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Dalila Cabrita Mateus

Álvaro Mateus

NACIONALISTAS
DE MOÇAMBIQUE
TÍTULO Nacionalistas de Moçambique
AUTORES Dalila Cabrita Mateus, Álvaro Mateus
© 2010, Dalila Cabrita Mateus, Álvaro Mateus e Texto Editores
REVISÃO Eda Lyra

CAPA © Ideias com Peso


Desenho do pintor Malangatana Valente Ngwenya, concebido para a capa deste livro.
PAGINAÇÃO Júlio Matias

ISBN 9789724743493
Reservados todos os direitos.

TEXTO EDITORES, LDA.


Uma Editora do Grupo Leya
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2610-138 Alfragide – Portugal
www.textoeditores.com
www.leya.com
«[…] Escrevo…
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado
e revoltas, dores e humilhações,
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique,
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças,
algodoais, e meu inesquecível companheiro branco,
e Zé – meu irmão – e Saúl,
e tu, Amigo de doce olhar azul,
pegando na minha mão e me obrigando a escrever
com o fel que me vem da revolta.
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
- let my people go
oh let my people go!

E enquanto me vierem de Harlem


vozes de lamentação
e meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insónia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
Let my people go.
OH DEIXA PASSAR O MEU POVO!

Noémia de Sousa
ÍNDICE

NOTAS DE APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

NOÉMIA, a voz fraterna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13


BUCUANE, o herói fundador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
RANGEL, o fotógrafo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
BALAMANJA, o estrangeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
M’BOA, o preso político . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
MALANGATANA, o pintor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
MULENZA, o combatente assassinado . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
NOGAR, o poeta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
MANGANHELA, o religioso mártir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
MABOTE, o chefe guerrilheiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

SIGLAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

FONTES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
Arquivos da PIDE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
Arquivos dos SCCIM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
Arquivo da PVDE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
Arquivo de Marcelo Caetano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
Filmes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
Internet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Livros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Jornais, revistas e publicações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
NOTAS DE APRESENTAÇÃO

Nacionalistas de Moçambique aborda a vida política de dez


pessoas, na sua maioria já falecidas. Uma mulher e nove homens.
Uns desconhecidos ou quase desconhecidos. Outros conhecidos
na sua vida literária ou artística, mas menos conhecidos como
nacionalistas. E ainda outros, a justificar que se volte a sublinhar
o seu contributo para a luta de libertação nacional.
Não tivemos o propósito de elaborar biografias minuciosas,
até porque para tal nos faltavam os meios. Pretendemos sim retra-
tar a face política nacionalista destas pessoas, cujas vidas ilustram
a penosa marcha do povo moçambicano para a libertação nacional
e, conquistada a independência, a sua afirmação nacional, africana
e internacional.
Na segunda metade dos anos 40 e princípio dos anos 50 do
século passado, alguns moçambicanos integram organizações polí-
ticas de carácter unitário ou partidário, onde desenvolvem activi-
dades sobretudo de carácter panfletário. Estas organizações ainda
eram inspiradas por democratas portugueses, não raro comunistas.
Além da participação em acções clandestinas, alguns naciona-
listas denunciam a opressão colonial ou esboçam o seu projecto
libertador através da poesia, do desenho ou da pintura, mesmo da
fotografia.
Nesta altura, certos poetas orientavam-se pelo destino do
negro norte-americano, cujos combates e realizações influen -
ciaram decisivamente o processo de descolonização da intelec-
tualidade africana. A afirmação do orgulho de ser negro inclui a
referência a nomes da música popular norte-americana, das letras,
do atletismo e até do boxe. Os africanos sentem alegria por ser
ouvidos através do trompete de um músico famoso ou por comun-
garem dos êxitos alcançados nos estádios pelos atletas norte-
-americanos.
Já no final dos anos 50 e princípio dos anos 60, influenciados
pelo exemplo dos países em que trabalham, moçambicanos emi-
grados vão criar partidos nacionalistas. E por pressão dos dirigen-
tes dos países que os acolhem, esses partidos acabam, em regra,
por se unir em organizações de tipo frentista, mais aptas a captar
apoios internacionais.

