You are on page 1of 345

IBEROGRAFIAS

33
LUGARES E TERRITÓRIOS:
PATRIMÓNIO, TURISMO SUSTENTÁVEL,
COESÃO TERRITORIAL

Coordenação de
Rui Jacinto

IBEROGRAFIAS

33
Colecção Iberografias
Volume 33

Título: Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Coordenação: Rui Jacinto


Autores: Adrielson Furtado Almeida, Agostinho da Silva, Antônio Avelino Batista Vieira, Antonio Cordeiro Feitosa,
Conceição Malveira Diógenes, Daniela Maria Vaz Daniel, Fernando Baptista Pereira, Fernando Manuel
Videira dos Santos, Helena Santana, Hélio Mário de Araújo, Joana Capela de Campos, João Albino M. da
Silva, José Sampaio De Mattos Júnior, Lillian Maria de Mesquita Alexandre, Messias Modesto dos Passos,
Paulo Espínola, Pedro de Alcântara Bittencourt César, Pedro Javier Cruz Sánchez, Pedro Tavares, Renato
Emanuel Silva, Rita de Cássia Lana, Ronaldo Barros Sodré, Rosário Santana, Rui Jacinto, Samuel de Jesus
Oliveira Maciel, Sílvio Carlos Rodrigues, Sofia Salema, Tiago Fernandes Teotónio Pereira, Vanessa
Alexandra Pereira, Vicente Zapata, Vítor Murtinho, Willian Morais Antunes de Sousa

Pré-impressão: Âncora Editora

Capa: João Guerreiro | Âncora Editora

Impressão e acabamento: LOCAPE - ARTES GRÁFICAS, LDA.

1.ª edição: Abril 2018


Depósito legal n.º 440195/18

ISBN: 978 972 780 643 0


ISBN: 978-989-8676-15-3

Edição n.º 41033

Centro de Estudos Ibéricos


Rua Soeiro Viegas n.º 8
6300-758 Guarda
cei@cei.pt
www.cei.pt

Âncora Editora
Avenida Infante Santo, 52 – 3.º Esq.
1350-179 Lisboa
ancora.editora@ancora-editora.pt
www.ancora-editora.pt
www.facebook.com/ancoraeditora

O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e
opiniões neles expressas.
A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores.

Apoios:
Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial 7
Rui Jacinto
RECURSOS DO TERRITÓRIO: PAISAGENS E PATRIMÓNIOS

Paisagem urbana histórica, a Lusa Atenas como matriz cultural de Coimbra 19


Joana Capela de Campos; Vítor Murtinho
A Fundação do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova de Coimbra. 43
Propagandística política, tratadística arquitectónica e engenharia militar
entre a Dinastia Filipina e a Dinastia de Bragança
Pedro Tavares; Sofia Salema; Fernando Baptista Pereira
Alcalá de Henares e Coimbra, Universidades Património Mundial: 57
responsabilidade e compromisso de futuro em dois contextos ibéricos
Joana Capela de Campos; Vítor Murtinho
De floresta a fábrica, de fazenda a floresta: paisagem cultural e desafios à 79
preservação da memória no interior do Brasil
Rita de Cássia Lana
A alteração da paisagem na Mina de São Domingos como problema 93
metodológico: a valorização do seu património para um turismo industrial
insustentável
Vanessa Alexandra Pereira
La Memoria del Paisaje. Marcas Sagradas en el paisaje simbólico de la 107
región Duero-Douro
Pedro Javier Cruz Sánchez

PATRIMÓNIOS IMATERIAIS E TURISMO

A Flauta de Tamborileiro na raia portuguesa: meio e estratégia de 129


desenvolvimento social e cultural
Rosário Santana; Helena Santana
Itinerários literários: Leituras e leitores de Camilo Castelo Branco, em 149
particular, Agustina Bessa-Luís
Daniela Maria Vaz Daniel
Quatro cartas de Hermès 169
Willian Morais Antunes de Sousa
Natureza e patrimônio de valor turístico do território de Icatu, Estado do 175
Maranhão: possibilidades de uso ambiental sustentável
Antonio Cordeiro Feitosa
Amazônia Atlântica: Patrimônio Natural versus Turismo Balnear 197
Adrielson Furtado Almeida
Turismo de base comunitária: vivências dos discentes do IFCE no território 209
Cearense
Conceição Malveira Diógenes; Pedro de Alcântara Bittencourt César
Singularidades no litoral sul de Sergipe/bra e litoral do Algarve/pt: turismo, 225
cultura e políticas públicas
Lillian Maria de Mesquita Alexandre, Hélio Mário de Araújo, João Albino M da Silva

DINÂMICAS SOCIOECONÓMICAS EM DIFERENTES CONTEXTOS TERRITORIAIS

O GTP aplicado ao estudo da Bacia Hidrográfica do Ribeirão Santo Antônio/ 245


Sudoeste do Estado de São Paulo - Brasil
Messias Modesto dos Passos
Canais de levada e regos d’água: contribuições portuguesas para uma outra 261
abordagem brasileira
Renato Emanuel Silva; Sílvio Carlos Rodrigues; Antônio Avelino Batista Vieira
Um território, uma raça, um património genético: 275
a “Região” do Jarmelo e a Vaca Jarmelista
Agostinho da Silva
Os movimentos migratórios e o encontro de culturas em microterritórios 287
insulares lusófonos: a diversidade da imigração nas pequenas ilhas dos
Açores
Paulo Espínola;Vicente Zapata
Perfil dos Alunos que frequentam o 3º Ciclo do Ensino Básico 301
nas Escolas do Distrito da Guarda
Fernando Manuel Videira dos Santos
Quali(ficar) o caminho 325
Tiago Fernandes Teotónio Pereira
Contradições e Possibilidades nos Conflitos por Terra: o Caso do Maranhão 333
José Sampaio De Mattos Júnior; Ronaldo Barros Sodré;
Samuel de Jesus Oliveira Maciel
Lugares e territórios: património, turismo
sustentável, coesão territorial

Rui Jacinto
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT)

A declaração de 2017 pela Organização das Nações Unidas (ONU) como Ano
Internacional do Turismo Sustentável para o Desenvolvimento levou o Centro de Estudos
Ibéricos (CEI) a incluir este tema no Curso que promove regularmente quando estão prestes
a terem inicio as férias escolares. A XVIIª Edição do Curso de Verão, realizada entre 28 de
junho e 1 de julho, sob o lema “Lugares e territórios: novas fronteiras, outros diálogos”, além
de afirmar o CEI como uma plataforma de difusão de conhecimento, aberta à cooperação
cientifica e ao diálogo institucional, deu publica expressão do seu compromisso para com
os territórios mais débeis, onde relevam os espaços de baixa densidade e fronteiriços. As de-
zenas de investigadores participantes, onde se incluem muitos provenientes de diferentes
universidades do espaço lusófono, testemunham a aposta do CEI em aprofundar, aquém e
além-fronteiras, parcerias e diálogos que o articulem com diferentes redes de investigação.
O Curso de Verão é pautado pelas seguintes preocupações: (i) identificar e valorizar
os recursos do território, naturais e humanos, materiais e intangíveis, enquanto fatores
7 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

críticos e estratégicos do desenvolvimento (paisagem, património, cultura, etc.); (ii) ana-


lisar comparativamente dinâmicas económicas e sociais, em diferentes contextos espaciais,
sobretudo entre os diferentes Países de Língua Portuguesa (PLP), promovendo a discussão
de estratégias e a identificação de boas práticas que concorram para promover a coesão ter-
ritorial; (iii) esbater fronteiras entre saberes e incentivar o diálogo entre investigadores que
permitam alargar redes e consolidar parcerias no espaço ibérico, quer europeu e africano
quer latino-americano; (iv) valorizar o trabalho de campo como estratégia pedagógica
e de promoção do património natural e cultural, como espaço de diálogo para análises
comparatistas entre regiões de diferentes geografias e outras latitudes.
Os debates havidos em sala e no terreno, refletidos nos textos que se dão à estampa,
foram estruturados nas seguintes coordenadas: (i) recursos do território: paisagens e patri-
mónios; (ii) patrimónios imateriais e turismo sustentável; (iii) dinâmicas socioeconómicas
em diferentes contextos territoriais.

As paisagens e os patrimónios são marcas impressivas que diferenciam os territórios e


ajudam a moldar as respetivas identidades. O tempo havia de os confirmar, por outro lado,
como recursos estratégicos para o desenvolvimento, sobretudo nos territórios mais débeis,
caracterizados pela escassez doutras potencialidades, como é o caso do Interior de Portugal
em geral e dos espaços transfronteiriços em particular. São, pois, ativos importantes que
podem induzir efeitos positivos nas economias locais, particularmente no setor do turismo.
A paisagem, como o património, tem vindo a suscitar amplos debates que cruzam
múltiplas fronteiras, das conceptuais, que obrigam a perscrutar os respetivos significa-
dos, às que percorrem as várias tipologias por onde se desmultiplicam. Depois de ser um
“conceito-chave do paradigma dominante da Geografia de entre as duas grandes guerras”
a paisagem entrou novamente na agenda dos geógrafos, como dos cultores doutras disci-
plinas, ao regressar “em várias frentes e a partir de escolas antecedentes distintas”1. Natural
ou humanizada, o caracter polissémico da paisagem confere-lhe, também, um valor pa-
trimonial, qual palimpsesto onde fica inscrito o engenho do homem e registadas as várias
facetas da sua ação, particularmente a permanente luta pela sobrevivência.
A Convenção Europeia da Paisagem2, adotada em Florença, em 20 de Outubro de
2000, subscrita por Portugal e posteriormente vertida para o plano legislativo interno
(Decreto n.º 4/2005, de 14 de Fevereiro), reconhece a sua importância “para alcançar o
desenvolvimento sustentável, o estabelecimento de uma relação equilibrada e harmoniosa
entre as necessidades sociais, as actividades económicas e o ambiente”. O preâmbulo da
referida norma refere que a paisagem cumpre “importantes funções de interesse público
nos campos cultural, ecológico, ambiental e social e que constitui um recurso favorável à
8 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

actividade económica, cuja protecção, gestão e ordenamento adequados podem contribuir

1
Jorge Gaspar (2001) – O retorno da paisagem à Geografia. Apontamentos místicos. Finisterra, XXXVI, 71,
pp. 83-99.
2
Para efeitos de Convenção “«Paisagem» designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas po-
pulações, cujo carácter resulta da acção e da interacção de factores naturais e ou humanos”. Os objetivos
da Convenção foi “promover a protecção, a gestão e o ordenamento da paisagem e organizar a cooperação
europeia neste domínio” (Artigo 3.º), aplicar “a todo o território das Partes e incide sobre as áreas naturais,
rurais, urbanas e periurbanas. Abrange as áreas terrestres, as águas interiores e as águas marítimas. Aplica-se
tanto a paisagens que possam ser consideradas excepcionais como a paisagens da vida quotidiana e a paisagens
degradadas” (Artigo 2.º).
A Unesco adotou mais recentemente (2011) uma Recomendação sobre a Paisagem Urbana Histórica (PUH).
para a criação de emprego”, antes de enunciar os pressupostos que devem presidir a uma
“política da paisagem”.
As autoridades públicas devem, pois, enunciar os “princípios gerais, estratégias e linhas
orientadora que permitam a adopção de medidas específicas tendo em vista a protecção,
a gestão e o ordenamento da paisagem”. Além da preocupação “em alcançar o desen-
volvimento sustentável estabelecendo uma relação equilibrada e harmoniosa entre as ne-
cessidades sociais, as actividades económicas e o ambiente” considera-se que a paisagem:
(i) “desempenha importantes funções de interesse público, nos campos cultural, ecológico,
ambiental e social, e constitui um recurso favorável à actividade económica, cuja protecção,
gestão e ordenamento adequados podem contribuir para a criação de emprego”; (ii) “con-
tribui para a formação de culturas locais e representa uma componente fundamental do
património cultural e natural europeu, contribuindo para o bem-estar humano e para a
consolidação da identidade europeia”; (iii) “é em toda a parte um elemento importante
da qualidade de vida das populações: nas áreas urbanas e rurais, nas áreas degradadas bem
como nas de grande qualidade, em áreas consideradas notáveis, assim como nas áreas da
vida quotidiana” (Decreto n.º 4/2005, de 14 de Fevereiro).
O património, por seu lado, conheceu uma considerável evolução desde que deixou de
exprimir o significado que vulgarmente lhe é associado. O valor exclusivamente mesurável
que lhe era atribuído, ligado ao sentimento de posse e de propriedade, pessoal, familiar
ou empresarial, alargou-se ao incorporar dimensões mais intangíveis que lhe passam a
conferir, também, uma representação simbólica. A maior abrangência do significado com
a assunção destes valores nunca lhe retirou o antigo significado associado à ideia de me-
mória e de herança, que o vincula a direitos adquiridos, que tanto podem ser detidos por
indivíduos ou grupos sociais, por lugares ou países.
A carga simbólica e a dimensão cultural que carrega não impediu que o património con-
tinue a ser regulado por convenções e normas vigentes na ordem jurídica local, nacional ou
internacional. Os valores que incorpora conjugados com o estado de abandono e progres-
9 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
siva degradação, patente em muitos locais, levou à intervenção de diferentes organizações,
nacionais e internacionais, com destaque para UNESCO que gizou uma Convenção vi-
sando a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural (Paris, 1972). Esta deci-
são, que passou a constituir uma referência, acabou por desencadear um movimento que
apostou em sinalizar e salvaguardar obras ímpares, testemunhos únicos e de excecional
interesse que são merecedoras de serem transmitidos como legados da Humanidade às
gerações futuras. Anualmente, durante a reunião do Comité da Convenção do Patrimônio
Mundial, aprova-se a inscrição de novos bens na Lista do Património Mundial, após estu-
dos, levantamentos científicos, investigações, análises, informações históricas e visitas aos
locais. Até ao momento foram classificados 1073 bens como Património da Humanidade,
entre monumentos, sítios, edifícios, cidades, bosques, montanas, lagos, etc. ou paisagens
culturais, estando entre os consagrados alguns ícones mundialmente conhecidos, como a
Grande Muralha, Machu Picchu, Palácio de Versalhes, Acrópole de Atenas, centro histórico
de Florença ou o Parque Nacional e Cataratas do Iguaçu.

Património Mundial: número de bens classificados por região

Estados com
Cultural Natural Misto Total %
bens inscritos

Europa e América do Norte 434 62 10 506 47.2 50


Asia e Pacifico 177 64 12 253 23.6 36
América Latina e Caraíbas 96 38 5 139 12.9 28
Africa 51 37 5 93 8.7 35
Estados Árabes 74 5 3 82 7.6 18

Total 832 206 35 1073 100.0 167

Fonte: http://whc.unesco.org/en/list/stat (24.03.2018)

A distribuição dos bens classificados entre os diferentes continentes e países mostra


uma geografia assimétrica cuja lista é encabeçada pela Itália com 53 bens distinguidos.
Segue-se a China (52), Espanha (46), França (42), Alemanha (42), Índia (36), México (34),
Reino Unido e Irlanda do Norte (31), Federação Russa (28), Estados Unidos da América
(23), Irão (22), Japão (21) e Brasil (21); Portugal é o 18º país segundo o número total de
inscrições com 18 bens classificados como Património Mundial. Esta profunda discrepân-
cia decorre do conceito de património subjacente à atribuição daquela classificação, duma
evidente visão eurocêntrica e do caráter económico que se esconde por detrás dalgumas
opções. O marketing turístico tem especial apetite por locais icónicos, que usa em proveito
da atividade que promove, aproveitando a imagem dos lugares distinguidos como recurso
estratégico devido ao enorme valor, material e simbólico, adquirido com esta distinção.
Se a classificação dum dado lugar faz crescer o seu valor também deve aumentar a
10 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

responsabilidade na sua conservação e manutenção através duma gestão consequente.


Os textos deste apartado assinalam a importância do património, o seu capital cultural
e valor simbólico (Pierre Bourdieu), bem como as marcas, sagradas e profanas, inscri-
tas nas paisagens ao longo dos tempos pelos diferentes poderes (régio, religioso, politico,
económico, etc.). O contributo do património natural para definir o espírito dos lugares
é reforçado pela “propagandística política” carregada pelo património construído. A pai-
sagem, onde estão disseminados monumentos (capelas, mosteiros, castelos, etc.) e habi-
tações, acaba por exprimir a correlação de forças entre os poderes em presença. São disto
testemunho as várias gramáticas da arquitetura, rural ou urbana, popular ou erudita, antiga
ou moderna, bem como a renovação operada no povoamento mais arcaico, ao nível das
nossas aldeias, onde podemos observar o sucesso económico e o consequente prestigio
social alcançado pelos seus proprietários: se a casa do brasileiro permanece como símbolo
dum estatuto alcançado após penosa jornada, a casa do emigrante, fechada durante quase
todo o ano, a aguardar expetante uma breve visita durante as curtas férias ou a festa da
aldeia, é o testemunhos mais eloquente e palpável da mais profunda ausência que se abateu
sobre boa parte do país mais remoto.

Os patrimónios, as paisagens e os lugares de exceção, nas diferentes formas que podem


assumir, são ativos incontornáveis dos territórios, sobretudo os mais recônditos, excluídos
e situados à margem dos eixos que estruturam e organizam os processos mais dinâmicos
de desenvolvimento. A generalidade dos estudos de caso que foram apresentados sobre
os espaços urbanos ou as áreas rurais, seja Coimbra e Alcalá de Henares ou Minas de
S. Domingos, Região do Douro ou interior Estado de São Paulo, ressaltam o significado
da memória e os desafios que coloca a valorização do património e a preservação da paisa-
gem, se estiver em causa implicar tais legados na promoção dos territórios e da qualidade
de vida das respetivas comunidades.
As declarações de princípio, convenções, normas, políticas e estratégias destinadas a
preservar a paisagem e valorizar o património, material ou imaterial, são justificadas por
aquelas nobres razões ou reclamados pela necessidade da (re)utilização ou (re)funcionali-
zação de modo a proporcionar algum retorno financeiro. Os programas de ação destinados
a este tipo de projetos apontam, além da visitação e do acolhimento a eventos culturais,
abrem a possibilidade de albergarem outras atividades, quase sempre de cariz económico,
ligadas ao turismo. A valorização do património tem pecado, segundo alguns, pela exces-
siva patrimonialização ou usado para fins que comprometem e tornem insustentável o seu
futuro se tais opções não forem devidamente acauteladas. Sinalizam este princípio, por
exemplo, a reafectação do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova (Coimbra), como doutros mo-
numentos do mesmo tipo, para acolherem hotéis e pousadas ou a recente polémica sobre
11 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
o uso, quiçá, abuso, que estava a ser dado ao Panteão Nacional.
O património imaterial pode concorrer para os mesmos objetivos levando em consi-
deração os efeitos dos bens mais representativos de Portugal, que a UNESCO reconhe-
ceu e incluiu na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade3.
A nível regional podemos atender à musica popular (do adufe à flauta de tamborileiro na

Esta Lista é constituída, no caso de Portugal, pelos seguintes bens: Fado (2011), Dieta Mediterrânica (2013,
3

em conjunto com Chipre, Croácia, Espanha, Itália, Grécia, Marrocos), Cante Alentejano (2014), Manufatura
de Chocalhos (2015), Olaria negra de Bisalhães (2016), Falcoaria Portuguesa (2016), Boneco de Estremoz
(Figurado em Barro) (2017). A falcoaria inclui os seguintes países onde tem longa tradição: Emirados Árabes
Unidos, Áustria, Bélgica, República Checa, França, Alemanha, Hungria, Itália, Casaquistão, República da
Coreia, Mongólia, Marrocos, Paquistão, Qatar, Arábia Saudita, Espanha, República Árabe da Síria.
raia portuguesa, p. ex.) ou à literatura, por permitir traçar possíveis roteiros a partir de certos
autores (Rotas de Escritores, p. ex.) ou de algumas obras (A viagem de Salomão). Além do
contributo para o desenvolvimento sociocultural ajudam a reforçar o património natural e
demais recursos locais (termas, p. ex.) na diversificação da oferta e valências turísticas. Outras
práticas (p. ex. turismo de base comunitária) e a analise comparativa do turismo em distintos
contextos regionais e socio espaciais (p. ex.: litoral sul de Sergipe e litoral do Algarve) pode
ajudar e encontrar boas práticas, soluções e modalidades mais inovadoras e criativas.
A relação entre património e turismo, complexa e cada vez mais cúmplice e estreita,
pode representar uma oportunidade ou um problema, caso a hipotética salvação se trans-
forme numa irremediável perdição. A relação intrínseca com o território levou a encarar o
património como um fim, se os projetos se esgotam e restringem apenas à sua recuperação,
ou um meio, quando servem de pretexto para abordagens integradas que, superando o
âmbito local, sejam enquadradas em estratégias de desenvolvimento regional ou nacional.
O modo como passou a ser encarado pode ser ilustrado pelas intervenções levadas a cabo
na Região Centro quando, partir dos anos 90, foi reconhecido como um recurso critico
para o desenvolvimento territorial. A valorização e promoção do património desenca-
deou uma multiplicidade de intervenções diretas, quase sempre restritas e focadas num
único imóvel, classificado como monumento nacional ou, em alguns casos, distinguido
pela UNESCO como Património da Humanidade, como aconteceu nos Mosteiros de
Alcobaça, da Batalha e no Convento de Cristo.
As intervenções que transcenderam a estrita incidência ser local inseriram-se em es-
tratégias regionais que apostavam na definição de redes de lugares organizados segundo
critérios geográficos ou temáticos. O caso das Aldeias Históricas de Portugal e da Rede das
Aldeias de Xisto, os mais representativos, configuraram Ações Integradas de Base Territorial
que, partindo de intervenções ao nível do património de cada uma das aldeias, contem-
plaram ainda projetos de infraestruturas, de melhoria dos espaços públicos e de apoios
específicos à economia local, incentivando microiniciativas que aproveitassem diferentes
12 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

recursos endógenos. Os resultados materiais ao nível do edificado e os efeitos positivos na


economia e no tecido social das aldeias têm de ser somados ao inestimável contributo para
integrar e quebrar o ancestral isolamento de muitos lugares, ajudando a colocar no mapa
territórios que passaram a integrar diferentes rotas e circuitos, nacionais e internacionais.
Não são despiciendos os efeitos intangíveis nem o impacto positivo na debilitada auto-
estima de pessoas e comunidades particularmente marcadas pela interioridade, no que de
mais profundo este conceito encerra em termos de despovoamento, abandono, ausência,
depressão e isolamento.
A integração de lugares remotos em diferentes redes, rotas, circuitos e itinerários regionais
e internacionais, independentemente doutras avaliações quantitativas, alterou a maneira
de olhar lugares e territórios, diminuiu distâncias, atenuou o esquecimento, aumentou a
probabilidade de visitação e reorientou os fluxos turísticos. A mobilização dos recursos do
território em proveito dum turismo que se espera mais sustentável e amigo do desenvolvi-
mento tem levado ao desenho e promoção de múltiplas rotas, roteiros, circuitos e itinerá-
rios. O facto deste esforço não ter subjacente uma lógica coerente e concertada, redundou
numa excessiva proliferação de rotas e consequente banalização da ideia por colidir umas
vezes com contradições geográficos e em outras conflituar do ponto de vista temático,
aumentando a fragmentação e prejudicando as leituras assertivas do território.

Roteiros na Região segundo o Turismo do Centro de Portugal:


realidade e imaginário

13 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial


Os produtos divulgados pelo Turismo de Portugal – Centro4 visando promover o turis-
mo na região esboçam uma Geografia do Turismo da Região Centro que revela um com-
promisso entre ócio e negócio ao valorizar certos recursos e outros ativos mais apelativos
para marcar a diferença e tornar a região mais atrativa. Sem nos alongarmos na análise das
propostas nem dos respetivos conteúdos, conclui-se que a oferta se orienta para o imagi-
nário do turista com perfil e apetência para demandar a Região, dando expressão e visibi-
lidade à logística, aos equipamentos e à diversidade de recursos disponíveis nas diferentes
parcelas do território (natureza, património, etc.). A oferta é promovida a partir de vários
produtos que se estruturam a partir das coordenadas que melhor representam um certo
entendimento da maneira como funciona atualmente esta atividade: (i) Cidades5; (ii) Ver
& Fazer: Sightseeing, Cultura, Lazer, Heath & Wellness6; (iii) Comer, comprar & dormir:
Gastronomia, Compras, Alojamento7; (iv) Roteiros 8.
O esboço da geografia implícita nos 16 roteiros destacados pelo Turismo do Centro
de Portugal, conforme se observa no mapa, mostra não só os pontos fortes, onde a Região
tem vantagens, como expressa o imaginário duma certa leitura e interpretação da Região
centro. Os roteiros apresentados, podem agrupar-se em algumas tipologias específicas
orientadas para captar determinados segmentos turísticos:
(i) cultural: Património da Humanidade, Arte Nova, Arte urbana (grafittis em Estarreja,
Aveiro, Figueira da Foz, Viseu, Covilhã e Fundão), Cerâmica (Aveiro, Ovar, Válega,
Vista Alegre, Bordallo Pinheiro); Rota da Lã (Museu de Lanifícios da Covilhã, polo
interpretativo da transumância a partir da Serra da Estrela);
(ii) Cultura imaterial: Judiarias (além de Belmonte, as mais conhecidas judiarias situam-se na
raia: Guarda, Trancoso, Castelo Rodrigo, Celorico da Beira, Almeida, Foz Côa, Pinhel,
Linhares e Belmonte), Aristides de Sousa Mendes, A Viagem do Elefante (a partir do

4
Turismo de Portugal – Centro: http://www.centerofportugal.com/pt/
5
São destacadas: Aveiro, Coimbra, Figueira da Foz, Viseu, Guarda, Covilhã, Castelo Branco, Leiria, Alcobaça,
14 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Batalha, Fátima, Tomar, Nazaré, Óbidos, Peniche.


6
Ver & Fazer: (i) Sightseeing: Aldeias Históricas, Aldeias do Xisto, Parques Naturais, Hills & Mountains,
Castelos, Birdwatching; (ii) Cultura: Arqueologia, Street Art, Churches & Monuments, Arqueologia
Industrial, Fado de Coimbra, Herança Judaica; (iii) Lazer: Cycling, Kids & Families, Turismo Ativo,
Surf, Praias, Casa de Fado, Bars & Discos, Casinos, Golfe, Voos de Balão, Visitas Guiadas); (iv) Heath &
Wellness: Mantenha-se Saudável, Recupere a sua saúde, Educação em Saúde, Termalismo, SPAs termais.
7
Comer, comprar & dormir: (i) Gastronomia: Restaurantes, Queijos, Doçaria Regional, Enoturismo;
(ii) Compras: Produtos de Design, Brands we love, Lojas Tradicionais, Mercados, Lojas de Fábrica; (iii)
Alojamento: Hotéis, Turismo no Espaço Rural, Self-Catering.
8
Roteiros: 1. Património da Humanidade; 2. Arte Nova; 3. Cerâmica; 4. Vales Glaciários; 5. Moliceiro
na Ria; 6. Bacalhau; 7. Mata do Buçaco; 8. Cerejas; 9. Rota dos Jardins; 10. Judiarias; 11. Aristides de
Sousa Mendes; 12. Translana (Rota da Lã – A transumância na Península Ibérica; Museu de Lanifícios da
Covilhã); 13. A Viagem do Elefante; 14. Arte urbana; 15. Birdwatching no Centro de Portugal; 16. Surfar
no Centro de Portugal.
romance homónimo de José Saramago, destacando-se a passagem pelos lugares emble-
máticos de Castelo Novo, Belmonte, Sortelha, Cidadelhe e Castelo Rodrigo);
(iii) Produtos locais: Rota do Bacalhau (Museu Marítimo de Ílhavo, Navio-Museu Santo
André, Navio Santa Maria Manuela), Cerejas (Alpedrinha, Castelo Novo e a paisagem
da Gardunha);
(iv) Património natural: Vales Glaciários (Vale Glaciário do Zêzere; Alforfa, Loriga, Covão
Grande e Covão do Urso), Birdwatching no Centro de Portugal (Ria de Aveiro, Peniche,
Reserva Natural da Faia Brava, Monumento Natural das Portas de Ródão, Parque
Natural do Tejo Internacional), Mata do Buçaco, Rota dos Jardins (Quinta das Lágrimas
e Jardim Botânico em Coimbra, Buçaco, Parque Aquilino Ribeiro (Viseu) e Jardins
da  Casa da Ínsua  (Penalva do Castelo); Castelo Branco: Jardim do Paço Episcopal;
Bombarral: Buddha Eden Garden; Tomar - Mata dos Sete Montes; Caldas da Rainha –
Parque D. Carlos I; Parque de escultura contemporânea em Vila Nova da Barquinha),
Moliceiro na Ria, Surfar no Centro de Portugal (Praia da Barra, Figueira da Foz, Buarcos,
Cabedelo, São Pedro de Moel, Nazaré: XXL Biggest Wave Award”, Peniche, onde relevam
a Praia do Baleal Norte-Lagido, Praia do Medão-Supertubos e Santa Cruz)

15 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial


RECURSOS DO TERRITÓRIO:
PAISAGENS E PATRIMÓNIOS
Paisagem urbana histórica,
A Lusa Atenas como matriz
cultural de Coimbra

Joana Capela de Campos


Universidade de Coimbra (DARQ – FCT, UC)
Vítor Murtinho
Universidade de Coimbra (DARQ – FCT, CES, UC)

Introdução

Numa altura em que o território europeu atravessa algumas ameaças, com base na
violência de guerrilha e de terror, que visam colocar em causa os princípios de dignidade,
de liberdade e de segurança do cidadão europeu – mas em geral e por extensão do Ser
Humano – e também, para assinalar os cem anos sobre o fim da Primeira Grande Guerra,
o Conselho Europeu assume uma posição bastante clara, ao estabelecer o período de 2018
como o Ano Europeu do Património Cultural. Também em 2018, a Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) comemora os quarenta
anos das primeiras inscrições na LPM. Num tempo de incertezas quanto ao futuro, uma
certeza devemos ter: através do património cultural podem ser estabelecidos os discursos
de paz e, por isso, qualquer comemoração de cultura é uma afirmação positiva sobre o
19 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
futuro da e na humanidade.
O papel do património cultural sai mais reforçado, para se afirmar como um recurso
no desenvolvimento de uma comunidade global de paz, construindo e reconstruindo pon-
tes de diálogo que promovam a tolerância e a diversidade dos patrimónios do mundo e,
assim, promover relações interculturais. Seguindo a mesma lógica e, por consequência, a
proteção e a salvaguarda do património também saem reforçadas, como um eixo estratégico
fundamental para o desenvolvimento das comunidades e dos seus territórios.
No entanto, o património cultural é um recurso não renovável, levando a que o tema
da sua sustentabilidade assuma algum relevo nas práticas de investigação e nos estudos
que vão sendo desenvolvidos a nível global, com mais evidência nas últimas décadas,
nomeadamente, ao nível do PM, tendo em conta a sua gestão e o seu planeamento
para futuro.
A inscrição de um bem na LPM, ou qualquer outra classificação patrimonial, implica
algumas transformações para o desenvolvimento do seu contexto urbano. Por um lado, na sua
vertente material, pelas condições consequentes dessa distinção internacional, com a introdu-
ção de políticas e dinâmicas de proteção e salvaguarda do património, dentro do perímetro
classificado, mas também na sua área de influência urbana adjacente, que também vai ab-
sorver essas dinâmicas de intervenção, sobretudo, pela reabilitação dos seus espaços públicos
e privados, assumindo uma contaminação positiva da atribuição do título. Por outro lado,
também devem ser tidas em conta, as transformações decorrentes de um título PM, nomea-
damente, na vertente imaterial do seu contexto urbano, ou seja, nas práticas e nos usos das
dinâmicas socioculturais, que se verificam e manifestam no domínio do contexto urbano ma-
terial, uma vez que, essa distinção internacional assume contornos de mediatização global, na
promoção desses espaços, que passam a ser procurados por um número crescente de pessoas.
Mas muitas vezes, a atribuição de um título pode induzir a uma criogenização do
espaço urbano e monumental, sem se considerar, que o valor patrimonial está sujeito a
uma evolução, porque é parte integrante de um sistema dinâmico. Essa postura assente na
criogenização desses espaços demonstra o entendimento a que está sujeita qualquer área
patrimonial – que se deve demarcar com um limite claro e estático, dentro do resto do seu
contexto urbano – e, por isso, o princípio da proteção e da salvaguarda do património é
entendido como contrário ao desenvolvimento urbano.
Para rebater essa postura, têm contribuído algumas organizações e instituições in-
ternacionais, como a UNESCO, através dos seus Centro e Comité do PM, com os seus
consultores – o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), o Centro
Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro dos Bens Culturais de Roma
(ICCROM) e a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) – e ainda,
alguns parceiros, como o Conselho Europeu, que tendo em conta a evolução do pensa-
20 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

mento sobre a proteção e a salvaguarda do património, têm sobressaído pela produção de


textos e recomendações que promovem a gestão patrimonial de modo integrado numa
gestão para o desenvolvimento urbano sustentável.
Uma das propostas mais recentes para se considerar a problemática em torno da
sustentabilidade e da gestão integrada, no âmbito do património cultural em contexto
urbano, surge a partir da Recomendação sobre a Paisagem Urbana Histórica (PUH) da
UNESCO, de 2011.
Numa primeira instância foi um instrumento político para a necessidade de uma res-
posta aos acontecimentos e pressões de desenvolvimento a que as cidades estavam sujeitas na
transição do milénio. Esta Recomendação da UNESCO caracteriza-se por promover uma
abordagem multidisciplinar da gestão dos recursos urbanos, assentes no património, sobre
uma plataforma de conjugação de vários layers multifuncionais, através da PUH, entendida
como uma escrita da relação e da ação do ser humano com/sobre o seu meio ambiente.
A expectativa criada em torno desta abordagem é grande por ser considerado que, a PUH
é capaz de ser um conceito operativo para traduzir o enquadramento das dinâmicas sociocul-
turais num sistema abrangente territorial, que evolui ao longo do tempo. De certa forma, a
promoção para uma integridade dinâmica é a grande mais-valia que a PUH introduz na abor-
dagem da gestão e planeamento do património em espaço urbano, ao considerar, em simul-
tâneo, o binómio relações-ações verificadas entre a população e o território, tendo em conta
o seu desenvolvimento integrado e sustentável. Talvez por acolher os novos modos de vida,
característicos de uma sociedade contemporânea, como parte da dinâmica da complexidade
que os espaços urbanos enfrentam hoje, que a abordagem da PUH possa ser extrapolada para
outros contextos, como uma forma mais operativa de gerir e planear o espaço urbano, em geral.

