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A ILHA
DA FELICIDADE
Autor
HANS KNEIFEL

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização
VITÓRIO

Revisão
ARLINDO_SAN
Os calendários do planeta Terra e dos outros
mundos pertencentes à Humanidade registram os
últimos dias do mês de fevereiro do ano 3.442. Faz
cerca de 15 meses que a catástrofe da deterioração
mental desabou sobre quase todos os seres inteligentes
da Galáxia.
O misterioso “Enxame” prossegue firmemente em
seu voo através da Via Láctea — tão firmemente como
Perry Rhodan e seus companheiros imunes tentam, num
trabalho perigoso, descobrir o sentido e a finalidade dos
terríveis invasores. Perry Rhodan e seus companheiros
de lutas já sabem, graças a uma experiência amarga,
que os emissários do “Enxame” trouxeram bilhões de
vezes a desgraça sobre muitos mundos. Também sabem
que o “Enxame” é responsável pelo surgimento do
Homo superior e pela grande mortandade.
Mas precisam saber mais. Só imaginam que o
“Enxame” guarda outras surpresas que podem ser
mortais para a população de planetas inteiros. Sandal
Tolk, o vingador, que há meses se encontra juntamente
com Tahonka No num planeta dentro do “Enxame”, já
conheceu algumas surpresas mortais. Colheu
informações preciosas, mas não pode transmiti-las a
seus amigos terranos. Sandal luta e enfrenta
dificuldades — e alcança A Ilha da Felicidade...

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Sandal Tolk asan Feymoaur sac Sandal-Crater — Um
homem de Exota-Alfa segue a pista de sua
vingança.
Tahonka No — Amigo de Sandal Tolk natural de um
dos mundos do “Enxame”.
O Thoen — O estranho companheiro de viagens de
Sandal e Tahonka.
O licamber subiu uma encosta inclinada coberta de vegetação selvagem,
rosnou esfomeado e parou. O homem esbelto, de cabelos brancos, que estava
sentado logo atrás do pescoço do animal de montaria, passou a perna direita
por cima da garupa, roçou nas escamas da parte superior do rabo e saltou
num movimento ágil. No mesmo instante foi descoberto pelo Thoen. Este ficou
na expectativa, numa atitude quase preguiçosa.
— Vamos fazer uma pausa longa aqui — disse Sandal Tolk em voz baixa.
Já compreendia e falava quase perfeitamente o idioma de seu
companheiro ossudo.
Encontravam-se em plena selva e Sandal voltou a lembrar-se de Atlan e
Chelifer Argas, a moça de olhos verdes. O desejo de rever os dois era cada vez
mais forte e angustiante, fazendo com que se descuidasse de vez em quando.
— Nossas provisões ficaram molhadas e estragaram-se em parte, mas
para hoje darão — disse Tahonka No em voz baixa.
Sua voz grave perdeu-se no silêncio da mata que cobria as montanhas. Já
era tarde.
A luz do sol era baixa e quase parecia um reflexo vermelho do fogo na
mata, quando atravessou quase na horizontal a massa de folhas e galhos.
Tahonka No também saltou da sela rudimentar, consistente em um cinto, dois
estribos e as fitas para segurar as rédeas e prender a bagagem.
Os dois peregrinos do estranho planeta de Vetrahoon conduziam os
animais por uma rede de faixas negras e vermelho-escuras. Quando chegaram
à fonte Sandal e Tahonka No tiraram os bridões das bocas dos animais
enquanto Thoen contemplava com muito interesse.
Os animais de montaria, que eram os rápidos e corajosos licambers,
nome que lhes fora dado por Tahonka No, tiveram as pernas dianteiras
amarradas com cordas curtas, para evitar que fugissem durante a noite.
Depois os homens fizeram uma pequena ronda, espalharam seus equipamentos
e acenderam uma fogueira.
Os véus de pólen fino cor de púrpura continuavam depositados em seus
corpos. As botas e as pernas das calças estavam sujas de lama. O suor abrira
sulcos negros profundos na camada de pó. O Thoen inclinou-se, curioso, para
contemplar os rostos dos homens.
Dois seres vivos, percebeu o Thoen, que andam eretos como ele mesmo.
Será que também sabiam voar?
Sandal tirou a roupa devagar, levantou um galho em chamas e iluminou a
área em redor da fogueira. Caminhou os vinte passos que o separavam da
fonte e viu que a água abrira no curso dos milênios uma espécie de bacia na
pedra-sabão macia. Podia tomar banho nela.
Atrás da bacia Sandal viu uma pedra, e acima dela o brilho assustador
dos olhos do Thoen.
Ergueu a arma devagar.
— Cuidado! — cochichou e levantou o galho. No levantou-se de um salto
e aproximou-se do lado.
— Que houve? — gritou e fez pontaria com a arma para a pedra.
Também viu uma inscrição meio apagada. Um dos pés do Thoen
balançava em cima dos glifos.
Tahonka No baixou a arma e disse em voz baixa:
— Não atire. É um animal brincalhão. Não nos fará mal. Quando muito
nos incomodará com sua curiosidade.
No mesmo instante o Thoen moveu seu único braço e atirou um cacho de
frutas de corid. As frutas foram parar bem à frente dos pés descalços de
Sandal. Este sorriu aliviado, levantou os frutos e o encanto foi quebrado.
— Que pedra é esta, amigo Tahonka? — perguntou e aproximou-se da
pedra.
Compreendia a língua do amigo, mas não os caracteres usados pelos
inúmeros povos dentro do “Enxame”.
— Não sei — respondeu No.
— É capaz de ler isto? De decifrar as figuras? — perguntou Sandal
ansioso e exaltado.
— Sou. Mas não no escuro. Farei a tradução amanhã de manhã, amigo.
— Excelente. Está tão cansado como eu?
— Receio que esteja ainda mais exausto do que quero confessar — disse
No.
— Vou arranjar um pedaço de carne excelente — prometeu Sandal.
Ainda possuía exatamente duzentas e cinquenta flechas distribuídas em
três aljavas. Durante a caminhada que já durava cerca de sessenta dias, do
platô das montanhas de fogo até as florestas do sul, passando por muitas
cúpulas transparentes nas quais havia muitas coisas interessantes, ele
fabricara algumas flechas com os talos de um capim especial. Arriscava os
tiros, nos quais sempre perdia a flecha.
— Bem que estamos precisando — disse Tahonka No.
Quando Sandal seguia a trilha de animais, apenas de short e botas,
seguindo uma trilha de animais quase invisível, que cheirava a fezes, podridão
e carniça e era iluminada pela última luz do entardecer, o jovem guerreiro
defrontou-se com uma figura medonha que permaneceu imóvel. Tinha metade
do tamanho de Sandal.
Sandal entesou a corda do arco, soltou um chiado para atrair o animal e
disparou.
Os olhos vermelhos incandescentes fecharam-se quando o animal soltou o
grito de agonia. Até parecia que o touro estava reconhecendo Sandal. Saltou,
enquanto um ruído cortante saía de suas narinas. Um par de chifres terríveis
brilhou à frente de Sandal, que atirou o arco nos galhos em cima de sua cabeça
quando o chão começou a tremer sob os cascos do animal.
Sandal saltou que nem um animal selvagem. Quando sua mão agarrou um
galho, fez um giro de cento e oitenta graus. Estava pendurado num galho
grosso, puxou-se para cima e no mesmo instante a massa escura mortífera do
animal passou trovejando embaixo dele. Sandal sentiu o halo do corpo
selvagem e primitivo. O touro saiu da trilha lateralmente numa curva, abriu
uma trilha larga na vegetação e morreu a dez passos da fogueira branca.
Sandal caiu na trilha, tirou o arco dos galhos e acenou com a cabeça.
Estava satisfeito. Com o couro dos animais podia fazer dois pelegos para
proteger as costas dos licambers.
Mas o que significavam as letras e figuras gravadas na pedra?
1

Meio contrariado — fazia pouco tempo que o sol tinha nascido e os pássaros da
selva já tinham terminado seu concerto ensurdecedor — o caçador de cabelos brancos e
olhos dourados com sobrancelhas brancas contemplou a pulseira de aço, que continha
uma combinação de muitos instrumentos.
O mês de janeiro do ano 3.442 chegara ao fim sem que Sandal conseguisse
estabelecer contato com as mulheres e os homens a bordo da Good Hope II. As únicas
mensagens que captara vinham do outro lado da linha que dividia o planeta Vetrahoon
em duas partes.
Eram em parte mensagens de rádio indecifráveis, algumas delas puderam ser
traduzidas pela máquina que Sandal trazia presa no braço, e outras tinham sido ouvidas
por Tahonka No que fez a tradução. Lá adiante, além das montanhas altas, bem ao longe,
parecia haver um movimento grande de gente chegando e partindo.
— É de lá que devem vir as gotas voadoras que vivem nos incomodando —
cochichou o caçador e levantou a cabeça.
Sandal estava confortavelmente deitado numa rede bem estendida entre duas
árvores. Seu rosto estava na sombra e as botas e roupas estavam penduradas a seu lado,
secando. Numa coberta fina perto do fogo estavam alguns dos seus pertences — menos a
arma. Sandal carregava-a num cinto preso ao corpo.
Sandal olhou para o bloco monolítico negro que parecia um trono erguido acima do
jato de água borbulhante da grossura de um braço humano. O Thoen estava sentado no
bloco, fitando Sandal com pelo menos oito olhos.
O animal e os caracteres — mais um enigma.
E o outro?
Durante a longa caminhada para o sul Tahonka No e Sandal tinham passado
constantemente perto de pequenas cúpulas. Mas toda vez que Sandal falara em vingança
e queria entrar nas cúpulas, No fazia um gesto para que não o fizesse e apontara para o
sul. Várias vezes tinham escapado por pouco da morte vinda pelo ar. Duas vezes tinham
sido gigantescos répteis voadores, e pelo menos uma dezena de vezes objetos parecidos
com jatos espaciais abertos em forma de disco com homens — ou outros seres —
enfiados em trajes de proteção prateados. Será que estavam à sua procura? Ou faziam
uma busca geral de estranhos que ameaçassem as cúpulas?
De qualquer maneira os dois seguiram adiante em suas montarias sem tentar entrar
nas cúpulas com suas casas e parques coloridos. Tahonka No parecia ser um homem que
sabia mais do que queria dizer.
Tinham-se conhecido e tomado amigos, ele e Tahonka No.
Os dois eram tipos solitários típicos, que até podiam servir de clichê. Submetiam-se
prontamente e sem comentários a qualquer obrigação imposta pelas circunstâncias, a
qualquer necessidade premente, mas evitavam cuidadosamente incomodar os outros mais
do que era necessário. Suas reações eram instantâneas e na maior parte das vezes certas.
O que Sandal mais apreciava em Tahonka No era sua calma inabalável, o riso
sonoro e seus conhecimentos extensos sobre o planeta.
Tahonka No, por sua vez, podia confiar na grande capacidade do jovem guerreiro,
muito bem treinado em tudo que dizia respeito à caça, à montaria, à luta, e à arte de
esconder-se.
Os dois completavam-se muito bem.
Foi somente o fato de Tahonka No certa vez ter-se referido a um mistério além das
montanhas que fez Sandal desistir de querer entrar em uma das cúpulas.
Ainda tinham um caminho longo pela frente.
Onde terminaria esse caminho? E como? Ainda chegaria o momento em que Sandal
pudesse exercer sua vingança pela morte da família Crater e da jovem e bela Beareema?
Seu ouvido aguçado e a capacidade de farejar os perigos disseram-lhe que podia
dormir calmamente.
Sandal lançou mais uma vez o olhar para o Thoen em cima do bloco de pedra negro
e para o amigo que dormia e voltou a adormecer. Só acordou depois que Tahonka No,
que já abandonara a repugnância de comer e beber na presença de outros seres, estava
com a carne sobre o fogo.
O Thoen aproximou-se, devagar e miando delicadamente, e parou no meio da
fumaça.
— Bom apetite! — disse Tahonka No calmamente.
***
Sandal amarrou o cabelo com a fita de couro, limpou a esfera de coral presa à orelha
e vestiu-se devagar, depois de aplicar o resto de creme para a pele. Todas as peças de
roupa estavam limpas e bem secas.
Sobre algumas folhas gigantescas lavadas havia frutas descascadas, nozes tiradas da
casca, grandes pedaços de cogumelo assados na gordura e raízes comestíveis descascadas
que tinham um sabor adocicado de farinha. Até tinham descoberto uma grande jazida de
sal com um misterioso esqueleto branco dentro dela. Desta forma puderam completar
suas reservas. Podiam considerar-se muito bem equipados. Havia água fresca em grandes
conchas arredondadas de gigantescas nozes triangulares. Tahonka No abriu a boca — que
não era capaz de sorrir, porque os respectivos músculos ficavam numa posição diferente
— e disse:
— Não pude dormir mais. Além disso você espantou todos os animais com sua
roncadeira.
Sandal dobrou a coberta fina como um véu e voltou a guardá-la na respectiva bolsa.
—Vejo que você fez um trabalho bem feito, amigo — respondeu. — Até o couro do
animal já está na água.
— Esforcei-me para fazer tudo da melhor maneira e o mais depressa possível —
afirmou o ossudo em tom indiferente.
— Obrigado!
Sandal cuidou dos licambers e alimentou-os enquanto a carne estava sendo assada.
Depois sentou perto do fogo que ia se apagando, embaixo das copas das árvores, e comeu
em silêncio. Sentia-se descansado e estava com uma fome louca. No momento todos os
outros planos e pensamentos ficaram em segundo plano.
Depois que acabaram de comer e beber, ainda dispunham de provisões para pelo
menos uma semana. A carne assada até fora condimentada com temperos naturais
encontrados e experimentados com muito trabalho.
Sandal apontou para o Thoen e perguntou:
— Conhece este animal, No?
O ossundo, cuja pele com aspecto de couro brilhava por causa da gordura que
passara nela, respondeu:
— Ouvi dizer que estes animais existem. Dispõem de uma grande inteligência e
gostam muito de brincar. As nozes que você está vendo foram trazidas pelo Thoen.
— To-en! — disse a criatura como que para confirmar o que acabara de ser dito.
Sandal acenou com a cabeça. Viu nessa sequência de sons a voz natural do animal.
Mas não viu nenhuma boca da qual pudessem ter saído os sons. O Thoen possuía quatro
pernas longas que saíam da parte inferior do corpo quase esférico. Em torno do corpo
havia uma faixa com inúmeros olhos, que pareciam esferas espremidas de fora para
dentro.
— Que vamos fazer com este animal? — perguntou Sandal. — Podemos comê-lo?
— Sua carne é intragável — respondeu No. — Ele poderá ajudar-nos a procurar
nozes e frutas.
— De onde você conhece o Thoen — e todos os outros animais? — perguntou
Sandal. — E como sabe que frutas e nozes podem ser consumidas e quais são as
venenosas?
— Conheço muita coisa. No lugar de onde vim sabe-se muito. Aprende-se nas
escolas.
Sandal falou em tom pensativo, como se estivesse conversando sozinho.
— Quer dizer que você aprendeu certas coisas antes de vê-las. Com Chelifer Argas
e Atlan na Good Hope II foi a mesma coisa. Como conhece a escrita que daqui a pouco
vai ler para mim?
O Thoen saiu saltitando meio inseguro para afastar-se do fogo, miou alto e correu
num trote estranho com as pernas duras para perto da água. Mergulhou completamente e
a umidade deu uma tonalidade preto-azulada à pele verde-escura parecida com um pelego
de pelos curtos.
— Também aprendi os caracteres. Têm certa semelhança com os que usamos no
planeta pertencente a meu povo.
Sandal levantou e apontou para o bloco de pedra negro com duas faces escritas.
— O que estamos esperando? — perguntou em tom nervoso.
Ele não sabia por que, mas teve a sensação de que aqueles caracteres continham
informações sobre o que os esperava nos próximos dias e semanas.
— Está certo.
Depois de cortar com as facas os galhos em torno do bloco, limparam partes de sua
superfície do musgo verde-escuro fibroso, parecido com a barba de um homem muito
velho.
Tahonka No leu devagar.
— Para você, que procura uma morte lenta e dolorosa. Ela lhe será concedida de
várias maneiras.
— Tolice! — disse Sandal em tom de desprezo. — Só se morre uma vez.
— Mas a morte pode alcançar-nos em vários lugares — contestou o ossudo e
continuou a leitura com sua voz cheia. Fazia muitas horas que não eram molestados.
Ninguém podia ver a pequena clareira do ar, porque estava encoberta pelas copas das
árvores gigantescas.
— Se estiver procurando a morte, vá para o meio-dia. Será engolido pela selva.
Suas feras o abaterão e despedaçarão seu corpo.
— Isso nós sabemos! — disse Sandal. — Não precisaria ser dito.
— Estamos fazendo piadas, ou você quer que eu leia? — perguntou o ossudo em
tom sombrio.
Sandal sorriu, bateu no ombro do amigo e percebeu que se esquecera de prender a
máquina tradutora ao braço. Por enquanto não precisara dela para entender cada palavra e
seu sentido exato.
— Leia! — disse.
Tahonka No abaixou-se e prosseguiu:
— A morte silenciosa também o espreitará na savana, depois que você tiver
escapado à selva. A área das sombras pequenas vai da selva até as montanhas que se
erguem entre o mistério e esta pedra da advertência mortal. A área das pequenas sombras
ressecará seu cérebro como se fosse uma esponja, mas se apesar disso você sobreviver
sem cair nas garras impiedosas da loucura, você se assustará com a altura das três
montanhas.
Sandal colocou a mão sobre o ombro de No e disse:
— Para dois lutadores como você e eu isto representa um desafio para procurarmos
o segredo no sul, isto é, para o lado do meio-dia. O segredo a que esta pedra se refere é o
mesmo que você tem escondido de mim, Tahonka No?
— É, sim! — confirmou o ossudo e leu o terceiro parágrafo da inscrição.
— A avalanche de pedra das encostas geladas o esmagará e arrastará seus restos
mortais para o vale. O ar rarefeito dos cumes gelados solitários cortará seus pulmões.
Além disso você será quebrado ao olhar para o vale dos conhecimentos felizes.
— Quantas promessas! — disse Sandal, mas sentiu um medo misturado com
ceticismo e precaução tomar conta dele.
— Posso garantir que quem escreveu isto sabia se era certo ou não! — insistiu o
ossudo em tom sério.
— Para todo perigo, por maior que seja, existe alguém capaz de derrotá-lo —
objetou em tom obstinado. — Você e eu somos este alguém.
O Thoen soprou um jato de água fino e comprido na direção dos dois homens. O
jato saía de uma abertura invisível ao lado dos cabelos ocres que cobriam a parte superior
do corpo esférico. Em seguida a mão de oito dedos do animal pegou os cabelos. Puxou-
os. Neste momento o Thoen saiu da água — dava a impressão de que se levantara pelos
próprios cabelos.
— Não tenho tanta certeza. Vou continuar... — disse Tahonka e leu: — A margem
do mar circular é protegida quatro vezes. Pelo campo de espinhos, pela areia dos ossos
desbotados e pelo desaparecimento completo através da podridão deletéria do pântano e
pela mata dos carnívoros.
— Droga! — disse Sandal. — O caminho que leva à vingança é longo e difícil.
Tahonka fitou-o com os grandes olhos embotados e disse com muita ênfase:
— O caminho da vingança geralmente é difícil.
Depois concluiu a leitura.
— Você nunca chegará à Ilha da Felicidade. Você, que está à sua procura, esconda-
se e trema de medo, porque a morte está mais próxima do que você imagina.
— Já sabemos que tipo de terreno teremos de atravessar para chegar à ilha — disse
Sandal. — Não sabia que o segredo fica numa ilha.
Tahonka No acrescentou em tom hesitante:
— Todo o planeta é uma área proibida. Sem dúvida morreremos, mas você é meu
amigo e responderei às suas perguntas.
Um sorriso cobriu o rosto estreito do jovem guerreiro.
— Eu lhe agradeço — disse em voz baixa. — Aqui vai a primeira pergunta. O que
vem a ser o chamado segredo, tantas vezes protegido?
Tahonka levou Sandal de volta à fogueira e informou:
— Nosso povo está muito bem informado sobre certas coisas que acontecem no
“Enxame”. Conhecemos por exemplo os seres poderosos. Costumamos chamá-los de
servos-mor do Y'Xanthymr.
— Como são eles? — perguntou Sandal em tom ansioso. — Pequenos e cor de
púrpura, magros e calados por acaso? Têm...
O ossudo abriu os braços e fez um gesto para que o amigo se calasse. Riu e seus
olhos acompanharam por alguns segundos o voo trêmulo de uma borboleta antes que
prosseguiu:
— Não são pequenos e cor de púrpura. Os pequenos mudos fazem parte dos povos
escravos. São seres cor de ocre, muito poderosos, que possuem uma grande força
diabólica. Dispõem de forças contra as quais seu poderoso arco é impotente, amigo
Sandal.
Sandal, que sabia perfeitamente que toda vida tem de acabar e que todo ser é mortal,
mesmo que suas flechas não pudessem matá-lo, disse em tom de desprezo:
— Serei capaz de matar os seres amarelos. Eu garanto. Minha força é o grito de um
avô moribundo, são os estalos dos muros do castelo de Crater desmoronando. Esta é a
força de meu arco mental e das flechas silenciosas, amigo. Pode acreditar.
Tahonka No respondeu depois de algum tempo, num tom que quase chegava a ser
de espanto e reverência:
— Pelo ídolo amarelo, Sandal! Acho que você é capaz.
— Também acho — disse Sandal. — Por favor, conte mais alguma coisa a respeito
dos servos-mor do Y'Xanthymr!
Sandal se lembrava naquele momento do cadáver enegrecido e retorcido de
Beareema, sua jovem esposa.
— O que sei a respeito dos servos-mor não é uma coisa — disse No. — São
servidos quase exclusivamente por seres de categoria inferior e povos escravos, que
chegam a carregá-los.
— Inclusive pelos pequenos seres cor de púrpura? — perguntou Sandal.
— Também por eles! — confirmou seu amigo ossudo e exótico.
Sandal Tolk já sabia que vira estes seres com os próprios olhos e acompanhara sua
atuação, embora isso tivesse sido em circunstâncias especiais. Mas ainda desconfiava que
todos os seres de todos os povos dentro do “Enxame” agiam como insetos guiados pelos
instintos ou animais cegos de raiva.
— Vingaremos Crater! — disse Sandal em voz baixa.
O Thoen aproximou-se miando. Sentou de uma forma que as quatro pernas
desapareceram sob o corpo esférico. Os dedos da única mão do único braço enfiaram-se
na brasa, levantaram um pedaço e o fizeram desaparecer num lugar do corpo que Sandal
e No não podiam ver.
2

