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© Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – ipea 2014

Calixtre, André Bojikian


Cátedras para o desenvolvimento : patronos do Brasil / André
Bojikian Calixtre, Niemeyer Almeida Filho – Rio de Janeiro: Ipea,
2014.
656 p. : il.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7811-241-7

1. Pensamento Econômico. 2. Desenvolvimento Econômico. 3.


Desenvolvimento Social. 4. Brasil. I. Título. II. Almeida Filho,
Niemeyer. III. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

CDD 330.09

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não
exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou da
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte.
Reproduções para fins comerciais são proibidas.

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CAPÍTULO 9

MAURÍCIO TRAGTENBERG E A APROPRIAÇÃO HETERODOXA DE


MARX: UMA INTRODUÇÃO AO PROBLEMA1
Vinícius Soares Solano2
Elcemir Paço-Cunha3
Deise Luiza da Silva Ferraz4

1 INTRODUÇÃO
Quinze anos completam-se, em 2013, da morte de Maurício Tragtenberg
(1929-1998), o pensador brasileiro que, segundo Resende (2001, p. 137), era
um “militante sem partido e um intelectual sem cátedra”. Contudo, como bem
destacou Michel Löwy (2001), suas ideias permaneceram, auxiliando pesquisadores,
militantes e trabalhadores a enfrentarem os desafios do terceiro milênio.
Para que as contribuições de Tragtenberg cumpram esse papel de instrumento
analítico e crítico, há, também, a necessidade de submeterem-se suas ideias a
uma análise crítica, indagando a atualidade do pensamento do autor, bem como
os seus limites. Liana Carleial (Carleial, 2012) mencionou que o pensamento
de um grande autor pode ser considerado atual em diferentes perspectivas. Nesse
sentido, formulou três questões que guiam a avaliação da contemporaneidade
de um intelectual, listadas a seguir.
1) Manutenção do poder explicativo das categorias e dos conceitos do autor
a despeito do tempo decorrido da produção de suas ideias: contribuição
do pensamento do autor para entender o contemporâneo.

1. Os autores agradecem ao Ipea pelo financiamento do projeto Desenvolvimento social equânime e autônomo:
as contribuições de Tragtenberg para os estudos das contradições da autogestão nas políticas públicas de geração
de trabalho e renda, bem como pela concessão de bolsa do programa Cátedras para o Desenvolvimento, realizado
em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Agradecem também à
Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) pela concessão de bolsa de iniciação científica
e igualmente à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo apoio financeiro ao projeto
que originou esta pesquisa.
2. Aluno do curso de administração da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
3. Professor adjunto do Departamento de Ciências Administrativas, do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFJF.
4. Professora do Departamento de Ciências Administrativas e do Centro de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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2) Atualidade das contribuições intelectuais do autor: permanência da atualidade


do autor, apesar do tempo decorrido, em virtude de a realidade, embora
diferente, não se ter alterado substancialmente.
3) Possibilidade de as categorias do autor serem atualizadas sem que o
conjunto do seu pensamento seja refutado: em que medida são necessárias
transformações no pensamento do autor para compreender a realidade atual.
O estudo realizado por Paes de Paula (2008) sobre a publicação de artigos críticos
em revistas e congressos especializados da área das ciências administrativas entre 1980
e 2004 demonstrou que Tragtenberg segue sendo referência para os estudiosos que
buscam compreender o mundo social de forma não naturalizada. Sendo o sétimo
autor mais citado nestes textos, suas ideias parecem dar suporte para a produção do
saber contemporâneo, indícios de que seu pensamento permanece atual. Ademais,
o “pioneiro na construção de uma teoria crítica em administração” (Ide, 2001, p. 290)
fez escola, como destaca Paes de Paula (2008) ao relatar a influência de Tragtenberg
nos escritos de outros dois intelectuais brasileiros: Fernando Cláudio Prestes Motta
(1945-2003) e José Henrique de Faria (1959-). Faria, por exemplo, publicou em
três volumes o livro Economia política do poder, cujo volume dois é dedicado à crítica
às teorias administrativas (Faria, 2004), dando continuidade ao empreendimento
efetuado por Tragtenberg no livro Burocracia e ideologia (Tragtenberg, 1985).
O paradoxo na atualidade de Tragtenberg é que, possivelmente, ele não
desejaria manter-se atual. Maurício Tragtenberg combateu intensamente qualquer
tipo de opressão e propugnava em seus textos, acadêmicos ou jornalísticos,
a necessidade da emancipação humana. É justamente a não alteração estrutural do
modo de sociabilidade que mantém o pensamento do autor um guia para a produção
crítica hodierna. Existem reflexões conjunturais realizadas por Tragtenberg, nas
décadas de 1970 e 1980, que poderiam facilmente ser reproduzidas nos jornais e
nos livros de hoje. “No Brasil, muda-se de partido como quem muda de camisa”
– publicado no jornal Notícias populares de 26 de janeiro de 1986) (Silva, 2008,
p. 133). “Salvo raras exceções, o sindicato não é a casa do trabalhador, é a casa do
‘pelego’” – publicado na edição da Folha de S. Paulo de 08 de novembro de 1979)
(Silva, 2008, p. 126). “Da mesma forma que o grupo negro, homossexual, a mulher
está inserida na totalidade do real e ao mesmo tempo tem problemas específicos,
no contexto da totalidade, que não podem ser escamoteados” – publicado na
Folha de S. Paulo, em 26 de fevereiro de 1981 (Silva, 2008, p. 129). “A teoria da
administração, até hoje, reproduz as condições de opressão do homem pelo homem; seu
discurso muda em função das determinações sociais” (Tragtenberg, 2006, p. 267).
Reconhecer esses trechos como atuais é render mais uma concordância
com Tragtenberg, é afirmar que “estruturalmente nada mudou (...). Porém,

