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a questão

criminal no brasil
contemporâneo

vera
malaguti
batista
a questão
criminal no brasil
contemporâneo
vera malaguti batista
A questão criminal tem ocupado uma centralidade absoluta no cenário político
brasileiro. A expansão exacerbada do sistema penal, sem paralelo em nossa
história, implica em que essa centralidade não seja apenas política mas também
social e econômica. Pretendemos recorrer primeiramente à história para que
tenhamos uma visão em perspectiva que pode nos ajudar a desnaturalizar o
contexto em que vivemos, conjuntura que talvez fique conhecida no futuro como
O Grande Encarceramento.
Para encararmos essa questão precisamos primeiro, entender a questão
criminal a partir da história, do “curso dos discursos sobre a questão
criminal” como nos ensina Raúl Zaffaroni1. A história da configuração do
poder punitivo para a neutralização da conflitividade social estaria associada
3
à formação do Estado e ao processo de acumulação de capital. O crime e seus
tratamentos não constituem categorias ontológicas, morais ou “da natureza”.
O sistema penal aparece então como constructo ou dispositivo, relacionado
à realidade econômica e social e às relações de força presentes no modo de
produção capitalista.
Zaffaroni, a partir de Foucault, localiza no século XIII o primeiro discurso
integrado entre política criminal, direito penal e criminologia, através do
aparecimento da estrutura da Inquisição. As mudanças nas relações de poder
confiscariam às vítimas o conflito criminalizado, que passa a ser administrado
de forma centralizada entre a Igreja e as primeiras formas de Estado, para
gerir a conflitividade e a violência e garantir uma determinada idéia de ordem.
Surge então uma nova atitude para determinar a verdade: a busca da verdade

* Comunicação apresentada no 2º Fórum 1. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El curso de la


Nacional de Alternativas Penais: “Audiências Criminologia. In: Revista de Derecho Penal y
de Custódia e a Desconstrução da Cultura Criminología, n. 69. Madrid: UNED, 2002.
do Encarceramento em Massa”, realizado
entre os dias 24 e 27 de fevereiro de 2016 –
Salvador/BA.
“criminosa” era o método da Inquisição. Institui-se então uma averiguação
realizada pelo que exerce o poder sobre o objeto estudado, a partir de uma
posição privilegiada, sem diálogo com “o outro”. Os discursos sobre a questão
criminal, ou a criminologia, se ancoraram nesse saber/poder e se intensificaram
com as crescentes possibilidades técnicas de domínio da natureza, transladada
nas relações com “os outros”, como aponta Marildo Menegat2.
Na segunda metade do século XX dois livros produziram rupturas no curso
desses discursos: Punição e Estrutura Social e Vigiar e Punir. O primeiro,
escrito em 1939 no contexto da Escola de Frankfurt por Georg Rusche, perdeu-
se na Europa conturbada daquele momento e veio a ser atualizado por Otto
Kirchheimer e publicado nos Estados Unidos dos anos sessenta. Rusche é o
4
primeiro a analisar historicamente as relações entre condições sociais, mercado
de trabalho e sistemas penais. O poder punitivo oscilaria então entre um direito
penal de execuções, mutilações, açoitamento e encerramento e discursos mais
liberais, de acordo com a abundância ou falta de mão-de-obra. Esse movimento
pendular vai do século XV ao XIX, quando a Revolução Industrial consolida a
prisão como a principal pena do Ocidente, completamente associada à fábrica.
Os trabalhadores que não estivessem sendo explorados sem limites nas fábricas,
estariam exercendo suas penas através do trabalho forçado, lucrativo e funcional
à ordem capitalista industrial3.
Na mesma década quente em Paris, Michel Foucault escreve Vigiar e Punir,
a partir da obra de Rusche. Ele avança na análise do simbolismo do poder
punitivo, suas funções jurídico-políticas no cerimonial de reconstituição da
soberania lesada no absolutismo. Os rituais organizados, o suplício como técnica

