que Lacan chama de a loucura. Nesse campo,
u fala do sujeito desistiu de se fazer reconhecer, ou
ninda, o sujeito é falado mais do que fala. Assim, você
144 Depressão, a neurose do contemporâneo

compreenderá que nós encontramos as descrições clás


sicas da psicose. O sujeito psicótico ouve tão-somentl'
vozes. A fala que se mantém nele, e que freqüentemenll'
sai de sua boca, lhe chega diretamente do exterior de s1
mesmo, mas de um exterior que valeria a pena situar.
Digamos que é o Outro que fala nele, o que já indicava
suficientemente o termo "automatismo mental".
Além disso, quanto à linguagem, foi dito qul'
na psicose os símbolos do inconsciente estavam a céu
aberto. Lacan, por sua vez, insistia mais no fato de que
se trata de uma linguagem sem dialética. Os termos aí
estão fixos e o homem não pode fazer nada.
O segundo campo, ou seja, o segundo parado-
xo é o do sintoma, especialmente o sintoma neurótico.
Lacan nos diz que o sintoma "é o significante de um
significado recalcado da consciência do sujeito". Em
síntese, o que o sujeito não pode significar retoma sob
a forma de sintoma que, desde Freud, é discurso
críptico, uma maneira codificada de dizer o sofrimento
e o desejo.
Mais tarde, Lacan formulará as coisas diferen-
temente, mas isso pouco importa aqui. O importante é
que se um sintoma pode ser concebido como um
significante, este é sempre articulado a um conjunto de
significantes, que ele remete sempre a outros
significantes. E ele o remete de maneira metafórica. É
por oposição a isso que uma das grandes questões da
clínica contemporânea será: que lugar ela deixa à me-
táfora? Aliás, Lacan insiste aqui no fato de tratar-se de
uma "fala em plena atividade", uma vez que ela inclui
o outro. Nesse texto, bem antigo em sua obra, ele es-
creve "outro" com um "o" minúsculo, mas é do Outro
que se trata. Mesmo que eu fale sempre em função do
Outro, isto é, que eu module o que digo em função do
que ele pode ouvir, de fato, o sintoma, o sintoma histé-
rico, por exemplo, inclui a questão do Outro. Logo, é
O t:e.n:eiro campo da dínim 145

certamente bem diferente do que se passa com o sujei-


to psicótico. A histérica não é habitada por uma fala
que lhe chegaria diretamente do Outro. É sua própria
fala que interpela o Outro, de maneira, aliás, desviada
e alusiva. Assim, mesmo se ela depender do Outro,
como qualquer um, essa dependência não se dará sem
mediações.
Abordemos, pois, o que hoje será mais impor-
tante para nós: o terceiro campo que Lacan isolará a
partir da questão da relação da fala e da linguagem.
Trata-se, diz ele inicialmente, do sujeito que perde seu
sentido nas objetivações do discurso. Depois, ele se
explica rapidamente. É nisso que ele pensa, é a isso
que ele denomina de alienação mais profunda do sujei-
to da civilização científica.
Você imagina o que um texto como esse pode
ter de desconcertante para um psicanalista? Ele coloca
em um mesmo plano, por um lado, alguma coisa que
tomamos habitualmente por um fenômeno de socieda-
de, a situação do sujeito em um mundo marcado pelo
progresso da ciência e, por outro lado, as categorias
especialmente analíticas que são a neurose e a psicose.
Teria, então, de ser inventada uma nova categoria clí-
nica? Qual seria ela? Estaríamos afetados pelo discur-
so da ciência, assim como se pode estar por uma fo-
bia? Tratar-se-ia de descrever patologias do indivíduo,
que estariam diretamente determinadas por fenômenos
sociais, a ponto de colocar-se em questão, não apenas
a causalidade edipiana, mas também o efeito dos
determinismos inconscientes sobre o sujeito? Ou, tra-
tar-se-ia, afinal, de descrever uma patologia social cuja
relação com a patologia neurótica ou psicótica será
apenas analógica?
Não escondo de você, caro amigo, que inúme-
ros de meus colegas não gostam muito do termo "clí-
nica social". Eles pensam que o analista, como anal is-
146 Depressão, a neurose do contemporâneo

ta, só pode se ocupar do indivíduo. Por exemplo, st·


gundo eles, o que deve nos interessar não são os mau
<lamentos que as religiões ou as morais laicas continu
ama veicular, tampouco as palavras de ordem repeti
das pela mídia. São os imperativos superegóicos que o
tratamento revela em tais sujeitos, é o sentimento in
consciente de culpa que tem sempre algo de singular.
Estou de acordo com tudo isso, de certa ma·
neira. As determinações sociais podem apenas agir so
bre o sujeito se elas estiverem ligadas por alguma ins·
crição que se fará "nele". Retomando o exemplo, uma
lei moral só poderá ter uma incidência subjetiva se ela
se articular com algum significante singular, que será
essencial ao sujeito em particular. E, se eu dou tanta
importância à idéia de uma "forclusão do falo", que
tanto discutimos, é porque ela me parece poder relaci-
onar o efeito de certos discursos sociais ao plano da
subjetividade de um indivíduo singular. Entretanto, uma
vez tomada essa precaução, não vejo como se poderia
negar o efeito subjetivo do que se passa no social, o
efeito, precisamente, desses "discursos" que ligam in-
divíduos e mídia, desses discursos que outros chama-
rão de ideologias. Então, qual é a patologia do sujeito
moderno, enquanto sujeito tomado por certo tipo de
discurso da ciência?
Em geral, retemos que a relação com a ciência,
ou com a objetivação científica, leva o indivíduo a es-
quecer sua subjetividade. Em todo o caso, essa é a tese
desenvolvida por Lacan no artigo do qual lhe falo. Para
ele, não se trata de negar o valor da ciência. "A comu-
nicação, escreve Lacan, pode se estabelecer para ele
(o sujeito), de maneira eficaz, na obra comum da ciên-
cia e nos empregos que ela determina na civilização
universal." Mas é, acrescenta ele, uma "falsa comuni-
cação". Quando o sujeito colabora com a obra comum
em seu trabalho cqtidiano, quando paralelamente ele
O ten:eJro campo da dínlc:a 147

~quipa seu lazer com todos os equipamentos de uma


rultura profusa, ele encontra matéria para esquecer
"sua existência e sua morte, ao mesmo tempo em
que desconhece, em uma falsa comunicação, o sen-
tido particular de sua vida". Lacan acrescenta, aliás,
outra coisa, que só pode nos interessar. "É o que faz,
diz ele, nossa notável responsabilidade quando nós
lhe trazemos, com as manipulações míticas de nossa
doutrina, uma oportunidade suplementar de se alie-
nar na trindade decomposta do ego, do superego e
do id, por exemplo."
Você vê o que está em jogo. As ciências pro-
põem ao sujeito enunciados e conceitos presumíveis
de darem conta de seu ser. Assim fazendo, e qualquer
que seja sua pertinência, elas sem dúvida lhe tomam
mais difícil uma fala, uma enunciação pela qual ele
poderia subjetivar, a seu modo, o sentido de sua exis-
tência. Certamente, não está em questão privar-se de
certos conceitos operatórios, como os que Lacan
exemplifica (eu, supereu e isso). Mas é preciso mensurar
as conseqüências do discurso no qual nos inserimos
particularmente. Como o sujeito poderia realmente in-
vestir em um desejo ou em um projeto aí onde as ciên-
cias, e eventualmente, a própria psicanálise pretendem
possuir, por antecipação, o saber no qual esse sujeito
será encerrado até mesmo naquilo que ele tenha de mais
singular?

I,ota
1 LACAN, J. "Fonction et champ de laparole et du langage em

psychanalyse", Écrits. Paris, Seuil, 1966.


Um rei sem reino

Caro amigo,

Sua objeção era previsível. Poder-se-ia dizer que


o mundo contemporâneo exclui a subjetividade, uma
vez que os teóricos do mundo pós-moderno (ora, você
retoma essa expressão?) não cessam de descrever os
progressos de um individualismo que invade toda a
esfera social? Efetivamente, não existem mais valores
coletivos para orientar as existências individuais. A ci-
ência, que atualmente constitui uma referência forte,
não parece verdadeiramente produzi-la. Como o sujei-
to escaparia ao que constitui seu egoísmo?
O que me deterá, caro amigo, é esse termo
"egotismo" que você emprega. Você sabe, ele não é de
uso muito corrente. Proponho-lhe ver aí um tipo de
lapso, o equivalente a uma dessas asperezas da fala
que mobilizam nossa atenção como analista. Não te-
nha receio: eu não lhe proponho um tratamento. Mas,
com freqüência, é esse tipo de acidente do discurso
que pode indicar, pelo menos, uma direção da respos-
ta. É verdade que nossa civilização parece apelar para
que cada um coloque prioritariamente as pretensões
de seu eu, de seu "ego"'. Mas isso representa, sem
dúvida, uma tentativa imaginária e vã de compensar o
que, ao contrário, constitui um apagamento de toda a
verdadeira singularidade do sujeito, se pelo menos eu
tivesse lhe ensinado a distinguir o sujeito do eu.
Você gostaria de uma ilustração simples, quase
trivial? Dar-lhe-ei uma. Para introduzi-la, convém pro-
150 Depressão, a neurose do contempor.i111r,u

longar um pouco a apresentação da noção de discu,,11


da ciência.
Talvez você se lembre da maneira como 1111,
havíamos introduzido esse tema quando de nossas d1,
cussões (o qual eu havia reprisado, neste ano, em cml 11
recente). Havia lhe mostrado como Lacan descrcw,
na obra de Descartes, um momento decisivo para a
modernidade, quando o homem cessa de se reconlw
cerno mundo, quando renuncia a imaginar os fins di v1
nos, quando abandona suas pretensões à verdade e Sl'
dobra a um saber racional, dedutível, composto prn
encadeamentos e combinações de enunciados. Nesse
registro, o que está excluído, talvez forcluido, é a di
mensão da enunciação, ou seja, a implicação de um
sujeito nos enunciados por ele formulados. No âmbito
da lei científica parece que em nada se tem necessidade
de um sujeito. Ela aparentemente se impõe por si mes-
ma, sem que nada possa redizê-la. Antes de retomannos
às conseqüências diretas que isso possa ter, eu gosta-
ria de ampliar essa noção de discurso da ciência.
Você já apreendeu que por discurso da ciência
não é preciso entender necessariamente o real trabalho
da pesquisa científica. A ciência, enquanto pesquisa,
evidentemente não exclui a enunciação, quer dizer o
movimento pelo qual se transita da dúvida para a afir-
mação, com todo o risco que comporta. Por "discurso
da ciência", em contrapartida, se poderá remeter de
saída a um conjunto de enunciados considerados como
certos, funcionais, utilizáveis. E enunciados utilizáveis
pela ciência aplicada, pela a indústria, pelos vendedo-
res e os empresários. No fundo, o discurso da ciência
já é um pouco o discurso do capitalista. É aí que eu
retomo às observações triviais que eu lhe anunciava.
O que você quer? Ora, às vezes é preciso ser trivial,
afim de não deixar passar fenômenos cuja banalidade
poderia tomá-los despercebidos.
Umn!ilsemnmo 151

Veja então, o capitalismo produz, por meio das


técnicas científicas, os objetos estandardizados,
normatizados, que poderão se impor ao gosto da mai-
oria, sendo vendidos em quantidades consideráveis para
~arantir um conseqüente proveito. Isso nitidamente
exclui, de saída, toda referência à individualidade do
consumidor. Entretanto, este é solicitado a aderir de
maneira pessoal às escolhas que lhe são propostas. A
roupa X, diz-lhe a publicidade, essa é bem você. As-
sim, ele é levado a acreditar, a aderir subjetivamente à
difusão de obj~tos que não lhe servem para nada. Con-
cebe-se que essa adesão engaja tão-somente o seu eu,
quer dizer, aquela instância na qual ele se representa
imaginariamente e isso da maneira mais superficial.
Recentemente, uma jovem me foi encaminhada
por uma amiga psiquiatra que se preocupa muito com
ela e a quem relaciona um "ahedonismo" (ausência de
qualquer busca de prazer), no qual ela vê o signo de
profunda depressão, talvez de natureza psicótica. Re-
cebendo esta mulher, eu a encontrei em menos dificul-
dades do que vários de meus analisantes. Mas é verda-
de que as entrevistas que tivemos levaram-me a algu-
mas reflexões.
Essa jovem, no fundo, se entedia. Ela seguiu
alguns estudos que a levaram a atividades de relações
públicas, nas quais não se saiu nada mal, mas sem ja-
mais ter se sentido implicada. Além disso, teve alguns
amantes que não se demoravam, com exceção de um
único entre eles, egoísta, diria eu - como um bom
egotista (creio que posso brincar um pouco com você!)
- e, sobretudo, ela testemunha, a sua maneira, que, em
um mundo onde todo o objeto é concebido como objeto
de consumo, nada pode adquirir um valor verdadeira-
mente concernente ao sujeito, em outras palavras, que
articularia um desejo passível de se repetir, variar,
eventualmente se aprofundar.
182 Depressão, a neurose do contemporâneo

Por isso, a interrogamos, teria ela alguma prc


ferência que lhe tocaria no coração? Ela pratica um
pouco de esporte, mas é mais por um tipo de confor-
mismo com seu meio. Tampouco lê, logo, não acedl'
a um imaginário que poderia se prolongar e se reno-
var. Certamente, ela vai ao cinema. Mas esse último
ponto, precisamente, é significativo, pois, atualmente,
quem não vai ao cinema? Entretanto, é preciso saber
de que cinema falamos, já que não mais estamos na
época em que os jovens, através de cineclubes e
cinematecas, encontravam a oportunidade de formar
seu gosto, de enraizá-lo em um solo cultural, de fa-
zer com que um filme remetesse a outros do mesmo
autor, ou da mesma corrente. Ao contrário, os filmes
que nós vemos hoje, aqueles que se substituem em
um ritmo regular nos grandes circuitos de distribui-
ção são, no fundo, objetos de consumo semelhantes
a todos os outros. Eles podem dar ao que chamamos
de um "eu" a oportunidade de formular, de maneira
freqüentemente sumária, alguma opinião, mas eles
não introduzem o sujeito em um trajeto que lhe
concerniria duradouramente.
Caro amigo, eu prevejo aqui suas objeções.
Você já irá dizer que exagero, com o que eu concor-
do; contudo, é preciso descrever as tendências que
vemos se desenhar em nosso mundo. Você também
vai me tratar como um saudosista, o que equivaleria
a dizer que, uma vez mais, eu desqualifico o presen-
te em nome de um tempo passado, porém não é isso
que está em questão. Então o quê? É aqui que eu
prevejo a sua última objeção feita a partir da própria
psicanálise. Você é hábil, sei bem disso, em aplicar o
que lhe digo às questões delicadas que reserva para
mim.
Então, você perguntará se o analista, verda-
deiramente, tem que se ocupar dessas contingências
Um re.l sem remo 183

du vida cotidiana, do consumo, da publicidade? Certa-


mente, o indivíduo moderno está confrontado com isso.
No entanto, se reduzirá ele a apenas isso? Não teria ele
tumbém seus amores, suas paixões, seus desejos
irredutíveis a essa esfera desnaturada que eu descre-
vo? Em suma, não estaria eu em vias de desertar do
terreno específico da análise, aquele que nos permite
11preender nossos detemúnismos inconscientes, para me
,Iler à descrição do mais superficial?
Aqui é preciso lembrar, caro amigo, que a
oposição do '!profundo" ao "superficial" não é mui-
ln pertinente em psicanálise. O que nos determina
Inconscientemente não está escondido em nenhuma
mterioridade. Seria, também, o mais visível, se pelo
menos nós pudéssemos dirigir-lhe nosso olhar. E tal-
vez mesmo, é freqüentemente o mais visível, logo o
muis evidente, o mais negligenciado pelo teórico, que
é o mais esclarecedor. Ora, o que é que, em nossos
,lias, dispõe de maior visibilidade? Evidentemente,
é u mercadoria e a forma de sua distribuição, o im-
pacto de sua publicidade. Ela nos habitua, quer sai-
humos ou não, a uma relação com o objeto que não o
1oiitua no longíquo; mas no mais próximo, no mais
disponível, não na espera, mas na oferta que precede
11 toda demanda; não no obstáculo formador, mas na
fucilitação permanente. Assim, ela solicita o eu, em
11mu relação com o imediatismo, mais do que o sujei-
lo em sua relação com a historicidade de um desejo.
H11se tipo de fenômeno age tanto de maneira direta
,1uanto indireta, porque os próprios educadores são
lnmados nas redes da linguagem de nossa
modernidade capitalista.
Caro amigo, eu reconheço que, hoje, eu tal-
vez tenha me demorado em excesso nesses fenôme-
nos bem visíveis de nossa sociedade contemporânea.
e 'nntudo, se eu o lamento um pouco, é porque, as-
154 Depressão, a neurose do contemporâneu

sim fazendo, negligenciei uma abordagem um ta11111


diferente que, aliás, podemos igualmente encontrar l'III
Lacan. Ainda assim, vou retomá-la rapidamente, p111
que ela converge com a idéia de um tipo de reforço d,,
"eu" em nosso mundo.
Lacan em seu artigo "Função e campo da fala ,.
da linguagem em psicanálise", afirma que o sujeito ah
dica de sua subjetividade em um mundo comandado
pelo discurso da ciência, mas, ele diz ao mesmo tem
po, que o sujeito encontra, em uma regressão, a mura
lha onde seu eu contém suas expectativas imagináriall 1.
Você vê do que se trata. Onde o sujeito n.io
pode verdadeiramente sustentar uma enunciação qm·
lhe confrontaria com seus contemporâneos, ele se rc
fugiará em seus devaneios, no mundo que lhe é prú
prio. Porém, isso não significa que ele não guarde ai
guma saudade do exterior que ele deserta. Mas, esse o
acompanha, doravante, à maneira de um alhures ima
ginário, como uma utopia. Nesse mundo imagimíriu
reina o eu ("sua majestade o eu", dizia Freud), contu
do, é um rei sem reino.
Permita-me uma última coisa, já que não estou
certo de poder retomar, em minhas próximas cartas. 11
questão dos efeitos patogênicos do discurso da ciên
eia. Acabo de empregar o termo "utopia". Eu poderii1
igualmente ter falado de impotência, pois é a um senti·
mento de impotência que conduz o descrédito que atin·
ge toda a enunciação verdadeira. Assim, nós encontra
mos, por um novo viés, o que nós já havíamos encon·
trado, relativo ao declínio da função do pai. É preciso
surpreendermo-nos com esta convergência? Não creio.
Com efeito, a questão do que é um pai, sem dúvida,
remete à da existência de ao-menos-um que possa to
mar a fala, arriscar uma verdadeira enunciação. Isso é
que, aparentemente, se torna cada vez mais raro
atualmente e que compõe toda a patologia de nossa
Um ni sem reino 155

modernidade. A propósito, poderíamos imaginar como


sair disso? Lacan imaginou atribuir à psicanálise a difí-
cil tarefa de reintroduzir "na consideração científica o
Nome-do-Pai3". Esse projeto é sustentável? A questão
continua levantada.

