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 ngelo D el V ecchio
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S ueli M ara S oares P into F erreira
W altercio Z anvettor
Coordenação Editorial
R od rig o E stramanho de A lmeida
ATITUDES RACIAIS
DE PRETOS E MULATOS
EM SÃO PAULO
V irgínia L eone B icudo
ED IÇÃO O R G A N IZA D A POR
Direitos Reservados à
Editora Sociologia e Política
Rua General Jardim, 522 - Vila Buarque
01223-010 - São Paulo - SP - Brasil
Tel. Fax 0 55 11 3123-7800
www.fespsp.org.br - editora@fespsp.org.br
9
PR EFÁ CIO
12
nais, e ainda a afirmação o/ou conquista de um espaço cultural,
O terceiro passo supõe um duplo movimento, que com preende
os diferentes com ponentes da sociedade envolvente e o(s)
grupo(s) minoritário(s): trata-se da acom odação. Quando nao
consegue a realização deste objetivo, resta ao “grupo de fora"
abrir mão da maior parte de suas características diferenciado
ras e assumir a assimilação. No sentido que Park lhe confere,
assimilação é o processo de interpenetração e fusão pelo qual
indivíduos ou grupos adquirem lembranças, sentimentos e all
tudes de outras pessoas ou outros grupos e partilham de sua
experiência e história, integrando-se a estes numa vida cultural
comum (PARK; BURGUESS, 1921).
A visão de Park sobre a sociologia com o a ciência do
com portam ento coletivo permite que conceba atitude com o
o modo de percepção de pessoas ou objetos, elem ento da
personalidade que não se confunde com as idéias de valor
ou ação. O conceito pôde ser usado por ele com o estratégia
para refletir sobre as transform ações sociais, mas, ao mesmo
tempo, se traduz em posição de certo modo ambígua quando
referida à mudança e ao m odo com o as pessoas poderíam
provocá-las. De um lado, conflito e acom odação sucediam-se,
e essa alternância teria a com unicação com o instrumento, pos
sibilitando o equilíbrio nas diferentes situações em que ambos
aparecem. D e outro, atribuía ao indivíduo a quase impossi
bilidade de conhecim ento do outro (a tese de B lin d n ess, de
William Jam es), o que faz avançar a análise e também a limil;i
na direção de com preender com o as pessoas foram configura
das segundo as im posições dos conflitos grupais. Em outros
termos, a tensão reside na dupla face apresentada pelas so
ciedades humanas: um aspecto é explicitado através dos con
flitos entre indivíduos e grupos independentes pelo domínio
econôm ico, social, territorial; o outro mostra os elem entos de
sua sustentação — consenso, solidariedade e objetivos sim
bolicam ente com partilhados.3
Dessa posição decorre a conotação conferida à mudança
social. Chamo a atenção do leitor para a noção operada por
Virgínia Leone Bicudo, que lembra: “Consoante as observações
de Robert E. Park, as mudanças sociais com eçam com as mu
danças nas atitudes condicionadas pelos indivíduos, operando-
se posteriormente mudanças nas instituições e nos mores” (B I
CUDO, 1945, p. 2; ver, neste volume, p. 64).
Fisher e Strauss, em seu estudo sobre o interacionismo, m os
tram com o essa concepção de passagem automática entre in
divíduo e instituições configura a visão de Robert Park da so
ciedade com o autorreguladora. Park podia ver o influxo de
sulistas, de negros rurais para as cidades do Norte com o causa
inevitável de conflito racial, sem tratar esses choques com o
oportunidades de pressionar pelos programas de integração
racial. Os processos básicos de mudança social estavam além
da legislação. As pessoas resolveríam os problemas básicos de
conflito e acom odação muito melhor do que a legislação pouco
realista (FISHER; STRAUSS, 1980, p. 609).
Retomando o que foi dito antes, marginalidade, para Park, é
um traço da personalidade. Apresenta-se com o um fenôm eno
psicológico individual resultante de tensões e conflitos decor
rentes de elem entos antagônicos provenientes de culturas diver
sas incorporados pelo indivíduo em uma situação de mudança
social (PARK, 1928). As críticas que têm sido feitas a essa con
cepção são conhecidas, o que me poupa da retomada de seu
exame. Lembro apenas um aspecto importante presente nessas
críticas: o enfoque no indivíduo ressalta apenas as consequên-
3 Ver a análise sobre Park de Coser (1971).
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cias de uma situação social que condiciona a marginalidade. Em
outros termos, as condições sociais que geram a marginalidade
ficam intocadas numa reflexão que toma a direção psicológico-
cultural. Além disso, sem o estudo da situação social que gera
a marginalidade, fica comprometida a análise sobre as possibi
lidades da com petição em uma situação de igualdade.
Volto agora ao trabalho de Virgínia Leone Bicudo. Seguindo
a reflexão das ciências sociais da época, que associam mu
dança social ao processo de integração dos grupos na socie
dade envolvente, conform e procurei apontar anteriormente, as
discussões sobre a igualdade de condições para o exercício
da com petição estão ausentes dos objetivos de sua tese. No
entanto, apesar desse problema não constar do protocolo da
pesquisa, sua profunda intuição sobre a situação social do ne
gro permite a emergência, através das histórias de vida e tam
bém do estudo da “Associação de Negros”, do ponto central da
questão, a qual só mais tarde entrará no debate da sociologia
brasileira sobre a questão racial.
A autora opera com a questão da identidade, mostrando
como esta se expressa em atitudes e mesmo na organização
da ação individual. Para o desenvolvimento dessa temática, es
tuda dois grupos — negros e mulatos — , subdivididos segundo
sua classe social, utilizando para essa classificação a condição
econôm ica, a profissão e o nível de instrução dos entrevistados.
Nos relatos, atitudes e expressões sobre a ação individual se
entrelaçam. As histórias de vida mostram os contatos primários.
A descrição da “Associação de Negros Brasileiros” e passagens
do mensário “Os Descendentes de Palmares” dão a dimensão
das possibilidades da ação coletiva, tanto em direção da as
similação “dos grupos de cor à população branca”, quanto da
denúncia da discriminação.
Aspecto crucial da form ulação dessa identidade — o pro
cesso de socialização — é reconstruído através das históri
as de vida, estas mais aprofundadas nos casos dos negros
pertencentes às classes sociais intermediárias. A situação de
contato ou não com brancos durante a infância é lembrada,
sem a análise direta da construção do s e lf decorrente dessas
relações. Mas, novam ente, a sensibilidade da autora, via en
trevistas, abre uma brecha para a visualização de novas pers
pectivas abertas à análise: a) a percepção tardia, por grande
parte dos negros da existência da discrim inação; b) os claros
limites no desenvolvim ento dos papéis sociais, econôm ico-
prohssionais e culturais, que não alcançam correspondência
entre si; c) o isolam ento autoim posto por negros e mulatos
que alcançaram ascensão social; d) o conflito existente entre
a ação na direção da integração-assim ilação e a aceitação da
situação racial.
Um entrevistado, criado por brancos na casa de quem sua
mãe trabalhava com o doméstica, aponta para o fato de que
essas relações mascaram a situação de discriminação racial
presente na sociedade. Sentia-se tratado “com o igual” no seio
da família; contudo, lembra: “Mas o vigário me advertia sem
pre: ‘Lembre-se que você não é igual a eles.’ Eu, porém, não
com preendia o sentido daquelas palavras. Somente muito mais
tarde as entendi” (ver, neste volume, p. 74).
Outro, profissional liberal, recorda a infância pobre, cerca
da de restrições e de sua descoberta da existência do precon
ceito racial, primeiramente por m eio de um quadro na igreja,
que representava um santo branco pisando na cabeça de um
satanás negro. Depois, aos 7 anos de idade, lendo um livro,
“onde uma figura representava os anjos bons e os maus. Havia
me despertado a atenção o fato de os anjos escurecerem à me-
ló
dida que se tornavam maus. Com tristeza, eu identifiquei a cor
preta ao m al.” (ver, neste volume, p. 80).
A consciência da separação entre os papéis profissionais e
os sociais aparece em inúmeros relatos. A do ch efe’negro, que
recebe um convite de formatura de seu subordinado branco e
ouve o com entário deste no dia seguinte: “Ontem minha irma
ficou preocupada vendo-me convidá-lo para a festa de forma
tura e me censurou. Tranquilizei-a imediatamente, dizendo- IIu*
que o havia convidado porque sabia que o senhor não iria."
(ver, neste volume, p. 73). Ou ainda: “Há tempos, fui homc
nageado com um alm oço pelos meus amigos brancos, listes
procuraram o Hotel d’Oeste para a homenagem, mas, quando
o gerente soube que o alm oço seria oferecido a um preto, em
bora me conhecesse, recusou aceitar a encom enda” (ver, neste
volume, p. 76).
O isolamento social autoimposto por negros e mulatos surge
em várias narrativas. Como na do entrevistado que conta sei
sempre convidado por um amigo íntimo branco às festas em
sua casa, “às quais não com pareço. No dia seguinte, sempre me
telefona, indagando por que não compareci. Houve uma festa
de formatura no Esplanada, convidou-me e não fui, mas noto
que, não sendo em sua casa, ele até hoje não reclamou por eu
não ter ido” (ver, neste volume, p. 7). Ou na do dentista que
diz: “Quanto mais minha consciência se foi esclarecendo, tanto
mais fui me afastando dos meios de recreação. Nesses ambi
entes não me sinto bem ” (ver, neste volume, p. 92).
O conflito entre a “necessidade de assimilação” e a consciên
cia de existência da discriminação aparece em várias falas. São
expressivas desse conflito as palavras da funcionária pública
mulata que, de um lado, sente a dor da discriminação e, de
outro, evita o enfrentamento do problema, buscando “integrar
17
se”. No início da entrevista, diz: “A cor motiva grande com plexo
de inferioridade: a gente se sente inferior ao branco, feia, di
ferente, e muitas vezes tem vergonha de si m esm a” (ver, neste
volume, p. 110). Mais adiante, afirma: “Não seria capaz de amar
um preto ou um mulato, mas, desde que não se percebam
traços de ascendência preta, eu me casaria com uma tal pessoa.
O que importa é a aparência” (ver, neste volume, p. 111).
Ou ainda as afirmações da mulata — casada com um branco
— que reconhece a existência do preconceito de cor manifesto
de várias maneiras: “Uns demonstram o preconceito com b e
nevolência exagerada e outros com muito desprezo. Naturali
dade ou igualdade no trato do branco para as pessoas de cor
não h á” (ver, neste volume, p. 111). E, no decorrer da conversa,
mostra ambiguidade de sentimentos: “Não tenho experiências
pessoais desagradáveis, porque fugi muito do negro, e, com o
mulata, procurei me assemelhar ao branco” (ver, neste volume,
p. 112). Logo a seguir, afirma constatar o aborrecimento do
marido “por eu ser de cor [...] demonstra pena ou vergonha
quando observa algum traço físico nos filhos. Estes ressenti
mentos dele me ofendem, e nos põem em conflito” (ver, neste
volume, p. 112).
Embora quase sempre velada, a denúncia de uma socie
dade cruel — que, ao m esm o tem po, através dos com por
tam entos e ações, afirma a inferioridade racial e nega essa
afirmação — coloca, para alguns entrevistados, a necessidade
de interiorizar, de algum m odo, a dignidade que lhes é tantas
vezes negada. Por exem plo, um dos entrevistados lem bra, de
passagem , a longa história das sofisticadas civilizações afri
canas, em bora não as articulasse à sua difusão entre os bran
cos europeus. Outro inveja a situação dos negros nos Estados
Unidos, por viverem uma clara situação de desigualdade que
18
/
lhes permite forte coesão social, a qual abre espaço a reivin
dicações de direitos.
Às vezes, o silêncio diz muito mais do que as palavras. É
interessante notar que Virgínia não se refere a movimentos so
ciais que denunciem ou lutem contra a situação de exclusão
tantas vezes apontada nas entrevistas existentes no momento
de sua pesquisa.4 Ela se refere a uma “Associação de Negros
Brasileiros” e ao jornal por esta publicado,5 e indica seu iní
cio e seu fim: 1931 e 1937, respectivamente. Portanto, ambos
desapareceram no início do Estado Novo, e a pesquisa feita
pela autora encerrou-se antes do término deste período. A re
pressão exercida sobre os movimentos sociais na época pode
ser considerada com o uma das explicações que levam a que
vários entrevistados afastem a possibilidade de m obilizações
direcionadas contra a discriminação racial.
O quadro de limitação das liberdades característico daquele
momento é de grande importância quando relacionado ao
comportamento individual (veja-se o isolamento que alguns
entrevistados se impõem). Nesse nível, a recusa ao enfrenta-
mento de várias situações sociais que “exporiam ” sua condição
racial caracteriza-se com o estratégia de evitar o conflito, mas
creio que as razões são mais amplas: pode representar, tam
bém, a fuga à dor com que a discriminação, expressa por vários
comportamentos em relação aos negros, os atingiría. A não
admissão clara da discriminação talvez os protegesse naquele
dado momento, mas os afasta da análise do quadro em que
estão inseridos. Afasta-os de perceber o conflito com o cons-
4 Os dados foram coletados entre 1941 e 1945.
5 Ela diz: “Por razões óbvias, o nome da associação e, a seguir, o titulo do seu mensário
são fictícios” (ver, neste volume, nota à p. 122). Graças a uma consulta que fiz a Mário
Augusto Medeiros da Silva, a quem não escapa nem mesmo o mais obscuro boletim da
imprensa negra, pude identificar tanto a associação quanto o jornal. Agradeço muito a ele,
mas respeitarei o desejo da autora, não os divulgando.
19
titutivo da sociedade; e, no caso da discriminação racial, da
reflexão sobre as razões que fundam esse conflito.
Embora a tese da existência de uma democracia racial no
Brasil esteja por trás de várias narrativas dos entrevistados —
e, segundo Pierson (BICUDO, 1945, p. 6 l; ver, neste volume,
p. 156), a mobilidade social do mulato expresse essa situação
— , Virgínia insiste em mostrar, mediante algumas entrevistas, a
presença da consciência da exclusão. Embora extrapolando os
termos por ela usados, eu diria o sentimento da discriminação.
Veja-se, com o ilustração, a expressão “sou doente e sei por
tanto onde me dói” (ver, neste volume, p. 76), usada por um
deles e que coloco com o epígrafe deste prefácio.
A vivência da discriminação como dor lembra-me um conto
de Primo Levi. Ele, que foi sempre consciente das conspirações
contra a continuidade da vida, escreve sobre seu personagem:
Ruminou uma ideia sobre a qual não pensava havia tempos, porque
sofrerá bastante: que não se pode extirpar a dor, nem se deve, pois
ela é nossa guardiã. Frequentemente é uma guardiã estúpida, porque
inflexível, fiel à sua tarefa com uma obstinação maníaca, e nunca se
cansa, ao passo que todas as outras sensações se cansam, se dete
rioram, especialmente as mais prazerosas. Mas não se pode suprimir
a dor, fazê-la calar, porque faz parte da vida, é a sua salvaguarda
(LEVI, 2005, p. 91).
20
J
opera com o um impeditivo à coesão do grupo discriminado.
Ou, ainda, funciona com o obstáculo a movimentos sociais que
denunciem a precariedade da condição do negro na sociedade
brasileira. Sem fazer diretamente uma crítica ao que será pos
teriormente denominado “mito da democracia racial”, a tese de
Virgínia Leone Bicudo, agora publicada com o livro, contribuiu
para o avanço dessa temática e possibilitou novas abordagens
sobre o problema da discriminação racial.
Referências
21
NUCCI, Priscila. Os intelectuais d ia n te do racism o an tin ip ôn íco no
Brasil: textos e silêncios. São Paulo: Annablume, 2010.
22
I
IN TR O D U Ç Ã O : A C O N TR IB U IÇ Ã O
DE V IR G ÍN IA LEO N E BICU D O
A O S ESTU D O S SO B R E A S RELA ÇÕ ES
RA CIA IS N O BRA SIL
23
universo dividido em classes representado por negros, mulatos
e brancos. Este mundo desigual é perm eado por conflitos,
com petição, mobilidade social, busca de status, preconceito de
cor e discriminação racial.
A partir dos ricos depoimentos de homens e mulheres das
camadas populares e médias , Virgínia Bicudo demonstra, lem
brando as reflexões de Dumont (1997, p. 303-316), que no m o
mento em que a percepção hierárquica do mundo cede lugar
ao ideário igualitário, emerge o racismo. Assim, a socióloga
torna evidente a possibilidade do conflito racial em contexto
intelectual em que prevalecia a visão do consenso.
A titu des R a c ia is d e P retos e M u latos em S ão P au lo, junto com
os trabalhos de Oracy Nogueira, apresenta nova reflexão sobre
as relações entre cor/raça e classe social. Evidencia a persistên
cia do preconceito de cor m esm o quando se atenua as dife
renças sociais. O estudo suscita uma visão mais rica e matizada
da produção das ciências sociais desenvolvida por instituições
brasileiras. Sob a direção de Donald Pierson, a Divisão de Es
tudos Pós-Graduados da Escola Livre de Sociologia e Política
produziu um conjunto de pesquisas, a exem plo da investigação
sociológica de Virgínia Bicudo, que permite repensar os estu
dos sobre as relações raciais no Brasil.
A partir das marcas da trajetória de Virgínia Bicudo, considero
que ela concebeu o conflito com o parte constitutiva da vida
social. Os achados sociológicos de sua dissertação de mestrado
contrapõem-se às visões tradicionais acerca da existência de har
monia racial na sociedade brasileira calcada no pressuposto de
que o preconceito de cor estaria subsumido ao de classe. Nesse
sentido, o trabalho pioneiro de Bicudo, ao lado das pesquisas
realizadas por Oracy Nogueira, revelam o protagonismo e a atu
alidade dos estudos sobre as relações raciais no Brasil realizados
24
pela Escola Livre cie Sociologia e Política nos anos 1940 e 1950.
Educadora sanitária, visitadora psiquiátrica, cientista social,
professora universitária, psicanalista, divulgadora científica,
protagonista de diversas iniciativas no plano da institucionaliza
ção da psicanálise no Brasil, eis o mundo diverso em que Virgí
nia transitou. Cabe então conhecerm os um pouco da trajetória
multifacetada de Virgínia Bicudo em período de efervescência
intelectual na ELSP.
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Família d e V irgínia Leone B icudo na casa d a V ila E conom izadora. Da esquerda
para a direita vêem-se as irmãs Lourdes e H elena, a m ãe, Dona Joana, a irmã
C arm em com a boneca, o p a i Sr. Teófilo B icudo, Teófilo Filho e V irg in ia B icudo.
S ão Paulo, 3 d e m arço d e 1 9 2 9 .
A mãe, Joana, foi babá da filha de criação do coronel. Na fazenda, Teófilo e Joana se
casaram. Posteriormente, Teófilo foi estudar em São Paulo, por decisão de Bento Bicudo.
Entrevista de Rosa Zingg, sobrinha de Virgínia Leone Bicudo, a Marcos Chor Maio. São
Paulo, 17/12/2009.
7 Entrevista de Rosa Zingg a Marcos Chor Maio. São Paulo, 17. dez. 2009-
8 A tradicional instituição pública de ensino denominada Escola Modelo Caetano de Cam
pos, situada no bairro da Luz, em São Paulo, foi criada em 1890. Sobre a ideologia das
escolas modelos, ver Carvalho (2002).
26
y
solução.9 Ela foi chamada a lecionar em escola rural de Maran-
cluba (Ubatuba), mas acabou seguindo outro destino, induzida
pelo pai, ao ingressar no Curso de Educadores Sanitários do
Instituto de Higiene de São Paulo.10
Criado em 1925, o Curso de Educadores Sanitários do In
stituto de Higiene estava voltado para professores primários
devido à longa duração do curso de enfermagem e à falta de
profissionais formados nesta área em São Paulo. A partir de
uma visão preventiva, os educadores ministravam conhecim en
tos teóricos e práticos de higiene em escolas e centros de saúde
(FARIA, 2006, p.181). O surgimento do curso coincidiu com
um momento de crescente profissionalização das mulheres das
classes médias urbanas. As políticas educacionais entre as déca
das de 1920 e 1940 foram fundamentais à inserção gradativa das
mulheres no campo profissional e acadêmico. As mudanças no
sistema escolar, associadas às transformações mais amplas -
como a urbanização e a industrialização - contribuíram para a
redefinição dos papéis sociais femininos nos centros urbanos
da época. A expansão progressiva da econom ia impulsionou
as atividades das mulheres para fora do mundo do trabalho
doméstico (AZEVEDO; FERREIRA, 2006, p. 217-220). Desse
modo, a presença das mulheres no curso de educadores san
itários e nos serviços de saúde representou um novo patamar
no universo social feminino (ROCHA, 2005). Ao concluir o
curso de um ano em 1932 e realizar estágio no primeiro se
mestre de 1933, Virgínia Bicudo foi contratada pela diretoria do
Serviço de Saúde Escolar do Departamento de Educação para
9 Esta informação me foi concedida gentilmente pela psicanalista Maria Angela Moretz-
sohn, da Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
10 Entrevista de Rosa Zingg (2009). Lista de alunos da türma de 1932 do Curso de Educa
dores Sanitários. Centro de Memória da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de
São Paulo.
27
T
11 Sobre a presença feminina nos cursos de ciências sociais em São Paulo nos anos 1940 e
1950 ver Anuários da ELSP. Ver também Miceli (1989).
28
J
fonte de conhecim enlo para as incipientes organizações de
planejamento econôm ico e desenvolvimento social (LIMONGI,
1989; SIMÕES, 2009; DEL VECCHIO; DIÉGUEZ, 2009). Sob os
auspícios da ELSP foram realizados estudos sobre o negro; pa
drão de vida e assistência filantrópica na cidade de São Paulo;
enquetes sobre preconceito e atitudes raciais; pesquisas de
opinião pública, imigrantes, condições de trabalho e personali
dade dos operários; higiene mental e psicanálise; experiência
social de doenças; estudos de comunidades rurais; projetos de
desenvolvimento de comunidade, etnologia indígena, etc.12
Para contemplar o amplo e diversificado leque temático de
suas pesquisas, a ELSP, sob ascendência norte-americana, con
tratou sociólogos e antropólogos estrangeiros, tais como: Horace
Davis, Samuel Lowrie, Donald Pierson, Radcliffe-Brown, e rece
beu a visita temporária de outros: Franklin Frazier, Melville Her-
skovits, Charles Wagley (MASSI, 1989). Inspirando-se na Escola
Sociológica de Chicago13, a ELSP adotou perspectiva interdiscipli-
nar como nas relações entre Antropologia, Sociologia e Psicologia
Social. Fez dos problemas urbanos e rurais seus laboratórios.