2. MENEGAT, Marildo. Depois do fim do 3. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto.


mundo: a crise da modernidade e a barbárie. Punição e Estrutura Social. 2. ed. Rio de
Rio de Janeiro: Faperj/Relume Dumará, 2003. Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/
Revan, 2004.
para impor as marcas do poder no corpo, estariam traduzindo relações de força
e não de justiça. Ele mostra como, a partir do século XVIII, essas cerimônias
se tornam perigosas nos embates entre as classes empobrecidas e o poder
absolutista4. É a partir dos medos das elites do momento que a Reforma das
Luzes aparece como nova estratégia política; punir e não vingar. A punição e
a repressão passam a ser funções regulares através de uma nova economia e
uma nova tecnologia. Junto com as demais “disciplinas”, essas fórmulas gerais
de dominação irão produzir uma tecnologia minuciosa e calculada de sujeição
e controle dos corpos dóceis. A crítica da prisão, que é contemporânea à sua
consolidação, demonstra que o aparente e crônico fracasso dos objetivos do
sistema penal esconde a sua principal função: realizar o controle diferencial e
5
seletivo das ilegalidades populares, neutralizar as resistências a uma nova ordem
que se impunha contra o novo sujeito político do século XVIII, a multidão.
Cabe a nós, que pensamos a questão criminal contemporânea, entender as
novas funções da prisão e do poder punitivo no neoliberalismo, ou capitalismo
de barbárie.
A esse respeito, Loïc Wacquant propõe a idéia do paradigma norte-americano
de incremento do Estado Penal em contraposição à dissolução do Estado
Previdenciário: a nova gestão da miséria se daria pela criminalização da
pobreza, nos discursos e nas práticas5. A hegemonia deste modelo produziu
o que Wacquant denominou de onda punitiva, produzindo um processo de
encarceramento em larga escala nunca visto na história da humanidade, hoje já
questionado pela esquerda e até pela direita estadunidense.
Trabalhando a história ideológica do controle social no Brasil de hoje,
Neder aponta o arbítrio das fantasias absolutistas de controle social policial

4. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio
nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977. de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/
5. WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a nova Revan, 2003.
absoluto no imaginário brasileiro, a partir das suas matrizes (no sentido de uma
permanência cultural) ibéricas.
A partir da reforma pombalina da segunda metade do século XVIII em
Portugal, instaura-se um processo de modernização que conjuga a incorporação
de novos pressupostos teóricos e ideológicos cuidando de que a base de
sustentação da hierarquização não fosse afetada. Esta ambigüidade revela-se no
desdobramento deste processo para o Brasil. A discussão em torno da redação
do código penal de 1830 articulava o liberalismo de Beccaria com as formas de
controle e punição da escravidão.
No Rio de Janeiro do século XIX, o chefe de polícia Eusébio de Queiroz
apontava a escravidão como limite à adoção de políticas mais modernas de
6
policiamento urbano. Propõe então o confinamento dos escravos nas fazendas e
o rígido controle de seus deslocamentos6. Para Neder, nem o fim da escravidão
e nem a República romperam com o legado da fantasia absolutista do controle
social, da obediência cadavérica. A atuação da polícia nas favelas brasileiras nos
dias de hoje é a prova viva deste legado.
O período pós-emancipação no Brasil é marcado por profundas inquietações.
A independência inspirava vários projetos para a nação que lutavam por
hegemonia. A principal questão a ser administrada, ideológica e politicamente,
era a convivência do liberalismo com o sistema escravista.
Para entender esta conjuntura, os problemas do liberalismo no Brasil7,
gostaríamos de refletir sobre o que Gizlene Neder denominou “iluminismo
jurídico-penal luso brasileiro”8. A autora trabalha as transformações do Brasil

