Professional Documents
Culture Documents
ÍNDICE
Capítulo 2
Sígnos, símbolos e clichês no Rádio e na Música 22
Capítulo 3
Um Tédio dentro da Sedução: a elaboração das fantasias nos
meios de comunicação de massas 34
Capítulo 4
Teoria Geral do Valor Agregado 49
Capítulo 5
Novas Tecnologias de Comunicação e Educação:
impasses e alternativas 73
Capítulo 6
Política e Desilusão:
aspectos da crise política na pós-modernidade 94
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 3
Capítulo 1
SEXUALIDADE FRAGMENTADA:
A ELABORAÇÃO DA PORNOGRAFIA NA MÍDIA
N unca vivemos numa sociedade tão erotizada como a nossa e, ao mesmo tempo,
com tantos problemas no campo da felicidade sexual e afetiva. De um lado, a
chamada permissividade sexual generalizada, promovida pelos meios de comunicação e
a sociedade de consumo, e, por outro, carências sexuais, afetivas, solidão e dificuldades
em aproximar-se do outro e compreendê-lo. Como explicar tal paradoxo?
Esta avaliação superficial não consegue dar solução a esse paradoxo: como o excesso de
sexualidade implica numa dificuldade de, na sociedade atual, os sujeitos realizarem-se
sexualmente? Esse argumento que denuncia o permissivo e o excesso traz a armadilha
do moralismo que pouco contribui ao debate: se há excesso, então qual seria a dose
certa de erotismo’? Qual o limite entre o nu artístico e o pornográfico? Quando podemos
considerar um filme publicitário na TV como obsceno?
impediria esta extrapolação: a censura! Admitindo-se, por sua vez, o retomo da censura,
novamente a discussão se polarizaria na busca de um suposto limite entre o Pornográfico
e o Artístico, tomando-se subjetiva e ao sabor da influência de conjunturas políticas de
momento.
Ora, se queremos fugir dessa armadilha, onde o moralismo faz qualquer análise cair,
devemos inverter o pressuposto da discussão: e se ao invés termos, sob a aparente
liberação de desejos e pulsões, a construção repressiva de uma certa idéia de sexualidade
nos meios de comunicação? O que acompanhamos na atualidade é uma plena liberação
daquilo que sempre foi marcado como tabu durante toda história ? Ou é uma nova
modalidade de repressão do erotismo dos corpos, dessa vez pelos códigos da linguagem
visual dos meios de comunicação?
Afirmamos, assim, que a mídia, bem mais que liberar desejos, reforçaria fantasmas
presentes em todos nós, isto é, a exploração do erotismo trabalharia elementos frágeis
da afirmação sexual, principalmente a masculina. Autores como Ciro Marcondes Filho
acreditam que a natureza dessa exploração é opressiva, explicável a partir do primado
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 6
Pois bem, vamos fazer uma primeira aproximação a esse tema complexo procurando
entender que fantasmas ligados à sexualidade e à castração não resolvidas são estes,
para, em seguida, analisarmos como são codificados pelos meios de comunicação.
Complexo de castração:
a frágil afirmação sexual
A reviravolta inicia-se quando Freud descobre que todos esses relatos de pacientes sobre
incidentes ocorridos na infância (a sedução, a cena primitiva - onde a criança teria
testemunhado o coito parental, motivo de profundo desgosto e medo; e a cena da
castração -, onde um adulto a teria punido pela privação física ou moral) jamais
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 7
aconteceram. As cenas foram fantasiadas. Mais do que mentiras, estas três fantasias
irão configurar o próprio campo do Complexo de Édipo. E, mais ainda, indicar a presença
de uma vida sexual ativa na infância (ao contrário do que se acreditava nos meios
científicos da época, onde a sexualidade era considerada uma atividade especificamente
adulta e voltada para a procriação). Mas uma estranha vida sexual, dominada por fantasias
perversas e por nenhuma clareza na definição da identidade sexual.
A partir daí, Freud vai voltar toda a atenção à infância, porque, cada vez mais, terá
certeza de que a sexualidade do adulto tem a ver com certas maneiras que a criança
tem de referir-se a seus primeiros objetos. Chamou de etapas a essas três maneiras: a
etapa oral, a anal e a genital ou fálica. Essas maneiras eram como modelos através dos
quais a criança progressivamente erogenizava o seu corpo, até atingir, aos cinco anos, o
corpo sexuado com papel definido, capaz de atingir o gozo do adulto. Uma etapa oral -
cujo modelo é a relação do sujeito com o seio materno, onde não existe um Eu definido,
exterior à existência da mãe; uma etapa anal a relação narcisista do sujeito com seus
próprios excrementos, primeiro momento onde a criança percebe estar num corpo distinto
do da mãe, porém, com uma percepção ainda fragmentada; e uma etapa genital ou
fálica, na qual a estrutura do sujeito é montada nos moldes da masculinidade e
feminilidade e a consciência da existência do Eu plenamente estabelecida após o processo
de ruptura do Édipo.
curiosidade para desvendar este enigma: se eu existo, quem sou? De onde vim? Que
corpo é esse que tenho? Será que todas as outras crianças são iguais a mim? Esta
curiosidade fará a criança ingressar naquilo que Freud denominou Complexo de Castração.
Se o pai é o objeto de identificação, por outro lado é seu rival, poderá puni-lo por
qualquer desobediência. E esta punição só poderá ser a perda do pênis. A conclusão a
que o menino vai chegar, ao descobrir que outras crianças não têm a mesma semelhança
anatômica, é que elas foram castradas, e que ele, se não tomar cuidado, poderá sê-lo
também.
Esta ansiedade vai marcar negativamente a qualidade das relações com o sexo oposto.
A forma de o homem perceber a mulher será prejudicada ao ver nela nada mais do que
um campo de provas da potência fálica. A ansiedade da comprovação fálica empurrará o
psiquismo masculino a procurar não a mulher, mas mulheres, num sentido genérico e
abstrato. O investimento afetivo toma-se difícil e transitório.
Por outro lado, e ainda mais cruel, a simples presença da mulher torna-se uma ameaça
à segurança fálica masculina. Ela significa, per si, a cobrança de uma tomada de posição
ou a castração em potencial: a possibilidade do fracasso. Por isso ela deve ser dominada,
neutralizada. O corpo feminino deve ser reduzido a fragmentos, a objetos, para ser
melhor dominado. É o surgimento do fetichismo sexual. O corpo real feminino é
neutralizado pelo fascínio por fragmentos: pés, olhos, cabelos, ou acessórios associados
a alguma destas partes como sapatos, luvas, etc. 0 prazer voyeurístico do strip-tease é
um bom exemplo deste mecanismo: fragmentada, a atração pela mulher passa a ser
motivada pelo desnudamento das partes, até o instante em que o show termina com a
nudez final. Completamente nua, perde, para o homem, o sentido de perversão, pela
razão de o corpo estar finalmente unificado e concreto.
Mas a percepção fetichista masculina impede que os pedaços sejam juntados, o que
possibilitaria a formação da imagem de uma mulher ideal para o investimento afetivo.
Esta neutraIização do corpo feminino, como forma de impedir a angústia do medo da
castração proporcionado pela mulher, esconde, por outro lado, o homossexualismo
latente, pelo desprezo que o homem teria por ela. “Quando os rapazes enfim se
convencem de que a mulher nunca possuiu pênis, sucede muitas vezes que alimentam
um desprezo durável pelo outro sexo”4. Claro, um homossexualismo nunca explicitado
ou levado a termos, mas que se manifesta nas atitudes machistas de agressividade e
segregação.
Porém, a matriz fálica - o primado do falo que orienta a estruturação dos papéis sexuais
- determinará a submissão feminina: se o homem é o detentor do simbolismo fálico, a
mulher terá “inveja” dele. O prazer somente existirá para a mulher dentro dos seus
domínios, ao ser penetrada por ele. Daí porque, para toda moral conservadora, a
masturbação feminina ser considerada um tabu e violentamente negada. Admitir-se sua
existência significaria a relativização do poder fálico masculino: também a mulher pode
ter prazer sozinha.
Mulheres fragmentadas
e hiper-reais
Segundo a leitura corporal das fotografas de modelos em revistas masculinas feita por
Leide Marques Peralva, fica patente a “anulação da mulher através de modelos de uso
do corpo que sugerem cortes ou redução da função de certas partes do corpo”6. Segundo
esta análise, diversas características são comuns às fotografias. “Ocorrem ‘fechamentos’
(contração e tensão de determinadas partes do corpo) e distorção no corpo das mulheres:
tórax e pélvis fechados, quadril e rosto desconectados do resto do corpo, mãos e pés
desconectados e sem função. (...) O fechamento do tórax é acompanhado da elevação
e encolhimento dos ombros, o que retira as omoplatas de sua posição. Essa área é
relacionada diretamente à expressão de emoções e sentimentos. Seu fechamento implica
na inibição da afetividade e dos contatos afetivos Nas fotografias, as mulheres geralmente
projetam as nádegas para trás, o que leva a pélvis também para trás. É como se a
mulher estivesse fugindo do contato sexual, pois desloca a pélvis e contrai as pernas
para dentro, o que dificultaria a penetração. Mesmo em poses em que aparece andando,
a mulher tende a projetar as nádegas para trás e os ombros e o tórax para a frente,
sugerindo a fragmentação da percepção de sensações e a inibição da excitação sexual”7.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 12
Um dos clichês fisionômicos que mais chama a atenção numa análise comparativa de
diversas fotos é a desconexão entre a expressão do rosto e o resto do corpo, sugerindo
uma contradição de intenções na mulher. Enquanto o rosto aparece com uma expressão
de estátua ou um ar de indiferença e distância, cool, - e, algumas vezes, nem olhando
para a lente da câmara mas para um ponto distante - , o resto do corpo, ao contrário, se
oferece provocativamente para o observador. Rosto frio/corpo quente. Esta fragmentação
se acentua na modelo ninfeta: rosto de menina - muitas vezes “forçando a barra” com
franjinhas e dedo na ponta da boca para conferir um ar de timidez - e corpo provocativo
de uma mulher. A desconexão rosto/corpo muitas vezes é acentuada pelo jogo luz e
sombra - rosto na sombra e nádegas e coxas bem iluminadas ou, então, o rosto encoberto
pelos cabelos longos.
Além disso, as mão e pés dificilmente aparecem no campo das fotos, a não ser que
estejam associados a algum acessório, reforçando o caráter fetichista. A fragmentação
sistemática do corpo feminino parece ter o mesmo sentido da fragmentação das narrativas
dos vídeo-clips da estética MTV. Se lá o objetivo da edição cheia de cortes é amplificar
o prazer visual e auditivo de certos detalhes que se tomarão, por isso, efêmeros - criando
o estilo de vida esquizo e hedonista do “eterno presente”-, aqui nas revistas masculinas
as partes se hipostasiam do todo, criando o efeito de criar mulheres e prazeres hiper-
reais.
“Uma pessoa que reproduzisse, no dia-a-dia, estas distorções, teria bloqueios nos fluxos
de energia e emoções, o que afetaria a sua disposição em todos os níveis, reduzindo a
possibilidade de sentir, perceber a realidade, expressar sua sensualidade e emoções,
assim como sua atuação em outros níveis que exigem contato com a realidade, força e
integração”8. Pesquisadores como Michael Schneider fazem uma aproximação entre o
crescimento dos índices de impotência e frigidez em faixas etárias cada vez mais jovens
e a exploração destes modelos hiper-reais de sexualidade9. A cada aquisição da mercadoria
sexo, o comprador recebe a promessa de ter, em troca, uma “amada”, ou, pelo menos,
partes dela: seios, pernas, coxas, sendo que cada parte se apresenta hiper-realizada,
amplificada. A questão é que o homem jamais encontrará numa mulher real tal prazer e
sensualidade hiper-realizadas. Estes pedaços jamais poderão ser reunidos numa única
mulher real, o que, talvez, resultaria num resultado monstruoso, numa mulher-
frankenstein!
Por sua vez, estes modelos de corpos femininos oferecidos para os fantasmas masculinos
servirão de modelos para as própria mulheres. O corpo torcido, bloqueado e cindido
oferecido pela mídia servirá como modelo através do qual as mulheres possam seduzir
os homens, gerando desencontros, pois tais modelos nada mais farão do que reforçar a
ritualização fetichista do feminino.
Iniciação sexual na
cultura das imagens
A propagação massiva do erotismo pelas imagens cria uma nova hierarquia sensorial
neste século: o predomínio do sentido visual sobre os demais sentidos corporais. A
cultura das imagens venera a sexualidade dos corpos apenas no plano do olhar, excluindo
a possibilidade de os outros sentidos ou formas de percepção também sentirem os corpos.
No erotismo moderno, o contato visual é mais decisivo até que o próprio contato corporal
das zonas genitais. Olfato, paladar e tato estão igualmente afastados da percepção. Se
prestarmos atenção, poderemos perceber uma diferença marcante entre as duas gerações
- anos 60/70 e 80/90 - que se iniciaram na vida sexual antes e depois da cultura da
imagem ser a predominante.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 14
O jovem da primeira geração tinha sua iniciação sexual clássica: levado pelo grupo de
amigos mais velhos às zonas urbanas de prostituição, tinha sua iniciação prática e corporal.
Se não verdadeira e total, pelo menos era carregada de vivência. Nos últimos anos, com
o progressivo fim da prostituição tradicional, substituída pelos Relax for Men (casas de
prostituição sob aparência de casas de massagem), essa iniciação tradicional foi
bloqueada.
Aos poucos esta forma alienada do olhar acaba impregnando o cotidiano: o mundo virtual
invade o real. A proliferação de espelhos na estética das suítes de motel, assim como
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 15
nas casas noturnas e até em restaurantes, mostra essa realidade. Os indivíduos já não se
satisfazem em sentir o outro com os seus próprios corpos. Precisam de mais ... verem a
si mesmos praticando o ato sexual, paquerando uma garota, etc. Os outros sentidos
corporais, que na sua totalidade convergem para um relacionamento verdadeiro, são
reprimidos em nome dessa hierarquia dos sentidos: O olhar voyeurista em primeiro lugar.
Esta iniciação voyeurística, principalmente masculina, em muitos aspectos ampliará o
efeito pânico da ansiedade da castração. Se, como vimos, o medo da castração está na
base do psiquismo masculino, ele tem os seus efeitos ampliados na adolescência, quando
a questão da afirmação sexual é torturante para o jovem. As imagens femininas oferecidas
pela indústria pornográfica sempre se caracterizam pela volúpia incontrolável: mulheres
sempre com vontade de ir para a cama; insaciáveis. Os seus parceiros têm de possuir
dotes atléticos para dar conta de tanta energia das “panteras”. Os atos sexuais são
representados com uma intensidade estonteante (favorecidos pelas técnicas de edição
e montagem das cenas que as tomam ainda mais “quentes”). Além disso, se percebermos
bem, o filme pornográfico sempre promete a realização da fantasia do erotismo, mas
nunca a realiza: encontros rápidos, encontros que nunca têm continuidade, relações
sexuais que se caracterizam pela precocidade do orgasmo (o prazer tenso, jamais
relaxado). Não é à toa que o público consumidor deste gênero se define pela solidão,
não apenas social (pessoas sós nas grandes cidades) como também psíquica (voyeuristas).