A Paisagem Urbana Histórica, uma perspetiva histórica

A diversidade sempre foi uma realidade inerente à multiculturalidade das comunida-


des do mundo. Mas a sua consciencialização e o seu reconhecimento tendem a ser, só há
poucas décadas estabilizados, de modo oficial, na tentativa global de democratização do
património de e para todos, no âmbito do PM.
As primeiras inscrições na Lista do Património Mundial (LPM), de acordo com as
disposições expressas na Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural
e Natural (CPM1972), assinalam o quadragésimo aniversário, em 2018. Mas logo na
primeira década de inscrição de bens com Valor Universal Excecional (VUE) na Lista, o
Comité do PM demonstrou algumas preocupações na sua capacidade em ser um inven-
tário representativo, equilibrado e credível da diversidade cultural existente em todo o
21 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
mundo (Capela de Campos & Murtinho, 2017b).
Para tal, foi realizado um estudo pelo ICOMOS, entre 1987 e 1993, no sentido de
se analisar e avaliar os resultados da LPM até então. Consequentemente, o objetivo visava
propor ajustes, correções das metodologias e das dinâmicas correntes nos processos de
inscrição de bens na LPM, para além de se ter em vista a adoção de uma Estratégia Global,
no futuro (pelo Comité do PM), precisamente, numa tentativa de tornar a LPM mais
representativa, equilibrada e credível (WHC, 1994).
No relatório final do estudo, apresentado em 1994, o ICOMOS referia, que a pobreza
de resultados da LPM sobre a diversidade das manifestações culturais das comunidades/
/sociedades, em muito, se devia à divisão simplista do património entre cultural e natural.
Além disso, o relatório também alertava para o facto de não estar a ser considerado que, em
muitas comunidades/sociedades, a paisagem, ou criada ou habitada pelos seres humanos,
era uma representação dos modos de vida das comunidades que nela viviam e que, por
isso, também deveria ser considerada com valor cultural.
A noção de património passava a centrar-se no contexto social do ser humano, com
todas as suas complexidades e representações estabelecidas no espaço físico que o suporta-
va. O relatório do ICOMOS alertava para que todas as manifestações, desde a arquitetura,
a história, a arte, a arqueologia, as tradições, os usos e os costumes, das manifestações
sociais em geral, que eram mantidas ao longo do tempo por uma comunidade eram, tam-
bém, representativas da relação recíproca entre a comunidade e o espaço por ela habitado,
que se manifestava no seu ambiente físico e não-físico.
Tendo em conta a evolução teórica que colocava a paisagem como produto cultural,
desde 19841, com estas observações, este documento do ICOMOS pode ter sido um
dos primeiros, no contexto do PM, a reclamar o reconhecimento destas manifestações
enquanto resultados de processos culturais e, portanto, sujeitos a uma condição de trans-
formação e de mudança, inerente a um processo evolutivo. A maioria dos bens na LPM era
património cultural em contexto urbano2, o que colocava pertinência na questão relativa
à sua futura gestão e manutenção, tendo em conta o próprio desenvolvimento urbano, que
ia ganhando dinamismo através de vários setores económicos (Sonkoly, 2012).
Já desde 1962 que a UNESCO vinha exprimindo, através da Recomendação sobre a
salvaguarda da beleza e do carácter das paisagens e dos sítios, algumas preocupações quanto à
proteção e salvaguarda destes patrimónios sujeitos a transformações com uma grande com-
ponente irreversível, pois, uma das características que definia o tempo pós-II Grande Guerra
era a transição acelerada, que estaria patente na vida quotidiana e na cidade (Doxiadis,
1965). Apesar de considerar que a salvaguarda das paisagens e dos sítios era essencial e ne-
cessária, tanto para a saúde e vida sociocultural dos seres humanos – que eram influenciados
pelo ambiente físico – como para a sua própria riqueza – enquanto suportes de atividades
22 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

1
No campo disciplinar da geografia, em 1984, Denis Cosgrove já defendia a paisagem como produto cultural
(Cosgrove, 1998, 2002) e Augustin Berque assumia a paisagem na dualidade, marca e matriz, das ações do
ser humano sobre o território (Berque, 1998). No início dos anos 90, no campo disciplinar da teoria da ar-
quitetura da paisagem, Elizabeth Meyer e James Corner enfatizavam a ligação profunda entre a teoria crítica
e o contexto social e político, no qual aquela era feita e usada, sendo que, esta ligação, enquanto mediação
e reconciliação da paisagem com outras ideias culturais, fazia parte da própria sociedade, tendo em conta
a evolução histórica dos processos e experiências relacionais entre a sociedade-paisagem e o seu papel ativo
numa agenda político-social (Corner, 2002a, 2002b; Meyer, 2002; Swaffield, 2002).
2
Em 1994, a LPM contava com 439 bens inscritos, sendo 326 culturais, 94 naturais e 19 mistos; 93 dos bens
eram inscritos na categoria cidade. Ou seja, 74.26% de bens inscritos eram património cultural e, 28.53%
desse património cultural eram cidades históricas. Ou seja, um número considerável dos bens inscritos
(21.18%) pertencia à categoria cidades históricas, sem considerar as áreas e os monumentos urbanos que
eram inscritos como património cultural, mas não estariam considerados na categoria cidade.
económicas – a UNESCO reconhecia, todavia, que as paisagens e os sítios estavam sujeitos
a um rápido desenvolvimento e progresso tecnológico, sobretudo os urbanos, devido à es-
peculação do uso de solo para investimentos imobiliários, colocando em causa o seu aspeto
e o seu carisma. Por esse motivo, os gestores e os decisores das políticas da cidade e do terri-
tório deveriam assumir medidas de salvaguarda, não só para as paisagens e sítios, mas para a
generalidade do território, de modo a prevenir e a corrigir alguma ação que prejudicasse ou
destruísse a sua imagem (Lynch, 1989), beleza e carácter, enquanto valores reconhecidos.
Deste modo, o planeamento urbano e a supervisão deveriam ser entendidos como
medidas de salvaguarda, bem como o zonamento, que poderia escalonar as áreas mais
sensíveis e suscetíveis a interferências externas, se tivessem sido definidas e estipuladas
normas de controlo e de fiscalização que conseguissem impedir, ou pelo menos, minimizar
as interferências prejudiciais ao conjunto em causa.
No entanto, desde 1976 que a UNESCO, através da Recomendação sobre a salvaguarda
e o papel contemporâneo das áreas históricas (Carta de Nairobi), também estimulava o de-
senvolvimento urbano, de forma sustentável, equilibrada e em consonância com os modos
de vida da sociedade contemporânea, uma vez que o espaço físico enquanto suporte de
vida, deveria corresponder às necessidades demonstradas em cada momento. Para isso, as
áreas históricas e o seu contexto adjacente deveriam ser considerados como um todo, como
refere a Recomendação. Logo, o planeamento e a gestão dessas áreas históricas, também de-
veriam ser coerentes numa perspetiva abrangente, assumindo a fusão das especificidades,
diversidades e variações territoriais – ou pelas atividades humanas, ou pela topografia, ou
pela organização espacial, ou pelos espaços construídos, ou pelas suas marcações visuais
– de modo equilibrado, não assumindo o todo como uma soma de partes, sob pena de se
introduzir fronteiras e limites espaciais, mesmo que invisíveis, dentro do território.
Desde o primeiro instrumento de orientações operativas e técnicas para a implemen-
tação da CPM1972, de 19773 que, nas candidaturas de bens à inscrição na LPM, eram
solicitados detalhes de medidas de proteção administrativas e legais, diagnósticos do esta-
23 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
do de preservação e conservação dos bens, a propriedade e a responsabilidade sobre o bem
(nacional, regional ou local), planos de gestão ou propostas para desenvolver esses planos
ou, ainda, planos diretores locais e regionais de desenvolvimento urbano.
A partir de 1984, para além dos detalhes já existentes acrescia a solicitação de uma
previsão de medidas e contraordenações, para cenários de alteração do contexto urbano
adjacente ao bem proposto, nomeadamente, na altura e no volume das construções.
Complementarmente, também eram solicitados elementos visuais, por levantamento fo-
tográfico, que evidenciassem, especificamente: a vista aérea sobre o bem proposto e o seu
O primeiro rascunho de trabalho do documento das Operational Guidelines é datado de 30/06/1977 e
3

a primeira versão oficial do texto data de 20/10/1977. Cf. (Capela de Campos & Murtinho, 2017b).
contexto; a vista dos monumentos dentro da área proposta; e, várias vistas panorâmicas
com diferentes ângulos de visão, desde o perímetro externo do bem, para avaliar a skyline,
e o seu contrário. Ou seja, vistas panorâmicas que pudessem mostrar a paisagem urbana
do bem e do seu contexto, a partir e para além dos seus limites.
A partir de 1997, todas estas informações sobre o bem candidato passavam a ser obri-
gatórias, apresentando uma estrutura específica, que ia sendo cada vez mais detalhada,
com a sua identificação, a sua descrição, a sua gestão, os fatores que afetam o bem, a sua
monitorização, bem como, outras documentações que sejam relevantes para informar e
clarificar a pretensão (Capela de Campos & Murtinho, 2017b). Deste modo, ao nível
das candidaturas de inscrição na LPM, o escalonamento do nível de preocupação sobre a
relação entre o património e o seu contexto urbano, ia sendo mais exigente e específico, ao
longo dos anos, uma vez que se verificava uma pressão crescente nos processos de desen-
volvimento local e regional, para atingir os padrões de globalização económico-financeira.
As paisagens urbanas, enquanto registos dos usos e das impressões das suas populações
ao longo dos tempos, não tinham sofrido grande impacte, até às décadas finais do sécu-
lo xx, mantendo as características morfológicas das cidades, no geral, com poucas varia-
ções (Conzen, 2004). Estas premissas eram verificadas, principalmente, nos seus espaços
urbanos antigos e, por isso, estes espaços, comummente denominados Centros Históricos,
evidenciavam o processo histórico das transformações que iam sendo realizadas, por ne-
cessidade, em cada contemporaneidade, mas de modo a não alterar a paisagem urbana do
contexto territorial, deixando visíveis os estratos de intervenções de todas as épocas como
um palimpsesto (Corboz, 1983). À paisagem urbana pode ser atribuído, assim, um valor de
autenticidade representativa da evolução à qual havia sido sujeita.
No entanto, a partir dos anos 80, era sobre as cidades que estes impactes se verificavam
com mais intensidade, principalmente, pelo setor da construção, que conhecia períodos de
forte ascensão, com produção de muita riqueza, sendo assumido como uma alavanca da
economia global, alterando o paradigma do planeamento urbano (Sonkoly, 2011). Ainda
24 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

assim, essa riqueza seria feita à custa de valores essencialmente sociais e culturais, o que
seria prejudicial para as cidades e para os espaços urbanos: os centros antigos, com um
forte cunho sociocultural, tinham sido abalados por fenómenos de abandono e de con-
sequente gentrificação, bem como os próprios limites das cidades que tendiam a crescer.
A transformação morfológica dos espaços urbanos e as suas dinâmicas, em geral, contri-
buía para a alteração da imagem e da configuração espacial das cidades, colocando a sua
integridade visual em causa, com alterações da skyline.
As permanências que tinham sido referências identificadoras do lugar, ao longo dos séculos,
estavam em risco de serem transformadas ou destruídas, sob a perspetiva de uma modernização
high-tech do espaço da cidade. Além disso, essas transformações também eram assimiladas pelas
populações que atuavam nesses espaços e lugares urbanos. Transformava-se o lugar, transformava-
-se a população, pois «o lugar é considerado o suporte essencial da identidade cultural, (…) que
ancora a pessoa humana (…) na sua geograficidade» (Le Bossé, 2013, p. 225).
A UNESCO e o PM entendiam que estas transformações das cidades, dos seus espa-
ços e lugares urbanos, trariam consequências irreversíveis, sobretudo para as cidades com
um maior cunho sociocultural e para aquelas que já estavam inscritas na LPM (Cameron,
2008; UNESCO, 2009), se não fossem adotadas medidas de contenção, salvaguarda e
proteção. Por norma, os bens e sítios PM eram (e são) espaços mais sensíveis e suscetíveis a
sofrerem maiores danos materiais quando as ações de proteção e de salvaguarda tendiam a
falhar, em grande parte, devido à falta de eficácia ou de eficiência na prevenção, sobretudo
nos seus processos de planeamento e planos de gestão, quando não eram devidamente
equacionados ou quando não lhes era dada a devida importância.
Todavia, a transição do milénio conhecia aquele caso que alterava o modo de se encarar
e confrontar os processos de desenvolvimento urbano, que faziam pressão sobre as dinâmicas
políticas de gestão das cidades e que, por isso, se tornava paradigmático: o caso de Viena.

A Recomendação sobre a Paisagem Urbana Histórica

Em 2001, o Centro Histórico de Viena foi inscrito na LPM. Em simultâneo, a cidade


precisava de reabilitar a sua plataforma intermodal de transportes urbanos e o local escolhi-
do, para essa intervenção, era a antiga estação de comboios. Esse equipamento localizava-se
dentro do limite estabelecido pela área de proteção do bem PM.
O projeto inicial consistia num aglomerado de edifícios em torre, com uma escala
altimétrica e volumétrica bastante pronunciada e divergente do existente, alterando a pai-
sagem urbana e a skyline da área classificada e, por consequência, da cidade. De tal forma,
terá sido considerada grave essa possível intervenção, que em 2002, era considerada a
25 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
hipótese de se retirar o Centro Histórico de Viena da LPM.
O projeto foi alterado e construiu-se o que existe hoje (Wien-Mitte). Porém, este caso
terá atingido o limite daquilo que era aceitável pelo PM4, em relação às tensões existentes
entre o desenvolvimento local e os processos de globalização, que estavam a acontecer, de
modo transversal ao território urbano, sobretudo europeu, na transição do milénio. O caso
de Viena vinha alertar para uma realidade que, apesar de não ser alheia ao PM, ganhava
protagonismo nos debates internacionais sobre os centros urbanos e as cidades e criava
impacte político nas suas dinâmicas de gestão e de desenvolvimento5.
Desde 2017 que o Centro Histórico de Viena está inscrito na LPM em Perigo.
4

Cf. (Rössler, 2015).


5
Em 2005 era adotado o Memorando de Viena6, uma reação direta ao processo de
avaliações e negociações da ocorrência do caso concreto, que resultava de uma conferência
internacional, promovida pela UNESCO, sob o tema Património Mundial e Arquitetura
Contemporânea. Por princípio, o objetivo da conferência não passaria por banir qualquer
intervenção na cidade existente, pois tal formulação iria contra os princípios já defendidos
em recomendações, textos e cartas anteriores. De facto, o propósito da conferência passava
por propor novas perspetivas sobre a abordagem às novas necessidades e aos novos progra-
mas tendo em conta o resultado da integração da arquitetura contemporânea na cidade
existente. Paulatinamente, os pressupostos de proteção e salvaguarda do património iam
sofrendo transformações perante a consciência da totalidade do sistema urbano, da sua
complexidade e do seu dinamismo que estavam sujeitos a uma evolução contínua.
O PM tentava dar resposta à dificuldade verificada, quer na definição concetual quer
nas práticas e metodologias, de modo que fosse traduzida a problemática associada e equa-
cionada, a partir dos casos inscritos na LPM. Deste modo, seria a partir da conjugação e
da mistura concetual e teórica com a prática, que era desenvolvido um conceito que se pre-
tendia operativo – paisagem urbana histórica – e que se apresentava como uma abordagem
aglutinadora de várias perspetivas e textos, desde a Recomendação sobre a salvaguarda da
beleza e do carácter das paisagens e dos sítios, de 1962 até ao Memorando de Viena de 2005.
Se durante várias décadas, o PM tinha promovido investigação e debates internacio-
nais, sobre conceitos e metodologias de atuação de proteção e salvaguarda para os sítios
e bens com VUE, que eram o principal foco de preocupação, a partir do novo milénio,
as preocupações do PM ganhavam outra dimensão e abrangência. O enquadramento e a
integração do bem no seu contexto urbano passaria a ser uma premissa fundamental para
garantir uma adequada metodologia de proteção e salvaguarda, na futura gestão do bem.
O PM empenhava-se no trabalho de promoção de planos de gestão e de planeamento in-
tegrado, no âmbito dos planeamentos locais e regionais, desde a sensibilização, a formação, a
comunicação e a recomendação. Esta promoção passava pelo reconhecimento na falta de arti-
26 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

culação entre as dinâmicas de gestão dos bens PM com a gestão e planeamento das suas áreas
adjacentes, tanto ao nível físico, como ao nível sociocultural, como se fossem realidades dis-
tintas. Neste sentido, estas barreiras ou fronteiras invisíveis ainda podem subsistir, no modo
como se enquadra a abordagem a esta realidade – que é só uma – num contexto territorial.
Em 2011, a UNESCO promovia a Recomendação sobre a PUH, que ganhava um es-
tatuto de instrumento político, no enquadramento de uma gestão patrimonial integrada.
Tornava-se essencial, por isso, esclarecer de modo exigente a definição concetual7 desta
6
O caso de Viena era o motivo da primeira conferência específica sobre o tema, dando origem ao Vienna
Memorandum (WHC, 2005), considerado como a primeira tentativa de definição do conceito PUH. Cf.
(Bandarin & Oers, 2012; Sonkoly, 2011; Veldpaus, 2015).
7
Cf. (Jokilehto, 2010).
nova abordagem, sobretudo, devido às circunstâncias verificadas nos desenvolvimentos
urbanos contemporâneos à transição do milénio, período em que as tensões entre o desen-
volvimento local e os processos de globalização se intensificaram. Por ser um tema quase
transversal ao contexto do desenvolvimento urbano europeu, o caso de Viena assumia
contornos paradigmáticos, sendo reconhecida tanto a urgência como a necessidade de um
debate específico sobre o tema e sobre as suas implicações e consequências no futuro.
A Recomendação define a PUH como sendo a área urbana entendida como resultado de
sucessivos layers históricos de atributos e valores culturais e naturais, que para além da noção
de Centro Histórico ou conjunto, se enquadram num contexto urbano mais alargado na sua
condição geográfica8. Ou seja, o entendimento sobre a PUH é o reflexo da evolução histórica
e da expansão concetual sobre o património cultural, codificado pelo desenvolvimento social,
cultural e económico, que se manifesta, atua e surge nas dimensões material e imaterial do
território, sendo representativo do estágio intelectual de cada contemporaneidade (Capela de
Campos, 2017, p. 67; Oers & Roders, 2012; Sonkoly, 2011; UNESCO, 2011, pp. 50–55).
Desta forma, este resultado conferia uma identidade ao território, dotada de elemen-
tos e características inerentes a si próprio e à sua circunstância, dotando o território de
uma singularidade distintiva de qualquer outra. Tal facto constituía essa identidade como
uma construção cultural (Corrêa, 2013, p. 61), onde o espaço visado se transformava num
lugar, no qual os seus habitantes (insiders) e todos os outros (outsiders) reconheciam essa
sua singularidade, tanto funcional, como morfológica ou até simbólica (Relph, 2008).
Sob esta leitura, a PUH podia ser considerada como uma matriz cultural do território
(Capela de Campos & Murtinho, 2017a). Uma matriz conferia o grau de unidade a um
sistema, como um território, a partir da qual, se podem gerar, estabelecer, potenciar ou in-
tensificar inter-relações entre os seus componentes e elementos. Apesar da complexidade de
um território, uma leitura e análise da sua matriz cultural permitia verificar as inter-relações
entre população-território e, consequentemente, estabelecer princípios que possibilitassem
potenciar e promover ações para a sua identificação e para a sua apropriação pela população.
27 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
A promoção e o fortalecimento da inter-relação entre a população e o território po-
tenciava uma base ao nível do conhecimento emocional9, para que a PUH se constituísse
como uma plataforma interdisciplinar, onde é possível estabelecer correlações entre as

8
A Recomendação sobre a PUH define-a como «the urban area understood as the result of a historic layering
of cultural and natural values and attributes, extending beyond the notion of historic centre or ensemble to
include the broader urban context and its geographical setting» (UNESCO, 2011, p. 52).
9
A propósito de se fortalecerem os laços emocionais entre a população e o território, através de ações e práticas
de «conhecer para compreender» (Capela de Campos & Murtinho, 2017a), verificava-se que «o património
cultural não define identidades estáticas. É por ir incorporando e assumindo as novas realidades e os novos
modos de uso, com base nas dinâmicas de reconhecimento e de apropriação, que são criados laços emotivos de
pertença, entre as comunidades e os patrimónios, numa garantia de continuidade de utilização das máquinas
de memória, quer no tempo presente, quer para o futuro» (Capela de Campos & Murtinho, 2017b, p. 147).
várias dinâmicas existentes nos layers que a compunham: tanto aqueles da sua vertente
material – espaços construídos ou naturais – como os da sua vertente imaterial – usos,
vivências, tradições e costumes – e, assim, contribuir com conteúdos pró-ativos para uma
gestão sustentável do território. Este aspeto tornava-se relevante e pertinente pois conduzia
a um objetivo de planeamento e de gestão integrada do património, numa escala urbana
mais ampla e com perspetiva territorial, extrapolando claramente a própria área patrimo-
nial. Ou seja, a abordagem da PUH permitia ter uma visão de planeamento e gestão mais
inclusiva, quer ao nível do contexto urbano social, cultural, económico e ecológico, enfati-
zando que os processos de transformação e de desenvolvimento faziam parte integrante da
evolução normal de um sistema urbano, ao longo do tempo (Veldpaus, 2015, pp. 48–49).
Seria por todas estas novas perspetivas centradas na melhoria da qualidade de vida
das populações, que no futuro, no campo da gestão do património seja expectável que
haja mais desenvolvimento ao nível de uma transformação de pensamento e de consci-
ência sobre as dinâmicas e sinergias criadas pelos processos patrimoniais, que promova,
consequentemente, uma transformação nas abordagens e nas metodologias de proteção e
salvaguarda do património, do que propriamente sobre o património em si.
Tendo em conta estas considerações – e antecipando que o conhecimento teórico pode
surgir de acontecimentos reais e de atuações e casos práticos –, considera-se que o caso da candi-
datura da Universidade de Coimbra – Alta e Sofia (UC-AS) à LPM, que ocorreu em simultâneo
ao desenvolvimento do processo de definição da PUH e de toda a sua envolvência, pode con-
tribuir com algumas possibilidades de abordagem à avaliação e à monitorização dos processos
de intervenção urbana, para uma gestão integrada das áreas patrimoniais no espaço urbano.

Lusa Atenas, a matriz cultural do território de Coimbra

Durante muito tempo, a imagem urbana de Coimbra definida pela Alta e pela Baixa até
à margem do rio Mondego (conformada entre a baixinha e o Jardim Botânico e, encimada
28 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

pela plataforma de Minerva e a Torre da Universidade) e denominada como a Lusa Atenas10


era a representação recorrente da paisagem urbana da cidade11. Sobre as águas do Mondego,
a Lusa Atenas vinha sendo associada, inequivocamente, à Universidade e à própria cidade
(Fig. 1). A paisagem urbana da colina da Alta assumia um papel central na representação,
10
O epíteto que recorrentemente caracteriza Coimbra, Lusa Atenas, é de origem difusa, mas defende-se que,
«se o conceito de Lusa-Atenas é quinhentista, o termo específico só se vulgarizou, no fim do século de oito-
centos» (Dias, 2010, p. 3), havendo, inequivocamente, a «comparação de Coimbra com a mítica capital da
Grécia, pátria de poetas, historiadores, filósofos» (Dias, 2010, p. 4).
11
Até ao início do século xx, a representação da cidade fazia-se sobre a área compreendida entre o rio, a Baixa, a
Alta e as ensanches oitocentistas implementadas na Quinta de Santa Cruz (Avenida Sá da Bandeira, Praça da
República e Bairro Sousa Pinto) até ao Convento de Santa Ana e penitenciária, como se verifica na publicação
Spain and Portugal: Handbook for Travelers, de 1908, publicado por Baedeker. Cf. (Macedo, 2006, p. 125).
com o casario a descer até ao rio e coroada com o complexo do Paço das Escolas, colégios
e edifícios universitários, constituindo-se como uma constante no imaginário daqueles que
a referiam, a cantavam, a pintavam, a representavam, vezes sem conta ao longo dos tem-
pos. Uma identidade espacial criada, recriada e rememorada, ao longo dos séculos e que,
também, seria representativa do interesse da sua população em cada contemporaneidade12.

Figura 1. Vista sobre a colina da Lusa Atenas, a partir da beira-rio e Estádio Universitário.
Fotografia: Joana Capela de Campos.

Não é inconsequente que Coimbra se tenha constituído «um caso raro, senão mesmo
único, do urbanismo português, em que no seu conjunto uma cidade se transformou
numa estrutura mono-funcional, quase um equipamento por alguns séculos» (Rossa,
2001, p. 11). Pelo papel desempenhado pela Universidade na estabilização do contributo
sócio-político-económico-cultural que tinha vindo a imprimir a Coimbra e na constante
que tinha vindo a ser o valor refúgio da imagem da Lusa Atenas ao longo dos séculos, se 29 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
compreenda que tivesse recaído, sobre a Universidade, a responsabilidade de uma candi-
datura patrimonial à UNESCO13. Em 22 de junho de 2013, o VUE do bem UC-AS era
reconhecido, sob os critérios ii, iv e vi, passando a integrar a LPM.

12
Dias verificava que, desde quinhentos, havia «claramente, a declaração da consciência do valor do Saber e
da sua preponderância em relação a todas as coisas. O Saber é o maior tesouro do homem, que pode utilizar
para o bem ou para o mal» (Dias, 2010, p. 5).
13
O processo de candidatura de Coimbra a PM teve início em 1982, podendo ser verificadas três fases: 1) de
1982 a 1998, onde várias áreas da cidade foram equacionadas para candidatura, sendo identificados diversos
proponentes, desde Matilde Sousa Franco (em 1982 era a Diretora do Museu Nacional de Machado de
Castro) à Câmara Municipal de Coimbra; 2) de 1998 a 2003, uma fase mais introspetiva e preparatória para
uma candidatura da Universidade; e 3) de 2003 a 2013, com o desenvolvimento da candidatura da UC-AS
à UNESCO, até à sua inscrição na LPM a 22/06/2013. Cf. (Capela & Murtinho, 2015; WHC, 2013).
Tendo em conta a sua definição, a PUH de Coimbra, onde se inseria o bem UC-AS,
espacialmente, seria constituída num contexto urbano mais alargado do que aquele pelo
qual era imediatamente reconhecida. Esta matriz cultural do território da cidade, condi-
cionante da forma urbana e, ao mesmo tempo, condicionada por ela, podia ser considera-
da tanto pela sua valência material como pela imaterial (Capela de Campos & Murtinho,
2017a). Ao se equacionar o contexto urbano numa valência material, esta podia ser ve-
rificada no espaço físico do bem classificado PM com 117 hectares. Esta área era cons-
tituída pela área do bem UC-AS – 35,5 hectares, sendo 29 hectares dessa área na Alta
e 6,5 hectares na Sofia – e pela sua zona de proteção com 81,5 hectares (Fig. 2). Além
desta área UC-AS PM, também deveria ser considerada para uma valência material, a
sua área urbana de influência, que se delimitava pelas linhas de cumeeira envolventes à
colina da Universidade, para constituir a plataforma de estudo Alta/Baixa/Santa-Clara.
Considerando o seu contexto urbano refletido numa valência imaterial, tal poderia ser
verificado através das dinâmicas socioculturais e dos usos que se iam estabelecendo e sendo
realizados na valência material dos espaços urbanos, traduzindo para o espaço físico as
novas formas de estar e de viver a cidade.
30 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 2. Localização da área UC-AS e da sua zona de proteção, na LPM. Imagem: Hugo Andrade, UC.