6. Cf. NEDER, Gizlene. Absolutismo e “idéias fora do lugar”.


punição. In: Discursos Sediciosos - Crime, 8. NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal
Direito e Sociedade, ano 1, n.º 1. Rio de luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio
Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 132. de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/
7. Robert Schwarz analisando Machado de Freitas Bastos, 2000.
Assis trabalha o liberalismo no Brasil como as
colônia em Império Luso-Brasileiro, a partir das Reformas Pombalinas em
Portugal na passagem do século XVIII para o XIX. Compreendendo que os
atores no poder eram bacharéis, ela trabalha a influência da reforma de Coimbra
em 1772 e a criação dos cursos jurídicos no Brasil em 1827.
A idéia central de sua tese está baseada nas permanências histórico-
culturais de uma maneira de incorporar o liberalismo europeu sem rupturas
com o tomismo, o militarismo e a religiosidade de nossas matrizes ibéricas.
Assim, busca-se sempre uma fórmula jurídica-ideológica que assimile uma
hierarquização absolutista, que preserve as estratégias de suspeição e culpa do
direito canônico e que mantenha vivos o arbítrio e as fantasias absolutistas de
controle total.
7
A herança jurídico-penal da inquisição ibérica é uma das marcas de um
modelo de Estado que vinca a história do Brasil até os dias de hoje. “O discurso
do direito penal, que tem a pretensão de exercer-se como locução legítima,
numa língua oficial, está permanentemente produzindo sentidos que viabilizem
a expansão do sistema penal, expansão que também se orienta na direção das
mentalidades e da vida privada”9.
Nesta herança, o dogmatismo legal se contrapõe ao pluralismo jurídico,
o diferente é criminalizado, há uma coercitividade do consenso e uma
manipulação dos sentimentos ativados pelo episódio judicial10. Para Batista,
esses mecanismos sobrevivem e se agudizam em determinadas conjunturas
políticas, reproduzindo o tratamento dispensado ao herege: o princípio da
oposição entre uma ordem jurídica virtuosa e o caos infracional; a matriz do
combate ao crime é feita como cruzada, com o extermínio como método contra o

9. BATISTA, Nilo. Os sistemas penais 10. BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do


brasileiros. Aula inaugural dos cursos da sistema penal brasileiro - vol. I. Rio de Janeiro:
Universidade Candido Mendes, proferida em Instituto Carioca de Criminologia/Freitas
12 de março de 2001, Rio de Janeiro. Bastos, 2000.
injusto que ameaça; é produzido um direito penal de intervenção moral baseado
na confissão e no dogma da pena. Essa ordem jurídica intolerante e autoritária
não suporta limites, transforma-se num sistema penal sem fronteiras, com a
tortura como princípio, o elogio da delação e a execução como espetáculo.
No processo que intitulam de história da programação criminalizante no
Brasil, Batista e Zaffaroni mostram como os usos punitivos do mercantilismo
praticados no corpo do suspeito ou condenado no âmbito privado vão dando
sinais de anacronismo depois da independência e na constituição do capitalismo
no Brasil. As permanências, no entanto, são muitas: “a alçada criminal abrangia
a pena de morte natural inclusive em escravos, gentios e peões homens livres,
sem apelação nem agravo, salvo quanto às pessoas de mor qualidade, quando se
8
restringiria a degredo por dez anos e multa até
cem cruzados”11.
Do ponto de vista jurídico, do império das leis, as Ordenações Filipinas, que
constituíram o eixo da programação criminalizante do Brasil-colônia, regeram
o direito penal até a promulgação do código criminal de 1830. É importante
frisar que no direito privado várias disposições das Ordenações Filipinas
regeram até 1917!12
As demandas por ferocidade penal, a seletividade da clientela do sistema
penal são permanências históricas. Mas, a partir das contradições que
surgem entre o sistema colonial-mercantilista e o capitalismo industrial que
se configurava já na segunda metade do século XVIII, vai-se esboçando uma
outra conjuntura. No bojo da Independência, a Constituição de 1824 produz
algumas rupturas, ma non troppo, que fazem parte do universo liberal no
conjunto das idéias fora do lugar da modernização à brasileira. Surgem as