1"otaa
1 Lembremos aqui, de uma vez por todas, que nós podemos dis-
tinguir com Lacan entre, por um lado, o sujeito, quer dizer, o
indivíduo dependente da linguagem e, por outro, o eu (ego em
latim) que constitui a representação que o sujeito pode ter de si
mesmo. Essa representação é imaginária e com duplo sentido,
Inicialmente, porque ela se forma como uma imagem, o que ilus-
tra a teoria do estádio do espelho, segundo a qual o eu se forma
no momento em que a criança, entre 6 e 18 meses, pode se reco-
nhecer no espelho. A seguir, porque ela constitui uma falsa uni-
ficação e sempre guarda uma dimensão ilusória.
1 Ele lembra, aliás, que o "esse sou eu (ce-suisje)" do tempo de

Villon se transformou em "sou eu (e 'est moi)" do homem mo-


derno.
'LACAN, J. "La science et la vérité". Em Écrits, Paris, Seuil,
1966, p. 875.
Uma patologia narcíslca1

Caro amigo,

Minha última carta suscitou uma série de ques-


tões para você. Vou tentar retomá-las, mas, certamen-
te, não poderei tratá-las de uma só vez. Isso constitui-
rá para nos um verdadeiro programa de trabalho!
Você salienta que, pela primeira vez, eu remeto
à questão da depressão alguma coisa que seria uma
impotência do eu. Mas você se pergunta se não teria
sido mais simples, me referir a analistas que, para tra-
tar da depressão, a vincularam a uma nova patologia,
designável e descritível diretamente como a "patologia
narcísica". Você pensa saber que esse tipo de análise se
encontra em numerosos autores anglo-saxões, mas que
tal corrente, na França, está bem representada por um
analista chamado Jean Bergeret 1• Não haveria, preci-
samente, por parte desses analistas, uma real atenção à
impotência que podemos encontrar nos sujeitos
depressivos? Eles a explicam a partir de certa fragili-
dade do eu, incapaz de encarar suas tarefas e incapaz,
afortiori de se implicar verdadeiramente em uma rela-
ção afetiva ou uma relação de desejo.
Eu não sabia, caro amigo, que você conhecia
tudo isso, e devo dizer que estou surpreso que você
me fale disso, assim, um tanto à queima-roupa. Em
todo o caso, é essa primeira questão que eu vou abor-
dar hoje. Deixarei de lado, por um momento, o que lhe
vem um pouco por associação: uma questão que
concerne ao ponto de vista de Alain Ehrenberg 2 e que
remeteria a depressão a uma perturbação da relação
do sujeito com o Ideal do eu.
158 Depressão. a neurose do contemporâneo

Comecemos então pela questão do narcisismo


Parece-me que seja para dar conta de uma clínica, SL'
melhante àquela que eu não deixo de referir, que um
certo número de analistas falou da patologia narcísica.
Como você o diz, freqüentemente, são os anglo-saxõe!'..
Entretanto, uma vez que você se refere particularmen
te a Jean Bergeret, eu quero tentar examinar alguns
elementos que aparecem em A patologia narcísica.
Há uma coisa que é interessante em Bergeret:
ele nunca dissimula que todas as suas construções vêm
de dificuldades em relação a sua prática. Dificuldades
que ele situa, explicitamente, como sendo as mesmas
da prática cotidiana de nossa época.
O primeiro capítulo, por razões que aparece-
rão bem rápido, é consagrado a Édipo e a Narciso,
mas já nesse capítulo há a apresentação de um caso.
e esse caso introduz ao segundo capítulo, fundamen-
tal, sobre a transferência narcísica. O que é a transfe-
rência narcísica, para Bergeret e no que ela coloca
questões particulares? Para ele, na transferência
narcísica, os pacientes buscam, sobretudo, a possi-
bilidade de se apoiarem em seu analista, em espelho.
"buscando no espelho uma imagem asseguradora e
valorizada de si mesmos".
Tudo isso parece bastante banal. O que Lacan
mostrou, por exemplo, no Seminário J3 é que, pelo
menos por um lado, o tratamento pode ser descrito a
partir de um mecanismo especular, onde o sujeito bus-
ca se referenciar em sua própria imagem que ele acre-
dita ver no espelho analítico, cabendo ao analista des-
locar esse espelho e desfazer as identificações narcísicas.
Penso, contudo, que a esse respeito podemos
dar crédito a Bergeret: o que ele tenta dizer não é
redutível a essa dimensão comum da transferência.
Aquilo que o questiona, todos os analistas encontra-
ram em suas clínicas. São esses casos nos quais o su-
159

jeito está em uma total dependência da relação analíti-


ca. Estando sua vida afetiva e social pobre e /
desinvestida, há nele, de maneira inversamente propor- (
cional, uma enorme avidez em relação ao analista. Ele í
parece vir às sessões não tanto para falar quanto para
encontrar um refúgio. Faz-se de surdo para os
significantes que o analista tenta destacar, porque o
que ele busca é da ordem do todo.
Bergeret também testemunha, a respeito des-
ses pacieµtes, uma fragilidade particular e a impos-
sibilidade de elaborar um verdadeiro desejo. Eles po-
dem amar essa imagem idealizada que o analista
constitui. Eles também podem ser eventualmente
agressivos. Mas, se por um lado eles têm necessida-
de dessa sustentação, por outro, isso não lhes serve
cm nada para construir uma relação de amor e de
desejo fora do tratamento.
Como é que Bergeret compreende o que se
passa aqui? É bem simples. Para ele, a transferência
constitui habitualmente uma atualização da problemá-
tica edipiana que permite aceder ao desejo inconscien-
te. Em contrapartida, ele pensa que não é isso que está
em jogo na transferência do sujeito deprimido.
Atualmente, nos diz ele, "nossa prática cotidiana, com
maior freqüência, não nos deixa frente a conflitos inte-
riores à situação edipiana, mas frente às carências ou
complicações do registro relacional narcísico". Para ele,
as questões se colocam em termos de desenvolvimen-
to. Há um tempo no qual a libido está normalmente
investida no eu, ou seja, na imagem narcísica. Isso cons-
titui uma etapa necessária, mas que pode, assim como
a etapa edípica, ser o lugar de carências ou de compli-
cações. Um sujeito pode não ter podido instalar uma
identificação narcísica satisfatória que lhe permitiria,
em um segundo tempo, introduzir-se na problemática
edipiana e nas relações de amor genital e de desejo.
160 Depressão, a neurose do contempordHN

Por isso, ele entrará em uma transferência de onh·111


mais narcísica do que objetal.
Evidentemente, no espaço de uma única c;11t11
eu não poderei entrar em muitos detalhes. No entan111.
vou destacar mais quatro idéias no que diz Bergen·!
Ao se referir a Abraham, de saída ele sublinha que ,h•
alguma forma há uma oposição entre narcisismo e s,·
xualidade. Eu penso que todo analista teve a oportu111
dade de receber pacientes, sobretudo, pacientes dep, 1
midos que parecem não ter nenhum acesso à possihi 11
dade de introduzir algo no plano da sexualidade. Mm,
Bergeret mostra, a partir de alguns recortes clínicos,
que mesmo quando, aparentemente, alguma coisa s,·
instala nesse plano, é com rapidez totalmentt·
desinvestida.
A seguir, para dar conta do que aqui está per
turbado, Bergeret afirma que o que faz falta, para es
ses sujeitos, é "a posse de um falo indispensável il
completude narcísica natural permitindo o acesso m1
édipo (e a seus próprios conflitos)".
Terceiro ponto: o que ele diz tem implicações
técnicas, porque ele pensa que, além do mais, não é
preciso, em casos desse tipo, se precipitar em dar in ·
terpretações edípicas, pois elas não poderiam, pelo
menos em um primeiro momento, ser entendidas. Logo.
isso só aumentaria o risco de engajamento em uma
análise interminável.
Quarto ponto: ele parece recomendar, então, a
intervenção no que tange à interpretação das pulsões
parciais - oralidade, olhar devorador - e fornece al-
guns exemplos que parecem com freqüência bem ins-
trutivos.
O analista lacaniano certamente poderia sorrir
com todas essas explicações. Para muitas questões nós
consideramos ter uma resposta bem pronta. E. para
dizer a verdade, ficamos mesmo tentados a recusar de
lllna patologia naráska? 161

Imediato toda a problemática. Seria isso, porque nós


111\0 sustentamos o tratamento na análise de édipo? Não
r por darmos uma real importância à função paterna
1111c explicamos tudo por roteiros descompostos do te-
1ttro edipiano. Dizer ao sujeito que ele amou muito sua
mãe e temeu muito a seu pai não lhe resolve grande
rnisa. Além disso, não acreditamos nessa apresenta-
\'ilo diacrônica das questões.
Lacan sustentou a que ponto a relação do sujeito
,om sua própria imagem está intrincada no movimento
de desejo que lhe conduz em direção a um outro sujeito;
u que ponto, ao mesmo tempo, ele depende do Outro a
4uem ele sempre chama e que se situa além do parceiro
real. Ora, isto está bem confirmado pela análise dos
11ujeitos depressivos. Não é raro que possamos perceber,
de maneira bem clara, a que ponto o deprimido se vota
u um Outro, frente ao qual ele faz a demonstração de
seu desamparo. Essa é, sem dúvida, uma outra forma
de narcisismo no qual é preciso, de alguma maneira
que o Outro lhe remeta a imagem da vítima perfeita.
Mas essa forma não tem nada de incompatível com os
destinos de uma história edipiana.
Entretanto, ainda há outra coisa à qual lamen-
tamos que Bergeret não tenha chegado, sobretudo,
na medida em que ele é sensível à questão dos
"objetos parciais". Diz respeito a uma apreensão do
que recobre a imagem do sujeito, como a imagem do
outro, a saber, o objeto a. Ora, se ele tivesse tomado
as coisas por aí, suas descrições da posição depressiva
poderiam, sem dúvida, ter sido pensadas de maneira
diferente.
Quanto ao objeto a, certamente lhe falei dele
em nossas discussões4. Você sabe, presentemente, do
que se trata. Lacan retomou os objetos parciais de
Freud, aqueles aos quais o sujeito deve renunciar, o
seio e as fezes, e acrescentou o olhar e a voz, e Lacan
162 Depressão, a neurose do contempor.111...

mostrou como esses objetos que ele chama l'IIIR11


objetos a, valem como causa do desejo.
Não vou retomar aqui toda essa elabora\·1111
Lembrar-lhe-ei apenas que é a função fálica que d1l 11
esses objetos um valor bem particular. Com efeito, 1·111
permite apagar o pênis, subtraí-lo da imagem gloh11I
do corpo, onde sua presença seria inconveniente; l' 1·111
também permite evitar que a criança seja reduzida 1111
estatuto de falo materno. Assim, ela instala, no c11111
ção da problemática do sujeito, uma falta irredutíwl.1•
esses objetos parciais - que são os objetos a - vaknh 1
tão-somente como causas do desejo, porque virão 1111
lugar dessa falta e porque eles conservarão, desde jll,
essa dimensão da falta. Ora, se nós dissermos que 11"
coisas não se dão da mesma maneira para o sujeito
depressivo, isso poderá nos fazer retornar, novamcntt•,
àquilo que distingue esse sujeito do neurótico comum.
por exemplo, do sujeito histérico. Eu lhe proponho
reservar essa questão para a próxima vez.

1 BERGERET, J. IA pathologie narcissique Paris, Dunod, 199(1.


2EHRENBERG, A. IA fatigue d'être soi. Paris, Odile Jacoh,
1998.
3 LACAN, J. Séminaire /, Les écrits techniques de Freud, 1953-

54, Paris, Seuil, 1975.


4 CHEMAMA, R. Clivage et modernité, Toulouse, Éres, 2003.
O falo, o objeto a, o real

Caro amigo,

Eu pensava retomar do ponto em que havía-


mos ficado, aquele que diz respeito à distinção entre
m·urose e depressão. Você me pede, entretanto, para
v1 ,ltar à questão da transferência do sujeito depressivo.
Acontece que no fundo alguma coisa lhe interessou
1111quilo que Bergeret escreve, mesmo que, pelo menos
,·m parte, eu não tenha me dado conta disso. Você pen-
,111 reconhecer aí um traço que transparecia em uma de
,mas amigas, que lhe parece se colocar em urna depen-
dência total de seu analista - ou de seus sucessivos
nnalistas, porque ela se dá conta que urna ligação tão
forte toma-se insuportável a curto ou a longo prazo.
Será que eu retomo, pelo menos, essa descrição? O
,1ue eu poderia dizer?
Evidentemente não está em questão negar essa
particularidade e eu diria até mais. Se o sujeito depri-
mido se colocar na posição de erigir a imagem de um
analista que poderia tudo para ele, sem o qual ele não
seria nada, isso confirmará bem o que eu disse sobre as
vicissitudes da simbolização.
De que simbolização estou falando? Da
simbolização do Nome-do-Pai. Eu lhe dissera que este
não estava forcluído. Mas, talvez, possamos apresen-
tar as coisas diferentemente. Com efeito, é preciso di-
1.er que para cada um, o Nome-do-Pai constitui sim-
plesmente o ponto de capitonê, enoda o que está fun-
damentalmente esburacado pelo fato de que na lingua-
gem nada garante do ser do sujeito. Bem, se há urna
fragilidade no funcionamento desse símbolo, fragilida-
164 Depressão, a neurose do contemporâneo

de ligada a certa carência do pai real, pode-se com:l'


ber que o sujeito tenha ainda mais necessidade de uma
instância que ele idealize sob os traços, por exemplo,
do analista.
Considera-se freqüentemente que aquilo qu,·
pode afundar um sujeito na depressão seja o fato d1·
que seu meio não lhe remeta mais uma imagem valori
zada de si. Com efeito, isso pode se dar dessa maneira.
Ainda é preciso salientar que tal dependência remete ú
fragilidade da referência simbólica. Se o sujeito esti
vesse mais seguro de sua posição (em sua linhagem,
no casal, em suas atribuições) por que ele seria tão
sensível a esse gênero de flutuações? Além disso, r
preciso ir mais longe. De fato, os destinos da
simbolização explicam também que o sujeito busqm·
no Outro aquele que dará provas de seu próprio de
samparo. Portanto, se no Outro ele não puder encon
trar os significantes que o garantam a respeito da legi ·
timidade de sua própria posição, não lhe restará mais,
para estar seguro de seu ser, senão acreditar que estl'
se define como ser de dejeto. Então, para comprccn·
dermos alguma coisa disso, nós deveremos retomar à
questão do objeto a, assim como à distinção entre ncu
rose e depressão.
A neurose: uma mulher histérica pode parecei
recusar a se colocar no jogo do desejo. Mas em seu
endereçamento ao outro, e inicialmente ao analista,
compreende-se, na maioria das vezes, que essa rejei
ção vela precariamente uma posição diferente. Com
efeito, essa mulher representará, mesmo que ninguém
o perceba claramente, o brilho do objeto que seu par
ceiro busca; contudo, se na realidade ela não tem na
morado nem companheiro, isso em nada a impede d,·
espelhar o objeto que qualquer homem anônimo podl'
ria desejar. Assim, ela vale como objeto a, mas, d,·
maneira inconsciente. Há, em contrapartida, persona
O falo. o objeto a. o real 165

!idades depressivas nas quais as coisas se apresentam


diferentemente, porque a função fálica está de alguma
forma enfraquecida.
Você se lembra do que eu lhe havia dito em
uma de minhas últimas cartas: que, mais
freqüentemente, o sujeito depressivo não pode passar
por essa dupla operação que o colocaria, inicialmente
cm posição de ser o falo para, a seguir, renunciá-lo,
além disso, desde já, ele não pode aceder ao desejo
que essa renúncia comumente permite. Poder-se-ia,
talvez, apresentar as coisas de uma maneira um tanto
diferente. Pode-se, com efeito, considerar que a sua
maneira tal sujeito encarne o falo, no sentido em que
se trata, na depressão, de um falo puramente negativo.
Comumente o falo comemora uma perda, a da castra-
ção, mas, ao mesmo tempo ele abre a possibilidade de
que o desejo se dirija aos objetos marcados pela di-
mensão da falta, por isso mesmo dotados, paradoxal-
mente, de certo brilho. Poder-se-ia dizer, por outro lado,
que o sujeito depressivo se mantém na perda inicial,
sendo nesse sentido uma perda total que não comporta
nenhuma promessa de reconciliação 1.
Aliás, pode-se ilustrá-la com termos bem sim-
ples. Uma mulher depressiva, por exemplo, insistirá
na maneira como ela deixou para as outras mulheres
a posse dos meios comuns da sedução, os adornos
que valem como fetiches, significantes f alicizados
do desejo. Mas ela poderá, por ocasião de um sonho,
experimentar que está na posição de ser o falo, um
falo fixo, uma estátua de falo antes obstruidora, que
entrava sua relação com o outro, quanto menos ela
sirva de médium.
Penso que também é nessa perspectiva que seja
preciso compreender o que Charles Melman falou a
respeito da depressão, uma "presença negativa", ou
mesmo de uma "ereção negativa". Ele diz que "é o que
166 Depressão. a neurose do contemporânNt

dá uma grande força à depressão neurótica, e em par


ticular, certamente, em sua virtude de apelo, de dl·
manda, e mesmo em seu poder imperioso [... ]2 ". Cada
um, efetivamente, pode experimentar a que ponto a
cara fechada e a posição rígida do sujeito deprimido
parecem ordenar que seja feita alguma coisa para a ti rí'i
lo desse mal-estar.
Charles Melman vai bem longe no que o fa1
aproximar o normal e o patológico. Para ele, é para
cada um que a perda original, ou seja, a de um objeto
que preencheria todos os votos é vivida como um luto.
É que, diz ele, o sujeito toma para si a falta desta perda
do objeto e poderá até mesmo se acusar de seu assas·
sinato.
Entretanto, não estou certo de segui-lo nesse
ponto. Essa posição de auto-acusação me parece mais
verdadeira na melancolia que é uma patologia psicótica,
do que na normalidade ou na depressão. Se o sujeito
depressivo se queixa de sua incapacidade radical. o
melancólico se acusa de ser a fonte de todo o mal. Por
isso ele tentará se destruir, em uma compulsão suicida
da qual se conhece a sinistra eficácia.
É a esse respeito que convém chegar ao objeto
a. Se eu disser que na depressão a função fálica está
enfraquecida, direi, ao mesmo tempo, que ela não per-
mite ao objeto ser verdadeiramente destacado, faltante,
inscritível apenas no quadro do fantasma 3 • Por isso ele
é tão invasivo no real da depressão, quer o sujeito se
perceba - desculpe-me - como um merda, quer sinta
sobre si, sem cessar, o olhar do Outro e dos outros.
Por que você acha que nos momentos de depressão
particularmente intensa o sujeito não pode mais sair de
casa? Já quanto ao sujeito melancólico, é outra coisa.
Não se trata de "se perceber como", mas de ser real-
mente objeto a, objeto dejeto, por isso ele se precipita
pela janela. Nós teremos oportunidade de retomar a
O falo. o objeto a. o real 167

