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A nova guerra total

Marildo Menegat1

Para Rafael Braga,

Porém meu ódio é o melhor de mim.


Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Carlos Drummond de Andrade

I.

A sociedade burguesa é inseparável da noção de que sua forma de vida é uma permanente
progressão que, somada à teoria da evolução das espécies de Darwin, se constitui numa poderosa
expectativa de que estes feitos pertencem aos desígnios universais da natureza. Afora desvios aqui e
ali, a linha do curso ao fim se mostrará reta – e quem a enxerga, provavelmente, um tonto. Tal
noção só é possível como um modo completamente reificado da memória deste curso. Por isso, é
difícil compreender este tempo em toda sua violência. Na aparência - aquela que a ideologia captura
como verdade - a era do capitalismo seria uma bem sucedida forma de controle da destrutividade
cotidiana dos seres humanos, tendo como obra prima o monopólio do uso legítimo da violência pelo
Estado que, conforme seus acólitos, parece ter suprimido a barbárie do passado. Contudo, um dos
elementos essenciais para a preservação deste culto do progresso é sua inexorável e permanente
revolução da técnica, a qual, da origem até hoje, se mostrou uma assombrosa força destrutiva. Sem
as armas de fogo e a guerra, o capitalismo jamais teria surgido e atingido as atuais proporções 2. Ao
que se sabe, em nenhum outro lugar do planeta, onde outros grupos humanos integrantes da espécie
já há muito habitavam, este desígnio era esperado. Desde os séculos XVI-XVII, porém, os canhões
do ocidente lanham a carne do que se lhe opõe em todos os quadrantes, para impor esta reta
verdade. No século XIX, a guerra total se tornou uma realidade em que sociedades inteiras são
mobilizadas para um fim destrutivo3. Foi este esforço, justamente, que tornou possível o impulso
1
Professor Associado do Programa de Pós-graduação do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos
Humanos da UFRJ.
2
“A moderna democracia do Ocidente é incapaz de ocultar o fato de ser herdeira da ditadura militar e armamentista
do início da modernidade - e isso não só na esfera tecnológica, mas também em sua estrutura social. Sob a fina
superfície dos rituais de votação e dos discursos políticos, encontramos o monstro de um aparato que administra e
disciplina de forma continuada o cidadão aparentemente livre do Estado em nome da economia monetária total e da
economia de guerra a ela vinculada até hoje. Em nenhuma sociedade da história houve tão grande percentual de
funcionários públicos e administradores de recursos humanos, soldados e policiais; nenhuma jamais desbaratou
uma parcela tão grande de seus recursos em armamentos e exército”. Cf. KURZ, R. “A origem destrutiva do
capitalismo”, in: Os últimos combates. Petrópolis: Vozes, 1997; p. 245. Deste autor ver também sua imprescindível
construção ampliada do mesmo argumento em Dinheiro sem valor. Lisboa: Antígona, 2014, em especial pp. 101-
120.
3
“Quando houve uma escalada nos gastos do governo, às vésperas das Guerras Napoleônicas e no decorrer delas, o
nível de produção e a velocidade das inovações em produtos e processos na indústria siderúrgica aumentaram
muito, e a indústria de bens de capital tornou-se um ‘departamento’ muito mais autônomo da economia doméstica
britânica do que jamais tinha sido, ou do que era até então em qualquer outro país”. Cf. ARRIGHI, G. O longo
industrializante do mecanismo autômato da produção pela produção de valor. Em pleno lumiar do
progresso, a verdade que ficou oculta foi esta necessidade lógica do seu reverso.

No fim da fase liberal do capitalismo, na passagem do século XIX ao XX, se iniciou uma longa
crise, que exigiu um reordenamento da dinâmica desta forma social, em que a insânia da guerra
total chegou ao paroxismo da possível e quase realizada auto aniquilação da espécie, como ficou
patente na capacidade de produzir a morte em escala inaudita durante a Iª e IIª Guerras Mundiais.
Após esta fase, a reconstrução da marcha vencedora da civilização burguesa obrigou mudanças
importantes nos fundamentos da teoria do Estado. A democracia de massas, ao que parece, era de
fato a forma política mais estável para uma sociedade que havia chegado à produção e ao consumo
também de massas. A legitimação deste Estado sustentada na socialização universal por meio da
mercadoria, que a expansão da produção fordista com pleno emprego garantiu, dava a impressão de
que o sistema teria encontrado um ponto de equilíbrio perpétuo. A defesa da democracia como valor
universal consolidou este período como um tempo de amnésia da sua força destrutiva encapsulada
num duvidoso estágio avançado do progresso. No fim dos anos 1960, no entanto, a política
americana – acompanhada pela Europa Ocidental - de ‘armas, pão e manteiga’ passou a sofrer cada
vez mais avarias e impossibilidades de prosseguir. A abertura de outra longa fase de crise e
esgotamento do sistema, que perdura até hoje, há tempo tem exigido uma nova virada no parafuso
da teoria do Estado e nos fundamentos de sua legitimação. As transformações tecnológicas dos
processos de produção deste período mandaram para o inferno a quimera do pleno emprego no
capitalismo. Nenhum Estado Nacional pelo mundo pôde bancar, desde a metade dos anos 1980, sua
legitimação com o apoio das classes subalternas por meio de uma política social de bem-estar. O
capitalismo já não consegue encenar o mito de ser uma civilização da inclusão mundializada por
meio da imposição do trabalho. O universalismo adquire sua verdade no inverso, assim como
ocorreu com o progresso.

Em sua genealogia do estado de exceção, Giorgio Agamben descreve uma situação que podemos
tomar como originária da sua forma contemporânea. Diferente das ditaduras bonapartistas que se
seguiram às revoluções modernizadoras, como reação ao radicalismo que as ameaçava, mas
também, como confirmação do essencial das novas formas conquistadas – como foi, por exemplo, o
período do Iº Império Napoleônico -, o estado de exceção no século XX surge numa conjuntura em
que o Estado já estava transformado pelo poder dos monopólios econômicos, mas enfrentava
ameaças de dissolução presentes tanto nas guerras – como na Iª e IIª guerras mundiais – como nas
crises econômicas – que lhe eram inerentes e estavam em simbiose com estes acontecimentos - em

século XX. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: UNESP, 1996, p. 267.
que a substância do valor representada no dinheiro se esfumaçava. Conforme Agamben, “a
ampliação dos poderes do executivo […] prosseguiu depois do fim das hostilidades e é significativo
que a emergência militar então desse lugar à emergência econômica por meio de uma assimilação
implícita entre guerra e economia”4. Em toda a cronologia da adoção do estado de exceção no pós Iª
GM nos países da Europa Ocidental, a sua justificação está associada à crise das moedas no
contexto de desmoronamento do padrão ouro da economia mundial. Em 1923, na Alemanha, o
governo social-democrata decreta poderes excepcionais amplos “para enfrentar a queda do
marco”5. Na França, em “janeiro de 1924, num momento de grave crise que ameaçava a
estabilidade do franco, o governo […] pediu plenos poderes”. Esta situação se repete em 1935, com
o governo Laval que, “para evitar a desvalorização do franco”, pede ao Parlamento plenos poderes.
E, em 1937, a mesma esquerda que era oposição a este governo, e “se colocou contra esta prática
‘fascista’”, “uma vez no poder com a Frente Popular […], pediu ao Parlamento plenos poderes para
desvalorizar o franco [...]”6.