Enquanto no dia seguinte Tahonka No selava os licambers e limpava sua pele


coberta de escamas, destrancava suas crinas e verificava os arreios, enquanto
transformava as selas simples por meio de dois pedaços de pele em assentos mais
confortáveis, que maltratavam menos os animais, Sandal escreveu devagar no rolo
guardado no arco:
“As informações de Tahonka No tiveram uma importância extraordinária em
minhas reflexões e decisões. Lembro-me perfeitamente das quatro incursões
devastadoras dos purpurinos em meu planeta.
“Estes seres carregavam uma liteira esférica em todas suas andanças. Toda vez
que era necessário tomar uma decisão, os purpurinos corriam para junto da esfera para
receber ordens. Pelo menos acredito que recebiam.
“Portanto, nas próximas semanas também terei de operar meu rádio para ver se
descubro que mensagens são trocadas entre os ocupantes da cúpula gigante —
costumam chamá-la de Ilha da Felicidade — e os desconhecidos que se encontram em
outros lugares. Além disso não tentarei mais entrar nas cúpulas menores que já vimos
várias vezes de bem perto, Tahonka No e eu.
“Para cumprir minha vingança terei de entrar na cúpula maior e encontrar os
seres que costumam ser chamados de servos-mor do ídolo.
“Da Ilha da Felicidade são dadas ordens constantemente. Foi o que pude verificar.
Parece que todos os seres que vivem neste planeta obedecem a estas ordens. Quase no
subconsciente passamos a ir para o sul, depois que nos encontramos e passamos pela
primeira cúpula.
“Agora, que descobrimos o escrito, sabemos que estamos na direção certa. No
lugar em que fica a ilha conhecerei o ponto final de minha vingança.
“Continuarei a escrever assim que houver alguma novidade ou alguma surpresa,
para completar a crônica das estirpes dos Crater.
“Escrito no mês de fevereiro do ano 3.442 em Vetrahoon, à luz do sol ao meio-
dia.”
Sandal levantou e enrolou firmemente o rolo, guardando-o novamente no cabo do
arco. Depois disse:
— Vamos cavalgar um pequeno trecho hoje, No!
O ossudo, acompanhado pelo curioso Thoen, trouxe os dois licambers descansados
que saltitavam nervosamente e parou à frente de Sandal.
— O que você quer mesmo, Sandal? — perguntou em voz baixa.
Os feixes de músculos grossos de seu rosto sem vida saltaram. Os olhos leitosos
foscos, escuros e atentos, examinavam Sandal calmamente e com muita atenção.
— Quero castigar ou pelo menos chamar à responsabilidade aquele ou aqueles que
fizeram isto. Sempre é assim. Quem dá ordem para começar uma guerra interrompe esta
guerra assim que sente na própria pele como ela é terrível. Já matei muitos homens, mas
nunca no ataque. Só o fiz quando fui obrigado a defender minha vida ou a de meus
amigos. Odeio a guerra que chega em espaçonaves sobre os planetas. Aí ataco os
atacantes.
Naquele dia o céu despejava uma torrente de luz e calor; era muito mais claro que
de costume. Nenhuma brisa mexia com as folhas. O dia terminaria numa horrível
tempestade tropical.
— Quer dizer que você quer encontrar — acho que podemos exprimir-nos assim —
o amigo do ídolo amarelo Y'Xanthymr?
Sandal respondeu imediatamente.
— Se é culpado da devastação de meu planeta e da debilidade mental de milhares
de seres humanos, então quero encontrá-lo. E vou encontrá-lo.
— Vai matá-lo?
— Talvez — disse Sandal e prosseguiu como quem faz uma avaliação: — Mas o
caminho que leva para lá é longo e cheio de desvios. E você, Tahonka No? Será que o
proscrito vai ajudar o caçador?
Antes que No pudesse dar uma resposta, Sandal levantou a mão e interrompeu o
diálogo. O sinal do aparelho que trazia no pulso chamara sua atenção. Apertou o botão de
contato, ligou na recepção e aproximou o microfone e o alto-falante das membranas da
tradutora automática que trazia presa ao braço direito.
— Uma mensagem. Vem da direção em que fica a cúpula? Sandal girou lentamente
o corpo. Quando a linha imaginária representada pelo prolongamento do eixo da pulseira
apontou para o sul, a recepção ficou bem nítida. Logo, a mensagem estava sendo
expedida da cúpula da Ilha da Felicidade, que ainda não tinham visto.
A tradutora falou com a voz arranhada, mas clara.
Sandal prestou muita atenção. No fim repetiu o texto da longa mensagem para si
mesmo.
— Da cúpula energética dos servos-mor estão saindo novamente instruções para os
outros hóspedes de Vetrahoon. Proíbe-se a todos os seres, sob pena de castigos, que se
aproximem mais que até o limite da savana, ou do campo de espinhos. O ídolo proíbe,
porque coisas importantes estão acontecendo.
Sandal lembrou-se da carranca dupla esculpida no paredão, que por pouco não
custara a vida dos dois homens.
— Parece cada vez mais certo que lá você encontrará o que procura — disse
Tahonka.
Sandal viu a luz quente e mortífera do sol varar o espaço entre os galhos, brilhando
nas asas trêmulas de um grande inseto e quebrando-se nas ondas da água que descia pela
encosta para desaparecer no solo mais adiante. A floresta rala que substituíra a selva e os
pântanos dos últimos dias, parecia paralisada sob os efeitos dos raios do astro maior.
— Nem sei mais exatamente o que estou procurando, amigo — disse Sandal em
tom pensativo. — O fato é que preciso encontrar o soberano que levou os planetas e sóis
de seu mundo ao meu mundo. Ele tem de suspender esta guerra, senão eu o mato.
— Pelo ídolo! — disse Tahonka No admirado. — Sou muito mais velho que você,
mas sua coragem é mais forte que a luz do sol. Montarei a seu lado.
Sandal sabia que Tahonka No travava um conflito entre a fé no poder do ídolo
amarelo e a amizade que unia os dois. Ele mesmo não acreditava em ídolos. O homem
era o guia da própria vida e quando morria convinha que isso acontecesse com honra e
dignidade.
— Naturalmente — disse em tom pensativo e nem viu o Thoen trazer um
gigantesco cogumelo comestível e alimentar os licambers com ele. Os animais ficaram
inquietos, embora o Thoen transmitisse uma expressão esquisita.
— O que você acha natural? — perguntou Tahonka.
— Acho natural que as ordens saiam da cúpula maior. Se este planeta é um centro
de repouso, então é bem possível que os poderosos servos-mor tenham construído uma
espécie de hospital. Para si ou para outros seres.
— É isso mesmo! — disse o ossudo. — Precisamos de um esconderijo seguro para
hoje de noite. Haverá uma trovoada que nos assustará, bem como aos animais.
Sandal apontou com o braço estendido para o sul.
— Ali há pequenas montanhas. Nas montanhas existem cavernas. Vamos encontrar
uma. Acha que devemos ir para lá?
— Acho. A promessa de ajudar você vale até a crista das montanhas. Quando
chegarmos lá, resolverei se o acompanho até a cúpula, Sandal.
Os dois saltaram rapidamente nas selas forradas de pele e saíram montando. Quase
não deixaram pistas, mas o Thoen seguiu-os. Quando o caminho ficou mais difícil, o
animal bizarro desdobrou quatro asas translúcidas e acompanhou os dois cavaleiros no ar.
Os dois seguiram durante doze dias quase em linha reta para o sul. Atravessaram a
mata, passaram por rochas, atravessaram as águas espumantes de rios e obrigaram os
animais com esporas e batidas a subir encostas íngremes cobertas de fragmentos de
rochas.
Passaram em galope por quedas de água que desciam de duzentos metros de altura,
irrigando áreas verdes no meio dos desfiladeiros. O terreno subia constantemente e os
cavaleiros perceberam que uma fileira em forma de meia-lua formada por três cadeias de
montanhas em curva dividia o continente. Bem ao leste, e também bem ao oeste, viram
colinas suaves que ficavam cada vez mais altas. No sul, sudeste e sudoeste as cadeias de
montanhas alcançavam a altura máxima, e em seguida voltavam a diminuir. Uma barreira
tripla escondia dos cavaleiros a ilha, o campo de espinhos e o mar.
Doze dias.
Atravessando o calor e a penumbra, bandos de insetos, cursos de água selvagens e
vales pantanosos. Doze vezes cerca de cinquenta quilômetros, pelos cálculos de Sandal.
Pausas curtas alternavam com grandes fases de exaustão de homens e animais. O Thoen
parecia ter esquecido o instinto lúdico. Ajudava os homens a procurar alimentos e como,
com exceção das brasas tiradas da fogueira, comia a mesma coisa que eles, certos
problemas se resolveram por si. A cabeleira cor de ocre do ser esférico transformou-se
num quadro familiar. Certa vez o Thoen salvou a vida dos homens miando nervosamente
quando um grupo de busca se aproximava pelo ar.
Finalmente viram-se ofegantes no ar rarefeito do cume alto, tiritando ligeiramente
de frio, junto ao cume mais elevado.
Mais trezentos metros, deixariam para trás a barreira de montanhas.
***
Tahonka No recitou detalhadamente e, segundo parecia a Sandal, com um pouco de
medo:
“A margem do mar circular é quatro vezes protegida. Pelo campo de espinhos, pela
areia dos ossos desbotados e do desaparecimento completo, pela podridão mortal do
pântano e pela mata dos carnívoros.
“Você nunca chegará à Ilha da Felicidade. Você, que está à sua procura, esconda-se
e trema de medo, porque a morte está mais próxima do que você imagina.”
Um vento cortante que trazia ruídos cantantes desconhecidos uivava em tomo de
suas cabeças. Os licambers juntaram-se mais. Sandal segurava ambas as rédeas com mão
firme e afagava a cabeça dos animais para acalmá-los. Precisavam com urgência de uma
pausa mais longa, até o Thoen.
— Está com medo? — perguntou Sandal com a voz calma. — A vista não nos
arrasou.
Sandal pôs uma fita de plástico transparente na frente dos olhos para protegê-los
contra o sol e contemplou o panorama gigantesco que se estendia embaixo deles. Parecia
que através do ar rarefeito poderiam ver o polo sul do planeta.
— Não tenho medo, Sandal, mas vejo os perigos descritos.
— Também vejo e tenho a impressão de que podem ser enfrentados. Para nós esta é
a hora da verdade, amigo Tahonka No.
— Eu sei. Dê-me mais um pouco de tempo, Sandal.
Sandal mostrou-se compreensivo. Acenou com a cabeça.
Pelos seus cálculos deviam estar a três ou quatro mil metros de altura. Respiravam
com uma estranha facilidade, mas homens e animais percebiam constantemente que lhes
faltava o ar ou que a respiração se tornava ofegante. Bem em cima deles, muito pequena e
só visível como uma cintilância prateada, uma espaçonave atravessou a atmosfera.
Dirigia-se para ó sul.
— A cúpula supera tudo que Já vimos.
— É verdade! — respondeu No.
O ponto mais alto da cúpula, que tinha a forma do terço superior de um círculo,
ficava mais ou menos na altura dos seus olhos. Dentro dela descobriram, cercada de
nuvens e banhada por urna luz amarelenta produzida pelo efeito de filtragem do campo
energético, uma cidade gigantesca. A cúpula tinha cem ou somente dez quilômetros de
diâmetro? Não seriam capazes de dizer — seus limites confundiam-se com o horizonte.
Sandal lembrou-se da pedra das advertências terríveis e disse:
— É tudo verdade. Descobri uma ilha gigantesca, cujos limites não podemos ver.
Fazendo os cálculos e completando o círculo, chego à conclusão de que ela pode ter mais
de duzentos quilômetros de diâmetro. A cidade, isto é, a cúpula, foi construída na parte
da ilha voltada para nós.
A montanha descia num ângulo de mais ou menos quarenta e cinco graus quase até
o nível do mar. Entre a faixa de água cintilante à frente da ilha e a última encosta das
montanhas estendia-se uma planície enorme — naturalmente interrompida por numerosas
elevações pequenas.
Tahonka No apontou para cima.
— Mais uma espaçonave aproxima-se do campo energético vermelho brilhante! —
disse. — Lá é o seu destino, guerreiro Sandal.
— Eu vejo — respondeu o jovem de cabelos brancos.
Um lindo céu azul estendia-se sobre suas cabeças, com gigantescas nuvens
navegando em formações grossas, ininterruptamente, do oeste para o leste. Luzes e
sombras deslizavam sobre a savana e as dunas, sobre o pântano e o limite da selva que se
destacava à frente da faixa de água. Pelo que se via daquele lugar, tudo estava disposto
em círculo.
— Parece que há um porto espacial lá adiante, na selva. Você não possui um
aparelho pelo qual pode ver de perto as coisas distantes? — disse o ossudo.
— Já estou com ele na mão — disse Sandal e deixou que Thoen, que balançava
nervosamente os cabelos, segurasse a rédea.
Naturalmente Sandal — e dali a pouco No — não viram tudo através do binóculo,
mas a fantasia completou o que faltava.
Parecia que tudo estava disposto em círculo em tomo da ilha. A própria ilha era
quase redonda, depois seguiu-se o mar interior, que neste lugar parecia ter cerca de cem
quilômetros de largura... Sandal sobressaltou-se e chegou à conclusão de que o olho
humano, mesmo reforçado pelo aparelho, nunca podia enxergar tão longe de uma altura
destas.
Mas logo percebeu o engano. O campo energético aproximava a imagem do
observador, porque servia como unidade de medida. Portanto, as medidas calculadas
como base no que vira provavelmente estavam certas.
Depois disso vinham em círculos concêntricos a selva, o pântano quase negro, a
areia e a savana cheia de espinhos.
Ao leste, no meio da selva, erguia-se um mastro alto — uma torre para o porto
espacial no qual estava pousando a terceira nave. Uma ponte energética em arco, que
quase não podia ser vista, estendia-se do porto até a ilha. Sua extremidade desaparecia na
claridade à frente do campo energético.
— Parece que fora deste tubo ou desta ponte não se realiza nenhum voo — nenhum
voo para a ilha — disse Sandal.
— É o lugar dos poderosos! — explicou Tahonka No.
Via-se perfeitamente que sentia medo de novo.
Sandal estava com fome e ansiava por um longo período de sono.
— Daqui a muito pouco seguirei adiante — disse em tom calmo. —Vejo meu
caminho e o destino.
O nervosismo e a inquietação, que há dias se manifestavam cada vez mais
claramente, tomaram conta de Tahonka No. Falou a Sandal em tom violento.
— Se continuar você vai morrer, Sandal!
— É possível — disse Sandal em tom duro. — Mas se morrer morrerei como
guerreiro, não como um homem perseguido. Além disso acho muito duvidoso que
homens que costumam viajar em planadores são aptos para meu tipo de luta. Derrotarei
todos eles com minhas duzentas e cinquenta flechas.
Tahonka não disse uma palavra. Baixou a cabeça, esperou alguns minutos e
respondeu:
— Irei com você, Sandal. Mesmo que seja uma cavalgada direta para a morte.
Sandal estendeu a mão.
Os dois parceiros tão diferentes um do outro sacudiram-se as mãos com força.
Finalmente No deu uma forte gargalhada.
— Você é mais duro que esta rocha, mas estou criando esperança — disse. —
Vamos descer a montanha.
— Primeiro devemos fixar a direção e guardar os marcos do caminho — respondeu
Sandal.
O jovem guerreiro deixou o olhar vagar demoradamente pela paisagem, à procura
de pontos fixos na massa de acidentes do terreno das formas mais variadas. Seu olhar
fixou-se na cúpula e nos pontos trêmulos cintilantes, que na verdade eram aparelhos
voadores. Finalmente acenou com a cabeça.
—Vamos! — disse.
Bem embaixo deles um planador gigantesco sobrevoava a faixa de savana. A
desproporção continuaria a ser a salvação dos dois cavaleiros — a desproporção entre seu
tamanho reduzido em comparação com os aparelhos técnicos. Alguém acostumado a
procurar e lutar do ar não tinha a menor chance contra um caçador e guerreiro resoluto no
chão e em meio a inúmeros esconderijos, a não ser que destruísse logo uma grande área.
E mesmo neste caso o guerreiro ainda tinha uma possibilidade de salvar-se e sobreviver.
— A morte está mais próxima do que imaginamos! — recitou Tahonka No ao saltar
na sela e seguir Sandal.
O Thoen desdobrou as asas e voou de um lado para outro.
A cavalgada da morte estava começando.
Enquanto soltava as rédeas e deixava que seu animal encontrasse o caminho
sozinho, o ossudo tentou pôr em ordem os pensamentos. Duas visões globais do mundo
travavam uma luta silenciosa, mas exasperada em seu interior.
Nos muitos dias que se tinham passado depois que Sandal salvara sua vida ele
passara a estimar o jovem guerreiro como se fosse seu irmão. Reconhecia que Sandal era
o representante do pragmatismo da luta e da sobrevivência, o homem da floresta nato, o
lutador e atirador de flecha... aberto para qualquer manifestação da natureza, para os
perigos e os recursos da técnica. Uma inteligência sem qualquer esquema previamente
traçado, livre de preconceito. Sandal corporificava o tipo do ser inteligente capaz de
impor-se em toda parte com os meios adequados.
A isso se contrapunha a vida passada do ossudo. Carregava sobre os ombros uma
carga pesada de fé e superstição, de muitos fatos da vida e hábitos, da educação e da
convivência, e das estruturas do poder dentro do “Enxame”, nome que Sandal dava ao
meio em que tinha nascido. A proibição de dirigir a palavra aos servos-mor aplicava-se a
ele, ao povo dos ossudos e também aos pequenos mudos purpurinos. Que poderia fazer?
De um lado sentia-se satisfeito por ter tomado uma decisão — uma decisão que realmente
valeria até seu possível fim.
Mas de outro lado... os perigos que se amontoavam à sua frente eram relativamente
gigantescos.
Já tinham percorrido metade do caminho sem que fossem esmagados, mortos a tiro
ou despedaçados, mas haveria de chegar a hora — e esta informação ele também recebera
de Sandal — em que a lei dos grandes números entraria em ação.
Dois homens enfrentando perigos aos milhares.
Com o tempo teriam de perder o jogo. E se perdessem o jogo também perderiam a
vida.
Tahonka No levantou a cabeça e sentiu o olhar perscrutador do jovem amigo com
uma esfera de coral vermelha presa à orelha.
— Está refletindo? — perguntou Sandal.
Tahonka No apontou para a paisagem e respondeu:
— Não sou medroso, Sandal, mas cheguei à conclusão de que teremos de continuar
juntos. Ajudarei e lutarei com todas as forças. Percebi que as quatro faixas de terreno lá
embaixo são artificiais; trata-se de uma faixa da morte cercando a ilha.
— Sabendo disso, não nos exporemos ao perigo sem necessidade — disse Sandal
em voz alta.
Já era noite quando acamparam numa pequena grota fresca. Tinham descido cerca
de dois terços da encosta. A distância que os separava da ilha devia ser de cento e setenta
quilômetros.
Cento e setenta quilômetros com inúmeras armadilhas mortais no meio.
3