111so, que é muito importante. Hoje, eu ainda tenho de


uhordar um outro ponto, desculpando-me por uma carta
um pouco mais densa que de costume.
Não esqueçamos que estamos na leitura crítica
de Bergeret. Ou será esse apenas um pretexto? O que
4uer que seja ainda há alguma coisa que me incomoda
neste encaminhamento. Bergeret privilegia, quando ele
fala da depressão, o que nós poderíamos chamar de
eixo imaginário. Isso se concebe, uma vez que a ques-
tão da imagem, de uma imagem desvalorizada, é segu-
ramente importante aqui. Contudo, já lhe falei o sufici-
ente, não podemos compreender nada disso se esque-
cermos que aquilo que se passa nesse registro depende
do que se passa no simbólico, na relação com os
significantes. E também não nós esqueceremos de si-
tuar o que, na depressão, vale como tropeço no real. A
que me refiro? À posição que tomam, na depressão, os
fenômenos como os da despersonalização, da
desrealização, ou ainda, das automutilações.
Comecemos pela desrealização, porque o nome
que ela leva pode ser enganador. De fato, trata-se do
que se passa quando o sujeito não se encontra mais na
realidade. Eu lhe havia dito, desde minha primeira car-
ta, das errâncias de Denise. Na ausência de qualquer
objetivo, ela toma um trem que a conduz não importa
onde. Ela chega a uma estação onde ela não tem nada
a fazer. Como ela não perderia o sentimento de reali-
dade? Em contrapartida, é com um real que ela se cho-
ca. Entendamos com isso, que ela, então, se encontra
frente a um mundo que nada organiza, um mundo que
não pode ser percebido ou pensado por meio de uma
simbolização.
Na despersonalização - que atualmente está
privada de ancoragem simbólica garantida, fragilizada
no plano imaginário - o sujeito depressivo tem segui-
damente dificuldade em garantir para si uma identida-
168 Depressão. a neurose do contemporâneo

de. Ele não sabe exatamente o que pensa, nem o qu,•


almeja (sem nem mesmo falar do desejar). Quando cl,·
chega a agir, tem dificuldade para se reconhecer no
que fez, porque no fundo ele não tem nenhuma idéi.i
do que o colocou em movimento. Evidentemente, cu
exagero um pouco o traço, mas é bem isso o que po
demos chamar de despersonalização4 • Seria, pelo me-
nos, para experimentar um pouco seu corpo, seria para
tentar se garantir de seu ser que ele poderá chegar a se
mutilar? Ou seria, talvez, porque a dor não engana?
Podemos ir ainda mais longe.
Hoje voltei a lhe falar bastante da função fálica.
No fundo, ela sempre teve a ver com um corte simbó-
lico. A função fálica separa a mãe do filho, a permissão
da interdição, o sujeito do objeto. Você poderia conce-
ber que ali onde essa função é carente, o sujeito possa
tentar paliá-la por meio de um corte real, uma
automutilação? Creio que, como todo analista, eu tive
vários analisantes que entalhavam seu corpo e seu ros-
to de diversas maneiras. Na verdade, não posso falar
muito disso para você. Mas creio que você leu recen-
temente A pianista, de Elfride Jelinek5, onde você mes-
mo encontrará o retrato de uma mulher não só
depressiva como masoquista, que vive em uma dessas
relações com a mãe que qualificamos de fusional, e
que, mais do que ser cortante nessa ligação bem lúgu-
bre, prolonga para o barbeador o corte real de seu pró-
prio sexo. Além disso, eu diria que, inversamente, a
analisante que feria a pele de seu ventre de maneira
regular, um dia pôde parar de fazê-lo, quando, em sua
análise, se impôs a ela a idéia de que se tratava de um
tipo de escarificação ritual, um equivalente imaginário
a uma inscrição simbólica falha6•
o falo, o ob.feto a, o real 169

notas
1 Encontra-se, por vezes, a idéia de que a carência da função
fálica conduz o sujeito depressivo a evitar uma verdadeira perda
do gozo. Isso está bem ilustrado em sua fala feita mais para
enunciar um saber sobre a dor - que é também gozo - do que
para arriscar alguma coisa de seu desejo no jogo metafórico do
significante. Mas essa formulação não é incompatível com aquela
que eu escolhi, visto que um sacrifício total pode ter o valor de
evitar uma confrontação com a castração, com uma renúncia
parcial, que seria compatível com o desejo e a ação.
172 Depressão, a neurose do contemporâne.a

fragilizados. Assim, o sujeito deve antes se apoiar nm


recursos internos. É o desenvolvimento desses rcn11
sos, a faculdade de fazer projetos, a realização de M.
que constituirão as novas normas da modernidade. b11
síntese, o obrigatório não é obedecer a uma regra
coletiva, mas viver plenamente o modelo ideal constr
tuído para si individualmente.
É neste ponto que Ehrenberg chega a uma abor
dagem clínica, à qual não falta pertinência. Para ele a
depressão não se inscreve num quadro neurótico; ali·
ás, nem psicótico. O que, com efeito, caracteriza a neu-
rose - e quanto a isso, ele segue Freud - é que clu
responde a um conflito psíquico, digamos, para ser
breve, a um conflito entre os interditos interiorizados l'
um desejo que se opõe a eles. Sabe-se que o conflito se
representa no sintoma e é acompanhado de culpabili-
dade, porque nunca se está de fato dentro da lei. A
depressão, em contrapartida, não estará situada no
âmbito do conflito, mas do déficit, da insuficiência. Se
o conflito está relacionado à lei, ou se quisermos, ao
Supereu, a insuficiência está relacionada com uma ima-
gem ideal de si. 2 Além disso, "o narcisismo não é esse
amor a si mesmo que é uma das forças da alegria de
viver, mas o fato de ser prisioneiro de uma imagem tão
ideal de si que toma impotente, paralisa a pessoa que
tem permanentemente necessidade de ser assegurada
por outro podendo se tomar dependente [... ]." 3 Com
isso, Ehrenberg se refere à noção freudiana do Ideal
do eu, que ele opõe a do Supereu, pois "Se o Supereu
convida a não fazer, o Ideal do eu; pelo contrário, so-
licita fazer."4
Não se poderia negar o valor descritivo de tal
análise. Quando o sujeito depressivo se desvaloriza.
arrasando tudo para provar sua indignidade, não é raro.
que ele oponha a idéia que faz de sua infeliz pessoa a
alguma representação idealizada do que ele deveria ser.
173

ou ainda, do que são seus vizinhos, seus colegas, seu


unalista. Também não é raro que ele se esgote ao bus-
car no Outro um reasseguramento que, ao mesmo tem-
po, ele não cessa de recusar. Além disso, eu teria duas
observações a fazer.
A primeira pode parecer apenas terminológica.
Poder-se-ia, verdadeiramente, dizer que seja o Ideal
do eu que ocupa, hoje, o primeiro lugar, nas socieda-
des obcecadas por certa idéia da realização pessoal? O
Ideal do eu, para nós, não é uma imagem, mesmo que
seja particulanneote valorizada. O que Lacan propôs,
ao reler Freud, foi chamar por esse nome uma instân-
cia simbólica, a dos significantes que o sujeito recebe e
que organizam seu mundo e seus valores, e aos quais
finalmente ele confronta sua imagem. É a própria ima-
gem idealizada, da qual parece se tratar aqui, que no-
mearemos de Eu ideal.
Poderíamos dizer que é o Eu ideal, que está
ativo na depressão e que atribui ao sujeito sua nulida-
de? Não estou certo disso. Pode-se, com efeito, pen-
sar que a época contemporânea, ao desqualificar por
antecipação todo valor que o sujeito poderia receber
por transmissão do Outro, fragiliza a instância simbó-
lica do Ideal do eu. Mas, se esta for afetada, não será
impossível que o próprio Eu ideal não funcione mais
como ele o fazia anteriormente5• Ele se tomaria, por
exemplo, muito mais persecutório. É, em todo o caso,
uma das tarefas atuais da psicanálise, atualizar, a partir
das mutações de nossas sociedades, as teorias das ins-
tâncias psíquicas.
No entanto, será que estas se reabsorvem no
social? Eu não creio, de forma alguma. E isso me con-
duz à segunda observação. De fato, não penso que a
depressão possa se constituir em um simples efeito
dessa mudança de discurso, através da qual a prescri-
ção de se realizar se substitui ao interdito de certos
174 Depressão, a neurose do contemporâneo

comportamentos. É verdade que o sujeito depressivo


falará de sua inaptidão, de sua incompetência, de s1111
incapacidade, no registro que o social atualmente pl'I
mite. Como isso se daria diferentemente? Para descn·
ver sua impotência, ele dispõe tão-somente do léxirn
de nossa civilização, e este com sua exaltação do s11
cesso individual lhe fornecerá um espelho invertido
onde ele poderá representar sua própria infelicidade.
Afirmei, quando de nossas discussões, que a
clínica individual responde à clínica social. Eu o sus-
tento: para responder a uma patologia social, é
freqüente que o sujeito se proteja com um sintoma in-
dividual. Mas ao mesmo tempo, ele só poderá expres-
sar suas próprias dificuldades, na língua dos discursos
dominantes, os quais são, eles mesmos, patológicos.
Em síntese, ele encontra no sintoma social um ready-
made no qual ele vestirá da maneira mais íntima o que
o afeta. Então, você vê até que ponto existe aqui uma
trama impossível de ser desfeita entre o singular e o
coletivo. Entretanto não estou certo que tudo isso lhe
seja suficiente. Eu sei que o conceito de clínica social,
apesar de tudo o que pude lhe dizer, se mantém pro-
blemático para você. Como, finalmente, eu a defino?
Bem, vou me arriscar a fazê-lo.
Por clínica social eu designo essencialmente
uma patologia, não do sujeito individual, mas do pró-
prio laço social, quer dizer, do discurso que o organi-
za. Você poderia, evidentemente, objetar que não é tão
fácil assim determinar o que nós consideramos como
patológico. Mas, de certa maneira, também é o caso
do que diz respeito ao indivíduo. Quanto ao que diz
respeito ao coletivo, eu poderia propor-lhe alguma
coisa. É de considerar como patológico tudo aquilo
que, no discurso, se dá no sentido de desencorajar o
sujeito a se encontrar, a encontrar seu lugar, seu dese-
jo, suas obrigações. Se você estiver de acordo, eu lhe
Os Ide.ais 175

pediria que concordasse comigo, que esse


desencorajamento sempre provém de uma
desqualificação da fala.

1 EHRENBERG, A. IA fatigue d'être soi. Paris, Odile Jacob,

1998.
2 Notar-se-á que Ehrenberg também fala de patologias narcísicas

ao se referir, não a Bergeret, mas diretamente a Kemberg que,


efetivamente, marcou numerosos terapeutas. Precisamente, ele
cita o artigo intitulado "Borderline personnality organization",
publicado no Journal ofPsychoanalysis Association, nº 15, 1967.
Esse simples título indica que a questão da depressão é sempre,
para os autores dessa corrente, a ocasião para tentar isolar uma
estrutura que estaria "entre" psicose e neurose, de alguma forma
na fronteira. Sobre o conceito de "borderline" ver CHEMAMA,
R. Clivage et modernité. Toulouse, Éres, 2003, p. 120.
3 EHRENBERG, A. Op. cit., p. 139.
4 Os pacientes depressivos chegam freqüentemente a encontrar
no curso da análise, a que ponto eles poderiam estar submetidos
a uma dupla injunção de seus pais: seja você mesmo e, ao mes-
mo tempo, zele para se ultrapassar, para alcançar o ideal que eu
penso que você pode alcançar.
5 Esta observação me foi feita recentemente por Janine

Marchioni.
Mentira privada, mentira social

Caro amigo,

Sim, sim! O que eu lhe disse em minha última


carta ficou um tanto abstrato. E agora você reclama
com veemência alguma ilustração clínica. Recentemente
você revelou sentir-se cada vez mais lacaniano, mas ao
lê-lo eu julgo compreender alguns de meus colegas
analistas - precisamente aqueles que acusam os
lacanianos de se interessarem tão-somente pelas teori-
as abstratas -que sempre querem que se retome à ex-
periência vivida.
Em todo o caso, você pergunta se eu não po-
deria dar-lhe alguma idéia da incidência das questões
que abordo - principalmente a da trama do individual
e do social - nos tratamentos que conduzo. Bem, que
seja. Por que não tentá-lo, mesmo que eu sempre pre-
fira evitar entrar demasiadamente no detalhe dessas aná-
lises?
Então, vou tentar falar-lhe de uma jovem - eu
a chamarei de Odile - cujo caso muito me interessou,
mesmo não tendo nada de espetacular. Quando eu a
recebi, há alguns anos, o que ela dizia podia até pare-
cer pobre e repetitivo. Ela se queixava de estar andan-
do em círculos, de não poder exprimir suas emoções.
de tudo lhe parecer complicado. O que aparecia rapi-
damente era uma impotência para agir, para deixar um
trabalho que não lhe agradava mais, para investir real-
mente em uma relação, para ter filhos. Mas seu relato
repetitivo de algumas lembranças fragmentadas núo
levava muito longe. Com efeito, não além de uma lks·
crição da relação dos pais, na qual o pai e a múl' Sl'
17 8 Depressão, a neurose do contemporâneo

ignoravam mutuamente. Quanto às associações <los


sonhos, que existiam, elas davam a sensação de serem
um tanto formais e essa paciente não se engajava cm
sua enunciação. Veja, creio que se eu me interessl'1
particularmente por seu tratamento - reconheçam< 1s
essa parcialidade! - é porque sua análise ilustra perfc i
tamente a oposição de uma mentira familiar, a qual 1,
sujeito deveria ter acesso ao longo de seu tratamento,
à mentira social que recobre essa primeira mentira.
O que poderia se dizer, em um dado momento
da análise de Odile, eu poderia apresentá-lo, de fomia
condensada, da seguinte maneira: "Eu não posso en
golir essa." Ela havia sido anoréxica durante sua ado
lescência, mas ela saiu dessa; no entanto, o pivô desta
anorexia sempre esteve presente para ela. Eis então o
que seu tratamento deveria ter lhe permitido dizer: "Eu
não posso engolir a atmosfera pesada de minha casa.
Eu não posso engolir o discurso, no qual tudo o que se
diz de meu pai é que seu trabalho coloca a familia em
uma carência material, etc. Eu não posso engolir." Ter-
se-ia aí, se você quiser, um enunciado bem cernido,
que nela teria valor de fantasma. Ora, se o seu trata
mento lhe permitiu dizer, efetivamente, alguma coisa
dessa ordem, sem dúvida, faltou-lhe a possibilidade de
experimentar essa rejeição, ou ainda, esse fantasma,
em toda sua verdade singular. Acontece que Odile ti··
nha muita dificuldade para isolar o que era seu próprio
discurso do discurso que estava enraizado em sua fa.
Ill11ia, aquele que procedia de algumas questões pre-
sentes desde a infância. Esse discurso- a mentira pri-
vada - estava de alguma forma recoberto por uma
mentira social que de certa maneira Odile percebia
muito bem.
A mentira social - as coisas no caso de Odik
são particularmente claras-é aquilo que liga, na civi
lização moderna, a felicidade ao consumo, sempre mais
179

e mais consumo. Odile trabalhava em uma agência que


promove as grandes marcas de produtos, que as ajuda
a encontrar a imagem que tomará seus produtos mais
atrativos. A propósito, como estava nela o objeto?
Tomando as coisas a partir de seu fantasma, se
poderia dizer que ele se situava no âmbito da oralidade,
pelo lado de um gozo oral do qual ela tentaria se desvi-
ar através de vias singulares. Mas esse objeto singular
estava recoberto, para ela, pelo objeto supostamente
sempre disponível de nosso mundo moderno, o objeto
de nossas trocas mercantis, tanto mais presente à me-
dida que Odile trabalhava para promovê-lo, o que, ali-
ás, ela suportava cada vez menos. Demasiadamente
confrontada com esse objeto em seu uso social, ela
tinha dificuldade para encontrar o sentido de seu
questionamento subjetivo. Enojada pela profusão de
objetos e de imagens da esfera social, ela dificilmente
conseguiria rejeitar engolir o que queriam que ela en-
golisse.
Além disso, eu poderia acrescentar alguma coisa
quanto a sua situação profissional. Odile trabalhava da
mesma forma que muitos trabalham atualmente. Ela
era empregada em uma dessas pequenas empresas que,
para sobreviver, buscam conquistar mais mercado, sem
cessar. Essas empresas, para fazê-lo sem cessar,
desregularam completamente o trabalho, a alternância
regular dos dias de trabalho e dos feriados, a separa-
ção entre a vida pessoal e a vida na empresa, porque o
empregado deve estar disponível a qualquer momento
e pensar sempre em sua empresa. Ora, isso tem lá suas
conseqüências.
Nós já falamos a respeito da questão do tem-
po, da forma da temporalidade no mundo contempo-
râneo, mas é útil, sem dúvida, retomá-lo. A um traba-
lho definido por coordenadas tão precisas -
notadamente temporais e que podem ser impostas ou
180 Depressão, a neurose do contemporâneo

negociadas, mas que, em todo o caso, têm um valor


social - substitui-se, em tal contexto, uma percepçüo
moral da disponibilidade exigível do trabalhador. 11.i
uma percepção moral que triunfa no discurso da em
presa, mas é preciso acrescentar que o próprio emprc
gado interioriza esse discurso e ele se sente culpado
quando não está de acordo com a expectativa da em
presa, etc. Vê-se como o simbólico - a ordem da lei
ou, pelo menos, da regulação social - se degrada em
imaginário e percebe-se em um registro principalmen-
te afetivo 1• Nota-se igualmente a que ponto um sujeito
pode se encontrar frente à necessidade de denunciar a
mentira que ele suporta cotidianamente, e o quanto ele
pode, desde já, ter dificuldade para colocar por sua
própria conta, questões como as da lei. Um dia, Odilc
sonhou que "o rei" portava uma coroa de papelão. O
que remete aqui ao atual, ao social? O que tem mais
valor em relação ao seu trajeto singular?
Então, você percebe o ponto em que estamos,
no qual a questão que se coloca para mim não é apenas
uma questão teórica, mas também uma questão de
método, no próprio tratamento. Eu não pensava falar-
lhe muito disso antes que tivéssemos aprofundado nossa
análise da depressão. Mas é preciso saber que a ques-
tão existe. O que o psicanalista pode fazer em tal situ-
ação? Como evitar que o peso de um social desregulado
impeça o sujeito de aceder a suas próprias questões?
Nós somos obrigados a levar em conta essa dimensão
específica.
Freud já evocava uma dimensão social da re-
sistência. Devemos abstrair essas questões em nossos
tratamentos? Na verdade, duas ou três vezes durante o
tratamento de Odile, e algumas vezes também em ou-
tros tratamentos, tomei o partido de indicar que tudo o
que era descrito não se referia a um fantasma singular,
mas havia ali reais 9uestões de sociedade. O simples
Mentim pmada.. mentimsodal 181

fato de reconhecer essa dimensão como tal, freqüente


e aparentemente facilitou um atravessamento. Odile
pôde atribuir, como não sendo uma falta sua, o mal-
estar que ela tinha em relação às coordenadas
econômicas e técnicas de seu trabalho. Sendo somente
a seguir, que ela conseguiu retomar ao que a havia dis-
tanciado de uma outra forma de atividade, mais
artesanal, que a teria preferencialmente remetido a uma
habilidade manual. Mas Odile não se autorizava. Em
termos freu~ianos, havia nela um tipo de fobia de
contato.
Nós teremos a oportunidade de retomar, caro
amigo, à questão da fobia. Esta atinge precisamente
sujeitos para os quais a Lei é frágil e que encobrem a
precariedade do interdito elidindo algum objeto de te-
mor, próprio para introduzi-los no evitamento. Em
Odile, as dificuldades em relação ao social apoiavam-
se em uma posição fóbica; reconhecê-las, era abrir o
caminho para um questionamento mais pessoal. Em
todo o caso, em certo momento de sua análise, ela
retomou de uma maneira mais concreta ao que se man-
tinha desinvestido em seu próprio corpo, e também
abordou, a partir de uma fobia de insetos, questões da
sexualidade que, aliás, ela havia tido muita dificuldade
para elaborar. Isso, mais uma vez, só foi possível ao
deixar inicialmente de lado os discursos sociais nos
quais ela estava imersa.

flllota
1 Ver a esse respeito CHEMAMA, R. Le travai) aujourd'hui.