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Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução
ao problema 263

conjunturalmente algo mudou”, conforme se lê na edição do Notícias populares


de 17 de março de 1985 resgatada por Silva (2008, p. 130).
A capacidade analítica de Tragtenberg pode ser decorrência de seu
heterodoxismo. Tragtenberg, conhecedor de autores clássicos de diversas áreas do
saber, tem como seus principais interlocutores pensadores como Hegel, Weber
e Marx. É, segundo Ide (2001, p. 298), um dos mais “profundos conhecedores
da obra de Weber no Brasil”. Isto estimulou muitos estudiosos da sociologia das
organizações ou das teorias organizacionais a realizarem análises e discutirem as
contribuições de Tragtenberg. Eis um motivo para que este texto não se estenda na
explanação acerca da atualidade das críticas que Tragtenberg traçou à burocracia,
à heterogestão, ao poder disciplinador do ensino etc.
As duas primeiras indagações realizadas por Carleial (2012) para avaliar
a atualidade do poder explicativo de um pensador já foram comprovadas por
autores como Silva (2008), Paes de Paula (2008) e Meneghetti (2009). Este texto
dedicar-se-á a explorar o terceiro ponto levantado, ainda que não exaustivamente,
tratando-se, pois, de uma introdução ao tema e nada mais que isto.
O conjunto do pensamento de Tragtenberg não pode ser refutado, embora,
como mencionado, o autor desejá-lo-ia em nome da liberdade humana. Sob
influências marxistas, ele compreendeu que o homem faz história a partir das
condições concretas em que se reproduz, sendo esta também uma limitação ao
desenvolvimento do conhecimento. Dessa forma, Tragtenberg, apesar de ter rompido
com a forma hegemônica de apreender Marx existente nas últimas cinco décadas
do século XX, foi de alguma forma por ela condicionado. Assim, Tragtenberg
permanece atual, sem deixar de ser homem de seu tempo, o que faz com que
o estado da arte do debate em que se envolveu constitua, ao mesmo tempo, a
possibilidade da crítica e se confirme como condicionador dos limites da superação
intelectual, sobretudo no que tange à aproximação do pensamento de Karl Marx e
Max Weber. Tragtenberg debruçou-se sobre estes autores de forma mais sistemática
na elaboração de sua tese doutoral, da qual emergiu o livro Burocracia e ideologia.
A elaboração de um sistema explicativo a partir da aproximação daqueles autores
ocorreu no século XX e permanece sendo um esforço intelectual desenvolvido por
muitos estudiosos das relações sociais. Nesse sentido, os estudos de Tragtenberg
ainda hoje suscitam e iluminam discussões.
Grande parte dos estudos produzidos a partir desse texto seminal de
Tragtenberg procura apresentar o Weber contido em Tragtenberg. No estudo aqui
apresentado, o objetivo não é explorar toda a problemática de uma articulação
entre categorias marxistas e weberianas, mas tão somente apontar, ainda que de
forma introdutória, alguns elementos do texto Burocracia e ideologia no que tange
a um flertar de Tragtenberg com posicionamentos weberianos que divergem por

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completo das análises de Marx. Isto porque o objetivo específico deste capítulo é
ter uma primeira compreensão sobre como Marx foi apreendido por Tragtenberg
na elaboração da obra Burocracia e ideologia. Para isso, fez-se necessário também
refletir sobre a metodologia do autor brasileiro. Apreender o Marx em Tragtenberg
e problematizar sua metodologia é uma tarefa necessária ao desenvolvimento do
conhecimento sobre o real, tendo em vista as considerações de Gabriel Cohn, um
reconhecido weberiano:
Grande parte daquilo que passa por ser análise marxista na sociologia é perfeitamente
compatível com o esquema weberiano, sem que isso signifique em absoluto que essas
duas linhas de pensamento sejam compatíveis entre si. Cada qual deve ser tomada
pelos seus respectivos méritos – e é claro que se eu não estivesse convencido dos
méritos intrínsecos ao esquema weberiano, não teria escrito este livro. De qualquer
modo, não se trata de defender este contra aquele, mas assinalar sem margem para
equívocos a especificidade de cada qual e com isso recordar que também nesse caso
as posições ecléticas são insustentáveis (Cohn, 1979, p. 12).
O texto não se estenderá quanto a méritos e deméritos dos esquemas marxiano
e weberiano; apenas deixará indicado, assim como foi observado por Cohn, que
a junção entre Marx e Weber (webero-marxismo ou marxismo weberiano) é
insustentável devido às suas especificidades. Esta problemática ocorre repetidamente
no interior da obra de Tragtenberg, como será visto no decorrer deste capítulo,
que está dividido em quatro seções, além desta introdução.
Na segunda seção, toma-se a categoria burocracia como sendo a raiz da
pesquisa, por ter sido esta categoria um ponto central na pesquisa desenvolvida
por Tragtenberg. Nesse item, interessa apresentar tal categoria (weberiana) como
ela realmente é: uma abstração arbitrária (Paço-Cunha, 2010b). Na terceira seção,
será trazida a discussão metodológica em Tragtenberg, na qual é possível observar
seu distanciamento em relação à análise da sociedade empreendida por Marx.
Na quarta seção, o Marx que se faz presente em Tragtenberg será apresentado
ao leitor. Por fim, na quinta seção, são apresentadas as considerações sobre as
contribuições e limitações explicativas do pensamento de Tragtenberg em função
do modo de apreender Marx. Busca-se, como aponta Carleial (2012), demonstrar
o que do sistema tragtenbergiano não pode ser refutado, carecendo ser aprimorado,
com o objetivo de calibração do instrumento analítico legado à contemporaneidade
por Tragtenberg. Espera-se que este texto suscite a discussão acadêmica sobre o
Marx em Tragtenberg, tal como tem ocorrido com Weber.

2 OBLITERAÇÃO DA RELAÇÃO-CAPITAL
O livro Burocracia e ideologia foi baseado na tese de doutorado de Tragtenberg.
Nessa obra, o autor pretende responder algumas perguntas, como as reproduzidas
a seguir.