Naquele momento, ao amanhecer, a floresta que cobria o fim da encosta foi


substituída pela vegetação formada por espinhos.
Ficou mais fresco, e a luz mudou. Um regato que descia num sem-número de curvas
saía da mata à direita das cinco figuras e desaparecia atrás dos arbustos de espinhos.
— Muito bem, Tahonka — disse Sandal. — Ficaremos aqui dois dias, descansando,
para recuperar as forças. Temos de atravessar a savana de espinhos em dois dias de
cavalgadas velozes. Para isso precisamos de provisões abundantes e animais descansados.
Você concorda?
Tahonka apontou para trás.
— Concordo. Mas... daqui em diante cada passo porá em perigo nossa vida. Não
confunda coragem com leviandade.
— Obrigado pelo conselho — disse Sandal. — Você tem razão.
Montaram acampamento, abateram animais, fizeram uma fogueira e limparam os
animais. Dali a algumas horas desfrutaram, com o auxílio do Thoen, a primeira refeição
de verdade depois de alguns longos dias. Os animais pastavam e rolavam na água, o
Thoen fazia ginástica nos galhos das árvores e aos poucos foi chegando a tarde. Os dois
cavaleiros estavam deitados nas redes, preguiçosos e sonolentos. O Thoen levara muito
tempo examinando a rede de Sandal e acabara trançando outra com trepadeiras e
estranhos fios de vegetais parecidos com cabelos humanos. Era de textura irregular, mas
capaz de suportar o peso de Tahonka.
Sandal foi arrancado dos pensamentos agradáveis por um chiado. Sem dúvida vinha
de fora, isto é, do campo.
— Que é isso? — exclamou alarmado e pôs a mão na arma, que estava pendurada
num galho perto de seu rosto.
— Uma patrulha aérea, suponho. Já ouvimos este ruído muitas vezes.
— Mas nunca de tão perto — disse Sandal e saltou da rede.
Correu para perto dos últimos troncos sem fazer ruído. Ficou de pé, bem encostado
à árvore, confundindo-se com a sombra.
O que viu despertou nele um pressentimento vago de algum perigo se aproximando.
Um planador de tamanho médio, com dez ou quinze metros de comprimento,
aproximava-se pouco acima das copas das árvores, vindo do oeste. Sandal distinguia cada
rebite e cada saliência do fundo do planador.
— Estão à nossa procura? — perguntou em voz baixa.
— Não. Se estivessem, teriam escolhido outro caminho — disse Tahonka No.
Sandal virou a cabeça, surpreso. Não ouvira o amigo chegar.
O planador aproximava-se. Voava a cerca de quarenta metros de altura.
Os desconhecidos que viajavam no estranho veículo em forma de gota examinavam
a área com muito cuidado. Se Tahonka usasse as armas energéticas, os dois cavaleiros
poderiam ser facilmente descobertos.
Quando estava a uns vinte metros do esconderijo dos dois homens o planador
mudou de direção enquanto ganhava altura. Fez uma curva para o sul, em direção à costa
distante. Os dois distinguiam a cúpula transparente cheia de aberturas que se estendia em
cima dos assentos e atrás dela figuras humanóides olhando por estranhos instrumentos.
Tubos delgados moviam-se em silêncio, apontando para a mata e para os diversos
arbustos no campo.
— Por que será que interromperam as buscas? — perguntou No.
Sandal abriu a boca, mas não disse nada. Nervoso, cutucou No e apontou para a
frente. O Thoen flutuava devagar, que nem um inseto gigante, com as pernas encolhidas.
Ficou suspenso em cima de um dos arbustos de espinhos. O sol criava ininterruptamente
minúsculos reflexos sobre as asas translúcidas.
— O Thoen procura alimento ou um brinquedo — disse No perplexo. — Eles o
matarão. É apenas um animal inofensivo...
O planador fez uma curva, deu uma volta em tomo do arbusto e uma das armas
ficou apontada para o Thoen. Sandal prendeu a respiração.
— Não! — gritou em tom exaltado.
O Thoen desceu devagar, parando pouco acima da flor mais alta. Era um quadro
para um romântico e a morte para o animal. Uma raiva gelada tomou conta de Sandal.
Mas de repente ouviram-se quatro estalos duros e ligeiros em rápida sucessão. Vinham
mais da esquerda. Uma série de explosões sacudiu a mata.
Raios subiam de um lugar que não se via. Atingiram o planador na frente, atrás e
finalmente no centro. Houve explosões, soou um grito forte, e mais explosões se
seguiram.
— Eles mesmos estão derrubando seu planador! — gritou Tahonka em meio ao
barulho.
— É mesmo!
O planador foi atingido pelo menos uma dezena de vezes. Transformou-se num
monte de destroços incandescentes e fumegantes, que continuava a ser martelado
ininterruptamente pelos impactos. Uma máquina uivou num tom agudo, o planador subiu
quase na vertical para cair dentro de alguns segundos, deixando para trás uma enorme
nuvem de fumaça negra.
Quando bateu no chão, o planador explodiu.
Fragmentos incandescentes saíram zunindo e chiando, despedaçaram a vegetação e
entraram na floresta matraqueando. O barulho foi tão forte que quase estourou os
tímpanos dos homens. O Thoen soltou um grito forte, e esticou as pernas e voltou num
ziguezague cambaleante, embrenhando-se entre as copas das árvores.
O planador desapareceu numa série de explosões, dentro de uma nuvem de fumaça
que se espalhou em forma de cogumelo e levou muito tempo para ser dispersada pelo
vento que soprava preguiçosamente.
— Eu vi, mas quase não posso acreditar — disse Sandal em voz baixa e sacudiu a
cabeça. Parecia perplexo.
— A proibição também vale para seus próprios grupos. Até aqueles que são
destacados para proteger a Ilha da Felicidade não devem sobrevoar a faixa da morte —
disse Tahonka.
A nuvem de fumaça espalhou-se ficando entre o sol no poente e os dois homens.
Sandal cocou a nuca num gesto pensativo e disse:
— Logo, temos de desistir da ideia de capturar o planador e voar para a ilha.
— Sem dúvida — disse Tahonka. — Ainda insiste em atravessar a zona da morte?
— Insisto! — respondeu Sandal.
Já não havia nenhuma dúvida. As quatro faixas de terreno correspondiam mais ou
menos ao ambiente natural, mas via-se perfeitamente que tinham sido manipuladas para
transformar-se num sistema mortal. Até o capim, que crescia entre os espinhos e parecia
bem tratado parecia, apesar de seu porte viçoso, um resultado dessa forma estranha de
paisagismo.
— Cada passo representa um perigo! — repetiu Tahonka.
— Você já disse isso — observou Sandal. — Avançaremos passo a passo. Com isso
levaremos mais tempo. Devemos descansar antes de iniciar a travessia.
— Você é mesmo tão corajoso? Ou é apenas um sinal de falta de inteligência? —
perguntou Tahonka No em tom sarcástico.
— Às vezes nem eu sei. Mas Beareema e Chelifer costumavam dizer que é
coragem. Mas quem liga para a opinião das mulheres?
— Pelo menos aqui em Vetrahoon ela não vale nada — afirmou o ossudo e voltou
ao acampamento.
Foi encontrar o Thoen trêmulo, enrolado embaixo de uma árvore, com uma flor
rasgada nos dedos estreitos. De repente sua mão parecia muito humana e frágil.
Saldal seguiu-o, saltou para dentro da rede e logo adormeceu.
***
Tinham verificado constantemente os equipamentos, tinham amarrado os
recipientes de água, parte dos quais era formada por abóboras longas e achatadas e
tinham alimentado muito bem os animais. Estava tudo preparado — respiraram fundo,
por assim dizer, para atravessar o primeiro cinturão da morte.
— Resta saber se devemos viajar de noite, Tahonka, ou se é melhor arriscarmos de
dia.
Os dois pesaram os perigos que havia no solo e no ar. O ossudo começou a falar
depois de uma risadinha que era uma manifestação da coragem que voltara a despertar
dentro dele.
— Acho que devemos seguir um meio-termo, partindo na última escuridão da noite,
quando o horizonte começa a tingir-se de cinza.
— É uma boa solução — disse Sandal. — É a hora em que todos os guardas estão
dormindo.
Já era noite. Bem acima de suas cabeças, à última luz do sol, viram uma espaçonave
que acabava de decolar. O ruído ainda não chegara a eles.
— Acho que devemos tirar um bom sono. São sete horas. Logo, cada um montará
guarda por três horas e meia. Está certo?
— É exatamente o que eu acho — disse Tahonka. Estavam nervosos e ansiosos
como se estivessem para entrar numa luta que não podia ser evitada. A inquietação
carregada de ansiedade chegou a transmitir-se aos animais de montaria e ao Thoen, que
era um ser de alta sensibilidade.
As armas tinham sido examinadas, municiadas e limpas, a roupa estava limpa e as
provisões dariam para cerca de dez dias se regrassem bem. Os dois sabiam que a
prudência e a inteligência formavam os melhores ingredientes de uma missão arriscada.
Primeiro dormiu Sandal, com Tahonka No montando guarda. Depois se revezaram.
Montaram nos animais na escuridão da noite, foram devagar à borda da mata e
esperaram. O Thoen estava encolhido sobre a cabeça de Sandal, olhando em volta com
todos os olhos. Ninguém dizia uma palavra. Esperavam um sinal, um impulso que
servisse de estímulo para liberar as forças acumuladas. Muitos pensamentos atravessaram
a cabeça dos dois homens tentando confundi-los, mas depois de algum tempo o ossudo
cochichou:
— Lá adiante se forma uma trovoada. Quando cair o primeiro relâmpago forte
partiremos.
Tahonka riu e Sandal foi obrigado a sorrir. Sem arriscar não se conseguiria nada.
— De acordo, parceiro — disse o caçador e ajeitou as luvas. Algumas aljavas
estavam penduradas na sela, outras em suas costas. Estava preparado e...
— Em frente!
A mão espalmada do ossudo bateu ruidosamente nas costas do licamber. O animal
uivou, empinou e saiu correndo. Sandal puxou as rédeas, esperou alguns segundos e
seguiu de uma forma menos dramática.
O primeiro impulso seguido de um galope tamborilante levou Tahonka uns
duzentos metros pelo campo de espinhos.
Neste momento a primeira armadilha fechou-se.
Thoen caminhava orgulhosamente seguindo as pistas de Sandal e Tahonka No, com
um galho comprido na única mão. Sandal saiu cavalgando e tentava ficar exatamente na
pista de No. Achava que qualquer armadilha deixaria de funcionar se podia ser acionada
por um animal pequeno.
Ouviu-se um ruído no capim.
Além disso havia outro ruído, uma série de batidas fortes. Pareciam galhos se
mexendo. Tahonka viu pelo canto dos olhos formas alongadas se erguerem no capim.
Pareciam grandes cactos negros.
Um dedo indicador negro apareceu dez passos à frente do licamber, balançou
ligeiramente e reagiu à aproximação. O licamber provavelmente tocara numa raiz
sensível. O cacto disparou todos os espinhos que possuía. Seu comprimento era pouco
maior que o de uma mão humana. Os espinhos saíram zunindo para todos os lados, que
nem setas. Dez delas atingiram o homem e sua montaria.
Tahonka No mal sentiu os projéteis, mas o animal empinou gritando e choramingou
de dor e coiceando para os lados. Isto o fez pisar em outras raízes enquanto girava de um
lado para outro sem sair do lugar. Mais algumas centenas de espinhos foram disparados.
Bateram ruidosamente na pele de couro do ossudo, ricochetearam e caíram no chão sem
fazer nenhum efeito. Mas a pele do animal foi perfurada. Os espinhos penetraram nas
narinas e nos olhos, no pescoço e no focinho mole. Um minuto depois de ter começado o
ataque o animal já sangrava de cem feridas, saiu em disparada e tropeçou enquanto estava
correndo. Tahonka foi arremessado fora da sela, girou no ar que nem um gato e aparou a
queda. Também tocou nos nervos sensíveis das raízes, foi atingido várias vezes e
percebeu que um dos sacos de água estava esvaziando por ter sido perfurado pelas setas.
Elas ficaram presas em toda parte, nas roupas do homem de pele de couro, mas ele não
sofrera nenhum ferimento.
O ossudo levantou num instante e gritou para Sandal:
— Cuidado! Um campo minado formado por plantas. Siga exatamente minha pista,
senão está perdido.
— Entendido. E seu animal?
— Está liquidado, Sandal! — gritou Tahonka. — Pelo ídolo, não se desvie da trilha.
Sandal saiu cavalgando devagar, passo após passo. Os dois só tinham uma montaria.
Isto representava uma mudança de tática e uma carga adicional para o ossudo.
— Já vou!
Ao lado de Tahonka No, que arrancava furiosamente os espinhos da roupa, a
primeira montaria morreu em convulsões que sacudiam em forma de ondas a pele
escamosa. Sandal continuou na sela depois de entrar no círculo de terra revolta. Viu à luz
do amanhecer o que tinha acontecido.
— E agora? Que vamos fazer? — perguntou Tahonka No laconicamente.
— Usar a astúcia como sempre — disse Sandal. — Sua pele resiste aos espinhos.
Basta que você caminhe devagar à frente do animal, mantendo certa distância. Aí
atravessará a saraivada de espinhos e eu não serei ferido.
Tahonka No sacudiu os espinhos das bainhas da peça de roupa parecida com um
sobretudo.
— É seguro e confortável — para você — disse.
— Em compensação levarei sua bagagem. Depressa! — disse Sandal.
— Está certo. Devemos atravessar o campo de espinhos antes que apareça mais um
veículo aéreo de reconhecimento.
Como a faixa tinha cerca de trinta quilômetros de largura, ela podia ser atravessada
até pouco depois do nascer do sol, se o ossudo corresse bastante. Mas depois teriam de
enfrentar a faixa de areia, a respeito da qual tinham recebido um alerta drástico.
— Farei o que puder. Você.
Os dois rolaram o cadáver do animal e desamarraram a bagagem. Os dois tiveram o
cuidado de não pôr os pés na grama fora das inúmeras marcas de casco. Seria a morte da
outra montaria e também de Sandal e do Thoen.
Depois que a bagagem tinha sido colocada numa garupa do licamber de Sandal,
Tahonka No levantou o braço e disse:
— Correrei o melhor e o mais depressa que puder. Mas é bom que se cuide!
— Não se preocupe — respondeu Sandal.
Em seguida virou-se e tentou fazer sinal ao Thoen para que este compreendesse que
se tentasse voar sem dúvida correria perigo de vida. O Thoen saltava nervosamente sem
sair do lugar e disse em voz alta:
— To-en, toen!
Depois grasnou uma coisa que ninguém entendia, correu fazendo uma curva em
torno de Sandal e sentou ao lado do ossudo. No mesmo instante os três cactos se
ergueram e atiraram os espinhos para todos os lados. Só então o caçador compreendeu —
o Thoen também era imune ao impacto dos projéteis vegetais.
O animal e o homem ossudo andaram para o sul lado a lado.
À sua esquerda o horizonte tingiu-se de cinza, depois de prateado e finalmente
apareceu uma faixa vermelho-clara parecida com a luz do zodíaco.
Sandal e o licamber sobrecarregado seguiam os dois num trote ligeiro.
Passou-se uma hora... cerca de dez quilômetros, doze no máximo. A segunda hora
começou e depois de algum tempo Tahonka No foi obrigado a parar porque parecia um
porco-espinho de tão cheio de espinhos que estava, mas somente nas partes cobertas pelas
roupas. Afastou os espinhos finos verde-avermelhados aos montes e resmungou para
Sandal.
— Essas plantas nojentas escondem-se embaixo do capim. Não se pode vê-las antes
de pisar nelas e comprimir uma de suas raízes de nervos finos. Reagem à pressão e aos
abalos.
— Se o único perigo desta faixa for este, será fácil — disse Sandal, apesar de sentir
o coração palpitar com força.
As palmas das mãos e as costas estavam encharcadas de suor.
Mais um estalo surdo, e mais uma vez um cacto disparou seus espinhos. O Thoen e
Tahonka No foram atingidos, mas os espinhos, que eram um pouco menores e não
pareciam tão duros como das outras vezes, caíram sem fazer nenhum efeito.
Mas se fosse Sandal ele teria sido morto.
A segunda hora chegou ao fim. Entre os grupos de árvores bizarras, de copas
baixas, Sandal já via de vez em quando de cima do animal pedaços de areia. Eram as
cristas das dunas cuja extremidade superior, com o formato de ondas endurecidas, eram
atingidas pelos primeiros raios de sol.
— Antes do nascer do sol estaremos lá! — gritou Tahonka No e passou a correr
mais depressa.
Foi ficando cada vez mais claro, mas só se via a décima parte do disco solar
vermelho. O licamber seguia os dois seres num trote ligeiro. Ininterruptamente, à medida
que a estranha caravana se aproximava da areia, os cactos estouravam e atiravam
espinhos para os lados. Certa vez Sandal se arriscou a avançar demais. Foi atingido por
dois projéteis — uma vez no cinto em que estava presa a arma energética, e da outra vez
houve um estalo agudo quando o espinho bateu no rádio. Depois disso Sandal ficou um
pouco para trás. Já não tinha dificuldade em ver as pistas.
— Para onde está correndo? — gritou Sandal quando se via metade do sol.
Tahonka No corria que nem um louco entre os desenhos formados pelo capim
escuro e momo e as sombras compridas. Dirigia-se a um grupo de árvores e arbustos que
chamava a atenção e terminava no lugar em que a areia era substituída pelo capim — ou
vice-versa.
— Proteja-se! — gritou Tahonka e passou a correr ainda mais depressa.
Sandal sentiu uma lufada de ar quente vinda do deserto, que enxugou o suor que
porejava em sua testa. Depois teve muito trabalho para fazer sua montaria seguir a pista.
O Thoen e Tahonka alcançaram a primeira árvore em meio a uma série de cactos
explodindo em rápida sucessão.
Pararam. Depois o ossudo pisoteou o chão para formar uma trilha larga e percorreu
cuidadosamente os lados. Quando Sandal chegou, já não havia nenhum perigo, ao menos
por enquanto.
Tinham atravessado o primeiro cinturão.
Sandal quase caiu da sela enquanto dizia com a voz rouca:
— Lá adiante há mais um alerta para nós.
Soltou o arreio primitivo e pendurou a bagagem escassa e as aljavas em alguns
tocos de galhos secos. O ossudo estava completamente exausto. Sentou na coberta que
Sandal estendera no chão e apoiou a cabeça no tronco da árvore. Seu aparelho
respiratório produzia chiados constantes.
— Estou totalmente exausto! — fungou Tahonka No.
Sandal cuidou do animal e olhou em volta. Viu perfeitamente entre os galhos baixos
que formavam uma proteção verde, que já era dia. A luz vermelha do sol brilhava sobre
os ossos retorcidos de um grande esqueleto enfiado na areia a pelo menos trinta metros
do capim. Sandal teve um calafrio.
— Por Crater! — disse enquanto mastigava um punhado de nozes triangulares. —
Vamos enfrentar um dia muito quente.
4