Em Le discours psychanalytique, Paris, nº 12, Association


freudienne intemationale, outubro 1994.
O universo kafldano:
primeiras questões

Caro amigo,

Você me diz considerar-nos quites em relação


ao que você me pedia em matéria de uma ilustração
clínica! Você também almeja, no momento, que eu
retorne ao que eu havia parecido empreender, à apre-
sentação histórica, um tanto sistemática, dos textos
lacanianos, pelo menos aqueles que esclarecem esta
"nova clínica" sobre a qual incidem nossas trocas. Con-
sidero-me advertido! Não deveremos manter por mais
tempo a forma abstrata desses desenvolvimentos, que
você rejeita cada vez mais.
Conforme você me lembra, eu começara citan-
do textos bem antigos que acentuavam um declínio da
imago do pai (mesmo se eu, a seguir, os atualizasse um
tanto); eu relatei, posteriormente, o que se instala com
o discurso da ciência. Mas tudo isso ainda não se ajus-
ta bem para você, e coloca numerosas questões.
Efetivamente, como evoluirá a teoria lacaniana? O que
ela acentuará? O que ela privilegiará?
Isso coloca numerosas questões. Por hoje, eu
tentarei lhe dar alguma idéia de como podem se apro-
ximar análises que em realidade convergem, mesmo
se, inicialmente, elas pareçam se orientar diferentemen-
te. Eu lhe direi, inicialmente, de maneira bem abstrata.
Mas não se inquiete, vou chegar rapidamente, nessa
carta, a uma ilustração que deverá agradar-lhe.
O que nós fazemos, quando falamos do "dis-
curso da ciência"? Já lhe falei bastante que, quando
nós evocamos o que é no fundo um tipo de ideologia
184 Depressão, a neurose do contemporânNt

da ciência, uma representação na qual, diferentcme1111·


do que se passa de fato, então, não há enunciador. l Jm
enunciado nunca é remetido a uma enunciação, ele lkVI'
simplesmente, nessa representação, concordar com 11
conjunto do saber. Há apenas saber, não há significa1111·
que se diferenciaria do saber. Lacan distingue, von'
sem dúvida se lembra, S2 o saber, e S 1, um significanh·
que faz corte na articulação significante. Este, ck 11
chama de "Significante-mestre" e isso color.1
efetivamente a questão do que constitui autoridade.
Diremos, portanto, que o discurso da ciência l\
habitado pela esperança de que os encadeamentos dt~
significantes possam se constituir sem que.jamais, um
sujeito seja levado a tomar uma posição própria, ou a
introduzir uma tese que constitua autoridade. Ora, st•
esse discurso desqualifica, por antecipação, todo o su
jeito que se colocaria em posição de autoridade, vm:~
percebe que isso pode tão-somente nos habituar ades-
confiar de todo o sujeito que pareça utilizar um estatu
to de exceção, de todo homem que se apresente, diga·
mos, em posição paterna. Assim, o declínio dos No·
mes-do-Pai acompanha os progressos do discurso da
ciência. E se nós ligamos, como eu comecei a fazê-lo,
os desenvolvimentos do capitalismo aos do discurso
da ciência, você verá que nós temos muitas coisas para
articular.
E agora, então, uma "ilustração". Eu escrevo
essa palavra entre aspas porque ela é muito mais do
que aquilo a que vou me referir no momento. Trata-se
de textos literários que permitem freqüentemente es-
clarecer nossas questões. Sei que você é muito sensí-
vel ao tema freudiano, retomado por Lacan, de um ar-
tista que trilha o caminho para o analista.
Há alguns meses me foi proposto intervir em
um congresso psicanalítico consagrado a Franz Kafka
e que, aliás, ocorreu na cidade de Praga. Você não du-
O un1wno kaftdancx plilneâa9 questões 185

vide do prazer com que aceitei. Isso me oportunizou


retomar a leitura de um autor que gosto muito, e que,
sem dúvida, é representativo do que se passa no de-
senvolvimento da modernidade.
Aliás, você vê que aquilo que disse a pouco
pode nos distanciar imediatamente de uma tentação que
os analistas, com freqüência, experimentam
notadamente no que diz respeito a Kafka: a tentação
de estudar o homem mais do que a obra, e de compre-
ender o homem a partir de uma referência mais ou
menos detalhada, a sua situação familiar.
Você sabe o porquê desta tentação ser particu-
larmente viva quando se trata de Kafka. Sua vida, sua
personalidade, sua impossibilidade doentia de estabe-
lecer uma ligação durável com uma mulher parecem
incitar ao exame clínico. Este seria, de alguma forma,
autorizado pelo próprio Kafka. Quando ele escreve O
veredito que sem dúvida constitui sua primeira novela
verdadeiramente importante, quando ele conta essa
história na qual um homem se matará para obedecer à
ordem de seu pai, ele se refere, em seu diário, a Freud.
E, eu não tenho necessidade de lembrar-lhe que um de
seus grandes textos é uma "carta" (jamais enviada) na
qual ele se endereça a seu próprio pai, e na qual ele lhe
recrimina o poder despótico. Em suma, todos os ele-
mentos parecem reunidos para analisar as particulari-
dades patológicas do complexo de édipo de um indiví-
duo chamado Franz Kafka.
Entretanto, de minha parte, não almejei nesse
congresso tomar as coisas a partir do que seria a per-
sonalidade de Kafka, mas, a partir dos grandes roman-
ces de Kafka (principalmente O processo e O castelo),
e mais precisamente do que denominei o Outro
kafkiano. Em outras palavras, tomei os romances de
Kafka não como expressão de uma subjetividade, mas
como apresentação do Outro, ao qual se refere essa
186 Depressão, a neurose do contemponi11...

subjetividade. Era de se supor duas coisas: q11,· hiA


mutações históricas do Outro e que certos individ111111,
notadamente certos escritores, são particularment,· wn
síveis em apreender, ou fazer apreender algumas d,•111
sas mutações.
No que diz respeito a Kafka, você mesmo , ,.,
tamente observou um pequeno "detalhe" que tr111 14
sua importância. É que seu sobrenome tomou-se 11111
nome comum, ou antes, um adjetivo. Fala "''
freqüentemente de um universo "kafkiano", quando o
indivíduo parece preso em situações absurdas, nas q111111,
qualquer esforço de evasão, ou mesmo simplesmente•
de compreensão, é vão. Essa criação significante qur.
aliás, é bem rara, não seria suficiente para indicar qt1l' 11
obra de Kafka nos fala, com força, de nossa realidadr.
ou pelo menos daquela que se desenhou a partir do
início do século XX?
Mas que realidade? Alguns disseram que o um
verso de seus romances, onde reina uma burocraciu
absurda e mesquinha, era o do comunismo. Outros
vêem mais um quadro da sociedade capitalista. Ou
tros, ainda, afirmaram que sua obra fornece um qua
dro premonitório das sociedades fascistas. Está claro
que a diversidade desses pontos de vista mostra os li-
mites dessas comparações em si mesmas. O que se pa,;sa
em O processo ou em O castelo pode muito bem evo-
car um regime absurdo e totalitário. Isso pode, even-
tualmente, se antecipar ao que a história realizou, mas
seria um regime verdadeiramente sem especificidade.
Ocorre o mesmo no que concerne a uma ques-
tão um tanto diferente, mas que também visaria escla-
recer o universo kat'kiano. Seguidamente se tem fala-
do de uma dimensão religiosa desses textos, mas os
comentadores não concordam entre si sobre a nature-
za da teologia de Kafka. Interroga-se, por exemplo, o
conhecimento que Kt,lfka teria dos textos da tradição
iudaica; mas também se chegou a ponto de evocar ai~
J<Umas heresias da história do cristianismo, como a
heresia marcionita, segundo a qual Deus é lllau. :No
,·ntanto, aí também a diversidade das interpretações
ronduz a não atribuir particular confiança a qualquer
uma delas. Se o sentido da vida humana é questionado
na obra de Kafka e se isso abre uma interrogação a
respeito de Deus, então, esta não encontraria nenhuJ1lª
resposta segura nem tranqüilizadora.
Aliás; não se trata apenas do fato de Deus ser,
para Kafka, inacessível, porque nesse sentido ele não
seria muito diferente daquele dos grandes monoteísmos.
Mas, a medida que esta divindade não é nem específica
nem mesmo nomeada, sem dúvida, é preciso Partir da
própria escrita para tentar situá-la. Você me pemúte
deixar isto para minha próxima carta?
A época da criança generallr.ada

Caro amigo,

Há momentos em que se lamenta não ter uma


segunda vida. A consagraríamos ao estudo, escreverí-
amos alguma tese que forçosamente não dissesse res-
peito à psicanálise - mas por que não Kafka, por exem-
plo? Esta trataria do universo de seus grandes roman-
ces. Seria preciso mostrar - e hoje vou continuar se-
guindo bem de perto o que eu disse em Praga - seria
preciso mostrar como se instala, nesses livros, uma at-
mosfera de sonho, mas também de petrificação. Falou-
se a respeito de O processo, falou-se sobre a repetição
de tentativas sempre vãs para aceder à verdade, de uma
"tomada de assalto imóvel", e essa expressão seria ainda
mais conveniente, talvez, para O castelo. Você se dá
conta de que isso já sugere que o herói kafkiano tenha
relação com um Outro que ele tenta afrontar, mas em
um combate tão inútil que parece nunca poder verda-
deiramente começar?
De fato, é na escrita de Kafka que seria preciso
mostrar tudo o que contribui para dar uma impressão
de fechamento, um fechamento que jamais se conclui.
Falou-se, a respeito de Kafka, de um "estilo narrativo
hipotético". Remeta-se, por exemplo, à primeira pági-
na de O processo, onde se lê que "Alguém deveria ter
caluniado Joseph K". Beda Allemann, em um livro so-
bre O romance alemão, observa precisamente que esta
afirmação apenas tem valor na interpretação que o pró-
prio Joseph K. faz. e de imediato ela se transforma em
simples hipótese. e que o leitor, a partir disso. se en-
contrará arrastado em um processo jamais concluído.
190 Depressão, a neurose do contemporâneo

de interrogação e de interpretação'. Você vê que para


falar da impotência de Kafka nós não teríamos nenhu
ma necessidade de relatar as inibições de sua vida amo
rosa. É sua obra que instala, de maneira bem forte, um
tipo de impotência generalizada, e esta decola da im
possibilidade de concluir.
O leitor de Kafka nunca pode se entregar a um
sentido, a uma certeza, evidentemente o mesmo vale
para os personagens principais. Lembre, por exemplo,
os grandes diálogos entre Joseph K. e o advogado Hui d
em O processo. Este se esforça em explicar o que crê
saber da justiça, das maneiras de agir com relação a
ela, das razões de esperar ou de desesperar. A organi-
zação da justiça, diz ele, deixa a desejar nas instâncias
inferiores. Acreditar-se-ia possível se precipitar nessa
brecha. Entretanto, essa não seria a solução. Seria
melhor tentar aceder a relações pessoais com impor-
tantes funcionários. Então, impõe-se uma nuança que
vem a tudo contradizer: importantes funcionários "nas
instâncias inferiores, evidentemente".
Certamente há aí uma dimensão do absurdo,
da qual os comentadores falaram muito. Eu creio que
ela está paradoxalmente ligada às próprias tentativas
de compreensão. Cada vez que o personagem princi-
pal, por exemplo, obtém uma explicação, esta é imedi-
atamente contestada e perde todo o seu valor. Ele pro-
testa, ele insiste. Mas quanto mais ele protesta mais se
o compara a uma criança. Talvez você se lembre desse
diálogo em O castelo, no qual a albergueira da ponte
repete várias vezes a Joseph K. que ele é uma criança.
Aliás, foi dito que ela era uma das numerosas mães da
obra de Kafka. Mas a comparação do herói com uma
criança não aparece apenas quando refere-se a um dos
personagens femininos. O texto do O processo salien-
ta que Huld faz fortes advertências a K., como se faz
com as crianças. Evidentemente, são apenas dois dos
191

numerosos exemplos que se poderia solicitar na obra


inteira.
O que eu afirmei em Praga é que o mundo de
Kafka pode muito bem evocar a situação estranha de
um adulto ao qual se responderia com a desenvoltura
que é freqüentemente a regra com as crianças. "Por
quê?", pergunta a criança - "Porque." Ou ainda: "Nós
te responderemos mais tarde.", etc.
É a partir desse tipo de observações que, certa-
mente, poderíamos privilegiar um questionamento que
incidiria na: criança Franz Kafka e sua relação com o
pai. Em sua Carta ao Pai, Kafka evoca a maneira como
este o tratava, quando exprimia uma satisfação. "Re-
cebíamos como resposta, diz ele, um sorriso irônico,
um balançar de cabeça, um tamborilar de dedos na
mesa."
Está claro, aliás, que o próprio conteúdo dos
romances poderia ser interpretado em termos edipianos.
Também é assim em O castelo, pela relação complexa
que se estabelece entre K., a jovem Frieda, que se tor-
na sua amante, e o inacessível Klamm, esse alto funci-
onário que não só foi amante de Frieda, mas também,
antes dela, o amante da albergueira maternal de que eu
falava há pouco. Além disso, pode-se tomar as coisas a
partir de um outro ponto. Se o herói kaflciano está às
voltas com um Outro que o infantiliza, ele também
busca - toda a obra o demonstra - esperar um Outro
um tanto mais consistente. Seria preciso surpreender-
se que esse Outro adquira a fisionomia de um homem
mais velho e mais potente, um homem que pode evo-
car o pai?
Parece-me que seja a partir disso que possa-
mos compreender a importância de Klamm para K.
Você observará o que diz o romance: que é a proximi-
dade de Klamm que deixara Frieda loucamente sedu-
tora aos olhos de K. Isso não deixa de ter interesse
192 Depressão, a neurose do contemporâneo

clínico. Isso pode nos fazer apreender certas conseqii


ências paradoxais da relação com o pai, algumas fci
ções que um personagem masculino possa adquirir.
onde o sujeito não encontrou no Outro um ponto dl'
apoio firme para trilhar seu próprio caminho. Assim.
você compreende facilmente que a relação com m,
mulheres possa apresentar uma particular dificuldadl'
ali onde elas servem, sobretudo, de porta-voz para che-
gar ao pai por meio de um outro homem, e, desta ma
neira, se tranqüilizar a respeito de um Outro parti cu -
larmente problemático.
Mas então, você me dirá, de que Outro estou
falando? Você sabe o quanto esse termo é polissêmico
para nós. Em todo caso, não se trata de um Outro que
se reduziria ao discurso familiar. Quando um escritor,
dizia eu em Praga, cria um universo no qual o indiví--
duo fica encerrado em uma rede de coerções incom-
preensíveis, quando ele faz sentir, de uma maneira do-
lorosa, o quanto todo sentido pode se ocultar, quando
ele se retrata sob os traços de uma criança da qual es-
carnecemos, seria redutor tentar dar conta apenas por
meio de sua trajetória individual.
Você se lembrará que a obra de Kafka é escrita
em um momento histórico no qual estão em curso trans-
formações da maior importância, transformações que
afetam o que para cada um, vale como referências sim-
bólicas: mutações políticas, choque das ideologias,
deslegitimação progressiva das crenças. É isso que
constitui, em meu entender, uma verdadeira mutação
do Outro.
Essas transformações, como Kafka as perce-
bia? É aí, certamente, que se pode pensar nesse indiví-
duo singular, esse indivíduo tomado por uma situação
complexa que podia ser a de um judeu de cultura ale-
mã imerso em uma sociedade tcheca. E essa situação
socialmente difícil era, sem dúvida, agravada pelo que
Aé.poca da~ge.naalizada 193

se passava na esfera familiar. Em sua Carta ao Pai,


que podemos retomar agora, Kafka critica o pai por
praguejar contra os tchecos, os alemães, os judeus, a
respeito de tudo, de forma que não sobrava ninguém
além dele. Freqüentemente fala-se do caráter despó-
tico do pai de Kafka, mas isso não quer de forma
nenhuma dizer que ele assumia de maneira
satisfatória uma verdadeira função patema2 • Longe
de transmitir alguma referência, ele sem dúvida con-
tribuía para a-perda de toda a referência. Você perce-
be como aqui podem se articular a mutação social
do Outro e a carência paterna.
Kafka, por sua parte, aparentemente almejava
se inscrever em uma linhagem, experimentando dolo-
rosamente sua impotência para fazê-lo. Em 21 de ja-
neiro de 1922, ele escreve, em seu diário, algumas li-
nhas significativas: "Sem ancestrais, sem casamento,
sem descendentes, com um violento desejo de ances-
trais, de casamento, de descendentes." E, ele procura
se reinserir em uma tradição, como também testemu-
nha seu gosto pelo teatro yiddish, ou o fato de que ele
tenha, tardiamente, se posto a estudar hebraico. Mas,
ele era sensível às transformações na civilização, sem
dúvida, não no sentido de uma adesão militante a algu-
ma causa3, mas no sentido de um verdadeiro
questionamento que, por exemplo, diria respeito tanto
ao socialismo quanto ao judaísmo.
Você não esquecerá, aliás, que ele trabalhava
no seio de uma seguradora. Ele escreveu nesse con-
texto relatórios técnicos, nos quais ele vislumbrava di-
versos procedimentos destinados a diminuir os riscos
de mutilação nos operários que se serviam das máqui-
nas na indústria pesada.
A propósito, você não concorda que seria mais
exato falar nos operários que serviam as máquinas da
indústria pesada? Você sabe a que ponto a aceleração
194 Depressão, a neurose do contemporcin••

da industrialização, a partir do final do século XI X.


representou um assujeitamento cada vez maior do s11
jeito às exigências da técnica e da economia. Isso ta111
bém é o Outro, esse Outro no qual o sujeito, no sérnlt •
XX, perde uma boa parte de suas referências simh1111
cas. É por esse Outro que o sujeito se encontra dl'pu·
ciado, no lugar de uma criança.
A civilização não necessariamente o trata mm
severidade. Entretanto, basta que ele proteste, que l'k
abra a boca, é suficiente que ele questione a sorte qt1l'
lhe foi reservada, para que se faça escárnio dele. 011,
pelo menos, para que se lhe diga que sua questão ~
sem objeto, como o fazem os dois homens que, no inl
cio de O processo, vêm prender Joseph K.
Em suma, como dizia Lacan por ocasião da j11r
nada sobre As psicoses da criança, nós estamos 1111
época da criança generalizada. Penso que essa é a ép1,
ca, que por meio de Kafka, foi retratada em uma ohrn
genial, uma obra que ilumina singularmente o mundo
que nascia no início do século XX, e que ainda é, em
grande parte, o nosso.
Saiba que para mim não se trata de localizai
em Kafka uma das formas de neurose que nós bem
conhecemos. Ao contrário, sua obra ilumina uma épo·
cana qual as mutações dos discursos sociais, as mula·
ções do Outro progressivamente produzirão novas pa-
tologias. Poderíamos ir até o ponto de apreendê-las,
pelo menos, como tendo sido anunciadas em sua obra?
Creio nisso, mas não posso dar-me o tempo dl·
demonstrá-la a você. No entanto, recomendo que leia,
por exemplo, sua famosa novela sobre Um campeão
de jejum.
Portanto, quando um sujeito em tratamento sr
fecha em contradições de certo tipo, em contradiçõl's
que parecem lhe votar, sem apelo à impotência e a1,
desespero, tudo isso eventualmente acompanhado dr
195

um humor arrasador, pode nos ocorrer de pensar que,


nessa situação, há alguma coisa ka.fkiana. Isso mostra
claramente, até que ponto uma obra dessa dimensão
pode ser esclarecedora para nós.

1Encontrar-se-á uma referência a esta análise em F. Kafka,


<Euvres completes, tomo l, Bibliotheque de la Pléiade, Paris,
Gallimard, 1976, p. 976.
2 Certamente, é conveniente não confundir o pai que sustenta a

lei simbólica com o personagem cruel que, no imaginário, ve-


nha impor seu capricho.
3 Kafka era um autor engajado? Poderia parecer curioso colocar

a questão nesses termos. Entretanto, foi o que eu tentei fazer em


Praga, mas isso em um sentido bem particular, a partir de uma
referência a algumas linhas que Lacan consagrou a esse escritor.
Com efeito, Lacan em seu seminário sobre A identificação evo-
ca Kafka para falar do "engajamento" (LACAN, J.
L 'identi.fication, 1961-62). É no sentido bem particular de que o
engajamento consistiria, para o sujeito, em cavar uma galeria,
assim como pode fazê-lo o animal - texugo ou outro - descrito
em Le terrier. Lacan sustenta isso de uma maneira bem particu-
lar. Ele fala do desejo e diz que esse se constitui como a parte da
demanda que fica escondida para o Outro. Entendamos que se
essa parte não existisse, o sujeito ficaria completamente tomado
na demanda do Outro, e que seu próprio desejo não poderia se
formar. Podemos, então, ler a obra de Kafka como essa ocultação
que lhe teria permitido constituir um desejo que ele finalmente
teria podido sustentar. O fato de que nos últimos meses de sua
vida ele pôde viver com uma mulher - tomar seu covil aceitável
ou aceitá-la em seu covil - vai nesse sentido.
Por que Hamlet não age?
Por que Hans tem tanto medo?