Estes modelos padronizados de erotismo amplificarão, mais ainda, uma ansiedade que
já é natural do psiquismo masculino: será que darei conta!? As mulheres são tudo isso?!
Desafiado pela mídia e pela comunidade de colegas do mesmo sexo, ele deve incorporar
esses valores da “ereção permanente” para não fazer feio diante de todos. Porém, ao
custo do desgaste psíquico que, fàtalmente, prejudicará a qualidade de uma futura vida
sexual real.
mercadorias e serviços, mediante sua promoção junto a modelos sensuais, serve como
um desafio ao consumidor masculino: a relação causa-efeito entre a compra do produto
e a conquista sexual. Cada vez mais, produtos e serviços representam esta “ereção
permanente”, verdadeiras extensões do pênis masculino, armadilhas pulsionais nas quais
o homem cai, vítima, pela necessidade ansiosa que tem de aplacar a ansiedade da
castração. Diante desta coação, ele deverá provar o tempo inteiro para si mesmo e para
os outros sua capacidade permanente de ereção. Por isso, independentemente de urna
necessidade real, de um interesse localizado, o homem deverá estar sempre excitado,
sempre a postos quando uma mulher o chama. Por ser uma ansiedade jamais aplacada
ou satisfeita, é a matéria-prima perfeita para este mercado de consumo.
Em primeiro lugar, esta produção corporal simulará uma aparência de mais idade diante
dos outros jovens. Principalmente nas paqueras em danceterias e festas, a jovem será
colocada em situações que, psicologicamente, ainda não está equipada para enfrentar.
Na vida real, a situação reproduzirá a mesma fragmentação rosto/como verificada nas
modelos das revistas masculinas: rosto de menina num corpo aparentemente de mulher.
poros, cheiro, suor, estrias ou celulites. No limite, está busca impossível poderá provocar
crises depressivas, do tipo que provoca anorexia ou bulimia.
Por isso, a cultura das imagens nega sistematicamente a materialidade corporal. Como
afirma Requena, a cultura televisual e especular cria um universo ligth, descorporificado.
Para ele, apesar de o corporal e o erótico reinarem no espetáculo eletrônico, eles devem
ser submetidos à lógica do look: eliminação da textura, de rugosidades, resistências,
fricções, para, em seu lugar, entrar uni corpo como que plastificado. Cores saturadas,
violentas e planas.
Nunca vivemos uma época onde o desejo de seduzir o outro nas relações pessoais fosse
tão importante. Mas, principalmente no campo do erotismo, a sedução sofre uma mudança
qualitativa com a invasão narcísica do look na sexualidade dos meios de comunicação.
No campo das imagens eletrônicas e do consumo, o desejo de seduzir o outro deixa de
ser um ritual simbólico (o jogo velado do cobrimento e descobrimento), para transformar-
se no desejo de tomar-se um espelho eletrônico de si mesmo. O ato erótico abandona o
ritual para ingressar no mundo exibicionista.
T alvez uma pergunta esteja na cabeça do leitor: mas o nu feminino não esteve
sempre presente, durante toda a história da arte? Qual a diferença entre a exploração
das formas sensuais do passado e a atual promovida pelos meios de Comunicação de
massas? Voltamos às questões colocadas no início deste trabalho: existe unia medida
que distinga o que é artístico do que é pornográfico?
Ficou claro no transcorrer deste texto que, apesar de vivermos dentro de urna cultura
visual onde há uma circulação intensa de imagens e informações, não devemos nos
enganar quanto à permissividade ou o excesso praticado pelos sistemas de comunicação.
Sob a aparência de um excesso de erotismo ou de uma permissiva exposição de corpos
nus e relações sexuais em close-up, há uma nova forma de repressão sexual: pelo
pornográfico.
Como expõe Requena, o pornográfico guarda uma distinção bem precisa em relação ao
erótico. O erótico está do lado do jogo velado da forma como um vestido cai sobre um
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 19
corpo, seguindo-se um certo mistério: o mistério da intimidade com todas as suas formas
cenográficas. O erotismo está mais próximo à literatura e ao teatro. Além disso, existe
no erótico um equilíbrio gestáltico das formas. Se observarmos, por exemplo, as musas
representadas por pintores renascentistas como RafaeI ou Boticceli, perceberemos a
representação total e integrada do corpo feminino. Todas as partes harmônicas e
expressivas; rosto, tronco e membros convergindo para um único sentido expressivo.
Nenhuma parte do corpo fica periférica à percepção, bem diferente da fragmentação
corporal no pornográfico contemporâneo.
Além dos aspectos psicanalíticos levantados neste trabalho que se contrapõe ao argumento
moralista do excesso de sexo nos meios de comunicação, podemos ainda fazer algumas
considerações quanto à natureza lingüística da estética pornográfica. Segundo Requena,
além da fragmentação (e a sua coincidência com as noções de fetichismo e castração na
psicanálise) a estética pornográfica se caracteriza por uma “carência de clausura”, de
encerramento, e pela “abolição da narrativa”, 0 filme pornográfico descontextualiza
pessoas, corpos e desejos. Talvez em nome da “ereção permanente”, os atos sexuais
nunca têm fim, não conduzem a nenhuma história ou à resolução de alguma tensão.
O que Requena que dizer por “carência de clausura” é um fenômeno lingüístico bem
atual das redes de comunicação hipertensas ao ter que colocar acontecimentos no ar
vinte e quatro horas por dia (o fenômeno do “tempo real” da comunicação globalizada,
a necessidade imperiosa em estar on line incessantemente). As “histórias” produzidas
pelo cinema ou TV (novelas, filmes, mini-séries etc.) cada vez menos possuem uma
narrativa, ou, pelo menos, uma história com começo, meio e fim. Personagens e elementos
da hístória se intercambiam para prolongarem índices de audiência. Fatos jornalísticos
são transformados em mini-séries ou artificialmente esticados até a cadeia paradigmática
se esgotar para, a partir daí, serem inventados aleatoriamente novos acontecimentos.
Nas novelas, personagens são assassinados ou têm doenças mortais, assim como surgem
outros novos, não por uma necessidade intrínseca à narrativa, mas por fatores exteriores.
Se para a lingüística uma linguagem só tem sentido simbólico ou representativo pela
clausura do seu paradigma, o que percebemos nos sistemas de comunicação atuais é
uma indeterminação das narrativas.
O pornográfico leva ao limite essa característica, principalmente por estar comprometido
com o fantasma falocêntrico da “ereção permanente” que aterroriza os homens. As
cenas são delirantes e sem narrativa: ação pela ação. Os encontros sexuais são
permanentes sem nunca terem um fim ou levarem a alguma parte. Uma ação permanente
que faz lembrar a dona de casa dos filmes publicitários de sabão em pó: sempre com um
sorriso incansável, como se gostasse de fazer aquilo o dia inteiro, todos os dias.
Para além das conotações moralistas, a palavra obscenidade só pode significar a perda
da cena por um olhar fragmentado e profanador (ver tudo do melhor ponto de vista,
tudo amplificado e delirante). Ao contrário, o erotismo privilegia o olhar atento que
observa uma cena, o olhar que percebe qualidades. O pornográfico já incentiva o olhar
periférico, onde as diferenças qualitativas se dissolvem nos fragmentos e na ausência de
narrativa: mulheres em disponibilidade permanente -e, por isso mesmo, desafiadoramente
assustadoras para o psiquismo masculino - que, pelo mesmo motivo, têm suas diferenças
qualitativas anuladas.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 21
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 Veja Peter Haug, “A Crítica da estética da Mercadoria” In: Ciro MARCONDES FILHO
(org.)., A Linguagem da Sedução, São Paulo, Perspectiva, 1988.
4 Sigmund FREUD. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Lisboa, Livros do Brasil, s/
d. p.118-9.
7 Ibid., p.138.
8 Idem.
9 Cf. Michael SCHNEIDER. Neurose e Classes Sociais. Rio de Janeiro, Zahar, 1977,
especialmente no capítulo “A Patologia da Sociedade de Consumo Capitalista”.
10 Ciro MARCONDES Filho. Jornalismo Fin-de-Siècle. São Paulo, Escritta Editorial, 1993
p. 40.
11 Jesus Gonzalez REQUENA. El Discurso Televisivo: espectáculo de la posmodernidad.
Madrid, Catedra, 1988. p.137.
12 Idem.
13 Ibid., p. 143.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 22
Capítulo 2
SIGNOS, SIMBOLOS E
CLICHÊS NO RÁDIO E NA MÚSICA
Com a incorporação não só do rádio, mas também do sentido da audição pela cultura
da imagem, os receptores não apenas ouvem mas vivem as cenas, identificam-se com
imagens recheadas de desejos, vivências do próprio receptor em caráter
fragmentário. Enfim, o rádio, corno qualquer meio de comunicação contemporâneo,
muito mais do que transmitir conteúdos, elabora vivências dos receptores. Cenas,
vivências, experiências - todos estes conceitos estão carregados de urna conotação
principalmente psicanalítica. Seria interessante a psicanálise da comunicação
debruçar-se também sobre a questão do rádio e da audição.
Embora os conceitos de signo e símbolo sejam mais conhecidos sob o domínio das
correntes da lingüística, vamos ver que não são somente estruturas gramaticais, mas
também formas de fantasias. São fantasias tomadas em seus aspectos mais regressivos
(e comercialmente mais interessantes para a mídia explorar), ou seja, no seu aspecto
de satisfação alucinatória de um desejo, como um mecanismo de defesa do ego
contra um impulso indesejado ou como estratégia inconsciente para evitar que o
indivíduo entre em conflito com as normas sociais ou com as situações gerais que o
sujeito enfrenta.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 24
Mas por que recalcado? Por que esta cena do trauma passado deve ser esvaziada,
esquecida? Por que o reprimido proporciona mal-estar no presente? E por que este
presente não pode aceitar o recalcado de forma absoluta? Entram em ação alguns
mecanismos de defesa (signos; e clichês) que procuram exatamente esvaziar estas
cenas. A identidade do ego e os papéis sociais que o sujeito tem de obrigatoriamente
representar são incompatíveis com estas lembranças. Toda memória está carregada
de afetividade, desejos, ou seja, pulsões, que muitas vezes são conflitantes com a
realidade da práxis social, “La grandeza de Freud, como Ia de todos Ios pensadores
burgueses radicales, reside en que deja sin resolver semejantes contradicciones y
rehúsa pretender una armonía sistemática allí donde Ias cosas estén de desgarradas
en si mismas: hace patente el carácter antagoníco de Ia realidad social en Ia medida
en que éste alcanza a su teoria y a su práxis en el interior de una división de trabajo
prescrita”2.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 25
O Clichê e o Signo
O Signo no rádio
C omo definir o veículo de comunicação rádio? Com certeza deverá ser enfocado
dentro do conceito mais amplo do surgimento e consolidação da Indústria
Cultural, tão bem analisado pela Teoria Crítica da Escola de Frankfurt nos anos 30 e
40. Desde os trabalhos de Walter Benjamin, principalmente nos escritos em que ele
trata de alguns temas presentes na obras do poeta Baudelaire (temas como o jogo, a
prostituição, o flâneur e o narrador), a Escola de Frankfurt aprofundou-se nas
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 27
características desta transição entre o sujeito do século XIX e o sujeito do século XX.
A característica mais marcante deste período é a morte do flâneur e do narrador,
personagens que caminhavam vagarosamente pelo meio urbano, capazes de perceber
detalhes e elaborar a própria experiência do olhar, num momento da modernidade em
que os avanços tecnológicos ainda não haviam influenciado, com tanto impacto, o
cotidiano.
O início da consolidação da Indústria Cultural, ou seja, desde o surgimento da
imprensa até o rádio e a música popular dos anos 40, acompanha a aceleração
tecnológica, comercial e existencial do cotidiano, correspondendo ao
desaparecimento daqueles personagens urbanos. Para Theodor Adorno, a Indústria
Cultural, ao mercantilizar os conteúdos da arte e da cultura, provoca a deterioração
da dimensão estética, fato este caracterizado por aquilo que ele considerava corno
perda da transcendência. Por transcendência estética definia-se a capacidade, que as
formas artísticas clássicas tinham, de opor-se à lógica do desempenho (eficácia,
produtividade, velocidade, etc. - a lógica do mundo dos papéis sociais e do trabalho),
ao mostrar uma visão de mundo ou uma forma de percepção completamente outra (o
imaginário, a fantasia, o tempo lento para a fruição estética, etc.).
Ao submetê-la às necessidades do mercado, a Indústria Cultural faria a cultura perder
este aspecto crítico de tensão com a realidade cotidiana, ou mesmo opor-se a ela,
tomando as obras do espírito meros entretenimentos. “A diversão é o prolongamento
do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao
processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo.
Mas, ao mesmo tempo, a mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu
lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação das
mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não pode mais perceber outra
coisa senão cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho ( ... ) Eis aí o ideal
natural neste ramo. Ele se impõe tanto mais imperiosamente quanto mais a técnica
aperfeiçoada reduz a tensão entre a obra produzida e a vida cotidiana (grifo
nosso)”7.
A Indústria Cultural nasce sob a marca da divisão do trabalho, ou seja, cada vez mais
procura adaptar, ou “aerodinamizar”’, como afirmava ironicamente Adorno, os
conteúdos à velocidade urbana do século XX, à velocidade cotidiana do mundo do
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 28
E mais. A Indústria Cultural deve aprender a conviver com o constante mal-estar dos
indivíduos (tédio, monotonia. banalização da vida) e saber tirar disso a própria
energia que os tomará fascinados pelo espetáculo de imagens e sons.
Esta tese é interessante na medida em que passa a ser uma antevisão do papel que o
rádio e a música iriam assumir no cotidiano: a música que é ouvida no rádio do carro a
caminho do trabalho, ouvida no walk-man do atleta de final-de-semana enquanto faz
seu cooper, ou no sistema de som dos quartos de motel. Músicas de massa, feitas
especialmente para momentos de velocidade e dinamismo. Em primeiro lugar, esse
tipo de música tem o sentido do vídeo-clip: um tipo de música para cada tipo de
atividade, como fosse a trilha musical para cada capítulo da vida.
Além disso, deve-se prestar atenção especial para a forma como essa música é
elaborada. Sua estrutura musical é cíclica, fechada e, acima de tudo, repetitiva,
assim como é a vida onde nada de especial acontece. A estrutura musical começa e
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 29
termina da mesma forma: num refrão melodioso de estrutura simples. Por exemplo,
vai terminando lentamente com o refrão sendo repetido enquanto o som vai
baixando, como fosse um “final infinito”, não concluindo nada porque nada foi
iniciado - fecha-se num ciclo. Bem ao contrário da música clássica ou dos setores
progressistas da música pop - rock progressivo, Jazz-rock, o Jazz experimental de
artistas como Charles Mingus, etc. -, dotados de uma estrutura erudita: há um tema
que é desenvolvido em suítes ou solos instrumentais, até a conclusão. Por sua vez a
música de caráter cíclico reconcilia-se com uma realidade que tem as mesmas
características: repetitiva, neurótica, clichê.