11
N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE

A luta armada inicia-se em meados dos anos 60. De início com


umas escassas dezenas de guerrilheiros, acaba por mobilizar
milhares de homens e por se estender a diversas regiões do país,
alcançando assinaláveis êxitos e utilizando métodos de guerra pró-
prios das forças convencionais, prenúncio de uma vitória próxima.
Na acção clandestina ou na luta de guerrilhas, desde início que
os nacionalistas moçambicanos estão sujeitos a uma brutal repres-
são. Pagaram com a prisão, com bárbaras torturas e não raro com
a morte o sonho de conquistar a liberdade. Estes apontamentos
biográficos mostram a que extremos pode chegar a brutalidade
policial, como o comprova o assassínio aqui documentado de um
chefe guerrilheiro.
Os nacionalistas moçambicanos obtiveram êxitos assinaláveis
na luta armada de libertação nacional. Mas, alcançada a indepen-
dência, tinham de governar um país moderno, num mundo
moderno. E acumularam erros de gestão. A guerra civil, a agressão
de vizinhos poderosos e as dificuldades económicas e políticas
foram sérios obstáculos para a marcha do povo moçambicano.
Hoje, 45 anos decorridos sobre o início da luta armada, con-
quistada a independência e ultrapassada a guerra civil assim como
outros obstáculos ao desenvolvimento, o povo moçambicano vive
em paz, consolida a democracia e afirma a sua identidade na arena
internacional. Uma boa altura para recordar a vida de dez nacio-
nalistas, que deixaram a sua marca na história de Moçambique,
lutando para que o seu povo pudesse viver em paz, com liberdade
e prosperidade.

25 de Setembro de 2009
Os autores

12
NOÉMIA, A VOZ FRATERNA

Carolina Noémia Abranches de Sousa nasceu a 20 de Setembro


de 1926, na Catembe, mesmo em frente a Lourenço Marques, na
outra margem do Incomati. Era filha de António Paulo Abranches
da Gama e Sousa e de Clara Brüheim Abranches de Sousa.

[…] Quando eu nasci…


– Eu sei que o ar estava calmo, repousado (disseram-me)
e o sol brilhava sobre o mar.
E no meio desta calma fui lançada ao mundo,
já com meu estigma.
E chorei e gritei – nem sei porquê.
Ah, pela vida fora
minhas lágrimas secaram ao lume da revolta1.

Conclui o 4.o ano comercial na Escola Técnica Sá da Bandeira.


E emprega-se na firma Gulamhussen & Companhia, Lda., em
Lourenço Marques.

«Falava, escrevia e lia correctamente o francês e o inglês e fala-


va o ronga.» E no plano cultural, «apreciava o melhor da arte
europeia do cinema, admirava Júlio Pomar e estava actualizada
quanto aos modernos poetas, contistas e romancistas»2.

1 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,

s/l, 1994, p. 213.


2 Pires Laranjeira, A Negritude Africana de Língua Portuguesa, p. 112.

13
N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE

Noémia de Sousa, fotografia do passaporte,


in IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2).

Em busca de um modo de ser moçambicana, Noémia invoca o


mundo peculiar da sua infância distante:

Meus companheiros de pescarias


por debaixo da ponte,
com anzol de alfinete e linha de guita,
meus amigos esfarrapados de ventres redondos como cabaças,
companheiros nas brincadeiras e correrias
pelos matos e praias da Catembe,
unidos todos na maravilhosa descoberta dum ninho de tutas3,
na construção duma armadilha com nembo4,
na caça aos gala-galas5 e beija flores,
nas perseguições aos xitambelas6 sob um sol quente de Verão…
- Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada, solta e
feliz:
meninos negros e mulatos, brancos e indianos,
filhos da mainata7, do padeiro
do negro do bote, do carpinteiro, vindos da miséria do
Guachene8

3 Aves.
4 Seiva usada como cola para apanhar pássaros.
5 Réptil de cor verde-azulada.
6 Insecto colorido que ao bater as asas produz um som característico.
7 Empregada doméstica que lavava e passava a ferro.
8 Localidade da área da Catembe.