Caro amigo,

Creio compreender, lendo sua última carta, que


no fundo você não sabe mais o que me perguntar. Por
um lado, você fica desejoso de me ver retomar o trajeto
das articulações de Lacan, aquelas, em todo o caso,
que podem esclarecer nossa clínica contemporânea.
Mas, por um outro lado, você aprecia os desenvolvi-
mentos mais descritivos, e principalmente as referênci-
as à literatura, que no seu entender, fornecem uma ex-
celente introdução às questões que tentamos colocar.
Vou tentar satisfazê-lo ao mesmo tempo, quanto
aos dois planos. De qualquer maneira está claro que
não será muito possível nem muito satisfatório fazer o
levantamento de todos os textos de Lacan que pode-
rão nos dizer respeito. Por que então não buscar um
daqueles que diz respeito à literatura, um te;'{tO onde
esteja em questão o que ele chamara de o "herói mo-
derno"? Do que se trata? Durante o ano letivo 1958-
59, em seu seminário sobre O desejo e sua interpreta-
ção, Lacan consagra sete lições a Hamlet, de
Shakespeare. Ele interroga longamente o que em
Hamlet obstaculiza o desejo e o impede de agir.
Hamlet sabe, desde o início da peça, que seu
pai fora assassinado - é o espectro do próprio rei mor-
to que lhe faz essa revelação. O pai fora assassinado
pelo tio de Hamlet, Claudius que o substituiu no trono
e na cama da rainha. Tendo recebido de seu pai morto
a missão de vingá-lo e tendo ele próprio esse desejo,
pergunto-lhe. o que conduziria Hamlet a adiar seu ato?
198 Depressão, a neurose do contempo,.-11 ....

Além disso, mais tarde, o que tomará esse ato p11111


sível?
Lacan percorre, antes de propor suas prúp1111-
análises, a vasta literatura relativa a Hamlet, part1rn
larmente no que toma seu ato impossível. Se u111 ,h11
você tiver tempo, aconselho-o a pegar alguma~ «11111
obras que ele cita. Mas vamos adiante.
É interessante lembrar que Freud falou ,h•
Hamlet numerosas vezes, e que em A interpretur,111
dos sonhos em especial, ele fez referência ao complr
xo de édipo. Para Freud, se Hamlet não puder matm
seu tio "que afastou seu pai e tomou o lugar dele junto
a sua mãe", é porque Claudius, com isso, não fez nad11
mais do que realizar os desejos recalcados da infânciu
do próprio Hamlet. Essa análise bem rápida se apre
senta, no fundo, como uma maneira simples de ilustrar
a teoria do complexo de Édipo, que Freud está descn
volvendo. Lacan, por sua vez, sustenta que mesmo as-
sim poderíamos nos surpreender. O amor que Hamlet
tem por sua mãe iria ao encontro da autoridade do pai,
e de incitá-lo a matar Claudius. É para debatê-lo que
Freud analisa uma importante cena da peça, na qual
Hamlet tem uma entrevista com sua mãe.
Para essa entrevista, ele se preparou. Ele quer
adjurar sua mãe a tomar consciência do ponto em que
ela está, ele quer, diz Lacan, dobrar o ferro, "a adaga",
na sua chaga. É isso que ele começa a fazer. Ele chama
sua mãe à dignidade com vigor e crueldade, ele lhe
pede para não mais ir para a cama de seu tio. E isso
não se dá sem a intervenção do espectro: "Meta-se,
diz ele, entre ela e sua alma que está se dobrando."
Mas é neste momento que há uma recaída.
Hamlet, próximo a ganhar a partida, a abandona. Ele
entrega sua mãe a Claudius: "Deixe-se arrastar para a
cama desse rei luxurioso." Trata-se precisamente aqui
não mais de seu desejo, mas do desejo de sua mãe,
, - que Damlet aio age'/ Par que Dana tan tanto medo? 199

rnm o qual ele pode tão-somente consentir. Aliás, isso


1lá a Lacan a oportunidade de lembrar que o desejo do
homem é o desejo do Outro. É no Outro que o sujeito
l'ncontra os significantes que o fazem desejar e agir.
Além disso, se esse Outro é encarnado pela mãe, como
ele evitaria se dobrar a seu desejo?
Nós encontramos aqui o que, sem dúvida, cons-
lilui uma das principais torções por meio da qual Lacan
renova a clínica freudiana. Enquanto que em Freud a
neurose parece proceder de um recalcamento do dese-
jo do sujeito, ele mesmo ligado a uma interdição geral-
mente paterna, Lacan mostra com freqüência que é a
ausência do interdito que mantém o sujeito em sua de-
pendência primeira com o Outro, que o faz servo do
desejo da mãe.
Caro amigo, você considera essa generalização
muito apressada? Leia então os textos. Você verá que
é disso que se trata, nos mais diferentes casos, e isso
desde o início do ensino de Lacan. Por outro lado, eu
não me demorarei no que ele desenvolve a respeito de
Serguei Constantinovitch Pankejeff, o Homem dos lo-
bos, em 1952-53, antes do seminário propriamente
dito 1 • Esse texto situa inicialmente o pai, esse homem,
como carente. Sem dúvida, ele considera que o caso
de Serguei não se deixa facilmente ser enquadrado
como uma simples neurose. Mas nós havíamos debati-
do em nossas entrevistas e eu havia lhe dito que Lacan,
excepcionalmente, referira-se ao caso como
"borderline2 ". Você há de convir que, atualmente, re-
tomar esta questão nos arrastaria para longe. Nós da-
remos mais lugar, em contrapartida, à leitura de Hans.
Suponho que você conheça a história da fobia
de cavalos de Hans e do tratamento psicanalítico feito
por seu pai, que seguia as indicações de Freud. Aliás,
eu havia feito referência a essa questão no início desta
correspondência. Se você ler o texto de Freud você
200 Depressão, a neurose do contemporâmm

verá que seu comentário, no fundo, gira em torno ,h·


um esquema bem conhecido. "Por sua atitude em rl'la
ção a seu pai e a sua mãe, Hans confirma de manl'llil
flamejante e sensível tudo o que eu disse, em A int1·,
pretação dos sonhos e a Teoria Sexual, sobre as rela
ções das crianças com seus pais. Ele é verdadeiraml'II
te um pequeno Édipo, que gostaria de 'colocar de lad1, ·
seu pai, se desvencilhar dele a fim de ficar só com sua
bela mamãe, a fim de dormir com ela."
Como Lacan relerá a observação de Freud? 1~h·
vai considerar a que ponto o menino Hans podia Sl'
encontrar tomado no desejo de sua mãe, de uma 1mk
que o levava a todos os lugares com ela, da cama Ü!.
toaletes, considerando-o como uma parte de si mes
ma, como um simples apêndice. Em síntese, Hans cor
re o risco de permanecer falo de sua mãe, ainda mai!.
que o pai não desempenha verdadeiramente o papel dl·
interditor, que deveria ser o seu. A fobia, então, faz a
suplência da função de interdição, mas para que o me-
nino Hans não permaneça nessa posição fóbica, preci-
saria mesmo assim, que o pai desse um pouco mais de
si. Desde já, Lacan acentuará o que ele percebe como
sendo um apelo de Hans a seu pai: "Desempenha um
pouco melhor teu papel; seja um verdadeiro pai." Eis o
que Hans lhe diria. Logo, você concluirá que ele o faz
a partir de elementos bem restritos 3• Em meu entender,
isso não tira em nada o valor dessas análises e leva a
ponderar uma questão. Se Lacan pode desenvolver essa
tese a partir de elementos tão tênues, tão fragmentári-
os, não seria porque ao falar de Hans ele nos falaria,
igualmente, de nós mesmos? De nós mesmos quer di-
zer de sujeitos para quem o pai, mesmo sem ser com-
pletamente ausente, ainda é relativamente carente?
Digamos as coisas de outra maneira. Será que
Lacan, ao desenvolver esse tipo de idéias estaria ape-
nas iluminando uma clínica já bem conhecida? Ou será
Por que Hamlet não age? Por que Hans tem tanto medo? 201

que ele introduz uma clínica diferente, essa clínica con-


temporânea da qual nós nos ocupamos?
A propósito, eu prevejo suas reações. Quanto
ao que foi dito a respeito ao homem dos lobos, em
nossas discussões, você aceitou muito bem minhas te-
ses. Logo, você me dirá que o menino Hans é um fóbico
bem comum. Entretanto, nesse ponto é preciso subli-
nhar que a fobia já ocupa um lugar à parte, no campo
das neuroses. O que eu quero dizer com isso? Você
observará que muitos sujeitos passam por uma fase
fóbica, sem que isso permita prejulgar seu destino fu-
turo, neurose, psicose, ou perversão. Lacan, aliás, fala
disso como sendo uma rótula.
Mas talvez seja preciso, antes de mais nada,
distinguir duas formas, e ao mesmo tempo, dois tem-
pos da fobia. Eu evoquei, com o caso do menino Hans,
a idéia de uma suplência à operação da castração. Mas
isso é, sobretudo, verdadeiro para as fobias que, preci-
samente, comportam um objeto determinado que pro-
voca o medo: principalmente fobias de animais. Nes-
sas fobias, o perigo está bem circunscrito. Isso permite
ao sujeito não ficar muito entravado, exceto por al-
guns evitamentos. Em contrapartida, há outras fobias
(ou momentos anteriores àquele em que a fobia se fixa
em um objeto) nas quais o sujeito experimenta uma
angústia difusa e invalidante, porque ela lhe tira toda a
coragem de agir. Essa fobia "generalizada", eu consi-
dero próxima dos fenômenos de inibição e de impo-
tência, dos quais eu falo a você desde o início.
202 Depressão, a neurose do contempo"n•

Notas
1 Durante esses anos, Lacan sustenta um seminário para ai

guns analistas em sua própria residência. Esse não foi relo


madona edição oficial. Não obstante o encontramos em ul-
gumas publicações internas de associações psicanalíticas, por
exemplo, em um dos Documents da Association freudicnnl'
en Belgique.
2Ver a esse respeito CHEMAMA, R. Clivage et modernltt,
Toulouse, Éres, 2003, p. 116-24.
3 Lacan se refere a um diálogo entre Hans e seu pai (de 21 de

abril de 1908). Ora. é certo que no fim desse diálogo, Ham1


parece dizer a seu pai que ele deve ficar brabo. "Você ficu
brabo, eu sei. Isso deve ser verdade." Mas, nesse mesmo di-
álogo Hans desenvolve mais detalhadamente o fato de que
ele gostaria que seu pai se machucasse, o que lhe pennitiriu
ficar "um tanto sozinho com mamãe". Nessa perspectiva,
igualmente, a cólera do pai aparece mais como o objeto de
um temor do que como uma reivindicação. Entretanto, Lacan
privilegia algumas palavras do diálogo, que vão noutro senti-
do e que lhe permitem sustentar sua tese. Freud considerava
que se podia censurar a mãe de Hans "de ter precipitado 11
processo do recalcamento ao afastar com demasiada energia
os avanços da criança". Segundo ele, haveria para Hans, uma
castração insuportável. Lacan, ao contrário, sustenta que Ul'
cena maneira, o menino Hans pede pela castração, que ek
apela por um pai que poderia ser o agente desta castração
O saber do ber61 moderno

Caro amigo,

É verdade, minha última carta acentuou mais


as questões que se organizam em tomo da questão do
pai. Mais uma vez, elas não se reduzem a isso. Eu vou
tentar lhe mostrar.
Nas análises de Lacan a respeito de Hamlet há
ao menos um segundo aspecto que é importante. Acon-
tece que Hamlet, diferentemente de Édipo, sabe.
Sem dúvida, você considera a fórmula vaga e
enigmática. Contudo, verá que será preciso mantê-la,
aplicá-la ao herói ou ao sujeito moderno, e isso sob
sua forma mais geral, logo, mais abstrata.
Assim, comecemos por Édipo. Ele não recua
frente ao ato, e Lacan sublinha que, de certa maneira,
isso se dá ao abrigo de um não-saber. É sem sabê-lo
que ele mata seu pai e desposa sua mãe, realizando
assim seu trágico destino.
Hamlet, por sua vez, encontra-se noutra confi-
guração. O pai (o espectro) sabe como foi assassinado
e qual engano amoroso foi a origem desse assassinato.
E, pelo fato de sabê-lo, Hamlet também o sabe.
Em outras palavras, quanto às questões que ele
poderia se propor sobre o sentido de seu destino,
Hamlet tem a resposta. "O sentido do que Hamlet fica
sabendo por meio desse pai está aí, na nossa frente,
bem claro, é a irremediável, a absoluta, a insondável
traição amorosa." Sendo a partir desse saber que ele é
levado a agir.
Ora, não é dado que possa haver aí um verda-
deiro ato quando um saber anterior orienta inteiramente
204 Depressão, a neurose do contempcm\ttM

a ação. Com efeito, o ato sempre supút· 11111


franqueamento e um risco. Se fosse, de saída. 11,1,11
mente esclarecido, não seria um ato. Certamente h11\·1·
ria muitas outras coisas a dizer a respeito do qm· p111h
1

constituir um ato. Lacan fornece exemplos que niào ,1111


aqueles que se pensaria espontaneamente, mas qut· 1h1 1

pennitem sublinhar uma dimensão significante e 1111111


dimensão de repetição "em um só traço 1". É a~~1111,
quando eu trapaceio ... e digo: "Eu trapaceio." Pmt1111•
nesse momento o trapacear não é apenas um gt·~111
desajeitado. Isso se toma um mau passo, eventualmcnlt'.
com uma dimensão metafórica, que eu posso assu11111,
que pode ter um efeito de sentido. Mas eu ainda v11u
retomar a uma outra idéia, algo que Lacan dirá cm .~
lógica do fantasma e que sem dúvida surpreendeu\
você. Acontece que Lacan liga a noção de ato à dt•
Ver/eugnung.
A Ver/eugnung, você sabe muito bem o que é!
É o que se traduz por "recusa" ou "desmentido". Tam
bém é o que eu já lhe falei detidamente2• Havia lhe
mostrado que ela operava em numerosas estruturas
clínicas. Também havia lhe dito que Lacan se referia aí
à posição do analista. Eis que você cita um texto no
qual ele fornece uma dimensão do ato em si. Certa-
mente, essa referência conforta minha posição, mas
quase um pouco demais. Logo, é conveniente tentar
compreender.
Com efeito, parece-me claro que, se Lacan evo-
ca aqui a Verleugnung é porque ela está ligada a uma
clivagem, ou ainda (eu não vou retomar toda a ques-
tão do que, para ele, aproxima os dois termos) a uma
divisão. Lacan, efetivamente, nos diz que o sujeito está
representado no ato como pura divisão. Eu julgo com-
preender o que ele quer nos indicar. Por um lado, o
sujeito está no ato, mas, por outro, há o saber relativo
ao que poderia representar esse ato, saber que se man-
1~111 inacessível e que, ainda assim, é preciso ser levado
rm conta. Os dois não podem coincidir, sem o quê tudo
l'Nturia lá de saída, e não haveria aí, precisamente, ne-
nhum franqueamento. Então, você percebe em que o
nto de Hamlet se acha impedido. Realizar o que ele
,111be muito bem que deve fazer seria aceitar passar para
uma posição não dividida, uma posição na qual ele não
teria nenhuma chance, precisamente, de estar no ato.
Caro amigo, você me autoriza a demorar um
pouco mais nesta outra questão? Ela me obrigará a
continuar interrogando, mais precisamente, os textos
de Lacan.
O saber que Hamlet detém, Lacan o situa em
relação ao que denomina "significante da falta no Ou-
tro" e que ele escreve S (J(). Do que se trata? De certa
maneira nós já falamos disso. Uma vez que lhe falei
com freqüência, que o sujeito se constitui em uma re-
lação com os significantes, uma vez que também ne-
nhum significante vem lhe dizer o que ele é; pode-se
considerar que no Outro da linguagem sempre há um
ponto no qual falta a palavra para fechar a significa-
ção. Aqui, não há meios de dar conta da totalidade do
Outro. Lacan diz que "Não há Outro do Outro."
Ora, se retomamos alguns dos desenvolvimen-
tos de Lacan em O desejo e sua interpretação consi-
dero que haja uma ambigüidade. Quando dizemos que
Hamlet tem a resposta; que ele sabe que o amor é trai-
ção, então, como situaríamos essa resposta em relação
ao que constitui a questão central do sujeito que incide
em seu ser? Lacan ainda afirma que "A verdade de
Hamlet é uma verdade sem esperança." Mas em que
sentido? Seria apenas que não há Outro do Outro, que
não haveria resposta para a questão do ser? É uma pri-
meira leitura3• Mas há uma segunda. Acima de tudo,
afirmar que o Outro nos engana, de certa forma é dizer
que ele é enganador, dizer o que ele é. Além disso,
206 Depressão, a neurose do contemporânN•

S (/() é uma escrita que propõe justamente que não tu\


garantia de verdade. No entanto, dizer que o Outro e,
enganador não seria dizer algo diferente, ou seja, qu,•
haveria uma garantia da mentira?
Remeta-se, então, a esse capítulo do semin:'1
rio. De minha parte, penso que a segunda leitura~ a
mais verossímil. Entretanto, a primeira é possível, mas
eu não tenho muita vontade de discutir isso. Detl'r
me-ei em algumas conseqüências clínicas.
Uma vez que ele parte do teatro, Lacan opfü·
dois heróis. O herói do teatro grego que está frente a
um não-saber, e o do teatro "moderno", o dl·
Shakespeare, que sabe. Aliás, eu iria mais longe e sus
tentaria que o teatro de Shakespeare nos diz alguma
coisa sobre o sujeito moderno. Você vai objetar que cu
faço a modernidade remontar a muito longe; porém.
creio já ter-lhe dito que ela tem várias datas de nasci-
mento. A propósito, poder-se-ia cogitar encontrar em
um autor da importância de Shakespeare, já um pri-
meiro pressentimento desses ares do sujeito moderno,
de um sujeito que não se concebe mais como o joguete
de um destino desconhecido? Ele sabe que pode agir
sobre o mundo, à proporção que adquire um conheci-
mento científico, além de pensar que pode esperar um
conhecimento e um domínio de si, à altura do saber
racional. Entretanto, o paradoxo é que nesse domínio,
o saber, quando concebido como tendência a um aca-
bamento, mais do que abrir, ele fecha a estreita via do
desejo e da ação.
Você se perguntou em uma carta recente por-
que eu tanto insistia na questão da mentira, a ponto de
fazer dela uma categoria fundamental da clínica social.
Acontece que, para além dos desenvolvimentos mais
contemporâneos de nossa economia neoliberal, a ori-
gem da mentira deve ser situada bem antes. É a pró-
pria idéia que fazemos do homem da civilização cientí-
O saber do herói moderno 207

fica que tem algo de mentiroso. No entanto, o sujeito


moderno não consegue perceber essa mentira que dis-
simula os limites do saber, e não pode fazê-lo porque
ele é fundamentalmente cúmplice dessa recusa. Assim,
ele projetará o que ele experimenta dessa mentira ao
plano de toda a sociedade, ou de um grupo social par-
ticular. Além disso, ele acreditará que é por maldade
que lhe mentem e lhe enganam. Seguidamente falamos,
talvez você o saiba, de uma "paranóia" do sujeito mo-
derno. Ela é bem pertinente, desde que utilizemos esse
termo de maneira metafórica, e que não acreditemos
que, em nossa maior parte, sejamos psicóticos.

ftotaa

1 O leitor especialista se lembrará que essa repetição se dá no


nível do duplo bucle que Lacan inscreve como corte nas diversas
estruturas topológicas e, em particular, no cross-cap. Esse corte
modifica a estrutura assim como o ato modifica aquilo em rela-
ção ao que ele foi efetivado. O não-especialista poderá consultar
os verhetes "corte" e "cross-cap" em CHEMAMA, Roland;
VANDERMERSCH, Bernard. Dictionnaire de la psychana/yse.
São Leopoldo, Unisinos, 2007.
2 CHEMAMA, R. Clivage et modernité, Toulouse, Éres, 2003.
3 Ver a esse respeito SAFOUAN, M. Lacaniana. Paris, Librairie

Artheme Fayard, 2001, p. 125.


O deprimido é um masoquista'?