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Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução
ao problema 265

Sendo o estudo da teoria da administração a análise da legitimação burocrática do poder,


seja privado ou público, essa teoria de caráter repressivo aparece na ênfase na adaptação
e controle do homem. Por que sua preocupação com o nível do conhecimento permanece
instrumental e o conhecimento do humano, limitado àquelas partes passíveis de controle?
Em que medida a passagem do vapor à eletricidade condicionou o surgimento das
teorias de Taylor-Fayol como ideologia administrativa de acumulação? E como o
capitalismo de organização encontrou em Mayo sua ideologia administrativa explícita?
Quais as condições históricas alemãs que permitiram a passagem da teoria da
administração para a sociologia da organização em Weber?
Quais os limites e ambições da explicação weberiana? Quais os níveis de articulação de
sua metodologia com sua sociologia da organização, do seu racionalismo burocrático
com o capitalismo moderno e da sua neutralidade axiológica com o liberalismo
político? (Tragtenberg, 1985, p. 15).
Diante dessas perguntas, Tragtenberg desenvolve sua pesquisa indicando
que as teorias da administração são representações intelectuais de um momento
histórico-social específico, sendo esta teoria transitória e ideológica na medida em
que o saber científico apresenta uma representação distorcida da realidade em nome
da permanência e da reprodução de interesses específicos das classes dominantes
enquanto interesses gerais.
Em sua análise sobre Max Weber, o autor aponta o problema metodológico
da neutralidade de valores e adverte sobre as limitações de Weber, mas sempre
lembrando o contexto em que aquele autor se encontrava. Tragtenberg se concentra
na categoria da burocracia, assinalando seu surgimento, desenvolvimento e a
problemática da crescente burocratização da sociedade capitalista. Elege Max Weber
como um dos maiores críticos da burocracia e não seu ideólogo, contrariando
assim muitos outros estudiosos, que apontam Weber como o seu maior defensor
– especialmente nas vulgarizações da chamada teoria geral da administração.
Tragtenberg (1985) indica a evolução das formas de burocracia e menciona
que o surgimento do primeiro tipo se deu nas sociedades asiáticas, com o modo
de produção asiático. A partir daí, Tragtenberg retoma as obras de autores que
se dedicaram a operacionalizar o conceito de burocracia, perpassando assim por
Weber e Hegel e salientando a importância desta análise.
Como nascemos, vivemos e morremos em organizações formais, as teorias explicativas
destas são de primordial importância, principalmente, quando pela intervenção do
Estado na economia, o próprio Estado aparece como organização. Daí, qualquer
análise da teoria administrativa deve partir da burocracia enquanto poder, para atingir
a burocracia na estrutura da empresa (Tragtenberg, 1985, p. 16).
A afirmação anterior guarda problemática de difícil solução, pois o autor
busca a explicação da teoria da administração por meio da teoria da burocracia de

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266 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil

Weber, que encobre uma generalidade de relações, entre elas a relação de valorização
do capital pelo trabalho.
Ao contrário do verificado no pensamento de Weber,
[n]o interior das elaborações marxianas, tal relacionamento (capital x trabalho) é
categorial porque tem na objetividade existência. Tanto o capital quanto o trabalho
com o qual se relaciona são categorias existentes na própria efetividade por meio das
quais se pode realizar uma reprodução no pensamento da lógica operante dessa mesma
efetividade. Antes, porém, de serem reproduções no pensamento, as categorias têm
existência objetiva, nascem das relações sociais reais. Não apenas têm nessas relações
a sua origem, mas são essas relações mesmas que se expressam por essas categorias.
As categorias são, por isso, abstrações razoáveis (Paço-Cunha, 2011b, p. 3).
O conceito de organização burocrática enquanto um tipo ideal weberiano
é erigido não a partir das relações sociais reais, mas a partir de mistificações que
acabam obliterando estas relações. Construído levando-se em conta apenas a
aparência e não as relações efetivas, este conceito é denominado abstração arbitrária.
No entanto, Weber foi um dos mais importantes teóricos da burocracia,
considerado pelos estudiosos da sociologia das organizações o ponto principal para
a análise deste conceito. Talvez, por este motivo, Tragtenberg tenha dado tanta
importância ao autor em sua obra. A própria estrutura de Burocracia e ideologia
foi focada em uma análise mais aprofundada na obra de Max Weber. Tragtenberg
aborda a crise da consciência liberal alemã na qual Weber estava inserido, indicando
o momento turbulento por qual passava a Alemanha e a reação intelectual de Weber
a este período. Dedica também um capítulo exclusivo ao sociólogo, descrevendo
sua metodologia, seus avanços e limitações.
Tragtenberg (1985, p. 189) entende que Weber, em sua teoria das organizações,
(...) na qual a burocracia se esgota como organização formal, não explica situações
em que a burocracia não é agente dos detentores do poder econômico – como sob
o capitalismo clássico –, mas definida como um poder econômico e politicamente
dominante.
E continua:
Enquanto Weber, na sua análise da burocracia, preocupa-se com a enumeração
de critérios que a constituem, parece-nos fundamental estudá-la na sua dinâmica
interna, isto é, a maneira pela qual ela estrutura suas raízes na sociedade e o princípio
em torno do qual ela aumenta o seu poder. (…) Enquanto na indústria capitalista
a burocracia em Weber define-se como órgão de transmissão, isso não se dá numa
estrutura em que um partido único detém o monopólio do poder total, pois o burô
político do Partido Comunista da URSS não se reduz a transmissão e execução.