O bacharelado da ELSP tinha a duração de três anos e, no
período em que Virgínia Bicudo foi aluna da Escola, a grade
curricular era composta das seguintes disciplinas: Biologia
Social, Economia Social, Estatísticas, Introdução à Economia,
Sociologia, Ciência Política, Contabilidade, Economia Interna
cional, Finanças Públicas, História das Doutrinas Econômicas,
Psicoténica, Administração Pública, Contabilidade, Economia
Internacional, Educação Nacional, Finanças Públicas, História
29
Econôm ica do Brasil e Psicologia Social. Em 1938, Bicudo ba
charelou-se em Ciências Sociais e Políticas sendo a única mu
lher formada numa turma de 8 alunos.
Neste período, Virgínia Bicudo conheceu o m édico e psi
canalista Durval Marcondes, que atuava no Serviço de Saúde
Escolar desde meados da década de 1920 e foi professor da
disciplina Higiene Mental para o Curso de Educadores Sani
tários a partir de 1937. No ano seguinte, criou o Serviço de
Higiene Mental Escolar (SHME) da Secretaria de Educação do
Estado de São Paulo, ocasião em que Virgínia Bicudo tornou-se
visitadora psiquiátrica. O SHME funcionava por intermédio das
clínicas de orientação infantil, cujas funções eram a prevenção
e o tratamento de problemas psíquicos da criança (BICUDO,
1941). Marcondes e Bicudo tinham outro elo em comum: a psi
canalista alemã e judia Adelheid Koch, refugiada do nazismo.
Ele a conheceu em 1936 e Bicudo tornou-se a primeira mulher
a ser analisada por Koch, a partir de 1937. (BICUDO, 1989;
SAGAWA, 2002). No início da década de 1940, Bicudo passou
a lecionar, junto com Marcondes, as disciplinas Higiene Men
tal e Psicanálise na ELSP. Esta parceria profissional e intelec
tual contribuiu para a transformação da instituição acadêmica
num importante espaço de difusão e de institucionalização dos
“saberes psi” em São Paulo, entre os anos 1930 e 1950.14
30
c iais na ELSP, “imaginando <|iic‘ lá (...) descobriría as causas da
dor c, portanto, o lenitivo" (BICUDO, 1989, p. 95).16 Em alguns
depoimentos17, ela revela que foi alvo de preconceito na infân
cia pelo fato de ser negra, chegando ao dramático relato sobre
um episódio de discriminação racial sofrido pelo pai:
“ Vou contar uma coisa tristíssima da história [de Teófilo Bicudo]. Ele
queria fazer universidade. Na época era Curso Superior. E ele queria
ir para Medicina. Então estava no sexto ano do ginásio. Veja que
homem esforçado, hein? Veio de empregado doméstico que ele era,
depois foi subindo e fez o Ginásio do Estado. E quando terminou o
Ginásio do Estado naquele ano, ele passava direto para Faculdade de
Medicina. Naquele tempo não havia vestibular para Medicina. Termi
nava o ginásio e entrava na Medicina ou em qualquer curso superior.
Então, o professor que chamava Barros ou Barrinhos, do ginásio do
último ano, quando viu que meu pai ia para Faculdade de Medicina,
reprovou. Porque ele disse que negro não podia ser médico.”18
31
centralidade que a educação assumiu no seio da lamília com o
um m eio indispensável para a ascensão social. A vivência do
racismo pela menina da Vila Economizadora transformou a ex
periência social e individual do preconceito de cor em reflexão
intelectual, nomeando-a “questão racial”.
Em 1942, Bicudo ingressou na recém-criada Divisão de Estu
dos Pós-Graduados da ELSP, coordenada pelo sociólogo norte-
americano Donald Pierson (1900-1995)19. Sob a orientação de
Pierson, ela se interessou pelos “estudos de atitudes”, na con
fluência da sociologia com a psicologia social. Inicialmente,
seu projeto de pesquisa se intitulava “Estudo da Consciência
de Raça entre Pretos e Mulatos de São Paulo”20, que já revelava
o interesse da socióloga pelo tema das tensões raciais. Indica
va ainda a proposta comparativa implícita com o caso baiano,
pesquisado por Pierson.
O tema das relações étnicas e raciais adquiriu maior visibili
dade na agenda de pesquisas da ELSP no início dos anos 1940
com os estudos acerca “da com petição entre diferentes ‘cores’ e
nacionalidades” e “sobre atitudes raciais entre brancos e negros
em São Paulo”, utilizando questionários, entrevistas e histórias
de vida.21 A ELSP estava em sintonia com as transformações
urbano-industriais que vinham ocorrendo na cidade inspiran-
do-se nos estudos sociológicos sobre Chicago.
Dos três alunos (Virgínia Bicudo, Gioconda Mussolini e Ora-
cy Nogueira) da primeira turma do mestrado da ELSP (1942-
1945), Bicudo e Nogueira realizaram pesquisas sobre atitudes
raciais, chegando a conclusões distintas do orientador Donald
19 Sobre Donald Pierson, ver Corrêa (1987).
20 Carta de Donald Pierson a Virgínia Bicudo, 21. Ago. 1942. Acervo Virgínia Leone Bicudo,
Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da SBPSP.
21 A Tentative Outline of Expenditures for Research and Translations in Connection with
the Grant of the Rockefeller Foundation for the Year 1941, 3p. Acervo Donald Pierson.
Arquivo Edgard Leuenroth (AEL)/UNICAMP.
32
Pierson. Nogueira elaborou dissertação sobre o estigma na ex
periência social de tuberculosos, na qual se encontram os te
mas das atitudes sociais e dos estereótipos (NOGUEIRA, 2009).
Publicou no curso de graduação artigo sobre o preconceito de
cor com base em investigação sobre atitudes desfavoráveis de
anunciantes de São Paulo ao contratarem trabalhadores de cor
a partir de anúncios de procura e oferta de emprego do jornal
D iário P opu lar.
Quanto à natureza das atitudes adversas aos negros em São
Paulo, esta não se limitaria ao “preconceito de raça” e tampou
co ao “preconceito de classe”. Nogueira sugere uma “terceira
via”, o preconceito de cor, que seria um “tipo de preconceito
intermediário”, uma espécie de intersecção entre cor e classe,
não se confundindo com o de estrato racial — próprio ao m o
delo norte-americano, no qual a ascendência negra, mesmo
que longínqua, definiría a identidade racial do indivíduo —
nem com o preconceito de classe, na medida em que negros
e pardos localizados em posições sociais elevadas na estrutura
social não estariam imunes a atributos negativos preconcebi
dos derivados da cor (NOGUEIRA, 1942, p. 357; CAVALCANTI,
1996; MAIO, 2008). Diferente da chave interpretativa pierso-
niana, que privilegia o preconceito de classe, ele afirma que
processos de ascensão social não cancelam as marcas raciais.
Em seu estudo sobre atitudes raciais, Bicudo apresenta afini
dades com o trabalho de Nogueira.
Durante o mestrado (1942-1945), Bicudo cursou diversas disci
plinas que abordavam aspectos sociológicos e antropológicos so
bre as relações étnico-raciais. Das disciplinas, professores e notas
alcançadas temos: Raça e Cultura (ministrada por Donald Pier
son), na qual obteve nota 9,0; Negro no Brasil (Donald Pierson),
9 e !4; Etnologia Brasileira (Herbert Baldus), 9,0; Assimilação e
33
Aculturação (Emilio Willems), 6,0; Princípios de Antropologia So
cial (A. R. Radcliffe-Brown), 6,0; Estudos da Sociedade (Donald
Pierson), 9,0; Métodos nas Ciências Sociais (Donald Pierson), 9,0;
Introdução à Antropologia Social (Antonio Rubbo Müller), 7,0.22
Da plêiade de professores e da diversidade de cursos, “Negro
no Brasil”, ministrado por Donald Pierson, foi a disciplina em
que Bicudo alcançou a maior nota. Na dissertação, ela aborda
tema concernente à tradição, das ciências sociais brasileiras, do
persistente exercício de reflexão sobre os problemas e desafios
recorrentes da sociedade em se constituir com o nação moderna.
O negro com o questão é analisado nos anos 40 em contexto no
qual as inquietudes intelectuais sobre nossa sociedade passam
a ser vistas mediante a crítica ao ensaísmo e pela afirmação de
uma rigorosa produção do conhecim ento científico no âmbito
da incipiente institucionalização das ciências sociais no Brasil,
especialm ente em São Paulo e no Rio de Janeiro (VILHENA,
1997, p. 134-135).
Em seu estudo sobre a “questão racial” (BICUDO, 1945),
Virgínia Bicudo combina análise sociológica (estrutura de clas
ses, mobilidade social, status, valores sociais, preconceito de
cor) com psicologia social ( “atitudes sociais”). Converge assim
para sua formação em ciências sociais associada a estudos e
experiências no campo da psicanálise. Na trilha de Pierson, ela
escolheu tema frequentado desde as primeiras décadas do sé
culo XX pelo Departamento de Sociologia da Universidade de
Chicago, a exem plo do estudo clássico de Thomas e Znaniecki
(1918), que abordam processos de ajustamento dos imigrantes
poloneses nos EUA. Este fenôm eno, traduzido por expressivas
22 Ver carta de Donald Pierson a Virgínia Bicudo, datada de 18 de maio de 1944, no Acervo
Virgínia Leone Bicudo, Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da
SBPSP. Os nomes dos professores das disciplinas podem ser encontrados nos anuários da
ELSP (1942 a 1944), quando Bicudo fez os cursos.
34
y
mudanças culturais, foi analisado na interseção entre valores
coletivos e atitudes individuais, ressaltando a dimensão sub
jetiva nas interações sociais. Nesse momento, as pesquisas so
bre atitudes raciais (preconceitos e estereótipos) enfatizavam
as críticas ao determinismo biológico, ao suposto caráter in
ato das ações humanas, buscando as razões psicossociológi-
cas das hostilidades entre grupos sociais — étnicos, religiosos,
econôm icos, etc. (KLINEBERG, 1940, p. 346-347; RICHARDS,
1997). Em sintonia com esta perspectiva, Robert Park concebe
as atitudes a partir de motivações econôm icas, religiosas, de
busca de status ou suscitadas pela discriminação a minorias,
entre outras (PARK, 1931, p. 31)23.
35
Além de Park, Bicudo inspira-se em outro sociólogo da Uni
versidade de Chicago, Ellsworth Faris, que entende a atitude
dos indivíduos a partir de determinados objetos que, no caso
da professora da ELSP, é o preconceito. Na perspectiva de Faris
(1937, p. 9-11), as atitudes deveríam ser analisadas em m om en
tos de crise, pois revelam períodos de desorganização social;
ele segue interpretação de Park, que concebe as atitudes com o
expressão de momentos de tensão, de transformação social. Na
chave interpretativa de Park, “as mudanças sociais com eçam
com as mudanças nas atitudes condicionadas pelos indivíduos,
operando-se posteriormente mudanças nas instituições e nos
‘m ores’” (BICUDO, 1945, p. 2; PARK, 1931, p. 27 e 43).
A pesquisa de Virgínia Bicudo foi realizada entre 1941 e 1944,
durante o Estado Novo e ao longo da Segunda Guerra Mundial.
Utilizou sua experiência com o visitadora psiquiátrica, que já
vinha abordando criticamente, embasada em histórias de vida,
os casos da “chamada ‘criança-problem a’” (BICUDO, 1942, p.
42-43), alvos de preconceito ao serem transformadas em “cri
anças escorraçadas [...] crianças estigmatizadas com o perversas”
(BICUDO, 1942a, p. 23). Elas seriam um fenôm eno sociológico
e psíquico derivado das tensões familiares, do contexto social.
O trabalho com o visitadora psiquiátrica expôs Bicudo às
tensões, preconceitos, violência e marginalização social que
envolviam as crianças das camadas populares. Esta realidade
estava longe do consenso. Sua prática profissional influenciou
a perspectiva sociológica de Bicudo, ao conceber um mundo
marcado pelo conflito social. Esta visada ganhou refinamento
sócio-antropológico na ELSP, especialm ente no mestrado.
Em sua investigação, ela orientou-se pelos estudos de Noguei
ra (1942), Pierson (1945) e Stonequist (1937) e por artigos sobre
“atitudes sociais” de Park e Faris. Elegeu relatos de pais de alu-
36
y
nos de escolas públicas residentes em quatro bairros populares
(Bela Vista, Santana, Barra Funda e M ooca) e um de classe
média (Vila Mariana). As entrevistas foram realizadas com fa
miliares que frequentavam a Clínica de Orientação Infantil da
Seção de Higiene Mental da Secretaria de Saúde do Estado de
São Paulo. Constou ainda do conjunto de depoentes24, ex-mili-
tantes da Frente Negra Brasileira (FNB), organização política de
ampla visibilidade nos anos 1930 em São Paulo, que foi coloca
da na ilegalidade pelo governo estadonovista, assim com o ou
tras organizações da sociedade civil (Andrews, 1991, 148-156).
Bicudo utilizou também o jornal da FNB: Voz d a R a ç a .25
A pesquisadora usou duas variáveis para qualificar seu uni
verso: cor e classe social. Selecionou aspectos fenotípicos,
sendo que os pretos26 foram classificados pela cor, pelos ca
belos “encarapinhados” e pelos pais que exibiam semelhantes
características. O princípio classificatório para os entrevistados
mulatos foi um dos pais ser preto e outro branco, ou um pardo
e outro branco, ou ambos pardos. Em termos de configuração
das classes sociais dos depoentes, as variáveis foram: renda,
profissão e instrução. (BICUDO, 1945, p .5).27
Bicudo verificou que os negros de m enor poder aquisitivo
apresentavam atitudes de maior rejeição em relação aos próprios
negros e mulatos, quando comparados com os brancos. Alguns
37
entrevistados declararam não haver união entre os negros, pois
eram “invejosos e competitivos”. Outros afirmaram ser mais
bem tratados por brancos do que por negros. De acordo com a
análise dos relatos, tais atitudes de rivalidade entre os pretos e
de convívio mais harm onioso destes com os brancos estariam
calcadas no sentimento de inferioridade dos negros suscitado
pelo grupo dominante. Ao perceberem os brancos com o mais
simpáticos, os negros das çamadas populares seriam movidos
por um mecanismo de evitação do conflito com os brancos e
assim produziríam uma com pensação ao sentimento de subal-
ternidade (BICUDO, 1945, p. 63).
Em relação aos negros das camadas médias, as atitudes ra
ciais apareceram com maior ênfase, na medida em que os en
trevistados seriam alvos mais visíveis do preconceito de cor.
Um deles, criado por brancos e com curso secundário, chegou
a colocar em dúvida a citação do sociólogo Donald Pierson:
“Afirma-se na Bahia, com o fez o professor Pierson, que o negro
rico não sofre preconceitos (sic). Tal afirmação não é verda
deira em São Paulo” (BICUDO, 1945, p. 9). O depoente contou
que passara por diferentes situações de preconceito no cotidi
ano: não ser convidado para festas na casa de amigos brancos,
sofrer restrições na entrada em restaurantes da elite e não con
seguir namorar mulheres brancas ou mulatas por oposição das
famílias (BICUDO, 1945, p. 10-20). Os negros das classes médi
as têm ressentimento e são pessimistas quanto à possibilidade
de haver solidariedade entre brancos e negros. Estes, segundo
Bicudo, pertencentes aos estratos médios, enfrentavam o sen
timento de inferioridade provocado pelas atitudes de precon
ceito dos brancos, mediante determinados meios de ascensão
social, tais com o o casamento, o exercício de profissões liberais
e da “boa aparência” (BICUDO, 1945, p. 22). Mesmo quando
38
ascendiam profissionalmente ou conseguiam um diploma de
nível superior, eles continuavam a sofrer constrangimentos no
meio social branco, o que provocaria a consciência de cor (B I
CUDO, 1945, p. 21-22). Reforçando a crítica de seu depoen-
te a Pierson, Virgínia considera São Paulo um contraponto à
experiência baiana. Ela pondera que no caso paulista, “talvez
mais acentuadamente do que na Bahia, a posição ocupacional
inferior do negro incluiría aspectos da luta no nível de status
social, isto é, com mais dificuldades venceriam os méritos pes
soais, por que encontrariam maior resistência com o negros”
(BICUDO, 1945, p. 42).
De acordo com Bicudo, entre os mulatos das camadas popu
lares se observava consciência de cor mais acentuada do que
entre os pretos do mesmo estrato social, pois manifestavam
atitudes de evitação, receosos de serem chamados de “negros”.
Nos depoimentos, ficou evidente o desejo das mulatas das
classes baixas de procurar cônjuges da mesma cor, pois não
desejavam se unir a negros e tampouco sofrer preconceito por
terem se casado com brancos (BICUDO, 1945, p. 30).
No caso das atitudes dos mulatos das classes médias, os de
poimentos demonstrariam a presença do sentimento de inferi
oridade. Na visão de Bicudo, eles ansiavam ser reconhecidos
com o brancos uma vez que estavam conscientes de que a cor
era uma barreira à ascensão social. (BICUDO, 1945, p. 36-37).
Ela se inspira em Nogueira (1942), ao considerar que o mu
lato procurava adquirir símbolos do grupo branco dominante,
consciente de que a discriminação estaria na razão direta da
associação de sua cor com a origem africana. Este seria um
indicador preciso da existência no Brasil de “um preconceito
de cor, distinto do preconceito de raça ou de classe” (BICUDO,
1945, p. 38).
39
Na segunda parte da dissertação, Bicudo aborda, com o m en
cionado acima, a Frente Negra Brasileira (FNB), através de en
trevistas com militantes e análise de exemplares do porta-voz
da organização: o jornal Voz d a R aça. A instituição era fruto
da m obilização dos estratos sociais médios que creditavam à
“barreira de cor” as condições adversas vividas pelos negros
na sociedade brasileira. O objetivo da FNB era criar uma soli
dariedade entre os negros para a luta “contra os obstáculos à
ascensão social em consequência da cor” (BICUDO, 1945, p.
47). Por meio da educação, do trabalho, da valorização profis
sional e da ação política, os negros seriam reconhecidos pelo
grupo branco dominante (BICUDO, 1945, p. 47).
Na conclusão, Bicudo observa que, quanto mais o negro
ascende social e econom icam ente, maior é a possibilidade de
ocorrer consciência racial, destoando assim de seu orientador
Donald Pierson. Em B ra n co s e p r e to s n a B a h ia , Pierson (1945,
p. 421) conclui que “existe preconceito no Brasil, mas é pre
conceito antes de classe que de raça, apesar de estar, até certo
ponto, ligado à cor”. No capítulo ‘“Ideologia racial’ e atitudes
raciais”, ele constata, com base em pesquisa de fontes orais e
documentais realizada em Salvador, a reduzida atenção confe
rida ao conflito racial ou ao seu controle pela sociedade baiana
(PIERSON, 1945, p. 269-270). As atitudes raciais seriam carac
terizadas por uma série de estereótipos, especialmente quanto a
mulatos e negros. Pierson (1945, p. 295-296) vê a sociedade ba
iana com o “constituída em classes, em que a com petição toma
antes a forma de luta entre as classes (que por motivo de ordem
histórica vieram a coincidir em considerável extensão com a
cor) que de luta entre as raças ou cores em si m esmas”. Os
negros que conseguem alcançar certo statu s social, segundo o
sociólogo, tenderíam a ser incorporados ao grupo dominante
40
y
branco. Assim, a consciência racial dos negros baianos seria
mínima, pois as atitudes estariam no âmbito da chave classista.
Diferente de Pierson, Bicudo indica a importância da análise
do conflito social e do racismo. Os esforços de pretos e mu
latos pela conquista de novo status social, mediante investi
mentos em educação e formação profissional, não levariam à
eliminação “das distâncias sociais na linha de cor”, devido à
persistência do preconceito de cor (BICUDO, 1945, p. 65). As
tensões sociais entre brancos e negros seriam mais explícitas,
tendo em vista as barreiras raciais impostas aos negros dos se
tores médios, que procurariam ascender socialmente.
O estudo sociológico de Virgínia Bicudo guarda afinidade
com investigações desenvolvidas som ente nos anos 1950. Os
limites à ascensão social de negros de classe média produzem
movimentos sociais a exem plo da FNB e processos de afirmação
de identidades raciais com o caminho à superação das “barrei
ras de cor”. Assim com o Bicudo, inclusive com um capítulo in
titulado “Atitudes, Estereótipos e Relações Raciais”, o sociólogo
Luiz de Aguiar Costa Pinto (O N egro n o R io d e J a n e ir o , 1953),
chegou a conclusão semelhante à cientista social ao analisar a
atuação do Teatro Experimental do Negro na virada dos anos
1940 para os anos 1950.28
No final da Segunda Guerra Mundial, Virgínia Bicudo apre
sentou reflexão inovadora, ao considerar a cor com o importante
variável na produção de desigualdades sociais em contexto in
telectual no qual prevalecia a máxima de que o preconceito de
classe seria reinante na sociedade brasileira. Sua arguta análise
sociológica antevê interpretações realizadas apenas na década
41
de 50, no contexto do ciclo de pesquisas sobre as relações ra
ciais no Brasil patrocinado pela Unesco.
42
y
USP, à ELSP, à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, à
Faculdade Nacional de Filosofia (do Rio de janeiro) e a institu
tos paulistas de educação, psicologia e psiquiatria, o que revela
a rede intelectual e institucional tecida por Klineberg. Neste
período, foi criada a Sociedade de Psicologia de São Paulo.
As intersecções entre sociologia e psicologia social adquiriram
mais visibilidade no final dos anos 40, quando ainda se viviam os
ecos do Holocausto e a busca de inteligibilidade de um fenôm eno
inédito na história da humanidade. Estudos de estereótipos, ati
tudes e caráter nacional foram alguns dos tópicos da agenda de
pesquisa em ciências sociais do pós-guerra (KLINEBERG, 1949).
Em setembro de 1949, a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) aprovou uma agenda
antirracista, sob o impacto do nazismo, da visível persistência
do racismo em diversos países e do processo de descolonização
africano e asiático. Em junho de 1950 foi inserido no programa
da agência internacional a realização de um ciclo de pesquisas
sobre as relações raciais no Brasil, país considerado um contra-
exemplo em matéria de racismo, em perspectiva comparada com
a experiência internacional, notadamente os EUA e a África do
Sul do pós segunda guerra (MAIO, 1999).
Otto Klineberg teve papel relevante com o diretor interino do
Departamento de Ciências Sociais e consultor da Unesco no de-
lineamento da pesquisa sobre relações inter-raciais no Brasil.