Caro amigo,

Você diz sentir-se um pouco perdido. Você está


bem perto de se interessar pela modernidade em geral
e pelas diversas patologias que ela favorece, mas você
não gostaria de perder de vista o que nos serve de fio
em nosso questionamento clínico, a interrogação so-
bre a depressão. Ora, o sujeito depressivo parece-lhe
bem diferente daquele que eu lhe falava em minha últi-
ma carta. Particularmente, ele não pretende ter acesso
a um saber. E, sobretudo, mais do que enganado, ele
se sente excluído, rejeitado.
Caro amigo, eu considero que a primeira parte
de sua observação é bem justa. A depressão coloca
questões específicas, não podemos reduzi-la a uma
reação direta aos discursos sociais. Quanto ao traço
clínico ao qual você quer, visivelmente, me fazer vol-
tar, parece-me interessante discuti-lo.
Efetivamente, encontramos com freqüência a
idéia de que o sujeito depressivo se sente excluído 1. A
experiência clínica o confirma a cada dia. Ele está pou-
co à vontade em qualquer lugar, diz que não tem um
lugar para si em parte alguma, que não o amamos, que
não o notamos. E, isso confirma o que no fundo ele
sabe tão bem: que ele não vale nada, que ele não é
ninguém, que ele não existe.
Esse sentimento de ser rejeitado, certamente,
se manifesta na transferência. O sujeito depressivo
freqüentemente reconhece sua exigência imperiosa e
totalitária de amor. Ele supõe que, por isso, será rejei-
21 O Depressão, a neurose do contempon\ttN

tado, como em sua vida ele tem sido, por exigênrn,, 1h1
mesma ordem. Certamente, há um círculo: ck p,·,h•
tanto mais amor quanto mais se sente rejeitado. l' 1'111
teme se fazer rejeitar quanto mais sua demanda pa11'\II
exorbitante. E esse círculo parece ter a função d,· 1111
mentar sem cessar seu sofrimento, o do miserável 111111
do pária.
Falaremos, então, de masoquismo e eu anl'dt
to que você também não está longe disso. Entrctanlo,
eu penso ser necessária maior precisão. De uma 11111
neira geral, fala-se um tanto facilmente do masoqu1"
mo, mesmo em situações nas quais não é disso Vl'rdu
deiramente que se trata. Se você procurar pode cnrn11
trar em A lógica do fantasma, de Jacques Lacan, 1111111
discussão de um livro de Edmund Bergler, que se d111
ma A neurose de base. Lacan diz que "é uma obra dt•
mérito." Eu não penso que isso seja apenas irônirn
Efetivamente, Bergler é um autor que ele cilu
freqüentemente em seus seminários, para discuti ·h1,
certamente, mas isso mostra pelo menos que ele 1hr
atribui algum interesse.
O livro de Bergler retoma, de maneira sistcmá
tica, uma grande quantidade de observações clínicas.
O fio que ele puxa, entre suas observações, é que ela~
remetem a uma camada ou uma estrutura profunda qul'
diz respeito à oralidade. Para Bergler, as "neurose~
orais" criam por si mesmas uma situação fundamental
e complexa na qual eles se sentem rejeitados, eventu
almente onde eles se fazem efetivamente rejeitar. Con ·
forme ele diz, são os "masoquistas psíquicos". De ai
guma forma, segundo Bergler, há uma lógica no pn,
cedimento deles, que Lacan lembra ao citar longamentl'
esse autor. Eu não vou retomar as citações, que você
encontrará no texto da lição. Mas talvez seja preciso
se perguntar no que a busca de um sentimento de sn
rejeitado teria relação com a oralidade.
O depbuldo é um llllll!IOCpdsta1 211

É Bergler quem descreve um recém-nascido que


quereria um leite autárquico, um leite que só depen-
desse dele. Se a mãe não responde imediatamente, eis
aí a ferida narcísica. Imaginemos milhares dessas feri-
das e isso arruinará, para a criança, seu fantasma de
onipotência. É sem dúvida isso que o introduz na situ-
ação de dejeto. Com efeito, as coisas são um pouco
mais complexas, porém, Lacan não retoma exatamente
o que Bergler chama de um ponto de vista genético.
Eu também não o retomarei. É-nos suficiente saber que
a criança viverá a rejeição como uma humilhação e se
colocará na situação de encontrar uma humilhação
libidinizada.
Por que será que me demoro nisso? É que isso
dará a Lacan a oportunidade de dizer coisas essenciais
quanto ao masoquismo, mas também, e talvez acima
de tudo, quanto à posição do analista.
Inicialmente está o masoquismo. Bergler o en-
laça com a busca do "ser rejeitado" ou ainda do "ser
repelido". É bem amplo o que conota aqui o termo
masoquismo. Trata-se da idéia da repetição de situa-
ções mais ou menos penosas, como se o sujeito aí
encontrasse uma satisfação. Está aí, diz Lacan, um
uso vulgar do termo masoquismo, uso que certamente
se encontra em alguns textos de Freud. Mas que, se
utilizados sem precaução serão "propriamente dito,
ruinosos".
Então, Lacan indica o que será necessário para
falar de masoquismo. Será preciso uma referência ao
objeto. O que especifica a posição do masoquismo, não
é que ele procure ser rejeitado, nem mesmo que ele
procure a humilhação, mas que ele procure se fazer de
objeto. Retomarei a isso mais tarde. No momento, fi-
quemos nas conseqüências deploráveis do uso impre-
ciso do termo masoquismo. Pode-se, com Lacan,
abordá-las a partir do livro de Bergler.
212 Depressão, a neurose do contempo11111 ....

Bergler se exaspera contra aqueles a qul 1111'1,


0

chama de os "colecionadores de injustiça". É assim q,11·


ele apresenta aqueles que se colocam na posi\'i\11 cli
sempre se fazer rejeitar. Percebe-se aí, um tipo de· ,,
priori. Como se fosse assim mesmo que valesse 111111"
em todas as circunstâncias, não ser rejeitado. Isso d,\ ,,
Lacan a oportunidade de nos interrogar, a nós anah~
tas, sobre nossos eventuais preconceitos. Quais ~n11
nossos preconceitos quando nós pensamos que é l111
çosamente masoquista, e que é preciso evitar, ser u·
jeitado?
O sujeito fracassou em seu casamento com l'S!\11
ou aquela; ele foi rejeitado; estamos certos de que 111\c 1
tenha sido uma sorte? Qual é esse bom senso imhl·nl
que nos leva a acreditar que sabemos o que seria hom
para o analisante? Aí há uma posição ética de evitm
que se acredite que se sabe, e que permite uma posi<;àl 1
de não-condução do sujeito, mesmo que, ao mesmo
tempo, nós devamos dirigir o tratamento2 •
Prossigamos. Será que a posição masoquista
no sentido de um masoquismo moral - pode verdadci
ramente ser situada em um "se fazer rejeitar", no senti-
do de um se fazer expulsar de uma certa posição, não
ter lugar? Isso, acima de tudo, é a posição comum do
sujeito do inconsciente.
Talvez você se pergunte o que eu quero dizer.
Você nunca prestou atenção, mesmo simplesmente a
partir de suas leituras, à maneira como o sujeito pode
experimentar em que posição paradoxal ele se encon-
tra quando algo do inconsciente se manifesta? Ele co-
mete um lapso, que lhe revela um desejo que operava,
sem que ele o soubesse, no texto de sua fala ou de sua
vida. Ora, mais do que de uma reapropriação, nessa
emergência, trata-se de uma sideração porque ele per-
de bruscamente o lugar onde ele acreditava se situar, o
fundo do pensamento sensato que o garantia de sua
O depdmido é um masoquista'? 213

existência. Ainda, podemos acrescentar que em rela-


i.:ão ao "eu não sou" estrutural, o "eu sou rejeitado" é
tão-somente um álibi. O sujeito que se sente rejeitado
talvez seja simplesmente o sujeito que está prestes a
experimentar que, para ele, no lugar mais essencial, o
de sua detenninação inconsciente, bem... ele aí não está.
Mais do que afrontar esse de-ser radical, ainda é me-
lhor acreditar que se foi expulso de algum paraíso ao
qual se teve direito.
Não há nenhuma necessidade de ligar o senti-
mento de ser excluído a algum masoquismo fundamen-
tal. Afinal, retomo a isso rapidamente, Lacan nos deu
elementos decisivos para tratar da questão do maso-
quismo. No masoquismo, o sujeito se faz objeto a, ele
se toma, na encenação de um fantasma agido, um objeto
dejeto, uma merda, ou ainda um cachorro maltratado,
um cachorro embaixo da mesa, no qual se dá eventual-
mente um pontapé. Você não vê que seria inexato di-
zer que aqui o sujeito está excluído? Ao contrário, ele
está absolutamente incluído, ele tem até mesmo uma
posição central no roteiro: a posição de dejeto.
Talvez você também repensará no que eu lhe
dizia em uma de minhas recentes cartas: que o sujeito,
na depressão, se percebe como uma merda; e que para
o sujeito melancólico é outra coisa, é que ele é real-
mente objeto a, objeto dejeto, e por isso ele se precipi-
ta pela janela. Porém, eu não misturo tudo: o maso-
quista está em uma outra posição que me fez falar, você
observou, de encenação ou de roteiro. Com efeito, no
masoquismo, há uma dimensão de representação, de
comédia endereçada ao outro, mesmo que isso possa
ir até os marionetes, 3 ao trash, raramente ao gore. E é
essa dimensão que poderá lhe ajudar a compreender o
que Lacan disse em A lógica do fantasma: que o per-
verso coloca questões ao gozo, e para levantar essas
214 Depressão, a neurose do contempor~n ..,

questões ele se coloca no lugar de objeto, mas cll' , , l111


através de sua atividade de sujeito.
A esse respeito, considere apenas o que sahr
mos de Sacher-Masoch. Ele não pára de dizer a Wa,11111
que ele quer ser seu escravo, sua coisa. Medianll" 11
isso, é ele que organiza sua relação segundo suas pr i'I
prias aspirações, e certamente diríamos, com suas pr 11
prias palavras, seus próprios significantes. Quanlo 11
wanda, ainda que não diga tudo de suas reações, l'ln
pareee embaraçada com o papel que deve descmp('
nhar, visivelmente, sem poder investir-se dell-,
subjeúvamente.
215

fllobla
1 Ver o artigo de LACÔTE, CH. "Avoir la grâce ou pas". Em le

trimestre psychanalytique - les dépressions névrotiques, Paris,


Association freudienne intemationale, nº 3, 1991. Sobre esse
assunto, Lacôte afirma que se o sujeito depressivo é rejeitado, é
fundamentalmente pela graça, aquela que "um Outro subjetivado
lhe rejeitaria". Esta análise me parece bem próxima daquela que
eu desenvolvia anteriormente, indicando em que fundo religio-
so (uma religião sem deus) se inscreve a depressão.
2 Todas essas observações não têm apenas um valor individual.

No coletivo, diz Lacan, sem dúvida há os que querem ser rejeita-


dos. Por exemplo, no Seminário XIV, A lógica do fantasma, 1966-
67, os vietnamitas querem ser rejeitados das benesses do capita-
lismo. Seria preciso considerá-los masoquistas? Isso significa-
ria nós mesmos sustentarmos o valor dessas supostas benesses.
Em síntese, o analista que pensa que em qualquer tempo e em
todo lugar o sujeito deve se organizar para encontrar sua posi-
ção no mundo existente, com suas coordenadas econômicas e
sociais, estaria politicamente mal orientado. Para Lacan, não
escapamos da política, pois para ele "O inconsciente é a políti-
ca". O seminário de Lacan data do momento em que os
vietnamitas procuram se libertar da investida americana. A his-
tória devia mostrar que rejeitar o tipo de benesses da exploração
capitalista não os levaria a um destino mais favorável, mas em
nosso mundo, é difícil rejeitar, ou se fazer rejeitar, por todas as
benesses ao mesmo tempo.
3Na televisão francesa os políticos são representados por mari-
onetes que são suas caricaturas. N. T
O desgosto

Caro amigo,

Eu considero bem fina a observação que você


me fez em sua última carta. Uma vez que acabo de
recusar a idéia de uma posição masoquista, no estrito-
senso, do sujeito deprimido, o que teria me levado a
me deter nessa questão? Não haveria aqui alguma in-
terferência concernente a outras preocupações? Em
síntese, se me perguntei, detidamente, sobre o sujeito
depressivo ser masoquista, talvez seja porque eu tive-
ra vontade de interrogar, de maneira mais ampla, a
questão do masoquismo no mundo contemporâneo.
Bem, é absolutamente exato. Não é de forma
alguma certo, como eu lhe havia dito que o deprimido,
em geral, seja masoquista. Mas nossa civilização, cer-
tamente, inclui traços desse tipo, uma vez que ela va-
loriza um gozo que tem relação com a invasão pelo
objeto. No entanto, antes de tentar mostrá-la, é preci-
so fazer uma outra distinção, entre o masoquismo per-
verso e o fantasma masoquista no neurótico. Com efei-
to, este pode perfeitamente continuar inconsciente;
porém, a sua maneira, não menos atuante. O perverso,
em contrapartida, presentifica uma relação bem parti-
cular com o objeto, e é nisso que ele lança luz em algu-
ma coisa que também existe no neurótico, em estado
latente.
Retornemos então ao nosso social. Atualmente
observa-se com freqüência, e com razão, que a mídia
dá muito lugar à violência, além de sua existência real
tão importante em nosso mundo. Sem dúvida, existe aí
uma resposta a uma demanda, uma vez que também a
218 Depressão. a neurose do contemporân~,

mídia, em geral, não corre riscos. Mas de que natu1w11


é esta demanda? Visivelmente não se trata apenas d,•
um cuidado com a informação que não incitasse a ta1"
ruminações. Aliás, não podemos acreditar que. p, 11
exemplo, o telespectador, possa gozar com a violênr 1a
pela identificação com o carrasco. A prática da anál i M'
mostra que freqüentemente o sujeito recua frente a11
que, nele mesmo lhe parece mais cruel. Por outro lad, 1,
ela confirma a possibilidade de uma identificação in
consciente masoquista que se vê tão bem em opera~ü,,
em certo tipo de tropismo político.
Pense um pouco, eu lhe peço, na maneira como
nós participamos por identificação dos conflitos mun
diais; na maneira leviana como tomamos posição. No
fundo, sabemos que freqüentemente há fomentadores
de guerra nos dois lados. No entanto, temos tendênóa
de simplificar. Nós decidimos que um dos campos é o
da vítima, e o sustentamos, ainda que isso possa vir a
caucionar atos criminosos do campo que nós escolhe-
mos para sustentar. Por vezes, essa sustentação da opi-
nião não deixa de ter relação com uma escala interna-
cional. Bem, nós ganhamos! Ao final das contas, nosso
masoquismo inconsciente nos terá permitido dar uma
boa mão a grupos, a um poder, que vão reinar de ma-
neira cruel e despótica. Para tomar apenas um exem-
plo, não muito recente, é paradoxal que um intelectual
com o valor de Michel Foucault tenha sustentado
Khomeiny.
Além disso, existe apenas o horizonte interna-
cional. Quando eleições se apóiam no tema da segu-
rança, o que isso quer dizer? Certamente, há uma rea-
lidade da segurança. Mas, ainda com mais freqüência
há, assim como o chamamos, um sentimento de inse-
gurança. Ora, podemos nos perguntar o que desenca-
deia esse sentimento, mesmo assim, uma força por ve-
zes desproporcional, como se tivéssemos uma propen-
O desgosto 219

são a ressoar em nós tudo o que evocasse uma violên-


cia que nos pudesse ser feita. Também sem deixar de
ter conseqüências, isso confortará os partidos mais
autoritários.
Você me dirá - eu o conheço - que aqui eu
retomo a uma apresentação trivial do masoquismo,
aquela que acentua mais a busca do sofrimento, seja
ela uma busca inconsciente, do que o estatuto do objeto.
Eu não creio nesse último caso. Porque os sujeitos que
se mantém ligados à denúncia fascinante da violência
são freqüentemente os mesmos que só podem ver o
mundo por meio de um prisma, no qual eles estão sem-
pre na posição de objetos, manipulados ou enganados
pelo poder, assim como brutalizados por figuras mais
ou menos imaginárias que povoam seus temores.
Além disso, é preciso acrescentar que no que
tange ao fantasma inconsciente, não encontramos ne-
cessariamente uma identificação clara e unívoca com o
objeto. Os papéis podem se permutar, aliás, como eu
deixo entender quando digo que a identificação com a
vítima pode conduzir à sustentação do carrasco.
No fundo, a questão diz mais de uma invasão
pelo objeto, que fará com que o sujeito fique colado a
ele. Logo, não é forçosamente o objeto que imaginá-
vamos, aquele de um consumo mais ou menos tranqüilo,
mas é verdadeiramente um objeto especificado como
um objeto a, e notadamente um objeto de desgosto.
O objeto a, eu diria aqui, podemos apreendê-
lo, da maneira mais clara, em certas tendências da arte
contemporânea. Eu penso, de uma maneira bem am-
pla, em todas essas correntes que propõem uma repre-
sentação - ou melhor, uma apresentação - do corpo
cortado, entalhado, automutilado. Quando Gina Pane
ou os ativistas vienenses infligem a seus próprios cor-
pos cortes ou escarificações; quando Orlan realiza so-
bre si própria operações cirúrgicas repetidas, que trans-
220 Depressão, a neurose do contemporâ111'!u

formam seu rosto, ao implantar, por exemplo, pe4t1l'


nos cornos, você não pensa que aqui existe, em ali 1,
uma tentativa para ir além do corpo imaginário, da
imagem mais ou menos idealizada do que nós chama
mos de i(a) 1? No fundo, uma tentativa de realizar e,
perimentalmente algo como produção do objeto a
comumente dissimulado?
Que o objeto a seja mais freqüentemente espl'
cificado como objeto dejeto, objeto de desgosto, tcn·
mos uma idéia bem precisa seguindo a demonstraçãi 1
que Jean Clair fez concernente à arte contemporânea
em De immundo2• Esse livro formiga de exemplos, 1·
não saberíamos por qual optar, se o próprio autor nàl 1
tivesse escolhido inicialmente dar conta do que talvr,
seja o mais insustentável. Ele relata, de imediato, o
encontro, em um livro consagrado ao artista David
Nebreda, de uma fotografia em especial. O livro Sl'
chama Auto-retratos e um desses auto-retratos repre-
senta o rosto do artista inteiramente recoberto, e cu
cito para você a própria frase de Jean Clair, "de uma
matéria amarela e castanha que não deixa nenhuma
dúvida a respeito de sua natureza3". O conjunto da obra
mostra o lugar que atualmente assume, um tipo de arte
do desgosto que se opõe àquilo que, durante séculos,
valeu como gosto. O gosto está ligado a reminiscênci-
as de impressões vinculadas à cultura, a sensações
educadas, sublimadas, distintas das sensações brutas e
essas sensações estão, elas mesmas, fundadas no prin-
cípio de distinção. Nem tudo se equivale. Poder-se-ia
dizer, em contrapartida, que é devido a tudo se equiva-
ler, que nosso mundo é tão "depressiogênico".
Você bem desconfia que eu não esteja lembran-
do tudo isto para rejeitar, em seu conjunto, as formas
contemporâneas da criação artística. Para dizer a ver-
dade, parece-me que, mesmo nas derivas mais chocan-
tes, elas ainda têm a função de dizer alguma coisa de
Odagosto 221

nosso mundo. Você conviria comigo que elas princi-


palmente ajudam a apreender aquilo que chamo de
clima depressivo em operação em nosso social4 • Com
efeito, como não ser depressivo quando certa forma
de presença do objeto faz o homem sentir que ele
não passa de dejeto de um dejeto? Assim, você vê
que nosso desvio pelo masoquismo talvez não tenha
sido em vão.
Uma vez mais eu tomo as coisas a partir do
social, mas você notará que nós reunimos uma obser-
vação que fiz para você, em uma de minhas cartas, a
respeito do indivíduo deprimido. Efetivamente, eu ha-
via indicado a que ponto o objeto a era invasivo para o
indivíduo deprimido, quer ele se perceba uma merda,
quer ele sinta sobre si, de maneira insuportável, o olhar
desvalorizador do Outro. Isso me propiciará a oportu-
nidade de abordar ainda uma outra questão.
O que a experiência nos ensina, e que Lacan
teorizou, é que uma vez que o objeto a se perfila na
realidade (geralmente ele está separado), uma angús-
tia não deixa de se manifestar pelo lado do sujeito. Aqui,
é esse o caso, o que você entenderá perfeitamente em
relação ao olhar do Outro, mas devo dizer-lhe que isso
me colocou um pequeno problema.
Por longo tempo pensei que seria preciso dis-
tinguir, de maneira bem estrita, entre a angústia e a
depressão. Em particular, nas primeiras entrevistas,
parecia-me importante não confundi-las. Se a depres-
são se definia como inibição radical do desejo, a an-
gústia, precisamente por ter relação com o objeto a,
que é o objeto causa do desejo, me parecia se manifes-
tar no caminho de uma elaboração desse mesmo dese-
jo. Atualmente, não estou mais certo disso. Parece-me
que, por razões que já falei longamente a você, quando
o sujeito está privado da possibilidade de formar o seu
222 Depressão. a neurose do contemporâneu

desejo, o objeto a se reduz a signo do gozo do Outro,


um gozo doravante devorador.
No plano teórico será suficiente opor essl'
objeto invasor ao objeto recortado pela operação fálica?
Não lhe escondo que fiquei mais tentado a propor um
outro modelo teórico ou topológico, e de opô-lo ao
objeto a, tomado no enodamento borromeano. Fa,o
alusão a uma tardia elaboração de Lacan. Mas, conH,
ela também é bastante complexa, permita-me diferir o
momento de falar disso.
Terei oportunidade de retomar, de uma outra
forma, a questão do masoquismo. Inicialmente eu ain-
da deveria fazer um desvio que se refere à questão do
pai. Isso ficará para as próximas cartas.
Odmgosto 223

