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7/21/2018 Kalaf Angelo, músico e escritor | BUALA

Kalaf Angelo, músico e escritor

Acredito piamente que é possível viver da arte e da música

Kalaf Angelo, um dos entusiastas do projeto Buraka Som Sistema, um dos responsáveis pela expansão além fronteiras do ritmo kuduro,
lançou recentemente o seu primeiro livro, Estórias de Amor para Meninos de Cor. Com este ensaio, o músico angolano desafia a
escrita em homenagem a Lisboa, cidade mulata que o fascinou desde que nela aterrou, depois de ter deixado Luanda nos anos 90. O autor
prepara já o seu próximo título: um romance.

Entrevista de João Carlos

JOÃO CARLOS: Enveredaste pela literatura, inspirado pelas crónicas escritas no jornal Público, desde 2008. O que te levou a
esta decisão?

KALAF ANGELO: Nunca me vi como escritor, embora sempre me sentisse um pouco seduzido por esse mundo, por consumir literatura
e por gostar da palavra escrita. Na altura em que comecei a escrever para o Público foi quando essa consciência de que poderia ter alguma
carreira mais ligada aos livros começou a despertar em mim. Um ano depois fui contatado pelo editor da Caminho, Zeferino Coelho.
Falámos, contei-lhe algumas estórias, ele gostou e decidiu começar com o apanhado das crónicas. Depois disso, eu próprio decidi
ficcionar algumas dessas crónicas, que tinham um cunho bastante pessoal.

Estórias de Amor para Meninos de Cor não é apenas uma rima?

A intenção não era rimar. Gosto da palavra cor, naturalmente, como gosto de todas as palavras. Mas não gosto do termo «de cor» devido à
sua conotação racial, que acho bastante pejorativa, até porque quase que anula o próprio termo «negro» ou «preto», conforme a
suscetibilidade de cada um. É um assunto sensível para muita gente a ideia de cor, mas pelo facto de eu rimar com a palavra amor quase

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que lhe tiro a carga que habitualmente as pessoas colocam nela. Quando decidi escolher este título foi a olhar para a minha geração, para
as coisas que me fizeram e me formaram. E para esta cidade, especialmente. Escrevo a pensar em Lisboa, para Lisboa e os lisboetas.

É um retrato da tua vivência na cidade que te acolheu, mas sem qualquer espécie de ressentimento do teu passado?

Não, não! Sou totalmente apaixonado por Lisboa. Gosto da mestiçagem que a cidade tem, porque está na sua fundação. Desde os
primórdios da sua história, Lisboa sempre esteve aberta para o estrangeiro, para a novidade.

Este ensaio é o início de um percurso literário?

Já estou a trabalhar no próximo livro. A minha relação com Zeferino Coelho é muito natural. Falamos de história a história, livro a livro,
não temos pressão nenhuma sobre como será o futuro. Ele decidiu plantar em mim esse bichinho para a escrita. Ou, de certa forma,
adensar em mim esse monstro de dizer e contar coisas, mas acho que o caminho para o futuro está aberto. Gosto da Caminho, dos livros
que eles editam e sobretudo da maneira como a editora trata a língua portuguesa. É o sítio ideal para mim, que sou totalmente desregrado,
indisciplinado no que toca à escrita.

E esta incursão teria como base de inspiração que realidade? A portuguesa, a angolana ou o teu contacto com o mundo?

Não nego nenhuma história, não nego o meu passado. Aliás, neste livro há desde memórias de infância como alguma tentativa de fazer
futurologia e olhar para o amanhã, mas não há em mim vontade de anular nada. Ou seja, num mês sou capaz de estar em Nova Iorque,
Tóquio, Luanda e Lisboa. É a vida que tenho, a música leva-me a esses lugares. Naturalmente que as histórias vão ser influenciadas pela
minha vivência nómada.

Fotografia Diana Djeddi

Pensas fazer um percurso, degrau a degrau?

Sim. Embora tenha um romance já na calha, o meu próximo desafio será de contos. Tenho que aprender a escrever e estou a caminhar
nessa direção.
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Esta opção tem a ver com o facto de não ser fácil viver só da música?

Eu vivo só da música. Acredito piamente que é possível viver da arte e da música. Depende do sonho e das aspirações de cada um. Nós
não precisamos de muito para viver. O ser humano é extremamente adaptável a qualquer condição. Nós e as baratas somos muito
próximas, conseguimos viver em qualquer circunstância. Pode não ser possível comprarmos um apartamento ou o carro dos nossos
sonhos, mas ter a luz acesa, a água a correr e um teto para as nossas cabeças é possível.

Fala-me da tua relação com Angola?

É umbilical. É o sítio onde nasci…

Tens projetos a pensar em Angola?

Os meus projetos passam sempre por Angola, partindo do princípio que sou angolano. Eu não vivo em Angola por uma questão de
praticabilidade. É muito mais fácil voar a partir de uma capital europeia por causa do número de viagens que faço semanalmente, mas
toda a minha família está em Angola. Visito-a com regularidade assim que a agenda o permita.

Uma das tuas preocupações prende-se com o futuro da jovem geração. Procuras transmitir-lhes alguma mensagem de esperança?