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Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução
ao problema 267

O acesso aos cargos do partido não depende de conhecimento técnico ou profissional,


não é necessário ser remunerado pelo partido para ter cargo importante. A burocracia,
participando da apropriação da mais-valia, participa do sistema de dominação
(Tragtenberg, 1985, p. 189).
Nesta passagem o autor aponta que a proposição de Weber sobre as organizações
apresenta um caráter essencialmente descritivo e que sua teoria não abarca todos
os tipos de organizações burocráticas. Para compreender melhor como age a
burocracia, Tragtenberg indica ser fundamental estudar a sua dinâmica interna,
ou seja, a maneira pela qual ela estrutura suas raízes na sociedade e o princípio
em torno do qual ela aumenta o seu poder. Nessa afirmação percebe-se a forma
como o autor pretende estudar aquela categoria; ele não parte das relações que a
arquitetaram, mas das relações superestruturais, dificultando o entendimento de
como a categoria burocracia foi erigida e de qual forma a burocratização poderá
ser superada, por exemplo. Do modo como analisa a burocracia, Tragtenberg
contribui com a proposição de Weber sobre as organizações, mas não a supera,
pois comete os equívocos metodológicos do próprio Weber. Isto ocorre quando ele
pretende expor a maneira pela qual a categoria weberiana de burocracia estrutura
suas raízes nas relações sociais e não o contrário (como as relações sociais capitalistas
estruturaram a burocracia). Assim, Tragtenberg expõe apenas a forma aparente
na qual a burocracia se apresenta, resultando em uma análise que não concebe as
relações sociais efetivas, mas apenas sua superficialidade.
O autor não leva em consideração ainda que, como sugerido antes, o conceito
de burocracia, em Weber, acaba por encobrir uma generalidade de coisas, pois
pretende, a partir do estudo de um fenômeno superestrutural, explicar como este
se enraíza na sociedade e não como as relações sociais estruturam a burocracia.
[Assim,] o conceito de burocracia em Weber é uma abstração arbitrária na medida
mesma em que obstrui a apreensão da relação-capital no fundamento da produção
capitalista e que se apresenta na forma mistificada da empresa e do Estado (além
de outras formas), isto é, apresenta-se como uma forma que oblitera este seu
próprio caráter fundamental. Nesse sentido, a conjunção entre Marx e Weber está
operativamente obstruída, é a diluição do projeto marxiano em revelar a relação
fundamental entre capital e trabalho e o processo de valorização do primeiro pelo
segundo (Paço-Cunha, 2011a, p. 5).
Outro importante autor analisado por Tragtenberg foi Hegel, que, em
sua opinião, “foi quem primeiro operacionalizou no plano lógico o conceito de
burocracia em nível do Estado e da corporação privada” (Tragtenberg, 1985,
p. 21). Para Tragtenberg, a teoria de Hegel aplicada à burocracia encobre uma
realidade que o próprio autor desconhece, reduzindo arbitrariamente a oposição
e traindo o real. Dessa forma, ele entende que a teoria formulada por Hegel não
reflete efetivamente o existente.

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268 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil

Mesmo reconhecendo a problemática implícita ao conceito de burocracia


de Hegel, Tragtenberg concluiu, após uma análise das sociedades pré-capitalistas
e capitalistas,
[que] a emergência da burocracia patrimonial como poder político nas sociedades
orientais e pré-colombiana antecede de muito o aparecimento da burocracia funcional
da indústria moderna, confirmando o aforismo hegeliano de que a substância do
Estado é a realização do interesse universal enquanto tal (da burocracia) (Tragtenberg,
1985, p. 44).
O autor, nessa formulação, assim como em outros momentos, elegeu a
categoria burocracia como sendo a peça fundamental para se analisar a sociedade,
seja esta sociedade pré-colombiana, seja capitalista, ou qualquer outra. Esta análise
de Tragtenberg é muito parecida com a visão idealista da história.
Nessa última passagem está ausente que o interesse universal ocorre somente
na aparência. Um pouco à frente ele completa:
o Estado aparece como triunfo da razão hegeliana, onde a maturidade política é
conquistada por mediação da burocracia, que introduz a unidade, na diversidade da
sociedade civil. O Estado como burocracia acabada gera a sociedade civil, o regresso
de Marx a Hegel (Tragtenberg, 1985, p.44).
A sociedade civil representa não só o conjunto da sociabilidade burguesa
(capitalista), mas também a base material da sociedade. Tragtenberg faz uma
afirmação às avessas quando diz que o Estado como burocracia acabada gera
a sociedade civil, pois somente por meio de um posicionamento idealista esta
afirmação poderia sustentar-se, sendo, então, oposta à concepção materialista de
Marx. Em A ideologia alemã, Marx e Engels pontuam algumas destas inversões
dos idealistas.
Essa concepção (materialista) da história assenta, portanto, no desenvolvimento do
processo real da produção, partindo logo da produção material da vida imediata, e na
concepção da forma de intercâmbio intimamente ligada a esse modo de produção e
por ele produzida, ou seja, a sociedade civil nos seus diversos estágios, como base de
toda a história, e bem assim na representação da sua ação como Estado, explicando a
partir dela todos os diferentes produtos teóricos e formas da consciência – a religião,
a filosofia, moral etc. etc. – e estudando a partir destas o seu nascimento; desse modo,
naturalmente, a coisa pode também ser apresentada na sua totalidade (e por isso a
ação recíproca dessas diferentes facetas umas sobre as outras). Ao contrário da visão
idealista da história, não tem de procurar em todos os períodos uma categoria, pois
permanece constantemente no solo histórico; não explica a práxis a partir da ideia,
explica as formações da ideia a partir das práxis material, e chega, em consequência
disso, ao resultado de que todas as formas e produtos da consciência podem ser
resolvidos, não pela crítica espiritual, pela dissolução na “Consciência de Si” ou pela

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Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução
ao problema 269

transformação em “fantasmas”, “espectros”, “visões” etc., mas apenas pela subversão