11. Cf. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio 12. Cf. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio
Raúl. Direito Penal Brasileiro - I. Rio de Raúl. Op. cit.
Janeiro: Revan, 2003.
garantias individuais: “liberdade de manifestação do pensamento, proscrição
de perseguições religiosas, liberdade de locomoção, inviolabilidade do domicílio
e da correspondência, as formalidades exigidas para a prisão, a reserva legal, o
devido processo, a abolição das penas cruéis e da tortura, a intransmissibilidade
das penas, o direito de petição, a abolição de privilégios e foro privilegiado”13. É
lógico que tudo isto não poderia colidir com o “direito de propriedade em toda
a sua plenitude” que, mantendo a escravidão sem uma só letra da lei, instituiria
a cilada da cidadania no Brasil, digamos a ciladania, que pontua até hoje os
discursos do liberalismo no Brasil. Como assinalou Machado Neto a cidadania
no Brasil nasce restrita aos homens brancos e proprietários14.
Essa nossa história faz com que nosso sistema penal e nossa maneira de
9
pensar e sentir a questão criminal sejam marcados por práticas de extermínio,
aniquilação e desqualificação jurídica do povo brasileiro advindas da predação
colonial contra os povos originários e os afrodescendentes.
Pensando então, na longa duração do autoritarismo no Brasil, nos demos
conta de que a “democracia” é um intervalo da nossa história; na verdade, essa
maneira de pensar e sentir a questão criminal é a grande permanência que
atravessa o sentido do nosso sistema jurídico-penal. Para pensarmos nossa
“torturante contemporaneidade” nos remetemos ao momento de transição da
ditadura civil-militar quando estava disseminada uma resistência às práticas do
Estado de exceção. Foi naquele momento histórico que os meios de comunicação
começaram a esculpir cotidianamente o novo inimigo público, aquele que vai
ensejar desejos de extermínio: o traficante. Quero dizer com isso que a política
criminal de drogas que nos é imposta no auge da ditadura pelos estadunidenses
seria o grande vetor de extermínio e encarceramento  no período democrático. 

13. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio e Estrutura Social: comentário sociológico ao


Raúl. Op. cit. p. 39. Código Criminal de 1830. São Paulo: Edusp/
14. MACHADO NETO, Zahidé. Direito Penal Saraiva, 1977.
Na geopolítica das drogas a América Latina foi transformada em campo de
batalha. Produtora de maconha e cocaína, abalada por uma crise econômica
que produziu, nos oitenta e nos noventa, multidões de camponeses sem
terra e trabalhadores urbanos informais ou desempregados, nossa parte da
América inscreveu-se duplamente no mundo: através de nossa inserção na
divisão internacional do trabalho e no estereótipo pejorativo que acompanha a
expressão “traficante”.
Para enfrentar esta política criminal em forma de guerra, temos que
desconstruí-la e para isso devemos romper com o discurso moral. Como disse
Massimo Pavarini, mais moralidade como mais penalidade é o trágico equívoco
de todas as campanhas punitivas15. As cruzadas contra as drogas, essa
10
combinação de elementos morais, religiosos e de confronto, produziram, em
muitos países da América Latina, um direito penal sem fronteiras, forjando em
certas prisões federais algo que aspira a ser muito parecido com as imagens
sinistras dos prisioneiros de Guantánamo.
A ditadura, com suas campanhas de lei e ordem e sua política de segurança
nacional, construiu assim o estereótipo político criminal do novo inimigo
interno: o traficante. A guerra contra as drogas pôde assim garantir a
permanência do aparato repressivo, aprofundando seu caráter autoritário e
assegurando investimentos crescentes para o controle social e a segurança
pública. Não foi só a infraestrutura que se manteve após o período militar: o
novo inimigo propiciou também a renovação dos argumentos exterminadores, o
aumento explosivo das execuções policiais e a naturalização da tortura. Tudo é
normal se o alvo é o traficante nas favelas. Tivemos no Rio de Janeiro um projeto
de ocupação militar nas áreas de pobreza em nome dessa guerra.