A forma como a música é elaborada corrobora com a postura de não envolvimento por
parte do ouvinte. Sintetizadores e samplers desobrigam o ouvinte a fazer uma leitura
auditiva da música - “qual é o instrumento deste som que eu ouço?” - simplesmente
porque o som é eletrônico, híbrido. Mesmo os sons de instrumentos tradicionais,
quando sintetizados, são ininteligíveis ao ouvido. Esta postura sígnica musical faz o
cotidiano ser permeado por uma indiferença e superficialidade: as coisas deslizam
velozmente sem um registro mais sério. As vinhetas eletrônicas e a voz alegre do disc-
jockey apenas reforçam este caráter de velocidade imprimida à música. Não é à toa
esta expressão usada pelos disc-jockeys: “deixar o som rolar”. Literalmente é dessa
forma que a música se manifesta.
A cultura vídeo-clip leva a sério aquilo que a música para o cinema já propunha. Lá, a
trilha musical era para emoldurar e tomar mais previsíveis os momentos de amor,
aventura ou perigo de personagens fictícios. Ainda se guardava uma transcendência ou
um distanciamento entre a tela e a vida real do espectador. Aqui, esta trilha musical
é para a própria vida dos receptores reais que se transformaram em personagens de
ficção - um gênero de música específico para cada momento diferente do cotidiano:
trabalho, lazer, sexo, etc. A música “rola”, assim como os momentos devem “rolar”
com a mesma velocidade e desempenho produtivo.
Acredito que esta característica sígnica da música deva ser analisada a partir deste
aspecto. Prokop considera ser desejável para as pessoas esta postura sígnica
cotidiana, um não-envolvimento emocional-afetivo pleno com os fatos, a fim de que o
mal-estar que permeia o cumprimento dos papéis na práxis social não seja
simbolizado, ou seja, não aflore à consciência. Em termos de discussão da questão da
ideologia e do controle social, este ponto de vista abre para urna nova interpretação:
o controle não é operado simplesmente por meio de imposição ideológica, mas os
próprios sujeitos participam ativamente nesta ideologia, por encontrarem aí a
possibilidade de concretização dos mecanismos de defesa que ajudam a combater o
mal-estar individual.
Este momento clichê do rádio pode ser observado nos famosos flash-backs que
dominam a programação noturna das rádios, principalmente FMs. A proposta é clara:
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 31
música para recordar de fatos importantes na vida do ouvinte, que aconteceram com
alguma determinada música de fundo. O que o flash-back faz recordar? A que
natureza de memória ele induz?
Está claro que o “gancho” destas programações é romântico e voltado para jovens
ouvintes, principalmente solitários. Aliás, cada vez mais o público-alvo do rádio é
constituído por indivíduos ou grupos de solitários. No carro ou em casa, a música tem
a função de preencher o vazio do silêncio, fazer recordar determinadas imagens,
fazer reviver cenas.
Se o público-alvo é cada vez mais solitário, isto significa que, no passado, tais pessoas
já tiveram alguém como companhia, preferencialmente um(a) namorado(a). Mas
agora vivem no contexto da dor da separação. Para o jovem, o trauma da separação
amorosa é uma das sensações mais marcantes, muitas vezes para o resto da vida10. O
flash-back explora, preferencialmente, o trauma da separação de muitos ouvintes.
A música do flash-back induz a este tipo de memória, a partir das vivências. A música
passa a assumir a mesma função do vídeo-clip (“a trilha musical dos bons momentos
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 32
Mas pode ficar uma pergunta: e se o ouvinte busca o rádio para o entretenimento,
como ele pode suportar tamanha angústia destas recordações? O ouvinte não pode
simplesmente mudar de emissora? Estas lembranças, mesmo fragmentadas, não
trazem uma dor intolerável? Como falamos, a Indústria Cultural necessita exatamente
deste mal-estar para arrancar, daí, a energia da fascinação. Ao trabalhar com temas
como prazer, amor, morte - situações-limites da existência do sujeito -, o clichê
“esquenta” o receptor para, em seguida, buscar a reconciliação com o presente: na
voz veloz, alegre e otimista do disc-jockey, nas vinhetas eletrônicas, nos módulos de
informação que celebram o prazer voyuerístico do observador do mundo que não se
envolve com nada que vê e ouve. Além do mais, o próprio clichê é, ele mesmo, um
momento isolado: de dia as músicas alegres das paradas de sucesso para fazer o dia-a-
dia de trabalho “rolar” com mais facilidade e eficiência, e, à noite, músicas para
“recordar”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
9 Sobre esse tema, veja Nelson B. PEIXOTO, “O olhar do Estrangeiro”. In O Olhar. São
Paulo. Companhia das Letras,. 1988.
Capítulo 3
UM TÉDIO DENTRO DA SEDUÇÃO:
A ELABORAÇÃO DAS FANTASIAS
NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSAS
F ascinados e seduzidos. Assim nos sentimos diante da ilusão mecânica chamada cinema.
Imagens, olhar rápido para as coisas. Sem dúvida, o cinema propôs uma nova maneira
de olhar o mundo: da contemplação demorada do artista moderno ao olhar deslizante e
rápido para um vídeo-clip pós-moderno.
Acredito que esta experiência de sedução tem de ser melhor pensada. É difícil acreditar
que, num mundo normativo, onde o cotidiano é regido pelo principio entediante da
realidade que sitia o ego - papéis sociais, horas de trabalho a cumprir, luta pela
sobrevivência, a constante possibilidade da crise final: financeira, ecológica, econômica,
-, possa permitir uma experiência fascinante e sedutora verdadeira.
Isto é, duvido que uma ordem baseada na necessidade da estabilidade do ego possa
permitir tal descontrole individual. Imagine se o cinema comercial permitisse tal
experiência: como, no dia seguinte, o sujeito iria levantar-se para bater o cartão de
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 35
ponto no emprego? Como se nada tivesse acontecido? É claro que, neste caso, o choque
entre Eros e sociedade seria explosivo, traria angústia, tensão, desequilíbrio... E é disso
que as pessoas procuram fugir.
Depois a volta à ordem: o criminoso sendo preso, o sexo estonteante é quebrado pela
separação dos amantes (o filme “9 ½ Semanas de Amor” é um bom exemplo disso), os
adolescentes que curtiam drogas e desobedeciam aos pais são assassinados pelo Fred
Krueger, etc. As fantasias de fuga do mundo normativo devem ser elaboradas como
“fantasias-clichê”.
O signo da sedução não é feito para o id, ao contrário do que se pensa. Dentro da mídia
estabelecida é impossível uma viagem progressiva da fantasia. A sedução atual é para o
ego - assim como o eram as drogas “viajantes” dos anos 60, como LSD e maconha, que
foram substituídas pela cocaína nos 80, facilitando o desempenho do ego. O signo da
sedução aprisiona Eros nos clichês do produto cultural, tais como esportividade, sexo e
agilidade formal (na terminologia de Prokop).
Uma imagem que talvez ajude a entender isso é um célebre clichê do filme western
clássico: um grupo de cowboys está em tomo da fogueira. Um deles, jovem e cheio de
sonhos, começa a olhar para as estrelas e confessa seus desejos: casar, um rancho à
beira do lago, algumas cabeças de gado... Pode ter certeza. Na Próxima seqüência os
índios vão atacar e este jovem vai morrer espetacularmente atravessado por uma flecha.
Felicidade demais incomoda o público. A sedução deve ser invocada para, depois, destruir
as fantasias.
Criar-se-ia uma tensão insuportável na cabeça das pessoas, entre o mundo mítico e
mágico da TV e a ordem dura e cinzenta do dia-a-dia. Como afirma Prokop, por trás do
entretenimento e da recepção sonolenta da TV no final da noite esconde-se uma estratégia
do receptor: procurar na TV elementos formais que permitam minimizar os “dramas de
adaptação à realidade”. O receptor procura estar por dentro da realidade em que vive,
porém, de uma maneira neutralizada e tranqüilizadora.
Em primeiro lugar, este gênero popular não possuía nenhum compromisso com a realidade,
tendendo para o absurdo. “As perseguições do slapstick mostram mais ou menos corno,
numa corrida de carros, uma roda que se afasta do veículo é perseguida com a bicicleta
nas situações mais impossíveis, com esforços fantásticos e cheios de imaginação, até
que seja montada com extremo cuidado no carro em movimento. No filme de hoje, por
exemplo, em The Love Bug, fica-se na observação resignada. A roda escapa realisticamente
do carro e tenta-se ajudar da forma que der. Mesmo quando se dirige com o carro na
diagonal, tudo permanece realista, pois o motorista poderia possuir de fato essa habilidade
em sua profissão. Nas perseguições do filme slapstick, os indivíduos são conduzidos de
uma ação absurda a outra. Na perseguição do filme atual só se trata de saber quem vai
vencer ...”3
Nos filmes slapslick, a gargalhada não se orienta contra os desejos de um herói desajeitado
e incompetente em atender ao princípio de realidade - como no humor do pós-guerra,
de Jerry Lewis até nossos dias -, mas contra o próprio sistema total, eventualmente
representado pelo trânsito nas ruas, pela máquina de dar comida aos operários que
enlouquece e joga tudo na cara de Chaplin em Tempos Modernos, ou pelo absurdo da
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 38
dura realidade das cidades, onde um desempregado tem de escalar um prédio para
conseguir sensibilizar o dono de uma loja de departamentos para dar ao herói um emprego
(Harold Loyd, em O Homem Mosca – Safety Last).
Em Chaplin, rir com ele não significa rir-se dele. A gargalhada é direcionada para o
socialmente mais forte (o policial que leva um tombo na perseguição, a madame da alta
sociedade em cujo decote cai um sorvete de casquinha, etc.). Assim como no Homem
Mosca de Harold Loyd, a fantasia do final feliz não é sabotada pela realidade absurda
quando termina a escalada do edifício. Enquanto o “happy end” da estética realista
atual é caracterizado pelo restabelecimento da ordem e a diluição dos conflitos, no
slapstick o fascínio está na espontaneidade dos personagens que conseguem fazer triunfar
a fantasia sobre o princípio de realidade. Na estética realista atual, o fascínio se situa
numa neurótica necessidade de mobilizar mecanismos de defesa contra as próprias
fantasias e desejos que põem o espectador em desequilíbrio com os papéis sociais.
“O público da nova camada média não estava, entretanto, preparado para aceitar uma
reformulação ampla, demasiado ‘fantástica’ que pudesse incomodar suas adaptações,
sua integração específica no sistema de trabalho e no lazer: astros demasiado divinos,
mas também críticas realistas excessivas, muitas críticas sociais, desmedida exploração
de temas como a morte, a dor, a felicidade, etc.”4. A velha relação de projeção com o
mito desaparece na nova fase do cinema. Na relação de projeção, o espectador vê, no
mito, tudo aquilo que ele gostaria de ser ou fazer e que não é permitido pela vida. Esta
relação excessivamente divina Incomodava os setores médios da sociedade: felicidade
demais incomoda o público! Pode criar uma tensão incômoda entre a vida olimpiana dos
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 39
Segundo estudo sobre o público, realizado nos anos 70 na Alemanha5, a integração dos
sistemas de trabalho desencadeia nos setores médios da população o medo de
desequilíbrio e de perda do senso. Por um lado, os receptores querem sentir-se renovados,
enriquecidos, transformados e, ao mesmo tempo, mais seguros de si em cada forma de
lazer que participem. Por outro lado, o controle do princípio de realidade exige a
necessidade da preservação da identidade, do rigoroso cumprimento dos deveres e
obrigações. As pessoas gostariam de ser arrancadas das atividades enfadonhas do trabalho,
porém, sabem que precisam delas para sobreviver e garantir a segurança material e a
tranqüilidade psíquica.
As fantasias devem ser liberadas nos meios de comunicação até um limite socialmente
condicionado para, em seguida, serem abatidas pelo princípio de realidade. Mesmo nos
filmes integrantes dos gêneros mais ficcionais, como o Terror, ainda aí este princípio
vigora. Em filmes como A Hora do Pesadelo ou Sexta-Feira 13, o esquema de lidar com a
fantasia do público é sempre o mesmo. Jovens em férias ou acampados no mato são
atacados pelos monstros Fred Krueger ou Jason. Os primeiros a serem vilmente
assassinados serão aqueles que desobedecerem ao princípio de realidade (sair de casa
sem dar ouvidos aos conselhos maternos, transar no meio do mato, tomar alguns tragos
num bar, fumar maconha). No final, o rapaz mais normativo e disciplinado enfrentará o
monstro num duelo final, “matando-o” até a próxima seqüência da série.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 40
Construção sígnica:
elaboração da experiência do receptor na forma
Nas novelas atuais, muitas vezes são transmitidos conteúdos politicamente polêmicos,
contestando normas, valores e formas morais vigentes, contestadores (vide produções
como Roque Santeiro, Grande Sertão: Veredas, Renascer), confundindo a leitura dos
“conteúdos ideológicos”. Hoje, a linha de montagem de produção da mídia permite a
uma personagem de novela da TV Globo falar mal do governo ou um padre defender a
reforma agrária. Atualmente a leitura crítica dos conteúdos se esgota porque a ideologia
não está mais na mensagem expressa ou nas “entrelinhas” de um discurso. Se no passado
a rigidez ideológica estava no controle dos conteúdos pela censura, hoje esta rigidez
passou para os elementos da forma.
Além disso, hoje o plano da edição e montagem é internacionalizado, o que permite que
novelas e mini-séries da TV Globo sejam comercializadas para o mundo inteiro. Para
pesquisadores como Prokop, esta linguagem internacionalizada pode ser analisada dentro
do referencial da construção sígnica. Dessa forma, não importa o conteúdo ser política
ou existencialmente explosivo: a rigidez ideológica da forma certamente neutralizará
os possíveis efeitos conscientizadores ou incômodos dos conteúdos críticos. É exatamente
na maneira de os produtos culturais serem fabricados (e não nos conteúdos) que reside
a função conservadora da mídia.
P ara explicar com mais detalhes quais os processos que envolvem a construção sígnica
vamos tomar como exemplo unia análise comparativa da estrutura de dois produtos
culturais: os filmes Laranja Mecânica e Stallonne -Cobra. São dois filmes que abordam
um mesmo conteúdo (a violência), mas com tratamentos formais ou estéticos
completamente diferentes. O primeiro filme, do diretor Stanley Kubrick, é considerado
um exemplo de filme “de diretor” ou “de arte”. Para efeito da nossa análise, um filme
cujo tratamento formal possibilita que o espectador tenha uma relação intensiva com o
conteúdo da imagem: cenas com ritmo mais lento, em que podem ser vasculhados todos
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 43
os detalhes; onde, tal qual na fotografia, permite-se trabalhar o conteúdo com mais
densidade, muitas vezes trazendo incômodo para o psiquismo do espectador.