Alguns acontecimentos visíveis terão sido determinados durante e pelo processo de can-
didatura de Coimbra a PM (1982-2013), no contexto urbano definido, por ser um espaço
privilegiado para se criar sinergias capazes de correlacionar a dinâmica comunidade-território.
A proteção e a salvaguarda de patrimónios ou a reabilitação e a requalificação de equipamentos
e espaços públicos ou áreas urbanas podem ser verificadas, por toda a área afeta à área PM. Mas
também podem ser verificadas ações de proteção e salvaguarda, de requalificação e reabilitação
em espaços dentro da área urbana de influência e adjacente à área PM, como a zona ribeirinha,
frente de rio ou ainda a margem de Santa Clara (Capela de Campos & Murtinho, 2017a).
As transformações, que a cidade vinha absorvendo em cada contemporaneidade, permi-
tiam estabelecer continuidades urbanas de permanência, de atravessamentos e de vivência ao
longo dos seus espaços, promovendo o conhecimento para uma compreensão do território,
aos seus habitantes, residentes e utilizadores. Aqueles que promoviam, principalmente, o ca-
minhar, o percorrer, o deambular pelo espaço urbano e que, em simultâneo, fortaleciam as
suas continuidades, ou seja, aqueles que participavam na ação da cidade (Certeau, 1998) iam
definindo protocolos de identidade ao longo do espaço, transformando o existente numa con-
dição de cultura (Botta, 1996), dinamizando as relações entre o indivíduo, a comunidade e a
sociedade com o território. Práticas que, nesse sentido, iam criando uma diversidade de visões
individuais, criando e estabelecendo laços comuns, definindo um lugar com singularidade.
Para além de todas as manifestações enunciadas, o campo da arquitetura ensinava, há
muito, a necessidade de usar o espaço – para além da questão física, havia ainda a questão
dimensional espácio-temporal – para serem estabelecidas as inter-relações necessárias à
compreensão do território onde estava inserido o património cultural. No entanto, era por
se estabelecerem estas inter-relações entre o indivíduo-comunidade-sociedade com o terri-
tório, em diversos locais e em diversos momentos, que se permitia ir estabilizando a PUH
e salvaguardando a sua integridade e a sua autenticidade, que se assumiam dinâmicas14 no
processo evolutivo da criação de uma identidade do lugar e do seu contexto urbano.
No âmbito do PM estão a ser desenvolvidas e estudas algumas ferramentas, metodolo-
gias e taxonomias, que se pretendem operativas, para a aplicação da abordagem da PUH,
na gestão e no planeamento integrado dos recursos patrimoniais e das dinâmicas urbanas,
não tanto sobre as transformações que vão sendo realizadas sobre o território, mas sim,
sobre a orientação e o enquadramento, em que essas transformações devem ser realizadas.
31 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Apesar de cada caso ser único, o processo de candidatura de Coimbra à inscrição na LPM
não deixa de ser um laboratório, cujos resultados de experiências e dinâmicas próprias
podem ser um contributo válido para futuras candidaturas semelhantes ou, ainda, para se
poderem ajustar e melhorar metodologias e práticas utilizadas na gestão integrada de sítios
classificados em contexto urbano e em futuras intervenções urbanas. Conforme já foi refe-
rido, é sobretudo um investimento na transformação das abordagens e, consequentemen-
te, das metodologias de proteção e salvaguarda do património, do que sobre o património
em si e, por isso mesmo, podem ser extensíveis a qualquer contexto urbano.

A propósito do conceito integridade dinâmica, cf. (Zancheti & Loretto, 2015).


14
Universidade de Coimbra – Alta e Sofia: o sistema de vistas

Em todos os processos de candidatura à LPM, havia entidades externas e conselheiras


do Comité do PM, que faziam uma avaliação prévia dessas candidaturas e emitiam os respe-
tivos pareceres, que serão tidos em conta, para o veredito final sobre a inscrição do bem na
Lista. No caso de Coimbra, por a UC-AS ser um bem cultural, a entidade avaliadora foi o
ICOMOS, que antes de emitir o parecer final, questionou a candidatura sobre determinados
aspetos que haviam suscitado algumas dúvidas, aquando a visita dos membros do ICOMOS
a Coimbra, para uma Missão de Avaliação Técnica, realizada entre 17 a 23 de setembro de
2012 (ICOMOS, 2013, pp. 198–206).
Como já foi referido a extensão espacial do bem era considerável. No entanto, devido
à circunstância topográfica do bem proposto, a dimensão e os limites da área de proteção
do bem, bem como, a sua gestão futura foram questionados, por carta. Na segunda carta
trocada com a delegação de Portugal na UNESCO, datada de 20/12/2012, por considerar
que eram necessários alguns esclarecimentos relativos, precisamente, aos limites da área
de proteção do bem proposto, o ICOMOS questionava o Estado-membro se não seria de
reconsiderar expandir esses limites propostos devido à topografia do lugar e, assim, poder in-
cluir todas as áreas que são relacionadas visualmente com o bem, cujo futuro desenvolvimento
poderia vir a ter um impacto visual significativo (ICOMOS – Regina Durighello, 2012).
Um dos propósitos das questões levantadas colocava-se porque, topograficamente, sobre-
tudo na área candidata da Alta, o bem apresentava uma implantação estratégica e privilegiada
em relação ao seu contexto urbano. Além desse facto, as experiências dos casos do Wien-Mitte
(Viena) ou os enquadramentos da Torre de Londres e da catedral de Colónia, ainda não haviam
sido apagadas da memória. Tendo em conta a conjuntura dos desenvolvimentos teórico-concetuais
dos últimos anos no PM, bem como a evolução das exigências relativas à gestão futura dos
bens, desenvolvidas nas Operational Guidelines, a preocupação do ICOMOS mostrava-se sobre
a possibilidade de qualquer intervenção ou transformação potencial poder ocorrer no contexto
urbano do bem candidato mais abrangente e, assim, poder prejudicar a integridade do bem,
sobretudo, a visual e, por conseguinte, a integridade da paisagem urbana, da qual fazia parte
32 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

integrante e, no limite, pelas alterações que poderia impor à imagem da própria cidade.
A Associação RUAS15 (gestora do bem UC-AS) respondia a todas as questões e dúvidas, de forma
justificada, recorrendo aos regulamentos e instrumentos legais em vigor à data, nomeadamente:
15
A Associação RUAS – Recriar a Universidade, Alta e Sofia foi fundada em janeiro de 2012, pela UC, a
Câmara Municipal de Coimbra (CMC), a Direção Regional de Cultura do Centro, com poder executivo
e a SRU Coimbra Viva (Sociedade de Reabilitação Urbana) sem poder executivo, por serem as quatro
entidades com poderes e responsabilidades sobre a área candidata e, assim, poder ser feita uma gestão inte-
grada. A Associação RUAS contava com o trabalho de um quadro de técnicos, de áreas como arquitetura,
engenharia civil, arqueologia, relações internacionais, administração pública e economia, previstos para os
três Gabinetes Técnicos – de Estruturação Urbana (GTEU), de Acompanhamento do Plano (GTAP) e de
Informação, Valorização e Salvaguarda (GTIVS), afetos à UC ou à CMC. Além disso, a Associação RUAS
contaria com o apoio de um quadro de peritos de várias entidades externas à estrutura de gestão (como do
ICOMOS-Portugal, a título de exemplo). Cf. (RUAS – Raimundo M. Silva, 2012, 2013).
1) A Lei nº 107/2001, de 8 de setembro e o Decreto-lei nº 309/2009, de 23 de outu-
bro – que estabeleciam a lei de bases e a sua regulamentação sobre o regime de proteção e
valorização do património cultural português;
2) O Regulamento Municipal de Edificação, Recuperação e Reconversão Urbanística da
Área afeta à candidatura da Universidade de Coimbra a Património Mundial da UNESCO,
incluindo a Zona de Proteção, publicado por Aviso nº 2129/2012, no Diário da República
nº 30/2012, Série II de 10 de fevereiro e que, se encontrava em vigor desde Março de 2012;
3) O Plano Diretor Municipal de Coimbra (PDM), que estaria em fase de revisão,
sendo expectável a sua conclusão até ao final de 2013 e a sua publicação em 201416; e,
4) O Plano Estratégico para a Cidade de Coimbra, aprovado pela Câmara Municipal
de Coimbra (CMC) e publicado no Edital nº 21/2010, onde elencava os quatro grandes
objetivos estratégicos para Coimbra17, com a definição das Áreas de Reabilitação Urbana.
Estes quatro instrumentos seriam, de acordo com a resposta da RUAS, suficientes e
adequados para garantir a devida proteção e salvaguarda do bem UC-AS, da sua área de
proteção e da sua área urbana adjacente18. Tal facto era corroborado pelos limites definidos
nos vários instrumentos legais em vigor e pela sua gestão concentrada e integrada numa só
entidade, a Associação RUAS. Além disso, anexava um estudo, para justificar que a combi-
nação entre a proteção do bem UC-AS, com a proteção prevista no PDM – a definição da
zona do Centro Histórico com os seus três graus de proteção – era a adequada e assegurava
as preocupações sobre os possíveis impactes visuais que pudessem ser equacionados por
qualquer intervenção na área urbana em causa.
Esse estudo baseava-se no sistema de vistas ou tudo aquilo que era visível a partir de
vários lugares (viewshed), constituído por três elementos essenciais: um observador, um
ponto ou lugar de observação e uma área de observação.
A área de observação era determinada com recurso a uma ferramenta de projeto urbano
e de arquitetura paisagística – a Zona de Influência Visual (Zone of Visual Influence – ZVI),
também denominada por Zona de Impacto Visual –, que se caracterizava por considerar a
área geográfica que era visível a partir de um determinado ponto, a partir da qual se estabelecia 33 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
uma bacia visual (visual bay), que era a área física, na terra, na água ou no ar, visível pelo olho
humano (assumido, geralmente, com 1,65 metros de altura) a partir de determinado ponto
ou lugar (LI & IEMA, 2013). Com a aplicação da ZVI verificavam-se as áreas privilegiadas de

16
Tal como previsto, o PDM era anunciado por Aviso nº 7635/2014, no Diário da República nº 124/2014,
Série II de 1 de julho.
17
Os objetivos estratégicos estipulavam: «A) desenvolvimento integrado dos activos da saúde, numa envolvente
empresarial dinâmica; B) densificação económica da região, com empresas integrando um elevado grau de
I&D; C) revitalização de Coimbra como destino turístico diferenciado; D) redefinição urbana da Cidade, po-
tenciando os actuais vazios urbanos e privilegiando a centralidade do Rio Mondego» (CMC, 2010, pp. 21–24).
18
A inscrição da UC-AS na LPM, em 22/06/2013, era publicada no Anúncio nº 14917/2013, no Diário da
República nº 236/2013, Série II-B de 5 de dezembro, constituindo-se como mais um instrumento legal de
proteção e salvaguarda da área PM.
visualização e perceção, entre um lugar e o seu contexto territorial, permitindo, assim, avaliar
e determinar as áreas sujeitas a um maior impacte visual em caso de intervenções urbanas.
Cada bacia visual era definida e registada segundo as coordenadas do ponto ou lugar de
observação, sendo que, para o caso de estudo tenham sido escolhidos os lugares preferenciais de
visualização sobre o bem classificado, como o caso de ruas, praças, percursos, eixos viários, mi-
radouros, edifícios e espaços públicos, terraços, varandas ou colinas; mas também seriam identi-
ficados os lugares preferenciais de visualização do contexto urbano a partir do bem classificado.
Os procedimentos metodológicos aconteciam por várias etapas. A primeira baseava-se
nos levantamentos cartográficos, topográficos e altimétricos do existente em modelação tri-
dimensional, constituindo um Modelo Digital de Superfície (Digital Surface Model – DSM)
incluindo todos os detalhes existentes à superfície terrestre (volumes construídos e vegeta-
ção), onde os dados eram recolhidos com o recurso a um Sistema de Informação Geográfica
(Geografic Information System – GIS) e tecnologia LiDAR de leitura laser e introduzidos no
modelo digital. Na segunda etapa, com o modelo tridimensional estabelecido, eram feitas
as leituras de amplitude de visibilidade para vários pontos ou lugares de observação, previa-
mente identificados, ou seja, para cada lugar escolhido era definida uma bacia visual, que
determinava o alcance visual territorial desse lugar. Posteriormente, eram feitas análises aos
dados recolhidos e, através de sobreposições de resultados, verificavam-se as manchas que,
em simultâneo, correspondiam à bacia visual comum e, assim, definir uma maior ou menor
amplitude visual entre os vários pontos de visualização, definindo a magnitude da ZVI.
As conclusões do estudo assumiam que a área de maior impacte visual passível de ser preju-
dicial ao bem UC-AS, correspondia à coincidência de área entre a magnitude da ZVI e os limites
definidos pela área de proteção do Centro Histórico, definido no PDM, ficando, desta forma,
justificada a não necessidade de expansão dos limites da área de proteção do bem UC-AS.
Todavia, a possibilidade de utilização desta ferramenta de projeto de um modo perma-
nente, pelo menos, nestes contextos urbanos, deveria ser equacionado, tendo em conta as
vantagens que apresenta (Capela & Murtinho, 2014).
O sistema de vistas estabelece o princípio do ver e ser visto em simultâneo, assumindo
34 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

a sua valência pública e introduz o conceito de inter-visibilidade (Lalana Soto & Santos y
Ganges, 2011), em que a vista sobre o bem é essencial mas, a vista a partir do bem, também
é relevante para a sua compreensão e identidade dentro do seu contexto urbano (Fig. 3).
A inter-visibilidade acrescenta uma complexificação na abordagem da compreensão e do en-
tendimento do bem, uma vez que, a importância das vistas para além de refletirem princípios
de composição visual inerentes à valência material do bem em si, também refletem os valo-
res19 associados ao bem, mais subjetivos e sujeitos a escolhas e interpretações (Beaudet, 2008).
19
Relembre-se que o tema geral do congresso científico e Assembleia Geral do ICOMOS, realizado em
Florença entre 10 e 14 de novembro de 2014, tinha como título Heritage and Landscape as Human Values,
sendo que o seu quinto sub-tema abordava, precisamente, Emerging tools for conservation practice, onde esta
problemática estava a ser debatida. Cf. (Capela & Murtinho, 2014).
Figura 3. Vista sul da Torre da UC. Fotografia: FG+SG, UC.

Todavia, a inter-visibilidade também pode ser a democratização do conhecimento sobre


o valor urbano do bem, a partir de espaços com vista sobre o bem classificado, aumentando
os olhos que veem e observam20. Nesse âmbito, deveriam ser promovidos determinados locais
dentro da área pré-estabelecida – neste caso, a plataforma Alta/Baixa/Santa Clara – tendo
em conta a magnitude da sua ZVI, de modo a serem identificados lugares de observação 35 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
relevantes, não só de compreensão do bem UC-AS no seu contexto urbano, como também,
de monitorização e de vigilância sobre potenciais transformações da Lusa Atenas. A definição
desses lugares deveria ter em consideração todos aqueles que demonstraram ser relevantes
para a construção cultural que foi feita sobre o território, ao longo dos séculos, enquanto
suporte da sua identidade cultural – a Lusa Atenas –, estabelecendo a geograficidade das suas
população (Fig. 4). Tais lugares de observação relevantes deveriam ser de acesso público livre,
garantindo a continuada realização de ações de observação pela população em geral, poten-
ciando a monitorização e a vigilância das possíveis transformações ocorridas sobre a PUH.
Relembra-se, a propósito, a premissa de Jane Jacobs que defendia que a segurança da cidade depende dos
20

olhos que por ela correm (Jacobs, 1994).


Figura 4. Vista sobre a colina da Lusa Atenas, a partir do Choupalinho. Fotografia: Manuel Ribeiro, UC.

Qualquer análise técnica de monitorização, feita com recurso ao sistema de vistas em


fase de projeto, pode proteger o bem e o seu contexto urbano de uma futura intervenção
que pusesse em causa o equilíbrio da sua PUH. Esta metodologia de projeto pode ser utili-
zada como uma forma preventiva de proteção e salvaguarda do património, permitindo ser
uma ferramenta operativa na gestão e manutenção dos bens classificados e do seu território
de influência, mas também, na sustentabilidade do seu desenvolvimento expectável.

Considerações finais
36 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Este trabalho centrou-se sobre a abordagem da PUH, no âmbito da gestão de bens


inscritos na LPM, permitindo que fosse possível pensar sobre os recursos do território de
um modo integrado ao nível do seu planeamento e da sua gestão sustentável.
Num primeiro momento, considerou-se a noção da PUH, que vem sendo abordada e
desenvolvida ao longo das discussões e textos promovidos no âmbito do PM, pese embora,
só com a discussão do caso de Viena, em 2005, se tenha assumido teórica e concetual-
mente; e, depois, com a Recomendação sobre a PUH, de 2011 da UNESCO, onde seria
promovida uma abordagem multidisciplinar da gestão dos recursos urbanos, assente no
património, sobre uma plataforma de conjugação de vários layers multifuncionais.
A promoção da continuidade espacial urbana e a incorporação das transformações ne-
cessárias para responder às novas exigências de uma vida contemporânea deviam ser assu-
midas sem prejuízo de perturbar o equilíbrio da PUH da cidade. Desta forma, no exercício
de desenho da cidade, devem ser contemplados vários layers, que a abordagem da PUH
permite correlacionar. Por um lado, pela continuidade do espaço, que pode ir desfazendo as
barreiras e as fronteiras urbanas, que ainda subsistem no território, que deve ser equaciona-
do pela gestão e pelo planeamento do espaço urbano. Por outro lado, pela garantia de que
as manifestações e representações sociais, bem como, os novos modos de vida e de consumo
da sociedade contemporânea possam ser estabelecidos e incorporados nas relações socieda-
de-território, por ações de conhecimento, compreensão, apropriação, uso e pertença.
De certa forma, como foi referido, a grande mais-valia que a PUH introduz na abor-
dagem da gestão e do planeamento do património em contexto urbano é a promoção
para uma integridade dinâmica e considerar, em simultâneo, o binómio relações-ações
verificadas entre a população e o território. Assim, numa lógica de promover o desenvolvi-
mento integrado e sustentável do contexto urbano, assume esses novos modos de vida da
sociedade contemporânea como parte da dinâmica da complexidade que os espaços urba-
nos enfrentam hoje. Talvez por haver essa interação dinâmica e abrangente entre os vários
layers multifuncionais da PUH (quer os materiais, quer os imateriais) possa ser considerado
que a sua abordagem se arrisque a ser extrapolada para outros contextos patrimoniais que
não os do PM ou, até mesmo, poder ser considerada para todos os contextos urbanos
independentemente da sua classificação patrimonial.
Num segundo momento considerou-se o caso da candidatura da UC-AS para inscrição
na LPM, o que aconteceu em 22 de junho de 2013 e contemporâneo ao processo de defi-
nição da PUH, como um laboratório de experiências privilegiado em acontecimentos rele-
vantes para o tema, nomeadamente, pela intervenção e reabilitação de espaços e edifícios
na sua área de influência urbana, potenciados pela candidatura e pelo título PM alcançado.
Topograficamente, o bem classificado UC-AS tem uma localização privilegiada sobre o
37 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
seu contexto urbano. E tal foi considerado essencial para a criação da sua identidade ao logo
dos séculos, associada a um epíteto cuja noção remonta à estabilização da Universidade na
cidade – a Lusa Atenas, constituindo-se a matriz cultural do território da cidade. Por ser
um espaço de reconhecimento identitário e com uma forte valência cultural, não só pela
vertente material, mas também pela vertente imaterial, está sujeito a todas as pressões espe-
culativas e de globalização, que são coincidentes aos centros urbanos, sobretudo, europeus
com as mesmas características.
Por esta conjuntura, a PUH pode contribuir para a transformação das abordagens que
se entendem prejudiciais ao contexto urbano onde o bem está inserido e, consequente-
mente, questionar as metodologias de proteção e salvaguarda do património, neste caso
PM, tendo em conta a sua gestão sustentável para o futuro. Mais do que pensar sobre o
património em si próprio, a PUH pensa a sua abordagem e a sua integração nos novos
modos de vida e de consumo da sociedade contemporânea e, por isso, a pertinência da sua
aplicação poder ser extensível a qualquer contexto urbano.
Desse ponto de vista, tornam-se importantes os procedimentos e metodologias, desde
a análise, a avaliação e a monitorização dos processos de intervenção urbana, para uma
gestão integrada e cada vez mais eficaz das áreas patrimoniais em contexto urbano. O PM
tem promovido debates internacionais no sentido de serem desenvolvidos instrumentos,
ferramentas e metodologias capazes de serem adaptáveis às necessidades de cada caso.
Para finalizar, este trabalho sublinha uma proposta baseada no sistema de vistas, uma
ferramenta de projeto urbano e da arquitetura paisagística, cuja utilização em contex-
to urbano com forte ímpeto cultural, assente no património construído, pode resultar
numa possibilidade de auxílio à gestão e planeamento do bem classificado e da sua área
de influência, tendo em conta as vantagens que foram equacionadas.
O sistema de vistas pode vir a contribuir para que esta abordagem da PUH sobre o
património em contexto urbano, que ainda está a dar os seus primeiros passos, possa ser
uma das mais operativas para a gestão do património em espaço urbano.
Pela sua abrangência, o sistema de vistas pode constituir-se como uma ferramenta
preventiva sobre potenciais intervenções que causem prejuízo sobre o sistema urbano onde
o bem classificado está inserido e que, geralmente, é mais vulnerável a essas situações.
Simultaneamente, o sistema de vistas pode contribuir para uma maior variação das ações
de observação do bem classificado, potenciando, por um lado o seu conhecimento e enten-
dimento e, por outro, a monitorização e vigilância sobre a sua PUH. Portanto, equacionar
lugares que possam ser dinamizados para a observação do bem PM e da sua área urbana de
influência, pode ser um ativo no auxílio de uma gestão integrada e integrante do bem para
o futuro, assim como, integrar as vistas, os eixos visuais e os pontos ou lugares de reco-
nhecimento desses espaços e dos marcos territoriais urbanos nas dinâmicas da gestão e da
38 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

manutenção do bem, é um contributo importante para proteger e salvaguardar o sistema


urbano na sua totalidade.
É por todas estas novas perspetivas centradas na maior qualidade de vida das popu-
lações, que no futuro, no campo da gestão do património seja expectável que haja mais
desenvolvimento ao nível de uma transformação de pensamento e de consciência sobre
as dinâmicas e sinergias criadas pelos processos patrimoniais, que promova, consequente-
mente, uma transformação nas abordagens e nas metodologias de proteção e salvaguarda
do património, do que propriamente sobre o património em si.
Referências

Bandarin, F., & Oers, R. van. (2012). The historic urban landscape: managing heritage in an urban
century. Chichester, West Sussex, UK ; Hoboken, NJ: Wiley Blackwell.
Beaudet, G. (2008). La mise en application de l’approche typo-morphologique protège-t-elle les
perspectives visuelles importantes?/Does the application of a typo-morphological approach
protect important views? In C. Cameron & C. Boucher (Eds.), Le Patrimoine Mondial:
Définir et protéger les «perspectives visuelles importantes»/ World Heritage: Defining and protecting
«Important Views» (pp. 67–75). Montréal, Canada: Université de Montréal.
Berque, A. (1998). Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problemática para uma geo-
grafia cultural. In R. L. Corrêa & Z. Rosendahl (Eds.), Paisagem, tempo e cultura (pp. 84–91).
Rio de Janeiro: EdUERJ.
Câmara Municipal de Coimbra (Ed.). (2010). Plano Estratégico de Coimbra. Documento base, 2 de
Setembro de 2009. In https://www.cm-coimbra.pt/index.php/servicos/documentacao-geral/
menu-area-de-ficheiros/urbanismo/p-e-p-u/pepu-fevereiro-2010/2922-documento-base/file
Cameron, C. (2008). Comment le Comité du patrimoine mondial aborde-t-il la définition et la pro-
tection des «perspectives visuelles importantes»?/ How the World Heritage Committee deals with
defining and protecting “important views? Em C. Cameron & C. Boucher (Eds.), Le Patrimoine
Mondial: Définir et protéger les «perspectives visuelles importantes»/ World Heritage: Defining and
protecting «Important Views» (pp. 22–31). Montréal, Canada: Université de Montréal.
Capela de Campos, J. (2017). A Paisagem Urbana Histórica como valor de projeto urbano. In P.
Fidalgo (Ed.), Estudos de Paisagem. (Vol. III, pp. 67–68). Lisboa: IHC-FCSH da Universidade
Nova de Lisboa.
Capela de Campos, J., & Murtinho, V. (2017a). O passado em permanente construção. O pa-
trimónio em transformação. O caso da Universidade de Coimbra – Alta e Sofia Património
Mundial. In Cadernos de Geografia, (36). No prelo.
Capela de Campos, J., & Murtinho, V. (2017b). Património Mundial: democracia e diversidade. In
Estudos do Século XX, (17), 145–161. https://doi.org/https://doi.org/10.14195/1647-8622_17_8
Capela, J., & Murtinho, V. (2014). A World Heritage Application as an opportunity for urban in-
tervention: the case of Coimbra. In 18th ICOMOS General Assembly and Scientific Symposium
«Heritage and Landscape as Human Values»: Theme 5 - Emerging tools for conservation practice, 39 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
10-14 november, Florença, Itália.
Capela, J., & Murtinho, V. (2015). The dual logic of heritage in the field of architecture. In Segundo
Congreso Internacional de Buenas Prácticas en Patrimonio Mundial (pp. 124–145). Menorca:
Universidad Complutense de Madrid.
Certeau, M. de. (1998). A Invenção do cotidiano: artes de fazer (3a). Petropolis: Editora Vozes.
Conzen, M. R. G. (2004). Thinking about Urban Form. Papers on Urban Morphology, 1932–1998.
(M. P. Conzen, Ed.). Berna: Peter Lang.
Corboz, A. (1983). Le territoire comme palimpseste. In Diogène, 31(121), 12–34. https://doi.org/
http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/039219218303112102
Corner, J. (2002a). Origins of Theory (1990). In S. R. Swaffield (Ed.), Theory in landscape architecture:
a reader. (pp. 19–20). Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
Corner, J. (2002b). Theory in crisis (1991). In S. R. Swaffield (Ed.), Theory in landscape architecture:
a reader. (pp. 20–21). Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
Corrêa, R. L. (2013). O urbano e a cultura: alguns estudos. In Z. Rosendahl & R. L. Corrêa (Eds.),
Geografia cultural uma antologia. (Vol. II, pp. 57–69). Rio de Janeiro: Editora da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro.
Cosgrove, D. E. (1998). Social formation and symbolic landscape. Madison, Wis: University of
Wisconsin Press.
Cosgrove, D. E. (2002). Landscape as cultural product (1984). In S. R. Swaffield (Ed.), Theory in
landscape architecture: a reader. (pp. 165–166). Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
Dias, P. (2010). Coimbra. A cidade do conhecimento e do mito da Lusa-Atenas. Coimbra: CC-Turismo
de Coimbra, EM.
Doxiadis, C. A. (1965). Arquitectura em transição. Coimbra: A. Amado Editor sucessor.
ICOMOS. (2013). 2013 Evaluations of nominations of cultural and mixed properties to the World
Heritage List. (ICOMOS Report for the World Heritage Committee: 37th ordinary session,
Phnom Penh, June 2013 No. WHC-13/37.COM/INF.8B1). Paris: ICOMOS.
ICOMOS – Regina Durighello. (2012, Dezembro 20). GB/MA 1387: World Heritage List 2013.
University of Coimbra – Alta and Sofia (Portugal) – Additional information (II).
Jacobs, J. (1994). The death and life of great american cities. London: Penguin Books.
Jokilehto, J. (2010). Notes on the definition and safeguarding of Historic Urban Landscape. In City
& Time, 4(3), 41–51.
Lalana Soto, J. L., & Santos y Ganges, L. (2011). El problema de las vistas relevantes en la conser-
vación del patrimonio urbano. In VIII Congresso Ibérico de Urbanismo «A mudança do ciclo: um
novo urbanismo», 27-29 outubro 2011, Covilhã: Universidade da Beira Interior.
Landscape Institute, & Institute of Environmental Management and Assessment (Eds.). (2013).
Guidelines for landscape and visual impact assessment (Third edition). London ; New York:
Routledge, Taylor & Francis Group.
Le Bossé, M. (2013). As questões de identidade em geografia cultural – algumas concepções con-
temporâneas. In Z. Rosendahl & R. L. Corrêa (Eds.), Geografia cultural uma antologia (Vol. II,
pp. 221–232). Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Lynch, K. (1989). A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70.
Macedo, M. (2006). A conquista do terceiro espaço Uma abordagem ao ensanche oitocentista de
40 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Coimbra. In Monumentos 25 – Dossier Coimbra, da Rua da Sofia à Baixa, (25), 122–129.