prática das relações sociais reais de que derivam essas fantasias idealistas (...) (Marx
e Engels, 2009, p. 57-58).
Grosso modo, observa-se que aqueles posicionamentos de Tragtenberg fazem
com que o autor se distancie do objetivo de Marx em revelar a relação fundamental
entre capital e trabalho. Dessa forma, Tragtenberg acaba realizando uma análise
da sociedade partindo de um fenômeno superestrutural, a burocracia – ao menos
em sua forma estatal.
Como foi dito por Meneghetti (2009, p. 85), “a concepção de Tragtenberg
em relação à burocracia é essencialmente weberiana”. Esta concepção permite
muito facilmente a transição entre Estado, empresa capitalista e outras formas de
organizações. A categoria burocracia em Tragtenberg também é de cunho weberiano
e de amplo sentido, que comporta em seu interior várias relações distintas, sem
mostrar, porém, suas diferenças. Esta categoria, segundo Paço-Cunha, não expressa
(...) se as relações são de geração de valor de uso ou de prestação de serviço ao Estado,
se são de geração de valor de troca e, portanto, de exploração do trabalho estranho
ou de promoção dos interesses de classe como sindicatos, etc. Sob tal categoria,
portanto, desaparecem as determinidades formais da empresa capitalista, do partido,
do Estado etc. (Paço-Cunha, 2010b, p. 9).
Percebe-se então que o grande problema da burocracia, do ponto de vista
weberiano, é que ela serve para descrever vários tipos de organizações, sem que o autor
pontue as abissais diferenças entre Estado e empresa capitalista, por exemplo, no que
tange às relações de fundamento, às contradições sociais e, igualmente, ao relacionamento
recíproco entre estas esferas ou complexos (político e econômico). Diante disso,
Tragtenberg acaba por seguir a obliteração da relação-capital que se pode encontrar em
Weber, descrevendo apenas as formas mistificadas com que se apresentam as relações
sociais, inclusive a de valorização do capital pelo trabalho. Podem-se encontrar as raízes
para tal mistificação na opção de Tragtenberg pelo uso da metodologia semelhante
à de Weber, ou seja, não embasada na materialidade sustentada por Marx, como se
verá a seguir, ao analisar-se a metodologia de Tragtenberg.

3 METODOLOGIA DE MAURÍCIO TRAGTENBERG


Tem-se um grande impasse no que diz respeito ao método da pesquisa de Maurício
Tragtenberg. Entre os próprios estudiosos de Tragtenberg não há um consenso
sobre suas posições, porque este transita entre várias vertentes.
(...) mas o próprio Maurício se define como um marxista anarquizante (Tragtenberg,
1991). Declara que aceita as teses econômico-sociais de Marx, mas se opõe ao
marxismo-leninismo-stanilismo-trotskismo que gerou o fetichismo do partido político
e da representação parlamentar e, na opinião dele, é responsável pelo fracasso das

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270 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil

experiências socialistas. Defende que o anarquismo tem uma contribuição importante


no nível das superestruturas, na análise dos movimentos sociais, na questão da luta
contra a burocracia e na defesa da liberdade como valor. (...) Por outro lado, a análise
da obra de Tragtenberg permite situá-lo entre os anarco-marxistas, que também são
denominados marxistas libertários, socialistas libertários, comunistas libertários,
comunistas conselhistas ou marxistas autogestionários (Paes de Paula, 2008, p. 953).
Em virtude desse posicionamento metodológico complacente com várias
correntes – não só o estudo de Marx por meio das obras dele mesmo –, o autor acaba
inserindo em sua obra uma abordagem, muitas vezes, afastada da de Marx, fazendo
com que ele se distancie do objetivo marxiano de desvelar a relação contraditória
entre capital e trabalho. Esta questão das vertentes do marxismo e os problemas
metodológicos advindos de posicionamentos diferentes ao marxismo “ortodoxo”
foram abordados por Lukács em História e consciência de classe, quando ele afirma:
Suponhamos, pois, mesmo sem admitir, que a investigação contemporânea tenha
provado a inexatidão prática de cada afirmação de Marx. Um marxista “ortodoxo” sério
poderia reconhecer incondicionalmente todos esses novos resultados, rejeitar todas
as teses particulares de Marx, sem, no entanto, ser obrigado, por um único instante,
a renunciar a sua ortodoxia marxista. O marxismo ortodoxo não significa, portanto, um
reconhecimento sem crítica dos resultados da investigação de Marx (...). Em matéria
de marxismo, a ortodoxia se refere antes e exclusivamente ao método. Ela implica
a convicção científica de que, com o marxismo dialético, foi encontrado o método
de investigação correto, que esse método só pode ser desenvolvido, aperfeiçoado
e aprofundado no sentido dos seus fundadores, mas que todas as tentativas para
superá-los ou “aperfeiçoá-lo” conduziriam somente à banalização, a fazer dele somente
um ecletismo – e tinham necessariamente de conduzir a isso (Lukács, 2003, p. 64).
Sem perder de vista todos os avanços realizados por Tragtenberg, não se
pode deixar de questionar essa articulação metodológica problemática na qual o
autor flerta com posições diretamente contrárias – tenha-se em mente também
Cohn (1979), indicado na introdução deste capítulo. O problema aqui não é a
impossibilidade de uma articulação entre categorias baseadas em metodologias
diferentes. O problema antes de qualquer coisa surge em decorrência da falta de
razoabilidade das abstrações weberianas, incapacitando desta maneira qualquer
tentativa de alargamento das discussões.
Em sua análise, Tragtenberg atribui à burocracia o papel unificador da
sociedade civil com o Estado.
A burocracia age antiteticamente: de um lado responde à sociedade de massas e convida
a participação de todos, de outro, com sua hierarquia, monocracia, formalismo e
opressão afirma a alienação de todos, torna-se jesuítica (secreta), defende-se pelo
sigilo administrativo, pela coação econômica, pela representação política. (…) Em
suma, ela une a sociedade civil ao Estado, efetua a viagem de volta de Marx a Hegel,

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Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução
ao problema 271

converte sua razão histórica na razão na história, do contingente passa à essencialidade