Ele recomendou à Unesco que realizasse ampla e diversificada
investigação, incluindo regiões tradicionais e modernas no in
tuito de observar o com plexo e matizado padrão de relações
raciais no país (MAIO, 1999, p. 148). Enfatizou a importância da
inclusão dos aspectos psicossociais nas pesquisas e sugeriu qua
tro nomes: Aniela Ginsberg, Cícero Christiano de Souza, Betti
Katzenstein e Virgínia Bicudo. Quanto à última sugestão, em
43
documento endereçado ao etnólogo Alfred Métraux, chefe do
Setor de Estudos sobre Raça do Departamento de Ciências So
ciais da Unesco, Klineberg informou que Bicudo encontrava-se:
[...] in the Division of Mental Health of the São Paulo School System,
working with Dr. Durval Marcondes. [...] She is part Negro in origin,
and is very much interested in the problem of race relations. She
wrote quite a good master’s essay on the attitudes of Negrões in São
Paulo to Negro-White relations. This was done under the direction of
Donald Pierson of the Escola Libre [sic] (p. 7).31
44
y
lacionadas com a cor dos colegas e verificar a influência das
relações intrafamiliares no desenvolvimento daquelas atitudes”
(BICUDO, 1955, p. 227-228). Um questionário, baseado nas per
guntas “Perto de quem você gostaria de sentar-se?” e “Perto de
quem você não gostaria de sentar-se?” (BICUDO, 1955, p. 229),
foi utilizado para aferir as atitudes de rejeição ou de intimidade
e aproximação entre os alunos, associando-as à cor da pele e
lembrando a escala de distância social de Bogardus (1933).
Ao serem indagados sobre os motivos das atitudes de rejeição,
os alunos citaram o fato de o colega negro ser “mau aluno, mal
doso, mal-educado e mau amigo”. Cabe destacar que os termos
“sujo, porco, pobre, negro ou de outra raça” foram pouco utili
zados, o que demonstra que foi mínima a rejeição por motivos
visivelmente raciais. Diante disso, Bicudo ressaltou a hipótese de
“os sentimentos hostis relacionados com a cor terem sido cen
surados e portanto camuflados” (BICUDO, 1955, p. 244-245). O
critério racial só apareceu nitidamente em 18 das 8.072 respostas
dadas quanto aos motivos de evitação em relação ao colega de
classe. Dentre as denominações atribuídas aos negros mais re
jeitados, encontram-se “ruim, briguento, malcriado, malcompor-
tado, mal-educado, copiador” (BICUDO, 1955, p. 290).
No caso dos familiares entrevistados, os brancos buscam
ocultar suas atitudes adversas em relação a mulatos e negros.
Um repertório de comentários foi acionado: “há bons e maus
entre brancos e pretos”; “são todos hum anos”; “o que faz as
pessoas diferentes é a educação e a instrução”. Todavia, evi
tariam relações mais próximas em certas situações da vida pri
vada, com o casamentos com pessoas de cor. Outro grupo se
manifestaria francamente contra os negros, demonstrando que
estes seriam “perversos, maus, bêbados, desonestos, vagabun
dos, ladrões e m acum beiros” (BICUDO, 1955, p. 294).
45
Ao final do estudo, Bicudo chegou a conclusões similares
àquelas apresentadas em sua dissertação de mestrado. Na
pesquisa patrocinada pela Unesco, ela apontou que o estu
dante negro foi o que mais se rejeitou entre os escolares de cor,
e que tal atitude ocorria porque o negro “reafirmava as atitudes
do branco com o meio de defender-se de uma rejeição de fora
maior, a qual uma rebelião aberta poderia acarretar” (BICUDO,
1955, p. 285). Bicudo apresentara semelhante visão em sua dis
sertação de mestrado; a presença do conflito racial novamente
aparece com o a autora registra em sua análise sobre a Frente
Negra Brasileira, na qual afirmou que os negros reprimiam seu
ódio contra os brancos, tem endo um contra-ataque destes (B I
CUDO, 1955, p. 285).
Na dissertação, Bicudo evidenciava que o preconceito de cor
aparecia com o um impeditivo aos grupos de cor: mesmo di
ante dos esforços de negros e mulatos para elevar seu status
educacional e profissional, eles continuavam a sofrer restrições
no meio social dos brancos, devido à permanência no País do
preconceito de cor (BICUDO, 1945, p. 65). A única opção seria o
branqueamento, ou seja: “à medida que o indivíduo ‘branqueia’
na cor e na personalidade encontra maior aceitação social” (BI
CUDO, 1945, p. 38). Nesta linha de pensamento, no estudo da
Unesco a pesquisadora notou que o preconceito quanto aos mu
latos tendia a diminuir quando estes “embranqueciam”. Para Bi
cudo, o fato de o mulato com “característica de branco conseguir
integrar-se no grupo de brancos milita a favor da tese pela qual
a discriminação do branco contra o negro corresponde a um
preconceito de cor e não de raça” (BICUDO, 1955, p. 291-292).
Esta conclusão converge para a análise de Oracy Nogueira.
A participação de Bicudo no “projeto U nesco” contribuiu
para a produção de um conjunto de dados e análises sistema-
46
tizadas sobre o preconceito e a discriminação racial no Brasil.
Sua pesquisa foi tratada com o mero “apêndice”, bem com o
as de Oracy Nogueira e Aniela Ginsberg, em R ela çõ es R a c ia is
en tre N egros e B r a n c o s em S ão P a u lo (BASTIDE; FERNANDES,
1955). Na primeira página do livro consta que ele foi organi
zado “sob a direção dos professores Roger Bastide e Florestan
Fernandes.” Logo no início do estudo de Bicudo, lê-se uma nota
de autoria de Paulo Duarte, jornalista, político, antropólogo,
um dos mentores intelectuais da Universidade de São Paulo,
editor da revista Anhembi e personagem central nos intercâm
bios culturais e políticos Brasil-França (BASTOS, 1988). Ele foi
o responsável pela publicação do livro com as pesquisas sobre
as relações raciais em São Paulo. Em suas palavras:
47
Duarte afirma que o estudo de Bicudo seria orientado por
Bastide e Fernandes. Indo além, ele o qualificou de “alguns
docum entos”, “protocolos de pesquisa”, “relatórios parciais”.
Na introdução de Roger Bastide não há qualquer m enção ao
trabalho de Bicudo tampouco aos de Nogueira e Ginsberg. Di
ferente de Oracy Nogueira, que reagiu ao equívoco de Duarte
publicando carta,32 na revista A n h em b i evidenciando a total
32 Em carta a Paulo Duarte, Nogueira, sentindo-se prejudicado pela forma como seu traba
lho fora inserido na edição da pesquisa da Unesco em São Paulo, historia sua inserção no
ciclo de investigações realizadas no Estado. Em primeiro lugar, afirma que sua participação
na pesquisa ocorreu a partir de negociações diretamente estabelecidas com Alfred Métraux
em dezembro de 1950. Em seguida, considera que o conjunto de estudos realizados em São
Paulo parece, em seu formato, com aqueles levados a efeito na Bahia, os quais procuraram
contrastar a capital com comunidades do interior. Como já se encontrava em andamento
“um estudo monográfico do município de Itapetininga, julgou [...] Métraux mais razoável e
viável que aprofundasse meu estudo [...] Vê, pois, V. S. que meu estudo não pode ser consi
derado nem como subsídio nem como apêndice do realizado pelos nossos amigos comuns,
os ilustres professores Bastide e Fernandes, nem, ainda, como tendo sido executado sob a
orientação dos mesmos, como consta da capa do volume. Aliás, o subtítulo posto na capa
— ‘Ensaio sociológico sobre as origens, as manifestações e os efeitos do preconceito de
cor no m unicípio (é meu o grifo) de São Paulo’ ;— torna ilógica a inclusão do meu estudo
no mesmo volume, pois como poderia um trabalho sobre o município de Itapetininga ser
considerado parte ou subsídio de outro sobre o município de São Paulo, ambos realizados
simultaneamente” (carta de Oracy Nogueira a Paulo Duarte, publicada em Anhembi, ano
V, nQ6, novembro de 1955, p. 554-555). Em sua resposta, Duarte faz breve histórico da ori
gem do Projeto Unesco em São Paulo e revela completo desconhecimento das negociações
entre Nogueira e Métraux. Indo além, afirma que, durante o processo de edição do livro,
não recebeu qualquer informação por parte de Bastide, Fernandes ou Nogueira a respeito
da independência do trabalho deste último. No entanto, Duarte não perde a oportunida
de para desqualificar Nogueira, ao considerá-lo um desconhecido da revista Anhembi.
Ademais, ao se referir ao subtítulo, o jornalista comenta que “nós [da revista A n hem bi
estranhamos que o [...] trabalho [de Nogueira] não fosse sobre a Capital de S. Paulo, campo
principal da pesquisa. Atribuímos no entanto o fato a uma razão principal: o desejo do
professor Bastide, exato como sempre, de ilustrar o inquérito para fins comparativos com
uma pesquisa numa cidade do interior” (carta de Paulo Duarte a Oracy Nogueira, publicada
em Anhem bi, ano V, na 6, novembro de 1955, p. 556). Fernandes 098 6 , p. 16), trinta anos
depois, lembra que, “'por lapso editorial’ (devido provavelmente ao desejo de Paulo Duarte
salientar o trabalho de R. Bastide e F. Fernandes), o volume coletivo saiu com o título da
primeira monografia. Além disso, os créditos de uma edição cooperativa não foram incor
porados à página de rosto e um dos estudos arrolados no índice (publicado anteriormente
pela revista Anhem bi) deixou de ser transcrito”. O texto omitido da edição de 1955 a que
se refere Fernandes é “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem”. Os
trabalhos de Nogueira, Bicudo e Ginsberg foram excluídos da segunda edição do livro.
Apenas os estudos de Fernandes e Bastide foram republicados no volume 305 da Coleção
Brasiliana, com uma mudança do título da publicação original: em vez de “Relações raciais
entre negros e brancos em São Paulo”, passa a ser R elações entre bran cos e negros em São
Paulo. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1959, p. 8.
48
/
independência de sua pesquisa sobre as relações raciais era
Itapetininga a com eçar pelo contrato firmado diretamente com
a Unesco, Bicudo não teria manifestado qualquer reação pú
blica. Embora, até o momento, não se tenha encontrado docu
mentos que com provem a existência de um contrato entre a
Unesco e Bicudo, à semelhança do que ocorreu com Nogueira,
é provável que tenha havido um convite, um contrato indi
vidual com a organização internacional.
A publicação dos estudos de Virgínia Bicudo e Oracy Noguei
ra com o “apêndices” representa o retrato de uma época das
ciências sociais em São Paulo. A ELSP encontrava-se em crise
institucional, especialm ente a partir da saída, por motivos de
saúde, de Donald Pierson, nos primeiros anos da década de
1950. Acrescentem-se as disputas acadêmicas entre a ELSP e a
FFCL-USP. Como diria Alfred Métraux: elas seriam “institutiones
rivales”.33 Estavam identificadas com tradições sociológicas dis
tintas que se traduzem frequentem ente em visões, por vezes,
estereotipadas, a exem plo da contraposição visada empírica
(ELSP) versus perspectiva teórica, abstrata (FFCL).
O envolvimento de Bicudo com o ciclo de pesquisas da
UNESCO ocorreu simultaneamente às suas atividades na So
ciedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, na ELSP e no
Serviço de Higiene Mental da Secretaria de Saúde do Estado de
São Paulo. Na década de 1950 houve a ampliação das iniciativas
de Bicudo no cam po da institucionalização da psicanálise no
Brasil (BICUDO, 1989, p. 97). Em 1955, Bicudo viajou a Londres
para aprofundar seus conhecim entos psicanalíticos. Freqüentou
cursos no Instituto de Psicanálise da Sociedade Britânica e se
33 Métraux, Alfred. “Rapport au Directeur Général sur Mission au Brésil (16 nov. - 20 déc.
1950)” p.l, in Race Questions & Protection of Minorities. REG 323.1. Part II up to 31A W 50
(BOX REG 145), Unesco Archives.
49
especializou em psicanálise da criança na Tavistock Clinic, sob
a supervisão de Esther Bick (VALLADARES, 1996). Em 1956,
N osso M u n do M ental, livro organizado a partir do programa da
rádio Excelsior, apresentado por Virgínia, e de sua coluna no
jornal F o lh a d a M an h ã, foi lançado em São Paulo. Trata-se de
uma obra de divulgação científica utilizando meios de com uni
cação de massa, algo inédito no campo da psicanálise no país.34
Na década de 1960, de volta ao Brasil, após cinco anos de es
tudos na Inglaterra, Bicudo tornou-se professora e diretora do
Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de São Paulo.
Em 1970, dando continuidade a seus esforços em prol da ins
titucionalização da psicanálise no país, ela fundou o Grupo
Psicanalítico de Brasília. No ano seguinte, Virgínia organizou o
Instituto de Psicanálise de Brasília. Em 1976, iniciou o curso de
Form ação de Analistas de Crianças, com a colaboração de Lygia
de Alcântara Amaral (ROCHA; HAUDENSCHILD, 2004, p.69).
No decorrer das décadas de 1980 e 1990, Virgínia Bicudo par
ticipou de Conferências, Jornadas, Encontros e produziu uma
vasta obra científica veiculada principalmente em periódicos
nacionais na área da psicanálise.
Na última frase de uma entrevista publicada nos C a d ern o s
P agu , Bicudo confessou, em tom bem-humorado: “eu sempre
brinco que estreei o divã no Brasil” (MAIO, 2010). Ela poderia
ter ampliado o leque de evidências que confirmam sua trajetória
ímpar de mulher que protagonizou a criação e o desenvolvi
mento de instituições e a produção de conhecim ento científico
no campo das ciências sociais e da psicanálise.
50
y
A titudes R a c ia is d e P retos e M ulatos em S ão P a u lo é um encon
tro bem sucedido da interdisciplinaridade (sociologia, antropo
logia e psicologia social) presente nos estudos da Escola Livre de
Sociologia e Política. A socióloga Virgínia Bicudo é fruto desse
processo desenvolvido nos anos 1940 e 1950. Arguta análise
acadêmica associada à sensibilidade em questões sócio-raciais
são as marcas de distinção do estudo de Virgínia Bicudo.
Há 15 anos, Virgínia Bicudo concedeu-m e uma entrevista
(MAIO, 2010). Nossa conversa aconteceu na então residência
da psicanalista, na Avenida 9 de Julho. Em certo m omento, ela
me mostrou orgulhosamente uma foto da turma de formatura
do sr. Teófilo, seu pai, no prestigioso Ginásio do Estado. Ao
me lembrar deste encontro, tão cheio de sentidos, eu o associo
a uma frase do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos: “É preciso
não carregar a pele com o um fardo.”35
Referências
35 A frase de Guerreiro Ramos é a epígrafe do livro F ala Crioulo de Haroldo Costa (1982).
Guerreiro disse-lhe a frase pessoalmente, conforme depoimento do produtor cultural ao
autor em 15. jun. de 2010.
51
Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), n. 27, p. 217-220, 2006.
52
y
______ . Entrevista. ALTER Jo r n a l d e E studos P sicodin âm icos. Bra
sília (DF), Sociedade de Psicanálise de Brasília, v. XV, n. 1, 1996.
Entrevista concedida a Silvia Valladares em 23. ago. 1991.
53
CANDIOTA, Luiz Roberto; FAVILLI, Mirna Pia; CANDIOTA, Maria
Beatriz. Adivinhe quem vem para jantar? Uma conversa com a
Profa Virgínia L. Bicudo. R evista IDE, São Paulo, Sociedade Bra
sileira de Psicanálise de São Paulo, ano 3, n. 4, 1977.
54
y
FACCHINETTI, Cristiana. D eglutindo Freud-, sobre a digestão do
discurso psicanalítico no Brasil. 2001. Tese (Doutorado em Teoria
Psicanalítica) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Rio de Janeiro, 2001.
55
KLINEBERG, Otto. S ocial Psychology. New York: Henry 1íolt and
Company, 1940.
56
___ . Relações raciais u desenvolvimento na sociologia de Costa
Pinto. In: BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Moritz (Orgs.). Um
en igm a ch a m a d o B rasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
p. 324-337.
57
______ . Relações raciais no município de Itapetininga. In: 11ASTI-
DE, Roger; FERNANDES, Florestan. R elações ra cia is en lre negros
e b ran cos em São P au lo: ensaio sociológico sobre as origens, as
manifestações e os efeitos do preconceito de cor no município de
São Paulo. São Paulo-, Anhembi, 1955, p. 362-554.
58
ROCHA, Teresa; HAl IDKNSCHILD, Leite. Modernismo, mulher e
psicanálise. In: SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO
PAULO. SBPS — In M em oriam . Virgínia Leone Bicudo (1910-2003);
Yutaka Kubo (1917-2003); Adelheid Lucy Koch (1896-1980). São Pau
lo, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, 2004, p. 63-73.
59
VALLADARES, Licia do Prado. A visita de Robeit Park ao Brasil,
o “Homem Marginal” e a Bahia como laboratório. C ad ern o CRH.
Salvador, Centro de Recursos Humanos da Universidade Federal
da Bahia, v. 23, n. 58, p. 35-49, 2010.
60
ATITUDES RA CIA IS DE PRETO S
E M ULATO S EM S Ã O PA U LO
I ntrodução 63
61
Introdução
63
tendem a persistir enquanto funcionar bem e permitir a con
duta para proceder de um m odo satisfatório. Evidencia-se a
profunda significação das atitudes no processo de interação
social. Não m enos significativo é o estudo das atitudes sociais
para a investigação dos processos de mudança social. Conso
ante as observações de Park (1931, p. 17), as mudanças sociais
com eçam com as mudanças nas atitudes condicionadas pelos
indivíduos, operando-se posteriorm ente mudanças nas insti
tuições e nos m ores.
O m étodo e a técnica empregados na pesquisa foram o es
tudo de caso e a entrevista. Procuramos conhecer as condições
de casos individuais e de uma associação de “homens de cor”,
empregando com o técnicas de trabalho a entrevista e a análise
de opiniões emitidas no jornal mensário dessa associação. O
material referente à associação de homens de cor, dem ons
trando as atitudes assumidas publicamente, valeu-nos para as
observações de aspectos da estrutura social, observação esta
aprofundada no conhecim ento de outros aspectos evidencia
dos pelas entrevistas.
Para atingir a finalidade das entrevistas no conhecim ento das
atitudes sociais no que concerne à “raça”, demos sempre aten
ção aos aspectos de interação entre o entrevistador e o entre
vistado. Quanto ao primeiro, procuramos estar conscientes dos
motivos pessoais que nos conduziram à pesquisa, bem como
conhecer nossas atitudes sobre o problema em estudo para o
desenvolvimento de autocontrole e autocrítica e, assim, evitar
interferir na entrevista e na interpretação do material colhido
com possível projeção de condições pessoais. Quanto ao en
trevistado, consideramos o fenôm eno do rap p ort ou da trans
ferência, procurando estabelecer as condições psicoafetivas em
que o entrevistado se dispõe a comunicar-nos suas atitudes,
64
I
mesmo aquelas que em geral estejam intimamente ocultas por
censuras sociais, m edos ou outros motivos.
Entrevistamos mais de 30 pessoas para realizar nosso tra
balho de caráter “exploratório”, isto é, trabalho de sondagem
com o objetivo de levantar hipóteses para pesquisas subse
quentes com maior número de observações. Foi nosso intento
obter um relativo número de casos, a fim de que as hipóteses
sugeridas pelo material coligido apresentassem certo grau de
validade. Im pondo-se a limitação da observação, o número,
de casos foi limitado pela verificação da variabilidade das ati-
l udes apresentadas nos diferentes casos. Aliás, este é o critério
adotado quando utilizamos a técnica da entrevista: “O número
de entrevistas necessárias difere com a variabilidade da infor
mação obtida. Quanto mais os entrevistados diferem em seus
relatórios, tanto mais pessoas são necessárias para entrevistas”
(BINGHAN; MOORE, 1934, p. 36).
Além dos casos por nós entrevistados, tivemos a contribuição
dos alunos do Seminário de Método dirigido pelo prof. Donald
Pierson, os quais apresentaram observações sobre atitudes de
pretos e mulatos em São Paulo.
Este trabalho foi realizado em São Paulo, tendo sido iniciado
em 1941 e terminado em 1944. Dos 30 casos apresentados, 11
foram encontrados na Clínica de Orientação Infantil da Seção
de Higiene Mental Escolar, representando, portanto, elementos
das classes sociais que enviam crianças para os grupos esco
lares. Visitando os grupos escolares da Capital, tomávamos o
endereço de escolares pretos ou mulatos e nos dirigíamos aos
pais, dizendo-lhes que desejávamos conhecer as condições do
ambiente afetivo para orientá-los na educação dos filhos.
Procedíamos exatam ente com o nos demais casos da Clínica,
em que, visando a melhor ajustamento da personalidade da
65
criança, faz-se necessário o estudo do am biente afetivo. De
fato, em todos os casos foi sempre imprescindível uma ori
entação educativa. Esta situação de dependência' da Clínica
na qual os pais dos escolares foram colocados facilitou-nos a
tarefa de estabelecer contato com pessoas estranhas. Os casos
foram colhidos em diversos grupos escolares, situados nos se
guintes distritos: Bela Vista, Santana, Vila Mariana, Barra Funda
e Mooca. Todos, com exceção de um, pertenciam à classe so
cial “inferior”.
As pessoas de cor das classes sociais intermediárias foram
procuradas por meio de apresentações, de sorte que inicial
mente aquelas pessoas eram informadas sobre nosso intento.
Todas as entrevistas tiveram por finalidade conhecer as atitudes
do individuo de cor referente ao preto, ao mulato e ao branco.
As relações raciais, no sentido mais amplo, conform e com
preendeu Park (1939, p. 3), podem abranger todas as acom o
dações nas quais algum equilíbrio relativamente estável foi al
cançado, assim com o as situações de conflito. Dentro de tão
vasto terreno, circunscrevemos nossa observação às atitudes ra
ciais de pretos e mulatos. A p rio ri, não sabíamos quais fossem
as possibilidades de elaborar hipóteses sobre a situação racial
através da observação de atitudes raciais. Podemos afirmar, en
tretanto, que só foram formuladas as hipóteses que, a nosso
parecer, o material permitiu.
Por dever de gratidão, aqui fica expressa uma homenagem
ao prof. Donald Pierson, que dedicadamente nos orientou em
todo o desenvolvimento da pesquisa. Ao prof. Mário Wagner,
apresentamos nosso reconhecim ento pela contribuição na for
ma de crítica construtiva. Ao prof. Durval Marcondes, chefe da
Secção de Higiene Mental Escolar, nossos sinceros agradeci
mentos pela contribuição na coleta de dados.