Meyer, E. (2002). Situating modern landscape architecture (1992). In S. R. Swaffield (Ed.), Theory
in landscape architecture: a reader. (pp. 21–31). Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
Oers, R. van, & Roders, A. P. (2012). Historic cities as model of sustainability. In Journal
of Cultural Heritage Management and Sustainable Development, 2(1), 4–14. https://doi.
org/10.1108/20441261211223298
Relph, E. (2008). Place and placelessness. (1976 reprinted). London: Pion.
Rossa, W. (2001). Diver(sc)idade urbanografia do espaço de Coimbra até ao estabelecimento definitivo
da universidade. (doutoramento). Darq, FCTUC, Coimbra.
Rössler, M. (2015). The landscape approach – a global context for sustainability. In M.-T. Albert (Ed.),
Perceptions of Sustainability in Heritage Studies (Vol. 4, pp. 59–69). Berlim: Walter de Gruyter.
RUAS – Raimundo M. Silva. (2012, Outubro 18). University of Coimbra – Alta and Sofia, World
Heritage Nomination. Additional Information (requested by ICOMOS). October 2012.
RUAS – Raimundo M. Silva. (2013, Fevereiro 25). University of Coimbra – Alta and Sofia (Portugal)
World Heritage List 2013. Additional Information (II) requested by ICOMOS. February 2013.
Sonkoly, G. (2011). Historic Urban Landscape – A Conceptual Analysis. In International
Conference of the Department of Urban Planning and Design and the Foundation for Urban
Architecture, Budapest University of Technology and Economics, & Department of Urban
Planning and Design (Eds.), Urban renewal: essays on urban design = Városmegújítás : városépí-
tészeti tanulmányok (pp. 92–101). Budapest: BME Urbanisztika Tanszék.
Sonkoly, G. (2012, Dezembro). The meanings of Historic Urban Landscape. In Perspectives –
Journal Réseau Français des Instituts d’Études Avancées, (8), 20–21.
Swaffield, S. R. (Ed.). (2002). Theory in landscape architecture: a reader. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press.
UNESCO. (2009). Executive Board Document 181 EX/29, April 2009. UNESCO.
UNESCO. (2011, Outubro 11). Resolution 15 – Records of the General Conference 36th session.
UNESCO.
Veldpaus, L. (2015). Historic Urban Landscapes: framing the integration of urban and heritage plan-
ning in multilevel governance. Eindhoven: Eindhoven University of Technology.
World Heritage Committee. (1994, Outubro 13). WHC-94/CONF.003/INF.6: Expert Meeting on
the «Global Strategy» and thematic studies for a representative World Heritage List (UNESCO
Headquarters, 20-22 June 1994).
World Heritage Committee. (2005, Setembro 23). WHC-05/15.GA/INF.7: Vienna Memorandum.
World Heritage Committee. (2013, Maio 7). WHC-13/37.COM/20: Decisions adopted by the World
Heritage Committee at its 37th session (Phnom Penh, 2013). UNESCO-WHC.
Zancheti, S. M., & Loretto, R. P. (2015). Dynamic integrity: a concept to historic urban landscape.
In Journal of Cultural Heritage Management and Sustainable Development, 5(1), 82–94. https://
doi.org/https://doi.org/10.1108/JCHMSD-03-2014-0009

41 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial


A Fundação do Mosteiro de
Santa Clara-a-Nova de Coimbra
Propagandística política, tratadística arquitectónica e engenharia
militar entre a Dinastia Filipina e a Dinastia de Bragança

Pedro Tavares
Sofia Salema
Centro da História da Arte e Investigação Artística (CHAIA), Departamento de
Arquitectura da Universidade de Évora
Fernando Baptista Pereira
Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes de Lisboa (CIEBA),
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa,

O presente artigo incide sobre os antecedentes da fundação do Mosteiro de Santa Clara-


-a-Nova de Coimbra, caracterizado pela tratadística arquitectónica e militar da época da
Restauração, partindo da pesquisa documental propomos contextualizar a sua edificação.
O Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, embora sendo uma obra de vulto da Restauração,
encontra-se parcamente estudado. Esta obra promove a propagandística político-religiosa
do Culto da Rainha Santa Isabel de Portugal, que a Casa de Bragança perpétua após os
Habsburgo. Numa altura em que as obras do Reino eram condicionadas pelas despesas da
guerra, sendo que as de maior relevância eram de carácter militar e erigidas nas áreas geo-
gráficas mais sensíveis da defesa territorial. O progressivo assoreamento do velho conven-
to, aliado à necessidade de afirmação política da nova dinastia, impulsionam D. João IV a
43 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
ordenar que se lance a primeira pedra da construção do novo Mosteiro de Santa Clara de
Coimbra (1649), na qual determina que em língua latina se refira à Rainha Santa Isabel
como sua Avó e Senhora.
Na documentação relativa à construção do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova verifica-se
que plantas originais e infra-estruturas, são da autoria de Frei João Turriano. (Silva 2000)
Frei Turriano é filho de Leonardo Torriani, um dos mais notáveis engenheiros militares
da corte de Filipe I de Portugal, descendente de uma família que já tinha adquirido fama
no panorama internacional ao serviço do Imperador Carlos V. Em 1598, após a morte
de Filipe Terzi, Leonardo é nomeado Engenheiro-mor do Reino, projectou e deu pareceres
sobre as fortificações na defesa da Barra do Tejo, entre as quais o Forte de São Lourenço
da Cabeça Seca, no qual foi sucedido após a sua morte pelos seus filhos, Diogo e João
Turriano. (Boiça and Barros 2004)
Não obstante ao regime de observância, seguindo a longa tradição de herança de cargos
públicos, Fr. Torriano recebe de D. João IV o cargo de Engenheiro-mor do Reino. Durante
treze anos traça diversas casas religiosas. O conhecimento arquitectónico de Fr. Turriano
pode verificar-se no estudo do catálogo da sua biblioteca, herdada de seu pai, e onde se
destacam diversos tratados arquitectónicos, como de Andrea Palladio e Sebastiano Serlio,
os quais estudou e anotou com minúcia. De facto verifica-se uma correlação entre estes e
a solução adoptada no cenóbio Isabelino de Coimbra. (Abreu 2003)
O Mosteiro de Santa Clara-a-Nova é a última obra de vulto de arquitectura de Frei
Turriano, “Esta imponente massa arquitectónica, que segue o modelo profano dos palácio-bloco
do final da centúria antecedente, é obra importante de síntese entre o modelo «chão» da arqui-
tectura religiosa e certos pressupostos eruditos da arquitectura aristocrática de sinal Herreriano,
que pela sua expressiva ambiguidade de novo nos recorda o peso da engenharia militar em tais
empresas.” (Serrão 2003)

A propagandística do Culto da Rainha Santa Isabel de Portugal

Nos séculos xiii e xiv, promoviam-se na cristandade as relações entre nobreza, santi-
dade e caridade, especialmente relacionadas com as Ordens Franciscanas. Diversas casas
de nobreza seguiam de perto o exemplo de Santa Isabel da Turíngia, em particular os seus
descendentes. A obtenção da canonização, e por consequência do status de beata stirps,
enfatizava a importância político-religiosa destas famílias, cuja hagiografia frequentemen-
te utilizavam na Diplomacia. Entre seus descendentes canonizados figuram, São Luís de
França, São Luís de Anjou e a Rainha Santa Isabel de Portugal. (Dupuy 2002)
O culto da Rainha Santa Isabel nasce por vox populi, foi posteriormente cultivado
44 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

pelos seus descendentes dinásticos. Os fundadores da Dinastia de Avis tinham presente a


sua importância, sobretudo em alturas de maior instabilidade política. A propaganda é de
facto intensa no propósito de se legitimarem, como foi o caso da escolha do Convento de
Santa Clara de Coimbra para as núpcias de D. Duarte I e Leonor de Aragão. (Rodrigues
et al. 2014) Também o Rei D. Manuel I irá utilizar a sua antepassada para reforçar a sua
legitimidade, obtendo do Papa Leão X a beatificação a 15 de Abril de 1516, sendo o culto
autorizado localmente.
A devoção da Casa de Avis à Rainha Santa Isabel é evidente na procissão solene que
D. João III e Catarina de Áustria organizam ao túmulo a 20 de Janeiro 1554, coincidindo
com o nascimento de D. Sebastião. Este augúrio impulsiona a propagação do culto por todo
o reino, sendo este anuído pelo Papa Paulo IV em 1556, a pedido de D. João III.(Abreu
2003) D. Catarina de Áustria durante a regência irá continuar a promover e divulgá-lo. Será
sobre a sua influência que se funda a Confraria da Rainha Santa Isabel de Portugal. Este é
o início de uma intrínseca e longa relação entre o culto e as Infantas e Rainhas Habsburgo,
resultando na sua disseminação pelo Sacro-Império e a ambicionada canonização.
Os Filipes institucionalizaram a inacessibilidade e invisibilidade do Rei como princí-
pio fundamental político. Na corte Filipina as mulheres Habsburgo, cuja missão era ga-
rantir as relações entre os diferentes ramos da Casa de Áustria, partilhavam a esfera privada
do monarca, facilitando-lhes o exercício do poder na política do Império. Tal foi o caso
de Joana de Áustria (mãe de D. Sebastião) regente do reino de Espanha e Margarida de
Áustria (Duquesa de Mântua) Vice-Rainha de Portugal, entre outras. Porém a intervenção
política nem sempre dependia de uma estratégia directa, nesse caso utilizavam redes de in-
fluência, onde família, religiosidade e política se cruzavam, não só na esfera privada, como
é o caso das Descalças Reais, como na pública; através de cronistas que as retractavam
a partir de estereótipos religiosos femininos, os quais serviam para derrubar as barreiras
políticas dos Validos.
O culto da Rainha Santa Isabel foi também utilizado como estratégia para aplacar
as tensões políticas resultantes da inacessibilidade do monarca, que se prolongaram até à
Restauração. Temos como exemplo Isabel de Bourbon, esposa de Filipe III de Portugal,
a qual foi particularmente devota à Rainha Santa Isabel, actuando igualmente na esfera
política como pacificadora entre povos. Esse papel de mediadora dos conflitos, particu-
larmente entre seu irmão e esposo (respectivamente reis de França e Espanha), reforçou
a sua oposição ao Valido Olivares. Muito dedicada às Clarissas (tal como todas as rainhas
da monarquia espanhola), após a rendição de Breda e a canonização da Rainha Santa, em
Junho de 1625 celebra estes acontecimentos na Corte em Madrid, numa procissão religio-
sa. Como dita a tradição, a imagem da Santa surge transfigurada na soberana, assumindo
assim suas virtudes e feitos, vestida com roupas tecidas pela própria e adornada com as suas
45 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
jóias.(Pérez Cantó et al. 2015)
Em 1640, na sequência de conflitos internos entre a coroa, nobreza, aristocracia e a
burguesia cristã-nova, inicia-se a Restauração surgindo a necessidade de legitimação tanto
ao nível interno como externo da Dinastia de Bragança. O integrismo antijudaico (que
identificava o judaísmo com Madrid), a devoção Mariana Imaculista, o Messianismo e
a Eucaristia, serão as correntes de culto presente na liturgia de legitimidade. O Culto da
Rainha Santa Isabel, cuja disseminação extra-peninsular já era evidente, passou também a
integrar o programa político-religioso dos Bragança. (Gomes 1987)
Em 1649, D. João IV ordena que se lance e inscreva na primeira pedra da construção do
novo Mosteiro de Santa Clara, na qual determina que se refira à Rainha Santa Isabel como
“ sua Avó e Senhora”. Numa altura em que as obras nacionais eram condicionadas pelas des-
pesas da Guerra da Restauração, a construção deste imponente cenóbio, estende-se durante
os reinados dos próximos cinco monarcas, reflecte o programa político-religioso deste culto.
A traça do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova é testemunho da Restauração. Atribuída
a Frei João Turriano, segue as orientações régias da Igreja ser sumptuosa, pois deveria al-
bergar, para além da Rainha Santa “ (…) no mais superior lugar (…) ”, a sepulturas de reis.
O imponente e austero cenóbio, rematado por Torreões ao gosto do de Filipe Terzi, marca
a paisagem da margem esquerda do Mondego.

A consolidação do ensino da arquitectura militar Portuguesa;


Dos Áustria aos Bragança

Desde 1514 que o ensino da cosmografia era leccionado no Armazém da Guiné e da Índia.
Em 1562 D. Catarina de Áustria oficializa a Escola de Moços Fidalgos do Paço da Ribeira. A esco-
la preparava jovens nobres, entre os quais D. Sebastião, no estudo da matemática, cosmografia,
geometria e arquitectura. Em 1576 António Rodrigues (Mestre de todas as Obras Régias e das
Obras de Fortificação) produz para as aulas diversos tratados manuscritos e sebentas das aulas
teóricas de Arquitectura Militar, com base em Vitrúvio e nos Primo Libro e Secondo Libro di
Prespectiva di Sebastian Serlio Bolognese. Esta estrutura oficial de ensino, consolidada desde
1562 em Portugal, foi transferida para Madrid por Filipe I e Juan de Herrera, após a união da
Coroas, criando no Alcázar a Academia de Matemáticas e Arquitectura (1583). (Moreau 2011)
Durante o Reinado de Filipe I é criada a Aula de Architectura do Paço da Ribeira,
ou Aula do Risco (1594), cujo primeiro mestre de Arquitectura foi Filipe Terzi, seguido
por Nicolau de Frias (1598), Matheus do Couto o velho (1631) e António Torres. Era
composta por três alunos remunerados, com experiência suficiente em arquitectura, que
prestavam serviço ao Gabinete de Obras D’el Rei. Estes aprendiam as questões teóricas da
46 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Arquitectura Civil, Religiosa, Militar e específicas do desenho, espelhadas no Tractado de


Architectura quê leo o Mestre, & archit Mattheus do Couto o velho (1631). (Moreau 2011)
A par da Aula do Risco funcionava desde 1590 a Aula de Esfera do Colégio de Santo Antão.
O Colégio, fundado pelos Jesuítas quando estes se instalaram em Portugal (1545), preparava
missionários para a Índia, tendo sido frequentado por muitos estrangeiros que procuravam
o ensino náutico e o estudo da matemática acima do nível elementar. Estudaram neste
Colégio Baccio da Filicaia (engenheiro-mor do Brasil), João Teixeira Albernaz (o velho),
Bartelomy Zanit, João Nunes Tinoco e Luís Serrão Pimentel. (Moreau 2011)
A Guerra da Restauração tornou imperativa a defesa territorial, o que obrigou à con-
tenção dos gastos e ao contributo para o esforço de guerra. Preservar as fronteiras exigia
a mobilização de homens e recursos, para reorganizar e modernizar o aparelho defensivo
terrestre e marítimo. Diversos engenheiros militares estrangeiros preservaram as suas fun-
ções, outros foram transferidos pela Coroa, no entanto a sua substituição era tratada com
prudência. Teriam que ter habilitações e sobretudo serem acima de qualquer suspeita, tal
como exemplifica o Decreto do Conselho de Guerra de 1643, que determina que nunca
fosse confiada a cidadão estrangeiro a disposição da planta de defesa da Barra Do tejo. Esta
medida reflectia igualmente a má experiencia que o monarca teve com arquitectos france-
ses na fortificação de Cascais, recebiam ordenados avultados e faziam e desfaziam muitas
vezes as obras, com graves prejuízos para os cofres do reino. (Boiça and Barros 2004)
Uma das medidas adoptadas por D. João IV para diminuir a dependência de profis-
sionais estrangeiros, foi a criação em 1641 da Aula de Artilharia e Esquadria no Paço da
Ribeira, direccionada para engenheiros militares. Em 1647 é transferida para a Ribeira das
Naus com o nome de Aula da Fortificação e Arquitectura militar (sendo também apelidada
de Academia militar ou Aula Régia). Até então o ensino baseava-se na experiência e no estu-
do de manuscritos dos próprios lentes, baseados em tratados estrangeiros. A Academia produziu
e imprimiu dois tratados de fortificação, o Methodo Lusitanico de Desenhar Fortificaçoens
(Luís Serrão Pimentel, 1680) e O Engenheiro Portuguez (Azevedo Fortes,1728). Os dois
séculos de experiência em fortificação e urbanismo proporcionaram a criação de um mé-
todo próprio de aplicação de conceitos teóricos desenvolvidos na Europa, impressos nestes
dois tratados. Para além da aprendizagem de conceitos teóricos de intervenção utilizavam
métodos de aprendizagem de tecnologias, através de medições, levantamentos de terrenos,
desenhos e construções de componentes de fortificação. (Moreau 2011)
Com a Restauração e a dificuldade de contractar engenheiros para as colónias, o en-
sino oficial de arquitectura militar portuguesa irá expandir-se para além-mar. No Brasil as
primeiras instituições são fundadas em Salvador (1696), Rio de Janeiro (1698), São Luís
(1699), Recife (1701) e Belém (1758). Apesar das Aulas Militar serem um reflexo do estímu-
lo renovador de Luís Serrão Pimentel, o ensino era directamente ligado à estrutura militar,
47 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
adoptando no entanto o modelo da Aula do Risco, do tempo dos Habsburgo.(Moreau 2011)

Os Torriani/Turriano;
Engenheiros e Arquitectos ao serviço dos Habsburgo e dos Bragança

No séc. xvi artistas italianos ao serviço da coroa moviam-se entre as cidades do Império
Habsburgo onde formavam as suas oficinas e famílias. Na época moderna não existiam
quaisquer garantias de cuidados sociais, indigentes dependiam da caridade que era um con-
ceito diferente do direito social actual. Os laços familiares eram a base sólida para negócios
eficazes, os quais se apoiavam na confiança e no bem da comunidade. Na maior parte dos
contractos verifica-se de facto que as responsabilidades legais e dívidas de determinado
artesão ou mestre eram também imputadas aos seus herdeiros, sendo muitas vezes estes
também assinados por suas esposas. Por sua vez o ingresso de familiares em cargos na Corte
era uma garantia da execução de dívidas que o Rei tivesse para com estes. A prática do
nepotismo era portanto usual, sendo considerada estabilizadora neste contexto político/
/social. Este é também o caso da família Turriano. (Zanetti 2015)
Juanelo Turriano (engenheiro, matemático, mecânico, astrónomo e Relojoeiro-Real;
Cremona1500 - Toledo 1585) era um artesão-empreendedor que se tornou uma celebri-
dade ao serviço de Carlos V e de Filipe I de Portugal, tendo durante essa altura construído
os relógios astronómicos mais importantes do Renascimento e participado na reforma do
calendário do Papa Gregório XIII. Nas obras reais de engenharia, foi o autor da maquinaria
hidráulica que elevava água do Tejo ao Alcázar de Toledo, os célebres Los Artificios (1569).
Era mester e amigo do arquitecto Juan de Herrera, tendo privado com personagens ilustres
como Joana de Áustria, sobretudo devido à fama internacional que adquiriu. (Garcia 2008)
O cargo de Relojoeiro Real obrigava Turriano a trabalhar continuamente para o Rei,
porém podia angariar e executar trabalhos para outros clientes, tendo patenteado durante
esse período diversas invenções para as cidades de Veneza, Mântua, Florença e Roma.
Como mestre da sua oficina, dependeu de um conjunto de oficiais de forma a poder
dar resposta às encomendas e ao Imperador. Estes oficiais teriam que dar assistência aos
relógios, à construção e administração dos equipamentos hidráulicos e inspecções técni-
cas (fundição, engenharia hidráulica, topografia, astronomias, entre outras). Entre eles
figuram diversos familiares sendo um deles o seu sobrinho Bernardino Turriano (futu-
ro capitão de Cremona), cujo filho Leonardo será anos mais tarde nomeado do Filipe I
Engenheiro Maior do Reino de Portugal.(Zanetti 2015)
Bernardino Turriano mudou-se para Toledo, a seguir ao nascimento do seu filho
Leonardo Torriani (Cremona 1558 - Lisboa 1628), para aprender os segredos do ofício do
48 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

seu tio, os quais desejava praticar com igual sucesso. É bastante provável que tenha pro-
curado também desta forma ser apresentado à Corte, tal como ocorreu a outros membros
da família. Efectivamente conseguiu trabalhos nas cortes de Emanuele Filiberto (Duque
de Sabóia) e Ottavio Farnese (Duque de Parma e Piacenza), sem no entanto ter adquirido
qualquer sucesso nas suas empresas. Porém, Bernardino deve ter capitalizado dos seus laços
familiares para ajudar o seu filho, é possível que este tenha sido recomendado na Corte em
Espanha por intervenção seu tio-avô Juanelo. (Vigano 2010)
Durante a Dinastia Filipina a importância da defesa dos territórios dos Habsburgo
implicou a contratação de diversos engenheiros-militares estrangeiros. Leonardo Torriani,
antes de ser chamado à Península Ibérica, já tinha adquirido fama internacional ao serviço
do Imperador Rodolfo II de Habsburgo. Em 1584 é nomeado por Filipe I de Portugal
Engenheiro do Rei na Ilha de La Palma, com instruções de construir um molhe e um tor-
reão. Passados três anos foi encarregado de visitar todas as fortificações do Arquipélago
das Canárias para avaliar e desenvolver o sistema defensivo. A maioria dos seus projectos
não será edificada, tendo no entanto publicado a Descripción e Historia del reino de las
Islas Canarias (As Afortunadas 1588-1590).(Fig. 1) Em 1590 efectua os primeiros aponta-
mentos de carácter meteorológicos sobre o Pico de Teide, sendo o pico do vulcão um dos
pontos mais altos desde a antiguidade.

Figura 1. Mapa das Ilhas das Canárias associadas ao signo zodiacal de Câncer, segundo Leonardo
Torriani, finais do séc. xvi. (fonte: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, cota Ms. 314, pág. 8.)

Das Canárias é Torriani é trasladado para Orán, Cartagena, Berbería e finalmente


49 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Portugal. Em 1596 começa a dirigir as obras da Fortaleza de Viana do Castelo. Com a morte
de Frei Giovanni Vicenzo Casale, é encarregado de dirigir as obras do Forte de São Lourenço
do Bugio e do Forte de São Julião da Barra do Tejo. Após a morte de Filipe Terzi (1598) é
nomeado Engenheiro-mor do Reino, cargo que ocupará durante 30 anos, e passa a dirigir
também as obras da Fortaleza de São Filipe de Setúbal. É-lhe também atribuído por diversos
autores o modelo original do Forte de São Marcelo na Capitania Real da Bahia (Brasil, 1612-
-1623), cujo projecto apresenta semelhanças ao Forte do Bugio. (Moreau 2011) Projectou
igualmente a dragagem do estuário do Tejo, para a qual chegou a desenhar máquinas.(Fig.2)
Para além de diversas obras de arquitectura que participou, entre elas a Igreja de São Vicente
de Fora, elaborou diversos estudos para o abastecimento de água em Lisboa.
Figura 2. Escavadora, Dos discursos de Leonardo Turriano el primero sobre el Fuerte de
San Lourenço de Cabeça Ceca en la Boca del Taxo el segundo sobre limpiar la Barra del
dicho Rio y otras diferentes. (fonte: B.N.P. Microfilme, cota F.R. 193, pág.62)
50 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Frei João Turriano é o segundo filho do segundo casamento de Torriani com uma por-
tuguesa. Em 1629 professa na Ordem de São Bento, no Mosteiro da Saúde. Segundo al-
guns historiadores inicia os seus estudos continuados na Aula do Risco, onde o pai leccionava
Engenharia e Fortificação. Não obstante ao seu regime de observância e seguindo a longa tra-
dição de herança de cargos públicos, após a morte do pai é nomeado em 1631 por D João IV
para o cargo de Engenheiro-mor do Reino, tendo no entanto sido preterido pelo seu irmão
Diogo Turriano. Durante o serviço à coroa traça diversas fortificações e obras de arquitectura
religiosa, onde a estética resultante de um aprendizado de pai para filho, se encontra presente.
Segundo Fr. Francisco de S. Luiz, Turriano estava “ (…) sempre ocupado nos estudos do desenho,
de obras de arquitectura, a que se inclinavam os papéis de seu pai.”. (Abreu 2003)
Na Guerra da Restauração D. António Luís de Meneses, Conde de Cantanhede, im-
pulsiona e superintende a continuação das obras da defesa da Barra do Tejo, tendo con-
tando com o contributo inicial do Engenheiro das Fortificações da Barra, Mateus do Couto
(o velho). Em 1643 na sequência da administração danosa de Mateus Couto (o qual mais
tarde será ilibado de traição), D. João IV pede a nomeação de um engenheiro acima de
qualquer suspeita e de nacionalidade portuguesa. Terá sido por conhecer em pormenor o
trabalho do pai que Frei Turriano assume após a morte de Diogo Turriano a direcção das
obras de São Julião da Barra (O Escudo do Reino) e desenha o Forte do Bugio e o Forte
de São Bruno de Caxias. Para além das obras no Tejo acompanhou e deu pareceres das
Obras da Praça Forte de Peniche, do Forte de São Francisco Xavier no Porto e projectou
igualmente o Forte de Nossa Senhora das Neves em Matosinhos.(Boiça and Barros 2004)
Apesar do conhecimento e experiência de Frei Turriano em Engenharia Militar, o
maior número de projectos da sua autoria são sobretudo de arquitectura religiosa, incluin-
do diversos dormitórios: o do Mosteiro de Santa Maria em Alcobaça, o das Inglesinhas
e da Estrela em Lisboa, o de Odivelas, o Travanca e o de Semide.(Abreu 2003) Terá sido
porventura a necessidade urgente de construir um dormitório para albergar as freiras do
Convento de Santa Clara de Coimbra, que é emitido o alvará de 1647 de sua Majestade
para a construção do novo Convento no Monte da Esperança, nomeando para a gestão
financeira da obra o Conde de Cantanhede: “…do meu Conselho de guerra e vedor da
minha fazenda (…) que terá particular cuidado e vigilância de ver e examinar como e de que
maneira (…) se despende o dinheiro (…) ”. (Silva 2000) É sobre a sua autoridade que no
ano seguinte delega que o Padre Frei João Turriano faça a traça do Mosteiro.
A documentação relativa à construção do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova mostra de
facto que, apesar da multiplicidade de arquitectos e engenheiros militar que sucederam a
Frei Turriano, a Planta Universal e infra-estruturas, tais como a “ (…) obra e canos de água
(…) ”, são da sua autoria. (Silva 2000)

51 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

A planta universal do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova;


Tratadística Arquitectónica na biblioteca de Turriano

D. João IV, no contexto da política de renovação das casas religiosas e devido ao asso-
reamento do velho Mosteiro de Santa a Clara-a-Velha, ordena a construção do Mosteiro de
Santa Clara-a-Nova para acolher o corpo de “sua Avó e Senhora”. A necessidade de afirmação
política da Dinastia Bragantina resultou num novo programa construtivo e na busca de um
novo figurino estético na arquitectura nacional. Esta corrente estética, nascida do utilitarismo,
da escassez de recursos e da falta de encomendas, transita do estático maneirismo para um
decorativismo “epidérmico” barroco. A arquitectura muitas vezes foi exercida por projectistas
pertencentes às Ordens Religiosas, onde permaneciam em observância. É neste enquadra-
mento que se desenvolve a obra de arquitectura religiosa de Fr. João Turriano. (Abreu 2003)
Em 1648, é determinado pelo Superintendente das obras do cenóbio que o Padre
Frei João Turriano execute a traça para o dito Mosteiro, a qual segue as orientações régias
de albergar sepulturas de reis e da construção de um edifício anexo destinado a Paço Real.
As obras de fundação do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova foram condicionadas pelo es-
forço de guerra, como mencionado no registo do Alvará de Sua Majestade (1647), o qual
salientava que “(…) não aja nisto superfluidades gastos nem despesas de que Deus se não
servira nem o aperto das guerras do tempo prezente o permitem.”(Silva 2000)
O conhecimento teórico que Frei Turriano adquiriu e aplicou na arquitectura deste
cenóbio pode-se vislumbrar através dos livros e tratados que lhe pertenceram. Ao falecer,
a 9 de Fevereiro de 1679, a sua biblioteca ficou na posse do Colégio de São Bento de
Coimbra, sendo composta por diversos exemplares que adquiriu em vida, para além de
outros que herdou do pai.
Tratados de arquitectura militar como o Due Dialoghi di M.Iacomo de’ Lanterni da
Paratico, bresciano (à ragionare del modo disegnare le piante delle fortezze secundo Eulide,
Venezia 1557) ou a Nuova inventione de fabricar fortezze (Giovanni Battista Belici, 1598),
estão repletos de notas marginais suas, as quais se estendem para fora dos limites dos fo-
lios. No seu catálogo destacam-se igualmente dois conhecidos tratados arquitectónicos,
o Quattro Libri dell’Architettura de Andrea Palladio (Marco Antonio Brogiollo, Veneza,
1642), e o Tercero y quarto libro de architettura de Sebastiano Serlio (Francisco Villalpando,
tradução castelhana, 1573), os quais estudou com minúcia (Abreu 2003).
No Quattro Libri de Andrea Palladio, cuja edição é contemporânea à data de constru-
ção do Mosteiro de Santa Clara, verifica-se um estudo mais aprofundado, sugerindo por
vezes uma correlação entre as partes que anota e o Mosteiro. Preocupações presentes no
projecto, como a orientação solar da livraria, a disposição e proporção das salas nobres, a
52 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

localização de adegas, de dispensas e latrinas e sobretudo ventilação, são extraídas do seu


exemplar do livro de Palladio, na parte que concerne aos edifícios civis, as quais adoptou
no cenóbio. Também as potencialidades paisagísticas da implantação, sobretudo a rela-
ção entre o cuidado da elaboração de fachadas na proximidade do rio, são extraídas das
considerações de Palladio (Abreu 2003).
O seu exemplar do Livro III de Sebastiano Serlio, dedicado às Antiguidades, poderá
estar na génese do desenho do claustro. Nele anota proporções de átrios, claustros, cortili e
fóruns, cuja função e disposição é fundamental na organização das restantes dependências.
Não seria portanto de estranhar que o claustro do Mosteiro Isabelino já estivesse delineado
nas plantas originais, da sua autoria.
O interesse que mostra pelo emprego da gramática das ordens como enunciam Palladio
e Serlio, em particular o seu correcto dimensionamento e a sobreposição em estruturas
porticadas, são notórias na obra final. Nas suas leituras, constata-se a aversão de Serlio
à construção de arcarias sobre colunas redondas que este considera “cosa viciosa y falsa”
aconselhando que “Arcos /se fação sobre pi-/lares e não sobre Colunas” (Abreu 2003). (Fig.3)

Figura 3 – Tercero y quarto libro de architettura, Sebastiano Serlio, tradução castelhana Francisco Villalpando,
1573.(fonte: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra,cota R-61-1)

A solução que mais tarde seria adoptada no esquema compositivo do claustro (Fig.4)
53 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
encontra-se espelhada nessas recomendações serlianas, sobretudo no que concerne às estru-
turas porticadas, das quais salientamos: ”se os arcos queremos hazer, há de ser sobre Pilastrones
quadrados. Y demas de esto sobreponer o arrimar a ellos las columnas redondas para mas
ornato.” (Abreu 2003). Considerações técnicas presentes na obra de Serlio, tais como o
dimensionamento de um sistema de arcaria em pontes ou o cravar de gatos metálicos na
pedra dos suportes de um claustro e o seu tratamento (de forma a que não se crie ferrugem
nas paredes), poderão ter sido tecidas por Fr. Turriano no projecto de claustro.
Pode-se concluir que a importância do estudo da robustez dos elementos portantes de Serlio
por Fr. João Torriano “ (…) torna-se num axioma, que bem poderia ser ilustrado pela construção do
claustro de Coimbra, de solidez filiada no exercício da arquitectura militar.” (Abreu 2003)
Figura 4. Modelo 3d do Claustro Serliano do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova,
antes da reforma barroca. Proposta do autor, (2017).