Talvez o ponto de distinção decisivo entre os dois filmes refira-se à questão da agilidade
formal. Presente nos filmes extensivos como Stallone-Cobra, sua função é a signalização
decisiva das cenas, ao tirar o impacto do conteúdo e transferi-lo para os signos que
constituem a forma - principalmente ritmo, trilha musical e sonoplastia. Neste filme a
violência parece ser mais explosiva do que em Laranja Mecânica (mais silencioso e com
uma trilha musical clássica). Mas, se analisarmos bem, veremos que o impacto da violência
não é transmitido pelo conteúdo, já que o ritmo não permite a visualização mais demorada
do que está ocorrendo - nas seqüências violentas o ritmo é intenso, os enquadramentos
se sucedem com uma duração que não ultrapassa os 3 segundos. Por isso, a violência
deve ser sempre sugerida e jamais apresentada em toda densidade. Ou seja, sugerida
pelos signos da forma: sonoplastia excessivamente barulhenta, o ritmo com cortes secos
e rapidíssimos que, em si, já sugerem a idéia de agressividade - quanto mais violenta for
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 44
a seqüência, mais clipada se toma - e a trilha musical apropriada para cenas violentas
com um som heavy metal.
Veja, por exemplo, a presença da agilidade formal nos filmes pornográficos. Também aí
quanto mais sensual se toma a seqüência, mais a signalização da agilidade formal entra
em ação: ritmo cada vez mais clipado, sonoplastia também barulhenta (gemidos, pessoas
arfando, gritos), trilha musical previsível, tudo retirando do conteúdo da cena a força
erótica. Por outro lado, filmes eróticos, como Império dos Sentidos ou Calígula, dão
plena força ao conteúdo, com enquadramentos longos e em plano geral. O incômodo
começa a assaltar o espectador, pois o corte salvador não aparece... Enquanto isso, no
filme pornográfico com o erotismo signalizado, a reação do espectador se limita ao riso
e sarcasmo.
Voltando ao filme Laranja Mecânica, não se verifica nele a presença da agilidade formal.
Kubrick faz questão de que o conteúdo fale mais alto, não permitindo que recursos
formais filtrem ou, pelo menos, sublinhem a violência (por exemplo, a opção pela música
clássica como trilha das cenas de espancamento e estupro têm um efeito incômodo, por
não terem a tradicional música heavy metal, o que tomaria tudo mais previsível e,
portanto, seguro).
Além disso, Laranja Mecânica lança mão do jogo claro/escuro e luz/sombra, enaltecendo
ainda mais a densidade do conteúdo, produzindo seqüências violentas com maior
dramaticidade. Em Stallone-Cobra, porém, a violência é excessivamente iluminada e
colorida, cromatismo chapado e intenso, sem permitir uma densidade nas texturas e
objetos de cena.
A construção sígnica também neutraliza o impacto das ações ao tomá-las mais previsíveis
através da redundância ou excesso de signos. Nas seqüências mais importantes do filme
Stallone-Cobra são utilizados muitos signos para informar pouca coisa, saturando a
significação e tomando tudo seguro e previsível. A cena de violência é sublinhada por
uma série de signos que querem informar a mesma coisa: close no rosto do serial-killer,
música pesada e tensa, o som exagerado da arma sendo recarregada, a profusão de tiros
e cartuchos esvaziados para todos os lados. Já em Laranja Mecânica ocorre o contrário,
propiciando a criação do elemento-surpresa: as seqüências violentas acompanhadas por
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 45
música clássica não permitem ao espectador saber o que vai ocorrer, vilões vestidos de
branco (o que nega o estereótipo da vilania), as lutas entre gangs com ações quase
coreografadas, opondo-se aos clichês dos filmes de ação, etc. Kubrick despe a violência
de todos os recursos formais excessivos possíveis, para que o conteúdo fale mais alto.
Construção sígnica e
realismo cinematográfico
Mesmo que cada uma das pessoas enquadradas na seqüência esteja em locais e tempos
diferentes, o referenciamento que cada um fará para o contra-campo criará a ilusão da
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 46
a da justiça com as próprias mãos como as únicas soluções possíveis para a questão da
violência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
Ciro MARCONDES FILHO (org.). Dieter Prokop. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São
Paulo, Ática, 1986.
2
Ibid. Televisão: a vida pelo video. São Paulo, Moderna, 1988. p. 40.
3
Dieter PROKOP. “Ensaio sobre cultura de massa e espontaneidade”. In: Ciro MARCONDES
FILHO (org.). Dieter Prokop. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo, Ática, 1986.
p.124.
4
Idem, p. 126.
5
Cf. Emest DicHTER. “Freizeitbedürfnisse und Präferenzstrukturen des Filmpublikums in
der Bundesrepublik ( Necessidades de lazer e estruturas de preferência do público de
cinema na República Federal Alemã). In: Dieter Prokop, Op. Cit.
6
Jean-Patrick LEBEL. Cinema e Ideologia. Lisboa, Editorial Estampa, 1975. p. 94-5.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 48
Capítulo 4
TEORIA GERAL DO VALOR AGREGADO
V ertigem. Essa é a sensação geral que melhor se aplica ao clima cultural deste final
de milênio. A sensação de vertigem começa nos debates epistemológicos, tanto nas
ciências exatas quanto nas ciências sociais, e se concretiza com a potencialização
tecnológica e a globalização sócio-econômica.
A etapa histórica atual, que muitos pesquisadores definem como pós-moderna, se distingue
das épocas anteriores pela perda de uma visão de substancialidade. Em todas as ciências
e em todas as práxis sociais há uma distorção, uma falta, uma acidentalidade, uma
quebra. O que foi quebrado? O que foi perdido?
Em primeiro lugar, esta sensação de vertigem se verifica numa espécie de perda geral do
objeto em todas ciências. A substância particular, que era o objeto de pesquisa de cada
ciência, se perde para dar lugar a incertezas. Por exemplo, o conceito de matéria, tão
caro à física newtoniana, dá lugar ao relativismo e à indeterminação quântica das
partículas. E=mc2 , matéria é igual à energia pura que, por sua vez, é constituída de
partículas errantes, somente calculáveis por leis de probabilidade estatística. Pior que
isso, a própria física quântica chega a um impasse metodológico: que realidade estamos
estudando, se o próprio método interfere no objeto percebido? A luz irradiada sobre as
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 50
Da mesma maneira, esta dúvida metodológica invade as já frágeis ciências sociais. Como
a fotografia pode ser um documento antropológico, se as pessoas fotografadas, ao
perceberem-se diante de tal equipamento, alteram-se ao ver nele ou uma manifestação
do sagrado, ou um espelho narcísico para poses? Ou, então, a súbita crise da
referencialidade da informação nas teorias da comunicação: se McLuhan estiver certo e
“o meio é a mensagem”, estamos caindo no abismo da entropia: quanto maior a
sofisticação tecnológica do canal, menor a taxa de informação (ou de “signo novo”) - o
próprio meio fascina mais do que a referencialidade do conteúdo informado.
É possível uma guerra ser produzida acidentalmente por câmaras de TV? O preço das
mercadorias perder o lastro no valor-trabalho (tal qual descrito por Adam Smith e Karl
Marx) e ser determinado, integralmente, por fatores subjetivos ou aleatórios? Ou a
democracia liberal perder a idéia da representatividade política e o voto assumir um
caráter acidental? E, ao mesmo tempo, a política mergulhar numa gravidade zero, onde
partidos perdem suas diferenças qualitativas em virtude da crise dos antagonismos
ideológicos?
O que será que existe em comum entre Madonna, a queda do Muro de Berlim e as
campanhas publicitárias da Benneton? A crise da idéia de representação, ou seja, o fim
da crença de que os fatos detenham uma profundidade simbólica ou causal. Para autores
como Baudrillard, a queda do Muro de Berlim (e a globalização econômica que impulsionou
este fato) foi o canto do cisne da Política: o fim das polaridades, dos antagonismos,
jogando a democracia liberal numa gravidade zero, sem mais grandes massas ideológicas
para proporcionar forças gravitacionais políticas. Doravante as eleições serão tomadas
pelo caráter, binário das escolhas: este ou aquele, vermelho ou azul. Escolha superficial,
já que, seja quem for que chegar à máquina do Estado irá apenas administrar a sua ruína
criada pela globalização econômica: déficit público, terceirização dos seus serviços,
crise de verbas nas áreas sociais, etc.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 52
A transexualidade de Madonna atesta este fim das forças gravitacionais eróticas. Sua
androginia impõe uma nova forma de sedução: a “sedução fria”3, não mais pelo jogo de
encobrimento e descobrimento de algo que está por trás, escondido. Mas pelo excesso
da demonstração, pela intercambialidade das aparências, o que determina esta não-
identidade sexual. Pelo êxtase de, numa mesma superfície, todas as identidades sexuais
da história do cinema se intercambiarern. Como afirmou McLuhan, “a eletrônica torna
contemporâneos todos os tempos históricos”. Se, no antigo cabaré, o show era o da
possibilidade de o segredo ser um dia desvendado, com Madonna os segredos acabaram
pelo excesso, pela obesidade do show business.
Estes três casos são exemplos de fenômenos que atestam a crise da idéia de representação.
Mas o que é representação? Conceito básico para o pensamento ocidental e uma certeza
epistemológica para qualquer ciência, o conceito de representação pode ser assim
descrito: “Em toda forma de representação alguma coisa se encontra no lugar de outra
coisa: representar significa ser o outro do outro, que vem, simultaneamente evocado e
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 53
cancelado pela representação. Esse significado será mantido como determinação mínima
da representação, a qual se configura de tal modo como o tecido mesmo do pensamento”4.
O que representa, o que está no lugar de outra coisa é o signo. A representação, portanto,
é a sua função semiótica. Este partido da representação, na cultura ocidental, baseia-
se na crença de que o signo, em primeiro lugar, possua um referente ao qual ele se
reporta e, além disso, possa remeter à profundidade do sentido, e de que se possa
trocar o signo pelo seu sentido. Isto é, o conceito de representação comporta essas duas
dimensões: a função denotativa do signo (o signo /Casa/ remete-se ao referente concreto)
e um sentido, uma significação. O signo isolado não terá um significado em si, apenas
como detentor de uma denotação.
Mais do que isso, é necessário que este signo combine com outros dentro de um sistema
lingüístico, constituindo uma sintaxe, uma semântica, um léxico. Ou seja, é necessário
que o signo se insira numa totalidade relativamente fechada, para daí constituir-se
numa linguagem comum.
O real seria dotado de uma estabilidade, onde os fatos seriam explicados a partir do
princípio da primazia da causa sobre o efeito.
c) certeza de que a verdade está no todo - E o que seria a essência, aquilo para a qual
remeteriam os signos? Para este projeto moderno, a essência estaria na totalidade, num
sistema fechado que dá sentido e ordem às partes. Esta certeza vai estar contida tanto
na idéia de mercado como algo dotado de um sentido que automaticamente equilibraria
oferta e demanda (e, também, os interesses egoístas dos agentes econômicos entre si,
por exemplo, a idéia da mão invisível, como metáfora para explicar os mecanismos do
mercado em Adam Smith), quanto, em Karl Marx, na compreensão das leis dialéticas da
História.
De repente, parece que todos esses modelos se apagaram do nosso horizonte. Um clima
de incertezas, instabilidade e perda de referenciais toma conta da cubra no final do
milênio. Os fatos mais conhecidos que originaram este estado de perturbação dos
paradigmas modernos foram o fim da Guerra Fria, a desmontagem dos países socialistas
e o colapso dos valores ocidentais. Porém, vamos nos ater a alguns exemplos particulares,
em três áreas da práxis social: na Comunicação, na Economia e na Política.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 55
Simulacros na comunicação ou
“a greve dos acontecimentos”
C entro de São Paulo. Uma jovem sobe no alto do prédio de uma das muitas galerias
comerciais da região. Ameaça suicidar-se se atirando de lá de cima. Após algum
tempo, multidão formada, chega a equipe de jornalistas de um conhecido programa de
TV sensacionalista. Tão logo a câmara da equipe foi apontada para o alto, focalizando a
jovem, ela salta para a morte. As imagens mostradas pela TV provocaram escândalo
moral pelo sensacionalismo e oportunismo da exploração de um drama privado.
Outro exemplo. O verão de 1992 trouxe uma nova modalidade de delinqüência no Rio de
Janeiro que, alguns dias depois, iria disseminar-se em outras cidades do país: o arrastão.
Gangues de funkers e rapers da Zona Noite da cidade invadem praias da luxuosa e
famosa Zona Sul. Grupos organizados fazem, em bloco, um pente-fino na faixa da areia,
roubando dos banhistas coisas sem valor (esteiras, chinelos, etc.) e que eram jogadas
fora mais adiante. Segundo testemunhos, os arrastões eram mais intensos onde se
concentravam equipes de jornalistas e câmaras. Ao invés de unia horda de miseráveis
desesperados, grupos bem organizados, que buscavam prestígio através da mídia,
ganhando status diante das gangues rivais.
Ou então, o intrigante caso ocorrido nos EUA, no início de 1987. Acusado de corrupção,
o secretário do Tesouro do estado da Pensilvânia, Budd Dwyer, foi a um telejornal para
apresentar argumentos em sua defesa. De repente, no meio da entrevista, diante das
câmaras, ele pegou um revólver e suicidou-se com um tiro na boca. Novamente a
coincidência perturbadora: por que diante das câmaras? Por que não se matou no seu
gabinete, na sua casa ou no intervalo comercial do telejornal?
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 56
Em outras palavras, os simulacros ou pseudo-eventos são fatos que ocorrem por influência
direta ou indireta da presença das câmaras ou pela simples existência das mídias. São
fatos perturbadores, verdadeiros paradoxos, pois, se por um lado são falsos, porque não
aconteceriam daquela forma se as câmaras não estivessem no local, por outro lado, são
verdadeiros, porque alguma coisa aconteceu: gente morreu de verdade ou atos de
delinqüência foram cometidos. Para além do paradigma falso/verdadeiro: a realidade
virtual!
Umberto Eco destaca que o predomínio destes fatos ambíguos configura o aparecimento
de uma nova televisão: a Neotevê. A TV vem ao mundo moderno sob projeto de
“transparência”: evitando todas as formas de metalinguagem e sendo rigidamente
discreta, ela deveria mostrar objetivamente os fatos. Câmaras, locutores, microfones,
fios, tudo que envolve o canal da comunicação jamais poderia ser mostrado ao público.