14
N OÉMIA , A VOZ FRATERNA

ou das casas de madeira dos pescadores.


Meninos mimados do posto,
meninos frescalhotes dos guarda-fiscais da Esquadrilha
- irmanados todos na aventura sempre nova
dos assaltos aos cajueiros das machambas9,
no segredo das maçalas10 mais doces,
companheiros na inquieta sensação de mistério da «Ilha dos
navios perdidos».

Os seus companheiros de brincadeira ensinam-lhe o valor da


fraternidade e levam-na a acreditar numa «nova infância raiando
para todos»:

Meus companheiros me são seguros guias


na minha rota através da vida
Eles me provaram que «fraternidade» não é mera palavra
bonita
escrita a negro no dicionário da estante:
ensinaram-me que «fraternidade» é um sentimento belo
e possível,
mesmo quando as epidermes e a paisagem circundante
são tão diferentes.

Por isso eu CREIO que um dia


o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Índico.
Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul
e os pescadores voltarão cantando,
navegando sobre a tarde ténue.
E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias
em noites de tambor e batuque
deixará para sempre de me inquietar.

Um dia,
o sol inundará a vida.
E será como que uma nova infância raiando para todos…11

9 Campo lavrado.
10 Maçala ou massala, fruto comestível.
11 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,

s/l, 1994, pp. 214-215.

15
N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE

Noémia de Sousa é a cantora dos esquecidos, a voz fraterna


que dá voz aos párias de África.

Irmão negro de voz quente


e olhar magoado
diz-me:
Que séculos de escravidão
geraram tua voz dolente?
Quem pôs o mistério e a dor
em cada palavra tua?
E a humilde resignação
na tua triste canção?
E o poço de melancolia
No fundo do teu olhar?

Alimentando-se das suas raízes africanas, é «África da cabeça


aos pés»:

Se me quiseres conhecer,
estuda com olhos bem de ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas
talhou e trabalhou
em terras distantes lá do norte.

Ah, essa sou eu:


órbitas vazias no desespero de possuir a vida,
boca rasgada em feridas de angústia,
mãos enormes espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura…
Torturada e magnífica,
altiva e mística,
África da cabeça aos pés
- ah, essa sou eu! […] 12.

12 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,


s/l, 1994, pp. 217-218.

16
N OÉMIA , A VOZ FRATERNA

Filha de mãe negra, Noémia transfere essa maternidade para a


África como um todo:

[…] Ó África, minha mãe-terra,


ao menos tu não abandones minha irmã heróica,
perpetua-a no monumento glorioso dos teus braços13!

Se as suas raízes são africanas, as suas razões de ser são sobre-


tudo moçambicanas. E identifica-se com as mulheres do seu país,
falando das suas dores e sofrimentos:

Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço.


Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines14,
vimos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trancadas,
nossos corpos submissos e escancarados.

[…] Agora, vida, só queremos que nos dês esperança


para aguardar o dia luminoso que se avizinha
quando mãos molhadas de ternura vierem
erguer nossos corpos doridos submersos no pântano,
quando nossas cabeças se puderem levantar novamente
com dignidade
e formos novamente mulheres15.

Noémia de Sousa, tal como outros intelectuais africanos do seu


tempo, orienta-se pelo destino do negro norte-americano, cujos
combates e realizações influenciavam decisivamente o processo de
descolonização da intelectualidade africana16. Natural é, pois, a
referência à música de Paul Robeson e Marian Anderson neste

13 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,

s/l, 1994, pp. 219-220.