Conclusão

Foi no período dos Habsburgo que se criou em Portugal o estatuto de Grandeza.


Com a Restauração praticamente metade das casas titulares de nobreza desapareçeram,
grande partes suprimidas por pemanecerem fiéis a Filipe III de Portugal. As casas extin-
tas foram substituidas pela elevação simultânea de outras, recrutadas entre Restauradores,
criando um novo período de estabilidade na elite titular monárquica que irá durar até
ao Pombalismo.
É indiscutível a importância da nova nobreza na gestão das obras do reino, a quem
a Coroa remunerou por serviços prestados na guerra com titulos de nobreza e cargos
inerentes à sua importância . Tal é o caso de D. António Luís de Meneses, Conde de
Cantanhede, elevado mais tarde a Marquês de Marialva, que pertencia ao Concelho de
Guerra e era vedor da Fazenda de D. João IV. Ao mesmo tempo foram-lhe delegadas obras
de engenharia-militar, como o Escudo do Reino, e de arquitectura religiosa, como é o caso
54 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova. É sobre a sua tutela que duas famílias de engenheiros
militares e arquitectos são recrutados para trabalhar neste mosteiro, os Turriano e mais
tarde os Couto, já conhecidos na corte por descenderem e terem acompanhado os autores
dos projectos de defesa da Barra do Tejo.
Frei João Turriano, após treze anos de serviços prestados à coroa, troca a arquitectura
pela docência da Cadeira de Matemática na Universidade de Coimbra. Quando falece
(com 70 anos) há muito que Mateus Couto (sobrinho) superintendia a obra do Mosteiro
de Santa Clara-a-Nova. Apesar de ser o autor da Planta Universal, a documentação que se
conhece da obra não refere que Turriano alguma vez a tenha dirigido ou visitado, muito
menos a do claustro que se inicia 20 anos depois da sua morte.
Após Turriano abandonar o projecto, Mateus do couto (que recebia mercês de D. João
IV para estudar arquitectura com o tio, Mateus do Couto o Velho), é chamado para dirigir
a obra no Mosteiro. Após a morte do tio sucedeu-o no ofício de Arquitecto das Obras das
Ordens Militares, sendo promovido ao ofício de Arquitecto e Mestre das Obras dos Paços
de Salvaterra e Almeirim e Real Mosteiro da Batalha. Durante a substituição do Marquês
de Marialva pelo Marquês do Alegrete, na superintendência da obra de Santa Clara, conti-
nuará a trabalhar nas medições dos trabalhos efectuados no Mosteiro, sendo sucedido nos
seus diversos cargos, pelo seu protegido, Manuel do Couto.
Esta inter-relação entre arquitectos e engenheiros-militar no projecto do Mosteiro irá
reflectir-se na obra que hoje podemos observar erguida. Apesar de se apresentar com uma fei-
ção resultante das reformas Joanina e Pombalina, muito ao estilo de Custodio Vieira e Carlos
Mardel, pode-se verificar que os elementos estruturais são mais próximos da cultura arquitec-
tónica militar de feição maneirista. As tipologias que observamos surgiram com as diversas
reformas barrocas, resultantes da inadequação do modelo original, tendo parte da estrutura
original sido alterada de forma a adaptar melhor o Mosteiro às necessidades das Clarissas.
Podemos apenas supor que as proporções e a cenografia do projecto do Mosteiro de
Santa Clara-a-Nova, que muitas vezes se aproximam das empregues num Palácio da Fé,
poderão estar relacionadas com a necessidade que os Bragança tinham de projectar uma
imagem forte de patrocínio Régio.

Bibliografia

Abreu, Susana Matos. 2003. “Livros E Saber Prático de Um Arquitecto Do Séc. XVII: A biblioteca
de Fr. João Turriano E O Mosteiro Novo de Santa Clara Em Coimbra.” Revista Da Faculdade
de Letras, Ciências E Técnicas Do Património, 1, 2:803–22.
Boiça, Joaquim, and Maria Barros. 2004. O Forte E Farol Do Bugio, São Lourenço Da Cabeça Seca.
1a ed. Oeiras: Fundação Marquês de Pombal. 55 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Dupuy, Pascal. 2002. Histoire, Images, Imaginaire. Vol. 2. Edizioni Plus – Università di Pisa.
Garcia, Francesc Xavier Jufre. 2008. El Artificio de Juanelo Turriano Para Elevar Agua Al Alcázar de
Toledo (s.xvi) Modelo Con Escaleras de Valturio. 1a ed. Lleida: Editorial Milenio.
Gomes, Paulo Varela. 1987. O Essencial Sobre a Arquitectura Barroca Em Portugal. Essencial 25.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Moreau, Filipe Eduardo. 2011. “Arquitectura Militar emSalvador Da Bahia Séculos XVI a XVIII”. Tese
de Doutoramento apresentada ao programa de Pós-Graduação da FAU-USP, São Paulo: FAU-USP.
Pérez Cantó, Pilar, Esperanza Mó Romero, Laura Oliván Santaliestra, Francisco Telhado, Ana Maria
S. A. Rodrigues, Isabel dos Guimarães Sá, and Manuela Santos Silva. 2015. Rainhas de Portugal e
Espanha: Margarida de Áustria, Isabel de Bourbon. 1a ed. Rainhas de Portugal / coord. Ana Maria
S. A. Rodrigues, Isabel dos Guimarães Sá, Manuela Santos Silva. Lisboa: Temas e Debates.
Rodrigues, Ana Maria S. A., Ana Maria S. A. Rodrigues, Isabel dos Guimarães Sá, and Manuela
Santos Silva. 2014. As Tristes Rainhas: Leonor de Aragão, Isabel de Coimbra. Reimp. Rainhas de
Portugal / Coord. Ana Maria S. A. Rodrigues, Isabel Dos Guimarães Sá, Manuela Santos Silva
7. Lisboa: Círculo de Leitores.
Serrão, Vitor. 2003. História de Arte Em Portugal, O Barroco. 1a ed. Vol. 4. 4 vols. Lisboa: Editorial
Presença.
Silva, Luisa. 2000. “A Construção Do Novo Mosteiro de Santa Clara de Coimbra : 1647 a 1769 :
Da Decisão À Conclusão : Obras E Arquitectos [vol.II]”. Dissertação de mestrado, Porto:
Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Vigano, Marino. 2010. Leonardo Turriano Ingeniero Del Rey. Alicia Cámara, Rafael Moreira and
Marino Vigano. Madrid: Fundación Juanelo Turriano.
Zanetti, Cristiano. 2015. Juanelo Turriano,de Cremona a La Corte. Madrid: Fundación Juanelo
Turriano.

PROGRAMA DOUTORAL HERITAS – ESTUDOS DE PATRIMÓNIO [REF.ª: PD/00297/2013]


[Programas de Doutoramento Nacionais e Internacionais – 2013]
56 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Alcalá de Henares e Coimbra, Universidades
Património Mundial: responsabilidade
e compromisso de futuro em dois
contextos ibéricos

Joana Capela de Campos


Universidade de Coimbra (DARQ – FCT, UC)
Vítor Murtinho
Universidade de Coimbra (DARQ – FCT, CES, UC)

Introdução

Numa candidatura patrimonial de um bem em contexto urbano, quando entendida


como um ativo para a gestão e para o desenvolvimento urbano, assume-se que o valor
atribuído a esse bem se constitui como uma parte integrante do seu contexto e que, con-
sequentemente, a sua gestão deve ser equacionada de forma integrada, promovendo uma
continuidade dentro do ambiente urbano.
Nesse sentido, desenvolver uma candidatura patrimonial será assumir uma responsabili-
dade e um compromisso de futuro. Por um lado, a responsabilidade passaria pela produção
de conteúdos, que promovessem o estudo e o conhecimento do bem proposto, que deveria
ser disponibilizado às suas populações, pelas entidades que o gerem, ativando uma lógica de
conhecer para compreender, dentro das práticas de proteção e salvaguarda do património. Por
outro lado, o compromisso de futuro seria traduzido por um processo de candidatura que
57 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
se estabelecesse a partir de um projeto político com intenções e estratégia de intervenção
tanto para a área com um valor reconhecido, como para o seu contexto urbano e, no limite,
para o seu território de influência, mesmo que a apresentação da candidatura não viesse a
colher os resultados esperados. Desta forma, pensar o património cultural, não como uma
memória do passado, mas antes um ativo da contemporaneidade para o futuro, permitia
promover essa responsabilidade e esse compromisso, estabilizando-os numa plataforma de
diálogo entre gerações, que iriam recebendo, usando, e acrescentando valor ao existente.
Por estes enunciados, as candidaturas patrimoniais têm, ou deveriam ter, alta impor-
tância para a gestão futura dos bens e dos recursos patrimoniais, constituindo-se como
uma identificação e uma seleção de valores comuns à comunidade. Valores esses que sendo
herdados das gerações anteriores, em muitos dos casos se mantinham em vigor e a que de-
veriam ser acrescentados os de matriz contemporânea por fazerem parte de uma vivência e
de uma cultura atual. Assim se entende que pensar o património não deveria ser sinónimo
de estagnação temporal. Pelo contrário, pensar o património na sua vertente material e
na sua vertente imaterial não deveria ser uma performance cultural (Smith, 2017, p. 16),
onde a necessidade de afirmação cultural tem vindo a ser cada vez mais reconhecida pela
sua importância na vida quotidiana contemporânea. Mais do que se pensar no passado,
o património seria uma questão de presente com perspetiva de futuro, onde o passado seria
apenas uma lição para ser usada em cada contemporaneidade.
Além disso, alguns estudos sugerem que as políticas de reconhecimento do binómio
património-identidade, assente na diversidade e na representação de valores essenciais
para o individuo e/ou comunidade, possibilitam novas leituras sobre o valor social do
património, nomeadamente, na promoção da cidadania (Smith, 2017). Enquanto valor
identificado para uma representação política e ética da comunidade, o património cultural
estabelecia o direito a essa identidade, porque apesar de poder ser uma questão emotiva,
seria, antes de mais, uma questão absorvida como fundamental para induzir um juízo de
valor comum.
Na Europa e no Mundo, o ano de 2018 será um período de comemorações sobre o
património cultural1 e, consequentemente será promovido um reforço do seu papel e da
sua importância na criação dos discursos de paz que devem ser, ininterruptamente, pro-
movidos pela tolerância na diversidade cultural e por relações interculturais entre todos os
cidadãos do mundo (Capela de Campos & Murtinho, 2017c).
Para além desta perspetiva, também seria percetível que um processo de candidatu-
ra patrimonial iria potenciar e incentivar uma dinâmica de desenvolvimento económico
gerada a partir da oportunidade da atribuição de um título, sobretudo, se as entidades
envolvidas tiverem influência internacional, como a Organização das Nações Unidas para
a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), através do PM ou, ainda, como o Conselho
58 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

da Europa. Nesse sentido, estudos têm vindo a apontar para a existência de uma coinci-
dência entre cada inscrição na LPM – devido ao mediatismo que era gerado à sua volta – e
o aumento do número de visitantes desse sítio2. Consequentemente seria expectável que
qualquer inscrição na LPM se traduzisse numa dinâmica geradora de desenvolvimento,
não só ao nível do bem classificado e dos seus perímetros definidos como zona de proteção,
mas também, naquela que poderia ser considerada a sua área de influência territorial, onde
diversas atividades económicas poderiam ser potenciadas. Quando os bens classificados
1
Cf. Capela de Campos, J e Murtinho, V. «Paisagem Urbana Histórica, a Lusa Atenas como matriz cultural
de Coimbra», no presente número da publicação do Centro de Estudos Ibéricos.
2
Cf. (Rebanks Consulting Ltd & Trends Business Research Ltd, 2009; Salazar, 2010).
se localizassem num contexto urbano, então o desenvolvimento potenciado também se
assumiria como tal. Dentro do contexto urbano material ou físico – na área do património
classificado, sua zona de proteção e área de influência urbana – seria verificado um desen-
volvimento baseado, sobretudo, na proteção e salvaguarda do património e na reabilitação
urbana, tanto ao nível do parque edificado como dos espaços públicos; dentro do contexto
urbano imaterial – nas dinâmicas quotidianas da vida e dos usos espaciais (que se manifes-
tam na vertente material do contexto urbano) – o desenvolvimento urbano seria verificado
nas atividades turístico-culturais e novas formas de consumo da sociedade contemporânea
(Capela de Campos & Murtinho, 2017a).
Este trabalho pretende refletir sobre o contributo que uma candidatura patrimonial
em contexto urbano pode acrescentar para o desenvolvimento e para a gestão de uma
cidade, através das sinergias geradas pela sua circunstância e que vão influenciando, poten-
ciando, estabelecendo e transformando algumas dinâmicas socioeconómicas, no seu terri-
tório de influência. A abordagem metodológica será qualitativa e realizada com recurso a
uma analogia entre dois estudos de casos localizados em diferentes contextos territoriais,
nomeadamente, os casos ibéricos inscritos especificamente na categoria das Universidades
Património Mundial (UPM), da LPM: a Universidade e Recinto Histórico de Alcalá de
Henares (URHAH) e a Universidade de Coimbra – Alta e Sofia (UC-AS).
Embora as datas de inscrição dos dois casos possam ter alguma influência nos resulta-
dos – pela evolução que o próprio discurso filosófico-concetual no âmbito do PM sofreu
entre as datas de inscrição de uma e outra na LPM, 1998 e 20133 –, as práticas processuais
e a linguagem padronizada e promovidas pela inscrição dos bens na LPM são as mesmas,
ou seja, os dois casos foram inscritos na mesma categoria patrimonial e foram atribuídos
os mesmos critérios de justificação de Valor Universal Excecional (VUE) do bem, pela
UNESCO. Sobre esta particularidade da candidatura dos dois casos de estudo, num pri-
meiro momento, é feito um esclarecimento sumário desta condição, com o objetivo de
melhor explicitar e enquadrar os dois casos de estudo.
59 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Todavia, cada um dos casos tem o seu contexto geográfico, histórico, político, social,
económico e cultural, acrescentando ainda as suas próprias trajetórias evolutivas antes e
depois da inscrição na LPM. Desta forma, considera-se pertinente enunciar os parâmetros
e justificações que foram estabelecidos como responsabilidade e compromisso de futuro,
nas respetivas candidaturas a PM de Espanha e de Portugal. Com este tópico pretende-
-se aferir de que modo é que tais enunciados se traduziram em contributos ativos para a
promoção da coesão do território de influência de cada caso de estudo, tendo em conta os
aspetos evolutivos de contextualização para cada uma das universidades em estudo.

Cf. (Capela de Campos & Murtinho, 2017c).


3
Por fim, verificam-se as variações entre os dois casos, resultantes na realidade dos seus
contextos urbanos, pelas influências diretas ou indiretas do processo de candidatura e da
consequente inscrição dos bens na LPM.
O reconhecimento de um estatuto de PM deveria induzir a uma continuada reflexão
e ação, ao nível da sua gestão e planeamento, integrados num contexto mais abrangente,
podendo estes constituírem-se como fatores críticos e estratégicos da promoção da coesão
territorial, ao serem consideradas as transformações necessárias para responder às novas
exigências dos modos de vida, dos usos e das dinâmicas socioculturais.

A categoria Universidades na Lista do Património Mundial

A LPM constitui-se como um instrumento de gestão patrimonial ao nível da política


internacional, pela inscrição de patrimónios, com VUE justificado – conforme estipula-
do na Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural de 1972
(CPM1972)4 – e, também, representativos da diversidade cultural de todo o mundo,
desde 1978, ano das suas primeiras inscrições. Em 1994, o Comité do PM adotava uma
Estratégia Global5 cujo principal objetivo seria alcançar uma LPM representativa, equili-
brada e credível, que refletisse essa diversidade cultural.
Os estudos de caso abrangidos por este trabalho – a URHAH (WHC, 1999, p. 31) e a
UC-AS (WHC, 2013, p. 208) – foram inscritos na LPM pelo reconhecimento dos respe-
tivos VUE e sob a categoria UPM, uma das categorias mais sub-representadas na LPM em
quarenta anos, com apenas cinco bens inscritos, conforme se apresenta no seguinte quadro:

Quadro 1. Relação dos bens inscritos na categoria UPM.


Ano de Nome do bem na LPM Localização Critérios
inscrição (VUE)
1987 Monticello e a Universidade da Virgínia Charlottesville, i, iv, vi
Estados Unidos da América
60 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

1998 Universidade e Recinto Histórico de Alcalá de Henares Alcalá de Henares, Espanha ii, iv, vi
2000 Cidade Universitária de Caracas Caracas, Venezuela i, iv
2007 Campus Central da Cidade Universitária da Universidade Cidade do México, México i, ii, vi
Nacional Autónoma do México
2013 Universidade de Coimbra – Alta e Sofia Coimbra, Portugal ii, iv, vi

4
A CPM1972 considera dez critérios justificativos do VUE, sendo que, os primeiros seis (i, ii, iii, iv, v e vi)
correspondem à justificação de bens culturais e os últimos quatro (vii, viii, ix e x) correspondem à justificação
de bens naturais.
5
Uma das propostas equacionadas passava pelo incentivo de se inscreverem bens em novas categorias patri-
moniais ou em categorias sub-representadas, para além daquelas que seriam recorrentemente abrangidas,
como Cidades/Centros Históricos ou Monumentos (Capela de Campos & Murtinho, 2017c).
Dos 1073 bens inscritos na LPM até 2017 e distribuídos por 167 países, só cinco seriam
inscritos sob a categoria Universidades, sendo este detalhe, a causa de distinção que permitia
diferenciar estes casos. Todos os outros exemplos de universidades presentes na LPM esta-
vam dissimulados em contextos urbanos mais vastos e inscritos sob outras categorias6, sendo
essas categorias designadas como Cidades históricas ou Centros históricos, entre outras. Desta
forma, todas as outras instituições de ensino superior faziam parte integrante de um valor
diferenciável do valor específico atribuído às universidades por si só. Esta variação na com-
preensão das várias categorias patrimoniais, se por um lado potenciava uma maior capacidade
de abranger uma maior diversidade de bens culturais, naturais e mistos, conforme estipulado
pela CPM1972, por outro, estimulava uma maior exigência na justificação do VUE, preci-
samente, pela maior especificidade atribuída pela diferenciação de categoria. Por esta formu-
lação, considerava-se pertinente fazer a analogia dos dois casos específicos das universidades
europeias e ibéricas inscritas sob a categoria UPM – a URHAH e a UC-AS – às quais havia
reconhecido um VUE, justificado segundo os mesmos critérios ii, iv e vi (Quadro 1), tanto
pelos contributos e influências que tiveram ao longo dos séculos como também, por aqueles
que continuam a ter, tanto numa escala local, como numa escala global.
O critério ii justificava o VUE pelo facto de as universidades testemunharem uma troca
de influências considerável, durante um determinado período ou numa área cultural espe-
cífica do mundo, no desenvolvimento da arquitetura ou da tecnologia ou das artes monu-
mentais, da planificação das cidades ou da criação de paisagens (UNESCO WHC, 2016,
p. 41). Este critério assumia que o bem podia ser, não só, um gerador urbano fundamental
para a evolução morfológica da cidade e do seu território, através do plano da cidade e da
sua paisagem urbana histórica, mas também, da sua área cultural: Alcalá de Henares foi a
primeira cidade planificada da idade moderna para albergar uma universidade, cujo dese-
nho servira de modelo para outros centros universitários, e Coimbra foi durante séculos
a única universidade portuguesa e do mundo lusófono. A temática cultural, nestes casos
ibéricos, abrangia uma área global, sendo que no caso espanhol, tal era mais evidente e
61 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
concentrado nas américas e, no caso português, mais diversificado e pontuado pelo mundo,
decorrente dos seus períodos históricos referentes aos descobrimentos marítimos. Terá sido
nestes períodos que as suas influências mais se fizeram sentir sob diversas geografias pelas

De vinte e seis universidades identificadas na LPM, em atividade ou não, vinte e uma fazem parte de bens
6

mais vastos e inscritos sob as categorias: Centro histórico (8), Cidade histórica (6), Cidade colonial (1),
Conjunto histórico (1), Conjunto religioso (1), Conjunto monumental de época (1), Sítio arqueológico
(1), Monumento (1) e Jardim botânico (1). Para o caso ibérico, para além da URHAH e da UC-AS, foram
inscritas: em 1985, a Universidade de Santiago de Compostela inserida na área PM denominada Cidade
Histórica de Santiago de Compostela (Espanha); em 1986, a Universidade do Espírito Santo inserida na
área Centro Histórico de Évora (Portugal); em 1988, a Universidade de Salamanca inserida na área Cidade
Histórica de Salamanca (Espanha); e, em 2003, a Universidade Internacional da Andaluzia inserida na área
Conjunto Monumental Renascentista de Úbeda e Baeza (Espanha).
suas práticas de expansão e de urbanização, que eram contemporâneas à implantação e
estabelecimento definitivo das duas universidades ibéricas, no seu espaço atual.
Em simultâneo, o critério iv avaliava um exemplo excecional de um tipo de constru-
ção ou de um conjunto arquitetónico ou tecnológico ou de uma paisagem, ilustrando um
ou vários períodos da história humana (UNESCO WHC, 2016, p. 41). Este critério era
suportado, no caso de Alcalá, pelo campo concetual do desenho da cidade ideal, sendo a
imagem da Cidade de Deus a sua inspiração para a criação de um modelo urbano, que
depois seria disseminado pelo mundo. No caso português, o critério iv era suportado pela
miscigenação urbana entre a universidade e a cidade, durante sete séculos, onde a evolução
de uma seria o reflexo da outra e, por conseguinte, o reflexo da história da arquitetura,
da universidade, da cidade, do país, da europa e do mundo.
Por fim, o critério vi implicava estar, direta ou materialmente, associado a aconteci-
mentos ou a tradições vivas, a ideias, a crenças, ou a obras artísticas e literárias, com signi-
ficado universal excecional (UNESCO WHC, 2016, p. 41). O caso de Alcalá representava
a cidade do saber e das artes como centro de influência na língua espanhola e berço de
Miguel de Cervantes e da sua obra-prima D. Quixote. No caso de Coimbra, a sua univer-
sidade contribuía para formar elites de todo o mundo lusófono, das artes às humanidades e
às ciências, tendo várias das suas tradições seculares sido adotadas por outras universidades,
para além do espólio académico e universitário único.
Nesta enunciação sumária dos critérios justificativos do VUE de cada um dos bens, se
depreendia que, apesar de serem os mesmos para os dois casos, cada critério era lato o sufi-
ciente para poder ser adaptável a cada caso. Nesse sentido, a capacidade de demonstração e de
justificação do VUE do bem era, assumidamente, uma responsabilidade do Estado-membro
proponente da candidatura e decorria da própria circunstância e condição do bem em causa7.

Candidatura a Património Mundial: compromisso e responsabilidade


para o futuro
62 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

O património cultural havia assumido várias atribuições ao longo das contempora-


neidades e, por isso, a capacidade que uma candidatura à UNESCO desenvolvia sobre as
sinergias criadas a partir da proteção e salvaguarda do património, para potenciar o desen-
volvimento urbano e económico de uma cidade, era uma conclusão apontada em vários
estudos e amplamente reconhecida, sobretudo pelas dinâmicas turístico-culturais que se
iam intensificando sobre a área patrimonial (Rebanks Consulting Ltd & Trends Business

7
Quanto à especificidade apresentada nos documentos de candidatura à UNESCO referentes aos bens
URHAH e UC-AS, cf. (Lopes, 2012a; Vallhonrat, 1997).
Research Ltd, 2009; Salazar, 2010). Tal realidade transformava os processos de submis-
são de candidaturas para inscrição de bens na LPM numa competição global (Askew,
2010), explicitando o volume desproporcionado de submissões de candidaturas de bens
em contexto urbano, para atribuição do título da UNESCO8.
Nas respetivas candidaturas de Espanha (URHAH) (Fig. 1) e de Portugal (UC-AS) (Fig. 2)
à UNESCO, para a aferição do VUE, da autenticidade e da integridade que tornam cada
caso único e distintivo, seriam assumidos compromissos e responsabilidades sobre a proteção
e salvaguarda do bem e a sua gestão de futuro, suportados pelas circunstâncias e condicio-
nantes da evolução dos próprios bens e da sua ligação com os seus contextos urbanos.

63 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 1. Planta de inscrição dos limites da área URHAH PM e da sua zona de proteção.
Imagem: WHC-UNESCO, candidatura 876-Espanha, 1998.

A instituição Universidade de Alcalá (UA), conhecida como Universidade Complutensis


– herança do nome de Alcalá romana, Complutum – era a quarta universidade a ser criada em
Espanha9, com o alto patrocínio do arcebispo de Toledo e do rei D. Sancho IV. Os Estudos
8
A propósito da problemática relacionada com a diversidade da LPM, cf. (Capela de Campos & Murtinho,
2017c).
9
Palencia terá sido a primeira universidade criada em Espanha, em 1212, desaparecida entretanto; a segunda
foi a Universidade de Salamanca, em 1218; a terceira foi a Universidade de Valladolid, em 1241. Cf. (Rivera
Blanco, 2014, p. 20).
Gerais seriam criados a 20 de Maio de 1293, seguindo o modelo das Universidades de Paris
e de Salamanca e reunindo algumas características das de Bolonha e de Lovaina (Rivera
Blanco, 2014, p. 20). Todavia, seria no final da Idade Média que passaria a conhecer um
novo ímpeto institucional e urbano (Galván, 2014).
Em 13 de Abril de 1499, o cardeal Francisco Jiménez de Cisneros refundava a insti-
tuição por bula papal, dotando aos Estudos Gerais a denominação de Universidade10. Esta
etapa na história de Alcalá constituía-se com a visão reformista de Cisneros, centrada nos
ideais renascentistas e humanistas e alterando a estrutura física não só da UA – que chegou
até aos nossos dias – mas também, da cidade que era dotada com uma nova estrutura e or-
ganização urbana. Neste sentido, o desenho da nova universidade era expandido à própria
cidade, que se encontrava desprovida de vida urbana11, ao contrário do que acontecia em
Bolonha, Oxford, Paris e Salamanca, onde as universidades se iam adaptando e incorpo-
rando na realidade urbana estabelecida. Assim, a primeira cidade universitária dos tempos
modernos (Vallhonrat, 1997), idealizada por Cisneros segundo a imagem da Civitas Dei,
transformava-se numa ensanche quinhentista desenvolvida por dezoito quarteirões12, con-
cretizada e planificada na área oriental da cidade medieval muralhada, com a colaboração
do arquiteto Pedro Gumiel (Rivera Blanco, 2014, p. 28).
A cidade de Alcalá, impulsionada pelo desempenho da sua universidade13, transformava-
-se num centro de desenvolvimento científico e cultural, ao longo dos séculos xvi, xvii e xviii
com novas implantações, alterações, transformações, construções, reformas e atualizações do
seu espaço universitário.
No entanto, seria no século xviii14 que a universidade começava a entrar num pe-
ríodo de decadência arrastando a cidade pelo mesmo caminho. Em 1821, era criada a

10
Em 14 de Abril de 1499, Cisneros lançava a primeira pedra do Colégio Maior de Santo Ildefonso, dando
início simbólico e formal à nova Universidade Complutensis, cuja Constituição era promulgada em 1510.
Cf. (Rivera Blanco, 2014, p. 22).
11
Metade da cidade estava sem uso e abandonada devido à expulsão dos judeus de Espanha, realizada a partir
64 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

de 1496, sendo que, por esse motivo, a atividade comercial tenha conhecido um declínio. A nova realidade
permitia que Cisneros utilizasse a área urbana abandonada para instalar uma verdadeira cidade universitária.
Cf. (Rivera Blanco, 2014; Vallhonrat, 1997).
12
Com a construção de um Colégio Mayor, dedicado a Santo Ildefonso patrono de Toledo, era feita a repre-
sentação da Casa do Saber e do Templo da Sabedoria pela imagem de Jesus, de doze Colégios Menores, cada
um dedicado aos apóstolos e de mais seis Colégios Menores dedicados aos discípulos.
13
A abertura de imprensas permitira a impressão da Bíblia Poliglota Complutense, em 1514-17, considera-
da como um monumento da tipografia moderna, tendo como suporte a obra-prima de Elio Antonio de
Nebrija, a Gramática de la Lengua Castellana, publicada em 1492 (Contreras, 2014), bem como outros
textos do professor das Universidades de Alcalá e Salamanca. Além disso, Alcalá era o berço de nomes maio-
res das letras e das artes, destacando-se Miguel de Cervantes Saavedra com a sua obra-prima El ingenioso
Hidalgo Dom Quijote de La Mancha, de 1605.
14
Em 1770, era instituída a supressão dos Colégios Menores, levando à ruína e abandono muitos dos edifícios
associados a usos e funções complementares aos académicos.
Universidade Central em Madrid, antecipando o fecho da universidade cisneriana, que
apesar do seu prestígio e da sua importância para as artes, a língua e a cultura espanholas,
seria encerrada em 183615.
Em 1851, acontecia o caso que a candidatura da URHAH à UNESCO classificava
como único na história das cidades (Vallhonrat, 1997, p. 19): um grupo de cidadãos de
Alcalá juntava-se e formava a Sociedad de Condueños de los Edifícios que fueron Universidad16,
que iria adquirir o conjunto de edifícios na expectativa do futuro retorno da universida-
de. Este episódio da história de Alcalá revelava-se único e sem paralelo, na forma como
os seus cidadãos reconheciam o valor do seu património arquitetónico universitário e lhe
atribuíam uma conotação de guardião da sua memória cultural coletiva e da sua identidade
como comunidade de Alcalá17 (Vallhonrat, 1997, p. 19). Todavia, só em 1975, Alcalá vol-
taria a sentir o pulsar universitário na cidade, com um polo de ampliação da Universidade
Complutense18 de Madrid, sendo a UA refundada por decreto real, dois anos depois.
A partir de 1985, sob o lema «Al futuro con el passado», a UA ganhava autonomia
académica e promovia um investimento na requalificação do património universitário,
para uma área total de 185 hectares. O lema pretendia representar o projeto de recupera-
ção do passado, através da recuperação e reabilitação do património universitário, para ir
construindo um projeto de futuro nesta nova etapa da universidade cisneriana. Tal esforço
seria merecedor de vários prémios e distinções nacionais e internacionais e no seguimento
de uma colaboração estreita entre cidade e universidade seria desenvolvido o processo de
candidatura à UNESCO, para inscrição do bem URHAH na LPM, o que se verificara,
com efeito, em 5 de dezembro de 199819.