Estes terremotos das sociedades produtoras de mercadorias podem ser melhor compreendidos
quando observamos que o dinheiro representa um dos fundamentos abstratos essenciais da dinâmica
deste mecanismo social. Ao se desmanchar a substância que sustenta o poder social do dinheiro –
que é a forma valor como medida do tempo de trabalho social -, toda a solidez da sociedade
capitalista se move para o abismo. Segundo Kurz, as economias de guerra do século passado (e
parece que mais intensamente ainda depois do fim do Acordo de Bretton Woods, em 1971)
“deixaram de se mobilizar pelo ‘movimento em si mesmo’ do fetiche do capital”, fazendo com que
o dinheiro, enquanto ‘signo’, não precisasse mais ter sua equivalência em metais preciosos (ouro), e
fosse substituído “por meros lançamentos contabilísticos (o chamado nominalismo)” 7. O estado de
exceção, portanto, surge justamente destas situações, como uma força decisória que pretende fazer
que tudo fique em pé quando os alicerces já estão em dissolução. Como a confiança é um dos
elementos constitutivos do poder social do dinheiro, cuja imposição violenta da decisão pretende
restituir à fórceps sua legalidade (econômica) corroída pelos processos de desvalorização – o que
não implica necessariamente na restituição da sua possibilidade de objetivação social, pois o
dinheiro é uma expressão do valor que apenas secundariamente acompanha este movimento, uma
vez que depende de outros fatores (estritamente econômicos) -, esta operação de guerra faz a vez da
política, no esforço desesperado de prolongar as condições de possibilidade desta sociabilidade em

4
Cf. AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 26.
5
Idem, p. 29 [grifos meus].
6
Idem, p. 26 [grifos meus].
7
Cf. KURZ op. cit., 2014, p. 188.
que seus fundamentos se tornaram estilhaços de uma fantasmagoria vagando por todos espaços com
acentuada potência destrutiva.

Tal situação originária do estado de exceção, que na verdade nunca se dissipou desde o seu
aparecimento efetivo como meio constituinte da política contemporânea, e se manteve atuante numa
progressiva tensão na segunda metade do século XX, embora tenha estado escondido sob as brumas
da democracia de massas, voltou com intensidade depois do início da crise do capital dos anos
1970. Um dos primeiros sinais desta virada, como destaca Habermas num ensaio de 1982, sobre o
neoconservadorismo na Alemanha e nos Estados Unidos, partem de argumentos como os
comentários feitos pelo jurista conservador Ernst Forsthoff acerca dos princípios que deveriam
assegurar a legitimidade da Constituição da República Federal da Alemanha de 1945. Para
Forsthoff, seguindo a exposição de Habermas, “as normas que definiam o estatuto do Estado de
direito […] deveriam manter uma procedência absoluta sobre a cláusula que exigia o Estado de
bem-estar social, a qual deveria ser entendida apenas como recomendação política”8. Esta ênfase,
no entanto, demarca uma percepção apurada – pois se sustenta em algo que permanece como regra
ao longo da história contemporânea9, apesar do seu intencional esquecimento pelo espetáculo
legislativo das democracias burguesas - das condições primordiais de existência do Estado como
máquina de guerra, que é a preservação de sua capacidade de intervenção na estabilização de uma
sociedade em convulsão devido a frustração das massas por não conseguirem satisfazer suas
necessidades elementares num sistema totalitário de mútua dependência, como é o mercado,
especialmente na fase atual do capitalismo. Na medida em que a lealdade e obediência do povo
(fraturado em sua unidade) não pode mais ser o princípio de legitimação do Estado, em razão da
crise do sistema e suas repercussões sobre a arrecadação fiscal 10, para os neoconservadores, o
“guardião do bem comum precisa ter o poder político de não argumentar e, em vez disso, decidir” 11.
Neste caso, não é o conceito de justiça e igualdade que deve servir de argamassa para re-ligar os
estilhaços da sociabilidade implodida, mas o fato de que “o Estado tem de legitimar-se […] no
modo como leva a cabo a tarefa central de assegurar a paz, a defesa contra os inimigos externos e
internos”.12

8
Cf. HABERMAS, J. “A crítica neoconservadora da cultura nos Estados Unidos e na Alemanha”, in: A nova
obscuridade – pequenos escritos políticos V. São Paulo: UNESP, 2015, pp. 79-80.
9
“Hoje […] a emergência; como Benjamin havia pressagiado, tornou-se a regra [...]”. Cf AGAMBEN, G. Homo
Sacer – o poder da vida nua - I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002, p. 19.
10
A pretensão de legitimação do Estado, para Habermas, deriva da sua “garantia de evitar a desintegração social”.
Para realizar tal finalidade, o “subsistema político assume a tarefa de proteger a sociedade da desintegração, mas
não pode dispor livremente das capacidades de integração social [...]”. Cf. HABERMAS, J. Para a reconstrução do
materialismo histórico. São Paulo: UNESP. 2016, p. 382.
11
Cf. HABERMAS, op. cit. 2015, p. 80.
12
Idem, p. 97.
Os inimigos internos são grupos humanos descartados pelas condições de concorrência em sua fase
presente da mundialização do capital sob as bases da revolução técnica da microeletrônica e da
robótica13. Que a guerra civil, que desta condição emerge, seja, ao mesmo tempo, tanto um sintoma
agudo da impossibilidade de legitimação por consenso do Estado em crise, como também um meio
perverso para atingir tal fim, através de maiorias eleitorais contingentes, parece algo irrefutável.
Diferente de Habermas que, segundo diz, ainda espera a conclusão do projeto da modernidade, a
guerra civil, que se segue à situação originária do estado de exceção, para Agamben, demonstra que
a democracia moderna foi incapaz de nos salvar da ruína da sociedade burguesa 14. Dessa forma,
ao contrário do esperado pelo filósofo alemão, o desentendimento por meios violentos, escrachado
pelos conflitos sociais, como as novas modalidades de guerra civil em curso pelo mundo, pode ser,
por paradoxal que pareça, legalizado e, por isso mesmo, servir de força sustentadora do próprio
regime democrático, contra o qual esta violência aparentemente conspiraria – como se ela não fosse,
justamente, uma reação à impotência das instituições públicas em subordinar as forças dissolventes
do mercado.15 Desse modo, a presente modalidade de democracia só sobrevive ao preço de estar
permanentemente ameaçada pelo desespero daqueles que, em tese, dela mais precisariam - para
mudar por meio da ação coletiva suas condições de existência. Ou seja, ela só sobrevive se estiver
fora do alcance do povo e, portanto, se não for um governo do povo, como se presume da
etimologia da palavra, mas um governo contra o povo. Frente a ameaça de implosão da ordem – e
frequentemente por sua efetivação, localizada ou generalizada -, em consequência do abandono do
Estado de todas suas funções na reprodução social, este alcança as condições para a sua legitimação
através do uso da violência (e não mais pela assertiva dissuasiva presente no princípio do
‘monopólio do uso’) contra estes grupos sociais deserdados de sua clientela.

II.