1 Nós designamos por i(a) a imagem na qual o sujeito se reco-


nheceu, e que se tomou o objeto de um investimento narcísico
ligado, geralmente, pela afetação social do corpo, no nível da
manutenção ou da vestimenta. O corpo metafórico, o corpo soci-
al, o corpo vestido é em si uma vestimenta. Ele veste e dissimula
o objeto a como objeto da pulsão. Em um de seus seminários, A
angústia, Lacan escreveu que uma expressão tal como "é a teu
coração que eu quero" funciona, no inconsciente, ao pé da letra.
Se o amante quer o coração da amada, é também porque ele
quererá possuí-la por inteiro, pedaço por pedaço. Se ele quer seu
coração é também como tripa. Está claro, certamente, que um
recalcamento atinge as pulsões sádicas ou canibais. A experiên-
cia perversa sempre mostra que elas são partes integrantes das
virtualidades humanas. E não podemos negar que a arte do sé-
culo XX também fornece disso uma ilustração abrangente.
2 CLAIR, J. De Jmmundo. Paris, Galilée, 2004.
3 Ao longo de seu livro, Jean Claire faz referência a outros exem-
plos, um pouco menos insustentáveis. Poder-se-ia observar, prin-
cipalmente, o do artista Tracey Armin que recebeu o Turner Prize,
importante prêmio artístico na Inglaterra, por "sua própria cama,
maculada de urina, coberta de camisinhas usadas, testes de gra-
videz, de roupas íntimas usadas e de garrafas de Vodka, cama na
qual ele havia passado uma semana em um estado de depressão
devido a um rompimento". Encontramos aqui o dejeto ligado à
depressão.
4 Catherine Grenier recentemente consagrou uma obra muito

interessante, Depressão e subversão (Dépression et subversion.


Paris, Centre Pompidou, 2004.) às relações entre a vanguarda e
a posição depressiva. No capítulo intitulado "L 'avant-garde.for-
me dépressive de la modernité" ("Vanguarda, forma depressiva
da modernidade"), ela escreve que "o espírito da vanguarda traz
em si uma invalidação da forma, alienada ou anestesiada por
um empreendimento de desestruturação e de desencanto". Sem
dúvida, podemos aproximar essa invalidação, ou ainda esta "cor-
rosão" da forma, daquilo que evocamos a respeito de um
franqueamento da imagem i(a). Não nos surpreenderemos quando
no capítulo seguinte, "Le monstre et le cloaque" ("O monstro e a
cloaca"), C. Grenier evocar obras nas quais a dimensão do dejeto
está claramente localizável.
Caro amigo,

Vo]to então a meu "desvio". A bem da verdade,


posso partir de um dos temas de minha carta prece-
dente, o d~ uma invasão pe]o objeto. O que é que per-
mite ao sujeito não ser de tal forma invadido pe]o
objeto? Eu Jhe direi que, de certa maneira, é a função
do pai, que eu retomarei hoje a partir de um novo tex-
to de Lacan, mais tardio do que os outros que mencio-
nei para você até o presente.
Esse texto se encontra no seminário RSI de
Jacques Lacan, precisamente na Jição de 21 de janeiro
de 1975. De imediato, cito algumas linhas mantendo
sua forma bem "oral": "Um pai não tem direito ao res-
peito, nem ao amor, que esse dito, dito respeito, dito
amor, os senhores não irão acreditar no que ouvem, é
pere-versement1 orientado, quer dizer, faz de uma mu-
lher objeto a, que causa seu desejo. Mas o que essa
mulher, enquanto objeto a, colhe - se assim posso me
exprimir- não tem nada a ver com a questão! Aquilo
com que ela se ocupa são outros objetos a, são os fi-
lhos junto aos quais, aliás, o pai intervém[ ... ]".
O que dizer desse texto? De saída, ele diz res-
peito à função paterna. Mas eu diria que o texto a abor-
da diferentemente do que Lacan havia feito nos textos
anteriores. Naqueles. você bem sabe, Lacan começa a
instalar a relação mãe-filho, o risco de que o filho seja
totalmente tomado pelo desejo da mãe e a necessidade
de que um terceiro intervenha nessa relação. O pai é
situado a partir da mãe. A simbolização do Nome-do-
Pai é o lugar que a mãe dá à fala do pai. Pode-se, certa-
226 Depressão, a neurose do contemporâneo

mente, seguir, desde os primeiros textos, a posição qul'


ela dá a seu desejo, mas não é sempre disso que se trata.
Você sente que nós partimos de um outro pon
to. Partimos de um pai que toma uma mulher comi 1
objeto a, como causa de seu desejo. Talvez você j,i
perceba que a função do pai não se reduz mais ao ofí
cio de terceiro. Tudo se passa como se ele tivesse uma
tarefa que não se depreciaria totalmente naquela qm·
geralmente se lhe dá, a de interditar ou de ser aquck
que invocamos quando se trata de interdição.
Você me dirá - eu estou certo que você já pen
sou nisso - que tudo isso é apenas uma retomada d1,
tema do pai real, aquele que tem o trunfo e que pmk
transmiti-lo. É verdade que esse texto vai ao encontro
disso. No entanto, também vai além, tomando de cm
préstimo outras vozes.
Talvez, você inicialmente considere - pelo me
nos quanto a mim, isso me emperrou por um bom tem
po - que é curiosa a construção da primeira frase dl·
Lacan: "Um pai somente tem direito ao respeito se esse
respeito lhe é devido por uma mulher que causa seu
desejo". Em sentido estrito, se o compreende, não é o
respeito que lhe é devido por uma mulher! Há um de
sejo de um homem por uma mulher, e esse desejo, di1.
Lacan, pode criar um pai, um pai no sentido forte, com
a dimensão do respeito que isso provoca no filho. Eu
tão, de onde vem a elipse que coloca em primeiro pia
no o respeito filial? Bem, nesse ponto, eu seguiria uma
observação que Jean-Pierre Lebrun me fez em BruxL'
las, a saber, que a pere-version (uma vez que é disso
que se trata) é um termo que é de imediato uma qucs
tão do filho. Sabemos que Lacan insistiu muito na ini
bição que podia resultar para o sujeito uma confronta
ção com o desejo da mãe. Fica, por exemplo, bem da
ro quando ele fala de Hamlet. Aqui temos uma n 111
frontação do sujeito com o desejo do pai.
227

Basicamente, como compreendemos esse tex-


to? Ele nos diz que, prioritariamente, o pai não é aque-
le que cuida dos filhos, muito menos o educador que a
psicologia comum levaria a crer. Certamente, ele "in-
tervém" junto aos filhos. Mas, para o filho, ele inicial-
mente só vale como pai, se ele fizer da mãe um objeto
a. Entendamos que sua função é fazer de sua compa-
nheira, não a "parceira" da existência social, mas aquela
que antes de tudo vale como causa de seu desejo. É
apenas com essa condição que ele poderá dar a sua
prole alguma idéia do que diz respeito ao dito desejo.
At:rescentarei de bom grado que ele dará a seu filho, e
sem dúvida também a sua filha, a coragem de desejar.
Você apreendeu ao longo de minhas cartas que isso
não é óbvio.
Tudo isso já é importante e mereceria que nos
detivéssemos. Para começar, talvez você se pergunte
o que eu queria dizer quando afirmava que o pai tinha
por função proteger o sujeito da invasão pelo objeto.
Bem, isso não é muito difícil de conceber. Se o pai é
aquele que toma o seu lugar no desejo, que afronta a
questão proposta por quem vale como causa do dese-
jo, então, o sujeito não ficará entregue sem proteção
ao gozo do Outro. O que eu quero dizer é que à medi-
da que isso não se dá, será insustentável a relação com
o objeto a. O olhar amoroso que a mãe deposita em
seu filho se transforma facilmente em olhar devorador,
além disso, ele organiza um campo que é mais o de um
gozo sem limite do que de um desejo em vias de cons-
tituição. Fazer face a isso supõe, sem dúvida, uma ope-
ração bem mais complexa do que aquela que consiste
em se fazer "terceiro", suporte mais ou menos ativo de
uma interdição.
Em todo o caso, quase todas as vezes que eu
pude escutar sujeitos depressivos, aqueles que
notadamente estavam mais invadidos pela angústia, bem
228 Depressão, a neurose do contemporânec,

depressa eu aprendi que, pelo lado do pai, havia algu


ma coisa muito problemática. Evidentemente, eu nüo
quero simplificar por demais, porque os casos podem
ser bastante diversos. Mas eu diria que os pais desse~
sujeitos podiam estar presentes na casa e ser amoroso~
com seus filhos, cuidadosos com sua educação. No
entanto, por alguma razão, eles se achavam aparente
mente impedidos de desejar sexualmente sua mulher.
ou de serem desejados por ela. De fato, eu já disse iss, 1
a você. Mas o que hoje acrescento é o peso da angús·
tia que essa configuração pode veicular.
Eu terminarei, se você assim o quiser, com dua~
questões. A primeira, você mesmo propõe: Por que
Lacan, nessa passagem, fala de um amor pere··
versement orientado? Por que ele equivoca com a idéia
de uma perversão, no sentido em que esse termo re-
meta prioritariamente a uma estrutura clínica? O pai,
para ser verdadeiramente pai, deveria ser perverso?
Poderíamos tentar nos livrar dessa primeirn
questão, banalizando-a. Ocorre que a mostração do
objeto causa do desejo tende, de uma certa forma, a
fetichizá-lo. A mostração o presentifica, ela lhe dá for-
ma visível, diremos que ela o positiva. Mesmo que o
pai não assuma a posição de exibir seu gozo, o simples
fato de indicar alguma coisa de seu desejo, com bas-
tante nitidez para que o filho o perceba, teria, então,
uma conotação perversa, não no sentido em que ele
mesmo seja perverso, mas no sentido em que o meca-
nismo em operação na perversão, de certa maneira, é
mobilizado, no sentido em que ele não pode não sê-lo.
Talvez, entretanto, não possamos nos conten-
tar com essa resposta. É ai que intervém uma segunda
questão que você só poderia se fazer se tivesse, dos
textos de Lacan, um conhecimento maior do que aquele
que cu lhe atribuo. No ano seguinte ao RSJ, o do semi-
nário sobre O sinthoma, parece-me que Lacan dirá bem
229

outra coisa quanto a que dizia no ano precedente. O


que encontraremos na lição de 10 de fevereiro de 1976?
Lacan, nesse segundo texto, fala novamente da
pere-version. Na verdade, ele começa a situá-la na es-
cala da relação pai-filho. Mas sem se explicar
detalhadamente sobre essa nova formulação, ele intro-
duz um tema que certamente não se esperava, o do
sadomasoquismo. Aliás, eu não lhe direi nada de um
outro tema ao qual este está articulado, tema que, por
meio de Joyce, remete à questão do redentor. O que
mais me importa aqui é que Lacan parece querer falar
de certa percepção da relação entre pai e filho, que
sairia do sadomasoquismo, quer dizer, de uma polari-
dade que os levaria, tanto um como outro e distribuiria
os papéis, e sobre a qual ele afirma "O sadismo é para
o pai, o que o masoquismo é para o filho.'' 3
Você vê o que se passa aqui. O tema da pere-
version parece mudar totalmente de função. Se, no tex-
to do ano precedente, o pai napere-version protegia o
filho de um excesso de gozo, nesse texto ele parece
confrontá-lo a um gozo masoquista. Com efeito, nós
havíamos dito que no masoquismo se trata de um gozo,
desse gozo que o sujeito pode retirar de sua transfor-
mação em objeto, e pelo menos de sua passividade,
que Lacan evoca nessa nova passagem.
Como, diabos, nós poderíamos compreender
esse deslizamento? Por hoje, eu o deixarei nesse
enigma.
230 Depressão, a neurose do contemporilne.•

1 Termo proposto por Lacan que em francês joga com a

homofonia: perversion (perversão) e pere-vesion (pai versão,


versão do pai). N.T.
2 Neologismo criado por Lacan. Em francês se escuta também
perversamente, tnas Lacan joga com a homofonia com a palavra
pai. Pere,perversion e versement. Cf. le Petit Robert, Versement
significa a ação de verter dinheiro, fazer um depósito, prover de
fundos uma conta. De maneira figurativa também significa con-
fiar, entregar, aplicar. N.T.
3 Vale uma referência ou uma nota dizendo que as citações saí-

ram todas da mesma fonte que já aparece no texto


IJm pai Ylolador'l

Caro amigo,

Espero que você não tenha perdido de vista o


ponto em que havíamos ficado. Tratava-se de confron-
tar - para certamente tirar disso alguns ensinamentos
- dois tex,tos de Lacan, extraídos de dois seminários
consecutivos. Se em RSI o pai, na pere-version, prote-
ge o filho de um excesso de gozo, em O sinthoma ele
parece confrontá-lo a um gozo masoquista. Que senti-
do dar a esse deslizamento?
Bem, eu vou lhe confessar que não sei muito
bem como responder 1• Antes eu diria que a dificuldade
para conceber o que se passa aqui leva a mudar, de
alguma forma, de terreno. Agora, eu lhe proporei ten-
tar responder, não a partir do texto, que, aliás, é pouco
explícito, mas a partir de nossas questões contemporâ-
neas.
Acredito que você tenha apreendido a impor-
tância da pere-version para o filho. Poderíamos desde
já conceber que, aí, ele possa, de alguma maneira, ape-
lar para apere-version? No adulto em análise, em todo
caso, numerosos sonhos indicam claramente a impor-
tância que pode adquirir um pai que se acordasse mila-
grosamente de uma passividade na qual a mãe o confi-
nava. Mas como cogitar o que pode se passa, quando
nada responde a tal chamado?
A questão, note bem, não é apenas individual.
Nós falamos bastante do descrédito inserido,
atualmente, na afirmação da virilidade. Isso não impe-
de que essa afirmação possa ser esperada de um pai. A
não ser que ela seja recusada no mesmo tempo em que
232 Depressão, a neurose do conternponinro

é secretamente esperada, o próprio sentido do cha11111


do será desconhecido. O pai, imaginariamente. nã<, Sl'l 11
mais potente, mas terrível; ele não será mais aq11l'll·
que pode desejar uma mulher, mas aquele que pod,·
submetê-la a seu gozo.
Em um artigo recente,2 eu tentei mostrar q11,·
pelo fato de nossa modernidade não deixar mais IH'
nhum lugar a uma autoridade reconhecida como tal.
ocorrerá aí uma quantidade de efeitos paradoxais. l'
notadamente o retomo de um pai despótico, na cult11
ra, nos romances e nos filmes. Uma espécie de ogro Sl'
você quiser, que devoraria não apenas as mulheres, mas
também seus próprios filhos.
Por que um ogro? Fiquei intrigado, em 200-'.
com a reedição de uma obra datada de 1973, O ogm.
de Jacques Chessex. Aliás, aprecio esse autor, mas cu
não pensava que essa reedição tivesse o efeito de fazl'I'
dele, de alguma forma, um clássico do romance con -
temporâneo. Parecia-me mais que ele adquirira todo o
seu alcance porque o tema do livro falava ao leitor dl·
2003, mais do que ao de 1973. Trata-se da vida de um
homem entravado pela imagem de um pai que tanto
vivo como morto tem um peso insuportável. Esse
"ogro, tem um apetite brutal pela vida e pelas mulhe-
res, por exemplo, ao ponto de seduzir a jovem que
ama seu filho; no entanto, o faz de maneira bem discre-
ta. Será que é isso que se toma a pere-version quando
a paternidade não comporta mais legitimamente adi-
mensão da virilidade? Eu quero dizer: será que por
desacreditarmos dela, o pai se toma um violador em
potencial?
Note o que eu tento lhe dizer: se atualmente há
um declínio do pai simbólico, será um pai imaginário,
mais ou menos terrível, que poderá tomar-lhe o pró-
prio lugar, do qual ele desapareceu.
Um pai \li.ola.dor? 233

No entanto, talvez você se interrogue. O pai


terrível, ainda é o pai da pere-version, aquele que re-
presenta o gozo sexual? Nós poderíamos simplesmen-
te nos encontrar na presença de um dos aspectos mais
banais de nosso discurso social. Aquele que, no mes-
mo momento em que se enfraquece a referência ao pai,
paradoxalmente lhe dá um tanto de consistência, como
se precisássemos ver os pais como tiranos para melhor
podermos nos desfazer deles. Assim, o pai seria lem-
brado até.º momento em que desaparecesse. No en-
tanto, esse não seria necessariamente o pai gozador,
mas sim aquele que se opõe ao prazer, ou ao desejo de
sua prole.
Eu não negarei, caro amigo, que essa dimen-
são também existe. Aliás, no mesmo artigo, eu evoco
um outro sucesso desses últimos anos, um filme brasi-
leiro contemporâneo, Abril despedaçado, que conta a
história no interior do país, de duas fann1ias que não
cessam de brigar, cada morte devendo ser vingada de
uma maneira ritual: quando amarela o sangue na cami-
sa do defunto, seu irmão deve matar o assassino para
que, a seguir, ele mesmo seja assassinado. Nesse filme,
o pai encarna uma lei arcaica, uma lei que interdita aos
filhos o amor e o gozo sexual (como eles teriam o di-
reito de chegar a isso se está jurado a uma morte pre-
coce?) e o espectador é claramente convidado arejei-
tar essa lei. Certamente, nós também poderíamos re-
pensar esse pai tirano como aquele que se chocou
Kafka, pois falamos disso há algum tempo, e sua Car-
ta ao pai poderia no fundo, ser lida como uma das
primeiras denúncias modernas de um pai inicialmente
desacreditado.
Penso que seja preciso deixar, em nossa análi-
se, um lugar bem específico para a imagem de um pai
que não seja apenas um tirano familiar, mas um pai
234 Depressão, a neurose do contemporâneo

violador. Com efeito, é essa figura que reaparece cada


vez mais nos discursos sociais, como também n,,
conteúdo de certas demandas de análise.
Você ouviu falar da maneira como, além-Atlân-
tico, nos últimos decênios, certos terapeutas ficaram
conhecidos por um modo de intervenção bem sistem.í-
tico? Para todas as perturbações neuróticas que eles
tinham de tratar, eles se esforçavam para encontrar.
metidos no inconsciente de seus pacientes, um
traumatismo sexual - correndo o risco de forçá-los ü
evocação por alguma sugestão. Não estamos neste
ponto, mas desde que se desenvolveu um determinado
discurso sobre a pedofilia, por exemplo, nós ouvimos
cada vez mais analistas, para tentar explicar suas difi-
culdades, se fixarem na suposição de que elas devem
ter sido vítimas de tais maquinações. Eu não digo que
isso deva ser sempre excluído, mas eu lhe garanto que
esta explicação genérica, necessariamente não lhes fa-
cilita sua exploração daquilo que suscita seu mal-estar.
O caso mais caricatural é o da reinterpretação, em ter-
mos de agressão sexual, do que recentemente fora des-
crito como simples jogos sexuais, entre uma menina e
seu primo um pouco mais velho.
A propósito, eu terminaria nisso - o que é sem
dúvida muito importante - mas nisso que designaría-
mos como traumatismo sexual, sobretudo onde se tra-
ta de incesto? Na verdade, os ensinamentos do trata-
mento aqui são bem claros. O mais insuportável é o
momento em que o pai, o avô, o tio, deixa de ser aque-
le em quem se depositava a confiança. Pior do que aque-
le que introduz uma sexualidade repugnante, doravante,
ele será aquele que não está mais em condições de cons-
tituir uma proteção, justamente onde a mocinha esta-
ria no momento de questionar o desejo, e o sentido do
sexual. Logo, ainda que o autor da agressão não seja
um membro da família, o pai - assim como a mãe -
Um pai violador? 235

poderá não ser mais um recurso se, por exemplo, ele


não quiser realmente reconhecer do que sua filha foi
vítima. Então, ela se encontrará em um estado de de-
samparo que vai muito além daquilo que chamamos
geralmente de traumatismo.