15
Todos os serviços da UA (recursos humanos, universitários e pedagógicos) eram transferidos para Madrid
e a maior parte dos edifícios e bens eram vendidos para pagar dívidas do Estado, outros seriam pilhados e
outros seriam demolidos.
16
A partir desse momento, cabia à Sociedade de Condóminos gerir os bens constituintes da propriedade,
alugando ou cedendo os edifícios a instituições e a privados na condição da sua conservação e manutenção,
65 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
para salvá-los da ruína, já que, a falta de uso tornaria a sua manutenção insustentável. Desta forma, os
edifícios sofreriam transformações para responder a novas funções, convertendo-se em residências, colé-
gios públicos e religiosos, quartéis, grupos desportivos e culturais. Cf. (Clemente San Román & Quintana
Gordon, 2014; Echeverría Valiente, 2005; Vallhonrat, 1997).
17
O início do século xx trazia a Espanha, a necessidade de se proceder à declaração formal do estatuto patrimonial
dos bens e de se continuar a catalogar os bens, que já estava a ser feita desde o século anterior (Martín Jiménez,
2016). Nesse âmbito, o Colégio Maior de Santo Ildefonso era classificado Monumento Nacional, em 1914.
18
A partir da década de 70 do século xx, havia uma significativa expansão universitária em Espanha, abrindo
caminho à expansão da Universidade Central de Madrid, que havia substituído por completo a UA, assumindo
a denominação Universidade Complutense de Madrid como reconhecimento, por um lado, da sua alma mater
cisneriana, mas por outro, como homenagem àquela que tivera um papel tão importante e influente para a
cultura e artes espanholas, europeias e americanas (Clemente San Román & Quintana Gordon, 2014, p. 78).
19
Na 22ª sessão do Comité do PM, realizada em Quioto entre 30 de novembro e 5 de dezembro de 1998,
a URHAH era inscrita na LPM, sob os critérios ii, iv e vi (World Heritage Committee, 1999, p. 31).
Seria com o regresso da universidade à cidade de Alcalá, que se começava a inverter o
ciclo de decadência urbana. A UA não acabara porque a comunidade local se havia identifi-
cado com o seu valor patrimonial, que também era o seu valor urbano. O projeto cisneriano
era, neste sentido, uma matriz cultural do território de Alcalá. E era na sua integridade,
como um todo coerente, que permitia conhecer, reconhecer e compreender o território, toda
a sua evolução e o seu desenvolvimento. Deste modo, era sob a perspetiva da continuidade
que o processo PM era assumido, num percurso pedagógico de negociações entre a cidade e
o governo, que tiveram a proteção e a salvaguarda de património como ação principal, para
alavancar o desenvolvimento local, com base no regresso da universidade à cidade.
66 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 2. Planta de inscrição dos limites da área UC-AS PM e da sua zona de proteção.
Imagem: WHC-UNESCO, candidatura 1387-Portugal, 2013.
No caso português, as circunstâncias e condicionantes da evolução da universidade
com o seu contexto urbano eram semelhantes com o desenvolvimento da sua congénere
castelhana20, a partir do momento em que D. João III decidira sedear a universidade
portuguesa, definitivamente, em Coimbra21.
De um modo resumido, e como referia Dias, podia ser verificado que a influência que a
universidade incutira ao nível do desenvolvimento da cidade, se projetava de modo eviden-
te em três momentos fundamentais, com reflexo direto no desenho urbano (Dias, 1994):
1537 – a transformação de Coimbra em cidade universitária; 1772 – a reforma pombalina;
e, 1941 – a construção da Cidade Universitária do Estado Novo.
Se o primeiro momento contribuía para a estabilização do ensino superior em Portugal,
conseguia-o através dos planos urbanos que eram delineados e construídos para albergar a
comunidade universitária, na Baixa e na Alta de Coimbra, não deixando de ter em conta,
outros parâmetros de substancial relevância urbana e urbanística, nomeadamente, o au-
mento da população que tal decisão implicaria22: a abertura da Rua de Santa Sofia23, na
Baixa de Coimbra, que era equacionada a partir do processo24 da reforma do Mosteiro de
Santa Cruz, abrindo uma rua nova para norte do «tabuleiro da praça»25; e a reforma do

20
Com exceção da fase que promulgara o encerramento da universidade alcalaína, em 1836, e que, como já
se referiu, arrastaria a cidade de Alcalá por um período de decadência urbana até ao período pós-Segunda
Grande Guerra Mundial.
21
Era assumido que o marco fundacional da universidade portuguesa tinha sido a carta régia assinada em 1 de
março de 1290 por D. Dinis – o «documento precioso», segundo António de Vasconcelos (Pimentel, 2005, p.
40) –, criando os Estudos Gerais, na cidade de Lisboa. Não obstante, a universidade era transferida várias vezes
alternando entre Lisboa (1290-1308; 1338-1354; 1377-1537) e Coimbra (1308-1338; 1354-1377; a partir de
1537, o estabelecimento definitivo da UC). Cf. (Lobo, 2010; Lopes, 2012b; Pimentel, 2005; Rossa, 2001).
22
Num quarto de século, a população de Coimbra que rondava os cinco mil habitantes passava a doze mil,
ultrapassando todas as expectativas iniciais de D. João III que, consecutivamente, teria que gizar soluções
e respostas ao sucessivo aumento das necessidades residenciais e logísticas disponíveis, bem como, dotar a
universidade de mais espaços para estudantes e mestres. Cf. (Rossa, 2006).
23
Designação da rua nova, clarificando o carácter e a identidade programática daquela que iria receber as
construções dos colégios para o ensino preparatório e superior (Lobo, 2006). No entanto, apesar deste seu
67 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
carácter ideológico e funcional atribuído ao plano inicial, a sua materialização não se concretizara, por ini-
ciativa régia, ficando, de resto, a qualidade da «sua materialidade arquitectónica e urbanística, pelo seu papel
de ensanche de uma cidade atrofiada» (Rossa, 2006, p. 19).
24
Este processo era iniciado com alguns episódios de impulso urbanístico, com a passagem de D. Manuel pela
cidade em 1502, na viagem de peregrinação a Santiago de Compostela, tendo dado grande destaque tanto à
reforma de Santa Cruz como à reforma do Paço Real, entre outros (Rossa, 2001, pp. 531–611). No entanto,
era já sob o signo régio de D. João III que a reforma do Mosteiro de Santa Cruz era realizada, a partir de
1527, sob a alçada do monge jerónimo frei Brás de Barros, através de uma ensanche quinhentista para norte
do mosteiro (Lobo, 2006). Este empreendimento, onde seriam construídos colégios, teria como propósito
reintroduzir «os estudos no mosteiro crúzio (…) e com a eventual mudança da Universidade para Coimbra»
(Buescu, 2005, p. 199), o que acabaria por se efetivar a 1 de março de 1537.
25
Referência ao «pavimento lajeado, sobrelevado em relação à Praça de Sanção (actual 8 de Maio), que se esta-
beleceu efectivamente defronte dos dois primeiros colégios» (Lobo, 2006, p. 24), o Colégio de São Miguel
e o de Todos-os-Santos.
Paço Real e da Alta, no geral, que evidenciava dificuldades em fixar habitantes e, portanto,
dispunha de espaço ou abandonado ou por edificar (a nascente).
O segundo momento de refundação da universidade decorrera em 1772 com a Reforma
Pombalina do ensino e beneficiando de algumas implementações prévias levadas a termo
por D. João V – alimentadas pelo fluxo de ouro e de pedras preciosas vindas do Brasil –,
nomeadamente, aquela que Germain Bazin consideraria como «a biblioteca mais faustosa
que jamais viu»26, a Biblioteca Joanina construída entre 1717 e 1728. A nova reforma,
assente na extinção do ensino da Companhia de Jesus em Portugal, baseava-se em ações
de renovação estrutural das dimensões pedagógica e científica, tendo como consequência a
valorização das ciências exatas e naturais e dos métodos de observação e de experimentação
(Carvalho, 1996).
Mantendo a leitura sobre o papel da universidade para formar elites, como um ins-
trumento de Estado, o ministro Sebastião José Carvalho e Melo, mais conhecido por
Marquês de Pombal, aprovaria a reformulação de espaços e a construção de novos equipa-
mentos27 para uso escolar. Pese embora a criação de novas relações urbanas pela construção
dos novos equipamentos universitários, sendo a mais evidente (e prejudicial) consequente
da localização do Observatório Astronómico no topo sul do Pátio das Escolas, seria a reforma
ao nível do ensino que mais contribuiria para a evolução da UC.
O terceiro momento de grande impacte na universidade e na cidade, com evidente
transformação urbana e urbanística, prendia-se com as intervenções do Estado Novo de
1941 a 1975 (Capela & Murtinho, 2015). Apesar de Portugal se ter mantido distante das
consequências da Segunda Grande Guerra, a cidade sentira um duro golpe, com a cons-
trução da Cidade Universitária de Coimbra, na Alta. Recorrendo à tábula rasa, o projeto
impunha-se sobre o existente, sem equacionar a relação de escala tanto construtiva como
urbana, que alterava o contexto urbano sócio morfológico e, prejudicava continuidades
espaciais, ainda sentidas naquela que seria, desde 2013, parte da área PM.
No entanto em 1995, por necessidade de expansão para acomodar as engenharias e a
68 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

saúde, a UC avançava com um concurso de ideias para a requalificação dos seus espaços na
Alta, onde um dos seus principais objetivos era reestabelecer as conexões e os laços com a
cidade antiga e existente, procurando minimizar as fronteiras impostas.

26
Germain Bazin foi conservador chefe do Museu do Louvre e um importante historiador de arte, com espe-
cial destaque no estudo do período barroco. A frase referida correspondia ao título de artigo publicado por
Bazin após a sua visita à biblioteca da Universidade de Coimbra (Bazin, 1960).
27
A título de exemplo, enumera-se, o Laboratório Químico, o Observatório Astronómico, o Jardim Botânico
e o Museu de História Natural. Cf. (Dias & Gonçalves, sem data, pp. 97–114).
Seria, contudo, em 200328, que a Universidade assumiria o seu papel de liderança, na
responsabilidade e compromisso com a cidade e, depois com o mundo, pelo seu prota-
gonismo no processo de candidatura a PM, que ia acontecendo em Coimbra desde 1982
(Capela & Murtinho, 2014). O enquadramento estratégico da candidatura assumia um
dever e um compromisso geracional, que segundo as palavras de Seabra Santos se justifica-
vam num «fortíssimo sentido de futuro: o de prevenir a agressão patrimonial e a dispersão
da memória colectiva» (Santos in Universidade de Coimbra, 2005, p. 5).
De certa forma, a Universidade que havia sido responsável pelas intervenções do
Estado Novo, fazia um mea culpa, e devolvia à cidade um estatuto de reconhecimento no
seu valor material e imaterial, promovendo intervenções de requalificação e reabilitação
do seu património físico e contaminando processos de reabilitação urbana pela sua área
de influência urbana. Neste caso, ao contrário da candidatura da URHAH, a perspetiva
da candidatura à UNESCO era assumida, sobretudo, como um eixo estratégico de desen-
volvimento, assente na proteção e salvaguarda do património e, portanto, propulsora de
dinâmicas de desenvolvimento urbano (Capela de Campos & Murtinho, 2017a).

A influência das candidaturas nas dinâmicas urbanas

A oportunidade de serem assumidos compromissos e responsabilidades para o futuro


equacionava-se sob a perspetiva de uma proteção, salvaguarda e gestão integrada dos bens
patrimoniais para uso da universidade, numa primeira instância, mas também de desen-
volvimento dos seus contextos urbanos. Além dessas atuações principais, as sinergias,
criadas a partir desta realidade patrimonial inserida em contexto urbano, iam contagian-
do algumas atividades, nomeadamente, a reabilitação urbana e as atividades turísticas,
que potenciadas e aproveitadas poderiam canalizar alguma influência urbana para um
planeamento mais amplo e equilibrado sobre o território.
69 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Por um lado, na candidatura da URHAH à UNESCO, tais compromissos e respon-
sabilidades de futuro equacionavam-se como um processo de continuidade sobre aquilo
que vinha a ser realizado desde o regresso da universidade à cidade. Por outro lado, na can-
didatura da UC-AS, tais compromissos e responsabilidades de futuro eram equacionados
como catalisadores de eixos estratégicos de desenvolvimento, tanto ao nível da reabilitação

Com efeito, era com Fernando Seabra Santos eleito Reitor da UC em 20/01/2003 e reeleito em 15/01/2007
28

que, por sua iniciativa, era oficializada a intenção para que fosse a UC o bem candidato à UNESCO, pedido
que seria realizado em julho de 2003 ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Em 14/05/2004, a UC era
inscrita na Lista Indicativa de Bens, pela Comissão Nacional da UNESCO, dando início à última fase do
processo de Coimbra a PM e deixando para trás os sucessivos e falhados projetos de candidatura de outras
áreas da cidade. Cf. (Capela & Murtinho, 2014).
do património universitário como da necessidade de inter-relação univer(sc)idade, por um
«regresso em simultâneo da cidade à Alta e da Universidade à Sofia e à cidade» (Lopes,
2012b, p. 9). Desta forma, seria pertinente ilustrar como é que estas perspetivas assumidas
pelas duas candidaturas, eram equacionadas e traduzidas para a realidade urbana dos dois
casos ibéricos e também para o seu contexto territorial.
No caso de Alcalá, não se podia deixar de referir algumas particularidades derivadas
de outros acontecimentos, para além daqueles já equacionados e que também contribuíram
para a realidade urbana contemporânea.
A predominância e a disponibilidade da tipologia de colégio29 aliadas ao facto da proximi-
dade de Alcalá com Madrid (uma distância de 30 Km) permitiram que as operações urbanas
mais relevantes, depois do encerramento da UA, tivessem acontecido com recurso a altera-
ções e transformações dos edifícios universitários em quartéis, prisões, hospitais e armazéns,
durante o século xix. Ou seja, a Alcalá universitária tinha-se transformado, sobretudo, numa
cidade militar. Também a construção da estação de caminho-de-ferro levaria algum crescimen-
to urbano, a norte e este da cidade, que reinvestira na direção tradicionalmente privilegiada
com Guadalajara. Todavia estes episódios não impediram o escalar de decadência urbana, que
se acentuava com as destruições dos bombardeamentos da Guerra Civil de Espanha (1936-
-1939) e que se prolongavam até o período do pós Segunda Grande Guerra (1939-1945).
A partir de 1960, a legislação municipal sofria alterações, no sentido de potenciar o cres-
cimento urbano, usufruindo da proximidade com Madrid, alavancando uma desordem urba-
nística que se começava a impor e a ameaçar o casco urbano antigo. Essa crescente especulação
imobiliária era travada com o plano de 1968, que declarava o Centro Histórico de Alcalá
como Conjunto Histórico, permitindo afastar ou, pelo menos, minimizar os efeitos que ame-
açavam a área do centro urbano medieval e cisneriano, mais sensível e já bastante sofrida com
as destruições das guerras. Quando a universidade voltava à cidade e ao seu espaço fundacional
encontrava uma área de 185 hectares bastante danificada e destruída ou em ruína.
Em 1979, a Direção Geral de Arquitetura do Ministério de Obras Públicas e Urbanismo
70 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

dava início ao processo, onde era promovida a catalogação e estudo planimétrico do conjun-
to de edifícios históricos de Alcalá dirigido pelo arquiteto José Maria Pérez González Peridis
(Rivera Blanco, 2014, p. 32). Este ato dava origem àquela que dava a base de intervenção
sobre o património universitário cisneriano, entre 1982 e 1984, sob a direção do arquiteto
Carlos Clemente, numa atuação interdisciplinar30 entre entidade e comissões técnicas locais
29
A propósito da distinção, arquitetonicamente falando, entre colégio e sede universitária, ver (Lobo, 2010).
30
Numa primeira fase era feito o reconhecimento, o levantamento e a análise do património, para depois se
avaliarem e se definirem os possíveis usos contemporâneos compatíveis com a organização e a tipologia do
edifício. Deste modo, era possível proceder à integração de novas funções académicas e administrativas nos
diversos espaços, sem que para tal fosse necessário recorrer a transformações e alterações que pusessem em
causa a identidade do próprio edifício.
e regionais de coordenação de aspetos arquitetónicos, artísticos, construtivos, científicos e
académicos, depois de se recuperar a propriedade ou o usufruto dos edifícios históricos no
ato do Convénio Alcalá de 1985.
Era pelo grande investimento na requalificação do património universitário, que a UA
vinha a ser merecedora de vários prémios e distinções nacionais e internacionais31, desde
1983, e local do Prémio Cervantes, que a partir do Paraninfo, atribuía anualmente o
galardão maior da literatura de língua espanhola.
Todavia, estas ações não ficavam centradas no casco antigo de Alcalá de Henares
(Comunidade Autónoma de Madrid). Com efeito, nesta nova etapa de recuperação do patri-
mónio da cidade e da universidade, a UA também estendia o seu espectro de recuperação de
património à província de Guadalajara32 (Comunidade Autónoma de Castilla-La Mancha).
Além disso, a UA apostava na construção de um Campus Científico-Tecnológico como uma
lógica de expansão universitária dentro da cidade de Alcalá, tirando partido do terreno ocu-
pado pelas instalações do campo de aviação e paraquedismo de uso militar, localizado a norte
da cidade e adjacente ao «S» histórico da Via Complutense (Chías Navarro, 2014).
A reabilitação do parque edificado também ia acompanhando a consolidação do patri-
mónio universitário que, com o crescimento e expansão da universidade, criava dinâmicas
socioeconómicas, assentes no seu paradigma de Univer(sc)idade do saber da cultura, das
artes e das letras, permitindo estabilizar uma população de 200 mil habitantes, decuplicando-
-a desde o final da Segunda Grande Guerra.
No caso de Coimbra, a universidade desenvolvia ações e práticas de intervenção sobre
o património, promovendo a sua proteção e salvaguarda através de operações de interven-
ção para uma integridade dinâmica33 (Zancheti & Loretto, 2015), que tinham vindo a ser
desenvolvidas desde a fase de candidatura. A pertinência desta especificidade, no caso de
Coimbra, assentava no estatuto paradigmático que alguns dos espaços inseridos na UC-AS
PM (22/06/2013) assumiam, independentemente da sua realidade – em ruína, em projeto
e em fase de obras de requalificação. Com efeito, algumas intervenções em espaços PM,
71 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
só seriam terminadas depois da data de inscrição do bem na LPM, criando uma lógica
de continuidade – acrescentando valor ao existente – e assente no processo evolutivo e
transformativo do espaço que antes de ser, já era património.
31
Dos prémios e distinções obtidos, pela intervenção no património universitário cisneriano e na cidade de Alcalá
de Henares, sublinham-se em 1994, o Prémio Europa Nostra; em 1996, o Prémio do Ano do Meio Ambiente
(União Europeia); em 1998, inscrição na LPM (UNESCO) da URHAH; e em 2005, a Distinção de Honra do
Colégio Oficial de Arquitetos de Castela-La Mancha. Cf. (Rivera Blanco, 2014; Vallhonrat, 1997).
32
A partir de 1979, a UA ia adquirindo edifícios com valor histórico em Pastrana e em Sigüenza, de modo a
potenciar e a alargar a oferta académica e cultural. Esta condição tornava este caso particular na realidade
espanhola, em que uma universidade se estendia geograficamente por duas Comunidades Autónomas (Casa
Martín & Garcia Bodega, 2014).
33
Sobre esta abordagem, ver Capela de Campos, J e Murtinho, V. «Paisagem Urbana Histórica, a Lusa Atenas
como matriz cultural de Coimbra», no presente número da publicação do Centro de Estudos Ibéricos.
Em algumas dessas e de outras intervenções, a transformação do espaço ia sendo assumida
para a sua adaptação às exigências dos novos modos de ensino e de usos académicos contem-
porâneos, permitindo que a continuidade no uso pudesse ser enfatizada como recurso eficaz
de manutenção34. Cumulativamente, era necessário garantir a conservação e manutenção dos
espaços académicos para o normal funcionamento das suas atividades e, ainda, considerar a
afluência dos visitantes, que segundo os dados disponíveis, tinham vindo a aumentar35.

Figura 3. Vista sobre Coimbra para sul do complexo do Paço das Escolas.
Fotografia: Joana Capela de Campos, 2017.
72 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

34
Eram disso exemplos, as intervenções realizadas no complexo do Paço das Escolas, no Laboratório Químico
(Museu da Ciência), no Colégio da Santíssima Trindade (Casa da Jurisprudência da Faculdade de Direito)
ou nas Estufas do Jardim Botânico, na Alta e no Colégio da Graça (Centro de Documentação 25 de Abril e
Centro de Estudos Sociais), na Baixa, entre outros.
35
A título de exemplo, os dados até 31/12/2016 informam que havia 442 510 visitantes aos vários espaços
turístico da UC, com maior incidência, sobretudo, na Biblioteca Joanina no complexo do Paço das Escolas.
Cf. (Capela de Campos & Murtinho, 2017a; Moreira, 2017). Esta realidade, acrescida de publicidades
mediáticas e cinematográficas (nomeadamente, pela utilização do modelo da Biblioteca Joanina no filme
A Bela e o Monstro (2017), do realizador Bill Condon e produção da Disney), deveria ser considerada para
uma gestão equilibrada destes números sobre estes espaços, tendo em conta o seu impacte sobre o patrimó-
nio, nomeadamente, aquele que continua a ser mais suscetível de perdas irreparáveis, pela sua especificidade
e pelas suas condicionantes e circunstâncias, como no caso da Biblioteca Joanina.
Em estudos já realizados para a UC-AS, onde se procurava fazer «um balanço sobre o
processo transformativo visível e consequente da candidatura e título PM» (Capela de Campos
& Murtinho, 2017a, 2017b), seriam verificadas algumas considerações, nomeadamente, o pa-
ralelismo e a complementaridade entre os processos de proteção e salvaguarda do património
com o desenvolvimento urbano na área urbana de influência do bem. A oportunidade gerada
a partir de uma candidatura patrimonial era assumida como um propulsor de algumas ativida-
des económicas, como o turismo ou a construção, sendo que, seja expectável por contamina-
ção, um investimento na reabilitação e requalificação urbana geradas por novas vivências (Fig. 3),
usos e comportamentos socioculturais urbanos, tanto pelo setor público como pelo privado.
Esta realidade traduzia-se no investimento verificado na área urbana considerada, ao nível do
setor público, pela requalificação dos espaços públicos, de infraestruturas e de equipamentos
socioculturais, fortemente impulsionados pela municipalidade. Adicionalmente, também o
setor privado vinha a acompanhar esta evolução no investimento dos recursos, sobretudo
pelas dinâmicas da requalificação urbana que se verificavam sobre a reabilitação do parque
habitacional e sobre o desenvolvimento de serviços, sobretudo, direcionados ao setor turístico.
Além disso, verificava-se que a oportunidade gerada pela inscrição da UC-AS na LPM,
ou seja, pela valorização de um VUE com um mediatismo internacional próprio nestas
dinâmicas e que potenciavam um aumento do número de visitantes nesses lugares PM
(Salazar, 2010), tinha sido aproveitada e gerida, também por uma perspetiva regional e ter-
ritorial, como eram evidência alguns projetos do Turismo do Centro, que estava a apostar
nos quatro Lugares Património Mundial do Centro de Portugal36.

Considerações finais

Pensar o património, não como uma memória do passado, mas antes um ativo da
contemporaneidade para o futuro, permite estabilizar uma plataforma de diálogo entre
gerações, que vão recebendo, usando, e acrescentando valor ao existente. Desta forma, 73 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

conhecer cada caso, contextualizando e enquadrando a sua evolução antes e depois de um


processo de candidatura, permite compreender os critérios evocados para a justificação de
um valor reconhecido. Neste trabalho é sublinhada a importância do papel da Península
Ibérica, na história cultural europeia e mundial, por ter um património universitário
único, reconhecido internacionalmente.
Já em 2009, a Direção Geral do Património Cultural promovia um projeto denominado Rota dos Mosteiros
36

Património da Humanidade da Região Centro, aprovado no âmbito do eixo estratégico da valorização do es-
paço regional do Programa Operacional Regional do Centro – MaisCentro, dentro do Quadro de Referência
Estratégico Nacional (QREN) de 2007 a 2013, onde estruturava apoios de intervenção sobre os então três
casos PM do Centro: o Mosteiro da Batalha e o Convento de Cristo em Tomar (1983) e o Mosteiro de
Alcobaça (1989). Cf. (Martins & Franca, 2017).
Por outro lado, o conhecimento produzido sobre cada caso, inerente a um processo
de candidatura, permite equacionar as várias prioridades numa gestão integrada, sobre o
património, como também, sobre o seu contexto urbano, numa ideia de continuidade da
fruição do património inserido em contexto urbano. Deste modo, é possível deduzir que o
reconhecimento de um VUE no âmbito da UNESCO, tanto pela comunidade como pelas
entidades locais, nacionais e internacionais, deve ser considerado um ativo, quer para uma
gestão sustentável de um sítio PM, quer pelo seu contributo na participação em protocolos
de planeamento e gestão integrada para uma maior coesão territorial.
No domínio e âmbito do PM verifica-se que as ações de proteção e salvaguarda, sobre
um património reconhecido pelos diversos agentes, potenciam uma transformação nas
dinâmicas socioeconómicas dentro do seu território de influência. A pertinência no es-
tudo destes exemplos justifica-se na articulação do entendimento e do conhecimento da
conformação espacial com os protocolos de gestão destes bens, dominados pelas relações
espácio-sociais subordinadas às diversas geografias e, por isso, cheias de especificidades
próprias do lugar e de cada território.
Este trabalho pretendeu estabelecer uma reflexão, baseada na analogia entre os
dois exemplos ibéricos inscritos na categoria das Universidades, na LPM – URHAH e
UC-AS –, a partir do delineamento estratégico que orientou as duas candidaturas e as
suas respetivas influências no desenvolvimento de dinâmicas socioculturais e económicas,
nos seus territórios de influência.
Num primeiro momento, contextualizou-se cada um dos bens, no âmbito da
UNESCO, aferindo que Alcalá de Henares e Coimbra assumiram um compromisso e
uma responsabilidade num plano internacional, ao afirmarem a proteção e a salvaguarda
do património como projeto de futuro. Este tópico permitiu aferir as convergências for-
mais entre os dois casos de estudo: os mesmos critérios de justificação do VUE; a mesma
categoria de inscrição; e o mesmo desígnio de proteção e salvaguarda do património.
Todavia, num segundo tópico, verificou-se que os dois casos apresentam divergências
74 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

intrínsecas, decorrentes de acontecimentos e dinâmicas próprias, enquadrados pelas va-


lências históricas, geográficas, políticas e socioculturais únicas e específicas de cada caso.
Ainda assim, é sobre o mesmo desígnio de proteção e salvaguarda do património que
tecem as suas diretrizes para estabelecerem o compromisso e a responsabilidade de futuro.
No entanto, essas diretrizes são estipuladas, no caso espanhol, num processo de continui-
dade com aquilo que já estava a ser feito e, no caso português, como eixo estratégico e,
portanto, gerador de dinâmicas de desenvolvimento urbano.
Para finalizar, verificou-se que se a influência das candidaturas nas dinâmicas urbanas
foi consequente num plano material inerente a dinâmicas de reabilitação e requalificação
dos vários espaços públicos e privados, também o foi num plano imaterial subjacente a
dinâmicas estipuladas por novas práticas socioculturais, de uso e de apropriação do espaço,
próprias da contemporaneidade.
A produção de conhecimento sobre estes casos, onde o bem patrimonial está inserido
num contexto urbano, pode ser um estímulo para que, cada vez mais, seja possível uma par-
ticipação ativa de todos os intervenientes em relação àquilo que, por princípio, é de todos.
Por conseguinte, esta analogia pretendeu, também, ser um contributo para se conhecer me-
lhor estes exemplos, que viram reconhecido um VUE, não só pela sua qualidade no passado,
mas, sobretudo, pela sua possibilidade de futuro como centros dinamizadores de cultura e
de cidades do saber, por uma inter-relação de continuidade do paradigma univer(sc)idade.