Este processo histórico alcançou o Brasil nos anos 1980. Uma confluência de fatores contraditórios,
capaz de desmontar qualquer forma comum de vida social, deu a tônica na conclusão da transição
da ditadura civil-militar à democracia. De um lado, armou-se a expectativa de que seria possível re-
emendar o fio da história destroçado em 1964. Parte significativa da experiência virtuosa do
13
As projeções sobre a 4ª Revolução tecnológica em curso, que se sustenta numa nova geração de Robôs, capazes de
fazer tarefas complexas e inteligentes, não são nada promissoras. Diz uma reportagem sobre o tema: “O Brasil é um
dos países com maior potencial de automatização de mão de obra, atrás apenas de China, Índia e Estados Unidos na
quantidade de trabalhadores que poderiam ser substituídos por máquinas. De acordo com estudo da consultoria
McKinsey, 50% dos atuais postos de trabalho no Brasil poderiam ser automatizados, ou 53,7 milhões de um total de
107,3 milhões. O setor com maior percentual de empregos automatizáveis no Brasil é a indústria, com 69% dos
postos. Em seguida, ficam hotelaria e comida (63%) e transporte e armazenamento (61%)”. Cf. PORTINARI, N.
Folha de São Paulo, Caderno Mercado, 17/05/2017 - http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/05/1884633-50-
do-trabalho-no-brasil-pode-ser-feito-por-robo-diz-estudo.shtml
14
Cf AGAMBEN, op. cit., p. 17.
15
Cf AGAMBEN, 2004, p. 13.
fordismo e do Estado de bem-estar no pós Segunda Guerra Mundial ficava por conta do sentido da
retomada daqueles 20 anos perdidos. Contudo, neste mesmo período, o fordismo já havia se tornado
um tempo morto da acumulação de capital. A ele se seguiram outros regimes de acumulação e
programas de contrarreformas do Estado, como o neoliberal, que tentavam contornar a crise que
desde o início dos 1970 mantinha a economia mundial num ritmo de estagnação. O último ato da
transição, que guardou a explosividade da confluência destes tempos, que se pretendiam não-
sincrônicos, foi a Constituição de 1988. O modelo nela seguido – e aqui me apoio no que dizem
juristas como Gilberto Bercovici16 - é o de uma constituição dirigente, a qual se define “por meio
das chamadas normas constitucionais programáticas, fins e programas de ação futura no sentido de
melhoria das condições sociais e econômicas da população”17. Esta é a mesma modalidade de
constituição contra a qual se insurgia o argumento de Ernst Forsthoff, conforme visto anteriormente.
Não tardou muito a Constituição ser submetida ao mesmo tipo de crítica também por aqui. A
contraparte deste contexto era a virada nas políticas que haviam garantido, na fase anterior, as
mudanças nos fundamentos da teoria do Estado, e que foram adotadas muito tardiamente no Brasil
como princípios constitucionais. O neoliberalismo, cujas posições foram parcialmente derrotadas
nos debates da constituinte, foi sendo introduzido no período imediatamente posterior, sub-
repticiamente, como se fosse a única percepção racional da crise em andamento, e se tornou senso
comum ainda no início da década de 1990. Sua força ilusionista foi representar uma saída para este
impasse sem ser uma saída, mas o aprofundamento da instabilidade. O fato é que a defesa de uma
constituinte dirigente numa época em que a financeirização tornava improvável qualquer expansão
de direitos, se apresenta como uma contradição sem solução no chão histórico do capitalismo tardio.
A construção de tal impasse neste contexto a que estou me referindo, funcionava como uma
maldição voluntária, ou, se se preferir, a sequência final de um colapso anunciado. Foi ainda o então
presidente da República José Sarney quem começou com a lenga lenga da ingovernabilidade que a
Constituição produzia. O que se está chamando de cobertor curto da lei, contudo, não chega a ser
uma novidade num país como o Brasil. Mas, a guinada dos argumentos revisores da Constituição
tem como pano de fundo o reconhecimento de uma situação, esta sim, nova, que não foi vivida pelo
país no período a que Agamben se refere na descrição de sua conhecida genealogia.

Em outro artigo sobre este tema, Bercovici fez um rápido balanço, não apenas das polêmicas sobre
o modelo da Constituição de 1988, mas das emendas que esta sofreu, principalmente no capítulo

16
Devo mais do que a inspiração destes passos, e os seguintes, à leitura DE SOUZA, M. S. O penhor de uma
igualdade: contradições e vicissitudes do projeto constitucional de 1988 no Brasil do capital fictício. Tese de
doutorado em Direito – PPG-Direito, UFSC, 2017. Novamente agradeço a oportunidade de ter aprendido com seu
texto coisas essenciais sobre os limites do Direito em nosso tempo.
17
Cf. BERCOVICI, G. “A Problemática da Constituição Dirigente: Algumas Considerações sobre o Caso Brasileiro”,
Revista de Informação Legislativa nº 142, Brasília, Senado Federal, abril/junho de 1999, p.36.
sobre economia. A desfiguração foi tanta que o autor sugere uma nova denominação da sua
modalidade: o de constituição dirigente invertida18. Esta mudança se impõe devido a necessidade
incontornável que os programas de financeirização neoliberal têm em fazer do Estado uma base
ampliada da reprodução fictícia do capital. As dívidas públicas, segundo Kurz, tornaram-se um
elemento estruturante das finanças dos Estados – e do capital - desde o esforço de guerra da
primeira metade do século passado19. Depois deste período, elas foram necessárias para financiar,
em parte, as crescentes funções que o Estado precisou assumir na reprodução social, como
educação, saúde, transporte e aparatos de segurança; e foram suficientemente amplas para tornar a
combinação do limite lógico da acumulação - perceptível no colapso do capital a partir dos 1970 e
que se reflete na crise fiscal do Estado - com o endividamento exponencial, em algo insolúvel e
revelador do teto histórico a que chegou o capitalismo. Nestas dívidas o Estado recorre ao crédito
para fazer gastos que, para a lógica interna do capital, são improdutivos. Marx havia demonstrado 20,
que as dividas públicas são um dos meios por excelência da transformação de dinheiro em mais
dinheiro, sem que nesta operação, no entanto, ocorra a mediação de investimentos em produção, da
qual se extrai o mais valor que justificaria, após sua realização, o ponto de chegada da acumulação
de capital. Já nos anos 1980 os Estados Nacionais foram sendo enquadrados mundo afora nas
malhas das dividas transformadas em mecanismos de compensação para o limite da acumulação, o
que resultou numa fórmula bizarra de fuga para frente, com gastos crescentes por conta do
financiamento de dívidas impagáveis e o enxugamento catastrófico das funções de responsabilidade
social do Estado. O problema central é que isso não cabe numa ordinária escolha de programas de
governo, mas é a imposição objetivada da dinâmica agônica do capital. Este modo de produzir a
vida social, fundado na socialização abstrata do valor e sustentado numa ruptura metabólica com a
natureza - o que leva à sua inconsciente e irreversível destruição -, é insustentável. Por isso, observa
Bercovici, como parte da dissolução inconsciente em que esta sociedade se move, foi se impondo “a
desarticulação das ordens financeira e econômica nas constituições”21. A primeira, que foi na sua
origem um instrumento de planejamento do Estado subordinado à ordem econômica, passa agora a
ser um fator determinante da sobrevida da economia capitalista. O passo em falso de um bêbado,
antes do anunciado tombo, no máximo pode ser seguido por outro passo em falso. Esta
‘desarticulação das ordens’ tem como finalidade precípua “a consolidação da supremacia do
18
“A indiferença atual entre direito constitucional e direito financeiro ignora o tema central da articulação entre
constituição financeira, constituição econômica e constituição política dentro da constituição total. E isto não ocorre
sem razão. Confirmando a hegemonia das tendências neoliberais que sucederam a ruptura do padrão de
financiamento da economia do segundo pós-guerra, a desarticulação das ordens financeira e econômica nas
constituições reflete a contradição do novo padrão sistêmico de acumulação com o paradigma da constituição
dirigente, implicando o surgimento de um novo fenômeno: a constituição dirigente invertida”. Cf. BERCOVICI,
G.; MASSONETTO, L. F. “A constituição dirigente invertida: a blindagem da constituição financeira e a agonia da
constituição econômica”, Boletin de Ciências Econômicas nº XLIX, Lisboa, Universidade de Coimbra, 2006, p. 57.
19
Cf. KURZ, R. “A realidade irreal”, p. 130-1; in: Os últimos combates. Petrópolis: Vozes, 1997.
20
Cf. MARX, K. O Capital – crítica da economia política. Livro III, tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1986.
21
Cf. BERCOVICI, G.; MASSONETTO, L. F., p. 57
orçamento monetário, ou seja, a garantia do custo da moeda (definido pelo Banco Central e pelo
Conselho de Política Monetária – COPOM, à margem do Congresso Nacional), voltado para a
estabilidade monetária, sobre o orçamento fiscal”22. Estamos às voltas, portanto, com o impasse que
serve de base para a situação de origem do estado de exceção. A função do orçamento não é o de
garantir o bem-estar da reprodução social da população, isto é, o patamar civilizatório básico das
melhores energias deste tempo, mas de ser a âncora da estabilização monetária.