66
Atitudes manifestadas por indivíduos entrevistados
67
suem profissões liberais ou são funcionários públicos o têm no
mínimo curso secundário.
É preciso notar que os salários correspondem às condições
econôm icas de 1941, época em que colhem os o material das
entrevistas.
68
Iiá cinco anos. Teve seis filhos: possui apenas duas meninas
menores e duas netinhas escolares. Zela pelas filhas e netas
para que adquiram bons princípios de moral. É filha de pretos,
li analfabeta. Quanto a sua opinião sobre os pretos, disse-nos:
— Quase não tenho relações com gente de cor, porque são pessoas in
vejosas, desejam ver-nos sempre mal economicamente ou lutando com
doenças; então ficam satisfeitos. Dou-me melhor com os vizinhos bran
cos. Desejaria ser branca, mas que fazer... Não me sinto infeliz p or ser
preta, mas pelas dificuldades econômicas e pela doença de mamãe.
69
Caso n2 5 — A entrevistada é preta, com 45 anos cie idade,
e casada com um mulato empregado doméstico. Possui dois
filhos, um mulato e um preto. Residem em São Paulo há cinco
anos. Foi cozinheira de uma família em cidade do Interior. É
analfabeta. Moram num barracão. Relato da entrevistada:
— Tenho am izades tanto com pessoas de cor como com brancos. Ter
um filho mulato, mais claro do que nós, os pais, não me dá nenhuma
satisfação, orgulho ou vaidade; ao contrário, gostaria que ele fosse
mais escuro. Quanto o menino nasceu, era tão claro que descon
fiaram , mas o p ai de meu marido era branco. Acho os pretos mais
orgulhosos do que os brancos. Tenho uma vizinha mulata “grã-fina
veste-se bem e só se dá com grã-finos, apenas cumprimenta os vizinhos
pretos. No Interior, trabalhei como cozinheira durante muitos anos em
casa de fam ília de posses efu i muito querida. Era eu quem preparava
o jantar para pessoas de destaque que iam de São Paulo efu i eu quem
vestiu as noivas da casa. Muitas vezes senti o orgulho dos patrões, mas
acho maior o orgulho entre pretos de melhor situação.
70
I
duas cozinheiras e três operárias, e um irmão adulto desor
deiro. É analfabeta. Do relato da entrevistada:
71
desprezo do próprio preto do que pelo do branco, talvez com o
resultado de seu sentimento de inferioridade, em virtude do
qual, ao mesm o tempo que acentua o antagonismo contra o
preto, torna-se mais suscetível àquele sentimento, enquanto
perante o branco “superior” diminui o sentimento de hostili
dade e se faz menos suscetível às reações do branco.
Tais atitudes de antagonismo contra o preto e convívio com
os brancos se constituiríam em um dos fatores para a ausência
de solidariedade observada entre os pretos e por alguns deles
lastimada.
Do exposto, depreendem os a seguinte hipótese: as atitudes
do preto da classe social “inferior” para o preto e para o bran
co estariam baseadas em sentimento de inferioridade, o qual
determinaria sentimento de antagonismo contra o preto e de
simpatia para o branco. A atitude de antagonismo do negro
resultaria em falta de solidariedade entre pretos, enquanto a
atitude de simpatia para o branco não somente torna o pre
to mais tolerante, com o indiretamente concorre para atenuar
qualquer manifestação de antagonismo da parte do branco, de
onde maior convívio entre pretos e branco.
72
(■
em Sâo Paulo há cerca cie 20 anos. Possui curso secundário
e exerce uma profissão intelectual. Queixa-se amargamente
por sofrer em consequência de preconceito de cor. Relatamos
suas experiências desagradáveis e humilhantes, das quais se
originou aguda sensibilidade para o trato diário com o branco.
Seguem-se suas palavras:
— Sob minha chefia trabalham vários moços. Certo dia, um deles en
tregava-me um convite de festa de form atura em presença de sua irmã.
No dia seguinte, conta-me ingenuamente o rapaz: “Ontem minha irmã
ficou preocupada vendo-me convidá-lo para a festa de form atura e me
censurou. Tranquilizei-a imediatamente, dizendo-lhe que o havia con
vidado porque sabia que o senhor não iria. ” Acidentes como estes são
pequeninas coisas do branco que mefazem confiar, desconfiando. Pas
sava diante de um estabelecimento de diversões quando, por algum mo-
73
tivo, parei e ouvi que alguém me dirigia a palavra. Dizia-me o porteiro
do estabelecimento: “Você não pode entrar aqui. ” Eu, que não estava
interessado em entrar naquela casa de diversões, insisti em saber por que
não podería entrar, pedindo fa la r ao gerente. “Ogerente está muito ocu
pado e não pode atender um negro. "Acontece, porém, que no momento
o gerente apareceu à porta, indagando o que havia. Conhecíamo-nos
por causa do meu trabalho, e logo me indagou; expliquei-lhe o ocorrido.
Virando-separa o porteiro, que era preto, diz-lhe: “Estepreto pode entrar,
ele manda em São Paulo. "E, voltando-separa mim: “Vamos entrar?”Eu,
que não pretendia mais do que aquela satisfação despedi-me.
74
í
fância, teve receio de entrar no cassino em minha companhia.
75
— Há tempos, fu i homenageado com um almoço pelos meus amigos
brancos. Estes procuraram o Hotel d'Oeste para a homenagem, mas,
quando o gerente soube que o almoço seria oferecido a um preto, em
bora me conhecesse, recusou aceitar a encomenda. Foi necessário que
se realizasse o almoço em outro local.
76
I
de tanta adm iração. Mais tarde, ao ingressar na profissão que atual
mente exerço, fu i submetido a um exame. Entretanto, notei que so
mente de mim exigiram conhecimentos além do estipulado para os
outros. Depois de comprovar que tinha conhecimento além do espe
rado, fu i aceito no emprego.
Caso n2 9
77
12 anos; depois, segue uma irmã casada bá cinco anos com um preto,
empregado no comércio. O caçula é casado, trabalha em um banco.
Conversa pouco, gosta de observar, é impulsivo. Tem compreensão do
problem a racial, mas não se interessa, porque acha inútil. É carnava
lesco. Os outros irmãos faleceram pequenos. Meu p a i fo i carpinteiro,
um artista dentro de sua profissão. Cantava e tocava bem. Na cidade
A, fo i um agitador. Formava sociedades no sentido de combater o pre
conceito racial. Em sua cidade perm anecem asfam ílias escravocratas,
onde o negro se torna um submisso ou agitador. Meu p ai agia através
de bailes. Foi secretário, presidente e orador de várias sociedades de
negros. Lembro-me de que meu p a i tinha gênio arrebatado, impulsivo.
Em casa, quase não conversava, mas tinha amigos, era muito diver
tido, tocava violão. Faleceu aos 35 anos de idade, atacado de varíola.
Eu contava com Vou 8 anos de idade.
78
í
car; eu frequentemente pedia amostra de açúcar para comer. Entrei
para o grupo escolar. Às' vezes, não tinha lanche para levar. Pelo meu
Irmão, minha mãe mandava p ão e uma garrafinha com café. Mas,
quando ela não podia mandar-me o lanche, enchia-me de tristezas,
vendo as outras crianças com marmelada, p ão e manteiga. Mas eu
não pedia. Como hoje, na infância, eu não sabia pedir. Na entrada da
escola, havia uma palm eira que dava coquinhos: eu ia comê-los para
me compensar e depois ia brincar. Nunca fu i dado ao estudo. Não me
preocupava com os problemas difíceis durante as aulas, porque na
escola eu não conseguia resolvê-los. Ia resolvê-los depois, com vagar,
em casa. Parecia que a professora ia me p ôr de castigo se errasse.
Poucas vezes era cham ado ã lousa, e tinha tanta vontade de ser. Gos
tava de me levantar para ler ou responderperguntas, prazer que rara
mente satisfiz. O que mais me impressionava, no tempo da escola, era
um quadro de jesuítas entre índios e um outro jesuíta levado pelo ín
dio para a fogueira. Todas as vezes que eu passasse pelo quadro tinha
de olhã-lo, e sentia a impressão de que também iria ser devorado pelos
índios. Eu não gostava de estudar, mas aprendia com facilidade; fiz os
quatro anos primários sem repetir. Frequentava também o externato
dirigido pelos padres, p ara ospobres: havia catecismo, joão-m inhocaf'
truques, recreio. Os padres brincavam conosco. Eles nos davam nota
de acordo com a frequência. Eu me interessava em ter boas notas, pois
que davam direito a um prêmio: uma roupinha, um brinquedo, p odía
mos escolher. Fiz a prim eira comunhão aos 12 anos. Vovó levava-me à
igreja. Durante a pregação, eu dormia. Mas lá me impressionava mui
to um santo com uma espada, pisando na cabeça de um satanás ne
gro. Depois de moço, voltei ãquela cidade p ara ver o quadro que tanto
me impressionava na infância. Era sempre perto do santo temido que
vovó sentava. Por medo, eu fu gia da companhia dela, sem dizer o mo
tivo. Ela era enérgica e castigava-me. Eu fu i o mais “trazido no ca-36
36 Tipo de teatro popular de marionetes.
79
bresto”. O satanás negro prendia o meu olhar. Aos 7 anos, mais ou
menos, ganhei um livro, onde uma figura representava os anjos bons
e os maus. Havia me despertado a atenção o fato de os anjos escurece
rem à medida que se tornavam maus. Com tristeza, eu identifiquei a
cor preta ao mal. Fui manhoso quando criança; era bastante que ti
rassem o que me pertencia para chorar. Era muito sentimental. Parece
que depois de uma revolução, embarcamos daquela cidade para São
Paulo; eu teria 13 anos. Aqui a fam ília se desbaratou: um irmão fo i
com a madrinha, outro fo i com uma tia, pois minha mãe não podia
sustentar todos. Na minha cidade natal, a situação era diferente: mi
nha mãe era conhecida, e as fam ílias ricas ajudavam-na. Aqui, a
vida se tornou mais difícil. Minha m ãe não durou muito; ela estava
muito doente. Lembro-me que uma am bulância veio buscá-la e, dois
dias depois, a notícia da morte dela. Antes de morrer, ela não falav a e
apenas escreveu para minha avó: “Não maltrate meus filhos. ”Minha
avó tinha gênio esquisito, distribuiu as crianças. Cada um tomou
rumo diferente. Minha avó e minha tia trabalhavam na cozinha de
uma pensão. Fui para aquela pensão em companhia delas. Outro am
biente, onde havia horário para as refeições e eu tinha um quartinho
no porão. Comia e dormia melhor. A patroa tinha filhas moças e um
menino mais ou menos da minha idade, com o qual brincava. Apo
derei-me dos seus brinquedos e estudava em seus livros. Ligávamos
cam painha e outro pequenos serviços desta ordem. Fui criando es
pírito de curiosidade. Eu tinha medo do escuro e fa z ia força para dor
mir logo e não me lembrar de que estava só. Lã perm aneci dois anos.
Uma das filhas, casando-se, fo i residir numa cidade do Interior. Man
daram-me para lã. Fui sozinho. Contava 15 anos. Frequentei uma
escola de padres, curso de admissão ao ginásio. Em casa, tinha a
obrigação do serviço doméstico, limpar o pó, vidros, etc. Eu gostava da
escola, voltava satisfeito. Quase não tinha com quem brincar. Inventa
va brinquedo no quintal com formigas, besouro. Tinha medo de grilo,
80
í
porque cantava. Unirei para o ginásio. Então tinha esporte e a com
panhia de rapazes hem arrumados. Minha patroa era enérgica. Certa
vez, ela me viu apanhar duas frutas às escondidas e pô-las na mala da
escola. Ela chamou-me e indagou sobre o que eu levava na mala, tirou
as frutas e esfregou-me no meu rosto. Opior fo i ter manchado a blusa
e ser obrigado a ir para o ginásio assim. Peripécias de quem não é fil
ho: eu gostava de ir limpo, bem arrumado. Ela castigava-me p or eu
não terpedido. Eu gostava muito de ir à matinê aos domingos. Quan
do eu “reinava”, era preso no quarto, privado do cinema. Chorava até
me conformar. Cheguei até o 3 Bano ginasial. Certo dia, eu limpava os
móveis da sala de jantar: abri o açúcareiro, tirei uma colher de açú
car e joguei-a na boca. O patrão, que observava meus movimentos,
aproximou-se silenciosamente e virou-me a mão no rosto sem nada
dizer. Fiquei mudo, olhei-o, larguei os panos efu i para o quarto. De lá
não saí. Pensei mil coisas boas e más. Perdi o prazer de tudo. Eu não
queria olhá-lo. Eu estava completamente mudado. Não queria mais
ficar lã. No dia seguinte, não fu i à escola. Queria voltar para São
Paulo. A patroa me cham a e me explica que tinha sido para me cor
rigir. Não aceitava nada, queria ir embora. “Então você vai”, decidiu
ela. Chegando em São Paulo, procurei minha fam ília. Não encontrei
ninguém. Com um dinheirinho que possuía, fu i para uma pensão.
Comecei a procurar emprego. Não procurei por muito tempo, porque
na pensão apareceu um homem procurando empregado para ir para
o Interior. Aceitei o emprego; partimos no dia seguinte. O senhor, do
estado de Minas, era dentista e fazendeiro. “Quero você para ajudar
em casa, ir ao sítio e, conforme você se portar, faço-o estudar, quero
fazê-lo gente. ”Muito mais tarde, eu soube que aquele senhor era casa
do e separado da fam ília. A sua atual companheira com seus dois fi
lhos, um rapaz de minha idade e uma rapariga, passavam p or seus
filhos e p or ligação legal. Destes, mais tarde ele se separou p or infide
lidade da mulher. Ligou-se a outra mulher com dois filhos também.
81
Compreendí que o que levava a tais ligações era a atração por cri
anças. No novo emprego, eu devia fa z er o mesmo serviço doméstico do
qual não gostava. Eu limpava a casa e o consultório, no que era obser
vado. Limpava a broca e outros apetrechos com tanto cuidado e capri
cho que o patrão gostou e consentiu que eu ficasse mais no consultório,
que me despertava curiosidade. Quando chegavam clientes, ele não
gostava que eu ficasse no consultório. “Vocêprecisa aprender um ofi
cio”, disse-me um dia. Arranjou uma oficina de carpintaria e mecâni
ca para mim e para o “filho". íam os juntos. O trabalho consistia em
fa z er portas, assoalhos, vigotas — eu não me dava bem com tal tra
balho, preferia fa z er canetas, trabalho mais delicado. Comecei a
aprender a lustrar e, nas horas vagas, fa z ia canetas. Ofilho do patrão
também não gostava do trabalho. Ele aprendia violino. Eu sempre gos
tei de música. Tinha vontade de aprender um instrumento, mas nin
guém me orientava. Com uma taquara, fiz uma flauta. Tocava de
ouvido, acompanhando o filho do patrão ao violino. O velho, ouvindo-
me, disse-me: “Você vai aprender música em São Paulo. ” Não saímos
mais de casa — jogávamos futebol e tocavamos. Então o velho me fe z
presente de uma flauta. Comecei a estudar música. Custei a aprender
as figuras musicais. Finalmente, lia bem a música e tinha bom sopro.
O velho começou a se entusiasmar comigo: “Esse negrinho vai dar
gente”, dizia. Fazia questão de me apresentar aos conhecidos: “Esse é
o meu negrinho. ”Paulofo i estudar noutra cidade. Fiquei só. Mas antes
dissofundam os um clube defutebol. O velho observou-nos que precisã-
vamos trabalhar para manter o clube; deu-nos um carrinho de gara-
pa; aos sábados e domingos, nós dois vendíamos garapa pelas ruas.
Apuramos uns Cr$ 50,00. Compramos a bola e duas máquinas fo
tográficas; adaptamos nosso quarto para revelações. Cuidãvamos tam
bém de limpeza do carro. Certo dia, o velho disse-me: “Precisamos
providenciar sua transferência de ginásio para cã, a fim de terminar
o curso. ”Mas a transferência não fo i possível, na cidade só havia es-
82
i
cola normal. Voltei para a cidade onde havia começado o ginásio,
com todas as despesas garantidas pelo velho. Fiquei contente. Mas
comecei a pensar que ficava mal o velho pagar-m e tudo, apesar de eu
ser muito econômico. Não tendo, porém, aptidão alguma, procurei um
lugar para tocar. Estávamos na febre do jazz. Consegui tocar no
“ja z z ’*1 de um restaurante, à noite. Ganhava Cr$ 200,00 por mês.
Escrevi ao velho que a música já estava valendo alguma coisa. No
“jazz", aprendi violino, batería e fu i me tornando conhecido. Tais to
catas despertaram-me a curiosidade por bebidas e ceias. Aquela ci
dade tinha intensa vida noturna. Sófum ei aos 20 anos. O velho quase
já não me mandava dinheiro. Depois de um ano, fu i visitá-lo; fiquei
gostando de uma moça. Procurei meios para conversar com ela, que
sempre recusava. Nas vésperas de voltar para a cidade onde estudava,
tomei decisão e fu i fa la r com ela. Sai impressionado — era o primeiro
namoro, idéias completamente mudadas; terminar o curso de ginásio,
ganhar dinheiro para me casar. Prometí escrever-lhe. Trocamos algu
mas cartas. A vida não se alterou — anos de estudo, de tocatas, de
serenatas. Terminando o curso, volto. O velho providenciou-me tra
balho em um banco. O ordenado inicial era pequeno, e eu gostava de
vestir-me bem, andar na moda. Tinha dificuldade em conversar com
a moça. Ela era órfã, filh a de preto e italiano. Estava sendo criada pela
fam ília para a qu alfazia serviços domésticos. Afam ília impedia-a que
conversasse comigo. Eu ia fazer-lhe serenatas e conversãvamos às es
condidas. Criou-se um “ja z z ”, “Bico-doce”. Criei um com o nome “Bi-
co-azedo”. Em todas as festas, tocávamos. Eu sempre am ando a moça.
A fam ília não tinha confiança em mim: “Moço de serenata não dá
futuro. ”Fiquei desgostoso, sem vontade de estudar, e comecei a beber.
O velho me aconselhava: “Isso não lhe fica bem, você chegou até aqui
em sua carreira.” O velho tinha um amigo fazendeiro, com o qual
combinou dar-me uma lição: mas eu não sabia. Recebi ordem para ir37
37 Abreviatura de jazz-band, conjunto musical especializado no gênero jazzístico.
83
T
até aquela fazenda, sob algum pretexto. Lá chegando, o fazendeiro
mandou-me para a roça, com ordem de me darem serviço. Tinha
como cam a uma esteira sobre um cavalete, como os cam aradas. Fui
incumbido de levar comida aos camaradas. Foi-me um choque. Mas
eu tinha um físico forte e orgulho, devia submeter-me sem queixa. En
quanto os cam aradas almoçavam, eu tinha de capinar. “Hei de aguen
tar sem dar o braço a torcer”, pensava, “vou mostrar que sou traba
lhador. ”Por tocar violão e cqntar, fiqu ei estimado pelos camaradas. A
form a da vida deles me revoltava. Alguns queriam sair de lá e não
podiam , faltava-lhes dinheiro. Depois da revolta, fu i me adaptando
ali, conformando-me. Afazen da era completamente isolada e só havia
um trem. Cheguei à conclusão de que ali eu não teria futuro. Lã per
manecí quatro meses, tomando parte no sofrimento daquela gente.
Cansei-me e fugi da fazen da. Não podendo tomar o trem, fu i a pé, até
alcançar a estrada de rodagem e ficar à espera de algum cam inhão
que me conduzisse de volta. Em trapos, fu i procurar o velho. Contei-lhe
as misérias da fazenda, que nada prometia como futuro, ganhando
Cr$ 50,00 por mês. Aquela vida tinha-me mudado a percepção do
sofrimento. O velho contou-me, então, que havia sido uma lição, por
eu estar perdendo a noção de ser alguma coisa, mas agora, que eu já
estava com mais senso, ia me encaminhar. Começamos a providenciar
minha saída da cidade, por causa da moça. No banco em que traba
lhava, descobri que iam criar uma coletoria noutra cidade. Decidi ir
para lá, para esquecê-la. O velho conseguiu minha remoção. Aceitei a
única vaga, que era a de faxineiro; não me incomodei com isso. Nas
vésperas da partida, fu i despedir-me da moça; ela estava de acordo
— eu ia guardar o dinheiro para nos casarmos. Na nova cidade, sen
tia-me só, entre desconhecidos. Trabalhava no banco, no serviço de
limpeza, ganhando Cr$ 150,00por mês. Fazia economia. Sempre fu i
caprichoso; eu comprava toalhas e flores para o meu quarto na pen
são. Tocava e cantava com as crianças; sempre gostei de crianças. No
84
I
banco, poucos sabiam que eu linha o curso ginasial. Havia mais de
um ano que eu estava como contínuo. Ogerente promoveu-me a auxi
liar de carteira, em cujo cargo perm anecí um ano, passando a fu n
cionário de carteira. As fam ílias que davam festas iam procurar-me
no banco — eu era chefe do “ja z z ”, através do que fu i me impondo no
banco. Somente fu i a passeio, ansioso para ver a namorada, depois de
três anos. Trajava-me bem.
85
se casar com negro? Não procurei saber. Aborreci-me; fiqu ei um mês
na cidade e voltei para o banco. No trabalho já encontrava hostilidade;
tudo era diferente para mim — o gerente que me chamava para lim
p ar um objeto... Havia uma moça que eu sabia gostava de mim, mas
sempre eviteifalar-lhe sobre esse assunto, por estar inclinado pela outra.
Barrado pela primeira, decidi conversar com a última. Era uma moça
boazinha, mulatinha, filha de mulatos. Ela cantava no coro da igreja.
Eu ia fazer-lhe serenatas. No espírito, tinha uma revolta: sempre an
dei direito, desde 16 anos tinha intenção de me casar. Não tocava na
economia. Passeava com a atual namorada. Os pais, porém, se opuse
ram. Mais se assentou em minha mente que era devido ao preconceito
de cor. Ela me queria muito. Nunca conversei com os pais. Ela e os
vizinhos contavam que ela apanhava por minha causa. Duas vezes em
que passei pela casa dela, a mãe me xingou de negrofeiticeiro, e me ati
raram pedra. Não quis mais namorá-la; não estava habituado àquele
tratamento. Disse-lhe que minha intenção era honesta. Ela respondeu-
me que tinha 20 anos e com 21 fa ria o que entendesse. Eu, porém, ti
nha perdido o entusiasmo. Alguns amigos souberam — vexou-me. Nesse
período, vem o momento de fraqueza: a economia que tinha gastei em
cabarés. Entreguei-me à vida alegre. No banco, a mesma atitude do
gerente. Os colegas sempre me quiseram bem. Certo dia, eu estava muito
aborrecido. Ogerente me mandou fa z er um serviço particular, recusei-
me: eu era empregado do banco e não empregado particular. Exaltamo-
nos. Ele me xingou de negrinho. Não houve consequências piores. Pedi
transferência para a matriz. Como não me dessem, pedi demissão.