Apenas uma voz em off, narrando discretamente os acontecimentos. O mais importante
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 57
O que garante a existência dos fatos é a sua veiculação pela mídia. Os fatos
progressivamente perdem a sua objetividade ou substância para se mesclarem com a
lógica ficcional. Quanto mais explosivos, melodramáticos e espetaculares, mais chances
terão de aparecer na mídia. O terrorismo internacional demonstra bem esta opacidade
dos fatos. O terrorismo há muito deixou de ser uma estratégia revolucionária que
objetivava, a tomada do Poder. Em si mesmo, tornou-se um ato propagandístico, mas
não num sentido ideológico (palavras de ordem são enunciadas pelos terroristas, mas,
no fundo, como jogo de cena para tomar mais dramático o espetáculo). Seqüestros de
avião, bombas em embaixadas são acompanhados de reivindicações impossíveis de serem
atendidas, ou pouco práticas, da mesma natureza das exigências dos astros de rock em
dias de show para estádios lotados. Aliás, após um atentado, diversas facções terroristas
ligam para as redações de jornais e TV reivindicando a autoria. Todos querendo tirar
urna “casquinha” do acontecimento!
Diante disso, qual teria sido o estatuto de realidade da Guerra do Golfo? Primeira guerra
on line da História (transmitida ao vivo 24 horas por dia), muitos pesquisadores atribuem
a ela um caráter virtual7. De um lado, os motivos pouco definidos de Sadam Hussein
declarar uma guerra que, de antemão, já sabia que iria perder; de outro, o Pentágono,
superestimando o adversário (falando dos tais mísseis subterrâneos iraquianos no deserto,
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 58
Os simulacros que blefam estão por toda parte. Escândalos sexuais de personalidades
públicas, políticas ou artísticas, propositadamente plantados na mídia para dar alguma
substancialidade às suas encenações; o tom melodramático que os terroristas atribuem
aos acontecimentos; a linguagem dos telejornais sensacionalistas (câmara nervosa, planos-
seqüência tremidos, microfone aberto para captar a respiração ofegante do repórter
durante uma perseguição, trilha musical tensa, etc.) para simular alguma densidade aos
pseudo-eventos, etc.
“A dissuasão é uma forma muito particular de ação; é aquilo que faz que uma coisa não
aconteça. Domina todo o nosso período contemporâneo, que, em vez de tender a produzir
acontecimentos, faz com que uma coisa não aconteça, embora tendo a aparência de um
acontecimento histórico (...) Dá lugar (!) a acontecimentos estranhos, que não fazem
avançar a história, mas que a reapresentam ao contrário, seguindo a curva inversa,
incompreensível para o nosso sentido histórico (só tem sentido histórico aquilo que vai
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 59
Para Baudrillard, esta precessão dos simulacros no mundo informativo das redes midiáticas
tem analogia com o problema epistemológico da antropologia: o aparecimento do etnólogo
interfere na própria cultura que pretendia estudar com objetividade alterando-a. “É o
mesmo efeito perverso para a informação: quando a televisão se toma o espaço estratégico
do acontecimento, ela se faz auto-referência, mortífera, ela se toma uma máquina
celibatária: o objeto é aniquilado pela informação, à maneira da noiva desnudada por
seus próprios celibatários. O objeto não é apenas alienado: ele é abolido. Restam apenas
traços numa tela de controle”9 .
A Economia imaginária
A teoria do valor sempre foi o ponto mais polêmico no debate entre as várias correntes
do pensamento econômico. Mais do que referencial para a formação dos preços, o
valor sempre se constituiu na própria medida do social, representação de uma substância
concreta das economias: a produção e acumulação de riquezas.
A partir daí, o produto ingressa num outro circuito, o da circulação, para que ele apareça
nas lojas e supermercados, para que ali apareça o consumidor e pague uma certa
importância para a aquisição da mercadoria.
Nesta descrição da produção econômica clássica, o preço que se paga por uma mercadoria
corresponde ao valor do trabalho em horas do assalariado multiplicado pelo tempo
despendido, acrescido do valor da matéria-prima e do lucro do empresário. Seja na
economia liberal (onde o lucro provém da justa remuneração do risco empresarial,
propiciada pelo acréscimo de preço à mercadoria na esfera da circulação); ou, então,
na economia marxista (onde o lucro surge da expropriação de horas do valor-trabalho
não pagas ao operário no processo de trabalho na fábrica), a riqueza e o valor surgem da
esfera da produção. Daí toda a luta do capital, nas fases iniciais do capitalismo, em
reprimir violentamente greves, mecanizar e automatizar a produção, investir
massivamente na produção tecnologias e formas científicas de administração, com o
objetivo de racionalizar custos e matéria-prima e disciplinar a força de trabalho. As
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 61
coisas eram mais claras: a riqueza adquiria uma visibilidade dentro de uma área econômica
bem delimitada - a produção. Neste campo eram travadas as lutas políticas decisivas da
sociedade.
Os preços hoje tomam um caráter cada vez mais “simbólico”. Se antes correspondiam
aos gastos de um capitalista na produção acrescidos do lucro, hoje passam a ser definidos
por critérios cada vez mais fictícios e abstratos. Os custos de produção (matéria-prima,
força de trabalho e depreciação do maquinário) são fatores cada vez menores na
composição do preço final da mercadoria. Outros fatores, como publicidade, investimentos
tecnológicos na apresentação do produto, a griffe, etc, passam a compor quase a
totalidade do preço.
Podemos afirmar que, no capitalismo atual, é mais caro dizer à sociedade que o produto
existe do que fazê-lo existir numa linha de montagem. Processo de absoluta inversão.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 62
Colocar uma calça jeans no corpo escultural de uma modelo para desfilar numa passarela
é infinitamente mais caro do que confeccionar esta mesma calça. A mercadoria toma-se
cara não porque sofreu o efeito da “Iei de oferta e procura” (em que uma mercadoria se
toma mais valorizada porque é escassa ou muito procurada), mas porque sofreu um alto
investimento promocional e midiático. O valor desagrega-se do lastro produtivo.
Vejamos o exemplo das pastas de dente. Todo esforço publicitário deste mercado é
simular que existam novidades, diferenças e concorrências, apesar de todas elas terem
a mesma composição básica (aliás, determinada pela Organização Mundial de Saúde).
Pasta X é anticárie, Pasta Y é antitártaro, dizem as campanhas publicitárias. Elas apenas
“esquecem” de dizer que todas são anticárie e antitártaro. Ou, de outra forma, simulam-
se diferenças nos investimentos em cores, sabores, embalagens, etc.
Ou o caso dos automóveis, onde os investimentos feitos pelo capital são cada vez menores
na tecnologia automobilística em si (potência, combustível, etc.), dando-se prioridade
aos itens que se agregam ao valor de uso do veículo: opcionais e acessórios corno ar-
condicionado, aparelhos de som, controles automáticos das portas, design do painel,
etc. O capital descobre urna nova fonte de lucros não mais no investimento da produção,
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 63
Por exemplo, o salário de um metalúrgico detém uma medida na sua produtividade (ou
na taxa de exploração), na experiência profissional, ou no investimento educacional
feito em sua força de trabalho, etc. Ou seja, o salário está baseado numa memória
coletiva, numa medida social que dá parâmetros ao progresso social e econômico.
Recentemente, o noticiário informou que o dólar teve uma valorização mundial graças à
queda de cotação do marco alemão. Motivo: o anúncio da diminuição do déficit público
americano e aumento do endividamento alemão. O maior déficit público do mundo (o
americano) mantém a hegemonia do dólar graças à sua política junto à mídia. A
credibilidade (e não a verdade) das informações produz efeitos econômicos.
Lobistas espalham boatos que, ao circularem através das redes de informação, tomam-
se verdades, produzindo resultados no mercado financeiro e gerando o lucro de poucos
e o prejuízo de muitos.
Esta economia imaginária torna inúteis o valor-trabalho e todos os seus valores éticos e
morais decorrentes (operosidade e poupança). Hoje, os grandes lucros e rendimentos
decorrem de um senso oportunista e especulativo, na medida em que se desatrelaram
das bases produtivas da sociedade. Isso fica claro com o predomínio do circuito
oportunidade-crédito sobre a associação trabalho-riqueza. O surgimento do milagre do
crédito cria, principalmente, uma inversão moral: se no passado o endividamento era
motivo de vergonha para os agentes econômicos, hoje, em muitos aspectos, passa a ser
a mola propulsora da economia. Um paradoxo começa a se impor: quanto maior a
capacidade de endividamento (e não mais de produção de riqueza) dos agentes
econômicos, maior o crédito e a confiança no mundo financeiro.
Cada vez mais o vetor acumulativo se pulveriza para dar lugar a uma estranha tendência
negativa: o endividamento generalizado das pessoas físicas, jurídicas e do Estado. “Um
antigo responsável pelo Tesouro francês observa que se, nos anos 70, o Banque de France
perdesse, quando muito, 5% de suas reservas, o fato seria considerado uma enorme
catástrofe. Ora, em julho de 1993, em apenas dois dias, ele perdeu a totalidade das suas
reservas, ou seja, 300 bilhões de francos e foi obrigado a tomar dinheiro emprestado
para poder enfrentar os ataques contra a moeda”13. Uma quantidade fantástica de
“moeda”(?) proveniente dos pagamentos de juros e serviços das dívidas passa a sustentar
não só o mercado financeiro mundial mas o próprio setor produtivo, com novos
empréstimos, que fará crescer a bola de neve. Reforça-se a natureza inflacionária desta
economia Imaginária. Vertiginoso paradoxo: ela cresce não pela positividade da
acumulação, mas pela negatividade do endividamento! Como colocado anteriormente,
seria como se o acidente dominasse a substância, o não-ser sobre o ser, o trabalho morto
sobre o trabalho vivo e assim por diante. A patafísica dos sistemas!
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 66
N
etc.
a ciência política, o Poder sempre foi pensado como uma substância, ou um topos,
em tomo da qual gravitam os interesses aglutinados em grupos, partidos, revoluções,
De qualquer forma, nos seus momentos fortes na história, o Poder e o Político sempre
tiveram um caráter de opacidade e segredo: na mistificação criada pelas ideologias
para gerar a alienação e o conformismo, mascarando os mecanismos de reprodução da
dominação; na colocação do rei à distância do povo, na demonstração olimpiana dos
chefes de Estado; nos esotéricos símbolos religiosos criados pelo Clero em todas as épocas;
na censura imposta aos veículos de comunicação pelos estados totalitários; na perseguição
política e nos escândalos das torturas nos porões das ditaduras. Como ponto nevrálgico
da sociedade, massa densa de sentido e simbolismo, era contra ele que eram investidos
os atos de violência (assassinatos de presidentes, seqüestros de embaixadores, atentados
contra repartições públicas, greves gerais, etc.).
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 67
Por outro lado, há algo de peculiar no comportamento do Poder nos tempos atuais: a
necessidade de tomar-se visível para a mídia, de chamar todos à participação. Para
pesquisadores como Baudrillard, há algo de Irônico no Poder atual: se no passado essa
apatia das massas seria positiva para a gerência tranqüila da política pelas classes
dominantes, hoje ela é perigosa, pois pode denunciar a sua própria inutilidade: “Durante
muito tempo a estratégia do poder pôde parecer se basear na apatia das massas. Quanto
mais elas eram passivas, mais ele estava seguro. Mas essa lógica só é característica da
fase burocrática e centralista do poder. E é ela que hoje se volta contra ele: a inércia
que se fomentou tomou-o sigilo de sua própria morte. É por isso que o poder procura
inverter as estratégias: da passividade à participação, do silêncio à palavra. Mas é muito
tarde. O limite da “massa crítica”, o da involução do social por inércia, foi transposto.
Em toda parte se procura fazer as massas falarem, se as pressiona (sic) a existir de
forma social eleitoralmente, sindicalmente, sexualmente, na participação, nas festas,
na livre
expressão, etc.”14
O poder hoje sonda as massas com pesquisas de opinião pública, determina suas estratégias
econômicas pela taxa de repercussão nas redes de informação, chama-as à participação
eleitoral ou bombardeia-as com enquetes. Ironia das ironias: se no passado o poder
temia o levante revolucionário, hoje teme a Inércia pânica das massas! Há uma sabedoria
na alienação e na indiferença das pessoas em relação ao fenômeno político: a
desconfiança de que o poder já tenha acabado ou, então, de que ele já não é mais o
fator determinante para as suas vidas.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 68
Mas como assim, o poder entrou em declínio? É sabido que, neste século, o poder se
capilarizou por toda a sociedade, em primeiro lugar pela multiplicação dos saberes
tecnológicos. Cada invenção, principalmente no campo da comunicação e informação,
questiona o quadro jurídico-institucional predominante (vide o caso da globalização
industrial, informacional e financeira ora em ascensão, onde princípios como propriedade
privada, o direito à privacidade e legislações nacionais de todas as naturezas estão em
franco questionamento).
A Guerra Fria foi, talvez, a época inaugural do simulacro do poder e da histeria dos
tempos atuais: a produção e a reprodução do real por meio da ação centrípeta da mídia.
Terminada a II Guerra Mundial, o mundo é dividido em duas esferas de influências (EUA
e URSS), paralisando o jogo político pela dissuasão. Para manter a legitimidade da
dominação em cada uma destas esferas e esconder a inércia política, simula-se a realidade
de uma possível conflagração nuclear, criando-se um verdadeiro terrorismo de Estado:
cada esfera de influência é pega como refém, diante dos bate-bocas diplomáticos. O
aparente antagonismo encobria a inércia política e o acordo entre as potências. Com o
fim da Guerra Fria na queda do Muro de Berlim, o cortejo fúnebre do poder corre o risco
de se iniciar. Atualmente, para evitar isso, uma nova estratégia de simulação está a
caminho desde a Guerra do Golfo: a simulação do confronto entre o Poder ocidental
contra os terrorismos árabe-muçulmano e nacionalista de direita. Novo acordo: dessa
vez entre Estados e facções terroristas, que terão a oportunidade de chegarem sempre
às manchetes dos principais veículos de comunicação, reproduzindo suas esferas limitadas
de influência.
As inércias sociais
D iante desses fatos discutidos, podemos afirmar que um novo valor se agrega aos
fenômenos sociais: um valor imaginário que, por sua imaterialidade, parece retirar
do social a natureza ontológica dos acontecimentos, empurrando-os à inércia. Todos
aqueles modelos, vistos anteriormente, ligados à modernidade (teleologia, hermenêutica
e totalidade) implodem diante destes fenômenos extremos que a condição “pós-
modernidade” cria. A história parece imobilizar-se. Revoluções se mostram inócuas,
guerras e violências de grupos sociais perdem o caráter anômico para entrarem no campo
da simulação, ideais e palavras de ordem passam a ter cada vez mais o caráter de slogan
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 71
Primeira ruptura, a teleológica: este valor imaginário persistente nos fatos implica numa
inacreditável inversão - o primado do efeito sobre as causas. Como podemos perceber,
nos três campos - comunicação, economia e política -, as redes midiáticas de informação
estão no centro de tudo. As causas dos fatos que, a princípio, deveriam ser objetivamente
exteriores à existência da mídia (o econômico, o político, a história e o social), são
igualmente sugados por ela. Quarto Poder, como querem alguns? De forma alguma, já
que a própria idéia de mídia entra em franco declínio: vivemos o início da era pós-
midiática onde o canal de informação é esmagado pela inflação da importância simbólica
que a sociedade começa a lhe atribuir. Sem condições de informar as causas dos efeitos,
já que o próprio canal passa a ser, involuntariamente, o primado de todos os efeitos.