III

A história deste processo constitutivo da situação originária de um estado de exceção à brasileira


tem sua força definidora no início da década de 1990. É verdade também que seus contornos mais
brutais apenas estão esboçados, apesar de ‘sub-repticiamente’ legitimados. Dois momentos
importantes desta história recente terão de ser ainda analisados em profundidade por quem pretende
fazer a crítica desta situação e, quem sabe, contribuir para impedir que o pior do espírito desse
tempo se realize plenamente. Ambos os momentos envolvem setores das chamadas ‘forças
progressistas’ que se opuseram à ditadura civil-militar e, por isso, torna obrigatório um acerto de
contas radical com estas correntes do pensamento, assim como com as expectativas modernizadoras
do país. O primeiro são os governos do PSDB, iniciados ainda na época do plano Real. As
implicações deste plano precisam ser entendidas no vasto movimento no qual se integram, isto é, no
de serem uma resposta ao colapso da economia iniciado no lustro anterior, e de proporem, por isso,
uma organização salvífica de uma parte da sociedade em detrimento da restante. Em outras
palavras, o Plano Real assume e legaliza uma economia política da barbárie, a qual se sustenta no
saque “em que é despedaçada a substância física da economia nacional arruinada” (KURZ).
Francisco de Oliveira identifica um momento fundamental deste Plano na conversão da dívida
externa em dívida interna, precisamente, no financiamento de seus custos por meio da especulação
com os títulos do Tesouro Nacional. Desse modo, segundo ele, se formam “os excedentes do setor
privado, sem o que as empresas […] teriam ido todas à falência” 23. A ideia de que o Plano Real
tenha sido, em contrapartida, a criação de uma moeda nacional forte, e não simplesmente um
escandaloso saque da riqueza autóctone, é uma dessas fantasmagorias ideológicas produzidas pelo
darwinismo social para ofuscar o fracasso de seu resultado. Neste mesmo período da ‘estabilização
monetária’, a instabilidade produzida pela violência cotidiana nas grandes metrópoles, assim como
o aprisionamento em massa, deram seus primeiros grandes saltos reveladores da necrose social em

22
Idem, p. 71.
23
Cf. OLIVEIRA, F., Os direitos do antivalor – a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis: Vozes,
1998, p. 167.
que o país afunda. Esta ilusão da moeda forte foi em parte sustentada pela paridade forçada entre o
Real e o Dólar durante os primeiros anos de sua vigência. Tal fato, no entanto, não era mais do que
uma impotência diante da situação catastrófica, definidora do quadro de ‘desmonte da nação’, uma
vez que deixava patente que “o Estado Nacional não tem mais o monopólio exclusivo da violência,
já que a moeda é o conversor público de todas violências privadas” 24. A reprodução da sociedade
passa a ser hipotecada para salvar um circulo cada vez menos abrangente e mais capenga da
acumulação de capital.

O segundo momento, que tem articulações internas com o anterior e é o seu consequente
agravamento, decorrente do aprofundamento da crise em 2008, ocorreu durante o primeiro governo
de Dilma Rousseff. Como é sabido, a lei antiterrorismo, na sua primeira versão adotada em 2013,
foi uma exigência de um organismo internacional do qual o Brasil participa - o Grupo de Ação
Financeira (GAFI). Sua necessidade é posta, portanto, pelo Ministério da Fazenda que, até um dia
antes, nada tinha a ver com a instabilidade política gerada por atos terroristas. O ministro da Justiça
de plantão, naquele período, logo subiu ao palco para defender a autoria do imbróglio e retirar a
evidência do verdadeiro sentido da lei. Todavia, a possibilidade (e, portanto, a intenção) de tipificar
qualquer resistência coletiva contra o Estado como um ato promovido por organização terrorista é
evidente25. Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, e a reação dos EUA e seus aliados
Ocidentais, indicam o nível alarmante do aprofundamento da crise generalizada do capitalismo.
Desde então, o estado de exceção desta época passou a deixar rapidamente as brumas e a se
solidificar em leis de exceção mundo afora26. É de Lincoln Secco27 a observação melancólica do
contraste entre a fase heroica da história do PT, quando se gritava em manifestações de rua que “a
luta faz a lei”, com sua decadente fase governista, quando o partido criou uma legislação

24
Idem, p. 195.
25
O primeiro uso da lei (sancionada pela presidente Dilma Rousseff em março de 2016) foi às vésperas das
Olimpíadas, quando um punhado de atentados havia recentemente comovido a França, e a falência do Estado do
Rio acabava de ser decretada. O governo Temer não perdeu a oportunidade de mostrar suas habilidades de grande
fanfarrão. A ocupação da cidade do Rio de Janeiro por tropas do Exército, que seriam necessárias para garantir a
segurança do evento, precisava dar a impressão (que é um critério de legitimidade na sociedade do espetáculo), para
o turista estrangeiro, de que se devia ao temor de que os tais acontecimentos da Europa pudessem também ocorrer
por aqui, e não pelas sobejas razões locais de insegurança, como a ameaça de greve da Polícia Militar e de
manifestações de funcionários públicos por atrasos de pagamentos dos salários ou as frequentes ondas de assaltos
que ocorriam em diversas regiões da cidade naquele momento. Esta situação pode ser uma demonstração da
intenção e do alcance da lei nº 13.260/16. Na ocasião, 13 pessoas foram denunciadas e presas no país por serem
suspeitas de promoverem organizações terroristas. Dessas, 8 pessoas ainda permanecem abusivamente presas, sem
que contra elas se formule uma sentença. Uma das pessoas presas foi assassinada na prisão, no Mato Grosso, por
outros presos: "A versão de todos os detentos é que o crime foi cometido porque ele seria terrorista e que terrorista
derrama sangue inocente, por isso ele não era para estar ali", disse o delegado Marcelo Jardim, que presidiu o
inquérito. Cf. Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano, 23/04/2017;
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/04/1877803-prisao-de-acusados-por-terrorismo-tem-de-assassinato-a-
greve-de-fome.shtml
26
“[…] um regime totalitário requer a apresentação do terror como instrumento necessário”. Cf. ARENDT, H.
Origens do totalitarismo.São Paulo: Cia das Letras, 2016, p.30.
27
Cf. SECCO, L. História do PT. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2011, p. 286.
antiterrorismo cujo alvo são justamente as manifestações de rua 28 que procuram organizar de modo
elementar a reação à necrose social. Os governos petistas tinham sido uma relativa inflexão na
intencionalidade da gestão pública, e seu grande trunfo foi a criação de uma precária
governabilidade social. Esta, para muitos ideólogos do melhor dos mundos, seria a segunda etapa da
‘revolução’ iniciada com a estabilidade monetária, a qual se acrescentaria, daí em diante, a
necessária estabilidade social. As técnicas desenvolvidas para realizar a gestão da barbárie, contudo,
já não eram suficientes, após quase 12 anos de governos do PT, para assegurar a governabilidade. A
garantia do valor totalmente artificial da moeda nacional - o [ir]Real - implica cada vez mais nas
condições de intervenção da máquina de guerra do Estado na pacificação interna. As desproporções
entre os coquetéis molotovs dos manifestantes e o arsenal de guerra das polícias já podia ser
antevista nas ações em favelas no período anterior às manifestações de junho 29. Porém, na fase que
se abre depois de 2013, esta será a condição de todo enfrentamento: um estado declarado de guerra.
As manifestações de protesto recentes contra as reformas de um governo completamente sem
legitimidade que, não obstante, conta com o apoio unanime da elite empresarial, dão a medida do
que está vindo por aí. O horror, que antes confortava a classe média branca saber que somente seria
usado contra os de baixo, tornou-se há tempo o regime geral. Esta guerra precisa se tornar um novo
tipo de guerra total. Ela não pode ser avaliada somente pelos investimentos que funcionam como
mecanismos de compensação em uma economia colapsada, uma fuga para a frente, mas ela deve ser
entendida como a única forma possível da política nesta situação histórica “que deixou de se
mobilizar pelo ‘movimento em si mesmo’ do fetiche do capital”.