14 Munhuana e Xipamanine eram bairros negros de Lourenço Marques, actual

Maputo.
15 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,

s/l, 1994, pp. 90-92.


16 Fernando J. B. Martinho, «O Negro Americano e a América na Poesia de

Agostinho Neto», in África, Literatura-Arte e Cultura, n.º 7, p. 164.

17
N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE

apelo à revolta e à libertação, com que a poetisa se insere na mar-


cha geral do seu povo.

[…] Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.


Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado
e revoltas, dores, humilhações,
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de
Moçambique,
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças17,
algodoais, e meu inesquecível companheiro branco,
e Zé – meu irmão – e Saúl,
e tu, Amigo de olhar doce azul,
pegando na minha mão e me obrigando a escrever
com o fel que me vem da revolta.
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
- Let my people go/ oh let my people go!

E enquanto me vierem de Harlem


vozes de lamentação
e meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insónia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
Let my people go, OH DEIXA PASSAR O MEU POVO18!

Mas a poetisa não se fica pela denúncia e pelo protesto anti-


colonial. É uma activa participante na luta.

17 Trabalhador migrante nas minas do Rand (África do Sul).


18 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,
s/l, 1994, pp. 221-222.

18
N OÉMIA , A VOZ FRATERNA

Já em 1949, quando Eduardo Mondlane, estudante na Univer-


sidade de Witwatersrand, é expulso da África do Sul pelo regime
do apartheid, Noémia de Sousa denuncia o facto nas páginas do
jornal Brado Africano. Neste jornal, «José Craveirinha, Noémia de
Sousa e Rui Nogar mantiveram aberta a única janela que ao Brado
Africano restava, a da poesia. E foi assim, porque os papéis estão
impressos e têm datas, que o tão polemizado e, por vezes, tão poli-
tizado começo da literatura moçambicana ocorreu e tão bons fru-
tos deu…»19.
Noémia de Sousa colabora, também, no jornal Itinerário,
«publicação mensal de letras, artes, ciência e cultura», cujo primei-
ro número foi publicado em 1941 e o último em Outubro de 1955.
De resto, o jornal congregou toda uma geração de poetas de Mo-
çambique: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui Nogar, Mar-
celino dos Santos («Kalungano»), Orlando Mendes e Rui Knopfli,
entre outros20. Dos seus «colaboradores internos» referimos os
nomes de João Mendes, Henrique Beirão, Sofia Pomba Guerra,
Rui Guerra (o conhecido cineasta), Afonso Ribeiro, os Sobral de
Campos (pai e filho) e Cassiano Caldas. E dos colaboradores
externos destacamos Alexandre Cabral, Alves Redol, Joaquim
Namorado, Mário Dionísio, Ramos da Costa, Rui Grácio, Seabra
Dinis e Mário Soares.
As simpatias políticas do jornal são óbvias. Não por acaso
assinala, na primeira página, o falecimento de Soeiro Pereira
Gomes, afirmando que «os homens perderam um companheiro,
um amigo de todos os homens, pronto para todos ao sacrifícios»21.
Soei ro Pereira Gomes era, como se sabe, membro do Comité
Central do Partido Comunista Português.
Nesse mesmo ano, Noémia de Sousa é presa pela Polícia Inter-
nacional. Era acusada de pertencer ao Movimento dos Jovens
Democratas de Moçambique, agrupamento político de que faziam
parte João Mendes, Ricardo Rangel e José Craveirinha22.

19 Ilídio Rocha, A Imprensa em Moçambique (1854-1975), Livros do Brasil,


Lisboa, 2000, p. 166.
20 Ilídio Rocha, idem, pp. 166 e 315.
21 Itinerário, n.o 96, Dezembro de 1949.
22 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2), Carolina Noémia

Abranches de Sousa, fls. 18-19.