Segunda ruptura, a hermenêutica: este valor imaginário agregado aos fatos toma-os
minimais, auto-referenciais. Eles a nada mais representam exceto a si mesmos. O método
de interpretação moderno e humanista da história (crítica das aparências e de todas as
ideologias e mentiras) implode diante deste hiper-realismo dos fatos. Um fato ou um
boato qualquer que alcance a repercussão concêntrica nas redes de informação, a partir
deste instante estará além da dualidade verdade/mentira. Passará do campo da verdade
e entrará no da credibilidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
Paul KLEE, “Credo du Créatur”, de 1920. ln: Theorie de l´art moderne. Paris, Denoël,
1977.
2
Luciano ZADSZNADJER. Travessia do Pós-Moderno. Rio de Janeiro, Griphus, 1992. p.54.
3
Cf. Jean BAUDRILLARD. Da Sedução. Campinas, Papirus, 1991.
4
Fernando GIL “Representtzione”. In Enciclopedia Einaudi. Torino. Gulio Einaudi Editore,
1981. V. 11, pp. 546-583.
5
Veja Marcelo COELHO. “Políticos se entregam à criação de fatóides”. ln: FoIha de São
Paulo. 9 fev. 1996. p. S-12.
6
Umberto Eco. “TV - A transparência perdida”. ln: Umberto Eco. Viagens na Irrealidade
Cotidiana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p.195
7
Pas. Cf. Vários autores, Guerra Virtuale, guerra reale: riflessione sul conflito del
golfo. Milão, Veja, 1991.
8
Jean BAUDRILLARD. A Ilusão do Fim. Lisboa, Terramar, 1994. pp. 31-2.
9
Ibid. “Televisão/Revolução: o caso Romênia”. ln: André PARENTE (org). Imagem-Máquina.
Rio de Janeiro, Editora 34, 1993. p.148.
10
Jean CHESNEAUX. Modernidade Mundo. Petrópolis, Vozes, 1995. p. 190.
11
Veja os conceitos de “quase-funcionais” ou “profissionais sem profissão” em Richard
SENNETT, O Declínio do Homem Público. São Paulo, Companhia das Letras, 1988;
principalmente no capítulo 14.
12
Cf. Susan GEORGE. “A Falência do Sistema Liberal”. ln: Atenção, número 1, nov. 1995.
p. 50.
13
Idem, ibid. p. 52.
14
Jean BAUDRILLARD. À Sombra das Maiorias Silenciosas. São Paulo, Brasiliense, 1985.
p.24.
15
Cf. André GORZ. Adeus ao Proletariado. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1980; e
Richard SENNET, Op. Cit.
16
Susan GEORGE. Op. Cit. p. 53.
17
Idem, ibid. p.53.
18
Ciro MARCONDEs Filho. Sociedade Técnológica. S. Paulo, Scipione, 1995. p.68.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 73
Capítulo 5
NOVAS TECNOLOGIAS DE COMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO-
IMPASSES E ALTERNATIVAS
Não há mais lugar para o projeto abrangente de educação, porque a escola vem
progressivamente perdendo a capacidade de articular-se com a sociedade. A educação
sempre foi orientada pela inspiração iluminista: por um lado, ela deveria emancipar o
homem da ignorância, lançando a luz da razão em sua consciência. O resultado seria a
construção de um cidadão livre, ética e moralmente responsável. Por outro lado, e
ainda mais pretensiosamente, a educação aliada à Ciência criaria um projeto abrangente
de sociedade e de um novo homem. Para muitos pesquisadores, a crise da educação
corresponde à própria crise da visão de mundo.
iluminista: ironicamente o desenvolvimento das ciências e das tecnologias simplesmente
despedaçaram a utopia da Razão. Ciências e técnicas abandonam a pretensão macro, o
planejamento da totalidade, e se precipitam numa espécie de intervenção pontual na
sociedade - microinformática, microeconomia, segmentação dos meios de comunicação
e dos mercados, etc. Já pouco importa o planejamento da totalidade. Doravante, o
imaginário tecnológico será marcado pela performance da ação fragmentada, da
intervenção rápida. Diante deste contexto, a educação transforma-se em treinamento.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 74
O fato é que nunca se viu uma geração de educandos tão visceraImente ligada às
tecnologias de comunicação e informação como a atual. É claro que as tecnologias
acompanham o homem ao longo da história. Porém, neste último século, por diversas
razões, as tecnologias adquirem uma natureza bem particular, distinta da de todas as
épocas. Esta questão vem intrigando pesquisadores, principalmente aqueles identificados
com as correntes pós-estruturalistas1. O francês Paul Virilio2 é um deles. Para ele a
questão é tão séria em suas implicações, que propõe uma nova área especializada de
pesquisa: a Dromologia3.
Para este pesquisador, a relação que o século XX coloca entre o usuário e as tecnologias
não é mais de simples instrumentalidade, ou seja, a posição do usuário não é mais
neutra, como simples exterioridade ao instrumento. De várias maneiras, as tecnologias,
pela primeira vez na história, produzem cultura. Falando de forma mais exata, elas
moldam nossa percepção de um modo que, por sua vez, vai determinar a visão de mundo.
Ou seja, pela primeira vez na história, as tecnologias estão sendo capazes de criar
ecossistemas, principalmente pela sua capacidade atual em organizar-se em redes,
interligadas de forma transnacional. A este novo ecossistema tecnológico, Vergílio atribui
o conceito de Dromosfera.
Mas o leitor deve estar questionando o porquê da raiz dromo nestes conceitos. O que é
um dromo? Antes de aprofundarmos a discussão sobre o impacto da nova cultura
tecnológica na educação, vamos detalhar um pouco mais este conceito de Dromosfera.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 75
Para as pesquisas que convergem nesta área, a etapa atual das tecnologias traz um
caráter paradoxal. Nunca foram tão velozes, quanto ao deslocamento instantâneo das
informações, mas, por outro lado, nunca tiveram uma característica tão inercial. Se
dermos uma olhada de sobrevôo na história das tecnologias, facilmente entenderemos
esta natureza paradoxal e o porquê dessa velocidade cinemática, atual.
Virilio descreve a história das tecnologias em diversas etapas, sempre pensando cada
fase pela metáfora do veículo; por que cada inovação tecnológica produzida pelo homem
trouxe como conseqüência uma aceleração no deslocamento espacial e na percepção
temporal:
1. Veículos dinâmicos: os primeiros veículos impulsionados pelas forças da natureza,
onde o homem tem um mínimo de controle (canoas, balões, etc.);
2. Veículos móveis: veículos ainda dependentes das forças da natureza, mas com um
controle de direção quase pleno pelo homem (caravelas, carroças, cavalos de montaria
etc);
Se nas três primeiras etapas das tecnologias temos exemplos de velocidade cinética (em
física, o estudo da velocidade no deslocamento de um ponto a até b), na última etapa
temos a velocidade cinemática (a velocidade em seu estado puro, como aceleração,
desprezando-se o trajeto, finalidade ou sentido. Apenas velocidade pura.) Ou seja, a
idéia perfeita de dromo.
Essa idéia de dromo podemos encontrar no sufixo de palavras como autódromo, velódromo,
etc., e quer dizer “correr velozmente em circuito fechado”. Aceleração pura, correr e
não chegar a lugar algum. Por exemplo, podemos encontrar na própria evolução do
automobilismo (esportivo ou de passeio) a evolução cinemática das tecnologias. Das
primeiras corridas de automóveis em circuito aberto (de uma cidade a outra) até os
circuitos fechados (autódromos, onde o campeão não e quem cruza primeiro a linha de
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 77
chegada, mas quem acelera com mais rapidez e audácia); ou das primeiras estradas que
unem dois pontos no mapa (estradas onde o motorista é obrigado a desacelerar, pois o
percurso passa por perímetros urbanos) até as higways, invenção norte-americana, onde
a estrada assume o dromo perfeito: estradas que não levam exatamente a parte alguma,
circuitos fechados onde, para ligar a algum lugar, o motorista deve sair dela através de
um trevo (um nó de desvios). A velocidade cinemática vai abolir o trajeto, os intervalos
espaciais e temporais, para pôr no lugar a cultura do dromo: não quero ficar onde estou
nem Ir a parte alguma - quero estar em aceleração contínua, como num estado de
suspensão e torpor.
Por um lado a inércia domiciliária (o primado da chegada, tudo vem até você, o triunfo
da paralisia e da comodidade) e, de outro, o prazer da velocidade pura, pela aceleração,
por esta “indeterminação quântica”.
As higways são o primeiro exemplo da cultura do dromo no século XX. Nelas, milhares de
pessoas na América começam a viver em motor homes, vivendo em febril deslocamento
sem chegar à parte alguma. Nos anos 50, cria-se a cultura centrada no cinematismo do
automóvel em higways, drive-ins, fast-food, motéis, o rock’n roll. O fascínio da velocidade
pela velocidade, indeterminada, ansiosa, esquizóide.
Principalmente do século XIX até nosso século, o élan que tem impulsionado o avanço
tecnológico sempre foi o dos objetivos bélicos e estratégicos. A ideologia da guerra é
essencialmente a velocidade ou a performance: velocidade de deslocamento e velocidade
de dissuasão e embaralhamento das informações para confundir o inimigo. A propaganda,
nos seus aspectos mais atuais e sofisticados, surge na II Guerra Mundial, com as sirenes
em aviões para aterrorizar as vítimas ou os bombardeios de informações desencontradas
por rádio para confundir o inimigo (a invenção do rádio foi pensada, primeiramente,
como estratégia militar). Toda a tecnologia mobilizada na corrida à Lua entre Estados
Unidos e URSS nos anos 50 c 60 – transistorização, miniaturização de componentes
eletrônicos, etc. - foi motivada por razões geopolíticas e não científicas. Outro exemplo
é o dos vídeo-games; e, mais tarde, da realidade virtual: surgem primeiramente dentro
dos programas de treinamento de pilotos de aviões de guerra. Ou, então, o exemplo dos
primeiros computadores “modernos”, Eniac e Edvac, que foram criados por matemáticos
nos anos 40 com um objetivo bem concreto: numa guerra, matar com precisão o inimigo,
através de cálculos precisos do ângulo de inclinação relacionados com a distância do
alvo. Ou seja, as tecnologias (principalmente as de informação e comunicação) sempre
foram primeiramente testadas nos campos de batalha para depois, em tempos de paz,
serem comercializadas para civis como formas de divertimento e lazer ou como meios
de informação.
Se tudo isso for verdade, a questão que se coloca passa a ser essa: se a tecnologia não é
neutra, mas trás dentro de si o princípio ideológico da guerra (a velocidade pura), não
estaríamos diante do fenômeno da militarização da vida civil, ou seja, a percepção e a
visão de mundo dos civis não estariam se tornando análogas às dos soldados na cena de
batalha? Colocado em termos práticos, um jovem manipulando habilmente um vídeo-
game não teria a percepção e coordenação motora moldados à semelhança do piloto de
guerra num simulador de vôos?
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 79
Nos adultos seria uma situação semelhante à descrita por Walter Benjamin quanto ao
estado emocional dos soldados quando regressaram para casa após o término da I Guerra
Mundial em 1918, considerada como a primeira guerra high tech da história, no sentido
dromológico6. Ao contrário das guerras anteriores, onde os soldados voltavam cheios de
histórias para narrar após muitas viagens, no final da I Guerra Mundial os soldados
regressaram silenciosos. Apesar de tudo o que se passou, retomaram empobrecidos em
experiência, porque, diante de uma guerra tão veloz e tecnologicamente sofisticada
para a época (uma guerra não mais decidida pela infantaria, mas agora por máquinas),
o estado de choque fez suspender o registro de memórias e experiências. Isto é,
retomaram incapazes de narrar as suas experiências devido ao estado de afasia provocada
pelas modernas tecnologias bélicas que imprimiram uma brutal alteração no continuum
tempo/espaço vivido até então (estímulos rápidos, novos efeitos de terror, explosões e
detonações diversas em escala muito maior do que as vistas até então).
impressões visuais não tenham significação, não pareçam que são nossas, elas
simplesmente existem, como se a velocidade da luz tivesse tomado conta desta vez da
totalidade da mensagem”7 .
Pegue, por exemplo, o caso do jovem que nomeia qualquer experiência que tenha tido
como “legal”. Relatando a um colega o que tinha feito num shopping center, ele chama
como “legal” três experiências qualitativamente diferentes: ir ao cinema, comprar uma
roupa e, mais tarde, ter “ficado” com uma garota. As experiências não conseguem ser
nomeadas nas suas diferenças e valores. Com uma percepção periférica, as três
experiências são niveladas. Dessa maneira, a questão não é a “pobreza de vocabulário”,
mas uma dislexia da percepção: Imagens não conseguem expressar-se por palavras porque
a realidade percebida já está periférica, transformada numa tábula rasa. Antes de ser
uma questão lógica ou racional, é essencialmente um problema de gestalt (voltaremos
a esse ponto mais adiante).
Irradiação
Os impactos perceptivos, culturais, sociais ou éticos em tudo isso ainda estão começando
a ser dimensionados por pesquisadores, mas já começamos a pressentir, aqui e ali, alguns
efeitos concretos. A primeira questão é o problema ético que envolve esta perda dos
intervalos temporais proporcionados pelas redes. “À medida que se aperfeiçoam os
aparelhos elétricos, o espaço e o tempo cessam de ser diretamente acessíveis às nossas
percepções e ao nosso intelecto. Perde-se a noção de escalas, das perspectivas, das
referências, das distâncias. O intervalo espacial, bem como o intervalo temporal, cedia
espaço aos prazos, aos processos de latência e espera, à maturação de uma situação, ao
acordo entre dados complexos, enfim à responsabilidade social (grifo nosso) - a do músico
que dirige uma orquestra, a do cozinheiro que prepara um molho, a do dirigente político
que sabe esperar para tomar uma decisão. O intervalo, porém, deu lugar à interface
imaterial e maquinal, ao movimento recíproco das interferências imediatas, portanto à
irresponsabilidade”.9
Veja o caso do mercado financeiro, onde as operações cada vez mais se assemelham a
lances num cassino. Catástrofes financeiras com repercussões mundiais - como a do
banco inglês Bering, onde um único operador, após sucessivos lances no mercado de
derivativos, levou o banco à falência - ou cracks inesperados nas bolsas de valores dão
um caráter aleatório e indeterminado às decisões. Não há mais tempo para maturar
uma decisão. O risco é calculado e os lances são jogados.
As novas tecnologias abrem caminho para novas desordens. Criam ansiedade, são frágeis.