IV

O conceito de guerra total tem inúmeras e imprecisas origens. Seu uso como um conceito não
apenas explicativo mas também operativo foi durante a Iª Guerra Mundial. Segundo Ali Loïdi ele é
uma obra obsessiva de Jean Tannery e Frédéric François-Marsal, espiões de guerra franceses. Antes
deles, a ideia de uma guerra por todos os meios parece ter feito parte do ambiente e das
preocupações da filosofia do Esclarecimento às vésperas da revolução 1789. David A. Bell sustenta
que, como parte do colapso da sociedade de corte, a antiga cultura aristocrática de guerra deu lugar
a um imperativo de paz que deveria ser perseguido à qualquer custo. De uma guerra cercada de
28
A classificação destas manifestações como ‘tumultos’, comum em certo jornalismo de apoio às leis de exceção, ou
nos discursos de representantes dos aparatos repressivos, tem como objetivo confirmar, diante do perigo que parece
sempre estar a um passo de suspender a soberania do Estado, a necessidade urgente da sua defesa por meio de um
direito de guerra contra todos: “O poder conferido […] é indiferente que se exerça contra o inimigo que sitia Roma
ou contra o cidadão que se rebela [...]”. Cf. AGAMBEN 2004, p. 71.
29
Sobre as manifestações de junho de 2013 ver o a esta altura já clássico ARANTES, P. E., “Depois de junho a paz
será total”, in: O novo tempo do mundo – e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
limites definidos, se teria passado a uma guerra sem limites pela paz - “até o último homem”.30 O
caráter conservador das análises de Bell, no entanto, enfraquece o alcance de certos insights
presentes nesta tese. Se toda sociedade procura dar destinos à pulsão de morte, não é sem sentido
uma discussão acerca das mudanças da cultura da guerra desde a Revolução Francesa. Mas talvez
sua pertinência ficaria mais nítida se fosse entendida na chave do que representou a revolução como
uma nova fase da “moderna socialização do valor [que] começou a se desenvolver, então, a partir de
seus próprios fundamentos, ao passo que o pensamento esclarecido passou a acompanhar [esses
fundamentos] como ideologia de adaptação a um só tempo militante e afirmativa” 31. A fase anterior
da ‘guerra aristocrática’ correspondeu, nesta perspectiva, ao longo processo constitutivo do
capitalismo, que Marx chamou de acumulação primitiva. As primeiras formas da economia política
foram a imposição brutal de seus fundamentos. A violência da guerra que os Estados exerciam para
rapinar os meios de vida e produção das sociedades não modernas, para depois usá-los na
consolidação da socialização do valor, fez parte desta imposição, da mesma forma que esta
violência não foi de todo suprimida na fase histórica posterior do capitalismo. Na formação das
modernas nações produtoras de mercadorias era comum parte de seus territórios estarem submetidas
às práticas de pilhagem e rapina, às quais, a guerra emprestou seus métodos, quando não foi ela
própria o événemant. Essas guerras, portanto, foram ‘uma cultura de época’ determinada pela
dinâmica impessoal de expropriação em múltiplas frentes – inclusive nas distantes colônias
ultramar. Barbarizar sempre foi o verbo adjunto da civilização ocidental.

Ocorre, porém, que estas modalidades de atividade econômica, como a ‘guerra aristocrática’, que
foi um meio poderoso de enriquecimento32, já ao fim do século XVIII estavam demasiado obsoletas
para produzir a riqueza das nações nos padrões que o capitalismo precisava. Como procuraram
explicar os filósofos iluministas, entusiasmados com as mercadorias do mundo que afluíam às
principais cidades da Europa - tomando-as inclusive como uma espécie de substrato oculto de um
revigorado hedonismo moderno -, o comércio devia ser encarado como um caso modelar de dialogo
entre iguais e, por isso mesmo, servir de fundamento de uma forma secularizada de entendimento.
Com isso, a humanidade podia aposentar seus ‘hábitos selvagens’ e passar a cultivar costumes mais
elevados de paz e estabilidade. Não foi, contudo, o comércio em si, que é apenas uma das formas (a
mais aparente) do capital, e sim a totalidade das condições que esta sociedade produtora de
mercadorias criou para andar com seus próprios pés que impulsionou um novo tipo de guerra, e a
30
Esta expressão aparece numa passagem citada por David A. BELL do Ensaio sobre tática do conde de Guibert, em
que este explica a nova guerra: “Se este povo feliz e pacífico for insultado, ele se erguerá, deixará seu lar e, se
necessário, perecerá até o último homem”; cf. Primeira guerra total, Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 108.
31
KURZ, R. Razão Sangrenta. São Paulo: Hedra, 2010; p. 42.
32
“Os soldados do século XVIII também misturavam guerra com empreendimento privado [sic] – ou seja, pilhagem.
O roubo espalhafatoso não era visto com bons olhos, mas os espólios tomados diretamente das forças inimigas eram
outra coisa”. Cf. BELL, 2012, p. 45.
adaptação de sua explicação pelo Iluminismo se tornou compreensível apenas depois, no que
Orwell disse de forma bem mais clara na sua conhecida distopia: paz é guerra. As Guerras
Napoleônicas foram tanto a primeira guerra da era industrial do capitalismo, como a última antes da
generalização da máquina. As forças destrutivas engrandecidas desta sociedade encontraram no
‘espírito humano’ a adaptação que necessitava para levar adiante sua finalidade. Nestas guerras, a
guerra total esteve presente ainda em statu nascendi, mas seu impacto foi tal que na literatura e na
pintura oitocentista a figura do veterano andrajoso andando mutilado sobre muletas não pôde ser
ignorada. Nunca na era moderna exércitos tão gigantescos com armas que multiplicavam muitas
vezes a morte estiveram antes se confrontando “até o último homem”. Estes personagens retratados
pela arte descrevem os restos da paisagem humana desse momento passado, em que somente a
França perdeu quase um milhão de homens.

Mas nada se compara à Iª Guerra Mundial, onde esta modalidade de guerra tipicamente capitalista
encontrou o ambiente próprio para o seu pleno desenvolvimento. Arno Mayer chamou o período
que vai de 1914 até 1945 de ‘a guerra dos trinta anos da crise geral do século XX’ 33. Segundo ele, as
duas guerras mundiais deveriam ser entendidas como um único acontecimento e, se poderia
acrescentar, a causa é a grande crise do capitalismo, que tem o epicentro deste ajoelhar-se no
inferno em 1929. Numa linha semelhante, Eric Hobsbawm começa a Era dos extremos – o breve
século XX explicando justamente a sua novidade: a guerra total. Ainda hoje ela é o paradigma por
excelência da ‘dessocialização catastrófica’ (Kurz), sendo o marco do primeiro colapso do
capitalismo, quando os limites internos da acumulação se manifestaram já com muita intensidade.
Por isso, ela mobilizou o centro do sistema no esforço apocalíptico de buscar saídas pelo revés das
suas barreiras, numa destruição que envolveu “todas as potências” no uso de “arsenais cada vez
mais cheios de tecnologia da morte”34. Nesta crise, em que todas as noites anteriores se parecem
cinza, os modernos mecanismos de ódio étnico também foram liberados das frágeis travas das
convenções sociais e produziram o genocídio de milhões de pessoas de diferentes povos. Visto de
longe, foram estragos enormes para sua pouca duração. Os massacres tiveram a força de
monstruosas máquinas impessoais que bombardearam de todos os lados: “guerra terrestre maciça”,
furacões de aço, bombardeios aéreos, gases mortíferos, ataques de tanques, submarinos e, na
medida em que os anos de combate avançaram, a supressão das linhas que demarcavam o espaço da
vida civil daquele do combate militar. Estas guerras, mais do que as napoleônicas, podem ser lidas
como “momentâneas regressões à barbárie”, às quais fazem parte das epidemias do excesso que

33
Cf. MAYER, A. J. A força da tradição – a persistência do Antigo Regime (1848-1914). São Paulo: Cia das Letras,
1987, p. 13.
34
Cf. HOBSBAWM, E. Era dos extremos - o breve século XX. São Paulo: 1995. A escala continua assombrando –
foram quase 65 milhões de mortos no total das duas hecatombes, p. 30-31.
deve ser destruído de tempos em tempos para que a economia, como esfera apartada da vida - mas
que a determina - voltasse ao seu ‘normal’.