19
N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE

O Movimento dos Jovens Democratas de Moçambique aparece


referido num relatório de António Fernandes Roquete23, inspector
da PVDE24 que, na sequência do assassinato do médico comunista
Ferreira Soares25, fora destacado para Moçambique com a missão
de organizar uma polícia de fronteira, que ficaria conhecida como
Polícia Internacional. Neste relatório, Roquete fala dos «panfletos

23 António Fernandes Roquete nasceu em 1906. Famoso futebolista do Casa

Pia Atlético Clube, no período de 1926 a 1933, integrou por 16 vezes a selecção
nacional. Era um homem bastante alto, considerado um sex symbol pela imprensa
da época. Antes de ingressar na PVDE como agente, teria sido informador daquela
polícia, tendo estado implicado na prisão de Cândido de Oliveira, que seria envia-
do para o Tarrafal (mestre Cândido fora futebolista do Sport Lisboa e Benfica e do
Casa Pia, de que foi fundador; foi, também, seleccionador nacional e, ainda, direc-
tor dos jornais A Bola e Gazeta Desportiva). Levado a julgamento pelo assassínio
do médico comunista Ferreira Soares, Roquete foi absolvido, pois os juízes consi-
deraram que agira em «legítima defesa». Mesmo assim, os responsáveis do regime
acham por bem fazê-lo «emigrar» para Moçambique, onde vai organizar a Polícia
Internacional. Transita mais tarde para a PIDE, assinalando-se o facto de, em 1958,
por altura das eleições para a Presidência da República, ter sido sovado por
apoiantes do general Humberto Delgado.
24 Assinalado na Ordem de Serviço NP-B2 da PVDE, n.º 135 de 15.05.1939,

existente no IAN/TT.
25 Armando de Sousa e Silva, Vítimas de Salazar: Carlos Ferreira Soares,

Anatomia de um Crime, pp. 131, 147 e 148.

20
N OÉMIA , A VOZ FRATERNA

políticos de ataque ao governo da Nação», da «existência de acti-


vidades, também clandestinas, dum organismo pró-comunista
denominado “Movimento dos Jovens Democratas de Moçam-
bique”, por intermédio de cujos filiados se promove a distribuição
directa de panfletos, que igualmente são expedidos pelo correio
para os principais centros populacionais da colónia». O Momento
seria organizado de «maneira a que os filiados só conheçam os ele-
mentos dos respectivos grupos, constituídos por três ou quatro
membros». O relatório conclui que, «entre a mocidade moçambi-
cana (europeus, mistos e pretos) se estão a espalhar as sementes
perigosas de ideias políticas dissolventes, de ódio e desrespeito
pelo governo central e suas instituições», assim como de «indife-
rença e alheamento propositados por tudo o que se passa na Mãe
Pátria»26.
O Movimento desenvolve intensa actividade, com reuniões e
distribuição de propaganda. A polícia assinala várias reuniões, uma
delas com três dezenas de jovens, dos 18 aos 27 anos, no gabinete
do dr. Henrique Beirão, no «prédio Pott», sito na Avenida Aguiar27.
E refere uma circular da Comissão Executiva do Movimento em
que, depois de aludir à «onda de indignação» causada pela prisão
de jovens democratas e destacados dirigentes do Movimento de
Unidade Democrática, se afirma que «os partidários do Estado
Novo e a polícia se enganaram», pois «os jovens democratas não
renegaram nem renegarão as suas ideias democráticas, o seu amor
à cultura livre, a sua dedicação à juventude»28.
Noémia de Sousa teria sido recrutada para o Movimento por
Ricardo Rangel, que a apresentou a João Mendes29. E teria como
tarefa a impressão de panfletos de propaganda política30, panfletos
estes que «apareciam constantemente espalhados» pela cidade31.