(Tragtenberg, 1985, p. 190)
Nessa passagem, Tragtenberg faz uma análise isolando a sociedade civil do
Estado, separa as duas categorias, expressando corretamente um fato concreto.
O autor buscou, porém, uma maneira de amalgamar sociedade civil e Estado por meio
de uma solução silogística ao estilo hegeliano, pois a mediação capaz de unir esta e
aquela categoria é, na opinião de Tragtenberg, a burocracia. Esta solução, no entanto,
é problemática, uma vez que o Estado, na forma de sua burocracia, não pode
mediar sua própria relação. De tal maneira, a burocracia não configura um termo
médio, uma particularidade entre a singularidade (sociedade civil) e a universalidade
(Estado), desconsiderando, ainda, o fato de o último ser um falso universal.
Do ponto de vista marxiano, o Estado é fruto das relações sociais, sendo de
vital importância partir-se das relações fundamentais para então compreender o
Estado. Algumas linhas depois, Tragtenberg afirma que a análise da burocracia
enquanto dominação foi iniciada por Marx em O 18 de brumário de Luís Bonaparte.
Por realizar uma análise condescendente com o ponto de vista weberiano de burocracia,
parece haver aqui uma imputação a Marx de um posicionamento weberiano sobre
burocracia. Dominação é algo certamente presente nas análises de Marx neste livro,
mas o que fornece substância a ela é a luta de classes. Apenas deste ponto de partida,
isto é, das relações materiais e da luta de classes, apreender-se-ia a burocracia como
uma falsa mediação. A burocracia, assim como o Estado enquanto complexo que
a comporta, não é senão produto das contradições sociais e, em última instância,
funciona na direção de preservar e reproduzir o domínio da classe do capital.
Tragtenberg não aponta ao certo a passagem de O 18 de brumário de Luís
Bonaparte na qual Marx realiza a referida análise. Sendo assim, extraiu-se desta
obra a passagem que mais se aproxima de tal afirmação:
(...) sob a monarquia absoluta, durante a primeira Revolução, sob Napoleão, a burocracia
era apenas o meio de preparar o domínio de classe da burguesia. Sob a restauração, sob
Luís Filipe, sob a república parlamentar, era o instrumento da classe dominante, por
muito que lutasse por estabelecer seu próprio domínio (Marx, 1978, p. 114).
A burocracia enquanto instrumento de dominação, aludida por Marx, refere-se
ao fato de a “estrutura do Estado” (Marx, 1978, p. 114) ser o instrumento usado
pela classe burguesa para, mediante o seu controle, preparar e posteriormente
manter o domínio da sociedade (ser a classe dominante) na França daquele período.
Trata-se de algo que se afasta de uma determinação conceitualmente geral, como
se encontra em Weber, cuja análise da burocracia como dominação não se vincula
ao antagonismo fundamental, mas, ao contrário, é identificada por toda a história.
A burocracia para Marx, enquanto categoria do real, não engloba uma
infinidade de organizações, mas remete sempre à estrutura do Estado, como fica

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272 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil

nítido na seguinte passagem: “Além da hipoteca que lhe é imposta pelo capital,
a pequena propriedade está ainda sobrecarregada de impostos. Os impostos
são a fonte de vida da burocracia, do exército, dos padres e da corte, em suma, de
toda a máquina do Poder Executivo” (Marx, 1978, p. 120).
O conceito de burocracia por uma ótica weberiana, ao contrário do
posicionamento marxiano, tem a capacidade de englobar não só toda a máquina
do Poder Executivo, mas também qualquer “organização” que valorize capital ou
não, em um só conceito (com escolas, sindicatos etc.). A teoria da dominação
burocrática de Weber é descrita pelo próprio Tragtenberg da seguinte forma:
Weber distingue no conceito de política duas acepções, uma geral e outra restrita.
No sentido mais amplo, política é entendida por ele como “qualquer tipo de liderança
independente em ação”. No sentido restrito, política seria liderança de um tipo de
associação específica; em outras palavras, tratar-se-ia da liderança do Estado. Este,
por sua vez, é defendido por Weber como “uma comunidade humana que pretende o
monopólio do uso legítimo da força física dentro de determinado território”. Definidos
esses conceitos básicos, Weber é conduzido a desdobrar a natureza dos elementos essenciais
que constituem o Estado e assim chega ao conceito de autoridade e de legitimidade.
Para que um Estado exista, diz Weber, é necessário que um conjunto de pessoas
(toda a sua população) obedeça à autoridade alegada pelos detentores do poder no referido
Estado. Por outro lado, para que os dominados obedeçam é necessário que os detentores
do poder possuam uma autoridade reconhecida como legítima. (…) A autoridade pode
ser distinguida segundo três tipos básicos: a racional-legal, a tradicional e a carismática.
Esses três tipos de autoridade correspondem a três tipos de legitimidade: a racional,
a puramente afetiva e a utilitarista. O tipo racional-legal [dominação burocrática] tem
como fundamento a dominação em virtude da crença na validade do estatuto legal
e da competência funcional, baseada, por sua vez, em regras racionalmente criadas.
A autoridade desse tipo mantém-se, assim, segundo uma ordem impessoal e universalista,
e os limites de seus poderes são determinados pelas esferas de competência, defendidas
pela própria ordem. Quando a autoridade racional-legal envolve um corpo administrativo
organizado, toma a forma de estrutura burocrática (Tragtenberg, 1997, p. 14).
Após essa passagem mais longa, nota-se que a dominação burocrática (teoria
weberiana) traz à baila essencialmente um caráter mistificador da relação-capital, pois
oculta as relações fundamentais na qual esta própria categoria é erigida. Isto ocorre devido
a um desenvolvimento metodológico que não leva em conta o inter-relacionamento
estrutural fundamental entre o capital e o trabalho, obliterando dessa maneira os
fenômenos infraestruturais, que edificam os fenômenos da superestrutura.
O objetivo de Marx em O 18 de brumário de Luís Bonaparte não era descrever
esse tipo de dominação burocrática, mas explicitar as lutas de classe na França, a
verdadeira força motriz da luta política. A burocracia do Estado foi apenas uma
das ferramentas – pense-se também no exército, nos impostos, nos juristas etc. –

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Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução
ao problema 273

apresentadas por Marx, que foram utilizadas pela classe burguesa para que ocorresse
a dominação de uma classe sobre as outras naquele determinado período.
Esse posicionamento eclético de Tragtenberg fez com que o autor empregasse
uma metodologia com traços das teorias de Marx e Weber. Na análise da burocracia,
o autor apresenta um posicionamento mais próximo de Weber que de Marx,
contribuindo com a apreciação de Cohn (1979), exposta na introdução deste texto.
Por essa proximidade de Tragtenberg com as teorias de Max Weber, o autor
acabou por analisar Marx por um ponto de vista weberiano, em uma clara tentativa
de aproximação das obras destes dois autores.