Referências

Askew, M. (2010). The magic list of global status: UNESCO, World Heritage and the agendas of states. In
S. Labadi & C. Long (Eds.), Heritage and globalisation (pp. 19–44). Milton Park, Abingdon, Oxon,
England ; New York, NY: Routledge.
Bazin, G. (1960). La bibliotèque la plus fastueuse que j’aie jamais vue. In Connaissance des Arts, 66–71.
Buescu, A. I. (2005). D. João III. 1502-1557. Rio de Mouro: Círculo de Leitores.
Capela de Campos, J., & Murtinho, V. (2017a). O passado em permanente construção. O património em
transformação. O caso da Universidade de Coimbra – Alta e Sofia Património Mundial. In Cadernos de
Geografia, (36). No prelo.
Capela de Campos, J., & Murtinho, V. (2017b). O passado em permanente construção. O patrimó-
nio em transformação. O caso da Universidade de Coimbra – Alta e Sofia Património Mundial. In
F. Cravidão et al. (Eds.), Local identity and tourism management on world heritage sites. Trends and
challenges. Conference Proceedings | Identidade local e gestão turística de sítios património mundial.
Tendências e desafios. Livro de atas (pp. 87–110). Coimbra: Departamento de Geografia e Turismo e
CEGOT – Universidade de Coimbra.
Capela de Campos, J., & Murtinho, V. (2017c). Património Mundial: democracia e diversidade. Estudos do
Século XX, (17), 145–161. https://doi.org/https://doi.org/10.14195/1647-8622_17_8
Capela, J., & Murtinho, V. (2014). A World Heritage Application as an opportunity for urban interven- 75 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
tion: the case of Coimbra. In 18th ICOMOS General Assembly and Scientific Symposium «Heritage
and Landscape as Human Values»: Theme 5 – Emerging tools for conservation practice, 10-14 november,
Florença, Itália.
Capela, J., & Murtinho, V. (2015). The dual logic of heritage in the field of architecture. In Segundo
Congreso Internacional de Buenas Prácticas en Patrimonio Mundial (pp. 124–145). Menorca: Universidad
Complutense de Madrid.
Carvalho, R. de. (1996). História do Ensino em Portugal. Desde a Fundação da Nacionalidade até ao Regime de
Salazar-Caetano. (2a ed). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Casa Martín, F. da, & Garcia Bodega, A. (2014). La Universidad de Alcalá en la Provincia de Guadalajara. In
J. Rivera Blanco & Universidad de Alcalá (Eds.), Universidad de Alcalá. Patrimonio de la Humanidad –
World Heritage (2a, pp. 58–69). Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá.
Chías Navarro, P. (2014). El nuevo campus universitario. In J. Rivera Blanco & Universidad de Alcalá (Eds.),
Universidad de Alcalá. Patrimonio de la Humanidad – World Heritage (2a, pp. 48–57). Alcalá de Henares:
Universidad de Alcalá.
Clemente San Román, C., & Quintana Gordon, J. L. de la. (2014). La restauración y conservatión de los edifi-
cios universitarios. In J. Rivera Blanco & Universidad de Alcalá (Eds.), Universidad de Alcalá. Patrimonio
de la Humanidad – World Heritage (2a, pp. 70–91). Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá.
Contreras, J. (2014). La Universidad de Alcalá y el «Futuro de Cisneros». In J. Rivera Blanco & Universidad
de Alcalá (Eds.), Universidad de Alcalá. Patrimonio de la Humanidad – World Heritage (2a, pp. 112–127).
Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá.
Dias, P. (1994). Coimbra como testemunho das grandes universidades históricas europeias. In La Ciudad del
Saber: Ciudad, universidad y utopia 1293-1993, Alcalá de Henares, julho 1993, Coimbra: Pedro Dias.
Dias, P., & Gonçalves, A. N. (sem data). O Património Artístico da universidade de Coimbra. (ed. rev. e aumen-
tada). Coimbra: Gradiva.
Echeverría Valiente, E. (2005). El Campus Universitario de Alcalá de Henares: análisis y evolución. (doutoramen-
to). Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Madrid – Universidad Politécnica de Madrid, Madrid.
Galván, F. (2014). Presentación. In J. Rivera Blanco & Universidad de Alcalá (Eds.), Universidad de Alcalá.
Patrimonio de la Humanidad – World Heritage (2a, pp. 6–12). Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá.
Lobo, R. P. (2006, Setembro). Rua da Sofia um campus universitário em linha. In Monumentos 25 – Dossier
Coimbra, da Rua da Sofia à Baixa, (25), 24–31.
Lobo, R. P. (2010). A Universidade na cidade: urbanismo e arquitectura universitários na Península Ibérica da
Idade Média e da Primeira Idade Moderna (doutoramento). Universidade de Coimbra, Coimbra.
Lopes, N. R. (Ed.). (2012a). Universidade de Coimbra – Alta e Sofia. (Universidade de Coimbra, Vols. 1–8).
Coimbra: Universidade de Coimbra.
Lopes, N. R. (Ed.). (2012b). Universidade de Coimbra – Alta e Sofia. Candidatura a Património Mundial
(Universidade de Coimbra, Vol. Livro 1). Coimbra: Universidade de Coimbra.
Martín Jiménez, M. I. (2016). Patrimonio y paisaje en España y Portugal. Del valor singular a la integración
territorial. In Boletín de la Asociación de Geógrafos Españoles, (71), 347–374. https://doi.org/10.21138/
bage.2286
Martins, R., & Franca, M. (2017). Património património cultural e investimento público na região centro
de Portugal. Estudo de caso dos monumentos património da humanidade. In F. Cravidão et al. (Eds.),
Local identity and tourism management on world heritage sites. Trends and challenges. Conference Proceedings
| Identidade local e gestão turística de sítios património mundial. Tendências e desafios. Livro de atas (pp.
76 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

367–383). Coimbra: Departamento de Geografia e Turismo e CEGOT – Universidade de Coimbra.


Moreira, C. O. (2017). World Heritage, tourism and destination management. Thinking from the University
of Coimbra – Alta and Sofia, Portugal. In 5th UNESCO Unitwin Conference, 18-22 April, Coimbra.
Pimentel, A. F. (2005). A morada da sabedoria: o Paço Real de Coimbra – das origens ao estabelecimento da
Universidade. Coimbra: Almedina.
Rebanks Consulting Ltd, & Trends Business Research Ltd. (2009). World Heritage Status: Is there opportunity
for economic gain? Research and analysis of the socio-economic impact potential of UNESCO World Heritage
Site status (Projeto de Investigação Internacional). Cumbria: Lake District World Heritage Project.
Rivera Blanco, J. (2014). La Universidad de Alcalá, Patrimonio de la Humanidad Patrimonio Cultural
Universal. In J. Rivera Blanco & Universidad de Alcalá (Eds.), Universidad de Alcalá. Patrimonio de la
Humanidad – World Heritage (2a, pp. 18–35). Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá.
Rossa, W. (2001). Diver(sc)idade urbanografia do espaço de Coimbra até ao estabelecimento definitivo da univer-
sidade. (doutoramento). Darq, FCTUC, Coimbra.
Rossa, W. (2006, Setembro). A Sofia, primeiro episódio da reinstalação moderna da Universidade portuguesa.
In Monumentos 25 – Dossier Coimbra, da Rua da Sofia à Baixa, (25), 16–23.
Salazar, N. B. (2010). The glocalisation of heritage through tourism: balancing standardisation and differen-
tiation. In S. Labadi & C. Long (Eds.), Heritage and globalisation (pp. 130–146). Milton Park, Abingdon,
Oxon, England ; New York, NY: Routledge.
Smith, L. (2017). Heritage, Identity and Power. In H.-H. M. Hsiao, H. Yew-Foong, & P. Peycam (Eds.),
Citizens, Civil Society and Heritage-Making in Asia (pp. 15–39). Singapore: ISEAS Publishing.
UNESCO World Heritage Centre. (2016). Basic Texts of the 1972 World Heritage Convention. Paris: UNESCO
World Heritage Centre.
Universidade de Coimbra. (2005). Projecto de Candidatura da Universidade de Coimbra a Património Mundial.
Coimbra: Universidade de Coimbra.
Vallhonrat, C. (Ed.). (1997, Junho). Application for inclusion in the List of World Heritage of the University and
Historic Precinct of Alcalá de Henares – first university city model of modern times. Universidad de Alcalá y
Ayuntamento de Alcalá de Henares.
World Heritage Committee. (1999, Janeiro 29). WHC-98/CONF.203/18: Report of the 22nd Session of the
World Heritage Committee: Convention concerning the protection of the World Cultural and Natural Heritage
(Kyoto, 1998). UNESCO-WHC.
World Heritage Committee. (2013, Maio 7). WHC-13/37.COM/20: Decisions adopted by the World Heritage
Committee at its 37th session (Phnom Penh, 2013). UNESCO-WHC.
Zancheti, S. M., & Loretto, R. P. (2015). Dynamic integrity: a concept to historic urban landscape. In Journal
of Cultural Heritage Management and Sustainable Development, 5(1), 82–94. https://doi.org/https://doi.
org/10.1108/JCHMSD-03-2014-0009.

77 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial


De Floresta a Fábrica, de Fazenda a Floresta:
Paisagem Cultural e Desafios à Preservação
da Memória no Interior do Brasil

Rita de Cássia Lana


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Introdução

O objetivo deste texto é apresentar a problemática que subjaz a uma paisagem cultural
de interesse turístico em um espaço específico, portador de significados da herança cultural
na região de Sorocaba, estado de São Paulo – Brasil; trata-se do caso: a) dos remanescentes
de patrimônio arquitetônico-industrial da Real Fábrica de São João do Ipanema, criada
por Carta Régia de D. João VI em 04 de dezembro de 1810, um conjunto de edificações
tombado pelo IPHAN e internacionalmente reconhecido; b) registros documentais e icônicos-
-fotográficos dos processos sócio-econômicos que produziram a chamada “Revolução
Verde”, em meados do séc. xx, neste mesmo espaço da chamada Fazenda Ipanema e c) dos
significados sobrepostos a estas camadas de memória com o advento da unidade de conser-
vação Floresta Nacional de Ipanema no início dos anos 1990 na mesma paisagem cultural.
Assim, pode-se dizer que se este espaço físico-natural originalmente recoberto pela
79 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Mata Atlântica foi habitat de etnias indígenas sucedidas pelos colonizadores portugueses e
espanhóis interessados nas riquezas de seu subsolo, situação que durou de 1597 até 1810,
quando se tornou a Real Fábrica de Ferro, convertendo-se na virada do século xx na
Fazenda Ipanema e chegou às primeiras décadas do século xxi como Floresta Nacional de
Ipanema, estamos diante de uma superposição de camadas históricas de densidade variada
e ao desabrigo de políticas de preservação destes muitos componentes que refletem mais
de 500 anos de história e cultura neste local único.
Pelo que oficialmente se estabeleceu em termos da legislação sobre patrimônio histó-
rico cultural brasileiro, existe proteção por processo de tombamento do IPHAN/Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ao conjunto de remanescentes da Real
Fábrica de Ferro desde 1964; esta proteção diz respeito a uma área delimitada no docu-
mento técnico e que inclui o conjunto de edificações e ruínas que foram posteriormente
objeto de restauros parciais, por diversas vezes; entretanto, nunca se logrou que ao restauro
e limpeza do sítio histórico se estabelecesse um programa de educação patrimonial con-
jugado ao uso turístico e de lazer bem sucedido, mesmo levando-se em conta o potencial
de uma área em que se poderia falar da história do país desde a colônia até o advento da
república (ainda que se deva ressalvar as iniciativas de prover qualificação para que os guias
que atuam nas trilhas naturais da Floresta Nacional informem aos visitantes dados sobre o
passado industrial da unidade de conservação).
Por outro lado, o decreto 530 que criou a unidade de conservação na categoria de
Floresta Nacional em 1992 colocou os termos de uso, preservação e exploração do local
e de seu subsolo, inserindo-a no sistema mais amplo de gestão pelo Ministério do Meio
Ambiente que se denomina SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação; den-
tro da lógica que é vigente neste aparato legal, cada unidade de conservação deve ter um
plano de manejo, documento que rege e orienta todas as ações que são permitidas aos ges-
tores e à comunidade de visitantes, inclusive contemplando objetivos de pesquisa e edu-
cativos, bem como de lazer e turístico, usos econômicos e extrativos, etc. Como a Floresta
Nacional compreende a área maior da Fazenda Ipanema e o sítio dos remanescentes da
Real Fábrica de Ferro está inserto nela, tem-se uma situação em que dois instrumentos de
proteção, oriundos de fontes legais separadas, se sobrepõem.
Ao contrário do que poderia parecer óbvio, não houve uma sinergia imediata entre os ór-
gãos responsáveis pela gestão conjunta da FLONA de Ipanema e sítio histórico da Real Fábrica
que se refletisse em termos de visitação e oferta de produtos turísticos e educativos; o que se
viu ao longo dos últimos vinte e cinco anos, ou seja, desde que houve a criação da unidade de
conservação, foi um suceder de desencontros entre os gestores, pontuado de períodos curtos
em que tentativas de ações conjuntas se perderam ou foram paulatinamente abandonadas.
Esta avaliação se apóia em primeiro lugar no que se encontra nos documentos dos ór-
80 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

gãos responsáveis (ICM/BIO, pelo Ministério do Meio Ambiente e 9a.Superintendência do


IPHAN, pelo Ministério da Cultura), mas também pelo que não está dito nas homepages
destes órgãos e principalmente no sítio eletrônico da FLONA de Ipanema. Desde 2005 a
autora acompanha em visitas anuais a situação in loco bem como através de notícias em peri-
ódicos da região e contato direto com pesquisadores e funcionários que atuam na unidade de
conservação. Este percurso levou a algumas reflexões que vão a seguir e como se chegou a elas.
Aponta-se que para além da denominação do patrimônio “de pedra e cal” ou edificado
e a pretensa intangibilidade do meio natural (de resto fabricada, pois a Mata Atlântica ori-
ginal foi completamente devastada e recomposta posteriormente por ação humana) está a
se exigir um avanço nas concepções para o estabelecimento de relação do físico/natural com
seu oposto/complementar, qual seja, o legado intangível que recobra visibilidade através da
execução e manutenção de técnicas, elaboração de produtos e práticas que modificam o
espaço natural, convertendo-o em paisagem cultural: marca da ação humana no território
ao longo do tempo; repositório de afetividades e conflitos que converte um local em lugar,
espaço impregnado pela memória das gerações passadas que se endereça ao futuro.

Notas para a discussão da imaterialidade e sua aplicação ao caso


da Fazenda Ipanema

O patrimônio cultural gerado pelas atividades econômicas agro-industriais no Brasil


é tão plural quanto desconhecido em seus aspectos mais recentes e característicos; de fato,
se a história das técnicas tem revelado um potencial para desvendar particularidades de
práticas do cotidiano das populações em um passado remoto, é inquietante constatar o
interesse ainda incipiente que as técnicas surgidas contemporaneamente e seus registros
despertam. A inquietação se justifica pelo ritmo acelerado das inovações que na sociedade
atual faz desaparecer formas de viver e de fazer, substituindo-as total ou parcialmente em
questão de poucos anos, e também pela falta de preocupação em registrar aquilo que se
torna obsoleto. Em relação a certas práticas cotidianas do século xix e xx, seus instrumen-
tos de uso diário, conhecimentos implícitos na utilização dos mesmos e como estes eram
difundidos paira um silêncio, uma ausência de informações para além das generalidades
– e que se torna tanto mais espesso quanto mais se aproxima o final do século passado.
Ao examinar o caso dos patrimônios em risco na Floresta Nacional de Ipanema,
pressupõe-se estabelecer de que condições e características se depreende a análise em
curso. Desta forma, apresenta-se alguns dados para situar o espaço e suas peculiaridades.
Para um entendimento do que constitui o espaço representado na Figura 1, rememore-
-se algumas marcas culturais ao longo da ocupação humana neste local:
81 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
– Vestígios de sítios arqueológicos pré-históricos;
– Trechos de caminhos usados pelos indígenas anteriores à chegada dos europeus,
usualmente designados como peabirus;
– 03 trilhas que se encontram, segundo o zoneamento da unidade de conservação na
chamada “área primitiva”, quais sejam:
a) Trilha de Afonso Sardinha – a partir do Sítio Histórico existe um percurso de 1.600m
que acompanha o Ribeirão do Ferro e leva até ruínas da primeira tentativa para extração
de minério na área do Morro de Araçoiaba, chamados “Fornos de Afonso Sardinha”; esses
fornos eram do tipo direto, como se vê na Figura 2 e constituem o que restou do empre-
endimento levado a frente por volta de 1597 pelo bandeirante Afonso Sardinha; de acordo
com Zequini (2007), foi a primeira tentativa de instalar uma fábrica de ferro no Brasil de
que se tem registro:

Figura 1. Localizaçâo da Flona de Ipanema:


Coordenadas geográficas: 23º 25’ 49”S; 47º 37’ 22”O
82 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 2. Foto do Sítio Histórico Afonso Sardinha


Fonte: Luciano Bonatti Regalado/Cruzeiro do Sul, 2011
b) Trilha dos Fornos de Cal: derivando da trilha de Afonso Sardinha, tem cerca de
1.500 metros e passa por onde havia fornos de produção de cal no século xix, atravessando
por trechos de mata reconstituída.
Trilha da Pedra Santa/Cruz de Ferro da Pedra Branca e Monumento à Varnhagen: é
uma trilha de 06 quilômetros em subida para um mirante no topo do Morro de Araçoiaba,
de onde se descortina a região do entorno amplamente em dias claros; aproximadamente
na metade da subida encontra-se uma saliência rochosa na qual teria habitado um monge
eremita, de acordo com crenças populares capaz de realizar curas milagrosas – daí vem o
nome “pedra santa” e permanecem ainda sinais de culto, inscrições semi-apagadas além das
tradições que ligam a figura do monge a outro religioso considerado santo que teria surgido
na região do Contestado, Santa Catarina, no período inicial do século xx. Além do mirante,
o final da trilha conduz ao Monumento dedicado à Varnhagen, diplomata brasileiro que
nasceu no local e é considerado o pai da história do Brasil, como se pode ver na Figura 3:

83 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 3. Vista do Monumento à Varnhagen


Foto de Divulgação/Prefeitura Araçoiaba da Serra
– Um Sítio histórico, na chamada “Zona de Uso Público”, em cujo espaço encontram-se as
seguintes edificações: Alto Forno Mursa, Altos Fornos Geminados, Antiga Sede Administrativa,
Casa da Guarda, Casa das Armas Brancas, Cruz de Ferro, Depósito de Arreios, Fornos de
Carvão, Ponte Articulada, Relógio de Sol, Represa Hedberg, Oficina de Modelagem, Engenho
de Serrar e Cemitério Protestante; esta enumeração encontra-se na homepage do ICMBio,
juntamente com a seguinte advertência ao possível interessado na visitação: “Devido a loca-
lização e apelo visual, o Sítio Histórico, mesmo que não seja percorrido em toda a sua extensão,
e nem mesmo seja a motivação original do visitante, é uma área de visitação obrigatória durante
sua permanência na UC.” (sublinhado meu). Também se encontra em alguns locais da mesma
homepage a denominação de “Trilha do Sítio Histórico”, com a informação de que para este
“percurso” não há necessidade de guia, sendo esta uma “opção” do visitante”.
Ainda haveria que mencionar a existência no espaço da FLONA de Ipanema de outra
localidade de povoamento, a Vila Smith e também as instalações de diversos momentos do
século xx para atividades de exploração dos minerais no subsolo, além do desenvolvimento
de implementos e insumos agrícolas, seja de sementes, maquinário e técnicas que permi-
tiram alcançar modernização de padrões nas atividades, assim como o período dedicado à
escola de pilotagem de aviões agrícolas que impulsionaram o aumento na produtividade
do campo brasileiro a partir da metade final do século xx.
A partir daqui já se pode retornar ao que foi sugerido no início deste trabalho: que ine-
xiste uma sinergia entre os órgãos que atuam como gestores no caso da FLONA de Ipanema,
embora haja funcionários (como no passado também houve) que demonstram dedicação e
procuram ir muitas vezes além de seus deveres para solucionar problemas graves de conser-
vação tanto do meio natural quanto dos edifícios que constituem o patrimônio histórico.
O plano de manejo da FLONA de Ipanema, como seu documento de diretrizes e
normas foi revisto recentemente (a última revisão data de 2017) e traz algumas diferenças
interessantes em relação a planos de manejo anteriores. O diagnóstico que é feito neste
documento continua apresentando inconsistências e omissões de questões que se referem
84 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

ao Sítio Histórico, mas tem sido mais detalhado e cuidadoso com outros dados sobre o
que ocorreu no local durante os anos de gestão do Ministério da Agricultura (praticamente
o século xx todo) e também ao tratar das pretensões de empresas de mineração de forma
mais aberta, balizada e esclarecendo riscos ao ambiente natural que diversas atividades
antrópicas acarretam. Sem dúvida estas alterações representam um sinal de que há uma
intenção de caminhar para um trabalho mais integrado com órgãos como o IPHAN, mas
o equacionamento para que isto venha a ocorrer não parece ser evidente pelo teor dos
documentos e do material em disponibilidade ao público para divulgação.
Tanto é assim que a definição sobre o que seria paisagem cultural (entendida aqui
como uma soma das atividades humanas e do meio natural que vai produzir singularidades
e diversidade ao que o olho captura, proporcionando a emergência de afetividades e assim
possibilitando caminhos para a educação patrimonial e ambiental) não aparece de forma
clara no documento de manejo, mas antes sinaliza visões que ainda carregam preconcei-
tos e estereótipos românticos acerca do que merece ou não ser preservado no âmbito da
FLONA de Ipanema.
A linguagem trai o que há de contradição neste caso: o Sítio Histórico, citado várias
vezes no volume de diagnóstico do plano de manejo como “de rara beleza”, compondo um
todo harmônico com a paisagem do Morro de Araçoiaba é tratado nas instruções aos visi-
tantes com o menoscabo de “não necessita de guia, sendo opcional”; então a história seria
auto-evidente ou algo opcional? Os elementos de sinalização (placas e totens) que estão
disponíveis nos locais que integram o sítio histórico são parcos de informação e muitas
vezes limitam-se a dizer o nome e dar alguma referência vaga sobre que tipo de atividade
ocorria no espaço, faltando dados de que função tinha no todo maior da organização do
ciclo metalúrgico, como as camadas de sentido de outras atividades se sucederam ao longo
dos anos e reaproveitaram determinadas configurações espaciais, até que se tornaram tão
estranhas que o abandono foi completo e muito se perdeu.
Por outro lado, o volume que se destina ao planejamento no documento de manejo
parece indicar até com alguma ênfase um passo na direção da atividade turística (indica-se
o uso de diversos edifícios para concessão de restaurante, cafeteria, infraestrutura hoteleira e
pousada(sic), loja de souvenires e assim por diante; naturalmente isto terá que ser proposto
na área histórica por razões diversas, mas a principal é um reconhecimento implícito que a
sustentabilidade financeira e de interesse pela existência da FLONA passará sem dúvida pela
capacidade de atrair visitantes e gerar aportes financeiros diversificados que permitam frear
a deterioração do patrimônio histórico-cultural. Daí a proposição de que a Casa da Guarda
seja destinada aos serviços de café e restaurante e a antiga sede do CENEA se converta em
pousada, como pode ser visto em um dos programas de manejo contidos no plano geral.
E na página 108, que trata de diretrizes para o programa da área de uso público, i.é.,
85 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
do sítio histórico principalmente, pode-se ler como atividades a serem desenvolvidas:
“– Apresentação de espécies notáveis da fauna, acompanhadas de ilustrações ou fotos, com
destaque para as espécies endêmicas e /ou em extinção;
– Apresentação sucinta dos principais aspectos históricos e culturais da Flona e
região;(...)”(sublinhado meu)

A discrepância entre o tratamento dos conteúdos naturais e sócio-culturais fica es-


cancarada neste ponto; para tratar de mais de quatrocentos anos de história do local e
da região bastará uma apresentação sucinta – outro exemplo de que a gestão se esforça
para atingir algo além do que tem sido feito, mas se compromete negativamente nestes
pequenos detalhes que acabam por revelar a concepção que subjaz ao pensamento dos ela-
boradores/gestores deste espaço natural e do patrimônio histórico-cultural aí depositado.
Retornando ao debate sobre a imaterialidade, chega-se ao ponto que importa destacar:
não se trata de investir dinheiro para restaurar edifícios industriais meramente pela beleza ar-
quitetônica ou singularidade do exemplar colonial, de que sem dúvida os remanescentes são
detentores, mas de devolver-lhes os sentidos das lides humanas que animaram o seu interior,
de trazer à memória das novas gerações formas de vida que não possuem mais que registro
empoeirados adormecidos em arquivos distantes; trata-se de a partir de documentos de
época ou de especialistas nas temáticas dos ofícios exercidos na Fazenda Ipanema e na Real
Fábrica de Ferro, inumar práticas e labores que novamente darão a medida o engenho huma-
no em sua faina de séculos para atingir o patamar de conhecimentos no qual nos achamos.
Como se vê na figura 4, é possível ter indicações sobre aparatos e funcionamento
de diversos edifícios que funcionavam na Real Fábrica de Ferro, em muitos artefatos
nela produzidos estampados apenas com a sigla FFI. O que ressalta no desenho mi-
nucioso de Dupré é o aproveitamento dos desníveis da represa Hedberg para gerar
energia e resfriamento das máquinas em operação; infelizmente, os canais que condu-
ziam as águas nesse trajeto estão enterrados por episódios de períodos chuvosos que
trouxeram cheias e deixaram submerso grande parte do sítio histórico, como se pode
ver em imagens até recentes.
86 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 4. Carta topográfica do Distrito de Ipanema, de Leandro Dupré. Foto da Acervo da Autora
Figura 5. Represa Hedberg. Jornal Cruzeiro do Sul/Foto:Emidio Marques, 2012

Como não oferecer ao público, ao visitante da FLONA de Ipanema alguma explicação


sobre o quanto se pode compreender do desenvolvimento de questões do mundo con-
temporâneo e dos caminhos que nos trouxeram ao século xxi ao passar por estes edifícios
mudos mas tão eloquentes? Na imaterialidade da técnica reside a humanidade das gerações
que a praticaram e depuseram suas esperanças de melhorias para as gerações vindouras; daí
também se elevam as vozes dos trabalhadores que se gastaram em existências extenuantes,
87 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
fossem homens escravizados por outros ou pela própria vontade de arrancar segredos de
uma natureza ainda desconhecida em parte, como o foi Varnhagen pai. O patrimônio
industrial se converte em uma arqueologia não apenas de artefatos e máquinas, mas dos
cotidianos de diferentes grupos sociais em busca da sobrevivência diária.

Se o espaço revelar o tempo – uma fagulha de esperança

Em 2009 foi criado o NEHA – Núcleo de Estudos Históricos e Ambientais, no âm-


bito da chefia da FLONA; trata-se de uma iniciativa para reunir e buscar salvaguardar
objetos, livros, documentos e muitos outros itens de tipologias museológicas diversas que
pudessem lançar luz sobre o passado deste local fascinante, onde camadas de significações
e dados históricos se adensam, formando um notável emaranhado de ações que se entre-
laçam ao fio central da história nacional mas que também se conectam com as cidades do
seu entorno: Sorocaba, Iperó, Araçoiaba, Capela do Alto, Bacaetava. No seu sítio eletrônico
explica-se sua intencionalidade:

“O Centro de Memória de Ipanema tem sua origem no Núcleo de Estudos


Históricos e Ambientais criado por meio da Portaria FNI nº 01/2009 publicado no
Boletim de Serviço do ICMBio em 21 de Setembro de 2009. A partir da publicação
da Portaria FNI nº 03/2012, de 06 de novembro de 2012, o Núcleo de Estudos
passou a ser denominado de Centro de Memória de Ipanema, apresentando os
seguintes objetivos:​​
– Localizar, recolher, recuperar, reproduzir, organizar e conservar a documenta-
ção referente aos aspectos históricos e ambientais da Floresta Nacional de Ipanema e
da região onde se encontra inserida;​
– Promover a integração de profissionais e interessados na discussão de temas e
assuntos históricos e ambientais ligados à Floresta Nacional de Ipanema;
– Organizar e implantar acervo histórico, banco de imagens e biblioteca
temática;
– Disponibilizar para consulta pública as informações por meio de instrumentos
de pesquisa;
– Colaborar em programas e atividades culturais e educativas com a finalidade
de preservar e divulgar a memória histórica da Floresta Nacional de Ipanema.
– Colaborar na implantação, preservação e divulgação da memória institucional
do ICMBio.” (disponível em: http://memoriafni.wixsite.com/memoriaipanema/criao)
88 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Muita coisa se achava guardado na própria FLONA, mas sem acondicionamento ade-
quado e em condições que propiciavam a deterioração acelerada. A parte iconográfica era
uma das mais atingidas, pois o material fotográfico não dispunha sequer de sala para que
fosse pelo menos colocado em separado e pudesse ser higienizado e tratado. Algumas des-
tas imagens podem ser vistas por vezes em reportagens que jornais da região publicam, mas
se encontram ainda dispersas por acervos particulares muitas vezes e com risco de serem
descartadas, como por exemplo o registro da paisagem feito na FIGURA 6:
Figura 6. Vista aérea da Vila de São João do Ipanema. Fonte: Venedável Acosta, 1978

Com a perspectiva de ações preservacionistas destes suportes da memória, em 2012


o NEHA passou a ser o Centro de Memória da FLONA de Ipanema, com atividades de
exposições, pesquisas e palestras bem como práticas de conservação preventiva de acervos.
Seus fundos reúnem itens bibliográficos, iconográficos, cartográficos, museais e também
de multimedia, que através de parcerias com especialistas diversos vem sendo catalogados,
escaneados, classificados e estudados. Ainda está se constituindo e resta esperar que a re-
visão do Plano de Manejo venha a impulsionar esta perspectiva de entender a paisagem
89 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
cultural da FLONA de Ipanema pelas suas múltiplas faces, sem que nenhuma prevaleça
sobre a outra, pois todas são essenciais para entender cada um de seus nuances.
Como já indiquei alhures, parece que ao se examinar as peculiaridades da relação espaço-
-tempo à luz das lembranças que podem estar contidas em um determinado ambiente se
afirma a tese: “O espaço esconde o tempo”, isto é, ver o espaço em seu estado atualizado
é não ver tudo o que este mesmo espaço já foi, sua trajetória no tempo. A memória, frag-
mento do tempo resgatado ao esquecimento, é diretamente atingida por esta consideração.
Elevar um momento específico do espaço ao estatuto de patrimônio, de lembrança dotada
de valor coletivo significa, antes de mais nada, relegar todos os outros momentos ao limbo,
à desvalia do olvido. Outro perigo ainda se apresenta na espinhosa tarefa de gerenciar o
patrimônio sem despojá-lo de seu potencial transformador e formador de consciência: a
recuperação do conhecimento em termos de know-how, do saber fazer das práticas diárias
(das quais o espaço é suporte), e que em muitos casos é só o que pode vir a ser conhecido
de uma imensa massa de indivíduos que desapareceram sem deixar qualquer outro traço
biográfico. Reconhece-se já de algum tempo que o mundo do trabalho é o principal con-
formador de boa parte do imaginário das populações e que os usos e costumes em seu
âmbito são pistas preciosas para conhecer um passado ainda por ser estudado.
No Brasil de forma geral e no caso da FLONA de Ipanema em particular necessário é
que os gestores se dêem conta do que se torna essencial para que se possa superar o dilema
em que se encontra o patrimônio das práticas industriais e agro-industriais nas últimos qua-
trocentos anos; também é relevante perceber que o tratamento deste tema pode ser interes-
sante para o entendimento de como ainda não se desenvolvem políticas públicas para certas
áreas da memória social, que sofrem o estigma de não serem entendidas pelos agentes públi-
cos como portadoras de valor coletivo e de significados a serem recuperados e preservados.

Bibliografia

BARBOSA, Francisco de Assis. D. João VI e a siderurgia no Brasil. Revista do IHGB, Rio de


Janeiro, p. 158-170, 1958.
BRASIL. Decisão n. 422, de 25 de novembro de 1867. Manda observar provisoriamente, o regula-
mento de 25 de novembro de 1867, para a Fábrica de Ferro de São João de Ipanema. Coleção
das decisões do Governo do Império do Brasil, Rio de Janeiro, p. 439-51, 1868.
____. Decreto n. 6.727, de 3 de novembro de 1877. Transfere para o Ministério da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas a Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, na Província de São
Paulo. Coleção das leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro, v. 2, p. 867, 1877.
____. Relatório apresentado à Assembléia Geral Legislativa na primeira sessão da décima primeira
legislatura pelo ministro e secretário do Estado dos Negócios da Guerra Marquês de Caxias.
90 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2205/000013.html>. Acesso em: 6 mai. 2016.