26 IAN/TT, Arquivos da PIDE, 2156/49 SR, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 91.
27 IAN/TT, Arquivos da PIDE, 2156/49 SR, Maria Sofia Pomba Guerra,
f. 88.
28 IAN/TT, Arquivos da PIDE, 1116/49, Maria Sofia Pomba Guerra, fls. 43-44.
29 IAN/TT, Arquivos da PIDE, 1116/49, Maria Sofia Pomba Guerra,
fls. 124-125.
30 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2), Carolina Noémia

Abranches de Sousa, f. 43.


31 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2), Carolina Noémia

Abranches de Sousa, f. 19.

21
N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE

Além disso, Noémia de Sousa é acusada pela polícia de ter ligações


ao PCP através do ferroviário Cassiano Caldas32, facto que este último
confirmaria, assinalando que Noémia estivera presa numa altura em
que fora detido e que engolira um bilhete que lhe mandara33.
A polícia desencadeia uma acção repressiva contra o Movimento
dos Jovens Democratas de Moçambique. São presos: Henrique
Beirão, de 27 anos, advogado; João Mendes, de 23 anos, funcionário;
Carlos Pais, de 21 anos, enfermeiro; Norberto Sobral de Campos,
de 35 anos, engenheiro; e Maria Sofia Pomba Guerra, de 43 anos,
farmacêutica. Eram acusados de dirigir o Movimento, actuando sob
orientação da Organização Comunista de Moçambique (que seria
uma ramificação do PCP), de aliciarem novos membros sem distin-
ção de cor, raça ou nacionalidade, de cobrarem quotas e angariarem
fundos através de subscrições, rifas e sorteios, de elaborarem e dis-
tribuírem panfletos clandestinos de doutrinação política, de consti-
tuírem núcleos artísticos e associações recreativas, desportivas e
culturais e de se infiltrarem nos órgãos dirigentes ou representativos
de sociedades e empresas legalmente constituídas34.
Assim, na madrugada de 17 de Outubro de 1949, sem aviso
prévio (com excepção de Sofia Pomba Guerra, a quem foi per-
guntado a quem queria que entregassem as filhas menores à sua
guarda e encargo), os presos são levados, num cortejo de seis veí-
culos motorizados e por ruas fortemente patrulhadas, para o car-
gueiro Sofala, em que viajam até Lisboa35.
Abner Sansão Mutemba36, testemunha presencial, declara ser
perfeitamente audível uma voz feminina que gritava:

32 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2), Carolina Noémia


Abranches de Sousa, f. 43.
33 Entrevista de Cassiano Caldas, in Dalila Cabrita Mateus, Memórias do

Colonialismo e da Guerra, ASA, Lisboa, 2006, pp. 231e ss.


34 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba Guer-

ra, f. 99.
35 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba Guer-

ra, f. 93.
36 Abner Sansão Mutemba, cuja família teve papel destacado na luta de libertação

nacional, seria na altura militante comunista, segundo refere João Madeira em «O PCP
e a Questão Colonial», publicado na revista Estudos do século XX – Colonialismo,
Anticolonialismo e Identidades Nacionais, n.º 3, 2003, p. 221. Este autor cita como fonte
uma «Biografia de Abner Sansão Mutemba», 1985, p. 14, que consta do Espólio de
Mário Pinto de Andrade existente da Fundação Mário Soares, Pt. 4329.002.