4 ANALISANDO MARX POR UMA ÓTICA WEBERIANA


Na obra Burocracia e ideologia, Tragtenberg faz algumas afirmações que comportam
um grande complexo de problemas, apresentando Marx muitas vezes por uma ótica
weberiana, imputando posicionamentos que Marx não teve e em outros momentos
lamentando por algo que ele não se propôs a fazer. Estas cobranças em alguns casos
expressam um posicionamento diretamente contrário à própria elaboração de Marx.
Em uma passagem de seu livro, Tragtenberg afirma:
Karl Marx fornece uma visão sociológica finalista, que perpassa seu pensamento no
nível de modelos macrossociais, surgindo como reação ao desafio da revolução inglesa,
onde a divisão manufatureira do trabalho como combinação de ofícios independentes,
implica a concentração do processo produtivo, criando estruturas reificadoras do
homem. Ao lado da importância atribuída à fábrica como instituição decisiva da
sociedade industrial, Karl Marx incidentalmente aborda o processo de burocratização
da empresa, a patologia industrial, sem, porém, desenvolver sistematicamente uma
teoria da organização formal (Tragtenberg, 1985, p. 69).
Primeiramente, cabe perguntar o que seria essa visão sociológica finalista. Pode-se
apenas levantar hipóteses sobre o real sentido dela. Nesse caso, a visão sociológica finalista
parece assumir o sentido de uma teleologia presente na história, como em Hegel, algo
que certamente se difere por completo do pensamento marxiano. Entretanto, se é que
o pensamento marxiano é redutível à sociologia, deve-se considerar que se trata muito
mais de uma razão interessada e, por isso mesmo, revolucionária; algo mais autêntico
que o que o termo finalista possa expressar.
O segundo ponto a ser destacado na citação é a afirmação de Tragtenberg
sobre a forma incidental com que Marx abordou o processo de burocratização.
O que Tragtenberg chama de abordagem incidental do processo de burocratização
nada mais é do que a constatação do próprio Marx de que o desenvolvimento da
produção capitalista traz consigo a regimentação do trabalho sob um despotismo
organizado – nem por isso autoritário no sentido corrente –, forma mais civilizada

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274 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil

e refinada de exploração do trabalho, e não um processo de burocratização per se,


como nos moldes weberianos (Paço-Cunha, 2010a, p. 35-36).
Por último, na parte final do citado trecho de Burocracia e ideologia, Maurício
Tragtenberg lamenta que Marx não tenha desenvolvido uma teoria da organização
formal, apresentando assim uma cobrança indevida. Sobre esta cobrança a Marx,
Paço-Cunha argumenta:
[Marx] não desenvolve [uma teoria da organização] precisamente porque não poderia
ter feito jamais, como também não poderia nunca ter falado de organização, já que
organização formal, burocrática, instância de controle são categorias que guardam
um único e mesmo registro, isto é, o weberiano, e do ponto de vista do padrão de
cientificidade que Marx mesmo alcançou tais categorias eliminam as diferenças
específicas e apagam, portanto, a particularidade das relações sobre as quais Marx se
debruçou (Paço-Cunha, 2010b, p. 14).
Talvez em um esforço de aproximação entre Marx e Weber, Tragtenberg tenha,
por esse motivo, avaliado o primeiro pelas realizações teóricas do segundo, sem
questionar a validade desta operação em si ou as próprias problemáticas inerentes a
uma teoria das organizações formais que, como indicado anteriormente, traz consigo
a obliteração da relação-capital, das contradições efetivamente existentes. O que é
preciso ter em mente é que em nenhum momento Marx se propôs a teorizar sobre
as organizações formais, até mesmo porque quem desenvolveu esta teoria foi Weber,
décadas depois.
No interior de Burocracia e ideologia, percebe-se um forte esforço de seu autor
em tentar articular os estudos de Weber com os de Marx. Ainda na introdução de
sua obra, Tragtenberg propõe indicar quais os limites e as ambições da explicação
weberiana. Apresenta várias críticas sólidas em direção à metodologia desenvolvida
por Weber, apontando algumas das arbitrariedades e das limitações de sua sociologia.
Nesse esforço de articulação metodológica, Tragtenberg afirma:
O importante é a possibilidade de despertar do sono dogmático, pensar e refletir
criticamente com Weber e não polemizar contra Weber, sem subterfúgios,
escamoteações dos problemas centrais, penetrando na reflexão efetiva para superar em
Weber as limitações do tempo e contexto social em que se situa a sua obra; discuti-la
sem compromissos ideológicos que impliquem o sacrifício do intelecto com o respeito
que uma obra do porte que ele nos legou implica (Tragtenberg, 1985, p. 156-157).
Quando Tragtenberg expõe que o importante é pensar e refletir criticamente
com Weber e não polemizar com Weber, o autor, direta ou indiretamente, condena
os críticos de Weber que por muitas razões – algumas explicitadas até mesmo por
Tragtenberg – não consideram ser possível a articulação das categorias de origem
weberiana com o marxismo. Na passagem supracitada, não há um esforço para
uma possível articulação entre categorias advindas de metodologias diferentes,