O grupo de árvores, formado por cerca de doze troncos e cinquenta arbustos


carregados de frutas, tinha cerca de cinquenta metros de diâmetro. O Thoen subiu
rapidamente numa árvore e desapareceu.
Sandal sentou e contemplou com uma expressão triste o recipiente de água
inutilizado. Fez um buraco e escondeu a sacola; depois removeu alguns espinhos que
tinham ficado espetados na sua bagagem.
O ossudo levantou preguiçosamente o braço direito e disse com a voz clara:
— De forma alguma podemos atravessar o cinturão de deserto enquanto for claro.
— Sem dúvida. Também penso assim, No — concordou Sandal.
Parecia que no lugar em que estavam não corriam perigo. O sol foi subindo cada
vez mais e embaixo das copas das árvores era cada vez mais claro. Um bafo quente
vermelho enchia o espaço entre as árvores. O ossudo estava deitado, descansando,
enquanto Sandal contemplava a areia.
Aprendera a esperar.
A areia, pensou Sandal, é rocha destruída, moída. A natureza e a erosão trabalharam
milhares e milhares de anos para aplainar as rochas. Na melhor das hipóteses isto
significava que embaixo de certos pedaços das áreas cobertas de areia ainda havia rocha
firme. O resto era areia e ossos desbotados pelo sol, conforme dissera o alerta.
—Tivemos sorte. Já percorremos a quarta parte da distância.
— De fato, tivemos muita sorte — confirmou Tahonka No.
Se alguém que, por exemplo, possuísse um traje espacial descesse no planeta, este
alguém poderia atravessar o fogo cerrado de espinhos sem perigo. E se não usasse
nenhuma instalação energética, com um pouco de sorte deixaria de ser detectado, ainda
mais que nem os guardas tinham permissão de sobrevoar esta área.
O campo natural de minas vegetais era apenas um alerta muito claro.
O perigo aumentaria à medida que a gente se aproximasse da costa.
— A melhor maneira de descansarmos é dormir. Temos tempo até o anoitecer. Se
atravessarmos a faixa de areia de noite, não seremos vistos. A faixa de areia é mais
estreita que o campo que acabamos de atravessar.
— Você tem razão — disse o ossudo e levantou. Estava marcado pelas canseiras da
corrida; parecia ter emagrecido.
Os dois abriram as redes, amarraram-nas, também amarraram o animal de montaria
e adormeceram.
Depois de sete horas foram acordados por um grito estridente.
Reagiram com uma rapidez surpreendente e de forma certa.
— Levantar! Perigo!
Sandal e Tahonka No deixaram-se cair das redes, um para a esquerda e outro para a
direita. Quando saíram correndo, cada um para um lado, já estavam com as armas nas
mãos. Quando chegaram ao lugar onde terminavam as copas das árvores, pararam.
O animal de montaria soltara a corda, saíra do meio dos galhos e pastara até chegar
perto de uma raiz de cacto.
O cacto se levantara e disparara cerca de um terço dos espinhos para cima do
animal.
O licamber saiu em disparada, corcoveou e deu um salto. Gritou, acionou mais três
armadilhas de cactos e, fustigado pelas dores, correu diretamente para a areia.
Depois de ter percorrido cinquenta metros, começou a mergulhar. A areia formou
um redemoinho lento, o sangue saía de inúmeras feridas pequenas e a areia que descrevia
círculos engolia o animal centímetro após centímetro.
O licamber ainda tentou resistir algum tempo, com a boca escancarada e os olhos
saltando das órbitas, mas acabou afundando.
A areia movediça fechou-se, somente alguns tremores ainda alcançaram a superfície
e a movimentaram.
— Se eu tivesse esquecido de tirar a bagagem de cima do animal... — cochichou
Sandal e enxugou o suor da testa.
Sentia-se miseravelmente mal.
Voltou devagar para junto do tronco da árvore. Tahonka No aproximou-se do outro
lado.
— Não temos mais animais para montar — disse. — Voltamos a ser pedestres como
éramos no começo.
Sandal acenou com a cabeça. Parecia triste.
— Não temos muita coisa para carregar, mas fico me perguntando como o animal
poderia ter atravessado a areia. Tudo tem seu lado desagradável e seu lado positivo — e
este é o lado positivo.
O ossudo travou a arma, guardou-a e observou em tom sarcástico:
— Seu senso de humor é que nem a picada de uma serpente, parceiro!
— Sem dúvida — confirmou Sandal em tom resignado.
O jovem guerreiro levou duas horas para adormecer, mas quando o sol baixou e um
vento fresco soprou entre os galhos os dois estavam preparados.
***
Naquela região não havia mais crepúsculo. A noite caiu que nem um véu sobre a
paisagem mergulhada no silêncio. O vento quente que entrava embaixo das árvores vindo
do cinturão de areia vinha em rajadas cada vez mais irregulares e estava acabando — a
área devolvia de noite o calor absorvido durante o dia.
— Bebemos e comemos — disse Tahonka em voz baixa. — Vamos amarrar-nos um
ao outro.
— Isso mesmo! — respondeu Sandal e desenrolou as cordas amarradas que
colecionara cuidadosamente. As selas e os arreios dos animais mortos já tinham sido
tirados. Os dois pegaram as bagagens, enterraram os restos que não serviam para mais
nada e viram o Thoen olhar para eles com muito cuidado.
Dali a pouco estavam ligados por uma corda de quinze metros.
— Vamos testar! — sugeriu Sandal. Bastava que um nó se soltasse, que um pedaço
da corda se rompesse, para que estivessem mortos.
— Naturalmente.
Os dois parceiros saíram correndo cada um numa direção diferente. Quando a corda
se entesou, saltaram com toda força. Ela aguentou.
— Vamos!
Saíram debaixo das copas das árvores. A luz fraca e difusa do interior do “Enxame”
envolveu-os. Distinguiam-se vagamente os contornos da superfície ondulada da faixa de
areia. Os rastros dos pés do licamber já estavam sendo cobertos pela areia movediça.
Uma brisa ligeira soprava do leste.
— Amanhã também teremos um céu claro com poucas nuvens — disse Sandal.
— Quem vai na frente?
— Eu! — disse Sandal.
Seguiu os rastros dos animais e fixou aproximadamente o lugar em que o animal
afundara. Fez um círculo com dez metros de diâmetro. Os dois só afundaram alguns
centímetros. Tahonka seguiu os rastros dos pés de Sandal, o Thoen os de No. Uma
marcha silenciosa teve início.
O anel era formado por areia que deixou Sandal surpreso depois de ter percorrido
cinquenta metros. Era uma areia úmida e fria.
“Fria?” — refletiu.
Muito mais fria que o resto, e mais fria ainda do que ele imaginara.
Sandal ficou parado e seguiu a linha da corda que unia os dois. O ossudo também
parou.
— Não sabe como continuar? — perguntou.
Sua voz grave misturou-se à música dos grãos de areia.
— Não. Estou experimentando o caminho. Mantenha a corda esticada. Quando eu
gritar, faça o favor de puxar-me para trás.
— Está bem, amigo Sandal.
Sandal estava na vertente de uma duna batida pelo vento. Subiu com muito cuidado
até a crista, mas não afundou mais que de costume. Tahonka, que o seguia calmamente,
estava de olho nele. Duzentos metros. Pararam num grupo de três.
Sandal apontou para o Thoen.
— Você nos ajudará, amigo que solta miados. Se puder, se a areia movediça quiser
engoli-lo, levante voo. Vamos lá!
Ele e Tahonka No, que não demorara nem um pouco para compreender suas
palavras, pediram ao animal nervoso que fosse na frente. Comunicaram-se por meio de
gestos, terminando com uma tentativa de interpretar o voo.
“Que quadro esquisito”, pensou Sandal mais perto, “devemos ter formado como
figuras paradas na duna e agitando os braços.”
— To-en! — disse o animal.
Desceu pela encosta da duna, correu uns vinte passos e levantou voo. Ficou parado
no mesmo lugar e voltou a descer. Seu tufo de cabelos executou uma dança selvagem.
— Muito bem! — disse o ossudo. — É o planeta nos ajudando contra suas próprias
artimanhas!
— As artimanhas do planeta foram criadas pelos poderosos — corrigiu Sandal e
saiu andando.
Durante duas horas o esquema funcionou muito bem.
O Thoen caminhava um pedaço e, vendo que não afundava, ficava parado até que
Sandal e o ossudo o alcançassem.
Depois seguia adiante.
Num lugar em que a areia agarrou gulosamente as pernas do animal e tentou engoli-
lo, girando em espirais, o animal milagroso abriu as asas e puxou-se para fora da areia,
segurando o tufo de cabelos com a mão de uma maneira toda especial e puxando com
toda força.
— É um truque danado de inteligente! — disse o ossudo em tom de elogio depois
de terem atravessado mais uma pequena faixa de areia que suportou seu peso. Bem no
meio da noite Sandal tropeçou. Caiu sobre as mãos, praguejou e percebeu que estava em
cima de uma placa de rocha.
Sentou, sorriu e sacudiu dois montinhos de areia que tinham entrado nas botas.
— Que foi? — perguntou o ossudo ofegante quando chegou perto de Sandal.
— Estou sentado numa rocha!
Sandal olhou para trás. Os olhos de lince de Tahonka No seguiram a mão estendida.
Mal podendo ser vista na luz difusa, uma trilha atravessava a areia. Dunas “quebradas”
anunciavam a rocha escondida, que se estendia na direção norte-sul. Não poderiam ter
encontrado coisa melhor.
Sandal levantou de um salto e disse:
— Também contei. O Thoen entrou na areia movediça exatamente cento e trinta e
uma vezes. Sozinhos ainda não teríamos percorrido a décima parte da distância.
— Não faça discursos — disse o ossudo com a voz insistente. — Ande!
— Está bem.
Atiraram a corda sobre os ombros, mantiveram distância e seguiram a rocha que
aflorava na areia. Durante uma hora foi tudo bem, percorreram cerca de quatro
quilômetros ou mais. Depois de algum tempo o estado de espírito dos dois foi
melhorando na medida em que começaram a ficar descuidados. Sandal foi o primeiro que
percebeu que a rocha chegara ao fim.
Ainda há pouco alguns grãos de areia rangiam na pedra lisa, sob as botas do
guerreiro, e de repente ele tropeçou no vazio.
Deu meia-volta no corpo, segurou com força o arco e as aljavas e foi parar na areia
quente e úmida.
— Perigo... — gritou antes que a areia lhe penetrasse na boca e no nariz.
Sandal quase não conseguia respirar. Fungava que nem um animal agonizante. Seus
pulmões ardiam e sentia o gosto metálico da pedra triturada sobre a língua.
Com um forte solavanco sentiu-se agarrado no peito e embaixo dos braços.
— Consegui segurar você! — gritou o ossudo.
Sandal obrigou-se a ficar calmo, mas sua pernas trabalhavam em pânico, quase
contra sua vontade. Sandal segurou-se na corda e girou devagar. Dez metros acima dele
Tahonka No jogava todo o peso do corpo contra a corda, girou o corpo e puxou com
força. A corda cortou seu ombro musculoso.
— Continue!
Depois que as pernas de Sandal voltaram a obedecer à sua vontade, ele foi saindo da
areia centímetro após centímetro. Tentou encontrar um pedaço de rocha em que pudesse
agarrar-se.
— Espere! Não posso sair mais depressa.
A areia parecia puxá-lo com a força de algumas toneladas. Ao girar mais uma vez,
Sandal percebeu que o horizonte começava a colorir-se. O dia não demoraria a raiar.
De repente ouviu um farfalhar em cima de sua cabeça.
“Thoen!”, pensou.
— Muito bem — cochichou exausto quando quatro pernas se fecharam em cruz em
torno de seu corpo.
O Thoen bateu furiosamente as asas e tirou-o da areia como se fosse uma pedra. O
ossudo quase caiu quando o contrapeso no outro lado da corda foi neutralizado. Puxou
Sandal pelo ar até que ele ficou em cima da rocha sólida.
O Thoen soltou-o um metro acima do chão e Sandal deslizou para fora das pernas
cruzadas do animal.
Sentou e espirrou; a areia saiu em jatos de suas narinas.
— Droga! — disse arquejante.
Aos poucos o medo de morrer foi dando lugar a um alívio sem limites.
Três batidas surdas vieram de longe. Era como se uma grande bolha tivesse
estourado na areia.
— Aqui! — disse o ossudo e ofereceu uma abóbora de água a Sandal.
Depois de enxaguar a boca, Sandal tomou o líquido em grandes goles. Depois
levantou cambaleante, apoiado pela mão forte de Tahonka, e olhou para o Thoen
mostrando que admirava o animal.
— O Thoen salvou minha vida — disse. — Que posso fazer para retribuir?
O animal deu um salto e atirou para trás três esguichos de areia.
— To-en, To-en! — disse em voz alta.
Parecia a voz de um animal de brinquedo, mas o homem de Exota-Alfa não se
iludiu. Não sabia se Tahonka teria sido capaz de enfrentar a massa de areia movediça. O
fato era que os dois estavam completamente exaustos.
O ossudo tentou consolar Sandal, enquanto ele tentava remover a areia das roupas.
— Não falta muito. Ouvi o estalo das bolhas do pântano e lá atrás há uma faixa
escura formada por elevações redondas.
— Ótimo. Mas se ainda tivéssemos os animais seria mais confortável.
— Antes um vivo andando que um morto cavalgando — observou Tahonka No. —
Tem forças para caminhar?
Sandal limpou o rosto com um pano úmido.
— Vamos lá — respondeu.
Foram até o lugar em que Sandal tinha caído da rocha e mal viram mais embaixo a
areia lisa que já voltara a fechar-se. Desviaram-se para o lado permanecendo na crista de
uma duna. O Thoen passou à sua frente e começou a brincar de novo. O animal afundou
mais onze vezes, e onze vezes saiu sozinho. Onze vezes os homens contornaram a
respectiva área.
Finalmente viram as árvores que cresciam na faixa pantanosa destacando-se
fracamente contra o horizonte.
Só faltavam cem metros para chegar ao pântano quando o sol nasceu, derramando
uma luz malvada cor de sangue sobre a paisagem.
Esta luz assinalava o dia.
O Thoen abriu um rastro até as árvores, parou à frente delas e apontou com o braço
para o sol.
Por acaso Tahonka No olhou na direção indicada. Foi alarmado por um grito.
— To-en, To-en!
Dali a meio segundo o ossudo jogou Sandal na areia e disse em voz baixa:
— Um planador vindo do leste!
A pequena máquina aproximou-se numa velocidade incrível. Seguiu diretamente
para onde estavam os dois homens. Viu-se o lampejo e ouviu-se o estampido de um tiro e
os dois homens desceram do lado oposto da duna, quando um esguicho de areia subiu
bem à sua frente.
— Não atire! Podem localizar-nos! — gritou Sandal e puxou o braço para trás.
Quando uma das mãos acabou de colocar a flecha, o arco já se encontrava na outra mão.
— Já nos localizaram! — disse o ossudo e atirou.
Dali em diante foi tudo muito rápido.
O planador foi atingido e decepou uma área em forma de foice da crista da duna ao
cortar a areia a apenas dois metros dos dois homens. A parte dianteira detonou numa
explosão que soprou ar quente nos olhos dos homens. Sandal virou-se, ficou de costas,
levantou e viu o planador subindo o plano inclinado da próxima duna, correndo sobre a
areia gingando e sendo freado.
O veículo ainda estava ardendo quando a areia movediça prendeu a estrutura
metálica.
Quando o planador afundou, quatro portinholas abriram-se violentamente e delas
saíram cambaleando quatro figuras.
— São purpurinos! — gritou Sandal.
Atirou tomado por uma raiva cega; reconheceu os vultos. Disparou quatro flechas
em sete segundos. O primeiro tiro acertou um purpurino quando estava caindo do
planador fazendo um rolamento. As pontas quádruplas de aço terconite mataram-no no
momento em que seus joelhos tocaram a areia.
O segundo morreu quando estava levantando e atirando para a frente o braço com a
longa arma brilhante.
O terceiro e o quarto morreram de pé; um quando tentava escapar à areia movediça,
enquanto o outro ainda teve oportunidade de fazer pontaria e ver Sandal que, enquanto a
corda do arco cantava, escorregou duna abaixo e ficou sentado.
Tahonka No fitou Sandal. Parecia perplexo. Nunca vira tamanha rapidez de tiro.
— Eles... eles destruíram o castelo e mataram meus pais — disse Sandal cheio de
ódio. — Vou...
Levantou e subiu a duna com muito trabalho, até chegar perto do ossudo.
— Passou! — constatou o ossudo em tom sombrio. — Você se descontrolou; o ódio
tomou conta de você, amigo.
— Eu sei. Mas até que não atirei mal... No entanto — disse o caçador de cabelos
brancos.
Desceram correndo a última duna seguindo o rastro do animal que os ajudava.
Atravessaram uma superfície de areia plana e chegaram perto dos pântanos malcheirosos.
Voltaram a abrigar-se na sombra de um grupo de árvores de casca mole.
Tinham percorrido metade do caminho.
Acabavam de alcançar o terceiro cinturão.
— Vamos fazer uma pausa prolongada! — disse o ossudo. — Parece que daqui em
diante o caminho será difícil.
Mais uma bolha estourou; um cheiro de podre foi soprado pelo vento.
Sandal apontou para cima e disse:
— Desta vez acamparemos em cima da árvore, não embaixo. É mais seguro.
Precisavam descansar. Só depois disso poderiam enfrentar os problemas. Dali a
meia hora estavam dormindo entre os galhos. Thoen, que estava agachado na copa
arejada da árvore, também fechara todos os olhos, menos um.
Os roncos foram abafados pelos chiados, burburinhos e estouros do anel de
podridão.
5

O cinturão de pântano, lama e poças abismais tinha dezenove mil passos de largura.
Depois dessa distância transformava-se de forma quase imperceptível numa selva
formada por árvores entrelaçadas, trepadeiras e arbustos. No meio da zona negra, que
fumegava ininterruptamente, de cujas águas cheias de bolhas, bem quentes, subiam
constantemente gases venenosos, havia milhares de ilhas de chão firme. Nelas cresciam
arbustos bizarros das mais variadas espécies, além de árvores mais parecidas com
cogumelos pálidos que com árvores de folhagem, e em cima de tudo isso medrava uma
vida venenosa e repugnante. Lá também havia as árvores cuja casca estalava de tempos
em tempos com um tremendo ruído surdo, expelindo nuvens de gases fumegantes.
Tahonka e Sandal não perceberam nada disso.
Dormiram o dia todo, comeram e beberam, e passaram a noite seguinte dormindo
calma e profundamente. Recuperaram-se das canseiras e perceberam que suas reservas de
mantimentos tinham diminuído e eram menos variáveis. O Thoen não deu sinal de vida.
Ficou na copa da árvore.
Foi só uma hora depois do nascer do sol, no dia seguinte, que os dois amigos tão
diferentes ficaram de pé ao lado do tronco, olhando para o pântano. Sandal falou com um
sorriso amargo nos lábios.
— A inscrição é verdadeira, mas só em parte. Ainda estamos vivos, e somente dois
cinturões de perigo nos separam da ilha. Os outros atravessamos.
Depois de algum tempo Tahonka respondeu em tom cansado:
— Parece que o caminho termina aqui. Como faremos para ir de uma ilha para
outra? Ficam muito longe. Além disso seremos envenenados pelos vapores.
Já estavam bem perto da linha que separava as duas metades do planeta. As sombras
quase não podiam diminuir mais.
Devagar e indecisos, caminharam até o limite bem visível da ilha coberta de
vegetação, que era quase redonda. Quanto mais se aproximavam do pântano, mais
atordoante era o cheiro. Os olhos lacrimejaram e sentiam o interior das narinas arder.
Mais um estouro. Sandal estremeceu. Apontou para o grupo de árvores mais
próximo, que ficava a sessenta metros.
— A árvore está explodindo! — disse em tom de espanto. Uma das árvores inchou
e de repente a casca fina e branca rompeu-se logo abaixo da copa e pouco acima do chão,
formando um corte vertical e a casca bateu na árvore vizinha que nem um pedaço de pano
amarrado no tronco.
— Está jogando a casca!
A casca encolheu que nem um pano caindo no chão. A árvore exalava um gás
azulado de grandes poros que se abriram no tronco, agora branco. O gás subiu
imediatamente, escapando com uma rapidez tremenda por cima dos galhos. Pedaços de
casca e folhas abauladas caíram no capim e subiram devagar.
— Desta vez não encontraremos chão firme para pisar — observou Sandal
aborrecido. — Como faremos para atravessar a área pantanosa? Será que teremos de
construir um barco?
— Mesmo que isso fosse possível — disse o ossudo — os gases venenosos nos
matariam. Além disso... olhe do outro lado.
Uma tocha de gás de cinquenta metros de altura esguichou em alta velocidade do
solo subindo obliquamente, queimou algumas aves, espalhou o resto do bando e voltou a
baixar. Dali a um minuto voltou a sair fogo do chão em putrefação, desta vez em outra
direção.
— Deixe-me pensar! — disse Tahonka No.
Sandal resmungou, tentando desesperadamente encontrar uma saída:
— O gás sobe.
— E carrega parte da casca e das folhas. Quer dizer que sustenta algum peso.
— Será que pode nos carregar?
— Acho que não — respondeu Tahonka. — Somos pesados e teríamos de recolher
uma quantidade enorme de gás. Muito peso, muito gás.
Sandal lembrou-se da rede, amarrada junto com a coberta. Fez um gesto com as
mãos.
— É muito pequena.
— Temos uma coisa maior? — perguntou Sandal em tom irritado.
— Não temos nada que seja maior.
— Se não temos, precisamos construir — disse o caçador de cabelos brancos.
Sentiu que aos poucos ia surgindo uma solução, mas ainda não a conhecia.
— De quê?
— Do material que encontramos aqui — disse Sandal.
— Aqui só podemos contar com a lama e o capim, as folhas e a casca da árvores. A
casca? A casca!
Tahonka No deixou cair o queixo, soltou uma estrondosa gargalhada e gritou:
— A casca, Sandal! Está resolvido.
— Que casca?
O ossudo apontou para a grande ilha coberta de árvores e gritou em tom exaltado:
— A casca lançada pela árvore.
— Temos de juntá-la — disse Sandal em tom de dúvida. — Como faremos isso?
— Costurando... não é possível. Que outras matérias-primas nos fornece o planeta?
Sandal lembrou-se de uma espécie de casca de árvore que conhecera em seu mundo.
Sua babá costumava reclamar quando voltava com os dedos pegajosos de resina depois
de ter brincado durante horas no mato.
Dedos grudentos?
— Grudar! — disse nervoso. — Podemos colar a casca.
— Com quê?
— Com a resina das árvores. Vamos encontrar por aí. Aquecemo-la, passamo-la nos
pedaços de casca e colamos estes. Aguentarão por bastante tempo, se fizermos um
reforço com trepadeiras ou fibras.
— É a solução. Qual é a melhor maneira de recolhermos o gás?
— Uma esfera — disse Sandal.
— Como poderemos compor uma esfera? Com que formas?
Experimentaram algum tempo rasgando folhas em diversas formas até descobrir
que deviam formar elipses pontudas. Quanto mais estreita e comprida a elipse, maior a
esfera. Mas não estavam dispostos a passar semanas trabalhando. O primeiro modelo
devia servir para o que queriam.
— Será que é a única possibilidade? Encher uma esfera com gás e ficar pendurados
nela? — perguntou o ossudo em tom desconfiado. Parecia não confiar muito em sua
própria ideia.
— Não vejo outra. Mas aqui só há três árvores. Temos de dar um jeito de chegar à
ilha maior.
Tahonka No refletiu um instante e disse:
— O Thoen nos levará. Serão três voos: Sandal, a bagagem e eu.
— Você se comunica muito bem com ele — disse Sandal. — O que estamos
esperando?
— Muito bem. Vamos trabalhar.
Conseguiram fazer sair o Thoen da copa da árvore. Em seguida Tahonka executou
uma pantomima muito bem-sucedida, enquanto Sandal amarrava a bagagem na rede leve
— deixou as armas em separado. Parecia que o animal tinha compreendido.
Dali a alguns minutos começou o primeiro voo.
Tiraram a sorte com talos de capim longos e curtos. Tahonka perdeu o jogo.
Segurou a mão do animal, os quatro membros deste trançaram-se embaixo dele e o Thoen
subiu devagar levando a carga pesada, realizando um voo balançante que o levou à ilha
maior. Sandal acompanhou o voo muito preocupado — o animal estava sobrecarregado e
voltava a cair, mas acabava aparando a queda no último instante e finalmente pousou
numa queda, que não machucou nenhum dos dois.
— A vingança é cara e perigosa — disse Sandal a si mesmo.
Esperou que o animal descansasse um pouco e voltasse.
— Primeiro eu — decidiu Sandal. — A bagagem é mais leve, e além disso não é tão
importante.
Sandal imaginou como seria se ele e o Thoen caíssem numa poça de lama fervente,
mas sacudiu a cabeça, deitou esticado no chão, segurando firmemente o arco e as aljavas.
As pernas do animal enfiaram-se embaixo dele. Sandal agarrou uma das juntas e
segurou-se nela.
O voo cambaleante teve início. Sandal fechou várias vezes os olhos quando o
animal perdia altura e só voltava a subir pouco acima dos esguichos de lama. Finalmente
o chão firme parecia correr ao seu encontro. Sandal esticou o corpo para a frente. Ele e o
Thoen capotaram várias vezes e foram parar aos pés do ossudo, que amarrara um galho
na corda e a mantinha em posição de arremesso.
— Mais uma vez fomos salvos por milagre. O que seria de nós se eu tivesse achado
que o Thoen era uma caça ou um animal feroz? — disse em tom pensativo e ficou de pé
com os joelhos trêmulos, sacudindo a cabeça.
O Thoen foi buscar a bagagem, que era mais leve.
Em seguida escondeu-se embaixo de um arbusto e dormiu vinte e três horas.
Enquanto isso os dois homens construíram o balão de gás.
Encontraram pedaços de casca que ainda estavam úmidos. Nove ao todo foram
recortados com as facas na forma desejada. Logo viram uma seiva leitosa saindo nas
áreas de corte. A seiva levou quatro horas para secar.
Sandal colocou uma rede de trepadeiras em tomo do envoltório frouxo e fez votos
de que não tivesse errado nas medidas.
Comprimiram as áreas de corte e esperaram que a seiva cobrisse a costura larga. Às
vezes espremiam mais seiva para passá-la nesses lugares.
A rede e o envoltório foram ligados.
No primeiro dia trabalharam bastante, no segundo dia terminaram de construir uma
esfera cujo diâmetro era três vezes maior que a altura de um homem — era uma esfera
bastante irregular — e depois começaram os problemas. Como fazer entrar o gás no
balão?
— Por meio de um tubo comprido que colaremos numa árvore — sugeriu Tahonka
No.
— Talvez funcione — disse o caçador de cabelos brancos. Estavam sujos dos pés à
cabeça, grudentos e cheiravam tão mal que chegaram a perceber naquele inferno de gases
putrefatos.
Mas uma coisa eles tinham: tempo de sobra.
Esperaram que uma das árvores expelisse a casca com o estouro, cortaram-na ao
comprido e colaram-na para formar uma mangueira de vinte e dois metros. O ossudo
ligou a mangueira com a parte inferior do balão, que estava aberta, e passou litros de
seiva na abertura.
Depois voltaram a discutir o trabalho.
Como se podia obrigar um tronco a soltar o gás que havia em seu interior?
Experimentaram com facas. Abriram buracos, dos quais realmente saiu chiando um jato
de gás. Logo, precisavam de buracos maiores, dos quais saísse mais gás.
Sandal arriscou-se a usar a arma energética por um instante para abrir um buraco
mais fundo. Encostou a extremidade da mangueira no buraco e o gás atravessou a
mangueira frouxa chiando e rugindo. Finalmente chegou ao balão e começou a inflá-lo.
Sandal abriu um total de cinquenta buracos com a arma energética.
Depois de receber o gás de vinte buracos, o balão frouxo começou a levantar,
formando uma espécie de cúpula de aspecto ainda mais insignificante do que Sandal e o
ossudo tinham imaginado. O gás escapou por alguns furos. No tapou estes furos com
resina e remendos de casca de árvore. Outras cordas de fibra formaram as malhas mais
fechadas de uma rede. Quando o balão ficou cheio até dois terços de sua capacidade, o
trabalho de enchimento teve de ser interrompido. A massa que pulsava para cima e seria
perfeitamente capaz de carregar os dois homens foi amarrada com trinta cordas em
galhos e raízes. As cordas saíam de lugares que podiam ser alcançados com facas da parte
inferior do balão. Não havia pedras que pudessem servir de lastro, No quarto dia ficaram
tão eufóricos com o resultado que trançaram a gôndola num tempo recorde.
— Descobrimos o meio certo — disse Sandal em tom de espanto. — Não tem nada
de bonito, mas levar-nos-à em segurança por cima do pântano.
Neste instante a tocha periódica voltou a acender-se perto deles, queimando mais
alguns galhos e folhas próximas, porque desta vez a língua de fogo passou quase na
horizontal sobre o pântano.
No quinto dia concluíram o trabalho.
— Esta bola ainda acaba arrastando a ilha! — disse o ossudo e riu alto.
Ainda trabalhavam muito bem protegidos pelas copas das árvores. Depois de sair da
ilha voando estariam relativamente indefesos. Era bem verdade que até então só tinham
visto objetos voadores que estavam à sua procura somente sobre a areia, nunca em cima
da faixa de pântano.
O balão estava cheio e os últimos buracos foram fechados.
No polo inferior, perto da mangueira comprida, havia uma espécie de esteira presa
com sessenta cordas, na qual cabiam os membros da expedição e as bagagens. Os
mantimentos tinham sido quase todos consumidos; só restavam alguns sacos de nozes e
duas abóboras-garrafa.
— Quando partiremos? — perguntou Sandal.
— Na próxima noite, se o vento for favorável. Precisamos de vento norte, que é raro
nesta região.
Sandal bateu com o pé e exclamou:
— Vencemos todos os perigos, até podemos voar sobre o pântano, e agora temos de
esperar e morrer de fome.
O ossudo corrigiu com muita filosofia:
— O bom guerreiro espera com uma paciência infinita. Ouvi isto de você.
Sandal gritou furioso um palavrão impublicável, sorriu e disse:
— Você tem razão... mas estou lembrado de que há dois dias houve uma trovoada
que correu rapidamente para o sul.
— Quer dizer que terei de fazer uma feitiçaria para produzir uma trovoada! —
afirmou o ossudo.
— Você é capaz? — perguntou Sandal perplexo.
— Não — respondeu Tahonka No.
Tentaram limpar-se, comeram nozes e beberam a água morna. Esperaram. Que mais
poderiam fazer? Esperaram um dia e metade de uma noite. Quando o primeiro raio correu
sobre a distante savana de espinhos, um acordou o outro.
— A trovoada, Thoen!
O animal, que saíra constantemente à procura de alimentos e encontrara bem pouco,
saiu do meio das árvores. Os numerosos olhos pareciam deprimidos à luz da tocha do
pântano. O ruído de mais uma árvore estourando misturou-se ao trovão. O balão estava
completamente cheio de gás.
— Vamos esperar a trovoada ou saímos voando à sua frente?
— A chuva pode molhar o balão e desmanchá-lo — ponderou Tahonka.
— Quer dizer que sairemos à primeira rajada de vento.
— Assim seja feito! Pelo ídolo amarelo! — gritou o ossudo em tom decidido.
Colocaram o Thoen na rede, também entraram e certificaram-se de que não tinham
esquecido nada da bagagem. A cola feita de resina transformava-se, depois de ter perdido
a umidade, numa massa parecida com borracha, que arrancava todos os pelos ao ser
removida da pele. Sandal praguejava sem parar. Mas desta forma quase toda a sujeira era
removida da roupa.
A trovoada aproximou-se ribombando e relampejando.
A luz mortiça desapareceu do céu quando a chuva varreu a areia e as primeiras
rajadas de vento remexeram o gás e sacudiram as árvores.
— Cortar as cordas, de maneira uniforme.
— Entendido. Cortar cada terceira trepadeira.
Os dois começaram a desenvolver uma atividade febril com suas facas afiadas.
Cada um contornou três vezes a metade do balão, as últimas cordas estouraram sozinhas.
A esfera empurrou os galhos e precipitou-se noite afora.
Subiu quase na vertical.
Sandal soltou o anel duplo de cordas que envolvia a mangueira comprida arrastada
pelo balão e ouviu pequena quantidade de gás escapar. Voltou a fechar o anel de cordas e
o balão estabilizou-se a cerca de cento e vinte metros de altura.
O balão girou, balançou, e os homens seguraram-se desesperadamente nas malhas
da rede.
— Estamos voando! — constatou Tahonka.
Voavam para o sudeste, mais ou menos na direção do porto espacial cujas luzes
criavam uma auréola vaga sobre a selva.
A viagem perigosa estava começando. Um golpe de tempestade atingiu o balão,
virou-o como se fosse uma pena e ameaçou atirar para fora os homens. Depois o balão
voltou a descer, diretamente para um gigantesco lago negro cheio de bolhas estourando.
A mangueira comprida era arrastada pelo capim e pela vegetação, pela lama e pelas águas
borbulhantes.
— Vamos cortar esta maldita mangueira! — uivou o ossudo.
— Aí nosso balão vira de vez! — respondeu Sandal berrando.
Um relâmpago atingiu uma árvore e os dois viram na luz ofuscante o vegetal em
forma de garrafa ser dividido em várias partes. Uma rajada forte fez subir novamente o
balão e o gás expelido pelos pântanos era cada vez mais rarefeito. Os homens pararam de
tossir.
O Thoen vivia cobrindo os olhos com a mão estreita, um após o outro, ao acaso.
Além disso miava forte sem parar.
— Temos de passar pela tocha!
— Salte e puxe-nos para a esquerda! — esbravejou o ossudo.
A tempestade e as pancadas de chuva que fustigaram a paisagem depois dela faziam
subir e descer o balão, que balançava e rodava. Naquele momento ia diretamente para
uma das colunas de fogo periódicas, que saíam do pântano em toda parte, num ritmo
regular.
Se a tocha entrasse em contato com o balão, ele explodiria e os homens seriam
atirados no pântano que os engoliria.
— Nosso fim está próximo! — gritou o ossudo desesperado.
— Por enquanto estamos vivos — respondeu Sandal.
6