Quando estava a formar-me enquanto pessoa, músico, e homem, olhei sempre para os exemplos vindos dos adultos. Tinha pessoas à
minha volta que me transmitiram valores que ainda carrego hoje. Quando me vejo na posição de poder comunicar algo de positivo aos
outros, olho para a geração a seguir à minha. Não sou condescendente com os jovens; não temos que passar as mãos na cabeça deles e
dizer-lhes que têm de esperar pelo vosso tempo. O mais importante é transmitir bons exemplos, ter uma boa conduta, porque a mente
jovem por natureza é meio contestatária, vai querer sempre romper com a norma vigente para impor a sua. Os jovens devem ser
estimulados a procurar mudanças e encontrar novos caminhos. É assim que as sociedades evoluem, é assim que a inovação se instala.

Esta tua mensagem pode ser dirigida em particular à jovem geração angolana, a viver num país que depois da guerra procura
novo rumo?

É uma mensagem para todos os jovens. Tenho a sorte de trabalhar numa área que comunica diretamente com jovens. Isso não só me dá
prazer mas também traz-me responsabilidades. É claro que, para a minha geração, que agora enfrenta uma série de desafios em África,
mais concretamente em Angola, é este o nosso momento. Chegou a nossa hora de arregaçar as mangas e contribuir para o país seguindo o
exemplo dos nossos pais. Tem de haver espaço para impormos também a nossa visão sobre as coisas. A geração que se segue, convém
olhar para ela não só com carinho mas também há que olhar para dentro de nós, porque é em nós que estes jovens vão querer encontrar
soluções para os seus problemas. Temos que estar prontos para esse momento.

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E terá sido esta visão das coisas que te lançou no projeto Buraka
Som Sistema?

Sim. Há em mim e nas pessoas envolvidas no projeto a necessidade de comunicar com o mundo. Não há em nós vontade nenhuma de nos
encerrarmos em géneros ou em limites geográficos. O mundo é relativamente pequeno e no espaço de 24 horas estamos prontos para dar
uma volta de 180 graus graças às novas tecnologias. É importante termos essa visão global dos espaços que ocupamos.

Imaginavas o sucesso deste projeto, que acabou por ser responsável pela promoção internacional do kuduro?

Não. Era quase impossível prever, mas o mais importante foi o facto de a dada altura termos sentido a necessidade de realizar algo através
dessa beleza da arte, independentemente do que dela viesse resultar. É isso que deve ser estimulado e promovido na música, na arte, na
literatura. Depois, o sucesso ou os prémios são apenas um acréscimo. O mais importante é fazer.

E o kuduro é hoje uma dança ou um estilo que se expandiu pelo mundo…

O kuduro, por ser algo que nos é tão próximo, foi o que teve mais destaque, o que acarinhamos com mais cuidado. Em todas as nossas
produções há uma vontade de olhar para as periferias do mundo (as favelas no Rio de Janeiro, em Londres, ou Luanda, África do Sul ou
Costa do Marfim); ou seja, há uma série de géneros que incorporamos na nossa música. Alguns têm uma montra completamente vistosa e
cheia de luz como foi o caso do kuduro, outras se diluem nos arranjos e na própria música. Somos amantes de música urbana feita no
nosso tempo e acho que é isso que nos carateriza, é isso que nos distingue enquanto grupo.

Olhando para o que se está a produzir em Angola, qual é a tua visão?

Gosto muito da forma como os angolanos encaram a música. É um povo extremamente criativo. Só precisa realmente de espaço para
desenvolver a sua própria arte e encontrar caminhos para poder articular isso de forma natural. Não há nada que saia de Angola que não
me estimule. A minha crítica é positiva, não é uma crítica negativista. Não tenho esta postura.

A NECESSIDADE EXTREMA DE KALAF

Músico, cronista e editor discográfico, Kalaf Angelo nasceu em Benguela, em 1978, três anos depois da independência. «Cresceu numa
família de funcionários públicos com ligações à vila de Catumbela, lugar que visita com regularidade na tentativa de traçar um mapa
afetivo com as pessoas e os lugares que habitam a sua memória». Nos anos 90 mudou-se para Lisboa, já muito engajado com a arte.
«Sempre estive rodeado de papéis e lápis. Desenhávamos e pintávamos muito quando éramos miúdos». Recorda os pais, os quais nutriam
a vontade de estimular a mente e a criatividade. «Porque criar a consciência artística numa criança é abrir a sua mente e mostrar como é
o mundo».

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Quando viajou para Lisboa, queria obter a melhor formação académica e regressar a Angola. Um mundo novo começou a revelar-se
dentro de si, mas antes teve de aprender «com quantos baldes de cimento se faz uma parede e qual o ponto de cozedura do arroz para
sushi». Também aprendeu a ouvir jazz e a apreciar a arte e design. E o regresso a Angola ficou adiado por tempo indeterminado.
«Comecei a viver da arte em Portugal», assumiu, impulsionado pelos valores que transportou da terra natal.

«Tenho sonhos muito práticos, realizáveis, que passam por tentar ser um homem melhor, contribuir para uma sociedade melhor». Kalaf,
que percebeu que «as maiores revoluções começam no indivíduo», iniciou a sua aventura poética nos finais de 1998 e é um dos cúmplices
fundadores da Enchufada, núcleo de produção musical que lançou a editora independente responsável pela edição do projeto Buraka
Som Sistema.

publicado originalmente no África21, n.º 60, 2012

por João Carlos


Cara a cara | 29 Fevereiro 2012 | angola, kalaf angelo, kuduro

por JOÃO CARLOS

João Carlos.
jornalista do África 21

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