A guerra total é incompreensível, portanto, sem o contexto de crise que a impulsiona. Na elaboração
do conceito desta última por Kurz 35, as suas manifestações não se explicam como meros eventos
cíclicos que, como furacões, conforme a falta de sorte, temos a chance de testemunhar suas
repetições ao longo de nossas vidas, mas como parte de um movimento centrípeto dissolutivo da
sociedade capitalista. Por esta razão, as crises possuem a qualidade intrínseca de se desenvolverem
para níveis cada vez mais elevados de contradição e, consequentemente, funestos de irresolução. Na
medida em que os elementos determinantes da dinâmica da acumulação se alteram, o limite lógico
interno da produção de valor vai se manifestando como potência catastrófica, fazendo das
regressões à barbárie situações críticas (talvez) sem volta. Na crise geral do século XX, por meio da
guerra total, estas regressões à barbárie ocuparam parte significativa de um esforço intencional dos
países beligerantes. Todos sintomaticamente deram contribuições inestimáveis para o afundamento
comum. Afora as características gerais salientadas por Hobsbawm, a guerra total também procedeu
por meio de outros raciocínios, bastante óbvios, mas de consequências profundas que não mais
saíram do encalço do desenvolvimento das sociedades modernas, mesmo depois de 1945. A ideia
básica é que a guerra não suspende as leis da economia, apenas as realiza por outros meios . Nesse
sentido, a guerra total é a racionalidade econômica elevada ao esforço de destruição como único
meio eficaz de preservação do seu mecanismo inconsciente de acumulação. Logo, não é de
estranhar que se crie, nestas situações, um tipo de guerra dentro da guerra a ser levada adiante com
as ferramentas da economia e que tem o papel de ampliar as forças destrutivas da guerra que, por
sua vez, pretendia, com seus meios, justamente salvar da depressão a economia dos países nela
envolvidos. Algo como a destruição servindo de antídoto à destruição.

Loïdi, no seu Histoire mondiale de la guerre économique, descreve dois momentos do que ele
chama de guerra econômica, e que são partes constitutivas da totalidade do conceito de guerra total.
A guerra econômica sans merci deve “destruir o potencial comercial do adversário” e enfraquecer
sua economia ao ponto de, uma vez voltado à paz, exclui-lo do mercado como um concorrente 36. O
objetivo é fazer a máquina de guerra do inimigo perder seu chão econômico e, com isso, perder suas
condições de se financiar. Uma falência econômica durante a guerra é, por decorrência, uma derrota
não apenas nos campos de batalha, mas a impossibilidade de se manter na competição econômica
depois da guerra. Loïdi relata com minúcias a sanha bizarra de um tal de François-Marsal para
derrubar a economia alemã durante a Iª Guerra Mundial. Suas estrepolias foram desde o corte de
35
Cf. KURZ, R. op. cit. 2014.
36
LOÏDI, A. Histoire mondiale de la guerre économique. Paris:Perrin, 2016; p. 349.
fornecimento de ferro para impactar a produção de armas, até a de alimentos para a população civil,
como trigo e etc. Seus meios para tal fim consistiam em furar as relações de trocas dos países
neutros com a Alemanha, comprando a produção (mesmo que desnecessária); ou por meio de
ameaças, pressionando para que estes países se posicionassem pelo ‘simples temor’ de futuras
retaliações comerciais no caso de uma derrota dos alemães. Para Tannerey e Marsal, que em 1914-
18 chegaram a elaborar dossiês de informações sobre os inimigos, assim como cartilhas de ‘golpes
baixos’ para levar adiante suas conclusões – e que fazem parte do conceito de guerra total -, o
propósito é mesmo induzir o inimigo a fazer um mergulho sem volta na barbárie.

A derrota nessas guerras não pode ser apenas nos campos de batalha, ela deve também destruir a
infraestrutura – incluindo os elementos subjetivos que compõem os hábitos cotidianos - que
sustenta o padrão do processo civilizatório do adversário. Um critério - tomado emprestado de Marx
- que pode ajudar a compreender melhor o sentido deste padrão, seria o das condições históricas de
reprodução da força de trabalho; além disso, este critério pode também contribuir para elucidar a
intenção regressiva de destruição durante a guerra. Diz ele: “[…] o âmbito das assim chamadas
necessidades básicas, assim como o modo de sua satisfação, é ele mesmo um produto histórico e
depende, por isso, grandemente do nível cultural de um país” e, continua Marx, está subordinado
aos “hábitos e aspirações de vida […] dos trabalhadores livres. [...] o valor da força de trabalho
contém, por conseguinte, um elemento histórico e moral”37. Voltando a Loïdi, a guerra econômica
não atinge diretamente o soldado, mas o enfraquece pela retaguarda: “visa os civis e as fábricas
distantes do campo de batalha”38 . Com ela se quer atingir a sua família, impondo milhares de
privações diárias, aumentando os custos da sobrevivência, arruinando a infraestrutura, destruindo
forças de produção, obrigando o Estado a estender sua tirania para todas as direções ao escorchar o
povo com novos impostos e racionamentos, enfim, “c’est préparer une souffrance”39. As grandes
potências nas duas grandes guerras precisaram se destruir até este nível; e produziram
intencionalmente a catástrofe que levou o elemento histórico moral que as constituíam – isto é, seu
padrão civilizatório - a um ponto de difícil retorno. O Plano Marshall foi um pequeno fio de
compreensão da necessidade de se retomar a produção de mercadorias na Europa em ruínas com
recursos externos. Sem esta ‘ajuda’, ela jamais teria se reerguido; sendo que esta, por conseguinte,
acabou se transformando numa peça ideológica na qual o sofrimento virou uma história edificante
de superação moral e recuperação de uma nova onda de acumulação.

37
Cf. MARX, K. O Capital. Livro I, v. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1985, p. 141.
38
Cf. LOÏDI, 2016, p. 356.
39
Cf. LOÏDI, 2016, p. 356.
O outro momento da guerra econômica, de acordo com Loïdi, foi a rapina. A Alemanha nazista
elevou esta a requintes que as tropas de Napoleão desconheceram – apesar de terem sido o modelo.
Todos os países ocupados depois de 1939 eram depenados com o esmero de um caçador que não
perde nada de sua presa. Da imposição do trabalho compulsório à pilhagem de obras de arte,
máquinas, insumos de produção, jóias, etc. Uma autêntica economia política da barbárie, em que a
forma física da substância do valor é apropriada como butim de guerra. Estes países não eram
humilhados apenas pela derrota no campo de batalha, ou por serem obrigados a aceitar a perda de
bens fundamentais para sua sobrevivência, como móveis, moradias, etc., eles eram forçados a viver
o cotidiano da ocupação num nível cultural muito abaixo do seu padrão mínimo: “A pilhagem
econômica dos territórios ocupados permitiu, portanto, à Alemanha alimentar sua máquina de
guerra”. A pilhagem financiou 54% das despesas em 1942; 44% em 194340.