86
(
aos amigos que não era o que pensavam; eu era mais capaz. Tinha o
am or próprio espicaçaclo. Depois de cinco anos de curso, diplomei-me.
Lá não percebí diferença entre os estudantes. Esqueci as peripécias an
teriores. Procurei estudar para me p ôr por cima, porque eu sentia que
queriam me inferiorizar e meu esforço era para não me sentir inferior.
Paguei o curso com economias que me sobraram e com auxílio do velho,
dentista de muita experiência. Os primeiros contatos com clientes fo
ram cheios de indecisão, de falta de confiança em mim, de medo de er
rar. Não fiqu ei muito tempo com o velho. Na Revolução de 30, vim para
São Paulo, incorporar-me á classe que estava sendo chamada. Quando
ia embarcar, destacado para Itararé, terminou a Revolução. Conheci
entre os soldados estudantes e me entusiasmei por ficar em São Paulo.
Achei São Paulo diferente — fu i rever os lugares que se mantinham
gravados na lembrança: a rua São Luiz, a feira do largo do Aroucbe,
etc. Fiquei em São Paulo, mas não tinha ideia sobre que fazer. Es
creví ao velho sobre minha decisão. Nesse período de indecisão, achei
conveniente dar uma chegada à cidade natal, para descobrir meus
parentes. Encontrei um tio que me deu o endereço de parentes em São
Paulo. Vim procurá-los. Encontrei minha tia materna casada, uma
irmã, um irmão e primos, cinco pessoas morando em um quartinho.
Deram-me um canto; mas eu não estava acostumado a morar mal,
a ver a mulher sair cedo para o trabalho. Pensei em ir morar numa
pensão. Mas não ficaria bem. Minha tia sentiría. Além disso, tinha
uma irmã solteira, ela precisava casar-se. Achei que precisavam de
mim e, por sentimentalismo, fiquei. Levantava-me pela manhã quando
já não tinha ninguém em casa; todos tinham ido para o trabalho. Eu
não tinha com quem conversar, estranhava. Saí à procura de empre
go, pois não tinha dinheiro para montar um escritório. Fui trabalhar
em prótese, com um dentista. Aos poucos, fu i conhecendo o meio de
vida da fam ília. Era esquisito cham ar minha tia de “titia”, como meus
irmãos, tomar-lhe a bênção. Vi que minha tia não se dava com o gênio
87
de minha irmã; estavam sempre em conflito. Meu primo mais velho (40
anos de idade) era carnavalesco, meu irmão também. Convidavam-
me, mas eu chegava em casa e ia estudar; chamavam-me de caipira.
Tanto insistiram que fu i a um baile de casamento. Fui pensando que
fosse, como no Interior, num grande salão. Mas encontrei mais de cem
negros em uma salinha. Não me senti bem ali, quis ir embora. Vi que
era meu dever perm anecer em casa até que minha irmã se casasse. Ela
contou-me que a tia a perseguia, impedia-a em todo namoro. Depois
de um ano mais ou menos, protegi o namoro dela com um rapaz, até
que fizem os o casamento; hoje ela está bem casada. Ensinei ao meu
irmão carnavalesco, e ele se empregou no banco. Os velhos já me ti
nham estima; eu orientava a casa. Outra prim a também se casou, a
qual também auxiliei. Meu irmão casou-se também. Ficamos eu, os
velhos e o primo de maus costumes, que nunca quis trabalhar. Uma
ocasião, minha tia zangou-se comigo, porque eu quis corrigir o filho.
Em conflito com ela e na situação de sobrinho, eu quis sair de casa.
Mas ela veio às boas, e eu fiquei. Em 1933, conheci uma organização
de pretos. Propus lecionar os negros da sociedade, e aceitaram a pro
posta. Toda noite, durante dois anos, lecionei. Então fu i convidado a
fa z er parte da diretoria. Mostrava-me refratãrio a namorar. Tinham-
me como orgulhoso; não era tal, não me preocupava com isso. Via esse
aspecto com indiferença; não prestava atenção nas moças. As moças
manifestavam-me, e eu sempre desviava: não tinha intenções. Porfim,
fiqu ei gostando de uma moça daquela sociedade. Conversava com ela,
nunca, porém, dando demonstração de minha intenção. Estudando-a
sempre, procurando conhecer a fam ília. Ela percebia meu interesse.
Falavam. Eu tinha me habituado a fa z er companhia aos velhos. Estes,
especialmente minha tia, opuseram-se ao meu namoro. Eu tinha en
tão três preocupações importantes: a obrigação dos negros, o am or por
aquela moça e a necessidade de ganhar dinheiro, de me estabelecer.
Encontrando oposição em casa e pertencendo a uma associação de
88
í
negros que exigia uma conduta rela, comecei a namorar escondido.
Porfim , fa lei com. a minha tia que não podería haver cisão na fam ília
se eu trabalhava pela organização do negro. Ela confessou-se com um
padre, que a aconselhou a não se opor.
89
Essa vida durou cinco meses. O que mais m epreocupava eram os cli
entes com serviço por terminar. Consigo trabalhar no escritório de um
colega, atendendo-lhe os clientes em troca da possibilidade de termi
nar o trabalho dos meus clientes. Como ele tivesse muita clínica e não
gostasse de trabalhar, propôs-me um ordenado. Não tendo despesa, fu i
guardando o ordenado. A sogra me queria bem. Ela era proprietária
e conhecia bem a situação; as questões de casa ela as resolvia com
minha mulher. Depois de seis meses mais ou menos, dei a entrada de
outro consultório, mas não o retirei; continuei pagando. Minha mu
lher propôs trabalhar. Descubro um concurso para uma Secretaria do
Estado. Ingressei para o funcionalismo, ganhando Cr$ 300,00; depois
de fa z er um concurso, passo a Cr$ 600,00. Consegui pagar todo o con
sultório e montá-lo. Comprei novamente móveis, aluguei casa de Cr$
300,00, montei-a. Minha mulher é filh a de mulatos. Ela é inteligente.
Ela compreende o problem a do negro, mas não gosta do meio, esqui
va-se. Ela tem irmãos; são operários, não se interessam pelo problema
racial. Minha mulher não quis deixar de trabalhar, achando conve
niente ajudar a casa. Tendo ficad o grávida, fo i obrigada a deixar o
trabalho. Temos um filho com 7 meses. Estou estabilizado.
90
— Traços do minha personalidade: sou sentimental quando se trata
de sofrimento humano. Tendo de resolver situações sérias, de tomar
atitudes violentas, sinto-me bem, isto é, sou calmo até demais; resolvo
com ponderação, não me descontrolo. Quando fa ço um ato que depois
reprovo, não me arrependo, mas fico com aquilo no pensamento du
rante meses. Assim, por exemplo, com amigos: se me desagradam, não
sei discutir, fico magoado; procuro não encontrá-los, porque fico en
vergonhado — não posso acreditar que tivessem tal ou tal atitude. Sou
impulsivo, com atitudes extremadas. Em todas as atitudes da associ
ação, procurava impor respeito, demonstrar que eu era capaz de fa zer
0 que eles faziam ; procurava sempre enaltecer o negro que a mim
se chegasse humildemente; dedico-me a uma atividade apaixonada-
mente e me preocupo porque sacrifico outros trabalhos. Não consegui
harm onizar o consultório com os trabalhos sociais. Não sei ficar sem
fazer nada; preciso ter o que me preocupe, fa ç a pensar e lutar. Vejo-me
com muita coisa para fa z er a um só tempo. Ajo mais sob o domínio
do coração do que do cérebro. Tenho mais sentimento coletivo do que
ambições pessoais. Não tinha equilíbrio de sentimento. Sou de muita
boa-fé. Desejo intensamente ser querido, considerado. Faço um tra
balho a um cliente e, se algum tempo depois, havendo defeito, o cliente
volta, em lugar de impor-lhe condições, fa ço o trabalho gratuitamente
pelo desejo de que a pessoa fique satisfeita. Não admito dúvidas quanto
a minha capacidade. Certa vez, um enfermeiro, durante todo o seu
tratamento, manifestava desconfiança em minha especialidade profis
sional; percebia pelas perguntas que fa z ia sobre o tratamento. Dei-lhe
todas as explicações, inclusive sobre anatomia, e o despedi. De outra
vez, eu fechava o gabinete dentário. Eram 11 horas da noite, quando
chega uma senhora de automóvel. Ela entra e me pergunta se eu era
capaz de lhe aliviar a dor. Examino o dente, fa ço o diagnóstico — ex
tração. Cobro-lhe Cr$ 100,00, porque perguntou se eu era capaz. Ela
recorreu a mim, porque àquela hora não encontrava outro dentista.
91
— Tenho conflito mental: um, devido a minha situação racial; dois,
devido a minha situação social. Situação racial: o conflito decorre
p or eu não alcançar uma explicação para a existência de raças dife
rentes. As diferenças raciais são explicadas de váriasform as: religiosa,
social, etc. Vejo a desigualdade existente em várias raças, o que motiva
conflito. Devia ser uma raça só. Situação social: acho que a situação
social não se justifica. Creio que o conflito racial tende a desaparecer
em fa c e do conflito social. Muitas raças em situação social elevada
desconhecem o problem a racial: p or exemplo, sírios ricos. A situação
social influi na racial. São dois conflitos ligados. A situação racial
poderá desaparecer, prevalecendo a social, p or diferença de posses.
Por questões econômicas, sinto o conflito social em minha mente.
92
fessorpreto, há algum tempo, fe z concurso para uma carteira de curso
secundário. Foi aprovado, mas lhe opuseram obstáculos de ordem ad
ministrativa e mesmo jurídica. O negro consciente sente isso como uma
questão moral, por ser negro. Fica abalado, desanimado, revolucionário
por ser negro. Mesmo que o negro não tenha preocupação com estefato,
chega à conclusão de que existe o preconceito racial. Uma vez que o
negro suba economicamente, com melhor padrão de vida, desaparece
de sua mente, não de todo, mas se atenua o pensamento sobre a exis
tência de um problema puramente racial. Aquele que está em situação
social inferior acumula a situação racial. Não existiría o preconceito se
50% dos negros fossem aceitos. Não existe preconceito individual, mas
coletivo. Em São Paulo, pode-se contar o número mínimo de negros que
tiveram ascensão social. Há má vontade ou vergonha de cham ar o ne
gro, enaltecendo valores. A criança negra devia ter educação diferente
da que recebe — não basta ter o mesmo ensino. Na escola, o colega não
quer sentar com o negrinho, ou brincar com o negrinho. Nos contos es
colares, o negrinho está sempre em posição inferior. O negrinho nunca
recita no palco; é como o adulto que estuda e não é aproveitado. A ami
zade entre brancos e negros é possível. Eu consigo, me retraindo e indo
ao branco preparado. Retraio-me no sentido de não participar da farra
dos brancos; fa ço questão dessa linha de conduta, porque é sempre o
negro o culpado — fo i o negro quem levou o branco à bebida ou a outra
farra, aconteceu porque ele estava em companhia do negro, etc. Se me
convidam para uma festa de gala, vou e, se percebo diferença em me
tratar, eu me retiro, porque não me sinto bem. O branco que me convi
dou, já pensando em que eu fosse menosprezado por alguém, procura
com modos espalhafatosos, indelicados para o meu íntimo, me enalte
cer com apresentações bombásticas. Meu modo de pensar torna-se pior
ainda — para estar eu ali é preciso um arauto; se minha presença é
forçada, não é um ato natural, não deveria preocupar tanto aquele que
me convida. Eu queria estar na reunião naturalmente, como os outros,
93
e, se eu lhe disser que me desagradam tais exageros na apresentação,
o branco não compreenderá. Certa vez indagaram-me: “Se você fosse
convidado para uma festa de gala por brancos, você aceitaria o con
vite e iria?”Aceitaria, por quê? “Porque quero convidá-lo para minha
festa de form atura. Mas se você fosse mal recebido que faria?”Eu não
consentiría em desfazer a festa, apenas convidaria vocês, que me convi
daram, a se retirarem comigo, como protesto.
— Não tenho fé nos pretos: sou contra os pretos. Opreto é uma raça
miserável de gente ignorante. Evito a companhia deles. Tenho pre
venção com o mulato. Considero o branco pela seleção que ele fa z em
festas, não permitindo a entrada de preto. Procuro vestir-me bem para
ter boa aparência.
94
quatro filhos pardos, os quais fizeram curso secundário. Relato
do entrevistado:
95
— O branco diz não ter preconceito contra o negro, mas se contradiz
nas ações e atitudes. Observa-se a tendência do branco para rebaixar
o negro. Eu me divirto com as dificuldades do branco para ocultar
seu preconceito, quando, por exemplo, não deseja convidar o negro
amigo, companheiro, para festas fam iliares. “Negro é negro; onde já se
viu um negro doutor e uma negra de luvas!” Opreto, por sua vez, não
quer ser negro. Os anim ais parecem mais inteligentes: um cavalo preto
ou branco é sempre um cavalo, mas um homem preto é um negro.
96
contra o branco se explicaria por ter sofrido intenso processo
de identificação. Nos 13 casos até agora apresentados, seis dos
entrevistados afirmaram ser criados por brancos e outros qua
tro tiveram íntimo convívio com brancos na posição de empre
gados. Tiveram pois, na infância, mais contato com brancos
do que com pretos. No convívio íntimo com brancos, o preto
adquire as maneiras de pensar e sentir do branco também no
que se refere ao próprio preto, passando a ter para o preto a
mesma atitude e os mesmos sentimentos do branco. Em virtude
dos contatos primários da infância e do mecanismo psíquico da
identificação, o preto introjeta as idéias do branco e passa então
a ver os pretos do ponto de vista do branco, desprezando-os.
Vendo-se também a si próprio do ponto de vista do branco,
perde o direito de reagir contra o branco. Suas energias são
empenhadas no esforço de eliminar os motivos do conceito de
inferioridade, a fim de conquistar a consideração do branco.
Com mentalidade formada pelo branco, o preto desenvolve o
autoideal de branco, que não se expressa abertamente no dese
jo de ser branco. O preto luta para anular o sentimento de in
ferioridade desenvolvido em face das atitudes de restrições do
branco. Empenha-se então em conseguir características de sta-
tus superior, através do casamento, do exercício de profissões
liberais, do cultivo intelectual e da “boa aparência”.
Entre os pretos criados por brancos, observamos que uns
conservam status social inferior, enquanto outros atingem as
censão social. O exam e do material coligido nas entrevistas
sugere que os primeiros foram criadas por brancos com o o b
jetivo de torná-las empregados domésticos e os segundos re
ceberam a educação e instrução orientada dado o interesse da
família que os criava. Estes, educado pelos brancos com mais
atenção, são os que demonstram consciência de cor.
97
O sentimento de inferioridade ligado à consciência de cor,
a inteligência individual e o incentivo proveniente do contato
primário com brancos parecem produzir atitudes que influen
ciam a ascensão social do preto.
Podem os verificar a atuação de fator inteligência através das
palavras dos entrevistados apresentados nos casos 8 e 9, res
pectivamente:
98
í
de terminar o curso." Mas a transferência não fo i possível, na cidade
só havia escola normal. Voltei para a cidade onde havia começado o
ginásio, com todas as despesas garantidas pelo velho. Fiquei contente.
Mas comecei a pensar que ficava mal o velho pagar-m e tudo, apesar de
eu ser muito econômico. Não tendo, porém, aptidão alguma, procurei
um lugar para tocar. Estávamos na febre do jazz. Consegui tocar no
“ja z z ” de um restaurante, à noite. Ganhava Cr$ 200,00 por mês. Es
creví ao velho que a música já estava valendo alguma coisa.
99
e outro pequenos serviços desta ordem. Fui criando espírito de curiosi
dade. Eu tinha medo do escuro e fa z ia força para dormir logo e não
me lembrar de que estava só. Lã perm aneci dois anos. Uma das filhas,
casando-se, fo i residir numa cidade do Interior. Mandaram-me para
lã. Fui sozinho. Contava 15 anos. Frequentei uma escola de padres,
curso de admissão ao ginásio. Em casa, tinha a obrigação do serviço
doméstico, limpar o pó, vidros, etc. Eu gostava da escola, voltava sa
tisfeito. Quase não tinha com quem brincar. Inventava brinquedo no
quintal com form igas, besouro. Tinha medo de grilo, porque cantava.
Entrei para o ginásio. Então tinha esporte e a companhia de rapazes
bem arrumados.
100
Nos dois casos referidos, notamos: as circunstâncias da infân
cia, onde os contatos primários entre brancos e pretos permitem
a integração do preto. Mais tarde, em face da frustração do
desejo de conservar contatos primários com brancos, verifica-
se o desenvolvimento da consciência de cor no conflito mental
entre o desejo de consideração e correspondência e a reali
dade exterior aquém de suas aspirações, pelas restrições que
os brancos da mesma classe lhe fazem. Na solução do conflito
mental, observamos a atuação do fator capacidade intelectiva
do indivíduo e o incentivo oferecido pelo branco, que o criava
para “fazê-lo gente”, não apenas um empregado doméstico.
Entretanto, o acesso ocupacional não lhe confere status so
cial igual ao do branco do mesmo nível profissional, econôm i
co e intelectual. O preto que sentia dele se exigirem maiores
esforços para cursar escolas superiores ou obter um “bom ” em
prego novamente se traumatiza com as restrições que sofre
na esfera social do branco. Sente-se considerado apenas com o
“profissional”, não com o “pessoa”.
A conquista de um diploma de escola superior ou de um
cargo de responsabilidade não garante ao negro a satisfação do
desejo de ser aceito socialmente sem restrições, conform e as
experiências m encionadas no caso n2 8:
101
assim como eu e minha fam ília em casa deles. Vejo nestas am izades a
gratidão por minha mãe ter criado pessoas da fam ília deles. Quando
criança, eu e eles sempre éramos tratados igualmente. [...) Mesmo estes
amigos íntimos demonstram preconceito em certas ocasiões. Estava
mos em Santos e terminãvamos o jantar, quando alguém sugeriu ir
mos ao cassino. Para lã nos encaminhamos, e um deles fa la ao ouvido
do outro. Pela resposta — “Não, ele é branco. ”—, compreendí o que
se passava e disse: “Não voy. ao cassino com vocês; podería ir, porque
eu entraria, pois o gerente é amigo meu, mas não quero ir. ”Insistiram
para que eu fosse, mas eu não teria prazer em estar lã. Isto significa
que um amigo íntimo, branco, de infância, teve receio de entrar no
cassino em minha companhia.
102
tios desejos de consideração e correspondência em virtude do
sentimento de inferioridade. A vida do preto torna-se uma luta
contínua, mais diretamente contra seu sentimento de inferiori
dade, do que contra as atitudes do branco que motivam a con
cepção de si próprio.
C) ajustamento social do preto na forma de conformismo se
ria coadjuvado pelas atitudes dos brancos que procuram evitar
susceptibilidades. Tais atitudes de branco, respeitando a sen
sibilidade daqueles, facilitariam a repressão do sentimento de
hostilidade do preto, situação que explicaria a observação da
parte de negros de que não possuem incentivos para união por
"não serem tão espicaçado pelos brancos”.
O sofrimento do preto em face das restrições sociais que
lhe são impostas o faz invejar a situação social e econôm ica
do negro norte-americano. Aquele sentimento de inveja sugere
que, se de um lado a segregação dos negros em minoria racial
denota o grau de distância social na linha de antagonismo ra
cial, de outro a segregação constituiría uma armadura coletiva
dentro da qual o grupo se protege par obter a satisfação de
desejos vitais. Comparando com a situação racial de São Paulo,
a possibilidade de ascensão que o sistema de classes sociais
oferece evidencia m enor distância social na linha racial; mas,
por outro lado, o indivíduo se vê mais exposto às rejeições
exteriores, assim com o sem meios para alcançar a satisfação de
desejos vedados pelas classes dominantes.
103
pesquisadores — que o status e o papel de um grupo mestiço
particular podem ser tornado com o índice do problem a racial
mais largo, dada a circunstância particular do híbrido, que le
vanta para a comunidade o problema especial de determinar
seu lugar dentro da organização social.
Caso n2 14 — Refere-se a uma m oça de 18 anos de idade de
cor parda. É filha ilegítima de mãe preta e pai pardo. Possui três
irmãos, pelo lado materno, sendo uma irmã de 16 anos, filha
de um português, um m enino de 11 anos e outro de 10 anos,
filhos de um preto. A entrevistada fez até o 32 grau primário; é
cozinheira. Relata-nos o seguinte:
104
I
— Desde menina trabalhei em fábrica, até a idade de 18 anos, quan
do me uni ao companheiro, certa de que nos casaríamos. Meu p a i e
minha avó, até há alguns meses, ignoravam que eu estava legalmente
ligada ao meu companheiro. Vivemos em continuo conflito, porque
ele não se decide por uma das mulheres. Muitas vezes, tive vontade de
dar na mulher dele, que com ele se casou com o único fito de afastá-lo
de mim. Não agrido quando ela vem fa z er escândalo à minha porta,
lembrando que os jornais dariam a notícia “Uma negra... ou uma
parda espancou...” Se eu fosse branca, já a teria espancado. Muita
gente pensa que, por ser de cor, a pessoa é relaxada. Gosto de gente que
se arruma bem. Há pessoas que nos desprezam por a gente ser de cor,
e têm razão: os de cor são relaxados.
— Casei-me com um preto para jam ais ser cham ada de “negra”pelo
marido, ao passo que uma mulher mais clara do que o marido nunca o
chamará de “negro”. Vivemos fechados dentro da fam ília, onde não se
focaliza a cor. Minha sogra não permitiu que as filhas se casassem com
homens mais claros do que elas, para não serem desprezadas pelo mari
do, enquanto todos osfilhos se casaram com mulheres mais claras. Assim
agiram para evitar que a corfosse motivo de desgostos, e somosfelizes.