A trovoada mudou de direção e a tempestade ficou mais violenta. Comprimia as


tochas de gás chiantes contra o chão e umas poucas plantas foram chamuscadas.
Incêndios espalharam-se.
— Seremos mortos pelo relâmpago! — gritou Tahonka No.
Tremia por todo o corpo e segurava-se desesperadamente nas travessas feitas de
faixas de casca de árvore e fibras trançadas.
— A chuva apagará os relâmpagos! — contestou Sandal.
Correntes de ar quentes e frias, úmidas e secas misturavam-se sobre o cinturão de
pântanos. Brincaram com o estranho aparelho voador como se fosse uma bola. Certa vez
o balão girou loucamente, ameaçando atirar seus ocupantes para fora da gôndola.
Depois a esfera correu em direção ao solo, entrou nas colunas de ar que subiam para
o fogo claro das tochas, uma vez a mangueira atravessou o fogo e grande parte dela foi
despedaçada pela explosão dos gases.
Em seguida uma saraivada de pingos do tamanho de nozes bateu na casca,
amoleceu-a, mas antes que ela pudesse desmanchar-se foi seca por um vento quente. A
bola voltou a subir, balançava constantemente que nem um sino e finalmente a
tempestade, que a molhou com uma pancada de água martelante, empurrou-a para perto
da superfície do pântano.
“Vamos morrer afogados nas poças!”, pensou Sandal.
Um gigantesco buraco aberto no pântano apareceu à sua frente.
A tempestade revolvia a superfície negra como se fosse um lago pequeno. À luz dos
relâmpagos os ocupantes do balão viram uma paisagem composta de instantâneos tirados
ao acaso.
A ponta esfiapada da mangueira mergulhou na água negra, deixou uma trilha de
sujeira e voltou a ser arrastada sobre a terra. Prendeu-se em algumas plantas, rasgou o
chão elástico e continuou serpenteando.
O gás escapou chiando de algum lugar da parte superior do balão.
— Estamos caindo! — gritou o ossudo.
O trovão que veio de repente engoliu a última palavra.
O balão foi descendo. Alguns cabos de sustentação arrebentaram com um estouro
enquanto a gôndola estava sendo arrastada pela lama. Dali a instantes mergulhou numa
poça de lama, foi levantada violentamente e de repente o fim parecia mesmo iminente.
O balão perdeu gás rapidamente.
Ao mesmo tempo a chuva e a tempestade atiraram o balão para o lado, num final
dramático iluminado pelos relâmpagos em ziguezague, e o fizeram bater no dique que se
erguia para lá da última ilha.
O balão continuou perdendo gás e rolou pelo chão, através do pântano, dos
arbustos, galhos e capim. Uma mão invisível agarrou-o e o arremessou para o sul,
fazendo-o esbarrar na copa de uma árvore gigantesca com inúmeras bifurcações.
Em seguida, depois de mais um relâmpago e trovão, a chuva desceu lentamente, em
trilhas largas abertas pelos pingos, encharcando os dois homens, o Thoen e a bagagem,
além dos restos miseráveis do balão.
O voo terminara — os amigos ainda estavam vivos.
O impacto deixara-os atordoados, mas depois de alguns minutos a chuva fria
martelando seus rostos os fez acordar. Sandal emitiu um ruído gutural enquanto cuspia
um jato de água lamacenta, e disse em voz alta:
— Estamos machucados e cansados, mas escapamos sãos e salvos de mais uma
zona perigosa. Cuidado — você vai cair.
Estavam deitados ou sentados nos restos elásticos do balão sustentados pela rede. Se
os dois se mexessem demais, havia perigo de que um deles escorregasse e despencasse de
cima da árvore. A tempestade balançava a copa e o rangido dos galhos formava um fundo
musical horrível para a tempestade e os raios.
— Já passou. Estou me segurando. Tivemos mais sorte do que podíamos esperar —
disse o ossudo e escancarou a boca para beber a água da chuva. Aos poucos os dois
amigos foram se acalmando.
O Thoen miava. Passou por cima da rede e de algumas peças de bagagem e
desapareceu entre os galhos.
Uma sombra gigantesca aproximou-se farfalhando e batendo as asas. Passou bem
alto. Quando tentaram distinguir alguma coisa à luz dos relâmpagos cada vez mais fracos,
o véu espesso formado pela chuva não deixou.
“Deve ser um animal”, pensou Sandal, “um gigante da selva voando entre nós e a
costa do mar.”
— E agora? — perguntou o ossudo.
— Vamos ver se conseguimos sair de nosso pouso desconfortável. Podemos
amarrar a rede sob a proteção dos galhos e comer o resto de nossas provisões.
— Concordo. Mas vamos esperar que a chuva pare.
— Está bem — respondeu o jovem guerreiro.
A água corria por sua cabeça. Estavam completamente encharcados e além disso os
insetos os maltratavam.
— Que foi aquilo que passou por cima de nós? Tem alguma explicação? —
perguntou Sandal e tateou à procura das armas e da aljava.
— Um animal da floresta; um animal gigantesco. Preciso vê-lo à luz do dia — aí
talvez possa dar uma informação mais detalhada — respondeu o ossudo.
Juntaram suas bagagens na escuridão, interrompida de vez em quando por
relâmpagos distantes. Depois desceram com muito cuidado, um atrás do outro, pelo galho
mais grosso e prenderam as redes.
Ainda tinham pela frente uma marcha de vinte ou vinte e cinco quilômetros através
de uma selva cujos perigos nenhum dos dois conhecia.
“Estes perigos não devem ser muito diferentes daqueles que espreitam o viajante na
selva de qualquer planeta”, pensou Sandal enquanto cochilava.
Pensava assim apesar de só conhecer bem as matas de um planeta — do planeta em
que tinha nascido.
E nisso estava completamente enganado.
***
Dali a algumas horas a trovoada já tinha passado.
O céu clareou, parou de chover e o silêncio só era interrompido de vez em quando
por algum trovão distante, por uma árvore estourando ou pelo tiquetaquear dos pingos
caindo de folha a folha.
O calor aumentou, o vento ficou mais forte e passou entre as folhas. Enquanto os
homens dormiam o animal gigante passou de novo por cima da árvore gigantesca, em
sentido contrário. Era um sáurio voador de um tamanho incrível, que fazia mexer os
galhos superiores ao bater as asas.
O animal desapareceu para o lado em que ficavam as luzes distantes do pequeno
porto espacial de formas irregulares.
Tahonka No só acordou quando o sol já estava dois palmos acima das copas das
árvores e seus raios fortes carregavam o calor penetrante do dia.
— Vamos iniciar uma caminhada difícil, parceiro — disse Tahonka No e acordou
Sandal. Pegaram as bagagens e desceram quarenta metros antes de pisar em chão firme.
Este chão era formado por folhas frescas e podres, por uma fina camada de humo e uma
massa de insetos pequenos, rastejantes e voadores, que assustou os dois homens.
— Precisamos de água com urgência, além de mantimentos e um pedaço enorme de
carne assada. Sem isso não dou um passo! — disse Tahonka No.
— Penso exatamente como você, parceiro — respondeu Sandal e saiu andando
devagar para o sul.
Os insetos martirizaram-no e o deixaram nervoso e irritado dentro de alguns
minutos. Vinham de todos os lados e corriam em cima de sua pele, escondiam-se no nariz
e nas orelhas e causavam um formigamento desagradável na pele e no pescoço.
Era insuportável. Sandal tirou o arco de cima do ombro, pegou três flechas e jogou
fora duas flechas de talos de capim que tinham sido inutilizadas.
— Isto é de enlouquecer! — gemeu Sandal.
— Nada de reações que não combinam com o momento! — disse Tahonka, que
parecia não se importar com os insetos.
Depois de terem caminhado cerca de um quilômetro chegaram a uma clareira de
aspecto muito estranho. Uma paz ilusória cobria a área de cerca de cem metros de
diâmetro. Duas rochas saíam obliquamente do chão e uma nascente brotava numa colina
redonda, formando uma pequena poça de dois metros de profundidade e dez de diâmetro
— o buraco parecia a cratera aberta por um meteoro.
De repente Sandal sentiu uma compulsão irresistível. Parou, olhava ansiosamente
de um lado para outro e procurou alguma coisa que pudesse atacar, matar, estraçalhar.
Respirava com dificuldade e quando olhou para o ossudo foi puxando devagar e com um
movimento inseguro a corda do arco. A ponta da flecha tremia levemente.
— Procuro... — cochichou Sandal com a voz rouca. — Procuro alguma coisa... que
tem de morrer...
O ossudo saltou para perto dele, empurrou o arco para baixo e disse em tom áspero:
— Você ouve fantasmas. Há uma armadilha adicional instalada nesta selva — trata-
se de uma ordem sutil do poderoso. Ele ordena a todo ser pensante que pratique atos de
agressão, que mate. Procure escutar bem dentro de você e sem dúvida compreenderá
estas ordens.
Confuso, o jovem guerreiro afrouxou a corda do arco e fitou o ossudo com uma
expressão de perplexidade.
— Você tem razão — disse e respirou aliviado. — São ordens que chegam e
desaparecem.
Tahonka No tocou no ombro do amigo e disse em tom de súplica:
— Eles usam uma espécie de rádio para transmitir ordens. Talvez você possa
transformá-las em sons em seu rádio de pulso. A transmissão é feita em ondas, ora mais
fortes, ora mais fracas... É claro que também as sinto.
Sandal acenou com a cabeça para mostrar que tinha compreendido.
— Se as transmissões fossem mais fortes, todos os seres que vivem nesta selva
atacariam todos os outros. Onde está o Thoen?
— Veio conosco quando descemos da árvore.
— Pois então vai aparecer de novo — disse Sandal. — Vou ver se encontro carne
para nós. Enquanto isso você cuida da bagagem e faz fogo. Combinado?
— Combinado.
Sandal desapareceu na vegetação. Numa larga faixa em volta da clareira, onde
penetravam os raios do sol, a mata virgem transformava-se no tipo de floresta que tinham
visto do outro lado das montanhas — o chão também estava coberto de plantas verdes.
Sandal seguiu uma trilha de animais que levara apenas alguns minutos para
descobrir. Andou uns duzentos metros, examinando os arredores com os olhos
penetrantes. Acabou matando um animal parecido com uma gazela com orelhas muito
compridas. Dali a pouco o espeto estava girando sobre o fogo. Mas o sol estava úmido e
embolado.
Enquanto Tahonka girava o espeto, Sandal andou pela segunda vez em tomo da
pequena lagoa, examinando a vegetação. Decepou a cabeça de algumas cobras que
pareciam perigosas, mas viu que não havia animais ferozes escondidos. Os insetos
também não incomodavam tanto.
Os dois amigos tiveram de refazer suas provisões, cuidar do corpo e verificar e
consertar a bagagem antes de poderem seguir adiante.
Passaram três dias neste lugar.
Três dias que foram, em parte, um inferno horrível, silencioso.
No primeiro dia, quando Sandal estava deitado no sol, cortando as unhas, ele sofreu
mais um ataque de vontade de matar. Pôs-se de pé de um salto, pegou a arma energética e
saiu correndo.
— Espere, idiota! — berrou Tahonka e saiu correndo atrás dele.
Os dois correram tropeçando quinhentos metros pela mata, até que Sandal parou de
repente. Havia um grande animal parecido com uma serpente enrolado num tronco de
árvore, fitando os homens com os olhos enormes e rosnando baixo. Dois tentáculos
brincavam sobre a cabeça do réptil, movendo-se que nem os tubos de pólen de flores
raras.
— Vou matá-lo, bicho nojento... estraçalho você! — gritou Sandal.
Uma dor lancinante martelava suas têmporas.
— Pare! — trovejou a voz do ossudo.
O animal enrolou o rabo num galho, entesou os músculos e levantou a cabeça,
ameaçadoramente ou assustado. Uma faixa azul apareceu na parte inferior da mandíbula.
O azul era uma cor que não tinham visto em nenhum animal desse planeta.
Sandal travava uma luta consigo mesmo. Levantou a arma, fez pontaria, sua mão
balançou e o dedo encostado no gatilho começou a tremer. O suor corria em abundância
por sua testa e ardia nos olhos.
Tahonka No baixou a mão de Sandal e deu um golpe violento de quina de mão no
músculo de seu braço.
— São estas ordens de novo! — gritou zangado. — Vamos! Volte!
Sandal baixou a cabeça e disse em tom envergonhado:
— Compreendi... é somente um cochicho misterioso... como podemos defender-nos
disso, amigo?
O ossudo olhou por acaso para o animal, que balançava nervosamente com a
cabeça, a dez metros do lugar em que estavam, e executava movimentos de pêndulo com
o pescoço comprido.
— Vamos voltar ao acampamento. Quando começar de novo teremos de refletir.
— Acabou neste instante — afirmou Sandal e esfregou a testa.
A dor parara tão de repente como tinha começado.
Tahonka No colocou o braço duro sobre o ombro do jovem guerreiro e levou-o de
volta ao acampamento. O ossudo tinha certeza de que na ilha do mar interior havia um
transmissor hipnossugestivo que cobria a área de três em três horas.
As emissões deviam fazer com que os intrusos que tivessem chegado à faixa de
mata cometessem atos agressivos precipitados. Tahonka No orientou-se por isso e pôde
evitar que a hipnose o levasse a fazer coisas que não queria, mas Sandal sofria muito com
isso.
Recuperou-se depressa. Os dois já sabiam de quanto em quanto tempo a influência
atingia o auge.
— Que animal é este que quase ataquei? — perguntou Sandal e começou a limpar
metodicamente as botas e remover as pedras e espinhos, além da lama seca que se
acumulara nas reentrâncias.
— Não é deste planeta.
— Por que acha que não é? — perguntou o ossudo.
Sandal lembrou-se nos minutos durante os quais a tendência de cometer um ato
agressivo se tomara cada vez mais forte. Tivera uma visão no meio dos pensamentos em
revolta. Azul? Isso mesmo. O azul no pescoço da serpente. Sandal disse a Tahonka No o
que tinha visto.
— Esta cor não é encontrada nos animais deste planeta — pelo menos nunca a vi —
disse o ossudo depois de algum tempo em tom pensativo. — Você tem razão. Este animal
não nasceu no planeta Vetrahoon.
— Devem existir outros monstros que foram largados aqui. Os poderosos fazem
tudo para proteger-se. Além de canhões escondidos há feras assassinas.
— Por enquanto não vimos nenhum animal feroz — contestou o ossudo.
Em vez de responder, Sandal apontou para cima.
— O que está vendo?
— O animal gigante que já passou por aqui antes — disse Sandal em tom calmo. —
É mesmo um gigante.
Os dois olharam atentamente para cima.
O enorme monstro alado estava descrevendo círculos. Não tinha muita semelhança
com um pássaro. Era parecido antes com os animais que Sandal vira a bordo da Good
Hope II. Chelifer Argas lhe dissera que estes animais já tinham vivido em seu mundo.
“Qual é mesmo seu nome?”, perguntou-se Sandal.
Sáurios!
— É um sáurio voador— disse em voz baixa.
— Pode ser. Não conheço este animal — respondeu Tahonka No.
Os dois olhavam fixamente para o animal, que parecia estar à procura de alimento
ou de um lugar para descansar. Parecia ser formado por dois triângulos; asas gigantescas
estendiam-se entre cada par de pernas. Um pescoço comprido, um bico em ponta e um
acréscimo em forma de martelo, além de uma cauda longa que servia de leme, eram suas
características principais.
Sandal comparou a altura das árvores com as dimensões do animal e chegou à
conclusão de que este tinha oitenta metros de comprimento — um animal impressionante.
Dois deles já teriam exterminado toda a vida no cinturão de selva.
De onde vinha seu alimento?
Eram reflexões que só podiam passar pela cabeça de um caçador bom e experiente.
— É estranho! — disse o ossudo. — Incrível. Não sei como o animal não nos viu de
noite, quando estávamos na copa da árvore.
Sandal fez um gesto de pouco-caso.
— Para este gigante do ar não passamos de uma mosca.
— É verdade. Quando seguiremos viagem?
— Depois que cada peça de nosso equipamento estiver em perfeita ordem —
respondeu Sandal. — Além disso precisamos arranjar mantimentos.
— Pode começar logo. Estes arbustos estão carregados de nozes — disse Tahonka
No e fez um sinal para o Thoen, que apareceu entre os arbustos sacudindo um galho
pequeno.
Em vez de dar uma resposta, Sandal saltou na água e ficou nadando de um lado para
outro.
Seu corpo assumira em toda extensão a mesma cor que o ossudo; era moreno
escuro. Nem mesmo o ruído dos propulsores das espaçonaves perturbou os dois amigos.
Verificaram as roupas e os armamentos, comeram e beberam, descansaram e de três em
três horas combatiam juntos os efeitos das transmissões.
Finalmente partiram. Caminharam para o sul à plena luz do dia.
O estampido das árvores-garrafa estourando ficou para trás. Em compensação
sentiam cada vez mais intensamente o cheiro do ar que vinha da costa.
Animais pequenos fugiam deles, os animais maiores demonstravam um medo
estranho de atacá-los, mesmo nas fases de maior intensidade das transmissões.
Primeiro os amigos abriram caminho entre os arbustos, seguiram uma trilha de
animais sinuosa e voltaram a entrar na floresta úmida. O chão cedia sob suas botas, ou
sob as solas nuas e duras dos pés do ossudo.
Pingos grudentos desciam por fios brancos e finos dos galhos mais baixos.
Os guerreiros desviavam-se dos pingos, conversavam e tentavam evitar qualquer ato
imprudente, uma vez que os raios de comando continuavam a agir sobre eles. Avançaram
devagar, o Thoen seguia-os a uma distância regular.
Por três vezes viram sáurios voadores. Quando os gigantes mudaram de rota, Sandal
e Tahonka No viram os braços gigantescos e a parte superior do corpo, coberta por uma
paisagem acidentada de ossos e córneas cintilantes. Os sáurios eram de um branco puro e
ofuscante, só as extremidades dos braços e o bico eram vermelhos.
— São muito grandes para minhas flechas, No — disse Sandal em tom resignado.
— Além disso voam muito alto, parceiro. Desta vez você não teria nenhuma chance
de matá-los se resolvessem atacar-nos.
Dali a um dia chegaram à costa do mar interior. Estavam descansados e
surpreendentemente não sofriam mais os efeitos das transmissões de comando.
Bem à sua frente, junto ao horizonte, erguia-se a gigantesca cúpula de cor quase
dourada, que refletia a luz em reflexos vermelhos.
A cem quilômetros de distância — por cima da água.
— Chegamos! — disse Sandal satisfeito.
7