15. PAVARINI, Massimo. O instrutivo caso crime, direito e sociedade, nº 2. Rio de


italiano. In: Revista Discursos Sediciosos: Janeiro: ICC, 1996. pp. 67-76.
Podemos, através dessa reflexão, pensar que talvez  essa economia de guerra seja
o principal sentido da Guerra às Drogas, já que todos os seus objetivos explícitos
configuram um retumbante fracasso. A produção, a comercialização e o consumo
daquelas substâncias alcançadas pelo proibicionismo só aumentaram junto com
as maiores taxas de encarceramento da história da humanidade e a violência
disseminada pelas cidades e campos. Salo de Carvalho, na mais atual e completa
obra sobre a questão das drogas no Brasil, critica “aquelas ideologias ocultadas
pelos Aparelhos de Estado que inviabilizam a otimização dos Direitos Humanos,
demonstrando a diafonia existente entre o discurso oficial e a funcionabilidade do
sistema de drogas fundados em legislações penais do terror”16.
Salo critica historicamente a legislação penal sobre drogas no Brasil com
11
dispositivos vagos e indeterminados e uso abusivo de normas penais em
branco, que “acabaram por legitimar sistemas de total violação das garantias
individuais”17. O autor demonstra também o alinhamento legal do Brasil
à política estadunidense, a partir dos anos setenta, através da absorção do
discurso central em que o inimigo interno seria o produtor e o traficante. Para
ele o ápice do modelo jurídico-político ocorre ao final da década de setenta
e início da década de oitenta, “com a total incorporação dos postulados da
Doutrina de Segurança Nacional na concepção de seguridade pública”, dentro
das categorias desenvolvidas pelos teóricos da ditadura militar (geopolítica,
bipolaridade, guerra total e inimigo interno).
Esta conjuntura produziu o que denominei de adesão subjetiva à barbárie
que constitui a crescente demanda coletiva por castigo e punição18. Nas sendas

16. CARVALHO, Salo de. A Política Criminal neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
de Drogas no Brasil. Rio de Janeiro. Ed. 18. Cf. BATISTA, Vera Malaguti. Adesão
Luam, 1996, p. 10. Subjetiva à barbárie. In: Loïc Wacquant e a
17. Op. cit., p. 27.18. Cf. BATISTA, Vera questão penal no capitalismo neoliberal. Rio
Malaguti. Adesão Subjetiva à barbárie. In: Loïc de Janeiro: Revan, 2012.
Wacquant e a questão penal no capitalismo
de Foucault, Edson Lopes nos demonstra as afinidades entre os assujeitamentos
e a subjetividade imposta pela cultura punitiva, que tem na figura da vítima
seu principal dispositivo, e no medo sua mais potente metodologia. No
próprio campo do marxismo, Melossi já anunciara o deslocamento entre o
poder punitivo e as condições objetivas, através da constituição dessa colossal
demanda por pena.
Na virada do século XX o neoliberalismo produziu uma perda geral de
intensidade do trabalho: o capital é agora vídeo-financeiro19. A nova demanda
por ordem vai exigir o controle do tempo livre. A prisão não é mais lucrativa pelo
trabalho dos presos, mas pela sua gestão, a ser terceirizada e privatizada, pela
sua simbiose com as periferias urbanas e pelo seu capital simbólico. A indústria
12
do controle do crime vai gerar uma nova economia, com seus medos, suas
blindagens, suas câmeras, suas vigilâncias, sua arquitetura. A segurança privada
vai substituir a construção civil como grande absorvedora de mão de obra
desqualificada. Nesta nova configuração, a prisão não só não desapareceu como
se expandiu como nunca. Expandiu-se e articulou-se para fora dos seus limites
com dispositivos de vigilância, com as medidas fora da prisão, e também com o
controle pela medicação.
Neste cenário surgem as penas alternativas, numa perspectiva de alternativas
à pena, como a partir de Radbruch diria Alessandro Baratta. Pensadas como
estratégias de desafogamento da justiça penal, elas podem acabar por impor um
controle social mais capilarizado, mais minucioso, que vai estender os tentáculos
do poder punitivo aos pequenos conflitos do cotidiano, bem no espírito da
devassa inquisitorial que o fundou. A juridicização do cotidiano vai criar um

19. VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. O


Príncipe da Moeda. Rio de Janeiro: Espaço
e Tempo, 1997; e As Ruínas do Pós-Real.
Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1995.
conjunto de dispositivos biopolíticos: o controle dos conflitos privados vai
demandar juristas e demais especialistas para se tornar o centro da vida política.
As estratégias de mediação e restauração aparecem como alternativas à
pena na conjuntura dos anos setenta e oitenta. Seu maior risco é, ao invés de
desjudicializar os procedimentos, expandir a mentalidade judicial para os
“novos operadores”. Observemos o caso do júri, dispositivo jurídico nascido
historicamente da pretensão política de ser o sujeito julgado por seus pares,
por seus iguais. Na tradição brasileira, as sentenças populares costumavam ser
mais generosas do que aquelas geradas pelo saber dogmático penal. Hoje dá-se
o contrário: o senso comum criminológico punitivo inculcado pela grande mídia
produziu uma ferocidade crescente na mentalidade dos jurados brasileiros. A
13
tradição garantista do pensamento jurídico, antes considerada conservadora,
vai ser lembrada saudosamente e vai tornar-se vanguarda se comparada
à sanha punitiva alimentada pelas coberturas midiáticas espetaculares.
Pensemos também em alguns fatos noticiados, nos quais os Conselhos Tutelares,
concebidos para democratizar a justiça dirigida a crianças e adolescentes,
transformam-se em dispositivos policialescos, prontos a penalizar e criminalizar
as relações familiares, principalmente as dos pobres.
O principal poder decantado desse conjunto de movimentos punitivos vai
ser a legitimação da intervenção moral, da invasividade do Estado penal nas
relações familiares e de vizinhança. Quanto maior a conflitividade social
decorrente da devastação promovida pelo capital, maior deve ser a legitimidade
da pena. O que vai articular essa nova economia política é a constituição de uma
cultura punitiva. A indústria cultural e a grande mídia vão tratar de inculcar
diariamente o dogma da pena e o respectivo modelão penal já decadente nos
Estados Unidos: das bugigangas eletrônicas à prisão supermax privatizada.
O importante é punir mais, melhor e por muito tempo: o negócio dos cárceres
precisa de muitos hóspedes e de longas estadias... É aquele processo que
Wacquant chama de remasculinização do Estado, que produz um giro do social
para o penal e que terá efeitos tanto nos orçamentos públicos como na prioridade
discursiva, colonizando a assistência social pela “lógica punitiva e panóptica
característica da burocracia penal pósreabilitação”20.
O livro de Vera Andrade, A Ilusão de Segurança Jurídica, traz uma profunda
reflexão sobre as promessas não cumpridas do sistema penal e seu afastamento
de análises empíricas sobre seu real funcionamento21. Afinal, o Direito Penal
surge na Europa revolucionária do século XVIII para conter a barbárie do poder
punitivo do absolutismo.
Se o positivismo surge na Europa na ambiência dos medos pós-
revolucionários, suas verdades científicas ajudaram a desqualificar as utopias de
14
igualdade, demonstrando uma hierarquia de raças que legitimava o colonialismo
em curso. Quando falamos do positivismo como cultura e sua recepção nas
colônias queremos afirmar que essa cultura, de longa duração, produziu não só
uma maneira de pensar a questão criminal, mas principalmente uma maneira de
senti-la: afetividades punitivas que naturalizam a truculência e cultuam a pena
como solução mágica e restauradora de todos os conflitos.
Ao começar a escrever uma história da criminologia na América Latina, Rosa
del Olmo estudou a importação de saberes e pautas vindos do Hemisfério Norte
produzindo uma verdadeira ocupação estratégica que tomava corpo em cátedras,
seminários e publicações. Na virada do XIX para o XX (transição da escravidão e
da República) o positivismo se torna o saber/poder hegemônico na compreensão
da complexa questão criminal. Nessa conjuntura o positivismo criminológico
ajudava a neutralizar a potência dos desejos de nação “mestiços” e “degenerados”.