22
N OÉMIA , A VOZ FRATERNA

«Chamo-me Sofia Pomba Guerra e vou ser deportada. Viva


Moçambique.»37
Noémia dedicará um poema a João Mendes, «companheiro
branco, / desterrado no bojo negro dum navio / a caminho de por-
tos desconhecidos e hostis», ao «companheiro branco, / de sorriso
de abraço, / de olhos claros de esperança […] Aquele que nós amá-
vamos, / aquele irmão branco, / que afinal não era branco nem
negro, / porque era simplesmente irmão!». E manifesta o desejo de
que regresse para «espevitar com tua dura palavra de lutador / o
lume da fogueira que acendeste naquela noite fria, / quando nos
estendeste tua mão aberta de jovem/ e nos trouxeste a luminosa
certeza da nossa redenção»38.
Mas como poderiam os presos ser julgados em Lisboa, se, afi-
nal, tinham desenvolvido as «actividades subversivas» de que eram
acusados em Lourenço Marques?
A própria PIDE fica desorientada. Ao fim de dois meses, o
governo resolve o problema publicando um decreto-lei que
permite à Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, sob
proposta do Procurador-Geral da República, mandar avocar o jul-
gamento ao Tribunal Criminal39.
O Supremo lá acabou por avocar o processo, realizando-se o
julgamento em Lisboa. A justificação seria a ligação ao Partido
Comunista Português e ao MUD Juvenil. No entanto, a própria
PIDE confessava que, «não obstante as diligências efectuadas e as
buscas feitas nos arquivos desta polícia, nada de positivo foi possí-
vel apurar para a descoberta de possíveis ligações com as organi-
zações ilegais existentes na Metrópole, nomeadamente com o
chamado Partido Comunista Português e, ainda, com a organiza-
ção denominada MUD Juvenil»40.
Em Lourenço Marques tinham testemunhado em favor dos
presos 23 pessoas, entre as quais Noémia de Sousa, Ricardo Rangel

37 Segundo depoimento de Malangatana Valente Ngwenya, que o ouviu a


Abner Sansão Mutemba.
38 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,

s/l, 1994, pp. 216-217.


39 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba

Guerra, f. 94.
40 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba

Guerra, f. 95 e Processo 1116/49, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 194.

23
N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE

e José Craveirinha41. E em Lisboa, 44 testemunhas prontificaram-


-se a abonar em favor dos réus, designadamente os professores
Mário de Azevedo Gomes, Teixeira Ribeiro, Ferrer Correia e
Maria Isabel Aboim Inglês, os escritores Maria Lamas, Manuel
Mendes e João de Barros, os advogados Gustavo Soromenho,
Mayer Garção e Magalhães Godinho, os engenheiros Tito de
Morais e Ferreira Mendes, o desportista Mário Wilson e os estu-
dantes Mário Soares e Marcelino dos Santos (que viria a ser vice-
-presidente da FRELIMO)42.
O Ministério Público acabou por retirar a acusação de «activi-
dades subversivas», afirmando não ter conseguido fazer prova.
E quanto à acusação de terem subscrito folhetos susceptíveis de
causar alarme público, a ter existido, levaria os presos a incorrerem
num máximo de seis meses de prisão, tempo já ultrapassado.
O jornal O Século noticiou o termo do julgamento no Tri-
bunal Plenário. E assinala que os réus «eram acusados de actos
políticos contra a actual situação e de terem entrado para a associa-
ção, que sabiam ilícita e subversiva, de carácter político, Jovens
Democratas de Moçambique, identificada com o Partido Comu-
nista Português. Recomeçados os trabalhos, foram inquiridas tes-
temunhas de defesa, em número elevado, e dispensados diversos.
Seguiram-se os debates e tomaram parte neles o dr. Arlindo Mar-
tins, ajudante do procurador-geral da República, e os patronos dos
incriminados, senhores doutores Jaime Azancot, Santos Ferro,
Adão e Silva, Cruz Ferreira e Adriano Moreira [o futuro ministro
do Ultramar]. Ao fim da tarde foi proferida a sentença. Os réus
foram absolvidos da parte subversiva e foi-lhes aplicada a amnistia
na parte referente à conspiração contra a actual forma de governo.
Saíram em liberdade»43.
Foram absolvidos. Mas tinham passado 10 meses na prisão, em
Lourenço Marques, nos calabouços comuns, e na então Metró-
pole, nas prisões do Aljube e de Caxias 44. E foram proibidos

41 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba

Guerra, f. 102.
42 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba

Guerra, f. 106.
43 O Século, 05.07.1950.
44 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49 SR, Maria Sofia Pomba

Guerra, f. 84.

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