Três fenômenos notáveis se verificaram depois que os dois homens e seu estranho
acompanhante chegaram à costa.
Um sáurio saiu da água batendo as asas, descreveu círculos fazendo movimentos
desajeitados, sobrevoou a baía em forma de meia-luz, cujas encostas rochosas estavam
cobertas de vegetação. Finalmente o animal afastou-se para o leste.
— Como faremos para atravessar a água, amigo? — perguntou o ossudo em tom
sarcástico.
— O que você sugere? Vamos nadar? — indagou Sandal.
— Seríamos devorados por peixes antes de sair da baía.
— Refleti muito sobre isso — disse Sandal em voz baixa e desceu pela escada de
pedra, que era bastante confortável. — Também não encontrei nenhuma solução.
— De qualquer maneira é bom que os guardas voadores não nos vejam — disse o
ossudo.
— Devemos evitar que isso aconteça.
Até onde enxergavam, a costa do mar interior de forma circular era arenosa, rochosa
e coberta por um verde abundante. A selva e a costa pareciam fundir-se. O signo da ilha
invisível aparecia no horizonte — a cúpula redonda dominava o cenário que nem uma
montanha. Ao leste começava a ponte energética que já tinha visto. Do lugar em que
estavam parecia um tubo ligeiramente curvo.
O segundo fenômeno deixou Sandal ainda mais estupefato.
De repente seu rádio, que nos últimos dias funcionara vinte vezes, parecia ter
despertado para a vida. Ininterruptamente eram transmitidas mensagens da ilha.
Eram sinais que os dois amigos já conheciam perfeitamente.
Pedidos de materiais, de informações a respeito das temperaturas dos vulcões em
atividade ou extintos e das crateras menores, diálogos com alguns administradores do
porto espacial... e coisa parecida. Nada que pudesse ajudá-los em alguma coisa.
Sandal disse, mais para si mesmo, como que para consolar-se:
— Um caçador deve ter muita paciência — um dia, talvez seja logo, descobriremos
um meio de atravessar o mar.
Tahonka No repetiu o que já dissera tantas vezes.
— Admiro sua coragem, sua confiança, mas prefiro ficar na expectativa.
Montaram um pequeno acampamento. De repente Sandal percebeu que o tráfego
aéreo aumentara. Planadores pousavam e decolavam a pequenos intervalos, subiam e
passavam pelo tubo. Espaçonaves desciam do céu ofuscante e tocavam o chão com as
máquinas rugindo pela última vez, ficavam estacionadas atrás da selva e decolavam junto
à torre gigantesca.
Três acontecimentos. Qual era a ligação entre eles?
Será que lá adiante, na Ilha da Felicidade, estava acontecendo alguma coisa que
devia interessá-lo?
Ele não sabia. Tahonka No também não, mas ele fez uma boa sugestão.
— Cada um de nós caminha um pedaço pela praia — disse. Você vai para o oeste e
eu vou para o sul. Vamos fazer um reconhecimento. Assim pelo menos nossa espera fará
sentido.
Sandal acenou com a cabeça. Viu que seu amigo estava tão nervoso como ele.
— Está certo.
Sandal atirou uma aljava sobre as costas, pegou o arco e iniciou a subida.
Acompanhou as curvas das baías e olhava constantemente para a cúpula energética e em
seguida para a parede escura da mata. Depois de algum tempo um cheiro penetrante
entrou em seu nariz e ele se pôs a refletir.
Onde já sentira este cheiro?
Naturalmente no pântano, quando estavam fabricando o balão.
Eram os gases que saíam do chão.
— O calor... está aumentando — constatou surpreso.
Parou. Vira alguma coisa mexer-se à sua frente. Com alguns saltos chegou perto da
rocha, ficou encostado à parede quente e fez avançar a cabeça. O que viu deixou-o gelado
de pavor.
Um réptil voador.
Vinha da mata, derrubou distraidamente uma árvore de porte médio com um golpe
da cauda e caminhou pesadamente pela costa. Só então Sandal viu o tamanho apavorante
do animal. Ele foi ficando mais rápido, abriu as pernas e apoiou-se na cauda. As
gigantescas membranas se esticaram e um golpe de tempestade jogou o cabelo de Sandal
para trás.
Em seguida o animal tomou impulso, bateu com as pernas e desceu a encosta,
voando e correndo ao mesmo tempo. Pouco acima da água, na qual penetrou o bico
longo, o ar se comprimiu embaixo das asas e o animal saiu voando.
— Fantástico!
“Nas costas do animal cabem cem homens”, pensou.
O animal subiu devagar, ainda chegou a roçar as ondas e passou a voar mais
depressa e mais alto. Descreveu uma longa espiral e diminuiu rapidamente, o que era um
bom ponto de referência para sua capacidade de voo. Boquiaberto de espanto, Sandal viu
o colosso desaparecer e descer depois de longo tempo, transformado num pontinho
branco, à frente do campo energético, e desaparecer na bruma que se acumulara em sua
parte inferior. Depois disso apareceu outro sáurio voador vindo de uma outra direção.
— Estes animais comem carne. Não existe a menor dúvida. Nunca ficariam
satisfeitos com alimentos vegetais — disse Sandal em voz um pouco mais alta e saiu do
esconderijo. Aproximou-se sem fazer nenhum ruído e viu o caminho que o animal abrira
na selva, bem como os rastros deixados ao arrastar os pés na areia.
— Que coisa notável. Mas que cheiro desagradável é este? — perguntou.
Dali a quinze minutos chegou a um buraco no chão que fumegava um pouco. Viu
imediatamente que se tratava de uma pequena montanha que cuspia fogo, igual à que vira
da primeira vez na queda da nave-cogumelo.
Ou melhor, não se tratava de uma montanha, mas de uma cratera aberta no chão.
Uma coluna de fumaça subia encrespada no ar quente; saía de um buraco negro no
meio das paredes inclinadas do funil.
— Os sáurios voam constantemente para lá! — disse Sandal. — Deve haver alguma
coisa atrás disso.
Ele imaginava. Os sáurios voadores eram alimentados na ilha. Em compensação
vigiavam o mar. Bastariam dez ou vinte répteis voadores para exterminar a fauna da mata
dentro de algumas semanas. O que significavam os vulcões que havia por aí? Sandal
aproximou-se.
Examinou a areia e as secreções amarelo-esverdeadas que tinham escorrido em
muitos anos. Não teve de procurar muito tempo. Logo viu as marcas dos pés dos sáurios.
Sandal tentou reconstituir seus movimentos.
— Eles pousam aqui, andam com insegurança... depois se viram até que a parte
traseira fique em cima do funil. Permanecem assim por bastante tempo! — disse.
Os rastros eram profundos e bem visíveis.
Uma forte onda de calor atingiu o rosto de Sandal quando chegou perto da cratera e
se inclinou sobre ela. A única coisa que viu foram paredes lisas cobertas de areia e restos
de cinza dispostos em faixas.
Sandal acenou com a cabeça.
Voltou entre as rochas, olhou para a selva silenciosa, que parecia ser habitada
somente por animais e pássaros pequenos e procurou uma pequena caverna na sombra.
Tirou o arco de cima do ombro, colocou-o ao alcance da mão, pôs a aljava ao lado e
apoiou a cabeça nos antebraços.
Sandal Tolk estava esperando.
Esperou quatro horas ou mais antes de ouvir o ruído de asas gigantescas que já
conhecia em cima de sua cabeça. Era um dos sáurios descendo. O céu escureceu. Sandal
entrou com cuidado, depressa e em silêncio, mais profundamente no esconderijo.
O animal cambaleava e balançava, girou várias vezes e andou de asas encolhidas, de
costas e em direção à pequena boca do vulcão.
Depois levantou a cauda longa numa curva parecida com um ponto de interrogação
e mergulhou gemendo metade do corpo nos vapores e fumaças quentes do pequeno
vulcão.
— Não dá para acreditar! — disse Sandal.
Pôs-se a refletir que nem um relâmpago. O ventre do animal estava grosso e
inchado; devia estar na última fase da gravidez. Como se tratava de um réptil isto
significava que havia um ovo amadurecendo na barriga da fêmea do sáurio. Um ovo
gigantesco, maior que Sandal.
— Quer dizer que a fêmea expõe o ovo ao calor, o que reduz o tempo de incubação.
O caçador olhava atentamente o animal.
O réptil mantinha os olhos fechados e levantava e baixava o pescoço comprido.
Estava com a mente embotada, quase inconsciente. Não sentiu a rocha que Sandal atirou
dali a alguns minutos no focinho alongado do réptil.
— Será que o animal está agonizante? Ou ficou inconsciente por estar chocando?
Sandal lembrou-se da posição das galinhas que vira nos galinheiros do castelo de
Crater. Parecia que o fim do processo de incubação estava chegando. A casca de couro do
ovo gigantesco era amaciada para sair melhor do corpo. Dentro em breve sairia um
filhote. Sem dúvida ficaria pouco tempo no ninho; logo sairia correndo e voando.
Um filhote como este logo precisaria de alimento. Nenhuma proteína animal
encerrada num ovo aguentaria o calor tremendo saído de dentro do planeta.
— Ficarei esperando — decidiu Sandal.
Bastava pensar na sua vingança, e todos os sofrimentos se tornavam suportáveis.
Mas Sandal era inteligente e sabia que se aproximava do objetivo em passos pequenos,
lutando sempre, que não conhecia muito bem o objetivo, que continuava o mesmo. Mas
onde poderia encontrar aquele que teria de obrigar a interromper o ataque às estrelas?
Onde procurá-lo? Dentro da cúpula?
Talvez.
Mas era possível que a cúpula apenas fosse mais uma etapa angustiante e cheia de
perigos numa longa caminhada.
— Esta fêmea chocando com a barriga fica cada vez mais nervosa... está chegando a
hora — disse Sandal.
Fazia votos de que Tahonka No e o Thoen não saíssem à sua procura, pois já
começava a anoitecer.
Passou-se meia hora numa terrível monotonia.
Finalmente o animal saiu do buraco com os olhos fechados, passou
desajeitadamente embaixo do esconderijo de Sandal, que desta vez viu perfeitamente as
cristas, as faixas de substância córnea, as pontas e as reentrâncias que cobriam as costas
do animal. Este levantou fazendo um esforço inconsciente, bateu as asas três vezes e foi
parar a centenas de metros dali.
O ovo saiu de seu corpo em forma de uma bolha alongada.
— Como será daqui em diante?
Sandal estava curioso.
Uma gigantesca nuvem escura saiu da cratera vazia e ficou entre o caçador e o réptil
gigante. Quando a visão voltou a clarear, Sandal viu o filhote cambaleando e sacudindo a
cabeça. Abriu as asas e balançou-as, correu em volta do sáurio e soltou pios agudos.
— O filhote ainda é mais feio que a velha! — disse Sandal e estremeceu.
O cheiro do réptil foi trazido pelo vento e quase lhe deu dores de estômago.
Dali a uma hora a velha e o filhote voaram um atrás do outro para o sul, em direção
à ilha.
Sandal saiu do esconderijo, espreguiçou-se para amolecer as juntas e voltou
depressa para junto de Tahonka, que já estava sentado perto de uma fogueira pequena,
muito bem camuflada, girando o espeto com o animal que tinham abatido nos últimos
metros de mata. Levantou a cabeça, olhou atentamente para Sandal e disse:
— Seu sorriso me diz que você tem uma novidade.
Sandal olhou em volta e sentou perto do fogo, depois de ter colocado as armas no
chão.
— Já sei como podemos atravessar o mar — disse em tom seco.
Tahonka olhou para ele surpreso e soltou uma gargalhada. O Thoen ficou tão
assustado que deu um salto de dois metros e balançou o topete.
— Você está louco! Não diz coisa com coisa — disse Tahonka e fez um gesto de
pouco-caso.
— Nada disso. Deixe-me explicar.
Tahonka riu de novo e respondeu:
— Fique à vontade. Gosto de ouvir histórias bonitas antes de adormecer. Vamos lá!
Fale.
— Pela estrela de púrpura! Voaremos nas costas de um réptil gigante de verdade.
O riso incrédulo do ossudo foi tão forte que a carne quase caiu no fogo.
— Eu não disse? — perguntou com um aceno de cabeça. — Ele não diz coisa com
coisa. O sol fundiu seu cérebro.
— Contarei o que vi — disse Sandal em tom calmo. — Preste atenção.
O caçador fez um relato curto, mas completo, do que acabara de ver e das
conclusões a que chegara.
— Quer dizer que você quer subir nas costas do animal e esconder-se enquanto o
réptil estiver sentado na cratera do vulcão? — perguntou No estupefato.
— Isso mesmo — respondeu Sandal. — Poucos seres podem contemplar as próprias
costas sem um espelho. Por que haveria de ser de outra forma? Geralmente as costas não
são um quadro agradável.
— Pois eu lhe digo que não há nada que eu mais gostaria de ver no momento que
suas costas. Você quer matar-nos à força?
Sandal sorriu e viu os pingos de gordura queimando em cima do fogo.
— De forma alguma. O rabo do animal, mesmo quando toca nas costas, não entra
nas numerosas reentrâncias. É rígido e comprido.
— Você está louco. Cairemos de cima do réptil!
— Nós nos amarraremos, como fizemos embaixo do balão. Não cairemos. Teremos
um voo perfeito.
— E o filhote? O que acontecerá se se sentir fraco com o longo voo e for parar nas
costas da mãe?
— As costas do réptil são grandes e cheias de esconderijos — disse Sandal. — Se o
filhote achar que podemos servir de alimento, podemos usar as facas, as flechas, a arma
de bolas de luz e meu fuzil energético. Acha que isto não basta?
— Todas estas armas e sua audácia já são demais. Não entrarei nessa.
— Pois eu vou assim que chegar uma fêmea que esteja chocando. Não correremos
nenhum perigo.
Tahonka No tomou uma decisão sábia.
— Primeiro vamos comer e dormir — anunciou. — Amanhã de manhã os
problemas parecerão diferentes.
— Isso mesmo — respondeu Sandal em tom sarcástico. — Uma arca de luxo virá
buscar-nos.
— Não é isso. Mas quem sabe se sua loucura maligna diminui um pouco?
Os dois comeram e deitaram nas redes. Depois de algum tempo Tahonka No
perguntou em meio ao ruído das ondas pequenas:
— Você estava falando sério, Sandal? Ou quis assustar-me?
Sandal esperou alguns segundos antes de responder.
— Não estou brincando. Pretendo mesmo subir nas costas de um réptil tomando
todas as precauções e esperar que ele voe para a ilha.
O ossudo murmurou alto e em tom insistente:
— Quer dizer que quer voar mais de cem quilômetros nas costas do animal maior e
mais forte deste planeta? É uma passagem direta para a morte.
Sandal contestou apaixonadamente e ajeitou-se na rede.
— Observaremos enquanto esperarmos. Depois agiremos com mais cuidado que
nunca. Finalmente nos esconderemos nas costas do animal, que são pouco menores que a
baía que fica à nossa frente. Ficaremos amarrados e agarrados nas inúmeras saliências e
reentrâncias de ossos e córneas. Quando o animal levantar voo seremos sacudidos um
pouco. Mais nada.
— Não consigo imaginar que seja assim. Acho que não conseguiremos — disse o
ossudo em tom desanimado. — Você confia demais em sua capacidade. Estou com
medo, Sandal. Não quero morrer nas costas de um animal destes ou cair na água depois
de viajar alguns quilômetros.
— Segurarei você — disse Sandal. — É verdade! Pense nos perigos que já
enfrentamos. Cada um foi maior que o voo de que falei.
— Você tem razão, mas só de pensar nisso fico trêmulo.
Sandal só tinha medo das transmissões hipnóticas de comando, que sem dúvida
seriam mais intensas sobre o mar. Na praia mal notavam alguma coisa de três em três
horas e conseguiam controlar-se.
— Quando sairmos correndo você não vai tremer. Eu garanto.
O ossudo resmungou em tom ressentido:
— Esperemos. De qualquer maneira você já me roubou o sono desta noite.
Sandal concluiu dizendo:
— Você não me deixará sair sozinho. Sabe que confio em você, amigo.
Dali a pouco o único ruído que se ouvia além da arrebentação eram os roncos dos
dois amigos.
O Thoen desapareceu e subiu correndo a escada de pedra comprida. Correu para a
rocha e, tomado pelo pânico, abriu um buraco enorme.
Sentou no buraco e esperou.
***
Tiveram de esperar alguns dias até que pousasse mais um réptil.
Foram dias enervantes para os dois. Sandal vivia dizendo que não seria perigoso,
mas o ossudo não concordava. Tinha certeza de que ia morrer se entrasse nessa aventura
louca.
Finalmente chegou a hora.
— Onde está o Thoen?— perguntou Sandal.
— Não faço ideia. Saiu na noite em que brigamos pela primeira vez.
Apesar de tudo Sandal conseguiu levar o amigo ao esconderijo nas rochas. Viram o
monstro descer planando. Seus movimentos eram cansados e inseguros quando o animal
ficou de costas e saiu tropeçando. Depois de algum tempo o réptil escorregou para dentro
da boca do vulcão. Zumbidos saíam de sua laringe enorme.
— Está nos amaldiçoando! — cochichou Tahonka No.
— É uma canção de ninar dedicada a seu ovo! — respondeu Sandal com uma
tremenda falta de respeito.
O ovo foi amadurecendo dentro do corpo. Quando Sandal identificou os sinais de
que o animal sairia do vulcão, saiu correndo. Estava preparado. Quando contornou o
animal, viu que Tahonka No o seguia. Primeiro hesitante, com um evidente desespero,
mas depois cada vez mais depressa, como se estivesse preocupado com o amigo.
Os dois alcançaram as costas do animal, que se erguia que nem um paredão de
rocha acidentado.
Sandal subiu e logo se abrigou embaixo de quatro placas ósseas gigantescas e várias
pontas de substância córnea.
— Amaldiçoada seja sua coragem! — gritou o ossudo e seguiu-o com movimentos
apressados.
Em seguida o réptil sacudiu-se e inclinou o corpo para a frente.
8