105
— Minha mãe dizia sempre âs filhas que se casassem com homens
brancos. Este conselho decorria de própria experiência, por ter tido
um casamento feliz, e pela observação da irmã, que, casada com. um
preto, muito sofreu. Foi por influência de minha mãe que me casei
com um homem branco. Aos 19 anos, fu i retirada da fábrica, porque
eu gostava de um homem de cor. Minha irmã mais velha, ao contrário,
até hoje se conserva solteira, à espera de um marido branco. Conhecí
meu marido numa festa fam iliar. À primeira vista, ele achou que eu
devia ser a “mocinha de casa”. Certa vez, tendo me convidado para ir
ao cinema e eu rejeitado o convite, form ou um bom juízo a meu res
peito. Pedida em casamento, tive muito medo de encontrar a oposição
da fam ília dele, por eu ser de cor. Isto não se deu, fu i bem recebida.
Durante os seis primeiros de casada, residi com meus sogros, onde fu i
feliz, não havendo anim osidade como existia entre minha sogra e a
outra nora branca. Eu agradava minha sogra no trabalho: nunca tive
preguiça e tirava o trabalho das mãos dela, poupando-a. Ainda hoje,
aos sábados, vou à casa dela, lavar-lhe a batería de cozinha. Estive
hospitalizada para fa z er uma operação e, durante minha ausência,
meu marido teve propostas amorosas dentro de minha casa, pois ele,
sendo sapateiro, trabalha em casa. Enfureci-me, tive ciúmes e desejo
de matá-lo. Briguei com aquela vizinha, que muito me ofendeu, xin
gando-me de negra à toa.
— Desejo que meusfilhos sigam minha profissão, por ser um modo fácil
de ganhar dinheiro. Faço questão que a minha fam ília tenha boa ali
mentação. Sou respeitado pelos filhos. Fui criado no estado do Rio por
106
(
muito boa Jumítía, onde mantenho boas relações. Moro há 15 anos em
São Paulo, e quando aqui cheguei senti diferença no trato por causa da
cor. Existe preconceito entre as pessoas de cor por inveja, mau olhado.
107
— Perdi minha mãe aos 2 anos de idade. Não conhecí meu pai, rnas
sempre ouvifalar dele. Eu era criança quando me disseram, que ele havia,
morrido, e meu patrão comprou uma besta da fazen da de meu pai, eu
adorava aquela besta por que tinha pertencido ao meu pai. Sofri muito
quando criança, por falta de carinho. Trabalhei 12 anos e a patroa
guarda-me o dinheiro, ela morrendo, eu não quis cobrar meus irmãos de
criação, para evitar desarmonia. Vivo só, não frequento bailes. A gente
de cor não presta, não melhora; não é gente unida; quando melhoram a
posição, procuram branco para casar. Épreciso clarear a raça.
— Quanto a cor, nunca senti dificuldade por ser pessoa de cor. Dou-
me tanto com brancos, como com pretos. Sei que há brancos que des
prezam, mas nunca senti isso. Minha melhor amiga é uma compa
nheira branca defãbrica.
108
desprezo com o negro que inibe suas reações, com o no caso ns
15, em que a entrevistada afirmou não reagir para não ter seu
nome no jornal ligado à especificação de sua cor. A consciência
de cor parece mais acentuada no mulato do que no preto da
mesma classe social. Observamos que o mulato age pensando
sempre na cor da epiderme, quando se case seja com um preto,
seja com um mulato ou um branco. Ou se une a um preto, para
se defender de ser ridicularizado e desprezado pelo branco,
como no caso nQ 1 6 , em que a entrevistada decidiu casar-se
com preto, o mesm o acontecendo no caso na 14; ou procurar
fugir do preto e ligar-se ao branco, pelo mesm o desejo de não
ser desprezado com o preto. A possibilidade de o mulato poder
se defender de ser desprezado com o negro, unindo-se ao preto
ou ao branco, refletiria atitudes exteriores do branco e do preto
para o mulato. Pode-se aceitá-lo, com o no caso ns 17, e pode-
se rejeitá-lo, considerando-o o negro, conform e o receio mani
festado pela entrevistada do caso n2 17.
O preto do sexo masculino parece ter preferência pelo mu
lato e pelo branco para as ligações matrimoniais. Por sua vez,
a mulher mais clara o aceitaria com o defesa e conformismo;
neste sentido fala o caso n2 16 .
A consciência de cor apresenta-se mais pronunciada no mu
lato do que no preto, talvez em consequência da situação de
estar ligado biológica e socialmente aos dois grupos raciais.
Esbatidos os traços físicos da raça dominada, ao mesmo tempo
em que apresenta traços negroides, o híbrido teria o conflito
mental exacerbado. Por um lado, é mais intenso o processo de
identificação com o branco, tendo mais oportunidades para se
aproximar do branco do que o preto; mas, por outro lado, as
marcas raciais podem desenvolver a rejeição social do branco.
Tudo se passa com o se o mulato, sentindo-se com mais direito
109
de ser branco, se tornasse mais consciente das atitudes de res
trição do branco.
110
companhia de prelos ou mulatos, e, diante do branco, não o sinto me
repelindo; d aí me convencer que o desprezo da parte do branco não
era tão forte como eu pensava. Convenci-me de que não sou preta,
apenas descendo de preto pelo lado paterno. Hoje se espera que uma
coisa se realize e se d ã o contrário; atribuo a causa à cor. Por exemplo,
em questão de casamento, penso que até hoje não deu certo por causa
da cor. Apesar disso, sinto-me mais independente do complexo; não
sou tão tímida como fu i. Evito a companhia de preto e do mulato, por
ser um deles, por vergonha. Ninguém quer a companhia deles, a gente
também fica acanhada de andar com eles. Não seria capaz de am ar
um preto ou um mulato, mas, desde que não se percebam traços de
ascendência preta, eu me casaria com uma tal pessoa. O que importa
é a aparência. Jã tive muitas experiências desagradáveis por causa
da cor. Há dias, fu i obrigada a discutir com duas pessoas estranhas,
brancas, por questão de lugar em uma condução, e diz-me uma delas:
“A gente se meter com negro é nisso que dá. ”Nas atitudes com namo
rado, deixo que ele resolva se me quer ou não. Se eu fosse branca,
não seria tão submissa, mas tomaria a iniciativa para encam inhar
ao casamento.
— Nasci sem consciência de cor, isto é, não sabia que fosse considera
do diferente: creio que por viver onde não havia pretos. A prim eira vez
que tive um choquefo i aos 7 anos, quando entrei para o grupo escolar.
Briguei no primeiro dia de aula: um menino me chamou de negrinho.
Com o tempo, fu i conquistando a estima dos colegas e esqueci o choque.
No curso secundário, as pessoas mais educadas não me chamavam de
112
(
negrinho, só na rua, o que sempre me causava aborrecimentos. Depois
dos 15 anos, percebí que havia má vontade da parte de certos profes
sores devida à minha cor: embora eu estudasse, não me davam notas
para prom oção. Assim, perdi quatro anos e me desencorajei de seguir
o curso superior. Hoje, sei que aquelas reprovações tiveram força pre
ponderante em meu destino. Dos 18 aos 21 anos, eu era diferente dos
outros, não namorava. Quando consegui namorar, tratava-se de uma
moça da minha cor. Dois anos depois, casava-me com ela; não que a
amasse, mas para fugir a outras dificuldades de casa. Essefato se deu
há 10 anos. Atualmente, não tenho conflitos ou problemas por causa
da cor. Fiz esforço para integrar-me na classe média. Antes, meus am i
gos eram mulatos. Então, desagradava-me ouvir "você e fulano são
inseparáveis”; ressaltavam aquilo que me unia, que havia de comum
entre eu e os amigos: a cor. Comentários desta natureza me levaram
a evitar a companhia de mulatos. Hoje, meus amigos são brancos.
Sinto-me considerado p or eles; são meus colegas de trabalho. É impos
sível conciliar a classe de mulatos com a classe média de brancos. O
preconceito na form a que eu sinto é uma certa timidez por uma ideia
fixa: não tenho boa aparência. Entretanto, muitas vezes se pode ser
apreciado. Sempre há umas más vontades contra a gente, devidas à
cor, como tirar-nos o acesso. Grande parte dos brancos falam com boa
vontade sobre os pretos, encorajando-os. Muitos amigosfazem questão
da minha companhia; justificam-se, dizendo-me que não sou preto. O
preto está em situação inferior. Não tem acesso nos empregos. Vive nos
botequins a gesticular, demonstrando mais aos brancos que é inferior.
Quando aparece um preto que se destaca, o branco fica adm irado pelo
conceito que tem do preto como grupo. O mulato está muito melhor.
Em bailes, o preto toma uma atitude de bárbaro, dançando, pulando
e rindo muito. O mulato dá aos bailes um caráter civilizado, aproxi-
mando-se dos brancos. O mulato é mais competente e está em melhor
situação na vida. Há preconceito entre o mulato e o preto. O mulato
113
fica aborrecido quando em seu baile começa a aparecer muito preto.
Ospretos sentem complexo de inferioridade pelo qual justificam seus
fracassos: sou preto.
114
superiores, o negro sofre campanha. Eu senti oposição do meio. Hoje
me imponho pelo meu cargo. A campanha ou oposição por preconceito
varia com as classes sociais. Opreconceito consiste em não querer que o
indivíduo de cor apareça. O branco assim age em defesa própria. Nisto
vai um pouco de imitação do que acontece nos Estados Unidos. Aqui,
os brancos desejam impressionar o estrangeiro de que só existe gente
branca. Procurar esconder o preto já é da mentalidade do povo. Se um
descendente de preto tiver aspecto de branco, mesmo que conheçam sua
ascendência, passa por branco. Aqui não se conformam com o fato de
um preto ocupar situação superior. Ao povo parece causar vergonha o
preto ter ação na vida social do País. Opreto é muito intuitivo. Vem de
uma civilização antiga, decaída, que já teve o seu apogeu. Há conceitos
errados em torno do negro: “opreto é desonesto ”, diz-se. O que acontece
é o preto ser pessoa que vive com dificuldade; vive mal, rouba quando
necessita ou por educação defeituosa. Opreto em si não é trabalhador.
É mais sociável que o descendente de índio. Opreconceito dirigido ao
mestiço obedece a leis de acordo com o predomínio de raça em sua
personalidade e traços físicos. Um negro não gosta de ver outro bem. Já
um negro em situação m elhorfaz-lhe campanha contra: “Um elemento
de minha cor por cima quer dizer que eu sou inferior. ”A diferença de
situação entre o Brasil e os Estados Unidos é que aqui não demonstra
ram ao negro o preconceito numa hostilidade aberta. A situação de
dependência em que o branco o mantevefe z com que ele caísse de uma
vez. O negro saído do cativeiro, acostumado a depender, fo i solto na
rua. O negro vinha da África com organização tribal; aqui teve que se
adaptar ao senhor, para depois ser abandonado. Na casa do senhor,
havia o preto antipatizado e o que gozava de certas regalias, como
a preta que fa z ia doce na casa da sinhã, o preto cocheiro — porém,
não tendo voz ativa, nada podiam fa z er em favor dos outros. Depois
de desorganizada a hierarquia negra, a abolição vinha abandoná-los
na rua. Muitos não saíram da fazenda, por não terem para onde ir. A
115
abolição resultou em independência de indivíduos e não de blocos de
indivíduos. Portanto, após a abolição, não podia haver uma igualdade
entre pretos e brancos, e nem mesmo agora. O elemento branco com
o mando nas mãos é quem predom ina — há negros que gozam de
melhor situação, mas para servir de equilíbrio em controvérsias. O que
concorre para diminuir o preconceito são os interesses circunstanciais.
Nos mestiços em que os traços dos ascendentes pretos se esbateram nota-
se a preocupação em ocultar sua origem por vergonha.
117
usado nos Estados Unidos, isto é, uma completa separação; lería ele de
produzir para acom panhar o ritmo dos brancos. Poderemos afirmar
que o negro da classe alta dos Estados Unidos é sem dúvida comparável
ao branco da classe média daqui.
— Moro em São Paulo há dez anos. Nasci no Norte, onde vivi até 12
anos de idade, em companhia de minha mãe e irmãos. Sinto grande
118
desgosto por não ter cabelo bom [possui cabelos crespos, mas não
encarapinhados]. Não sei porque tenho cabelo feio. Todos em minha
fam ília são bonitos e têm cabelo bom. Não possuo nenhum ascendente
preto, do lado materno ou paterno.
120
r
121
a fragilidade da barreira que lhe é anteposta. Tal possibilidade
de alcançar status de branco dá evidências da situação racial em
São Paulo. As restrições do branco para o mulato atuam na pro
porção em que o indivíduo apresenta traços negroides associa
dos a traços de personalidade com valores de status inferior. À
medida que o indivíduo “branqueia” na cor e na personalidade,
encontra maior aceitação social. “O que importa é a aparência”,
afirmou a entrevistada do caso ne 23.
Os casos apresentados demonstram que não temos o pre
conceito racial no sentido de uma atitude de antagonismo de
toda a população, atingindo a todos os indivíduos descentes
da raça dominada, mesmo quando remotamente. Entre nós, é
suficiente que os traços raciais sejam atenuados e que o indi
víduo apresente valores da classe dominante para ser integrado
entre os brancos.
O mulato é discriminado na medida em que lem bre sua
origem africana, principalmente pela cor. Esta observação apoia
a hipótese de Nogueira (1942, p. 328-358), no sentido de existir
entre nós um preconceito de cor distinto do preconceito de
raça e de classe.
Na África do Sul ou nos Estados Unidos, o preconceito é
participado por todos os indivíduos do grupo dominante con
tra todos os descendentes do grupo dominado, mesmo contra
aqueles que não sejam identificados por marcas raciais, mas
unicam ente pelo conhecim ento de algum antecedente remoto
pertencente à raça menosprezada.
Podem os aplicar aos casos apresentados a interpretação do
prof. Donald Pierson sobre a situação racial na Bahia:
122
r
e) A titu d es re v e lad a s n u m a a s s o c ia ç ã o d e h o m e n s de c o r p o r
u m d o s m e m b ro s d a d ireto ria
123
Brasileiros”,39 organização que se desenvolveu em São Paulo,
entre 1931 e 1937.
Os dados foram obtidos por m eio de entrevistas, de alguns
documentos daquela instituição e de opiniões emitidas em “Os
descendentes de Palmares”, mensário da mesma instituição.
Do material colhido, depreendem os os motivos individuais
e coletivos e os objetivos da associação, assim com o os obs
táculos surgidos no seio dos agremiados ou os provenientes do
exterior.
Quanto aos motivos que levaram um grupo de pretos cons
cientes a desenvolver uma associação, salientam-se as razões
sociais, as de ordem econôm ica e as de natureza “sentimental”.
O prof. Donald Pierson, em seu trabalho N egrões in B razil,
encontrou na Bahia uma ordem social de livre com petição,
na qual os indivíduos com petem largamente por uma posição
baseada no mérito pessoas e favoráveis condições de família.
A com petência individual tende a preponderar sobre a origem
étnica com o um determinante de status social.
39 Por razões óbvias, o nome da associação e, a seguir, o titulo do seu mensário são
fictícios.
124
I
125
— Procedendo a um inquérito, encontramos a maioria dos negros pas
sando privações terríveis: grande número de desempregados, morando
mal acom odados em porões imundos, na promiscuidade que favorece
a destruição moral da fam ília. Pelas pesquisas realizadas por nós,
80% dos negros da Capital não exercem profissão definida. O negro
é meio carpinteiro, meio mecânico, meia-colherj° nunca chegando a
ser oficial completo, ajudante disto ou daquilo. Após a abolição, pre
cisando de um meio de vida, intitularam-se “ganhadores”. Hoje, não
há grande diferença da natureza de serviços dos negros de 50 anos
atrás. Apenas os de hoje intitulam-se “biscateiros”. Entretanto, encon
tramos negros profissionais competentes: mecânico, carpinteiro, eletri
cista, datilografo, taquígrafo e liberais. Mas não bá serviço para eles.
As ocupações do negro são engraxate, ensacador, estafeta, faxineiro,
contínuo, motorista, motorneiro, guarda-noturno, guarda-civil, cozi
nheiro, ferroviário, etc.
126
venceríam os méritos pessoais, porque encontrariam maior re
sistência com o negros. Baseamo-nos, para esta hipótese, no
depoimento do entrevistado:
127
b) Que nesses núcleos se promovesse intensa difusão do
ensino primário;
c) Criação dás escolas profissionais mistas;
d) Distribuição de terras férteis e salubres aos negros;
e) Criação de cooperativas, a fim de que nas terras distribuí
das pudessem os negros viver amparados econom icam ente,
recebendo instrumento de trabalho, roupas, víveres, que lhes
seriam debitados em conta-corrente, para pagar com as suas
colheitas entregues às cooperativas para venda;
f) Nesses núcleos coloniais, se difundiríam a instrução
primária, profissional, técnica e militar, para que pudesse ser o
negro um cidadão e um soldado ao mesmo tempo;
g) Nas capitais dos estados, se criariam Tiros de Guerra fili
ados ao departamento da Associação;
h) Os negros diplomados nas escolas profissionais com o artí
fices teriam preferência para ingressar nos Arsenais de Guerra e
Marinha, na construção de estradas de ferros e demais serviços
federais, e seriam infiltrados nas campanhas estrangeiras, es
pecialm ente de metalúrgica, petróleo e estrada de ferro, como
elem entos de ação imediata e vigilância contra a sabotagem em
caso de guerra imperialista contra o País;
i) Fornecimento de sedes e campos esportivos;
j) Criação, nas grandes cidades, de institutos médicos, hospitais
e creches, que também serviríam para a internação das crianças
durante as horas de trabalho das mulheres negras operárias;
k) Obra de amparo do negro inválido em serviço ou pela
velhice;
l) Fornecimento de livros para a criação de bibliotecas nas
sedes da Associação;
m) Montagem de um prelo, em São Paulo, para a impressão
de livros e boletins;
128
n) Fornecim ento de transporte para as caravanas de propa
ganda;
o) Ser a Associação considerada de utilidade pública nacio
nal pelo governo da República.
Ainda que o programa da associação focalizasse os aspectos
econôm icos para a obtenção de m elhores condições materiais,
não podem os concluir que tal tivesse sido o único objetivo
dos agremiados. É que os dirigentes do grupo viam na as
censão econôm ica o meio de alcançar recursos materiais para
conseguir a elevação dos níveis intelectual e moral e, assim
aparelhados, se empenharem na luta pela conquista de reivin
dicações sociais. Procuravam conseguir m elhores condições
econôm icas e físicas, mas visavam também à elevação do nível
intelectual e moral do negro, cuidando da instrução, da edu
cação e do desenvolvimento da consciência de cor. São ex
pressões de nosso entrevistado:
129
negros brasileiros especialmente, penso que, referindo-se a brasileiros
natos, esteja também incluída a gente brasileira que é, fo i e continua
sendo parte integrante da nacionalidade. Diante do que acabamos
de expor, ignoro, assim como todos os meus irmãos ignoram, o porque
de continuar sendo o negro preterido em seu próprio País, para o
qual nunca titubearia em derramar o seu sangue, e não titubearei
ainda quão necessário fo r a sua própria vida em todas as campanhas
que tenham por finalidade a,grandeza do Brasil que muito amamos.
Vou pois, ilustre patrício, entrar no assunto que nos trouxe a lhe es
crever a presente carta: a Guarda Civil de São Paulo está repleta de
estrangeiros, uns naturalizados, outros não; no Gabinete de Investi
gações, no Palácio da fustiça idem, e assim sucessivamente; entrando
na Guarda Civil, apesar de nossos pedidos, não temos conseguido
colocar um negro sequer como guarda-civil, por ser sempre a eterna
desculpa — “não há vagas”—, mas quase diariamente são admiti
dos estrangeiros. ”
130
— Elementos da Associação de Negros experimentaram comprar in
gressos para o ringue de patinação de São Paulo. Sabíamos que não
nos venderíam, mas nos submetemos à experiência. “Não lhe pode
remos vender ingressos”, disseram-nos na bilheteria. Comunicamos o
fato ao governo. A imprensa pediu a intervenção da polícia. Osjornais
do Rio protestaram dizendo não ser um caso de polícia. Afinal, o chefe
de Polícia deu um comunicado à imprensa, afirmando que os ne
gros seriam garantidos, somente sendo proibida a entrada a elementos
que prejudicassem a ordem, sem distinção de cor. Em breve, o ringue
fechou as portas. Dificultam a vida ao negro para vê-lo exasperado,
infringir leis e depois dizer “é negro, é criminoso’’, eprendê-lo.
— Os negros não têm consciência das condições que lhes trazem di
ficuldades. Diante das primeiras desilusões, ficam desorientados e
pensam: “Meu mal é ser negro. ” Se, porém, estivessem prevenidos, sa
beríam desvencilhar-se de obstáculos.
131
negro deve sua inferiorizaçáo ü complacência do branco cm posição
superior, auxiliando-o com pequenos donativos.
132
do negro contra o branco. Focalizaram-se, então, as injustiças e, mais
do que isso, as perseguições sofridas pelo negro. Consequentemente, o
negro desenvolveu forte animosidade contra o branco, a ponto de não
tolerar a presença do branco dentro da agremiação. Indagava hostil
mente: “Que é que branco vem fazer aqui?” Viram-se os dirigentes em
apuros para que não surgissem sérios conflitos. Nossa atitude também
estava refletindo-se fora. As patroas, antes de aceitar uma empregada
de cor, indagavam: “É da Associação de Negros?”; em caso de resposta
afirmativa, não a aceitavam. Tão revoltadas se tornaram as associa
das que não eram desejadas para empregadas. A imprensa fechou-nos
as portas, dando a entender ao povo desprevenido que estávamos cri
ando um caso no Brasil. A agitação provocada fo i como que o rastilho
para a explosão da bomba: houve um começo de arregimentação ne
gra no Brasil, e os brancos, então, tremeram no pedestal de sua apre
goada superioridade racial.
133
instrução e elevar o nível cultural e moral do negro. Procuramos /«•<•
parar o negro para bem apresentá-lo, a fi m de dissipar a impressão de
hostilidade para o branco. Foram organizados vários departamentos
134
(
Através do partido político, ganhamos maior força de ação no País.
Pretendíamos colocar um representante político para todo o Brasil e,
se não tivéssemos votos suficientes, negociaríamos os votos com pessoa
de nossa confiança. Em seus primeiros passos, o partido apoiaria can
didatos a deputados, senadores epresidentes da República em troca de
algumas vantagens, até que pudéssemos adquirir fundos para fazer
propaganda para o negro votar em seus candidatos negros.
135
em defesa dos seus. Permanecem alheios. Há de se notar que alguns
desses negros têm valor intelectual.
136
I
— Procuramos dar ao negro noções de família, interessando-o no
casamento dentro da lei, entusiasmando-o, oferecendo-lhe salões para
festejar o acontecimento. Também procuramos interessá-lo na compra
de terrenos.
137
cm. por 48 cm, contendo quatro páginas, semanalmente edi
tado em São Paulo, pela “Associação de Negros Brasileiros”.