E, ainda mais preocupante, graças à irresponsabilidade intrínseca dos atos que o sistema
induz, são criminógenas. Programas de informática estão à mercê das bombas lógicas
dos vírus de computador, atentados terroristas a centrais elétricas, trotes por telefone,
escutas clandestinas em celulares, greves que paralisam toda a malha viária, gangues
organizadas para operações de desfalque e lavagem de moeda. “Em Sydney, o Hackwatch10
da polícia não sabe o que fazer diante da cumplicidade entre os adolescentes de 15 anos
e os chefes da máfia”11. Como afirma o filósofo francês Gilles Lipovetski12 Narciso instalou-
se na rede de circuitos integrados e no hiper-espaço da telemática. Atos terroristas
solitários de hackers, gestos vazios de significado cujo único objetivo é afirmar: “apesar
da rede massificante, eu existo!”
Como no exemplo dos jovens paulistas que picharam a estátua do Cristo Redentor, no
Rio de Janeiro. Já presos numa delegacia e diante das câmeras, afirmaram cinicamente
que não estavam arrependidos do ato de vandalismo e que o objetivo deles fora cumprido:
estavam sendo vistos no país inteiro através das redes de TV. É claro que este é um
exemplo limite, mas Muniz Sodré afirma que, na atualidade, há uma forte ligação entre
narcisismo, violência das gangs de jovens - veja o caso dos “arrastões” no Rio de Janeiro,
que se tomavam mais intensos onde estivessem câmeras presentes - e consumo de drogas
com o próprio efeito psicotrópico das redes: “A ‘paternidade’, cada vez mais abstrata e
poderosa no nível de suas realizações prodigiosas, instala-se nos órgãos disseminadores
da competência tecnoburocrática e da irradiação tecnológica, deixando o sujeito
esvaziado de relação concreta, desejoso de sair de si mesmo, de abandonar a sua
identidade tal como se apresenta (...). Estruturada como droga, a própria organização
social incita a drogadicção. A droga é, portanto, o mundo idealizado e transformado em
artefato, simulado. É a prótese do “pai” que falta ( ... ). As redes informacionais podem
ser ao mesmo tempo psicotrópicas, oferecendo ao adolescente, de forma sedutora,
lugares de fantasia, onde se constroem identificações fortes”17
Diante do terminal de uma rede de informações, você tem consciência de estar vendo
conteúdos com alcance nacional e internacional. Esta consciência condiciona toda a
psicologia de recepção da comunicação em rede. Em toda história, nunca atos, gestos
ou palavras tiveram uma repercussão tão simultânea e extensiva. Se no passado, estavam
sujeitos a uma sanção social, ética e moral, para merecerem a posteridade, nos fluxos
da telerrealidade qualquer acontecimento, quando oportunamente realizado para atrair
a atenção da mídia, ganha a notoriedade efêmera. Casos dramáticos como o assassinato
de John Lennon, bem próximo da lógica terrorista, são emblemáticos. Em entrevistas
posteriores, Mark Chapman, o assassino, revelou que cometeu o assassinato para também
ter seu nome na história.
O telefático e a hipertelia
M uniz Sodré faz o relato de uma pesquisa realizada na favela da Rocinha, no Rio de
Janeiro, sobre a recepção dos conteúdos de TV19. A pesquisa consistia numa pergunta
simples: “O que você quer ver na TV?”. Os pesquisadores imaginavam dois tipos de
padrão de respostas: iriam convergir para a preferência pela cultura popular do morro
ou, então, para a cultura norte-americana dos filmes. A resposta conseguida não poderia
ser mais surpreendente, nem uma coisa nem outra: “quero ver eu na EU”. Além de a
resposta representar a rnobilização narcísica nas redes, há algo mais que incomoda. A
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 88
resposta dada pelos favelados não se orientou pelo conteúdo da informação mas para a
sua forma, para a imagem em si, para o canal, vazio de qualquer conteúdo informativo!
O interesse dos receptores se concentrava menos no que se diz na TV e muito mais na
imagem em si mesma.
Hipótese perturbadora: e se os sistemas de comunicação e informação estiverem
caminhando para um vanish point, um ponto de inversão e entropia, ou seja, se eles
estiverem num estágio de inversão da finalidade inicial (a comunicação dos conteúdos
informativos), tendendo a um ponto de inércia, a um ponto zero de informação pelo
predomínio da forma? Esta é a tese de pesquisadores como Baudrillard e Marcondes
Filho . “Acredita-se que todos os processos desenvolvam-se até um certo ponto e que,
sendo este ultrapassado, perdem sua eficácia e tomam-se absolutamente disfuncionais.
O desenvolvimento da ciência, que até um certo momento foi impulsionado por toda a
sociedade, recebeu fortes investimentos da indústria, dos governos e instituições sociais,
esse mesmo desenvolvimento passou, a partir desse ponto de disfunção, a ser prejudicial
à sociedade, na medida em que pôs em risco sua estabilidade e mesmo sua existência”20.
Em uma reportagem sobre programas televisivos de auditório como Topa Tudo por Dinheiro
e Olimpíadas do Faustão22, perguntava-se porque aquelas pessoas arriscavam o pescoço
em jogos malucos e se humilhavam publicamente nas provas de habilidade manual e
intelectual propostas pelas gincanas. Segundo enquete feita pela reportagem, os
participantes afirmaram que não era por dinheiro, mas pela notoriedade conseguida
com a participação nestes programas: ficavam conhecidos no bairro em que moravam,
nem que fosse por alguns dias.
É a crise do ideário clássico, que via os meios de comunicação como “janelas abertas
para o mundo”. Da janela pulamos para o espelho. Este êxtase por comunicação vem
transformando as redes em espelhos narcísicos. Talvez as redes saibam que há muito
tempo a referencialidade da informação foi implodida pela .hipertelia. Por isso, a
necessidade de reinjetar contato: formas de tecnologias interativas onde o receptor
intervém, on line, naquilo que vê; vídeos interativos; programas de TV onde o espectador
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 90
decide o final, livros interativos em CD-Rom onde o leitor define os caminhos do romance,
etc. É como se a TV quisesse perguntar a todo instante: “Eu estou aqui, você está aí? Dê
um sinal!”
Conclusões
Aliás, esse paradigma passa a ser necessário, pois a aceleração das inovações tecnológicas
impõe um contexto dramático, onde profissões, funções e cargos desaparecem num
piscar de olhos e outros são criados da noite para o dia.
Esse passa a ser o primeiro grande desafio da escola: como continuar a sistematizar e
comunicar conhecimentos dentro de uma tendência fragmentária da sociedade? “Não
se entende o que está ocorrendo sem reconhecer dois movimentos. O primeiro é a
percepção de que o sistema formal de ensino não é capaz de dar conta do que ocorre
com a vida em geral c que esta idéia de educação perdeu o seu lugar. 0 segundo movimento
é a disseminação de processos educacionais por toda a sociedade: nas empresas, nos
meios de comunicação, nos órgãos governamentais e em outras instituições. Há um
enorme esforço educacional que é sempre parcelado e que está longe de promover a
globalidade que a escola, na sua idéia convencional, propôs. “24 (grifo nosso).
Mas, talvez, o papel realmente decisivo para a escola esteja no campo estético. Por
“estético” não estamos querendo nos referir à prática do ensino da educação artística
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 92
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
Corrente filosófica e epistemológica que se inicia no final dos anos 60 com Derrida e a
idéia de “desconstrução” como paradigma nas Ciências Sociais, e com Foucault na ,visão
descontínua do devir histórico. Na teoria da comunicação, os Pós-estruturalistas
questionam os referenciais semióticos e semiológicos da linguagem, tais como signo,
significado, sentido, estrutura, etc.
2
Cf. Paul VIRILIO. Guerra Pura. São Paulo. Brasiliense, 1985.
3
Idem. “O último Veículo”. ln: Idem, A Inércia Polar. Lisboa. Publicações Dolm Quixote.
1993. p.38.
4
Ibid., p. 39.
5
Paul VIRILIO. A Máquina de Visão. Rio de Janeiro, José Olympio.1994. p.24.
6
Cf. Walter BENJAMIN. “Experiência e Pobreza”. In: Walter BENJAMIN, Obras Escolhidas.
São Paulo. Brasiliense. 1987.
7
Jean CHESNAUX. Modernidade Mundo. Petrópolis. Vozes. 1995. p.31.
8
Ibid., p. 29.
9
Jean CHESNAUX. Op. Cit., p. 126.
10
Serviço de vigilância aos hackers (obcecados por informática e, muitas vezes, autores
de vírus e falcatruas eletrônicas).
11
Jean CHESNAUX. Op. Cit., p. 126.
12
Cf. Gilles LIPOVETSKY. L’ Ere du Vide, Essai sur l’individualisme contemporain. Paris,
Gallimard. 1983.
13
Vera Felicidade de A. CAMPOS. Psicoterapia Gestaltista - Conceituações. São Paulo,
Edição da autora, 1988.
p. 39.
14
Cf Christopher DEJOUR. A Loucura do Trabalho. R. de Janeiro, Paz e Terra. 1985; e,
também, Luciano ZADSZNADJER, A Travessia do Pós-Moderno, Rio de Janeiro, Gryphus,
1992, e a obra de Christopher LASCH.A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro, Imago,
1977.
15
Cf Jean BAUDRILLARD. Las Estrategias Fatales. Barcelona, Editorial Anagrama, 1984.
16
Cf. Muniz SODRE. O Social Irradiado. São Paulo. Cortez. 1992.
17
ibid., p.86.
18
Cf. Richard SENNETT. O Declínio do Homem Público. São Paulo, Companhia das Letras,
1988.
19
Muniz SODRÉ, A Maquina de Narciso. São Paulo, Cortez. 1989.
20
Ciro MARCONDES FILHO. Televisão. São Paulo, Scipione, 1995. p.58-9.
21
Jean BAUDRILLARD. Op. Cit. p. 11-2.
22
Cf. “Com direito à glória”. In: Veja (26) 15, 14 abr.93.
23
Cf. Richard SENNETT, Op. Cit.
24
Luciano ZADSZNADJER. OP, Cit., P. 160.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 94
Capítulo 6
POLÍTICA E DESILUSÃO: ASPECTOS DA CRISE DA POLÍTICA
NA PÓS-MODERNIDADE
Mas essa desilusão que aparentemente se direciona contra os políticos esconde algo de
mais profundo e preocupante: a desilusão com a própria Política - a crise da noção de
representação política, ou seja, a convicção de que nossos interesses individuais ou
grupais possam ser representados por outro indivíduo democraticamente eleito dentro
de um sistema partidário. O crescimento dos índices de votos brancos e nulos potencializa-
se a cada eleição, assim como, também, os votos de protesto, como o voto cacareco,
por exemplo, sem falar no espaço cada vez maior ocupado na imprensa para denunciar
irregularidades envolvendo políticos.
Diante deste quadro de desilusão, queremos discutir alguns elementos que talvez nos
ajudem a ir mais fundo na questão.
Primeiro: apesar desse desencanto geral com os políticos e a Política, o sistema político-
partidário continua - eleições, debates na TV, discussões em tomo de projetos polêmicos
no Congresso, com grande repercussão junto à opinião pública e na mídia, etc. Bem ou
mal, ainda falamos e discutimos sobre política. Mas, o que chama a atenção é o caráter
periódico e às vezes festivo disso. Os debates políticos só começam a esquentar uns
poucos meses antes das eleições: bandeirinhas, colantes nos carros, discussões acaloradas
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 95
nos bares. Um clima transitório começa a caracterizar o fenômeno político, tal qual
uma copa do mundo de futebol. Passada a paixão, a política cai no esquecimento. Voltamos
à dureza das preocupações do dia-a-dia.
Há algo mais por detrás dessa desilusão com a Política: a mudança do caráter dos fatos;
políticos. Algo se perdeu na Política como busca de uma decisão comum para todos.
Além de ter virado um show - daí o caráter transitório das festas eleitorais -, o próprio
ato da escolha política transformou-se: agora é meramente individual, solitário. A festa
eleitoral não apela ao cidadão enquanto vontade coletiva, mas como consumidores
solitários, que optam por um candidato como se escolhessem algum produto na prateleira
de um supermercado.
Ainda temos um terceiro ponto para podermos iniciar nossas discussões: apesar da
presença massiva dos meios de comunicação na transmissão dos debates políticos, ou
seja, quase que diariamente vemos. flashes das sessões de votação de projetos
importantes que tramitam no Congresso, ou discursos de partidos em horários políticos
na TV, a indiferença dos cidadãos é cada vez maior, principalmente fora dos períodos
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 96
Se o cidadão indiferente à Política foge para a vida privada, então é para aí que a
linguagem da mídia corre, banalizando ou trivializando o fato político. Em termos mais
claros: a Política será mostrada e explicada por uma linguagem que se aproxima da
telenovela ou da ficção em geral.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 97
Dessa maneira o fato político perde sua natureza histórica, ideológica, técnica ou mesmo
administrativa, para se transformar num amálgama de casos passionais - amores, ódios,
vinganças, traições, crimes, etc. -, que apelam para um cidadão que, no seu cotidiano,
também busca uma explicação passional ou superficial para tudo. Mesmo nos programas
de debate na TV com a participação do espectador pelo telefone ou fax, esse fato se
torna evidente. A maioria das intervenções se resume a explosões emocionais - “é tudo
ladrão” ou “o país não tem jeito mesmo...” -, direcionando as “críticas” aos aspectos
pessoais dos políticos e governantes. Um desses programas assim se colocava para o
espectador: “o programa que desabafa por você”.
Personalização da Política
Claro, isso é demorado, chato..., isto se levarmos em conta que tudo será feito pelo
cidadão isolado e não aquele solidário em grupos de discussão. .
Mas é justamente para esse cidadão isolado que fala a política atual. Para tentar
combater-se a indiferença, simplifica-se, reduz-se a Política à figura do político. É como
se os fatos políticos partissem unicamente de pessoas ou vontades puramente individuais.
Pacotes econômicos que levam o nome dos autores, o aumento do salário mínimo que
foi aprovado pelo ministro fulano de tal, emendas à Constituição que levam o nome do
autor - por exemplo, a emenda Dante de Oliveira que pretendia eleições presidenciais
diretas em 1984 -, tudo simplificado, como se tivessem partido unicamente da vontade
de um homem só, de boa índole. É a simulação da vontade política, paradoxalmente
num momento em que tanto a economia como a política se globaliza, e cada vez mais as
decisões são tomadas levando em conta fatores complexos e impessoais.
Pronto! Política parece que virou algo simples. Tudo leva a crer que as decisões políticas
e administrativas partem de defeitos ou qualidades pessoais (desonestidade, firmeza,
coragem, etc.) e, não, que são orientadas por conjunturas muito mais complexas e
graves para a vida do próprio cidadão. Simula-se uma vontade política, ou seja, a certeza
de que as decisões partem exclusivamente de uma vontade pessoal. A conseqüência de
toda essa personalização é que a Política se toma tão banal como fazer fofoca da vida
alheia.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 99
O Poder antigo ou pré-liberal estava baseado numa clara fusão entre a pessoa e o espaço
do Poder. Se alguém ocupava esse espaço, era porque teria qualidades especiais que
ninguém mais possuiria. Qualidades consideradas natas, já nascidas com ele. Era o
carisma. O rei era insubstituível, a não ser por alguém do seu próprio sangue. Não se
pode defini-lo como Poder político - o Poder político pressupõe uma incerteza, pois há
uma discussão em tomo da questão sobre quem vai ocupá-lo. Aqui o Poder é pessoal,
corporal. carismático. A simples manifestação da vontade já é um decreto. O poder se
humaniza, adquire unia vida própria tão autônoma que se afasta de todos, tornando-se
absolutista. Se o corpo do rei é o Poder, não há espaço para o fenômeno político, para a
discórdia, discussões e incertezas, participação e busca do consenso.