20. WACQUANT, Loïc. Loïc Wacquant e a 21. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A
questão penal no capitalismo neoliberal. Vera ilusão da segurança jurídica: do controle da
Malaguti Batista (organizadora). Rio de Janeiro: violência à violência do controle penal. Porto
Revan, 2012. Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
A auto-patologização aprofundava os fossos construídos entre os homens
brancos e proprietários e o resto do nosso povo.
Tendo como objetivo maior a manutenção da ordem social projetada da
escravidão para a República, o positivismo criminológico se travestia de técnica,
encobrindo com o fetiche criminal sua natureza política. É Nilo Batista quem
nos assevera dessa função encobridora dos conflitos sociais que é o dispositivo
crime. No Brasil republicano o desenvolvimento das instituições policiais estarão
participando dos deslizamentos de sentidos da medicina legal para medicina
social, muito mais abrangente. Flamínio Fávero afirma que “...a medicina legal
deve agir, de preferência na elaboração e execução de certas leis que demandam
conhecimentos de ordem biológica a fim de que a ordem social permaneça”22.
15
Aquele paradoxo da introdução do cartesianismo em Portugal acompanha essa
nova estratégia de dotar a fé na ciência de uma reedição racional do salvacionismo. 
Mas o positivismo não foi apenas uma maneira de pensar, profundamente
enraizada na intelligentzia e nas práticas sociais e políticas brasileiras, ele
foi principalmente uma maneira de sentir o povo, sempre inferiorizado,
patologizado, discriminado e por fim, criminalizado. Funcionou, e funciona,
como um grande catalizador da violência e da desigualdade características do
processo de incorporação da nossa margem ao capitalismo central.
Descolonizar nossa elaboração da questão criminal impõe uma ruptura
radical com aquela objetificação e hierarquização das nossas matrizes
inquisitoriais. A consolidação da mentalidade obsidional europeia produziu
uma máquina de classificação e seletividade para lidar com o seu grande Outro.
Na atual conjuntura esse quadro se apresenta de maneira dramática. Como diz
Zaffaroni, nascemos como um continente que é instituição de sequestro e na

22. Correa, Mariza. (1998). As Ilusões da


Liberdade. Bragança Paulista: Edusf, p. 224.
atualidade essa vocação se aprimorou. Milhões de latino-americanos apodrecem
em prisões abaixo de todos os padrões de dignidade. A intensidade dos conflitos
sociais e sua leitura penal positivista produziu o maior encarceramento da
nossa história, e a política criminal de drogas prestou grande contribuição
neste processo. Quanto mais prendemos e matamos pior ficamos e os meios de
comunicação vão produzindo um discurso tautológico que gera adesão subjetiva
à barbárie: demanda por mais pena e mais severidade penal.
O pensamento criminológico em nossa margem precisa mergulhar na
nossa história. Nem os povos originários do Brasil e nem os africanos que nos
povoaram tinham a necessidade de polícia ou de sistema penal para resolver
seus conflitos. A justiça de transição da África do Sul contemporânea é um
16
exemplo disso. Há alguns meses atrás, no Brasil, uma nação indígena não aceitou
o resultado de um júri considerando aquela cerimônia como brutal. Nós, que
naturalizamos as violências e o caráter genocida de nosso sistema penal, estamos
numa encruzilhada ética e civilizacional: ou aprofundamos radicalmente nossa
crítica ao poder punitivo ou estaremos eternizando ad infinitum nossa auto-
colonização. É esse o sentido de estarmos discutindo aqui alternativas penais,
elaborando coletivamente, a partir da nossa realidade, novos caminhos para a
administração de nossa conflitividade social.
17
#Publicação comissionada pela #Publication commissioned by
Fundação Bienal de São Paulo Fundação Bienal de São Paulo on
em ocasião da 32a Bienal de São the occasion of the 32a Bienal of
Paulo - Incerteza Viva. São Paulo - Incerteza Viva.
oficina lugar de agência e afetos entre modos de fazer, aprender e cuidar
imaginação intervenção nos sistemas de (re-)produção e invenção de mundos
política implicação ética nas contradições e paradoxos das coletividades

OIP é uma iniciativa que se manifesta por meio de grupos


de pesquisa, leituras públicas, apresentações, oficinas,
intervenções, instalações, escrita, tradução e produção de
publicações como esta. no contexto da 32a bienal de são
paulo: incerteza viva, a oficina se constitui pela colaboração
entre jota mombaça, rita natálio, thiago de paula, valentina
desideri, diego ribeiro e amilcar packer.

FANPAGE OIP

FONTES NEUZEIT S, GEORGIA E UNIVERS


Vera Malaguti Batista
é Professora Adjunta
de Criminologia da
Universidade do Estado
do Rio de Janeiro e
Secretária-Geral do
Instituto Carioca de
Criminologia.

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