Algumas táticas da guerra total começaram a ser usadas pelos nazistas ainda antes da chegada ao
poder. Ao disseminar a violência por todos os poros da sociedade, eles pretendiam romper com o
monopólio do seu uso pelo Estado e contestar a legitimidade dos governos da República de Weimar.
Por esses meios se cria uma situação intencionalmente confusa: no caos todos agem, mesmo sem
saber porque agem. A fragmentação das forças sociais em meio ao horror acaba se coagulando entre
duas opções: ou se acelera a violência com mais violência, ou se defende a ordem do Estado – que
inclui a submissão à sua decisão soberana. Comentando esta situação, Giaccomo Marramao observa
como Schmitt tinha clareza das variáveis que a moviam e sua relação com a economia como
“campo específico de neutralização”. A origem da força usada pelas personificações exasperadas do
capital para impor a exceção, se deve, na leitura que Marramao faz de Schmitt, ao processo de
secularização das formas teológicas, que chegou ao ponto em que estas encontraram a sua
racionalização nas formas fetichistas da economia. Neste caminho, as guerras religiosas dos séculos
XVI e XVII se transformaram nas guerras nacionais suscitadas pela expansão napoleônica do início
do século XIX - já fortemente determinadas por razões econômicas -, e, estas últimas, nas guerras
abertamente econômicas no século XX.41 Este período de crise geral mostrou que, diante do colapso
da sociedade burguesa, a ingovernabilidade que se cria a partir da autocontradição em processo que
é o capital, se preparam as condições da guerra total como forma de atuação do estado de exceção.

V.

40
Ao invadirem a URSS em 1941, o roubo de gás e do petróleo foi a primeira providência tomada pelos alemães, cf.
op. cit. p 372.
41
MARRAMAO, G. O político e as transformações – crítica do capitalismo e ideologia da crise entre os anos 1920-
30. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990, p. 22.
As contrarreformas iniciadas após o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 não representam
uma momentânea regressão. Elas podem ser mais amplamente entendidas como uma mudança
epocal na qual a força destrutiva do colapso que se iniciara na década de 1980 e consolidou nas
seguintes alterou sua qualidade. A esquerda tradicional tem apelado à descrição desta conjuntura
como uma ‘onda conservadora’, o que lhe faculta manter argumentos ilusionistas de outros
subprodutos à ela incorporados, como os de ‘reestruturação do trabalho’ e etc. Dessa forma, as
modificações da legislação trabalhista podem ficar expostas ao rescaldo de uma derrota política
conjuntural em que, num outro momento, poderá ser restaurado o que agora foi suprimido 42. Com
isso, não se precisa entender este período como um momento de aprofundamento catastrófico do
presente. Marolas, ondas, afinal, se alternam a todo o tempo. Mas, o fato de que a sociedade
burguesa não consegue mais se reproduzir a partir de seus fundamentos - como o trabalho, por
exemplo - ao que parece, deve ficar oculto, uma vez que tal fenômeno lhe é demasiado perturbador.

No entanto, o trabalho, assim como seu preço e os direitos que o protegem, ou seja, o nível cultural
de um país – o padrão civilizatório -, na lógica e na história do capitalismo, estão longe de serem
fatos intocáveis. O que desmoronou nestas últimas décadas, e que havia sido uma possibilidade
efetivada ainda na época em que a ‘luta de direito contra direito’ (Marx) encontrava condições de
transformar a distribuição de riqueza em normas jurídicas, não tem mais como ser recuperado.
Como esta luta sempre esteve também determinada pela produtividade da indústria, novas
constelações do capitalismo podem produzir alterações perversas nas conquistas de direitos,
fazendo com que, a certa altura, ganhos de ontem possam ser suprimidos pelo desenvolvimento das
forças produtivas de hoje e que, por conseguinte, ressurjam, modificadas, formas infames da
pobreza, as quais se julgava estarem em vias de serem superadas. O pauperismo, como o
demonstrou Henryk Grossmann - ainda no calor da crise de 1929 -, pode oscilar entre a aparente
supressão e a sua inevitável realização com o pleno amadurecimento do capital, quando a mudança
na sua composição orgânica torna obsoleto o uso de trabalho vivo no processo de produção. A
diferença entre um relativo bem-estar passageiro e o seu desmonte, devido às transformações dos
componentes determinantes da acumulação, pode ter explicações mais complexas do que o
marxismo tradicional desconfia. Diz Grossmann: “[s]uperado este nível do desenvolvimento da
acumulação, e a partir de um ponto perfeitamente determinado do mesmo, necessariamente nos
encontraremos com um ponto de inflexão na dinâmica dos salários. A partir deste ponto, a

42
Cf. “Brésil: Lula se dit prêt à ‘prendre le pouvoir’ em 2018”. Le Monde [entrevista]; 18 novembro 2017.
http://www.lemonde.fr/ameriques/article/2017/11/18/lula-je-peux-encore-aider-les-plus-
pauvres_5216876_3222.html
valorização e, portanto, todo o mecanismo da produção capitalista, somente pode ser conservada se
se deprime o salário”.43

Ficou famosa a greve dos mineiros ingleses durante o governo neoliberal de Margaret Thatcher em
1984; do mesmo modo em que é bastante conhecida a greve dos petroleiros no Brasil durante o
governo de FHC, em 1995. Ambas assinalam este ‘ponto de inflexão na dinâmica dos salários’. No
período anterior havia se criado ‘hábitos e aspirações de vida dos trabalhadores com um elemento
histórico e moral’ elevado por anos seguidos da prosperidade pós-1945, no caso da Inglaterra, e, no
Brasil, em que este nível nunca foi grande coisa, principalmente para a população negra, ainda não
estava tão rebaixado como o atual, e isso era possível graças a retomada das lutas sindicais e sociais
que se espalharam desde o fim da ditadura civil-militar. Os dois casos - separados pela distância
entre centro e periferia, o que explica pequenas diferenças de tempo nas aspirações de vida dos
‘trabalhadores livres’ - são o resultado de transformações da produtividade realizadas pela Terceira
Revolução Tecnocientífica. A partir dela o desemprego se expandiu no mundo inteiro, tornando-se
estrutural. Com estas derrotas “o nível de vida mais baixo se transform[ou] num novo hábito da
classe trabalhadora”.44

No Brasil, sustentados pela violência disseminada por todos os poros da sociedade – e aqui este foi,
até há pouco, um fato alheio a uma vontade política direta, ao contrário do que aconteceu desde
sempre na República de Weimar -, os anos 1990 tiveram este carácter de reversão de hábitos da
reprodução social, que se realiza agora amplificadamente num espaço de catástrofe (Lefebvre). A
pequena melhora nos indicadores de emprego na primeira década e meia do século XXI não
formaram uma tendência capaz de inverter o ponto de inflexão indicado por Grossmann 45. Na
medida em que a regressão à barbárie se intensifica, aquele hábito de vida mais baixo, ele mesmo, é
destroçado à força, para que novos acréscimos de rebaixamento sejam feitos. A pauperização das
classes subalternas, que são predominantemente índios[as] e negros[as], não é, nesta perspectiva,
um fenômeno do passado, como atestam os índices de desemprego, subemprego e as inúmeras
fórmulas de terceirização do trabalho, mas “é o resultado da fase madura da acumulação de capital”,