Tahonka No puxou-se para cima num esforço lento e concentrado. O braço de


Sandal saiu entre duas placas de córnea, agarrou o cinto largo do ossudo e o puxou pelo
plano inclinado. As mãos e os pés encontravam apoio no fundo áspero. Os dois
respiravam com dificuldade enquanto se amarravam com o que restava da corda.
— Pensei que me deixaria voar sozinho — disse o caçador de cabelos brancos sem
nenhum sarcasmo.
Tahonka No deu uma risada ligeira e respondeu, enquanto seus dedos fortes faziam
alguns nós:
— Meu coração não permitiria, como diria você. Imaginei como se sentiria só e saí
correndo.
— Você é o melhor amigo que se pode desejar — garantiu Sandal.
O calor armazenado na boca de vulcão atingiu-os e passou devagar ao longo das
costas do animal, que exercia as funções de uma pequena encosta. Embaixo deles a cauda
que servia de leve balançava que nem uma árvore enorme. Os dois ainda perceberam que
o plano inclinado foi mudando de posição até ficar quase na vertical.
Um terrível arranhado e crepitar se fez ouvir — o animal abriu os braços voadores,
balançou de um lado para outro e sacudiu as asas. A cada uma das quatro ou cinco
batidas das asas a cauda subia e descia, tocando o chão.
O animal deu cinco saltos gigantescos — gigantescos para os dois homens.
— Olhe ali — disse Tahonka No em voz baixa.
Sandal olhou na direção em que ficavam as rochas e viu o Thoen sair de um monte
de areia. O animal gritava “To-en, to-en”, enquanto abria as asas transparentes. Do monte
de areia saíram outros seres pequenos, do tamanho de uma mão humana... pequenos
Thoens!
— Filhotes! — disse Sandal laconicamente. — O Thoen nos abandona.
— Volta ao lugar de onde veio. Deve ter desenterrado os filhotes e vai levá-los de
volta.
O Thoen voou para o norte. Os filhotes — onze ao todo — formavam uma espécie
de colar de pérolas com as asas brilhando à luz do sol. Será que juntamente com o Thoen
tinham sido abandonados pela sorte?
Uma tremenda convulsão sacudiu o corpo do réptil.
Tahonka dirigiu-se a Sandal.
— Está pondo o ovo? — perguntou.
— Provavelmente.
Os amigos estavam deitados entre camadas de substância córnea de um metro de
espessura, entre as quais se erguiam em forma de pirâmides as continuações dos ossos. O
animal voltou a fazer um movimento. A pele encolheu-se, algumas escamas
sobrepuseram-se rangendo alto. Era que nem uma cobra andando. O Thoen e seus
descendentes desapareceram atrás das árvores da mata virgem.
Um gemido prolongado atravessou o corpo no qual os dois se seguravam. Sandal
virou a cabeça devagar e viu as diversas partes da blindagem gigantesca formada por
escamas se juntarem e voltarem a separar-se. Ele e Tahonka estavam sentados em cima
de uma única placa de ossos e córneas muito grande. Era como se estivessem numa
jangada sobre as ondas. Não corriam perigo. As cordas que os seguravam tinham bastante
folga para todos os lados. Os mantimentos e os equipamentos amarrados nas redes
também estavam muito bem guardados.
— Ainda teremos de esperar uma hora — disse o homem de Exota-Alfa. — Aí o
filhote estará em condições de voar.
— Seu plano é uma loucura — disse o ossudo. — Mas vejo que ainda temos
algumas chances de sobreviver. O ódio é que rói você por dentro num desejo de
vingança!
Os dois recostaram-se e esperaram. As armas energéticas estavam guardadas no
bolso, travadas, e a febre da expectativa tomou conta dos dois. Cada um deles percorrera
um caminho longo e cheio de angústias. Para onde este caminho os levaria?
Ninguém sabia.
Quando muito Sandal — seu destino era o ponto mais alto da pirâmide hierárquica
do “Enxame”. O trabalho de Tahonka No consistiria em acompanhar Sandal nesse
caminho. Ao pensar nisso, o ossudo baixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos.
Quase não notaram que o tempo passava no ar preguiçoso do entardecer. Os
minutos pareciam ser feitos de uma resina viscosa e gotejante, adormecendo no meio do
movimento. O animal estava deitado como se estivesse morto. Só a cada dez minutos um
gemido longo atravessava seu corpo, seguido por ligeiras convulsões. Os homens
transpiravam e bilhões de insetos que pareciam viver entre as camadas córneas caíram
sobre eles. Finalmente ouviram os guinchos do filhote vindos de baixo.
— Vai começar! — conjeturou o ossudo.
— É um motivo de ficarmos alegres — respondeu Sandal.
Parecia que o filhote estava tomando impulso. Sobrevoou duas vezes as costas do
réptil e o animal gigantesco parecia ter acordado. Levantou e caminhou pesadamente em
direção à floresta. Em seguida tomou impulso e correu para o mar. Bateu as gigantescas
asas de couro reforçadas por ossos muito longos e subiu no ar, soltando um grasnado
desagradável.
— Pelo ídolo amarelo! Estamos voando — disse Tahonka No chocado.
Sua mente recusava-se a aceitar o fato de que tinham saído do chão e ainda estavam
vivos. O animal voltou a tocar a água. Uma chuva de gotas de água e uma verdadeira
catadupa que se infiltrou entre as placas córneas, arrastando milhões de moscas, foram as
consequências imediatas.
— Eu sabia, amigo — disse Sandal. — Foi arriscado, mas correu conforme
imaginávamos.
— Como você imaginava, parceiro — respondeu Tahonka No em tom ressentido.
Enquanto o monstro voava cada vez mais depressa, enquanto suas asas triangulares
causavam um tremendo redemoinho duplo fazendo com que os amigos se encolhessem
entre as córneas salientes, o vento causado pelo deslocamento do animal arrastou os
insetos. O monstro subia depressa; dentro de pouco tempo a faixa costeira ficou bem
embaixo deles.
Tahonka No disse, enquanto se segurava com ambas as mãos nas cordas trançadas
que começavam a rasgar:
— Não pense que todos os problemas estarão resolvidos quando este monstro tocar
no chão. Só chegaremos mais perto da cúpula — mais nada.
“Os servos-mor do Y'Xanthymr nos matarão com muita crueldade”, pensou ao olhar
para a frente e perceber que o sáurio tinha alcançado cerca de dois mil metros de altura.
Alguma coisa estava errada; até então o voo fora regular, mas de repente o animal
começou a balançar e descrever círculos.
Sandal e Tahonka entreolharam-se sem dizer uma palavra; depois o caçador
amarrou-se e levantou devagar.
— O filhote! — disse enquanto lutava contra os redemoinhos.
— Que há com ele?
— Perdeu o rumo. Olhe lá na frente.
Os cabelos de Sandal se agitavam, o deslocamento do ar fez com que seus olhos e
os do ossudo lacrimejassem. Os dois olharam para a frente. O animal estava com o
pescoço comprido levantado e os olhos que ficavam ao lado da boca de réptil se dirigiam
obliquamente para trás, onde voava o filhote. O animal que aprendera a voar há meia
hora não ia em linha reta. Dava a impressão de que tinha problemas.
Balançava de um lado para outro, saiu da rota e estava voando em ziguezague para
o oeste. Nem o sáurio voador nem os dois amigos queriam ir para lá. Mas a mãe mudou
de rumo, passou pelo filhote ao norte e o fez seguir novamente para o sul com golpes
leves do bico comprido.
Sandal, que tivera tempo para estudar o comportamento do animal, disse em tom
pensativo:
— Parece que os dois estão com uma tremenda fome.
— Por quê? — quis saber o ossudo.
Sandal explicou, enquanto o ar rarefeito a dois mil e quinhentos metros de altura
batia em seus rostos. Os dois animais dirigiam-se para o sul batendo as asas com força e
demonstrando certa gula; queriam chegar à ilha. Sandal explicou que estes animais só
podiam sobreviver quando eram alimentados, e isto só podia ser feito lá, porque nenhuma
região possuía uma fauna capaz de satisfazer o apetite enorme dos gigantes.
O filhote estava causando problemas. Deixou-se cair cerca de quinhentos metros,
bateu desesperadamente as asas e o gigante que trazia os dois amigos nas costas deixou-
se cair obliquamente e voltou a mostrar o caminho ao filhote.
— O velho sáurio começa a entrar em pânico! — gritou Sandal.
O instinto alimentar e o instinto que o fazia cuidar da prole entraram em conflito e
fizeram com que os movimentos do animal se tomassem mais inseguros. As batidas das
fortes membranas voadoras tomou-se irregular e o animal começou a balançar no ar que
nem uma folha seca.
— Tudo isto a oito mil pés de altura! — gritou o ossudo bastante apavorado.
Seu rosto moreno-escuro ficara pálido embaixo dos pigmentos da pele; Tahonka No
estava com enjôo. Sandal também sentia o estômago de vez em quando, toda vez que os
movimentos para cima e para baixo eram muito rápidos.
Tinham percorrido mais ou menos um terço do caminho, isto é, cerca de trinta
quilômetros ou pouco mais.
— Este maldito filhote transforma o voo numa armadilha! — gritou Sandal em tom
exaltado.
— O que pretende fazer para evitar isso? — respondeu o ossudo.
— Você logo vai ver — disse Sandal.
Os dois répteis foram subindo aos poucos. Mas não se dirigiam para o sul;
descreviam círculos numa linha irregular. O velho sáurio soltou um grito longo e triste, e
o jovem sáurio branco estava cada vez mais nervoso. Finalmente Sandal perdeu a
paciência. Examinou as cordas que o prendiam, tirou devagar uma das suas flechas de
plástico e experimentou a ordem.
— Vai atirar aqui? — perguntou o ossudo em tom de espanto.
Olhou perplexo para Sandal, que levantou devagar, afastou as pernas e se preparou
para um tiro muito difícil. Segurou o arco muito calmo e descontraído enquanto olhava
entre as saliências córneas para localizar o pequeno animal. Tinha de acertar o olho ou a
boca e a distância não podia ser maior que duzentos metros; era impossível avaliar
corretamente a influência do vento, que era muito forte e irregular.
— Desejo-lhe um bom tiro, amigo — disse Tahonka No.
Sandal acenou com a cabeça e concentrou-se. Sua única chance era que a mãe se
aproximasse do filhote e ficasse perto dele o tempo necessário — pelo menos alguns
segundos. Sandal colocou o arco sobre a corda com muito cuidado, empurrou o cabo
cuidadosamente de um lado para o outro prendendo-o com três dedos, segurou a ponta da
flecha entre os dedos indicador e médio e puxou lentamente com o braço direito,
aparentemente sem o menor esforço, até que a corda encostasse em sua orelha. A
plumagem da flecha, cuja fabricação fora controlada por computador, chegava perto do
canto direito da boca.
Sandal examinou o alvo; costumava atirar em qualquer mira. Esperou, muito calmo
e concentrado, parecendo que se fundira com o arco. A arma, o braço e os dedos
pareciam ser uma coisa só.
Sandal esperou...
Depois de vinte segundos nem notou mais o esforço que fazia mantendo teso o arco
de dois metros e meio. O alvo mudou de posição, aproximou-se num ângulo
desfavorável, voltou a afastar-se num ângulo favorável — e de repente o réptil gigante
caiu para a esquerda, para colocar o filhote na direção certa. Sandal respirou profunda e
calmamente, esperou que chegasse a fração de segundo decisiva e deixou que a corda
saltasse para a frente.
A flecha saiu uivando enquanto a corda batia com força na braçadeira.
Dali a meio segundo a ponta de aço terconite penetrou no olho do animal, atingiu o
cérebro e somente os feixes nervosos da espinha do pequeno sáurio fizeram com que suas
asas continuassem a mexer-se.
Sandal soltou o ar — a tensão abandonou-o e ele se encolheu e voltou a sentar,
segurando o arco entre os joelhos.
O ossudo ficou calado. Olhou para Sandal como quem acaba de assistir a um
milagre. Depois olhou na mesma direção que o caçador. Os movimentos do filhote eram
cada vez mais fracos e por alguns segundos parecia que até o deslocamento do ar tinha
parado.
Depois foi um inferno.
— Segure-se! — gritou Sandal enquanto dobrava a perna sobre a abertura da aljava.
O filhote entrou em parafuso e depois de algumas convulsões ficou com as asas
duras. O mar precipitou-se em direção aos dois homens quando a mãe entrou num
mergulho louco. Parecia apontar o bico para o filhote, que diminuía rapidamente de
tamanho.
Tahonka No sentiu um enjôo.
Teve início um voo alucinante, quase na vertical, mas o réptil não pôde alcançar o
filhote que caía. Soltou gritos altos e desesperados. Era como uma espaçonave decolando.
Os dois homens viram o filhote tocar a água. Uma coluna de água subiu e quando a
mãe atravessou o esguicho tocando a água com as garras e a parte inferior do bico, uma
saraivada de pingos caiu sobre os dois.
Assim que o filhote mergulhou, apareceram gigantescos peixes brancos e
estraçalharam-no. A mãe trombeteava furiosamente e descreveu alguns círculos apertados
em tomo da mancha de sangue que se espalhava no mar. Depois de uns cinco minutos
esqueceu ou abandonou o filhote e voltou a subir.
Num voo em alta velocidade e a grande altura a mãe percorreu os cinquenta ou
sessenta quilômetros que faltavam.
A ilha apareceu à sua frente, a cúpula energética cresceu à frente dos homens e a
ponte energética que cortava o ar entre a ilha e a costa pôde ser vista melhor.
Os homens respiravam aliviados quando começou um longo voo de aproximação. O
réptil velejava mais do que voava.
Sandal observava tudo que via à sua frente — a costa da ilha, as gigantescas
montanhas de ossos que se viam lá, os outros sáurios que estavam sentados no chão em
torno de blocos de uma matéria cor de ferrugem e branca e brigavam, a ponte e os
edifícios que se tomaram visíveis do outro lado do campo energético.
— Você assassinou o réptil pequeno, seu patife... eu mato você!
Tahonka No erguera-se ligeiramente. Começou a cortar as duas cordas e queria
precipitar-se sobre Sandal. Uma raiva louca, violenta, tomou conta de Sandal. O amigo
enlouquecera e de tão medroso que estava queria matá-los nos últimos quilômetros com
suas atitudes irrefletidas.
— São os raios de comando, No! — berrou Sandal.
O caçador ficou gelado de susto. Ambos morreriam. Já estavam brigando antes de
chegar ao solo. E perigos inimagináveis os esperavam lá embaixo. Seria mais sensato pôr
fim à vida naquele momento do que passar por tudo isso.
Sandal arrancou a arma do coldre e enfiou o cano na boca.
— Não! — gritou o ossudo com a voz estridente.
Resoluto, Sandal apertou o gatilho, uma, duas vezes. Não aconteceu nada.
Finalmente o ossudo cortou a última corda que o prendia e saltou sobre Sandal. Arrancou
a arma travada de sua mão, tomou impulso e Sandal saltou para a frente. Segurou o
amigo pelo pulso e bateu com a cabeça no peito do adversário. Era como se quisesse
derrubar uma rocha.
— Você está louco! — gritou o ossudo.
O réptil mexeu as asas. Um solavanco sacudiu as escamas em suas costas e o
ossudo quase caiu. Sandal agarrou seu tornozelo com a outra mão e gritou:
— Você e eu estamos loucos. São os raios.
De repente teve a impressão de que Tahonka não o ouvia mais. Travaram uma luta
silenciosa, obstinada, nas costas do sáurio, e sem dúvida se teriam ferido se o voo não
fosse irregular.
O réptil pousou.
Finalmente saiu do foco dos raios hipnóticos, que continuaram a caminhar. Os
amigos recuperaram a razão quando o animal tocou o chão com um terrível impacto. A
arma foi arrancada da mão de Sandal e voou longe, desaparecendo entre as placas de
córnea.
— Vamos descer. Procurarei a arma.
De repente ficou completamente normal e livre do instinto de agressão imposto
pelos raios.
— Combinado — disse Tahonka. — Vou esconder-me nessa montanha de ossos.
— Eu o encontrarei — respondeu Sandal.
Tahonka colocou nas costas as duas trouxas de bagagem e levantou. Os restos das
cordas balançavam em seu cinto. Tahonka caminhava entre as córneas elevadas que nem
alguém caminhando entre fragmentos de rocha de mais de dois metros. Foi em direção à
cauda, que se agitava sem parar.
Sandal olhou para o lado e viu animais estranhos, principalmente répteis de formas
bizarras. Do lugar em que estavam também via que ele e Tahonka tiveram sorte: os
répteis estavam ocupados com cadáveres de animais — o ruído de mandíbulas
gigantescas e dentes afiados sendo moídos e rasgados encheu a faixa de areia de cerca de
dez quilômetros de largura, atrás da qual se erguia o campo energético como uma
muralha muito alta. Enquanto o réptil trombeteava fazendo doer os ouvidos de Sandal, o
animal atirou-se para a frente e saiu correndo para a presa.
Tahonka deu um salto de pantera, rolou no chão e correu que nem um louco para a
gigantesca montanha de ossos.
— Onde está a arma? Não podemos ficar sem ela...! — gritou Sandal e saiu
procurando na direção em que acreditava que ela estava. Escalava as córneas levantadas,
tropeçava e praguejava. Finalmente encontrou a arma numa pequena fresta.
Guardou-a, subiu rapidamente em ziguezague entre as asas levantadas e saltou perto
da cauda que se agitava.
Atrás dele a perna traseira do réptil se erguia que nem uma árvore.
Sandal estremeceu e correu em direção à montanha de ossos, parou ao lado de
Tahonka e disse:
— Chegamos aonde queríamos. Agora só falta entrarmos na cúpula — o que é mais
fácil que o resto.
A sua frente estavam reunidos cerca de cinquenta animais que disputavam cerca de
dez massas de carne gigantesca e brigavam pelos pedaços mais gordos. Afastaram-se
respeitosamente quando chegou o réptil gigante.
— Enquanto comerem ficarão distraídos. Um guarda que come não presta atenção.
— Quando não pode gabar-se você se sente infeliz, não é? — perguntou o ossudo
em tom sarcástico.
Sandal riu euforicamente, deu uma pancada nas costas do ossudo e disse em voz
alta:
— Mais cinco mil passos, e estaremos perto do campo energético. Vamos lá! O sol
está baixando.
Ficaram atrás da montanha de ossos e seguiram para o sul, em direção a uma faixa
verde estreita que se estendia entre as ondas e o gigantesco campo energético.
Dali a uma hora pararam na sombra de uma árvore cuja casca fora roída até os
galhos inferiores. Estavam ofegantes.
— Esta é a Ilha da Felicidade. Chegamos a ela vivos — comentou Sandal.
9

Enquanto fugiam dos animais que devoravam as massas de carne e a parede de


energia pura se aproximava, Sandal e Tahonka No descobriram o seguinte:
Na faixa de cerca de dez quilômetros de largura, que era principalmente de areia,
com um número surpreendente de árvores e arbustos, andavam grandes animais cobertos
de pelos. Eram lerdos e pareciam alimentar-se dos vegetais. Serviam exclusivamente de
alimentos para os répteis e outros animais de rapina usados para vigiar a faixa do litoral e
o espaço aéreo.
Certa vez Tahonka No viu uma eclusa energética da ponte abrir-se para deixar sair
uma caixa que saiu rolando sobre esteiras mal tocou o solo.
— Pegue seu olho de vidro geminado — disse Tahonka e parou sob a proteção de
um arbusto — e diga o que está vendo lá adiante. Alguma coisa está acontecendo.
Sandal montou o pequeno binóculo e encostou-o aos olhos.
Viu dentro do campo de visão redondo a parte inferior da caixa robotizada abrir-se
lentamente, formando uma espécie de rampa. Mal se via o interior escuro da caixa, mas
de repente surgiram alguns raios pálidos dentro dela.
Pela rampa desceram vinte ou vinte e cinco animais de várias espécies, que saíram
correndo para todos os lados de cabeça levantada e davam a impressão de que berravam
com força. A distância era muito grande para que se pudessem distinguir os detalhes.
Um dos répteis voadores levantou a cabeça, contemplou um dos animais galopantes
e bateu com o bico.
Sandal ouviu o grito de agonia do pequeno animal.
O réptil parecia deleitar-se enquanto moía e estraçalhava o animal, engolindo-o em
bocados grandes.
Sandal explicou o que acabara de ver e disse:
— É como eu disse. Os répteis são alimentados aqui e em troca mantêm limpo o
espaço aéreo.
— Sua sabedoria é parecida com a luz do sol — disse o ossudo em tom contrariado.
— Estaríamos perdidos de qualquer maneira se tivéssemos escolhido outro caminho que
o sugerido por você.
— É isso mesmo — respondeu Sandal. — Mas nem por isso fico convencido. Nem
sou um sábio. Apenas como bom caçador identifico as chances que se oferecem.
Sandal continuou observando.
A caixa voltou a fechar-se e as esteiras movimentaram-se para trás. Sandal
descobriu em um dos lados do grande veículo que, segundo parecia, era capaz de voar,
uma esfera meio transparente, em cujo interior se movimentavam muitas lentes pequenas.
Era um veículo robotizado que só tinha uma finalidade.
A caixa rolou diretamente para baixo do tubo energético, que estava sendo
atravessado em voo rápido por um grande planador. Depois disso a máquina subiu,
passou por uma espécie de eclusa, entrou no grande tubo e seguiu o planador para dentro
da cúpula.
No lugar em que estavam a cúpula energética só permitia que se visse o que havia
do outro lado em visão direta, não no sentido longitudinal, quando as imagens sofriam
uma distorção, Sandal não viu mais nada. Acenou com a cabeça e disse:
— É uma escada comprida. Subiremos degrau por degrau. O caminho para baixo do
tubo será a próxima etapa.
Tahonka apontou para a cúpula.
Ela se confundia, quando jogavam as cabeças para trás, cada vez mais com o céu,
erguendo-se que nem uma muralha construída por ciclopes. Naquele lugar o abaulamento
quase não aparecia; a estranha estrutura era parecida com uma superfície plana lapidada,
na qual se refletia a luz do sol.
Bem perto da cúpula os dois amigos não sentiram mais os efeitos das radiações que
por pouco não os tinham matado.
— Pois é — disse Tahonka No. — Caminharemos em direção à eclusa, fazendo de
conta que estamos muito bem protegidos.
Sandal fitou-o por algum tempo.
— Sem dúvida aqui também existem guardas voadores. E os animais que servem de
alimento aos répteis também devem ser perigosos. Os próprios répteis nos matarão assim
que nos virem. Não podemos usar as armas energéticas, e as flechas que você carrega não
servem para tudo. O que pretende fazer?
Estavam caminhando há horas e os pés de Sandal doíam.
— Ainda não sei muito bem, amigo No — disse com cuidado. — Acho que
devemos procurar um bom abrigo numa copa de árvore e passar um dia observando.
Assim conheceremos todos os perigos que existem por aqui.
— E aí tentaremos escapar a eles.
— Isso mesmo. Quanto tempo demorará para escurecer?
Sandal examinou a posição do sol. Viu que ainda tinham cerca de duas horas. O
tubo energético entrava na cúpula em cima deles, a uns trinta quilômetros de distância.
Seria uma longa marcha.
— A sugestão que você fez é excelente — disse Sandal. — O que estamos
esperando?
— Acontece que não há nenhuma árvore que nos sirva por perto. Lá adiante, a um
quilômetro daqui, como você disse.
Saíram fazendo uma grande curva em direção a uma árvore que se destacava em
meio a um grupo de árvores menores. Tinham de ficar protegidos e chegaram a
aproximar-se a vinte metros do campo energético. Perceberam — ou melhor, Sandal viu
com toda clareza — que seus cabelos se arrepiavam. Um animal parecido com um lobo,
com olhos grandes e brilhantes, saiu de repente debaixo de uma árvore e correu atrás de
outro animal.
— Está correndo para o campo energético. Vai quebrar a ca... — gritou Tahonka
No.
Não chegou a completar a frase.
O animal que fugia deu um salto por cima de uma rocha seca, perseguido pelo
animal parecido com um lobo que latia. Em seguida bateu em cheio no campo energético.
Houve uma descarga elétrica acompanhada de um estrondo e o animal caiu ao chão
carbonizado.
— Pelo menos já sabemos que não podemos simplesmente atravessar o campo
energético — disse o ossudo.
— Já teríamos sabido antes se você tivesse permitido que eu fizesse a experiência
em uma das muitas cúpulas pelas quais passamos — retrucou Sandal, enquanto seguiam
adiante e o superlobo, que surpreendentemente nem olhava para eles, corria atrás de outro
animal.
— O conhecimento tardio não é a pior forma de sabedoria — observou No.
— É verdade — respondeu o caçador.
Finalmente montaram acampamento na copa da árvore, comeram carne assada fria,
nozes e frutas, beberam água e alegraram-se por ainda estarem vivos. Mas não se
esqueceram nem por um segundo de ficar atentos no que havia em tomo deles.
Sabiam que sua vida dependia da identificação do perigo e das armadilhas. Por isso
não queriam subestimar nenhum risco.
Descobriram por que o animal caçador não os vira — era por causa dos efeitos
desconhecidos do campo energético.
A uns cinquenta metros do campo energético as condições pareciam ser normais. Os
cabelos não se arrepiavam mais, já não saltavam faíscas entre a luva, os dedos e as rochas
e os animais abandonavam o comportamento estranho. Os caçadores caçavam e as
vítimas fugiam.
Como muitos animais comestíveis conseguiam pôr-se a salvo nas zonas de
aproximação, de onde a fome os fazia sair, eles sobreviviam algum tempo, evitando que
os animais fossem estraçalhados sem serem comidos.
— Muito inteligente, muito esperto! — observou o ossudo quando o caçador
explicou o fato.
Em segundo lugar estavam os planadores.
Eram máquinas pequenas voando a quatro ou cinco metros de altura, entre o limite
da zona de aproximação e a praia. Mantinham a ordem, usando raios energéticos de
choque para espantar os répteis gigantes e obrigá-los a levantar voo, procurando rastros e
iluminando em todas as direções com faróis potentes. Iam e vinham de forma irregular.
Em terceiro lugar havia os pequenos animais de rapina, que existiam nas mais
diversas formas. Reforçaram a ideia de Tahonka de que muitos animais não eram
originários do planeta, mas tinham sido importados e eram criados em condições
artificiais. Todo este sistema gigantesco bem coordenado só servia para proteger os
servos-mor do Y'Xanthymr.
Quer dizer que tudo que acontecia dentro da cúpula — fosse o que fosse — estava
mesmo envolto em mistério e era útil aos desejos de vingança de Sandal.
***
Certa noite Sandal não aguentou mais.
Odiava o avanço passo a passo — dez metros num lugar protegido, em seguida
examinar os arredores com as armas destravadas. Desaparecer na vegetação ou do outro
lado de uma árvore toda vez que passava uma patrulha de planadores iluminando a noite.
Era sempre uma luta sobre-humana, reprimir o desejo de dar alguns tiros nas lentes do
farol. Mas por enquanto conseguiam controlar-se.
— Tahonka No dorme como se não possuísse nervos — disse Sandal, embora
soubesse que o ossudo era tão sensível e vulnerável quanto ele, mas mostrava seu
nervosismo, enquanto Sandal tentava escondê-lo.
Suas roupas pingavam.
A água escorria de suas roupas.
O caçador mexeu-se na rede, tirou as roupas e jogou tudo em cima de um galho,
menos as botas e a calça. Passou rastejando por Tahonka, desceu pelo tronco e pisou no
chão. Só levava a arma energética.
A luz vaga, com poucas sombras, que saía de dentro da cúpula, mostrou-lhe o
caminho. A areia molhada do córrego e os tufos de capim em volta dos quais corriam
amoldaram-se suavemente às tíbias de Sandal, enquanto caminhava devagar e em silêncio
para a poça de água onde alguns animais estavam bebendo. Estava até os joelhos na água
fresca que brotava do chão não muito longe do esconderijo que tinham escolhido naquele
dia.
Sandal prendeu a respiração.
Um silêncio pesado cobria essa parte da ilha. Por um breve instante parecia que
tudo prendia a respiração à espera de um acontecimento que ninguém sabia qual era.
Plantas e animais, os répteis e os dois intrusos, tudo se imobilizara.
A selva de apenas dez metros de largura, que parecia estranha naquele silêncio fora
do comum, o regato, a superfície enorme do campo energético — tudo isto parecia um
caleidoscópio de imagens de um conto-de-fadas, maravilhoso e irreal. Sandal teve a
impressão de que devia acordar; por enquanto não refletira muito sobre o mundo bizarro
em que se arriscara a entrar.
Sandal passou furtivamente entre as árvores. A água borbulhava em tomo de seus
quadris.
— Cheguei a um ponto em que não há retomo — disse.
Não existia homem mais solitário que ele; dentro dele ardiam as lembranças de
Chelifer Argas, a moça de olhos verdes, e o velho arcônida de cabelos brancos que tantas
vezes o chamara de filho, sem dar a impressão de que estava brincando.
Quem dera que estivessem a seu lado!
Que bom seria se pudessem ajudá-lo e aconselhá-lo.
Quando voltaria a vê-los? A eles e ao homem que carregava sobre os ombros a
responsabilidade por uma galáxia doente?
Como continuaria?
Que medidas deviam ser tomadas?
Será que ele encontraria o rei do “Enxame” atrás da barreira mortal?
— Muitas perguntas e nenhuma resposta — que contra-senso! — cochichou Sandal
e tentou romper a escuridão com os olhos.
Parou, seus joelhos afundaram na água que já lhe chegava aos quadris enquanto
seguia adiante. O frescor espantou a dor surda dos pensamentos se agitando em sua
mente — foi ao menos o que sentiu.
Uma figura mexeu-se do outro lado da pequena lagoa em cujas águas se refletia o
brilho frio da cúpula. Sandal abaixou-se num canto ainda mais escuro da sombra. A
figura chegou mais perto; Sandal percebeu que era formada somente por neblina. Ficou
estarrecido e tremeu por dentro de pânico. Mas não se mexeu.
Um espírito. Uma figura misteriosa. Um fantasma — naturalmente.
Sandal esperou. Era incapaz de respirar. Só existia aquilo que ele compreendia e
como não conseguia compreender o que via à sua frente, só podia ser uma ilusão dos
sentidos. A figura aproximou-se sem mexer com as pernas. Atravessou um arbusto,
desmanchou-se e desapareceu sem deixar nenhum vestígio. Havia um cheiro infernal de
enxofre e gases dos pântanos.
Sandal mergulhou sem fazer nenhum ruído. Mergulhou mais uma vez, mantendo
fora da água somente a mão que segurava a arma. A água refrescava-o, embora quase
fosse fria demais.
Sandal voltou em silêncio, subiu pelo tronco da árvore com as roupas gotejando e
atirou para dentro dos galhos um animal duas vezes do tamanho de um punho humano
deitado em sua rede. Ouviu-o cair na água.
— Onde você estava? — perguntou Tahonka No em voz baixa.
— Na água — respondeu Sandal depois de um ligeiro sobressalto. — O que
estamos fazendo é uma loucura. A vingança raramente satisfaz um homem bom.
Quando Sandal estava deitado na rede e sentia a pele secando, o ossudo disse em
tom muito sério:
— Esperava este momento. Vejo que um guerreiro jovem e corajoso se transformou
num guerreiro adulto. Daqui em diante tudo que fizermos será mais fácil, amigo.
Sandal concordou.
— Você tem razão. Obrigado.
Dormiram e acordaram ao raiar do dia. Dali a alguns dias encontravam-se no
esconderijo que sem dúvida seria o último, na última árvore que ficara de pé embaixo do
tubo de energia. Em cima deles estendia-se a ponte, viam-se as superfícies
semitransparentes das eclusas e o lugar em que a cúpula e o tubo de cerca de dois mil
metros de diâmetro se encontravam.
— Mais uma vez tivemos nossa sorte multiplicada por cem — disse Sandal. —
Evitamos cerca de cinquenta encontros perigosos. Qual será o passo seguinte?
Estavam deitados na rede, acordados, fitando o tubo que se estendia em cima deles.
Seu estado de espírito era mais que fantástico. No lugar em que se encontravam não
havia sáurios, nenhum animal e nem sequer ossos.
— Nosso problema é entrar na eclusa que fica lá em cima. Mil metros acima do
chão? Era uma loucura!
— Tanto o campo energético como o tubo são impenetráveis — disse Tahonka No.
— Temos de entrar primeiro no tubo — disse Sandal. — Para isso podemos usar o
robô que abastece quase todos os dias os répteis de animais
Tahonka refletiu muito tempo. Recapitulou tudo que sabia a respeito de máquinas
programadas e, o que era mais importante, sobre as respectivas instalações.
Finalmente disse:
— Suponhamos que consigamos entrar no compartimento de carga da máquina.
Seria perigoso, porque durante a descarga há patrulhas de planadores voando em tomo da
caixa. Será que encontraremos um meio de distrair sua atenção?
— Sem dúvida — disse Sandal. — Atiro uma flecha incendiaria.
— É uma boa ideia. Vejamos o resto. Estamos dentro da máquina, ela sobe,
atravessa as eclusas e chega dentro da cúpula. Estaremos na área dos currais de criação.
Acha que isto nos servirá de base?
— Basta, sim — disse Sandal como quem tem toda certeza. — Preso entre animais.
É o melhor esconderijo que podemos imaginar.
— Está bem. Como será a operação com a flecha incendiaria?
Sandal explicou e fez votos de que não cometeria nenhum erro.
10