Nossas observações quanto às atitudes do negro por meio
daquele mensário referem-se aos dois últimos anos de publi
cação, com eçando com a 50a edição, de 31 de dezem bro de
1935, e terminando com a 70a, editada em novem bro de 1937.
Os artigos de colaborados negros e mulatos contidos nos
19 exem plares sugeriram-nos sua distribuição em artigos que
se destinaram a: 1) promover a solidariedade dos negros, des
pertando-lhe a consciência de grupo, a fim de reunidos se con
stituírem em força para a luta competitiva com outros grupos;
2) enaltecer o negro, com o fim de eliminar seu sentimento
de inferioridade; 3) difundir a instrução e a educação moral,
para colocar o negro em melhores condições culturais na com
petição com grupos não negros.
1) A fim de promover a solidariedade entre os negros,
procurar desenvolver a consciência de grupo. Dos artigos que
denotam a finalidade de reunir os negros numa associação e
tentam promover laços de união, relembrando situações pas
sadas e presentes eivadas de sofrimento, destacaremos os se
guintes trechos:
138
í
progressão ciclista daquelas eras quando do escravo; a família jamais
lhe fora possível constituir pela dispersão de seus membros, arranca
dos brutal ou astuciosamente de seu próprio habitat selvático. E eram
pais que balbuciavam, estalando fibras do coração vibrátil e amoroso,
o nome dos filhos, eram filhos que choravam o doce nome da mãe,
eram irmãs, irmãos entregues a senha “humanitária” de outros homens
sedentos de “civilização” — de progresso próprio haurido a custa
do suor, da dor e desgraça secular da raça negra. É sorrindo qual
felizardos que vemos passar Treze de Maio, levando-nos para longe
do inglorioso jornadeio. É sorrindo que vemos a majestade da obra
que aqui nesta terra imensa de Santa Cruz — mercê de Deus — re
alizamos, nessa formidanda extensão de progresso sempre crescente,
cujo alicerce, demarcação, defesa e economia, patrimônio, tradição
é dos nossos, é obra inegável da raça mártir (“Os Descendentes de
Palmares”, maio de 1936).
139
os faz superior se opõe um obstáculo: a cor. A instrução, na opinião
geral, é o primeiro dos grandes remédios; é preciso a todo custo fugir
do analfabetismo. A economia o segundo a enfileirar. A fórmula única
de salvação seria a união premente de todo elemento nacional. Todos
estão cientes que chegariam à vitória somente pela Unidade Espiritual,
pela reunião de qualidades morais e intelectuais. E se essa união, que
é a aspiração geral da raça negra, não se processar dentro em breve,
continuará a traição sistemática que ela vem sofrendo e relegada a
planos inferiores. Convém reagir contra a onda avassaladora do pes
simismo e da desagregação. Convém criar e amparar uma disciplina.
Convém criar, manter, fortificar um Espírito-Uno (“Os Descendentes
de Palmares”, junho de 1936).
140
aqui;“lides de Mercúrio", mais adiante) parece consequência do
mecanismo de com pensação de sentimento de inferioridade.
Tornando-os conscientes do sofrimento dos antepassados e
de quanto sofrem atualmente os descendentes, tentavam m o
bilizar a energia para a coesão do grupo, ao mesmo tempo
em que faziam esforços para desenvolver objetivos comuns,
apresentando ideais com o os de reivindicações: “Aumenta sem
pre mais a com preensão das massas negras, a respeito de seu
movimento de reivindicação de direitos e aperfeiçoam ento nos
deveres (“Os D escendentes de Palmares”, dezembro de 1935).
141
se de que andava inferior aos brancos no trajar. É um começo de coas
ciência. É a verificação de uma realidade nas aparências exteriores,
Raro era em São Paulo, por exemplo, a negrinha que ousasse usar
chapéu, de medo das chufas dos brancos e especialmente das bran
cas. Hoje são legiões as que usam essa indumentária, que nada é em
si mesma, porém define uma atitude social. Também os moços negros
tomaram brios e já se apresentam com mais alinho, com mais decên
cia. Esse começo de consciência, como dissemos, quanto à situação
aparente tende naturalmente a atingir o aspecto cultural, o aspecto
moral. E para o que vai contribuindo a Associação (“Os Descendentes
de Palmares”, abril de 1936).
142
achavam mal deixar os negociantes italianos, sírios e outros, para
ir dar lugar ao patrício de cor preta. E o negro ficou somente nos
misteres pesados de produtor ou assalariado, ganhando misérias... É
todavia com imenso gozo que começo a ver negros perdendo o medo
de voltar às gemas de cor, desde verdureiros, às vezes com grande
despeito dos outros, como temos observado. Os vendedores de jor
nais, até bem pouco tempo, eram unicamente brancos. O mesmo
se dava com os engraxates e outros serviços menos pesados. Pouco
é isso, mas já é alguma coisa. Precisam os negros perder o amor às
profissões de dependência, em que ficam eternamente submetidos a
patrões que os desestimam e diminuem muitas vezes até no salário.
Não é que queiramos sejam todos os negros comerciantes. Deve o
negro ser tudo quanto são os outros... E também negociantes. E os
compradores negros não devem fugir de comprar dos negociantes.
Muito pelo contrário. Percam, pois, o temor, patrícios, sejam lojistas,
vendeiros, mascates, como são os outros... Façam concorrência aos
estrangeiros. Gritem, apregoem suas mercadorias com coragem. E te
remos dado mais um passo à redenção da nossa Gente (“Os Descen
dentes de Palmares”, agosto de 1936).
143
Não há o que um faça que outro não possa fazer — o valor deste
“oráculo” renova-se literalmente na lentidão dos séculos... Tais con
ceitos de tamanha transcendência certificam e abominam profunda
mente os pontos básicos dos sustentadores da inexistência de pri
vilégios entre as raças e o saber humanos que se diferenciam apenas
pela perfeição cultural ou influência do meio... O desenvolvimento
progressivo que vem operando no antigo e misterioso contingente
negro, mormente na sua rica e, privilegiada região sul — onde se as
sinala a existência de numerosas cidades que surpreendem pelas suas
perfeitas organizações urbanísticas... Para a raça negra universal, mor
mente a sua juventude, esses dados dispensam maiores comentários,
porque espelham radicalmente a importância que assume esse eco
reconfortante na terra mater. Sede de nossa origem, transmitido pelo
prestigioso órgão britânico, e por esse meio não ficaremos privados
de expor ao mundo que as nossas capacidades intelectual e produtiva
não são aquelas delimitadas pelo nosso silêncio e retraimento (“Os
Descendentes de Palmares”, dezembro de 1936).
144
mãos. Mas se queixam também dos compradores que, dando
preferências ao imigrante, deixaram-nos reduzidos à penúria.
3) Pela elevação dos níveis econôm ico, intelectual e moral,
viam os agremiados o meio para a ascensão social do negro:
145
e corpo e sangue, sob os epítetos mais vis, por nâo termos a epiderme
branca (“Os Descendentes de Palmares”, outubro de 1936).
146
f
civilidade. A quase totalidade dos referidos passeantes são bailarinos e,
por isso, aos diretores dessas agremiações cabe a tarefa moralizadora.
Pelo brio de uma plêiade que reconduz a raça ao seu verdadeiro lugar,
é urgência por freios às libertinagens, aos atrevimentos que fazem da
rua Direita dominical o espantalho das famílias. Escola e moralização,
respeito e sobriedade, mais elegância, disciplina, educação, antes que
outras medidas sejam tomadas. À ação, pois, sociedades dançantes:
disciplinar seus associados, ensiná-los a se portar como “gente” e, de
pois, ao “footing” (“Os Descendentes de Palmares”, março de 1937).
Experimente e verá.
É tão bonito e tão útil uma pessoa preparada. O sr. ou a sra. não
acham?
Por que então não se matriculam no curso de Formação Social da
Associação Brasileira de Negros? Para a alfabetização, a Associação
mantém dois cursos: diurno e noturno, para menores e adultos. Não es
tudará quem não quiser. Para informações, na portaria da Associação.
MORAL!... MORAL!... Eis o que é necessário que repitamos a todo
o momento neste caminhar incessante do progresso. É preciso que
preguemos a todo instante e em todas as rodas. Moral... Moral...
147
Instrução é o que o negro precisa. O negro deve procurar instruir-se,
se é que quer libertar-se dos grilhões da ignorância e quebrar as alge
mas vergonhas do preconceito que o aniquila.
Gostas de representar no palco? Tens dom para isso? Por que não
procura desenvolver-se, inscrevendo-se no Departamento Dramático
de Associação Brasileira de Negros? Para melhores informações, pro
cure o diretor desse Departamento todas as quartas-feiras, à noite, na
sede da Associação.
NEGROS: precisamos de uma mocidade sadia, despida de vícios,
bastante obediente e liberta da ignorância. Urge, pois, que trabalhe
mos incessantemente para combater grandes males que há séculos
vêm flagelando a nossa raça, No meio negro, é necessário que se
selecione e se expurgue a erva daninha, que a tenta corromper (“Os
Descendentes de Palmares”, dezembro de 1935).
148
f
negra pela mestiçagem e pelo preconceito (pois geralmente o maior
inimigo do negro é o branco neto de pretos), o povo negro ficou sem
chefes naturais... (“Os Descendentes de Palmares”, dezembro de 1935).
Mas por que não se unem? Por que, sabendo-se vitimas de um mesmo
mal, não combatem, conjurando esforços? Por que, se todos padecem
da mesma crise? Por que, sendo muitos os sofredores, ainda não se
firmou em cada espírito, como se fora obsessão, a urgência de se
ir criando elos indestrutíveis à façanhuda ação dos desarticuladores?
Por que não sufocar a tola vaidade de personalismo? Por que não su
plantar a flora má da incompreensão? Por que não superar a ambição
e a inteligência, se os louros da vitória far-se-ão de todos? Por que, se
é de interesse vital, essa família não se congrega sob uma só lei, para
desfazer injustiças? Por que ação dispersa, se, sendo ela conjunta, mais
facilmente alcançaria o alvo? Por que não estender mais a campanha
nacional? Por que essa desagregação no agir, se todos sabem que da
união surgiria a independência almejada? Por que a incompreensão
coletiva, se particularmente o ideal de um é o ideal de todos? Por que
cisão, se o programa é único? Por que desnorteios, prevenções, intran
sigências? Todos estão cientes que chegariam à vitória somente pela
unidade espiritual, pela reunião de qualidades morais e intelectuais.
E se essa união, que é aspiração geral da raça negra, não se proces
sar em breve, continuará a traição sistemática que ela vem sofrendo
e relegada sempre a planos inferiores. Convém reagir à onda avas
saladora do pessimismo e da desagregação. Convém criar e amparar
149
uma disciplina. Convém criar, manter, fortificar um Espírito Uno (“Os
Descendentes de Palmares”, junho de 1936).
Não sabemos de mal maior que campeia entre nós que o da ignorân
cia. Não sabemos se é uma das contas de fatalidade que muito pesa
no rosário pesadíssimo do infortúnio lendário, que a raça descen
dente de Cam carrega através dos tempos. Ela, a ignorância, como
um estigma ferrenho e emento aniquila o espírito de compreensão
e tolerância que deverá ser o das massas negras no Brasil. Ela é res
ponsável pela anarquia social de nosso meio e opera como gera
dora de ódios inconcebíveis e de mesquinharias inimagináveis. Ela faz
periclitar ou, pelo menos, estacionário o surto de progresso de nossas
agremiações de maior vulto e destaque, provocando o personalismo
tolo, as ambições de grupo, as inverdades e outros vícios não menos
desagradáveis e degradantes. Ela é o germe da incompatibilidade que
de há muito atrapalha e muito impede a maior e melhor unificação
dessa família imensa de negros nacionais... A burrice, a negação de
toda capacidade, a deselegância de crítica, a baixeza de conceitos, a
descortesia, as injustiças, as mistificações, etc. Não acreditamos, hoje,
na vitória do negro enquanto houver arraiais de ignorância crassa.
Urge reagir e construir. Reagir contra a mentalidade tacanha que nos
prende; reagir contra a pequenez do gesto; reagir contra a presunção;
reagir contra a intolerância; reagir contra o desrespeito; reagir contra
os insinceros e os trânsfugas. Constmir sólidos “eus” morais; construir
escolas e mais escolas, cursos e mais cursos... É um dever de nossas
associações abrir escolas, difundir instrução, semear livros, criar uma
nova mentalidade que não se curve às instigações, que não tema os
arreganhos, porque só sabe a verdade e age pela verdade e pelo di
reito. Uma mentalidade diferente da de nossos dias, eivada de ódios
e mesclada de despeitos. Não se pode conceber o progresso coletivo
sem o progresso individual. A liberdade que gozamos só poderá ser
150
liberdade real quando o negro viver livre de preconceitos de outro
negro. É preciso para isso extinguir-se a burrice (“Os Descendentes de
Palmares”, junho de 1936).
151
A n álise d o m a te ria l re feren te à 4
“A s s o c ia ç ã o d e N e g ro s B ra sile iro s”
152
1) O isolamento prévio cede lugar ao contato cultural com
um grupo de estranhos. O ponto básico fundamental de um
movimento nacionalista é um opressor, real ou imaginário, e
um senso de opressão.
2) Muitos nativos, enquanto isso, receberam educação e treino
que os isolaram inconscientemente do resto do grupo. Partici
pando agora, pelo menos em parte, de duas culturas, tornam-se
“híbridos culturais”, sentindo-se estranhos a ambas. Ocorrendo
ao mesmo tempo a miscigenação, surge um gaip o de mestiços
cuja marginalidade racial, acrescida à sua hibridação cultural, os
torna ainda maiores estranhos nas duas culturas.
3) Desenvolvem-se as cidades, onde os nativos e os mestiços
tendem a se localizar na medida em que são aceitos pelos
conquistadores, ligando-se às culturas invasoras; na medida,
porém, em que não são aceitos, mas repelidos pelos conquis
tadores, voltam-se eles para sua própria cultura. Dizem even
tualmente aos nativos de sua terra: “Vocês são m elhores do que
pensam; por que não procuram melhorar para que não nos
envergonhemos de vocês?”
4) Surgem, então, líderes autoconscientes, quase invariavel
mente híbridos raciais e culturais, que se dedicam a despertar
na população nativa, com auxílio da imprensa nativa, da lín
gua, da literatura e das artes de f o l k revividas, a consciência
de grupo essencial ao ulterior desenvolvimento do movimen
to. “Estes hom ens marginais, que tinham deixado por algum
tempo seu próprio grupo e vivido ou tentado viver em outro,
voltaram agora definitivamente para seu grupo original, cheios
de sonhos e aspirações do que ele se pode tornar.”
5) A consciência de grupo espalha-se entre a população na
tiva e cresce de intensidade com o desenvolvimento conse
quente de novos desejos que se definem em termos formais.
153
6) Define-se finalmente um programa, que contém finalmente
uma exigência de autonomia política.
O negro transportado para o Brasil, a fim de suprir as neces
sidades do trabalho escravo, era disperso pelas plantações de
cana-de-açúcar, sendo, portanto, colocado em condições que
favoreciam a perda mais rápida de sua organização social e
cultural. Por outro lado, através de contato primário com o
“senhor” ou na “casa-grande”, estava em situações propícias
para assimilar outra cultura.
A “Associação de Negros Brasileiros” apresenta-se com o ensaio
de um movimento coletivo, liderado por negros conscientes de
seu status ligado à barreira da cor. Depois de íntimo convívio com
o branco, do qual absorvera a cultura, o negro se sentia repelido
e afastado de algumas esferas sociais do branco, circunstância que
o tornava consciente da cor. Procurou, então, voltar-se para o ne
gro, tentando reuni-lo com o fim de conseguir ascensão e acesso
em todas as esferas sociais, a par do status ocupacional das classes
sociais intermediárias que alguns desfrutavam. Os líderes negros
tiveram de lutar contra a falta de sentimento de solidariedade en
tre eles, ao mesmo tempo em que prestigiavam o branco.
Dado o sentimento de rivalidade e antagonismo entre os ne
gros, ainda que existindo o desejo de união, surgiam os obstá
culos para a efetivação da agremiação. Tais dificuldades seriam
a expressão da intensidade com que o negro tinha incorporado
idéias, atitudes e sentimentos do branco e, até certo ponto,
a medida em que era aceitos pelo grupo dominante. Acha
ram os líderes necessário conduzir o negro contra o branco,
demonstrando-lhe a condição de inferioridade social em que
viviam em consequência da opressão e discriminação do bran
co. Elevou-se a animosidade do preto contra o branco, mas
também se desenvolveu a dos brancos contra o preto.
154
Esta experiência realizada pela “Associação de Negros Bra
sileiros” parece denotar a acom odação social entre brancos e
pretos baseada no recalcamento de hostilidade entre eles, re-
calcamento revelado nas atitudes de submissão do preto, dado
seu temor às reações do grupo dominante.
Percebendo o aumento da reação do grupo dominante, os
líderes da associação imprimiram nova orientação para a con
secução dos planos de luta contra as restrições feitas à cor.
Consideraram que a luta devia dirigir-se não diretamente contra
o branco, mas contra o negro antagonista do próprio negro.
Os dirigentes do movimento, considerando a ignorância e o
sentimento de inferioridade com o geradores de antagonismo
entre os negros, passaram a empenhar-se em enaltecer a raça,
em promover a educação e desenvolver a instrução. Com a
elevação do nível intelectual e moral, os líderes visavam desen
volver o sentimento de solidariedade e impor-se ao branco,
para cuja finalidade se constituíram em entidade política. Lasti
mavam, porém, que os negros médicos, advogados, engenhei
ros, professores, etc., se mantivessem alheios ao movimento,
verificando-se um desfalque de elem entos valiosos para a atu
ação do grupo, e também referiram-se com animosidade à falta
de cooperação do mulato.
As dificuldades encontradas pelos agrem iados para pro
m over o programa de reivindicação de direitos sociais, elim i
nando as restrições na base da cor, mais uma vez revelam o
grau em que o negro incorporou a cultura do grupo dom i
nante, inclusive os pontos de vista referentes a si próprio.
Enquanto na classe social inferior o negro se ajusta por co n
formism o e convívio com o branco, o negro das classes sociais
intermediárias se ajusta isolando-se e procurando com pensar
a satisfação do desejo de correspondência e consideração
155
por m eio das relações sociais circunscritas às esferas cio sia
tus ocupacional.
A mestiçagem sempre operou em sentido favorável à as
similação do negro à cultura e ao estoque biológico do grupo
dominante, dadas as circunstâncias anteriores. Desde os tem
pos coloniais se desenvolveu no Brasil uma atitude positiva
para o mestiço. Tendo imigrado poucas mulheres brancas, os
portugueses uniam-se às indígenas, ligações estas que posteri
ormente passaram a ser legalizadas pela Igreja.
A m iscigenação, disse o prof. Pierson na segunda confe
rência sobre “O Negro no Brasil” que proferiu na Escola Livre
de Sociologia e Política de São Paulo, principalmente quando
ligada a intercasamento, resulta em laços sentimentais entre
pais e filhos, laços que obstam o aparecimento de atitudes de
preconceito de raça e ao mesmo tempo colocam os mestiços
em posição favorável à ascensão social.
Gilberto Freyre, em S o b ra d o s e m u c a m b o s , apresenta a as
censão social do mulato relacionada à disposição do “senhor”
para alforriá-lo e aos contatos primários com brancos por ser
preferivelmente escolhido para empregado doméstico, e a as
censão social ligada ao prestígio do bacharel, em uma socie
dade cuja aristocracia se transferiu para a toga.
156
Em sua segunda conferência sobre “O Negro no Brasil”,
Donald Pierson considerou estar ocorrendo um aumento no
número de mestiços, através do decréscim o do elemento afri
cano, e não do europeu, em vários pontos do Brasil.
O mulato das classes sociais intermediárias não participou
da “Associação de Negros Brasileiros”, fato que dá um indício
sobre sua posição social e racial. Ele não sentiu necessidade de
se agremiar, talvez por se incorporar, mais facilmente do que o
negro, ao grupo dominante.
157
flito racial e consciência racial ou determinar o «tatus relativo
dos grupos raciais dos quais uma comunidade é com posta”.
Por m eio de entrévistas e de opiniões emitidas nos jornais de
uma associação de homens de cor, obtivemos elem entos para
conhecer as atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo
e formular hipóteses quanto à concepção deles sobre si m es
mos, a consciência de cor, seu status ocupacional e social, e
sua acom odação social.
Distribuímos os casos entrevistados em dois grupos. Os indi
víduos não só procuram o convívio íntimo com o branco, situ
ação única para lhes dar autoafirmação, com o se isolam do pre
to. Lutam conscientemente para conseguir a aceitação do grupo
dominante. A luta é diretamente conduzida no sentido de elimi
nar o sentimento de inferioridade proveniente da concepção de
si próprio, concepção esta que resulta da introjeção da atitude
do branco. Empenha-se, então, em conseguir status ocupacional
das classes sociais intermediárias, conquistando diploma de cur
sos secundário e superior ou habilidades profissionais. Mas, ape
sar do esforço para valorizar o capital humano pela instrução,
o preto continua sentindo-se rejeitado em certas esferas sociais,
rejeição que o traumatiza e desenvolve a consciência de cor.
As esferas sociais das quais se vê banido parece que se re
ferem àquelas que exibiriam publicamente a intimidade entre o
branco e o preto. Segundo o depoimento dos entrevistados, há
restrições por parte do branco à presença do preto em festas
familiares ou para ser com panheiro do branco em certos ambi
entes recreativos, cassinos, por exem plo, ou em festas de for
maturas. A distinção social se faz sentir no casamento, o qual,
conform e as palavras dos entrevistados, se torna um problema,
visto por ser obstado o casamento de preto com pessoas bran
cas das classes sociais intermediárias.
158
Quanto aos m u la to s d a cla sse s o c ia l in ferio r, sua consciên
cia de cor parece mais pronunciada do que entre os pretos
da mesma classe social, por agirem sempre pensando na cor.
Procuram defender-se da ofensa de ser cham ado de “negro”,
defesa que pode influir na escolha do cônjuge. Este fato se
acha fundamentado por várias atitudes dos entrevistados: no
caso ne 14, a entrevistada afirma que se casará com “patrício”
(preto) para que não falem dela, ao passo que a irmã evita o
preto e deseja casar-se com branco; o caso ns 16 se refere a
uma parda que se casou com preto para jamais ser chamada
de “negra” pelo marido; o caso na 17 refere a situação de uma
moça parda, contando mais de 30 anos de idade, que se con
serva solteira à espera de marido branco.