1 É verdade que existe, a respeito dessa questão da pere-version,


ao menos uma terceira referência importante, que também se
encontra no seminário O sinthoma, mais precisamente na lição
de 11 de maio de 1976. Lacan se pergunta até onde vai a pere-
version. Ele a relaciona com o fato que Freud faz girar tudo em
tomo da função do pai e acrescenta que o amor que se endereça
ao pai deve-se ao fato dele ser portador da castração. Contudo, a
passagem do seminário datada do mês de fevereiro poderia ser
levada a essa outra passagem mais tardia? Isso não é certo por-
que o tema da castração, que, aliás, está em atraso em relação ao
avanço do ano precedente a respeito do desejo do pai, não se
interpreta necessariamente em tennos de sadomasoquismo. Essa
última passagem adquire sentido, sobretudo, em relação a uma
outra questão, a da possibilidade de dispensar o Nome-do-Pai,
questão à qual nós teremos de retomar.
2 CHEMAMA, R. "L'ogre et /e torero". Apertura, nº18, Mots

d'ordre, Toulouse, Éres, 2004.


O deumparo, a morte

Caro amigo,

Você com razão salientou a expressão: "estado


de desamparo". Pareceu-lhe que ela anuncia um novo
desenvolvimento e que para mim, em todo caso, ela tem
um valor conceituai. Mas do que ela deve dar conta?
Bem, eu ainda posso lhe ensinar alguma coisa,
apesar das leituras que atualmente você multiplica! Esse
"estado de desamparo", eu não o inventei. Ele se en-
contra em Freud (Hilflosigkeit, em alemão). Ele desig-
na inicialmente o estado do lactente que depende da
mãe para a satisfação de suas necessidades vitais. Mas
é preciso saber que Freud lhe confere uma considerá-
vel importância antropológica: uma vez que o ser hu-
mano nasce prematuro, inacabado, os perigos do mun-
do exterior são maiores, e aquele ou aquela que o pro-
tege adquire um enorme valor. Segundo Freud, é isso
mesmo o que cria "a necessidade de ser amado, que
nunca abandonará o homem 1". Concebe-se o cataclis-
mo que se produz quando o pai ou a mãe não desem-
penham mais o papel protetor que é esperado deles.
Sem dúvida você sabe que também Lacan dá
um lugar determinante à prematuração do ser humano.
Para ele, a incoordenação motora dos primeiros meses
de vida entrega o lactente a uma experiência de esface-
lamento que apenas a assunção de sua própria imagem
no espelho temperará. No entanto, o Outro intervém
sob a forma do adulto que confirma à criança o reco-
nhecimento dela, e esse dito é, sem dúvida, a primeira
das proteções.
238 Depressão, a neurose do contemporâncn

Entretanto, é preciso reconhecer que o encon


tro do Outro também não se dá sem certo desamparo
Se a linguagem organiza o mundo para o filhote, ela 1,
faz ao preço de - nós o dissemos freqüentemente
deixá-lo na incerteza quanto ao que diz respeito ao seu
próprio ser2. Apenas a função simbólica da lei, uma
vez que nós a designamos como função paterna, dl'
certa maneira, estabiliza o universo do sujeito. Encon
tramos, desde já, o que não temos cessado de descre-
ver: aquilo que chamamos de depressão não passaria
de uma forma acentuada, patológica de um estado de
desamparo, do qual cada um de nós precisou Sl'
premunir. Talvez tudo isso também deva nos introdu-
zir no tema da morte. Efetivamente, é dela que se trata
no perigo primordial, evocado por Freud, e, sem dúvi-
da, é hora de dizer em que posição eu a situo na de-
pressão.
Basicamente, se poderia dizer que ela está em
tudo e, primeiramente nisso que evocamos desde o iní-
cio, no retomo do mesmo, que particulariza a repeti-
ção depressiva. Acontece que essa dimensão domes-
mo constitui o estado do sujeito, quer ele se dê conta
ou não, equivalente a uma natureza. Quando ele fala, o
retomo repetitivo de sua queixa supõe um "é assim
mesmo" e isso não poderia ser de outra maneira. Em
suma, nenhuma mudança, uma imobilidade pétrea, o
sujeito se apresenta como morto.
Talvez seja preciso deixar lugar para uma outra
~
análise, que não contradiz essa, mas que antes, a com-
pleta. Efetivamente, no decorrer do tratamento, a in-
capacidade de agir pode tomar um outro sentido. Em
um bom número de casos ela equivale a um suspense,
uma maneira de fazer com que a morte, sempre próxi-
ma, não possa de fato chegar. Tudo se passa como se o
sujeito evitasse viver, para nunca arriscar, verdadeira-
mente, morrer.
O desamparo, a morte 239

Isso é verdade, sobretudo, no caso em que a


depressão se organiza em torno de um luto, quer seja
recente ou mais antigo. Nesse tipo de caso, não é
raro que a análise leve a ver a que ponto a irmã desa-
parecida, por exemplo, continua sempre presente,
continua sempre associada a um tipo de parada na
existência. Nesse estado entre duas mortes, o irmão
e a irmã partilham ilusoriamente o mesmo espaço,
que não é nem o da morte, nem o da vida. A esse
respeito, vários de meus analisantes foram levados a
evocar o tema do espectro. Contudo, parece-me que
isso vá bem além. Não se trata apenas de que o desa-
parecido retorne de maneira insistente, mas também
de que o sujeito nunca possa - no inconsciente - es-
tar certo de tê-lo deixado.
A questão do traumatismo me parece bem per-
tinente3, ainda mais quando evoquei, em minha pri-
meira carta, o traumatismo sexual. Mas ela deixará
absolutamente em aberto o que se refere a esses su-
jeitos que dão a impressão de terem sido vítimas de
um traumatismo terrível, ainda que nada, no que eles
encontram, nem mesmo nada no que indicam seus
pesadelos, venha estabelecer com certeza que um
acontecimento real teve lugar.
Eu gostaria, antes de fechar esta carta, voltar
a um ponto, que diz respeito ao tratamento. Hoje eu
lhe falei, para começar, da necessidade de ser ama-
do, que é majorada naqueles que, por uma razão ou
outra, se encontraram, mais do que outros, em esta-
do de desamparo. Você sabe o quanto essa necessi-
dade está presente nos sujeitos depressivos. Ela marca
o estilo de sua transferência, a necessidade que eles
têm de estarem seguros em relação à atenção que
seu analista lhes dedica. Eu penso que haja aqui algo
de particular, que não se confunde com a demanda
narcísica comum: aquela que encontramos em um
240 Depressão, a neurose do contemporârwo

momento ou outro, em todo analisante, ou seja, m.Jlll'


la em que o analista devolve uma imagem valorizadora.
Efetivamente, nesse caso bem comum, nós to
mamos, sobretudo, o cuidado de não responder e é a
própria ausência dessa resposta que relança o
questionamento do analisante, até o ponto onde é a
questão de seu ser4, e não mais de sua imagem, qt1l'
estará em jogo. Para formulá-la com a ajuda das escri ·
tas lacanianas, passa de i(a), imagem de si, à a, o objeto
que essa imagem recobre. Em contrapartida, o sujeito
depressivo, sem dúvida não suportaria a ausência total
de resposta que o encerraria em uma depreciação radi-
cal de si. Quanto à dimensão do objeto a, como objeto
dejeto, eu já disse a você suficientemente, que para
ele, ela invade o próprio lugar de onde comumente ela
é expurgada, a realidade com a qual ele lida. Você com-
preende que a questão não é mais de reunir, sublinhan-
do, as manifestações sobre o gozo avassalador que ele
poderia tirar disso.
O desamparo, a morte 241

notas
1 FREUD, S. lnhibition, symptôme et angoisse. Paris, PUF, 1973,

p. 82.
2 Nós vimos, no sonho do restaurante italiano, o quanto um su-

jeito depressivo podia ter o sentimento de não ter mais acesso ao


que lhe permitiria falar.
3 Ela vale, pelo menos, por analogia. Um psicanalista de Nova
Iorque, E. Robins, recentemente conversava conosco sobre alguns
tratamentos que concerniam a pessoas que tinham sido testemu-
nhas diretas dos atentados das Torres Gêmeas, o 11 de setembro
de 2001. Imagens vinham lhes perseguir - notadamente, mas
não unicamente, em seus sonhos. Tratava-se desses homens e
dessas mulheres que o incêndio havia forçado a se precipitarem
no vazio. Mas a imagem que se impunha àqueles que a viram
não era tanto a de um corpo se esfacelando no solo, mas a de um
homem ou de uma mulher na beirada de uma janela, ou mesmo,
a de um corpo no momento de sua queda, imagem que fixava o
movimento no suspense de uma catástrofe que não acabava de
acontecer.
4 Sobre a questão do "ser" do sujeito, ver a nota 6, p. 170.
Suplências

Caro amigo,

As férias se aproximam, mas antes de poder


aproveitá-las um pouco tenho algumas tarefas para
concluir, algumas formalidades das quais não posso me
isentar, alguns artigos prometidos irrefletidamente e que
no momento eu devo concluir às pressas. Creio também
que essa será a última carta que lhe envio no momento.
Devo lhe confessar que isso me convém um
pouco. Eu vejo bem para onde você quer me arrastar
no momento, na seqüência de minha última carta. Você
pensa que eu poderia voltar a algumas indicações
técnicas. Não se trata de que elas sejam diretamente
úteis (você não pratica a análise), mas você confessa
sempre ter tido curiosidade em relação a essa dimensão.
Não existe aí, considera você, nenhum voyerismo -
apenas a vontade de que as vias de nossa ação não se
mantenham muito misteriosas.
Eu não teria jamais pensado, caro amigo, em
taxá-lo de voyerismo (pelo menos quanto a
psicanálise!). Desde que nós conversamos, oralmente
ou por escrito, eu pude julgar seu rigor ético. Mas é a
nós mesmos, analistas, que a eficácia de tais aspectos
da direção do tratamento se mantém por vezes
enigmática! Em todo caso, de minha parte, não concebo
que nosso método possa ser objeto de prescrições
apriorísticas. Tudo o que posso reconhecer, é que em
cada caso fui levado a proceder de respectiva maneira.
Por exemplo, retome minha última carta, não para
afirmar ao sujeito depressivo que ele é amável, mas
para lhe fazer ouvir que a verdadeira questão consistiria
244 Depressão, a neurose do contemporân~o

ern se perguntar a si mesmo o porquê dele estar tiio


persuadido de ser desprezível.
Se você tomar as coisas dessa maneira, von•
verá, ao reler minhas cartas, que muitos pontos
desembocam na apresentação de uma prática um tanto
particular. Era assim, por exemplo, quando eu lhe falava
da relação com o tempo, do sujeito depressivo.
Outros poderiam supor uma elaboração um
pouco mais ousada. Eu lhe falei bastante, por exemplo,
da dificuldade central do sujeito depressivo em relação
ao significante fálico. É a não-disponibilidade desse
significante que, sem dúvida, tem efeitos bem diretos
no âmbito da existência, do desejo, do ato e da
tonicidade imaginária. Entretanto, não seria preciso crer
que nós poderíamos fazer face à essa dificuldade por
alguma sugestão, incitando o analisante a mobilizar o
que ele não tem a seu dispor. A experiência mostra,
efetivamente, uma resolução bem diferente.
O sujeito depressivo, na falta de ter acesso ao
registro fálico, na falta de mobilizar no inconsciente o
significante que sustentaria sua posição sexuada, poderá
atribuir, no curso da análise, uma atenção regular às
cadeias significantes, que em outros se articulariam com
0 significante fálico, mas sem assumir neles um valor
qualquer. Você entende o que eu quero lhe dizer? O
sujeito depressivo poderá, em certas condições, levar
bem longe sua análise e à medida que avança, poderá
lhe ocorrer, pouco a pouco, interrogar a partir dela o
próprio saber psicanalítico. Portanto, de certa maneira,
é essa relação com o saber que vai sustentá-lo e
funcionar como uma suplência.
Eu emprego aqui o termo suplência, porque
penso em certas questões que são importantes, de um
ponto de vista lacaniano, e que eu gostaria de abordar,
pelo menos rapidamente, antes de encerrar nossa
correspondência.
245

Sem dúvida você se lembra da carta que


consagrei, há pouco tempo, à pere-version. É preciso
saber que Lacan discute essa noção em um contexto
no qual ele retoma de uma maneira bem nova a questão
do Nome-do-Pai. Eu já tive a oportunidade de lhe dizer
que, para ele, édipo era um mito, que dava forma à
estrutura, a de nossa relação com o desejo e a Lei. A
questão é então saber se esse mito, o sujeito pode
dispensá-lo. Dito de outra maneira, será que ele deveria,
para te~ alguma referência, retomar sempre à idéia de
um pai que exigiria dele um sacrifício, uma vez que a
castração está simplesmente ligada a nosso estatuto de
ser humano, de f alasser, que deve passar pela linguagem
e por suas forçagens para encontrar uma satisfação'?
Nos seminários RSI e O sinthoma essa questão
adquire uma forma precisa. O que "sustenta o sujeito"?
Pode-se conceber que seja apenas o enodamento do
Real, do Simbólico e do Imaginário? Ou ainda é preciso
um elemento a mais, que é precisamente o Nome-do-
Pai? Nos dois casos, em Lacan, trata-se de um
enodamento "borromeano", quer dizer, um enodamento
de vários aros (três no primeiro caso, quatro no
segundo) que são enodados de maneira tal que basta
um se destacar para que todos os outros se separem2 •
À questão do que correria o risco de se desfazer,
Lacan, nesse mesmo seminário, dá um alcance clínico.
Eu penso em particular em sua apresentação, a partir
de um romance de Joyce 3 , de um episódio onde o
narrador- o próprio autor, James Joyce - foi amarrado
por alguns camaradas a uma barreira com fios de arame
farpado, depois batido durante algum tempo pelo
instigador de toda a questão, um tal de Heron. Joyce
se pergunta o porquê dele não o ter fodido. É sem
dúvida, considera Joyce, porque nesse momento ele se
separou de seu corpo como de uma casca.
246 Depressão, a neurose do contemporâneo

Você notará na passagem que essa separação


do corpo evoca muito alguns sentimentos de
despersonalização ou de desrealização, do qual nós
falamos. Fica ainda, que Lacan imagina que se esse
corpo, que é representado no nó pelo aro do Imaginário,
se separa e um aplainamento é possível. Um quarto elo
enodará os três outros, aliás, de uma maneira que não
seria mais borromeano. O quarto elo não será o Nome-
do-Pai, mas o que ele chama de ego, alguma coisa como
um corretor do que precisamente não enoda o
Imaginário ao Real e ao Simbólico (aqui designado
como o inconsciente). Alguma coisa como um corretor
ou uma suplência de um termo que faz falta.
Eu não insistirei no conteúdo topológico de uma
outra passagem anterior no seminário, onde Lacan
imaginou representar o "nó de Joyce" a partir de um
nó de trevo, quer dizer, uma figura onde Real, Simbólico
e Imaginário estão em continuidade. Mas essa figura
seria facilmente transformável em um simples círculo,
ela "se desfaria em floco" se não colocássemos aí uma
volta, onde Lacan inscreve o ego, ou nessa passagem
o desejo de Joyce de ser um artista, o que compensaria
o fato de seu pai nunca ter sido para ele um pai. Por
meio do que, e graças a essa suplência, Joyce não é
completamente louco, não mais do que muitos entre
nós, para que Real, Simbólico e Imaginário estejam
fortemente confundidos.
Você levará em conta que aqui há elementos
para pensar uma questão que muitos de meus colegas
não gostam de abordar: uma posição subjetiva que es-
taria na borda da psicose sem, entretanto, confundir-se
com essa. Mas o importante para mim concerne à ques-
tão da suplência. Efetivamente, a partir do momento
em que se concebe que diversos nós podem existir,
borromeanos ou não, incluindo ou não o Nome-do-
Pai, não estaremos nós muito distantes dos esquemas
247

simples da época na qual o universo parecia se dividir


em dois: sujeitos para os quais existe a simbolização
do Nome-do-Pai, sujeitos para os quais essa
simbolização não tem lugar?
Na realidade, não estou longe de pensar que
existam apenas suplências. É topologicamente conce-
bível, a partir do próprio nó borromeano. Dizer que é
suficiente que um aro seja cortado para que todos se
separem, é dizer que sua sustentação se dá apenas por
um fio. É sem dúvida condição do homem - e talvez
mais particularmente do homem moderno - encontrar
apenas em uma "natureza" que seria a sua, o princípio
de uma unidade. O Um só lhe é dado por meio de su-
plências, sempre mais ou menos frágeis.
Considerará você, caro amigo, que eu me dis-
tanciei bastante de suas questões iniciais, que
concerniam à direção do tratamento com sujeitos
depressivos? Eu não o creio. Eu penso que é o próprio
tratamento, o tratamento como leitura do saber incons-
ciente, que constituirá uma suplência - suplência, se
não for muito simplificador, à carência do pai real, ou
ainda à não-disponibilidade do significante fálico. Mas
o modo de constituição dessa suplência não pode ser
objeto da menor prescrição. É esse o motivo de eu me
deter aí, de medo que se algum jovem colega tentar ler
por sobre seus ombros, ele venha a acreditar que po-
deria dispor de alguma receita técnica. Na análise não
há nenhum conselho técnico generalizável e a prática,
com os sujeitos depressivos, particularmente nos faz
ver isso.
248 Depressão, a neurose do contemporâneo

1 Tal questionamento, apenas ele, invalida o encaminhamento


daqueles que, como Michel Tort, Fin du dogme paternal. Paris,
Aubier, 2004, querem crer que ao tratar da função paterna, La-
can conforta a religião. É verdade que a representação do pai no
sujeito remete, correntemente, a do Pai divino. Também é verdade
que esse mecanismo pode lhe conduzir à alienação com não
importa qual mestre, e mesmo a se comprazer em uma
transferência sem fim. Mas toda a psicanálise lacaniana é feita
para dar conta desse mecanismo, e tentar propor uma solução
laica à essa alienação.
2 Sobre o nó borromeu, ver, por exemplo, DARMON, M. Essais
sur la topologie lacanienne. Paris, Association lacanienne in-
ternationale, 2004. ou ainda CHEMAMA, R;
VANDERMERSCH, B.(org.) Dicionário de Psicanálise. São
Leopoldo, Unisinos, 2007.
3 Trata-se do Portrait of the Artist as a young Man.

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