A revolução liberal começa quando o Poder passa a ser pensado como um espaço vazio,
impessoal, independente de quem vai ocupá-lo. Portanto, os cidadãos deveriam discutir
não a vida pessoal, mas idéias que expressem um consenso de interesses, cujos ocupantes
do poder deveriam representar. Uma das bases da democracia é a separação entra a
Política e a figura do político, a separação entre a pessoa ocupante do poder e as idéias
que ele professa.
Por isso, a Política deveria ser só idéias e o Poder pura abstração. Porém, com a simulação
da vontade política na mídia, o Poder acaba confundindo-se com a própria pessoa. O
pensamento democrático foi todo um esforço teórico para se evitar a autoridade pessoal.
Hoje o Poder se mistura a um estilo pessoal, a uma personagem que desempenha um
papel como num palco. O Poder está em cena.
A transparência que a mídia dá hoje ao Poder não é a das idéias ou dos interesses dos
grupos por trás deles. A transparência é a da vida pessoal, inclusive nos aspectos mais
negativos Veja, por exemplo, as “denúncias” de corrupção contra os ocupantes do governo.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 100
Porém, outros aspectos mais estruturais das denúncias são esquecidos: se existem
corruptos, onde estão os corruptores? E se existem estas duas personagens é porque
deve existir na estrutura burocrática de ministérios e autarquias falhas organizacionais
que favorecem o fenômeno da corrupção. A personalização política reduz o tema da
corrupção à caça dos corruptos. Tudo muito simples e, ao mesmo tempo, eletrizante
como uma telenovela: “onde estão os ladrões’?” gritam os telespectadores. Aquele que
prometer achá-los terá como recompensa o voto! A personalização além de banalizar,
passionaliza a discussão política.
Política em close-up:
a extinção da verdade pela credibilidade
Credibilidade significa a natureza de algo que se toma crível, ou seja, um discurso passa
a valer não tanto pela veracidade mas pela credibilidade que a imagem de quem o
profere passa. “Não está mais em questão a verdade do enunciado, isto é, a aderência
entre o enunciado e o fato, mas a verdade da enunciação que diz respeito à cota de
realidade daquilo que aconteceu no vídeo (e não daquilo que foi dito através do vídeo).
( ... ) Esboça-se, desde há algum tempo, um tipo de programa em que o problema da
confiabilidade dos enunciados começa a se tomar ambíguo, ao passo que absolutamente
indiscutível é a confiabilidade do ato da enunciação: o apresentador está lá, diante da
câmara, e fala a seu público, representando a si próprio e não a uma personagem fictícia”2
O que Umberto Eco afirma da natureza do fluxo televisivo atual se aplica certamente ao
discurso político proferido pelo vídeo: não importa se o que foi dito é verdade ou mentira
- importa, isso sim, a credibilidade de quem o enuncia. Cada vez mais, para a opinião
pública, o que se toma decisivo na aceitação de unia idéia é o “jeito” de se enunciar um
discurso - o jogo cênico, a “segurança com que fala”, o “pulso forte” no debate da TV,
o olhar fixo e sem piscar para a câmara, a “cara de honesto”, o jeito de “experiente”,
etc. Como ressalta Schwartzenberg, a política pula do domínio institucional para o campo
psicológico das emoções coletivas. Emoções estereotipadas como as das telenovelas,
para, fácil reconhecimento coletivo:
“O homem político vem procurando cada vez mais impor uma imagem de si mesmo que
capte e fixe a atenção do público. Essa imagem é uma reprodução mais ou menos fiel
dele mesmo. É um conjunto de traços que ele preferiu apresentar à observância pública
(...) A personalização do Poder é de outra natureza. Não diz respeito ao domínio
institucional mas à psicologia coletiva”3
Como já comentamos acima, o pensamento democrático foi todo um esforço para separar
do funcionamento institucional do Poder a imagem pessoal de quem o ocupa.
“O Poder pessoal designa uma realidade institucional: uma única pessoa concentra e
controla todos os poderes. Domina todas as engrenagens do aparelho do Estado. É a
confusão dos poderes do direito constitucional clássico. É a tirania antiga, a monarquia
absoluta ou a ditadura contemporânea”4
Há personalização sem haver de fato poder pessoal, mas o consenso democrático perde-
se diante da simulação da vontade política. Um pacote econômico pode ser sancionado
pela opinião pública sem qualquer debate prévio: basta um discurso emocionado em
close-up na TV para, em seguida, as pesquisas avaliarem o resultado da representação
cênica.
O caso exemplar foi o Plano Collor, em 1990, cujo pacote econômico se iniciava com o
seqüestro da liquidez da economia mediante o bloqueio pelo Banco Central de milhares
de contas correntes. Sob o argumento frágil de que “algo precisava ser feito contra a
inflação”, o governo praticou uma intervenção inconstitucional. Se não havia um consenso
sobre o Plano - já que não havia sido discutido publicamente durante a eleição presidencial
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 103
que idéias. Reduz a luta política a uma rivalidade entre pessoas. Substitui o difícil
confronto das teses, a lenta comparação dos argumentos, por uma espécie de jogo
dramatizado e vedetizado”6
A política como fato midiático tirou a propaganda do campo das idéias e argumentos
levando-a, para o da persuasão. Esse vedetismo procura seduzir mais que convencer,
encantar mais que argumentar. Incentiva a escolha de um perfil e não de uma política,
de imagens e não de uma ideologia.
A conclusão maior que podemos chegar disso tudo é o do retorno do antigo carisma das
formas pré-democráticas (tiranias e monarquias absolutistas), propiciado
surpreendentemente pelos meios eletrônicos de comunicação. O carisma retorna tanto
na sua forma secularizada, isto é, humanizada, como, inclusive, na religiosa. O slogan
“confiem em mim” de Carter e de tantos outros ou o esforço do marketing em dar
credibilidade a figuras públicas nada mais é do que a volta da fé - confiar ou dar
credibilidade significa acreditar em algo que você não vê, como a fé num deus. A única
coisa vista não é ele mesmo, mas o seu carisma, a imagem, o simulacro religioso, tal
qual as representações divinas nos altares.
Esta cultura pode ser assim descrita: “Cada indivíduo se julga um participante ativo do
sistema político, um cidadão livre que decide, com seu voto soberano, os destinos
nacionais. Na realidade, a alienação é inconsciente e insidiosa. Atua à maneira de uma
anestesia. Fascinado, o cidadão não age, ou não intervém no curso da vida pública. Ele
contempla - arrebatado e fascinado - os líderes que agem em seu nome, que fornecem
uma “representação”. No duplo sentido da palavra. No sentido jurídico-político: ação
exercício de um direito no lugar do mandante. No sentido da indústria do espetáculo,
tal como se fala em atores que ‘representam’ uma peça de teatro.”8.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 106
Esta política “pública” e “transparente” oferecida pela mídia é uma simulação do Poder
e da Política, feita sob medida para cidadãos isolados e passivos. A própria evolução
social reforça essa postura do cidadão-espectador: a sociedade de multidões solitárias,
o reforço dos hábitos de consumo individualistas, a desestruturação dos laços de
solidariedade primários (famílias, grupos, clubes, associações), o medo e o efeito-pânico
que a vida moderna impõe às pessoas (assalto, violência urbana, os efeitos da espiral
inflacionária etc.).
Segundo Celso Fernandes Campilongo, estes fatores podem ser agrupados em torno de
seis aspectos:
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 107
A pós anos de luta pelos ideais de participação política democrática levada a cabo
pelos movimentos opositores aos governos militares, estes fatores discutidos até
aqui acabam produzindo o desencanto diante dos canais políticos de participação e
representação. Como conseqüência, nos últimos anos as instituições da representação
política parecem estar se esvaziando para dar lugar ou à apatia política ou às novas
formas pragmáticas e “realistas” de negociação política de interesses.
Fala-se com freqüência que essas novas formas de organização da sociedade civil criariam
condições para o surgimento de um novo clientelismo ou populismo. Essas afirmações
são sérias.
N uma avenida de altíssima circulação, vê-se pichado num muro: “Eu estive aqui”.
Para além da indignação pelo desrespeito à propriedade particular, esse fato tão
banal pode expressar algo mais dramático. Aquilo que sociólogos nomeiam como a perda
da medida social.
Se o grafismo algum dia teve uma proposta de conteúdo - subverter o código da mídia,
organizada, democratizar a comunicação, etc. -, hoje as pichações nos dizem outra
coisa: um ego desesperado querendo intervir violentamente no meio público. Desesperado
por quê? Pelo modo do desaparecimento simbólico, o anonimato e a solidão numa
sociedade impessoal. A pichação quer apenas dizer: “Eu existo, eu estive aqui!” Mesmo
que para isso seja necessário pichar o Cristo Redentor atrás dos “quinze minutos de
sucesso” na mídia; transformar-se em imagem, ter-se alguma sensação de realidade, de
ter escapado do anonimato.
A solidão e o isolamento em meio às massas urbanas têm desdobramentos políticos
claros.
Segundo Hanna Arendt, a original pensadora alemã deste século16, desdobramentos como
o fortalecimento do Estado e o esfacelamento das instituições públicas, não só de
associações como clubes, movimentos reivindicatórios, etc., mas inclusive do
relacionamento civilizado dos cidadãos entre si.
Tentemos um pouco de História... As sociedades liberais dos séculos XVIII e XIX na Europa
- Inglaterra e França, por exemplo - consolidaram as bases éticas e morais para o
funcionamento de uma esfera pública. As instituições públicas, como política,
representação política, Constituição, da mesma forma como espaços culturais de
convivência (teatros, clubes de leitura), buscavam uma identidade pública de interesses.
Wilson Roberto V. Ferreira O Caos Semiótico 112
O respeito ético e moral por essa identidade geral pelo indivíduo estava assentado numa
promessa: em troca, a sociedade daria liberdade e igualdade de realização das
potencialidades individuais.
Portanto, havia um limite entre a vivência pública e a experiência privada. Mais que
respeito, a aceitação dos limites éticos que a identidade pública impunha aos indivíduos
era a crença na auto-realização.
O século XX assiste à crise das sociedades públicas e à ascensão das massas. Segundo
vários autores como David Riesman, Richard Sennett, Christopher Lasch17, entre outros,
a relação que, nas massas, o ego passa a ter com o meio é de uma identificação difícil,
ou seja, é uma relação de estranhamento. É o resultado de uma trajetória que vai desde
a organização técnica do trabalho (as burocracias modernas e as linhas de montagem)
até a constituição de estados assistencialistas (Welfare State), ou paternalistas
(autoritários e fascistas), criando uma relação passiva com os cidadãos (enquanto
espectadores).
O anonimato empurra o indivíduo para uma nova relação com o meio público, agora
mais teatral e performática: intervenções agressivas, pelo gesto, pela moda, pela conduta.
Transeuntes nas calçadas sendo alvejados por balas de tinta disparadas por armas de
paintball do interior de carros em movimento, - proliferação de gangues étnicas, bandos
de jovens bem nutridos, esportivos ou não, condutas agressivas no trânsito - numa palavra,
o meio urbano está sendo tribalizado.
A vivência social passa a ser marcada pela ambígua sensação de ódio e medo, resultante
da agressividade das “ações” públicas. A relação do ego com o meio social deixa de ser
um investimento ou crença, e se toma cínica/cênica, irônica e narcísica.
A vida pública se fragmenta numa série de intervenções que buscam seu reconhecimento
não pela legitimidade mas pelo impacto.
Conseqüências políticas são visíveis: a crise da negociação e da representatividade, que
dá lugar às intervenções iconoclastas do Estado (marketing político, pacotes” econômicos,
etc.), e as táticas de pressão corporativistas. As promessas de uma esfera pública
constituída em tomo de medidas sólidas - realização individual concreta, argumentos,
entendimento e lógica - cedem lugar à dissolução pelo bombardeio de imagens chocantes.
Resta aos indivíduos a única chance de fugir da morte simbólica proporcionada pelo
anonimato: transformar a si mesmo em imagem. Nesse sentido, podemos entender a
disseminação endêmica, de uma série de atos individuais ou de grupos: atentados
terroristas, serial killers, muito em voga hoje em dia, principalmente como inspiração
para personagens no cinema, atentados contra celebridades, protestos desesperados,
como o do desempregado que escalou o edifício da FIESP, parando o trânsito na Avenida
Paulista.
São gestos e atos isolados sem nenhum significado político ou discursivo. Seu único
objetivo é atrair a atenção das câmaras de TV e conquistar a fama...
Estratégia do refém
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
Lobby- grupo de pressão representativo de interesses setoriais da sociedade civil ou de
grupos econômicos, financeiros, comerciais, sindicais, etc., que atua no interior do
aparelho do Estado com a finalidade de conseguir aprovação de políticas públicas que
beneficiem seu setor.
2
Umberto Eco. “Tevê:a transparência perdida”. In: idem. Viagem na Irrealidade Cotidiana.
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p. 188-9.
3
Roger-Gérard SCHWARTZENBERG. O Estado Espetáculo. R. de Janeiro, Difel, 1978. p. 3.
4
Ibid., p. 2.
5
Cf Richard SENNETT. O Declínio do Homem Público. São Paulo, Companhia das Letras,
1988.
6
Roger-Gérard SCHWARTZENBERG. Op. Cit., p. 294.
7
Gabriel ALMOND e G. BINGHAM POWELL. Comparative Politics Developmental Approach.
Boston, Brown and Co., 1966.
8
Roger-Gérard SCHWARTZENBERG. Op. Cit- p. 255.
9
Celso Fernandes CAMPILONGO. Representação Política, São Paulo, Ática. 1988.. p. 51.
10
IDEM
11
Celso Fernandes CAMPILONGO. Op. Cit., p. 52.
12
Ibid., p.53.
13
Ibid, p.54
14
Ruth Corrêa Leite CARDOSO. “Isso é política?” In: Novos Estudos Cebrap, número 20,
março de 1988, p. 76.
15
Carlos Estevan MARTINS. “E os partidos para onde vão?” In: Presença, número 6, 1985,
p. 49.
16
Cf Hanna ARENDT. As Origens do Totalitarismo, São Paulo, Companhia das Letras,
1990.
17
Cf. David RIESMAN. A Multidão Solitária. São Paulo, Perspectiva, 1972. Ver também as
obras de Christopher LASCH, O Mínimo Eu, São Paulo, Brasiliense, 1987 e Richard SENNETT,
Op. Cit.