A sensibilidade do mulato ligada à cor refletiría, no nível
mental, o fato de socialmente ser aceito pelo preto e pelo bran
co. Mas, se pelo temor de ser chamado de “negro”, procura um
preto para consorte, seria evidência de que o branco não só
pode aceitá-lo com o pode rejeitá-lo.
Difere a posição dos m u latos d a s classes s o c ia is in te r m ed iá r i
as, em razão de sentirem acentuada a necessidade de defesa de
sua inclusão entre os pretos. Procuram casam ento com branco
ou descendentes de pretos com aparência de branco e fogem
de todas as situações que possam identificá-los com o preto.
Por sentimento de vergonha, evitam sempre a companhia de
preto. Adquirindo símbolos do grupo dominante, o mulato
consegue integrar-se naquele grupo, mas em sua personali
dade permanecem, com o sequela, a hipersensibilidade ligada à
consciência de cor e ao sentimento de inferioridade.
Através dos entrevistados, observamos que o preto e o mu
lato têm concepção desfavorável de si mesmos, com o reflexo
da concepção do branco para eles, dada a influência dos con
159
tatos primários, principalmente da infância. Consideram-se
inferiores, feios, e se sentem envergonhados por sua origem.
Quanto mais subimos nas classes sociais, tanto mais aumenta
a consciência de cor e tanto maior o esforço despendido para
com pensar o sentimento de inferioridade. Ao mesm o tempo
em que se empenham em desenvolver valores pessoais, para
eliminar a concepção desfavorável, procuram a autoafirmação
na conquista da aceitação incondicional por parte do branco.
Consequentemente, resulta uma luta por status social mais ár
dua, dadas as barreiras das distâncias sociais na linha de cor.
Os casos apresentados demonstraram que obtêm ascensão so
cial os indivíduos de cor dotados de inteligência e que desde a
infância tiveram estímulos sociais nos contatos primários com
brancos. Entretanto, a ascensão ocupacional não confere ao
preto o mesmo status social do branco, consideradas as res
trições demarcadas na linha de cor, ao passo que ao mulato
garante sua inclusão no grupo dominante, embora em sua per
sonalidade perm aneçam as consequências do conflito mental.
A “A s s o c ia ç ã o d e N egros B r a s ile ir o s ”, segundo nosso entre
vistado, e as publicações do mensário daquela entidade, resul
taram do esforço de pretos conscientes no sentido de reunir os
pretos e despertar a consciência de grupo, a fim de eliminar a
concepção de inferioridades ligadas às pessoas de cor e, deste
modo, vencer as barreiras para a ascensão social do negro. Para
desenvolver a consciência de grupo e o sentimento de soli
dariedade, os líderes do movimento relembravam o passado
comum de sofrimento da época da escravidão e as “injustiças”
que, por preconceito, continuavam a atingi-los, restringindo-
lhes as possibilidades de vida melhor. Inicialmente, os líderes
tentaram congregar os negros pela m obilização de animosi
dade contra o branco. Dada a reação do branco, acentuando as
160
■
161
simpatia do preto para o branco, diminui a oportunidade para
ativar a consciência de cor.
3) A ascensão social do preto dar-se-ia através da ascensão
ocupacional, sem entretanto eliminar de todo a distância social
na linha de cor. Nas classes sociais intermediárias, os indivíduos
manifestam consciência de cor, que se constitui em estimulo para
a luta por status. Dado o grau em que os pretos introjetaram os
pontos de vista do branco, também no que se refere a si próprios,
eles se ajustam por conformismo e isolamento, isto é, conformam-
se lastimosos com as restrições do grupo dominante e se isolam
do preto, nos mesmos aspectos sociais vedados pelos brancos.
4) Embora hipersensível, o mulato se integra no grupo domi
nante, desde que apresente sím bolos de valor positivo.
5) “Quando algum equilíbrio relativamente estável foi al
cançado, a intensidade da consciência racial, que inevitavel
mente levanta uma luta por “status” e não desaparece intei
ramente, estaria grandemente diminuída” (PARK, 1939, p. 4).
Ajustando-se pelo convívio íntimo com os brancos, na classe
social inferior, ou por conformismo o isolamento nas classes
sociais intermediárias os pretos cessam de lutar, resultando a
acom odação social de relativo equilíbrio. O preconceito racial,
mais uma vez citando Faris (1937, p. 355), tende a ser susten
tado por argumentos, sendo reconhecido com o um sentimento
de antipatia ou uma tendência para afastar ou limitar os con
tatos sociais. Os dados colhidos demonstram que há distância
social ou limitação social entre os pretos e brancos, situação
esta percebida quando se observam as classes intermediárias.
6) A ordem social parece ter equilíbrio na seguinte situação:
a) simpatia do preto para o branco;
b) repressão de revolta e do descontentamento por medo da
reação do branco;
162
c) derivação da luta contra o branco na eliminação da con
cepção de inferioridade pela ascensão ocupacional;
d) tratando-se do mulato, além da ascensão ocupacional, o
casamento com branco para sua inclusão no grupo dominante.
7) Pela integração do mulato no grupo dominante das classes-
sociais intermediárias, sugerimos a hipótese de tratar-se de dis
criminação baseada na cor, visto perder significação desde que
o indivíduo apresente características do grupo dominante e na
medida em que sua pele vai “branqueando”, não sendo, por
tanto, levada em conta sua origem.
Referências
163
______ . The Nature of Race Relations. In THOMPSON, E. (Ed.).
R ace R elation s a n d the R ace P roblem . Durham: Duke University
Press, 1939, p. 3-45.
164
I
C A D E R N O DE I M A G E N S
PRIMEIROS TEMPOS
Enchente na rua em que residia a Família B icudo na V ila E conom izadora. N a
janela, a mãe e as irmãs d e Virgínia Bicudo. S ão Paulo, 2 7 d e janeiro d e 1 9 2 9 .
V irgínia B icudo (terceira d a esquerda para a d ire ita ] com colegas. São Paulo, 2 0
de janeiro de 1 9 3 0 .
169
Escola Normal do Braz
<f
GRUPO MODELO ANNEXO
Anno Classe
DO
CU R S Q P R E h m m A R -
1
<ít_
A lim m
Fonte: Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise/ SBPSP
.............
<3==
TYP. S IQ U E IR A . — S. P A U L O ..
170
Foto de Virgínia Leone Bicudo em álbum d e formatura da Escola N orm al C aetano
de C am pos. São Paulo, 1 9 3 0 .
171
È
C/">
-s
■I
.8
I"
172
ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA
Fonte: CEDOC/ FESPSP
......
Nascida l í .
CUTSOS .. ..................................................................
Secretario
175
Fonte: CEDOC/ FESPSP
Formandos d o b a c h a re la d o em S o c io lo g ia e Política d a ELSP em 1 9 3 8 . Da esquerda
para a direita: J. C osta S obrinho; A nto n io Rubbo M üller; J. S iqueira C unha; V irgínia
Leone Bicudo; M assim o G uerrine; O la v o Baptista Filho e; M a rio G . Pereira; J. Lellis
C ardoso. S ão Paulo, 1 9 3 8 .
176
i
Sáo P a a l o , 21 de a g o s t o de 1942
I l m ã . S r t ? . V l r g i n i a necme Bicudo
E s c o l a l i v r e c.e S o c i o l o g i a 6 id O l l L " u ÍC £ L
I esta
Fonte: Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise/ SBPSP
.P re sa d a a lu n a :
A t e n c i o s a s sau d açõ es
Dortalò P i ex-son
D i r e t o r do Dep. de S o c i o l o g i a e A n tr o p o lo g ia
Docum ento da ELSP assinado pelo prof. D onald Pierson co m u n ica n d o o a ce ite ^ 'r9 'n'a
Leone B icudo para o curso d e mestrado. São Paulo, 21 de agosto d e 1 9 4 2 .
177
ESC O LA LIVRE D E' SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO
(INSTITUIÇÃO COMPLEMENTAR DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO)
/
18 de maio de 1944
Cordialmente,
Donald pierson
Diretor da Divisão de
Estudos Post-graduados
!
Docum ento, assinado p e lo diretor d a D ivisão d e Estudos Pós-Graduados d a ELSP, D onald
Pierson, com as notas das disciplinas cursadas p o r V irgínia Leone B icudo para o b te n ç ã o
d o grau d e mestre. S ão Paulo, 1 8 d e m a io d e 1 9 4 4 .
178
Fonte: Arquivo pessoal do
Fotos de reuniões e de escolares d a Frente N e g ra B rasileira. D écada de 1 9 3 0 .
179
Fonte: CEDOC/ FESPSP
Fonte: CEDOC/FESPSP
180
r
Fonte: CEDOC/FESPSP
181
VIRGÍNIA, PSICANALISTA
Forte: Divisão de Documentação e Pesquiso do História do Psicanálise/ SBPSP
Uma das prim eiras reuniões d a S ocie d a d e Brasileira d e Psicanálise. Identificam-se d e pé,
da esquerda para a d ire ita , A de lh e id Koch, segunda d a fila , V irgínia Bicudo de chapéu,
Durval M a rco n de s é o quarto, H erm inda M a rco n de s, sua mulher, é a quinta, Frank Philips
é o sexto e Flávio Rodrigues Dias é o sétimo.
S entado, no centro, A rn a ld o Rasçovsky, psicanalista argentino. C om ele, m édicos
d o Instituto d e Ffigiene M e n ta l e d a Psiquiatria d a Santa C a sa d e M ise ricó rd ia , não
identificados. S ão Paulo, d é c a d a d e 1 9 4 0 .
185
Fonte: livro Álbum de Família / Casa do Psicólogo, 1994.
A psicanalista M e la n ie Klein (1 8 8 2 -1 9 6 0 ).
186
K.-r;rJjCtC3 t5iC36 t w V irg in ia le o n e BICUDO §>
A ORIENTAÇÃO PSICOTERAPICAÍ
DE EDUCADORES E DO EDUCANDOl
Causas emocionais de fracasso dos educadores — Á psicoterapia ou a |
reeducação como meio de rea justamento da personalidade
contacto cio. sor humano com neoessaria a intervenção de uma ori mo casar-se, — expllcou-ihe — ha- (P
O a realidade qúe -o cerca (ob
jeto* animados e Inanimados),
entação pslcoteraploa ou reeducatl-
va dos pais e do educando. A psl-
via ficado multo aflito, achando •
que vinha sendo tão feliz com sua
se estabelece por melo doâ afetos ou coterapia ou reeducação tem, por mulher Justamento por não 6e ter
emoçócs. A evolução dos afetos tanto, o objetivo de proceder ao casado com ela; assim, cia por me
«través do crescimento flslco-pslco- do era sempre submissa; mas ca
tratamento dos distúrbios emocio sando-se tudo iria mudar, a mulher
«ocial, da iníancia até a idade adul nais, por melo do estabelecimento de iria relaxar c acabariam separando-
ta, dá-so por etapas, cada uma daa uma relação entre o paciente (crian se". Por motivos emocionais pes
quais apresenta características pró ça, adolescente, adulto), libertando- . soais, M. tinha unicamente consi
prias. Do catado narclslco, isto 6, o de sentimentos e mecanismos in derado os aspectos emocionais üa
de afetos voltados para si mesma, fantis, conduzindo-o do estado de ligação marital dc seus pacientes,
a criança evolui paulatlnamcutc pa-' descuidando-se de tratar dos moti
imaturidade para a maturidade emo vos neuróticos determinantes da
ra o catado de relaclonar-se emo- cional, da dcpendencla para a eman
cionaim entc com oa objetos do quela forma de ligação. Para qu8
cipação, pcio robusteclmento do ego, sua orientação fosse cumprida, M.
mundo exterior. Por essa razão, os que não- s® torna capaz de encon deveria em primeiro lugar mostrar
primeiros anos de vida da criança trar melhores soluções para os esta que o pai mantinha uma situação
caracterizam-se por atitudes de falsa, baseada na Insegurança e no
dos de tensão c de conflito psíquico
«goisrao, vaidade, exibicionismo. In medo de perder sua mulher, razão
veja, ciúme, isto é, por eíotos que do que aquelas obtidas pelos sinto- por que precisava conscrva-la sub.
buscam unicamente o prazer pes missa, desprotegida e dependente,
soal. sem nenhuma consideração Os métodos de psicoterapia podem fazendo-se cego a todas as inconve
pei* realidade exterior. ser classificados em dois grupos: a niências desse arranjo.
Impedida por motivos intrínsecos psicoterapia psicanaütlca, que tra Num outro caso, G .. ao tomar co
• extrlnsecos de permanecer viven balha cora mateçiai do inconscien nhecimento dos problemas de um
do como se tosse o centro de gra- te. e os outros tipos de psicotera menino por meio de entrevistas com
vitação do universo,' a criança é pia, que lidam com material do a mãe, imediatamente percebe que
compelida a mudar os seus afetos consciente. A diferença entra os esta se havia apegado excesslvamcn-
primários, soclalizando-os. A socia dois tipos de psicoterapia fica no te ao filho desde a morte do m a
lização da criança consiste, por fato de que, enquanto a psicanálise rido. Consequentemente, não dei- •
tanto, em ajudá-la a produzir m u procura remover os sintomas tiran xava o filho afastar-se dela u não
danças nos afetos, de modo a tor do do Inconsciente os elementos ser para ir à escola. O menino es
nar-lhe mais desejável do que frus- - perturbadores, as pslcoterapias não tava com 12 anos, mas não podia
tradora a aceitação das técnicas de analiticas procuram remover os sin brincar com outros e dormia com
vida e dos padrões de comporta tomas utilizando-se excluslvamcnt» a mãe na cama de casai. Para G.
mento, que fazem possível a vida dc técnicas de apoio e, portanto, ape ficou evidente que a mão tinha de
em sociedade. O processo normal lando para a parte consciente da mudar suas atitudes em beneficio
do socialização da criança i, pois, personalidade. Todavia, um e ou da criança e orientou-a dizendo-lhe:
constituído peia educação. tro tipo dc psicoterapia trabalham “A sra. precisa dar mais liberdade
Motivos psíquicos intrínsecos en- na base da relação entre paciente e a seu filho! Deixá-lo que tenha re
contram-se nos diferentes medos plscoterapepta, a qual se fundamen creação fora dc casa, permitir-lhe
específicos que normalmcnte sur ta na situação de transferencia e de que tenha amigo* e dar-lhe uma
gem, opondo-se a que a criança contra transícrencia. cama individual, pois ele està mui
permaneça indefinidamente fixada to grande pára dormir com a sra.”
aos prazeres característicos de ca O fenomeno da transferencia é um — "Mas no quarto não há lugar .
da etapa do desenvolvimento, ao \&- fato que ocorre em todas as rela para outra cama", rcplica-lhe a mãe.
üo do surgimento de novas fontes ções humanas e, portanto, cm todas — "A sra. ajeita uma cama na sa
de prazer, consequentes ao proprlo as situações de psicoterapia, porque la d» frente, uma cama de "ven
crescim ento. Assim, durante os pri t determinado pela tendencla psiqui- to", que só serã armada ã noite.
meiros . 18 meses de idade, as expe ca do transferirem-ac para situa Para a saude do menino é multo
Fonte: Divisão de Documentação e Pesquiso da História da Psicanálise/ SBPSP.
riências da criança se fazem pri- ções posteriores as emoções que du mais higiênico ele dormir só". Após
mordiãlmente por meio do prazer rante as expcricnciaa in fantis não umas semanas G. entrevista nova-
oral: tendo a atitude de levar tudo encontraram as iras normais de des m eate a mãe do menino, pergun-
à boca, tudo controlar e Incorporar carga. À luz da transferencia expli tando-lhe se havia seguido sua
a si devorando, aos poucos vai sur cam-se, por exemplo, as reações do orientação. "Sim — respondeu-lhe
gindo o medo de que o oposto lhe adulto quê està sempre em defesa, a era. — deixo-o brincar com outros
ocorra, isto é, que o-mundo exterior assumindo uma atitude de agressão e noto que ele está mais alegre.
a trate com a mesma atitude "de- antecipada ou de retraimento, por Quanto a mudá-lo de cama eu en
voradora” . Concomitantemente, sur imaginar quo os outros só desejam contrei uma solução melhor;, cu .0
gem novas fontes de prazer, com a trai-lo, humllbà-lo. desprezá-lo ou faço deitar-se antes de mim e quan
valorização das suas funções fisio agredi-lo fisicamente. Nesses casos, do ele jã adormeceu entro devaga
lógicas, a criança obtendo uma no o adulto encontra-se transferido-pa rinho na cama; pela m anbi levan
va forma dc estabcloeer contacto, ra os contatos, humanos do presen- to-me antes que ele desperte." —
dominar e controlar o ambiente. , te, os mesmos sentimentos com que
Sor sua vez, o prazor proveniente "S ã o — responde G. — a sra. não
’ vive as suas cxperienclas infantis. entendeu que é preciso tlrà-lo da
da valorização de sua "obra”, pro- As simpatias ou antlpatias gratui
duzlndo-a, expèilndo-a ou reten sua cama como medida de higiene."
tas são outro exemplo do fenôme —- "A sra. só exige sacrifícios de
do-a. encontra limitações com o no de transferencia dc afetos liga
surgimento do medo de que as pes mim”, interrompe a mãe, e choran
dos a situações infantis. do continua: “fiz tudo que a sra.
soas de seu ambiente (mãe) tenham
õ mesmo modo de sentir, e, por Na situação de psicoterapia, fa- mandou, tudo que afasta o meu ft-
talm cnte o paciente transferirá 11» de mim; só , tenho esse filho
tanto, desejem espollã-la, tirar-lhe para o psicotepeuta os mesmos a-
coisas de dentro de seu corpo e es no mundo, agora até separar de ca
íetos infantis e os mesmos meca ma, isso é demais para' mira, não
vaziá-la. Enioclonalmente, & crian nismos psíquicos de defeso. Ao
ça sente desejável abandonar o mesmo tempo que deseja receber
prazer anal e substituí-lo pelo pra do pslcoterapeuta amor, conside De fato para o seu estado emo
zer genital, o qual acompanhado de ração ou reconhecimento, o pacien cional a orientação de G. cr» ex
sentimentos de ciumo e inveja tam te teme ser rejeitado ou de algum mo-, cessiva porque recebida com o sen
bém passa a ser temido, alem do do punido. O conteúdo dos pensa tido de afastá-la do filho. Somen
mentos ou fantasias que dão senti te depois de estar esclarecida so
medo de ferimentos que geralmente do aos afetos in fantis variam de um
, aparece nessa epoca. Esser. são al individuo para outro, segundo « bre os motivos emocionais de 11-
guns ,exemplos de medos específicos historia de cacla ura e o condlclo- xar-Se ao filho e da Irrealidade de
par» diferentes comportamentos ins niujiento das cxperienclas pessoais. que perderin o afeto do filho se
tin tivos, c s quais surgcm_ pondo Hà ■portanto_ diferentes formas dc lhe desse maior liberdade * que rl»
término às respectivas fontes de defesa. Énquârito Uns se defendem póderla aceitar a orientação de O.
prazer, ao mesmo tempo que são adotando atitudes de amabiiidade A relação entre o paciente e o
sucessivamente substituídos por no excessiva outros otíotam’ atitudes de psicoterapcuta constitui o melo de
vas fontes dc prazer. Esse processo excessiva agressividade, e outros ain-
obter dados para a compreensáo da
187
F a te À c e rc p e s o d ifc s c a ®
C a p a d o livro N osso M u n d o V irgínia Leone B icudo, anos
M ental, d e V irgínia Bicudo, 1950.
p u b lic a d o em 1 9 5 6 .
188
Lygia A m aral e V irgínia Leone
Bicudo. São Paulo, 1 9 6 0 .
Fonte: Divisão de Documentação e Pesquisa da Historio da Psicanálise/ SBPSP
Festa d o Prêmio J oãoJulião d a C osta A guiar. Da esquerda para a direita: Bernardo Blay,
2.°; H erm inda M a rco n de s, esposa d e Durval, 4 ° ; V irgínia Leone Bicudo, 5 .° ; Lygia
A m aral, 6 .a; Durval M arco n de s, 7 o e; colegas psicanalistas. São Paulo, 2 7 d e junho
de 1 9 6 8 .
189
fc ó r x ^sa naÊc 5eF5?
i
Dicãc de D ocrerra ã =
V irgínia Leone B icudo e Durval M a rco n de s. A o la d o Bernardo Blay e senhora. D éca d a
de 1 9 7 0 .
V irgínia em festa d e fam ília com as irmãs. Da esauerda para a d ire ita : V irgínia Leone
B icudo; H elena B icudo Soares de O liv e ira ; M a ria a e Louraes B icudo Z in g g ; Joana Leone
B icudo e; C arm em Leone B icudo De Prá.
190
Título A t i t u d e s K a c ia is i >k P r e t o s i ; M i n ,a t o s i i m SAo P ai
P edro C atarino
Formato 16 x 23 cm
Mancha 11 x 1 7 ,5 c m .
C artão S upremo 2 5 0 g /m 2
Tiragem 1 000
Impressão Prol Editora Gráfica Ltda.
vou u estudar ns reluçfies raciais no Hmsil. Monos
conhecida, entretanto, <í a expressiva presença das
correntes de pensamento da chamada Escola de
Chicago na produção intelectual dos alunos de
Pierson que integram essa geração pioneira das
ciências sociais brasileiras. Ao abordar as rela
ções raciais pela perspectiva dos pretos e mulatos
e por uma ótica que conjuga a compreensão dos
aspectos subjetivos da cultura ao conhecimento de
suas condições sociais, o estudo de Virgínia Leo-
ne Bicudo expressa a criativa apropriação dessa
tradição de pensamento no Brasil.
M a r ia L a u r a V iv e ir o s d e C a s t r o C a v a l c a n t i
A democracia racial brasileira foi um elo poderoso da cadeia de idealizações que sus
tentou a ideia de Brasil até, mais ou menos, o final dos anos 40. Os movimentos negros
removeram esse elo. Alguns intelectuais contribuíram também, sobretudo aqueles com
formação sociológica, historiográfica, psicológica. Um desses, como legítima precur
sora dos estudos científicos sobre o negro, foi Virgínia Leone Bicudo. Fez história.
J oel R ufino dos S antos, historiador e escritor
A dissertação de Virgínia Bicudo, que agora ganha merecida edição em livro, é pioneira
da nascente psicologia social brasileira a desvendar o preconceito racial no País. A
abordagem teoricamente consistente que Virgínia e seu orientador, o sociólogo ameri
cano Donald Pierson, deram ao texto transformou este estudo em referência essencial
para a história das ciências sociais e das relações raciais no Brasil.
A ntonio S érgio G uimarães, professor titular do Programa
de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo
ISBN 978-85-62116-03-2
9 788562 116032