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Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução
ao problema 275

mas um esforço para a continuação do legado weberiano, mesmo com todas as


limitações de sua sociologia.
A teoria weberiana caminha na direção contrária no que se refere à busca de
expressar a relação-capital. A crítica, por exemplo, de Mészáros (2008) e outros
autores a Weber surgem não por uma falta de esforço por parte destes, ou de um
dogmatismo tacanho, mas pela impossibilidade real de uma articulação válida
entre o weberianismo e Marx.
Devido à esquiva dos problemas materiais, István Mészáros (2008), por exemplo,
apontou tanto quanto foi possível a radical ausência do relacionamento estrutural
entre capital e trabalho no conjunto da obra de Weber, relacionamento este que
encontra lugar central no projeto marxiano em revelar a lógica da coisa, isto é, da
forma particular da produção na qual nos encontramos (Paço-Cunha, 2011a, p. 5).
O esforço de articulação categorial entre Marx e Weber, realizado por
Tragtenberg, acabou criando neste um posicionamento mais complacente com
as teorias de Weber. Isto fez com que Tragtenberg deixasse de explicitar as abissais
diferenças entre, por exemplo, a categoria burocracia de Weber e a burocracia
advinda dos estudos de Marx que alude a esta categoria somente no âmbito do
Estado e sua derivação a partir das contradições sociais fundamentais. Não é
pelo motivo de Hegel, Marx e Weber terem tratado da categoria burocracia que
uma tenha de ser sinônimo da outra. Antes, deve ser levado em conta o contexto
histórico e metodológico em que essa categoria foi erigida. Caso contrário, esta
articulação da burocracia como uma categoria que expresse relações reais terá
dificuldades em expressar as coisas enquanto tais, isto é, em expressar a lógica
própria da processualidade efetiva da sociabilidade presente.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra Burocracia e ideologia de Maurício Tragtenberg é ainda hoje de fundamental
importância para estudiosos de várias áreas, principalmente as ciências sociais.
Trata-se de um livro produzido por uma análise crítica do autor, sobretudo em
relação às teorias da administração, que, segundo ele, refletem os interesses das
classes dominantes, assumindo assim um caráter ideológico. A importância da
obra ganha destaque ainda ao lembrar que o autor produziu grande parte de seus
escritos durante o período da Ditadura Militar do Brasil, o que sem dúvidas é mais
um mérito para Tragtenberg, devido ao conteúdo de suas análises e críticas sociais,
realizadas em um momento de grande censura e perseguições políticas.
Não obstante todos os seus méritos e avanços, Tragtenberg faz análises e
afirmações limitadoras quanto à potencialidade de construção de uma explicação
do real que coloque na pauta das discussões a emancipação humana – em seu

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276 Cátedras para o Desenvolvimento – patronos do Brasil

sentido radical. Nesta pesquisa, buscou-se indicar alguns destes pontos, focalizando
principalmente a categoria burocracia.
Apontou-se que a análise de Tragtenberg em relação à burocracia apresenta um
caráter essencialmente weberiano (Meneghetti, 2009). A partir disso, advertiu-se que
o conceito weberiano de burocracia guarda em seu interior a obliteração das relações
fundamentais entre capital e trabalho, sendo este pensamento diametralmente
oposto ao de Marx no sentido ontoepistêmico, razão pela qual são problemáticas
algumas considerações realizadas por Tragtenberg.
Não foi objetivo deste capítulo negar a validade da categoria burocracia, mas
apenas pontuar as especificidades desta no pensamento de Tragtenberg. Em vários
momentos de sua obra, Tragtenberg parece retirar de cena o relacionamento entre
capital e trabalho, e o processo de valorização do primeiro pelo segundo, assim
como Weber. Em vez disso, o autor traz à baila a luta entre as burocracias das
empresas privadas e a pública, e o problema da burocratização como empecilho
para a unidade de classe. O grande problema deste posicionamento é que ele desloca
as bases materiais da produção capitalista sobre a qual a sociedade se encontra
assentada e em seu lugar elege conceitos que não partem destas próprias relações.
As bases materiais, na concepção marxiana, são o que fundamenta as lutas no
seio do Estado. A luta contra a crescente burocratização e a luta entre burocracias
representam apenas a superficialidade das relações fundamentais. Por estas relações
(infraestruturais) não apresentarem um caráter imutável, assim também as
relações superestruturais não podem ser consideradas imutáveis ou insuperáveis,
como fazem crer alguns teóricos que analisam a sociedade de cima para baixo.
Tais análises contribuem com uma miopia teórica e prática que não consegue
revolucionar a sociedade, mas no máximo proporcionar alguns ganhos sociais, os
quais são ameaçados logo que uma nova crise se aproxima.
Percebe-se, também, uma tentativa de aproximação entre a teoria de Marx e
a de Weber (webero-marxismo) no interior da obra de Tragtenberg. Assinalou-se
este esforço por parte de seu autor e, posteriormente, pontuaram-se os equívocos
deste posicionamento, que acaba realizando uma leitura de Marx por uma ótica
weberiana e, assim, imputando a Marx um posicionamento que é contrário a ele
mesmo.
Outro ponto a ser precisado na obra de Tragtenberg decorre do seu
posicionamento metodológico complacente com várias vertentes das ciências
sociais. Não que esta postura tenha sido feita de forma tacanha, mas foi um dos
motivos que levaram Tragtenberg a realisar uma análise da categoria burocracia em
Hegel, Marx e Weber, sem que o autor apontasse as limitações dos desdobramentos
explicativos decorrentes das abissais diferenças que existem entre elas. Em seu estudo,
Tragtenberg indica, não extensivamente, as limitações da categoria burocracia em

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Maurício Tragtenberg e a Apropriação Heterodoxa de Marx: uma introdução
ao problema 277

cada autor. Entretanto, não leva em consideração que estes conceitos – e categorias,
no caso de Marx – surgiram de diferentes metodologias e por isso apresentam
em seu interior diferentes anseios por parte destes autores. Não podem, assim,
ser complementares sem uma problematização inteiramente dedicada à questão.
Em suma, levanta-se neste capítulo uma discussão relativa a como Tragtenberg
apreende Marx e o expõe em uma de suas obras mais conhecidas. Tratou-se de
uma discussão introdutória que deseja fomentar o debate sobre a atualidade do
pensamento de Tragtenberg, problematizando, sobretudo, os pontos nos quais
deve-se avançar a partir dele. Este movimento reflexivo, como postularia o próprio
Tragtenberg, faz-se necessário, uma vez que a teoria é uma construção sócio-histórica
e, em especial, o referido livro tem sido a chave para o caminho de uma crítica à
teorização no campo da administração.

REFERÊNCIAS
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CÁTEDRAS PARA O DESENVOLVIMENTO: AS CONTRIBUIÇÕES
TEÓRICAS E PRÁTICAS DE MAURÍCIO TRAGTENBERG E RUY MAURO
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