43
Cf. GROSSMANN, H. “La ley de la acumulación e del derrumbe del sistema capitalista (Consideraciones finales)”;
in: COLLETTI, L. (organizador) El marxismo y el ‘derrumbe’ del capitalismo. Mexico: Siglo Veinteuno Editores,
1978; p. 448.
44
Cf. GROSSMANN, op. cit. p. 446 [grifos meus].
45
“Nesse sentido, se reconhece que determinados fatores de fundo de natureza estrutural (ritmo e forma específica de
crescimento da economia, inflação sob controle, etc) podem contribuir para a redução das desigualdades de cor ou
raça no mercado de trabalho. E esse foi o maior mérito do governo Lula nesse período quando se pensa em termos
das desigualdades entre brancos e pretos e pardos no que tange […] ao rendimento, desemprego e ocupação. Porém,
mesmo considerando todos os avanços, as assimetrias entre os grupos de cor ou raça ainda permanecem bastante
nítidas, fortalecendo a hipótese de que os vetores estruturais, sozinhos, sejam incapazes de produzir uma mudança
mais substancial da realidade [...]” PAIXÃO, M. 500 anos de solidão: ensaios sobre as desigualdades raciais no
Brasil. Curitiba: Appris, 2013, p.178.
a partir da qual, todo acréscimo de produção somente pode ser realizado deprimindo os salários e,
paradoxalmente, ampliando o desemprego. Este é um sintoma agudo da crise do limite interno
absoluto da produção de valor. A exclusão em massa ‘dos frutos da civilização’ entra como
tendência histórica e determina os principais contornos da experiência deste tempo. A segregação
sócio-espacial que dela resulta, é uma das mudanças de qualidade específicas dos anos recentes e,
por esta razão, impulsiona diversas iniciativas do Estado de organização da catástrofe. Manter em
pé este fim de linha é, em vista disso, o papel atual da guerra total. Na medida em que a catástrofe é
um resultado do colapso da estrutura inconsciente da dominação social, não cabe mais a
centralidade daquele momento intencional (“préparer une souffrance”) comentado por Loïdi da
guerra econômica. Fábricas, grandes investimentos, pregões da bolsa etc. na atualidade vão à
falência pela simples razão de que o modo de produção industrial, dadas suas forças produtivas, já
não tem mais condições de valorizar a totalidade do capital acumulado.

Em 1978 Henri Lefebvre já havia destacado que a história do capitalismo se preparava para
ingressar num período que não se explicaria mais pelo conceito de crise. Passava a exigir outra
compreensão: “[a] teoria clássica das crises não desaparece. Ela toma seu lugar na teoria das
catástrofes. Ela permite descrever e analisar os sintomas de uma eventualidade, a catástrofe”.46 Esta
eventualidade, com todos seus sintomas, é o tempo presente. Desde os anos 1990, o cotidiano do
desastre social tem como característica permanente um número crescente de mortes violentas 47. A
modalidade deste extermínio e sua grandeza nada deve aos genocídios que configuram a história de
horrores da modernidade. A morte da população negra e de mulheres parece seguir, mesmo que
ainda não tenha sido enunciado programaticamente por nenhum governo, uma decisão de Estado.
Como o colapso do capitalismo tornou desfuncional para a sociedade burguesa a existência de
milhões de seres humanos, a escolha dos matáveis ocorre a partir do que Roswitha Scholz chama de
contexto de base da dissociação-valor48. As mulheres, mas também grupos étnicos subalternizados
pela expansão planetária do ‘moderno patriarcado produtor de mercadorias’, passam a sofrer a
brutalidade da dissolução desta forma social, precisamente, por estarem à sombra das formas
fundamentais da dominação fetichista do capitalismo. Neste sentido, tanto a violência machista
como a racista são parte de um “domínio [que] se baseia essencialmente na institucionalização e na
internalização de normas sancionadas pela coletividade”49. Estas normas estão presentes e são
46
Cf. LEFEBVRE, H. “Da teoria das crises à teoria das catástrofes”; Revista Espaço e Tempo – Geografia da USP,
São Paulo, nº 25, 2009, p. 152.
47
Tal estado de violência corresponde a um conceito contemporâneo de guerra civil, agora intensificado e incluído no
de guerra total. Sobre este tema ver MENEGAT. M. “Guerra civil no Brasil”, in: Estudos sobre ruínas. Rio de
Janeiro: Revan, 2012, pp. 11-23.
48
Sobre este tema em SCHOLZ, R. ver: “O valor é o homem”; http://www.obeco-online.org/rst1.tmh e “Sem luta
nada se consegue”; http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz25.htm
49
Cf. SCHOLZ, R. “Sem luta nada se consegue”; http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz25.htm Sobre este
tema ver também GONÇALVES, S. N. Mulheres dos escombros – a condição das mulheres periféricas em tempos
constitutivas da socialização do valor. Elas contém a decisão a priori que está inconscientemente
presente no modo de ser da estrutura social, determinando o que possui e o que, presumivelmente,
não possui valor. Como mostra Agamben, “[o] estado de exceção no qual a vida nua era, ao mesmo
tempo, excluída e capturada pelo ordenamento, constituía, na verdade, em seu apartamento, o
fundamento oculto sobre o qual repousava o inteiro sistema político; quando as suas fronteiras se
esfumam e se indeterminam, a vida nua que o habitava liberta-se na cidade e torna-se
simultaneamente o sujeito e o objeto do ordenamento político e de seus conflitos”50. Por esta razão a
guerra total deve garantir não apenas o governo da reprodução do capital na catástrofe, mas,
inclusive, por meio dela.

Não apenas nos números, mas no próprio imaginário deprimido destes tempos, a sensação de se
estar em meio a uma guerra tornou-se lugar comum. No México, de 2006 até o fim do governo de
Felipe Calderón, o exército foi posicionado para uma ‘guerra contra a desordem social’ e todo tipo
de desgraças que produz. Foi um fiasco. No Brasil a presença do exército nas ruas ocorre desde
muito antes (1992) do caso mexicano, mas sua atuação é sempre localizada. No Rio de Janeiro, que
é o laboratório mais avançado da barbárie do que resta de país, as ocupações militares intermitentes
seguem um padrão de repetição do fracasso que é revelador do que aqui vai descrito. A cada volta
do exército às ruas vai se produzindo a certeza de que nada mudará e, ao mesmo tempo, um
desdobramento desta certeza: sem ele a sociedade teria que se deparar com as vertigens deste
abismo sem o conforto de nenhum emplastro salvador.

A guerra total tem passado por mudanças num tempo em “que deixou de se mobilizar pelo
‘movimento em si mesmo’ do fetiche do capital”. O estado de exceção movido pelo sentido
catastrófico desta modalidade de guerra é um monstro de muitas mãos atadas. As agências
internacionais do mercado precisam da paz de cemitério para que seus contratos, em que ‘a
substância física da economia é despedaçada’, sejam respeitados e realizados; o Dólar (ao qual o
Real está atrelado), que mesmo sem lastro mantém seu papel – sem valor – de moeda mundial,
precisa do céu de brigadeiro para sua escalada ao nada; e, para que ele tenha combustível na
ascensão, os gastos com armas são imprescindíveis – assim como as guerras e a destruição ampliada
da natureza. Do mesmo modo que a linha reta da ficcionalização do Dólar e dos contratos não
podem ser perturbados pelos solavancos aterrorizados da humanidade, esta deve aceitar, como seu
destino, ser oferecida em sacrifício, admitindo que sua existência é um imenso atrapalho à
economia de mercado.

de catástrofe. Tese [Doutorado] defendida no PPGSS-UFRJ em 2018.


50
Cf. AGAMBEN, G. 2002, pp. 16-17.
VI

Quando os fantasmas deste tempo acordarem no futuro, depois de terem legitimado mais este
período assombroso da história, em que mantiveram em pé os escombros de uma antiga e estranha
civilização, que por seus próprios meios se tornou a mais abjeta das barbáries, a figura de ‘fina
estampa’ de um D. Quixote, em sua luta contra moinhos de vento, poderá ser vista finalmente em
toda sua grandeza. Ao contrário do que pensou Lukács 51, o que diferencia o romance moderno
daquele da época anterior, não é o fato de que os ideais de seus personagens são maiores do que as
convenções da sociedade, mas o fato de que o mundo que recusava D. Quixote, não o recusava por
ser maior que seus ideais, e sim, porque os moinhos de vento nada são diante das bombas de
hidrogênio. Os devaneios do homem medieval frente ao desaparecimento de seu mundo são suaves
aventuras, enquanto a loucura do homem moderno para tentar manter presente o que já não pode ser
é a ameaça de tudo suprimir num juízo final profano.

51
CF. LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, pp. 99 e ss.

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