Só dois homens que há dois meses vinham enfrentando constantemente os perigos


do meio ambiente podiam arriscar uma coisas dessas.
Era um programa para homens de reflexos incrivelmente ligeiros. De homens que
agiam sem pensar — e agiam certo. Isto significava que cada passo tinha de ser previsto.
As probabilidades e as chances de esquivar-se ao perigo tinham de ser consideradas. Os
amigos levaram três dias planejando. Até perderam um transporte de animais, para ter
certeza absoluta. De noite montaram suas armadilhas.
Sandal fabricara uma flecha que devia ajudá-lo a sobreviver. Sempre esperava que
um grupo mais ou menos provido de recursos técnicos avançados não conhecesse a
espécie de luta que ele e o ossudo usavam.
Quando viram em cima deles — era quase noite, só uma faixa vermelha brilhava no
horizonte — os movimentos que esperavam, entraram em ação. Estavam preparados para
este momento e nem sequer tiveram de trocar uma palavra.
Desceram pelo tronco.
No momento em que Tahonka No pôs os pés no chão Sandal, que estava dez metros
acima dele, pôs a flecha no arco e esperou ansiosamente.
Quatro planadores precipitaram-se das alturas, descreveram círculos pequenos em
tomo da caixa na qual estava a carga que rugia e berrava. Quando as esteiras tocaram a
areia, Sandal acendeu o fio fino. Uma chama pequena desceu por ele para desaparecer no
interior de uma esfera de formato irregular. Sandal guardou o isqueiro e puxou a corda.
A flecha subiu numa parábola fechada. O deslocamento do ar atiçou a chama, mas
esta permanecia invisível no interior da esfera de lama, madeira, penas, folhas secas e
pedaços de resina. A flecha caiu num monte gigantesco que haviam juntado entre os
arbustos. Dali a três minutos viram as chamas.
— Vamos! — cochichou Sandal e deslizou pelo tronco.
A face interior da porta do robô tocou no chão e os choques expulsaram os animais
enormes. Os ocupantes dos planadores viram o fogo trêmulo e saíram a toda em direção a
ele. Tahonka No já corria entre os animais em fuga para a abertura da máquina e Sandal
saiu correndo.
Um touro gigantesco viu-o, desviou-se para o lado errado e Sandal passou a toda
por ele. Só tinham prendido no corpo as peças de bagagem mais leves e importantes.
O ossudo alcançou na rampa no momento em que ela começava a erguer-se.
Sandal fez outra curva fechada e passou protegido pela escuridão entre dois animais
que gritavam. Viu vagamente que a rampa estava subindo. Passou a correr mais depressa,
avaliou o salto e girou durante a corrida.
Seu plano fora bem-sucedido.
Os ocupantes de quatro planadores cuidavam do fogo — atiravam para dentro dele.
Sandal escorregou nas fezes dos animais, bateu violentamente no chão, voltou a
levantar e teve a impressão de que chegaria tarde. A extremidade da rampa já estava um
metro acima do chão e seu movimento era cada vez mais rápido. Sandal saiu correndo de
novo, saltou e bateu com o peito no canto. Atirou os braços para a frente, pendurou-se e
sentiu o arco e seu corpo bater nas cavidades dos joelhos.
Tahonka No segurava-se com um braço, enquanto resistia com as pernas contra a
inclinação da rampa. Esticou o braço.
— Não grite — pediu com uma calma que até parecia artificial.
Agarrou os cabelos de Sandal, seus dedos fecharam-se que nem tenazes de ferro e
quando Sandal colocou o pé na extremidade da rampa, sua cabeça foi puxada para a
frente, depois para cima e finalmente para baixo. Sandal choramingava de dor e os dois
escorregavam pelo plano inclinado e foram parar entre o chão e a parede.
— Isso está resolvido! — exclamou Tahonka No em tom de triunfo e voltou a
levantar.
Havia um cheiro desagradável no ar. Em toda parte se viam hastes de capim e fezes.
Seu esconderijo fechou-se com certa violência. A placa subiu de vez e encostou-se
no veículo e o que ainda restava de luz desapareceu. Os amigos estavam parados na
escuridão. A cobertura da jaula ficava cinco metros acima de sua cabeça. Os dois
ouviram os motores dando partida. Em seguida o robô sofreu um abalo, rolou para trás e
parou.
— Está subindo! — disse Sandal.
Seu couro cabeludo ardia, mas ele sabia que a mão segura do amigo provavelmente
lhe salvara a vida. De qualquer maneira era graças a ele que se encontrava dentro do
esconderijo.
O ruído dos tiros ficou mais fraco, desapareceu — os últimos vestígios certamente
tinham sido destruídos, queimados.
A máquina subiu na vertical. Os dois perceberam que a direção do movimento
estava mudando. Escorregaram e tiveram de apoiar-se um no outro, o que na escuridão
era um problema.
Sandal imaginava como a máquina estava passando pelo tubo, parava à frente de
uma eclusa, entrava por ela e voltava a sair para em seguida continuar deslizando sobre
campos energéticos de cujo funcionamento ele nunca teria uma ideia. Passaram-se alguns
minutos. Na verdade foi meia hora, mas desta vez tiveram a impressão de que o tempo
estava passando muito mais depressa.
— Vamos pousar. Onde será que estamos?
Sandal percebeu que o amigo se afastava. Provavelmente se dirigia a um dos cantos
da jaula, onde primeiro poderia ver alguma coisa do lado de fora.
A máquina rolou um pedaço, fez movimentos para um lado e outro e finalmente os
motores silenciaram. Uma faixa luminosa muito clara apareceu em cima deles e dois
triângulos fechados se formavam a seu lado. Sandal viu a silhueta do amigo, que
permanecia imóvel, olhando para fora.
— O caminho está livre! — disse o ossudo.
Sandal baixou a arma. Preparara-se para no caso de uma surpresa defender-se até o
último tiro. A rampa desceu devagar.
— Esta eu não esperava — disse Sandal e olhou para os lados.
Interrompeu sua atividade quando a rampa tocou no chão. Os dois correram que
nem um relâmpago para a direita e dentro de alguns segundos viram-se numa rampa
inclinada. Subiram por ela em alta velocidade, mais uma superfície inclinada e eles se
viram atrás de um grande sistema de consoles de comando. Havia um calor agradável,
mas o cheiro de animais deixou embotados os sentidos.
— Um pavilhão redondo, sem dúvida. Vimo-lo através do campo energético —
disse o ossudo.
Certamente estavam num mundo em que ele sabia orientar-se muito melhor que o
caçador. Ao que tudo indicava dali em diante seus papéis seriam trocados. Sandal aceitou
isso sem pensar — o que era natural.
— Você nos guiará, parceiro — disse. — E fará uma grande volta em torno dos
perigos que eu não identificar.
— Pelo ídolo amarelo — farei isso mesmo — prometeu Tahonka e levantou o
braço.
Parecia um juramento.
À sua frente estendia-se um pavilhão redondo com vinte metros de altura no
máximo. O pavilhão estava dividido em muitos setores nos quais se comprimiam
quantidades enormes de animais. Sistemas automáticos de alimentação, corredores
largos, travessas e mecanismos de impulsão com os quais os animais podiam ser tangidos
para fora dos cercados e levados ao corredor que terminava junto à rampa do veículo de
transportes. Mais nada. Somente algumas máquinas de vigilância circulando sobre o
pavilhão, presas em braços mecânicos.
— Vamos dar o fora daqui! — disse Tahonka e olhou em volta.
Procurava um caminho no qual não se encontrariam com ninguém. Principalmente
nenhum dos pequenos seres purpurinos, cuja presença desencadeava acessos de raiva e
provocava tiros de flecha em Sandal. Deviam ser corredores e galerias no interior das
máquinas.
— Siga-me, amigo! — disse Tahonka No.
Até parecia que fora criado naquele lugar.
Tahonka abriu com a mão uma porta estreita atrás dele e um corredor comprido e
mal iluminado abriu-se à sua frente. Os homens entraram no corredor, fecharam a porta e
passaram por ele devagar, até chegar a uma sala cilíndrica. Tahonka No orientou-se num
instante, seguiu os cabos, leu uma dúzia de inscrições e abreviaturas, deu uma gargalhada
e disse:
— Vamos nesta direção, amigo. Chegaremos a um gigantesco armazém.
Provavelmente será mais que uma festa para nós. Até que enfim sinto-me seguro de
novo. Só máquinas... máquinas funcionando sozinhas em toda parte. Comportam-se
como idiotas.
— Confio em você.
Os dois passaram rapidamente por um corredor largo, cheio de fios, cabos e chaves.
Foram parar de novo à frente de uma porta de climatização, abriram-na com cuidado e
viram-se num pavilhão comprido e retangular. Estavam a grande altura, sobre uma das
numerosas rampas que cercavam o pavilhão. Em cima deles não havia mais luz, mas
viram muitas portas.
No centro do pavilhão, vinte metros abaixo deles, no chão, havia um centro de
descarga inteiramente automático para mercadorias de todas as espécies.
— Aqui podemos ficar.
Fecharam a porta e foram devagar e olhando sempre em volta para o lado esquerdo.
Em toda parte ouvia-se o zumbido de máquinas embutidas que sorteavam objetos,
colocavam-nos sobre esteiras, tiravam-nos delas e os faziam desaparecer em buracos na
parede.
Sandal parou junto à primeira porta.
— Vamos entrar aqui?
Tahonka No sacudiu a cabeça.
— Não. Só vamos entrar mais nos fundos — disse.
Atingiram a parede seguinte e finalmente chegaram a uma escada em caracol pela
qual Tahonka No subiu imediatamente. A escada levava em sete voltas a um centro de
controle no qual só se viam telas e consoles. O centro era uma pequena cúpula na
cobertura do armazém. Sandal aproximou-se do material transparente e encostou a
testa.Viu que os muitos edifícios baixos ficavam num parque.
Do outro lado do parque viam-se zonas iluminadas e edifícios belos, apesar das
formas estranhas. Só os tinham visto vagamente através do campo energético leitoso.
Eram obras-primas de uma arquitetura que dispensava os ângulos; tudo se juntava em
superfícies ligeiramente curvas. Os “muros” eram interrompidos por numerosas
superfícies luminosas autocondutoras e o edifício mais alto parecia um desejo que se
transformara em pedra.
— Onde podemos ficar escondidos? — perguntou Sandal.
Preferiria estar em cima de uma das árvores do parque.
— No depósito de peças sobressalentes desta sala de controle — disse Tahonka No.
— Aqui.
Tahonka abriu uma porta larga e os dois entraram numa sala parecida com a oficina
da nave-cogumelo na qual Sandal fugira do planeta Teste Rorvic. Como a sala em que
estava tinha cerca de cinquenta vezes o tamanho da outra, havia uns duzentos
esconderijos.
Os dois fecharam a porta e abriram as janelas para garantir o caminho de uma
eventual fuga.
Este caminho os levaria por cima de inúmeras coberturas. Lá havia grande número
de portas, alçapões, descidas e esconderijos. Sandal estava satisfeito.
— Excelente! — disse.
Nas horas seguintes descobriram algumas salas cujas instalações pareciam feitas
unicamente para o conforto de seres cuja tarefa parecia ser o controle das máquinas de
comando.
Três salas...
Salas com poltronas, mesas e sofás. Com água fria e quente, sabonete e toalhas,
pequenas cozinhas automáticas, todas elas cheias de provisões. Tahonka pôs fora de ação
as chaves e condutos perigosos, desfazendo as ligações.
— Dê uma boa olhada nestas salas — disse. — Aqui podemos completar mil vezes
nossos equipamentos. Até existem armas energéticas.
Sandal compreendeu.
Dispunham de tudo que havia no armazém. Este lhes forneceria automaticamente
qualquer coisa de que precisassem. Mas isto seria uma tarefa para as horas e os dias
seguintes. Sandal tinha vontade de tomar um banho quente dentro de essências
perfumadas e depois de uma ducha gelada, além de vinho e boa comida, paz e segurança
— por algum tempo.
— A primeira coisa que encontraremos aqui é sossego — disse o caçador de
cabelos brancos e pensou — no que estava certo — que as salas em que se encontravam
estavam adaptadas às necessidades dos pequenos seres purpurinos. — Vamos ficar de
olho. Não nos precipitarmos. Só a paciência nos levará ao destino.
— Você poderá completar a lista de seus antepassados — disse o ossudo. —
Aventuras incríveis, caçadas selvagens, acontecimentos maravilhosos para seus netos...
Os dois riram e tiraram as armas.
Mas mesmo nisto agiram como se ainda se encontrassem na selva perigosa. Faziam
de conta que a qualquer momento podiam ser obrigados a fugir.
***
Sandal Tolk não precisou de muita coisa para ser completamente feliz, ou melhor,
para sentir alguma felicidade.
Estava deitado numa banheira na qual caberia um darcan, um animal de montaria de
Exota-Alfa. Uma máquina cortara seus cabelos até um comprimento aceitável, lavara-os
e os deixara mais soltos, além de remover os parasitas.
Sandal estava mergulhado até o pescoço numa espuma azul-clara que crepitava e
cheirava bem. Esticou-se e lavou a sujeira, o suor e parte das recordações. Tahonka No,
que introduzira nas máquinas da cozinha robotizada um programa que os dois achariam
gostoso, lembrou-se ligeiramente de ter fugido certa vez por ter comido em público —
mas estas recordações eram pálidas; quase tinham desaparecido.
Em seguida foi para a frente de uma tela, ligou-a e pediu roupas, botas, cintos e as
outras coisas que provavelmente assentariam bem nele e em Sandal. Nunca se esquecia
de mencionar que se tratava de modelos para expedições — devia isto a si e a seu amigo.
Dali a duas horas seus corpos estavam limpos e bem tratados.
Usavam roupas excelentes, funcionais e indestrutíveis, cuja qualidade, na opinião de
Sandal, não ficava atrás das vestes terranas.
Encontraram-se, com as armas municiadas e atentos como sempre, junto a uma
mesa posta pela máquina.
Dali a mais duas horas estavam felizes e satisfeitos.
Trataram de completar seus equipamentos e examiná-los. Tudo que não servia mais
foi jogado no triturador de lixo.
***
Meio dia depois:
Tinham assegurado o caminho para uma possível fuga; bastava um movimento da
mão para pegar sua bagagem. Estavam deitados em sofás com as janelas abertas e tinham
ligado todos os sistemas de alerta que conseguiram localizar.
— Qual será o próximo passo, amigo? — perguntou Tahonka No.
Sua voz parecia sonolenta e ele se sentia assim.
— Tentaremos entrar por baixo da terra ou de outra maneira no rei dos edifícios. É
o castelo que brilha no escuro, No.
— Estou preparado. Mas não será hoje nem amanhã. Podemos dormir ao mesmo
tempo. Seremos alertados quando chegarem — com seus próprios aparelhos.
Antes de adormecer Sandal voltou a examinar a data no rádio do qual esperava que
finalmente voltasse a sair a voz de Atlan.
Neste momento saltou um algarismo.
Era o dia nove de março e Sandal sorriu ao lembrar-se de que dormiria o dia dez a
dentro.
Tinham-se aproximado a um tiro de arco da área misteriosa em que viviam os
servos-mor do Y'Xanthymr.
O próximo passo seria chegar mais perto do rei do “Enxame”.
Seu nome era Y'Xanthymr?
Sandal adormeceu...
***
**
*

Sandal Tolk, o vingador, e Tahonka No, o ossudo,


tinham atravessado as zonas da morte e chegado ao
destino por eles mesmos escolhido.
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série Perry Rhodan, com o título Os Servos do ídolo
Amarelo.

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