____. ICMBIO – Revisão do Plano de Manejo da FLONA de Ipanema 2017. Disponível em :
http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/plano-de-manejo/pm_flona_de_ipanema_vol_
II_planejamento.pdf. Acesso em 24/03/2017.
DANIELI NETO, Mario. Escravidão e indústria: um estudo sobre a Fábrica de Ferro São João de
Ipanema (Sorocaba, São Paulo, 1765-1895). Tese (Doutorado em Economia) – Universidade
Estadual de Campinas, São Paulo, 2006.
DUPRÉ, Leandro. Memória sobre a Fábrica de Ferro de São João de Ipanema. Annaes da Escola de
Minas de Ouro Preto, n.4, 1885.
FELICISSIMO JR., Jesuíno. História da siderurgia de São Paulo, seus personagens, seus feitos. São
Paulo: Rothschild- Loureiro, 1969, 153 p. il.
KÜHL, Beatriz Mugayar. Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo, reflexões sobre a
sua preservação. São Paulo, Ateliê, SEC, FAPESP, 1998.
LANA, Rita de Cássia. Da pedra e cal ao intangível: paisagem cultural e educação patrimonial na
região de Sorocaba – SP. SILVA, C.H.C; SILVA, E.N. (Orgs). Chão da Terra: Olhares, reflexões
e perspectivas geográficas de Sorocaba. Curitiba: Editora CRV, 2016.
____. Baionetas e tratores: o registro das técnicas no Brasil e suas vicissitudes em um caso pau-
lista. Anais do XII Congresso da ABRACOR – Associação Brasileira de Conservadores e
Restauradores de Bens Culturais, Fortaleza, 2006.
LE GOFF, Jacques História e memória. Trad. Irene Ferreira, Bernardo Leitão e Suzana Ferreira
Borges. 5ª. ed. Campinas: Editora UNICAMP, 2006
LINHARES, Maria Yedda & SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. História da agricultura brasileira:
combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1981.
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O intendente Câmara: Manoel Ferreira da Câmara Bethencourt
e Sá (1764-1835). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1933.
ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica: vissicitudes das ciências, cacofonia na física. Rio
de Janeiro: Livro Ibero-americano, 1963.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.
RIBEIRO, Mariana Alice Pereira Schatzer. Entre a fábrica e a senzala: um estudo sobre o cotidiano
dos africanos livres na Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema – Sorocaba – SP (1840-
-1870). 2014. 185 f. Dissertação (mestrado). Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Ciências e Letras de Assis, 2014
VARGAS, M. (Org.) História da técnica e da tecnologia no Brasil. São Paulo: EdUNESP, 1994
ZEQUINI, Anicleide. Técnica e mineradores: a produção do ferro no Brasil nos séculos xvii-xviii.
Disponível em: <http://www.preac.unicamp.br/memoria/textos/Anicleide Zequini – completo.
pdf>. Acesso em: 8 jul. 2008.

91 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial


A alteração da paisagem na Mina de São
Domingos como problema metodológico:
A valorização do seu património para um
turismo industrial insustentável

Vanessa Alexandra Pereira


Investigadora associada do Instituto de História Contemporânea da FCSH/
Universidade Nova de Lisboa

Introdução

A exploração dos recursos geológicos é praticada desde a Antiguidade, com enfoque para
o período romano, que no território português assentou a partir do século I. É, contudo,
com o advento da centúria de Oitocentos, após a moderna industrialização e o consequente
alargamento da sua influência aos diversos territórios, primeiramente europeus e posterior-
mente ao nível global, que a actividade extractiva adquiriu uma dimensão nunca antes observada
na economia mundial. Embora os tempos sejam outros, o estatuto desta indústria ainda hoje
se mantém, por ser principal responsável pelo abastecimento de matérias-primas cruciais ao
desenvolvimento e continuidade de toda a economia – um papel que, que em meados do
século xix, simbolizou o impulso ao arranque das revoluções industriais.
Em Portugal, a modernização das explorações mineiras enquadrava-se na política de 93 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

fomento da Regeneração1, com os recursos do subsolo funcionando a par de uma eco-


nomia de livre comércio e exportação, como forma de contrapeso na balança comercial
face às contínuas importações de máquinas e matérias-primas, desta feita destinadas ao

Período da Monarquia Constitucional estabelecido depois da insurreição militar de 1851, liderada pelo ma-
1

rechal duque de Saldanha, que promoveu a estabilização do sistema liberal monárquico português (1820-
-1910), após anos de conflito desencadeados pela carta constitucional de 1826. Para romper com o pas-
sado, a Regeneração aclamava como palavra de ordem os valores do Progresso, traduzidos no esforço pela
modernização e fomento do desenvolvimento económico. O mentor desta linha de orientação foi Fontes
Pereira de Melo, o primeiro titular da pasta do recém-criado Ministério das Obras Públicas, Comércio
e Indústria, e a figura central do governo de Saldanha. A sua obra ficou conhecida como o Fontismo.
A Regeneração termina em 1890, quando eclode a crise do liberalismo monárquico.
esforço de modernização nacional (Cabral, 1979). Dado que as suas potencialidades eram
consideráveis e os seus focos de exploração tinham de ser legalmente enquadrados para
constituírem fontes de receita, foi lançada a Lei de Minas de 1852, promotora de grandes
investimentos, sobretudo estrangeiros, e que desencadeou a produção nacional em larga
escala, visando alimentar as indústrias transformadoras da Europa central.
É então que se verifica a modernização do Alentejo. Uma região que, pese a sua gé-
nese agrária, demarcada pela paisagem de trigo e montado, e acompanhada pela baixa
densidade populacional, é também uma terra de contrastes, com dinâmicas que reportam
ao século xix. Nesta época, todo o processo de industrialização nacional já apresentado,
vivia em paralelo com o território espanhol, os efeitos da “febre mineira de Oitocentos”,
fenómeno que intersectou todo o sul da Península Ibérica.
Foi, portanto, da conjugação de inúmeros acontecimentos conjunturais, tanto do
panorama interno como externo, e ainda com o surgimento das primeiras notícias em
Espanha que apontavam para a existência de ricos filões de minério naquela zona – já
explorada pelos antigos – que resultou a corrida a essas concessões. A área a explorar
tratava-se da Faixa Piritosa Ibérica2, correspondente ao território compreendido entre o
Baixo Alentejo e a Andaluzia, com 250-300 km comprimento por 30-50 km largura, um
dos maiores chapéus de ferro3 da Europa, e um dos grandes distritos mundiais de metais
básicos, estimando-se que tenha gerado cerca de 1300 milhões de toneladas de minério.
Actualmente, do seu solo conhecem-se aproximadamente 90 jazigos que têm na pirite
a sua principal mineralização. Em quadros económicos distintos, das suas explorações,
extraía-se o cobre e o enxofre, reportando isto aos perfis industriais que historicamente a
caracterizaram4.
Perante este quadro, o Alentejo conheceu focos de desenvolvimento industrial ímpa-
res, transitando da paisagem do trigo e montado para uma industrialização efectiva, com
especial destaque para a exploração dos seus recursos minerais. E em estrita simbiose com
o país vizinho, que prosperava com as minas de pirite em Tharsis e Rio Tinto, Portugal
94 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

tinha no distrito de Beja, especificamente em Aljustrel e São Domingos, os seus grandes


bastiões no palco internacional.

2
Zona geológica formada por acção vulcânica há cerca de 359 milhões de anos.
3
Nome atribuído à parte mais superficial e exposta de um filão mineral, que consiste na visualização de uma
rocha intensamente oxidada, erodida ou decomposta.
4
A indústria mineira da Faixa Piritosa Ibérica obedecia a rigorosos ciclos económicos, dependendo directa-
mente do aproveitamento útil da matéria extraída. Numa primeira fase, a extracção realizava-se em exten-
são; posteriormente, a alteração do paradigma obrigou a que a extracção fosse feita em profundidade, numa
lógica de aproveitamento do minério pobre, como o enxofre destinado à produção de ácido sulfúrico.
O legado da indústria e a modificação da paisagem

Ora, a mina de São Domingos foi a mais paradigmática exploração de pirite à es-
cala nacional, ainda que situada em plena linha fronteiriça, na margem esquerda do
Guadiana, concelho de Mértola. Activa entre 1854 e 1866, e tendo materializado a
maior concentração operária da região, em números que alcançaram os quatro milhares
no período de maior produção, constituiu em definitivo a redefinição do concelho, que
foi cenário de uma industrialização absolutamente singular em contexto rural, composto
por especificidades sub-regionais muito contrárias àquele que é o tradicional quadro do
Alentejo profundo.
A prosperidade teve a sua fundação no contexto de origem do empreendimento. Um
investimento metodicamente organizado, congregador de capitais das esferas bancária,
diplomática, industrial e intelectual da Europa, compreensão fundamental para a pre-
missa seguinte. Conhecer a sua instalação industrial com vista à intervenção no presente
é perceber que os laços que ligavam estes homens assentavam numa rede de informação
complexa, um mundo de informação que transcendia a administração mineira e inclusi-
ve as próprias fronteiras geográficas. Um empreendimento que requereu a agilização de
múltiplos critérios, numa obra colectiva de engenharia que para se fazer erguer convocou
os elementos mais avançados da ciência e da técnica, num resultado final representado
perante a modificação definitiva de toda a envolvente. Na sua essência, compreender o
significado daquilo que subsiste hoje é perceber que, para além de uma obra à imagem
do seu próprio tempo, e que nos deixou sinais de um centro de industrialização nacional
equiparado à áurea europeia, também concebeu in loco uma dupla valência: a herança,
tanto na sociedade pós-industrial como na paisagem, enquanto protagonistas directos
do património.
Neste sentido, a mina tornou-se agente activo na criação de um lugar patrimonial
notável, testemunha do nascimento de uma nova comunidade através da sua acção indus-
95 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
trial, originando uma sociedade simultaneamente rural e industrial. Sobrevém, portanto,
um território revestido por contornos urbanos e industriais, numa terra em constante
transformação, que urge de aprofundamento científico rigoroso com recurso à interven-
ção interdisciplinar. Enquanto herdeira de uma forma de exploração, a aldeia da Mina de
São Domingos é um local de identidade num espaço de transição, que padece de diversos
problemas económicos, sociais e ambientais. Como tal, merece receber uma diversificação
na sua actividade, assente sobretudo na valorização cultural das suas potencialidades natu-
rais e patrimoniais, tendo como componente legitimadora o recurso à memória colectiva,
enquanto elemento agregador de toda a comunidade.
Da comunidade mineira à sociedade pós-industrial

No século xix, o aparecimento das indústrias mineiras apresentava recorrentemen-


te um padrão: a deslocação de grandes massas humanas para os pontos de extracção.
Ganhavam assim vida os coutos mineiros, agregados habitacionais de crescimento rápido,
gerados por via directa da industrialização e destinados a suprir as necessidades daí prove-
nientes (Alves, 1997). Em rigor, um processo de causa efeito associado ao estabelecimento
de grandes indústrias, e o povoado da Mina era o produto da mina industrial. Do povoa-
do sobrevinha a comunidade, fruto de uma experiência industrial intensiva e extensiva.
E nisto, São Domingos distingue-se como um dos polos industriais mais extraordinários
do Alentejo, pois originou e modelou uma comunidade sob o signo da órbitra industrial
subjacente, fruto directo do exercício da sua actividade (Quintas e Pereira, 2017).
Acontece que comunidade e identidade passam são conceitos intrínsecos e têm de ser
atendidos como tal. Para além dos trabalhadores nacionais, laboravam em São Domingos
vários espanhóis, oriundos da província de Huelva, particularmente das suas minas, assim
como ingleses, embora estes desempenhassem funções administrativas. Por sua vez, entre
a comunidade portuguesa, predominavam os alentejanos e algarvios, vindos do panorama
latifundiário alentejana ou das pescas algarvias (Guimarães, 1989). Atendendo à natureza
agrária do Alentejo, o polo industrial da mina de S. Domingos enquanto maior centro
salarial do Baixo Alentejo, era significativo o seu contributo para a economia local e para o
sustento das comunidades em redor. E por este motivo, muitos dos que deixavam o posto
de trabalho acabavam por regressar (Pereira, 2015).
A formação da sociedade concede o mote para a ponte com a identidade social. Nestas
comunidades, todos os trabalhadores eram mineiros. Independentemente da origem geográ-
fica e das funções laborais distintas, todos componham um grupo que tinha como suporte
de vida o mesmo trabalho. Eram pessoas demasiado próximas da mina para que pudessem
constituir um grupo socialmente diferente. O espaço mineiro era tão estruturante quanto
96 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

o tempo. As relações sociais nascidas em aldeias mineiras transcendiam frequentemente a


esfera dos laços laborais, estendendo-se a ligações de vizinhança e de parentesco. A base
identitária construía-se e reconstruía-se, em função dos ciclos produtivos e das dinâmicas
impostas pelo sector, numa sociabilidade que acabava por espelhar-se na consciência dos
indivíduos e da própria comunidade. Em rigor, foi o imperar daquela que foi empresa
concessionária durante a maior parte da sua actividade, a Mason & Barry, que contribuiu
para o crescimento tanto social como cultural da comunidade, num grau transgeracional
e multigeracional (Guimarães, 1989).
Presentemente, as povoações que viveram em exclusivo da actividade mineira assis-
tem a múltiplos processos de reestruturação, os quais procuram rentabilizar o respetivo
património em torno do desenvolvimento concelhio, essencialmente numa óptica de
aproveitamento para fins turísticos. Nisto, por todas as suas potencialidades, o exemplo
mais evidente na Faixa Piritosa Ibérica é de facto a Mina de São Domingos. Após o fim
da exploração, o seu extenso complexo mineiro foi alvo da mais pragmática destruição in-
dustrial de que há memória no Alentejo. Uma vez recuperada a titularidade da concessão,
a primeira companhia concessionária La Sabina, procedeu ao desmantelamento e demoli-
ção das infraestruturas. Depois disto, o pouco que restou foi gradualmente saqueado por
particulares. Com o passar dos anos, a sua paisagem adquiriu um semblante que evoca
um cenário quase apocalíptico, numa dimensão tal que o património que sobreviveu da
antiga mina é localmente designado como “ruínas”. Independentemente destas asserções,
ele permanece intrínseco à identidade das gerações mais velhas.
Por decorrência da cessação da actividade, principal fonte de subsistência em todo o
concelho, verificou-se um surto de êxodo rural, traduzido num fenómeno de mobilidade
mineira. O destino da população foi a fixação na cintura industrial de Lisboa, ou em alguns
casos, nos países estrangeiros com maior comunidade portuguesa. Desta feita, o elemento
que originou a comunidade foi também o grande responsável pelo despovoamento da sua
aldeia. E até à viragem do último século, aqueles que viveram em São Domingos tornaram-
-se testemunhas da sua fragmentação e da transição do seu paradigma. É nesta medida que
o corolário das sociedades mineiras pós-industriais deve ser tratado com acuidade.

Intervenção territorial do património mineiro

Em Junho de 2013, a Mina de São Domingos foi classificada como «Conjunto


de Interesse Público», naquela que foi a maior classificação de um património em ruí-
nas alguma vez feita em Portugal. O seu território tem como entidades proprietárias,
zeladoras e difusoras, a La Sabina Sociedade Mineira e Turística S.A. (herdeira da so-
97 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
ciedade mineira de 1855, e detentora de centenas de habitações mineiras na Mina de
S. Domingos e no Pomarão, das instalações industriais, da linha férrea e do palácio
da administração, que em 1996 celebrou um contrato com o Estado Português e a
Câmara Municipal de Mértola, no qual se prevê o planeamento da restruturação das
duas localidades), a Fundação Serrão Martins (constituída em 2004 pela Câmara de
Mértola e a La Sabina, é uma instituição sem fins lucrativos que tem como objectivo
a proteção, conservação, valorização e divulgação dos valores patrimoniais da Mina de
S. Domingos e do seu complexo mineiro) e o Roteiro das Minas e Pontos de Interesse
Mineiro e Geológico de Portugal (iniciativa da Direcção Geral de Energia e Geologia
do Ministério da Economia da Inovação e do Desenvolvimento, e da Empresa de
Desenvolvimento Mineiro SA). Em articulação, actuam em prol do aproveitamento
cultural, turístico, geológico e mineiro da localidade.
Mais recentemente, foi obtido um investimento de 20 milhões de euros, financiados
por fundos europeus, depois aprovada a candidatura do território da mina ao progra-
ma operacional sustentabilidade e uso eficiente dos recursos (POSEUR). Nesta linha, a
Câmara Municipal de Mértola e a Empresa de Desenvolvimento Mineiro (EDM) já ce-
lebraram o acordo de parceria para as obras de requalificação ambiental, com a EDM a
empreender a obra em várias fases, lançadas a concurso. Neste sentido, já se encontram em
curso as primeiras duas fases, num investimento total de cerca de 7 milhões de euros, que
se antevê realizar até 2019.
Por tudo isto, o seu legado industrial, estendido desde a aldeia mineira até ao porto
fluvial do Pomarão no Guadiana, numa extensão de 17 quilómetros, encontra-se cada vez
mais associado às intervenções dedicadas à resolução dos seus problemas ambientais e à
salvaguarda do seu património mineiro.

Sobre o problema metodológico: conclusões para a prática do turismo


industrial sustentável

Para que esta intervenção resulte, é determinante que seja erguida uma ponte entre
a preservação do passado industrial e identitário da localidade, em articulação com a
recuperação ambiental do território, e acima de tudo, um aproveitamento turístico que
atente nestes factores. Sem a confluência destes pontos, não haverá turismo industrial
que perdure.
Os acontecimentos históricos são a primeira premissa da memória. Isto significa que
presentemente não basta unir a comunidade sob um património comum. Importa consi-
derar que são três as gerações ulteriores ao encerramento da exploração, sendo que algumas
98 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

não têm quaisquer laços com esse mesmo passado industrial. Para existir transferência de
informação, há que estimular a memória. Primeiramente, a identidade da comunidade
tem de ser tratada na fonte, convocando a utilização da história e das suas novas metodo-
logias, como a história oral e a história local. Só fazendo uso correcto da ciência que nos
permite compreender todas as dinâmicas conjunturais estruturantes, é possível intervir
rigorosamente na multidisciplinaridade, fulcral para o tratamento de todas as valências,
avançando-se para o passo seguinte, a educação patrimonial.
Acontece que a realidade de São Domingos contrasta com a conduta praticada nas
minas de Huelva, inscrita numa óptica de educação patrimonial coesa no tocante à uti-
lização das ciências mãe restantes áreas disciplinares, o que se tem demonstrado vital na
valorização e promoção do seu património industrial. O caminho percorrido pelo país
vizinho na implementação do turismo industrial mineiro prossegue com notas de suces-
so, ao socorrer-se dessa educação patrimonial, que é a aplicação directa das intervenções
académicas de excelência. O exemplo de Espanha prima por, na base que sustenta o seu
património, fazer eficientemente a convergência de três vertentes: a da comunidade, o dos
órgãos locais e regionais, e o da academia.
Actualmente, na aldeia muitos dos seus habitantes referem-se ao que resta do gran-
de complexo mineiro como ruínas. Por outro lado, aqueles que visitam a povoação em
lazer, sem vínculo familiares, ignoram a existência do vasto património industrial que se
esconde nas imediações. A existência deste património histórico tem, até então servindo
exclusivamente um propósito: dar a conhecer o nome da terra para o turismo de lazer.
Quando esse objectivo é atingido, o património histórico perde importância, e a sua
critica e conhecimento científicos são abandonados.
Como tal, é extrema a necessidade de um esforço coordenado entre os três vectores
apontados. No entanto, em primeira instância, ele tem de ser encetado pelo poder local
e pelo meio académico, organismos que produzem o estimulo científico e detêm o poder
de decisão, para posteriormente ser possível abraçar a comunidade, integrando-a. É certo
que as transversalidades da temática desta mina criaram uma consciência da sua relevân-
cia, a qual tem sido produtora de estudos que atravessam parte significativa das ciências
sociais e exactas. Contudo, ao invés do modelo espanhol, que opera segundo conteúdos
de rigor, o caso português tem absorvido uma miríade de intervenções muito dispersas na
sua actuação, gerando fracos resultados e até mesmo assumpções erróneas. Não se verifica
uma estratégia delineada, o que tem estado na senda da ausência de multidisciplinaridade
criteriosa. Isto incorre num panorama que não pode ser secundarizado, pois é passível de
ser precursor na construção de quadros mentais falaciosos junto da comunidade; esses
quadros, uma vez incutidos na sociedade pós-industrial, tornam-se reincidentes e derrotam
a educação patrimonial que poderia estar a ser feita.
99 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
No cômputo final, enquanto devida prática para a intervenção territorial à luz de
um turismo industrial sustentável, há que valorizar, promover, defender e enquadrar a
sociedade pós-industrial da Mina de São Domingos, assim como o seu território urbano
e industrial. É conveniente atender que se trata de uma comunidade em plena mudança
de paradigma, sendo por isso, um espaço de transição. Estamos a falar de pessoas que
sentiram o fim da época industrial, transitando quase de imediato para um contexto
de despovoamento, e presenciaram de imediato ao longo das últimas duas décadas um
“repovoamento”, ainda que sazonal, motivado pela procura do turismo de lazer.
Subsiste então um movimento descoordenado entre a existência do patrimó-
nio industrial, inerente à identidade da comunidade e à sua memória colectiva. Das
mutualidades aqui implícitas, poderão surgir uma série de boas práticas para uma in-
tervenção directa nas suas potencialidades, reforçando a sua competitividade face aos
casos emblemáticos mencionados, através do recurso às raízes do seu património. Afinal,
a Mina de São Domingos é a localidade nascida em redor da exploração mineira que a
baptizou, e só o seu estudo sério e aprofundado permitirá compreender tanto a origem
como as permanências do seu território.
Em suma, patrimonializar não passa exclusivamente, nem deve começar pela recupe-
ração ou tratamento de estruturas físicas e ambientais, mas pelo conhecimento da linha
evolutiva das respectivas dinâmicas históricas e territoriais. Uma barreira que, se ultrapas-
sada, deixará aberto o caminho para a colaboração entre as entidades locais, a academia
e a comunidade. Desse modo, poderá catalisar-se o potencial do território por via de um
turismo interventivo, que não se fique apenas pela componente de lazer. Prosseguindo a
lógica de aproveitamento do crescimento da actividade económica do turismo, poderá
até mesmo ser praticada contemplando-se outros elementos, incrementando o turismo
cultural, científico e/ou académico, que premeie não só o património industrial, mas que
englobe a identidade da sua comunidade.

Fontes e Bibliografia

Actas do Congresso Internacional sobre Património Geológico e Mineiro, org. Museu Instituto Geológico
e Mineiro, coord. José M. Brandão, Lisboa: Museu Instituto Geológico e Mineiro, 2002.
Actas do 3.º Simpósio sobre mineração e metalurgia históricas no Sudoeste Europeu, org. Sociedad
Española para la Defensa del Patrimonio Geológico y Minero, Instituto Português do
Património Arquitectónico, s.l.: Sociedad Española para la Defensa del Patrimonio Geológico
y Minero, Instituto Português do Património Arquitectónico, 2006.
ALVES, Helena. Mina de S. Domingos: Génese, formação social e identidade mineira. Mértola,
Campo Arqueológico de Mértola, 1997.
100 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

A Mina de S. Domingos e o rio Guadiana, Lisboa: Typographia da Companhia Nacional Editora,


1893.
Arquivo Distrital de Beja, Fundo do Governo Civil; Fundo do Cartório Notarial, Beja.
Arquivo Municipal de Mértola, Fundo do Administrador do Concelho; Fundo da Câmara Municipal,
Mértola.
ASHTON, T. S., A Revolução Industrial: 1760-1830, 4.ª ed., Mem-Martins: Publicações Europa-
-América, 1977.
CABRAL, José Augusto Cesar das Neves, Estatística mineira: anno 1882. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1886.
CABRAL, Manuel Villaverde, O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século XIX, Porto:
A Regra do Jogo, 1976.
Idem, Portugal na Alvorada do Século XIX: Forças Sociais, Poder Político e Crescimento Económico de
1890 a 1914, Lisboa: Presença, 1988.
CASTRO, Armando, A Revolução Industrial em Portugal no Século XIX, 4.ª ed., Porto: Limiar, 1978.
Catálogo descriptivo da secção de minas: Exposição Nacional das Indústrias Fabris, (coord.) José
Augusto C. das Neves Cabral et al, Lisboa: Imprensa Nacional, 1889.
Centro de Estudos da Mina de S. Domingos, Fundo da Mason and Barry, Mina de São Domingos.
Colecção de Legislação sobre a Pesquisa, Lavra e Impostos de Minas, Lavra de Pedreiras e Aproveitamento
de Nascentes de Águas Minero-Medicinaes no Continente do Reino e Ilhas Adjacentes, Lisboa:
Imprensa Nacional, 1914.
COSTA, Mário Alberto Antunes, O Ensino Industrial em Portugal de 1852 a 1900 (Subsídios para a
sua história), Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1990.
CRUZ, Luís F. de Sousa, As Industrias, Suas Necessidades e Vantagens, Porto: Imprensa Nacional, 1980.
CUSTÓDIO, Jorge, Mina de S. Domingos. Território, História e Património Mineiro, Lisboa,
SOCIUS-ISEG, 2013.
DUCASSÉ, Pierre, História das Técnicas, 3.ª ed., Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1955.
FREEMAN, Chris; SOETE, Luc, The Economics of Industrial Inovation, 3.ª ed., London: Cassell, 1997.
FONSECA, Hélder Adegar, O Alentejo no Século XIX. Economia e Atitudes Económicas, Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1996.
GARCIA, João Carlos, A Navegação no Baixo Guadiana Durante o Ciclo do Minério (1857-1917),
Porto: Universidade do Porto, 1996.
GUILHERME, Barão de Eschwege, Memória sobre a História Moderna da Administração das Minas
em Portugal, 1838.
GUIMARÃES, Paulo, Elites e Indústria no Alentejo (1880-1960). Lisboa: Edições Colibri, 2006.
Idem, “Indústria, Mineiros e Sindicatos. Universos operários do Baixo Alentejo dos finais do sécu-
lo xix à primeira metade do século xx”, Estudos e Documentos ICS, n.º 19, Lisboa: 1989.
Idem, Indústria e Conflito no Meio Rural, Os mineiros alentejanos (1858-1938), [Lisboa]: Edições
Colibri e CIDEHUS-UE, 2001.
Inquérito Industrial de 1890, vol. I: Indústrias extractivas: minas e pedreiras, Lisboa: Imprensa
Nacional, 1891.
HABASHI, Fathi, “Schools of Mines. The Beginnings of Mining and Metallurgical Education”, 101 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Travaux, vol. 30, n.º 34, Budapest: Hungarian National Committee of ICSOBA at the
Hungarian Mining and Metallurgical Society, 2003, pp. 161-171.
Historia Económica de Europa, ed. Carlo M. Cipolla, tomos I e II: El nascimiento de las sociedades
industriales, Barcelona: Editorial Ariel, 1982.
História Económica e Social do Mundo, dir. Pierre Léon, vol. III: Inércias e Revoluções: 1730-1840,
tomos I, Lisboa: Sá da Costa Editora, 1983.
História Económica e Social do Mundo, dir. Idem, vol. IV: A dominação do capitalismo: 1840-1914,
tomo I, Lisboa: Sá da Costa Editora, 1982.
HOBSBAWN, E. J., A Era das Revoluções: 1789-1848, 6.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 2012.
Idem, A Era do Capital: 1848-1875, Lisboa: Editorial Presença, 1979.
Idem, Indústria e Império, vols. I e II, Lisboa: Editorial Presença, 1978.
JUNIOR, Manuel Rodrigues, A Indústria Mineira em Portugal, Coimbra: Coimbra Editora,
1921.
JUSTINO, David, A Formação do Espaço Económico Português, Portugal 1810-1913, vol. II, Lisboa:
Vega, [1989].
Idem, Fontismo: Liberalismo numa sociedade iliberal, Alfragide: D. Quixote, 2016.
LAINS, Pedro, Exportações portuguesas, 1850-1913: a tese da dependência revisitada, [Separata da
Análise Social], 1986.
Idem, “O proteccionismo em Portugal (1842-1913): um caso mal sucedido de industrialização
«concorrencial»”, Análise Social, vol. xxiii, 1987.
Idem, Os progressos do atraso: uma nova história económica de Portugal, Lisboa: ICS – Imprensa de
Ciências Sociais, 2003.
LANDES, David S., The Unbound Prometheus: technological change and industrial development in
Western Europe from 1750 to the present, Cambridge University Press, 1997.
LEITÃO, João Maria, “Noticia sobre una formacion metalífera de la provincia de Huelva” in Revista
Minera – Periodico Cientifico e Industrial, Madrid: Imprenta de la Viuda de Don Antonio
Yenes,1850.
LESOURD, J. A.; GÉRARD C., História Económica. Século XIX e XX, vols. i e ii, Lisboa: Livraria
Clássica Editora, s.d.
MATA, Maria Eugénia, As Finanças Públicas Portuguesas, da Regeneração à Primeira Guerra Mundial,
Lisboa, Banco de Portugal, 1993.
MATHIAS, Peter, A Primeira Nação Industrial. Uma História Económica da Grã-Bretanha, Lisboa:
Assírio e Alvim, 1969.
MATOS, Luís Salgado de, Investimentos Estrangeiros em Portugal, Lisboa: Seara Nova, 1973.
MARTINS, Oliveira, Portugal Contemporâneo, Porto: Lello & Irmão, 1981.
Mineração no Baixo Alentejo, vols. i e ii, coord. Miguel Rego, Castro Verde: Câmara Municipal,
1996
MIRANDA, Sacuntala de, O declínio da supremacia britânica em Portugal, Lisboa, 1987.
Idem, O círculo vicioso da dependência (1890-1939), Lisboa: Teorema, 1991.
Modelos de Minas do Séc. XIX. Engenhos de Exploração Mineira, s.l., Fundação Frédéric Velge e Vida
102 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Económica Editorial S. A., 2006.


OLIVEIRA, Luís de Carvalho, A Evolução Técnica e as Crises Económicas, Lisboa: Livros Horizonte,
1968.
PEREIRA, José de Campos, Portugal Industrial, Lisboa: Livraria Profissional, 1919.
PEREIRA, Miriam Halpern, Assimetrias de crescimento e dependência externa, Lisboa: Seara Nova,
1974.
PEREIRA, Vanessa Alexandra, “A Questão Social na Mina de S. Domingos no Tempo do Estado
Novo: Lógicas, Dinâmicas e Ofensivas Sociais”, in Iberografias, (coord.) Rui Jacinto e Alexandra
Isidro, Guarda: Centro de Estudos Ibéricos, 2015.
Idem, Demografia e desenvolvimento em Portugal na segunda metade do Séc. XIX, Lisboa: Editorial
Império, 1970.
Idem, Instituições e desenvolvimento económico no século xix: contribuição para uma agenda de inves-
tigação, Lisboa: ISCTE, 2012.
Idem, Livre-câmbio e desenvolvimento económico: Portugal na segunda metade do século xix, Lisboa:
Sá da Costa, 1983.
Idem, Política e Economia. Portugal nos Séc. XIX e XX, Lisboa: Livros Horizonte, 1979.
QUINTAS, Armando; PEREIRA, Vanessa Alexandra, “As Minas Portuguesas da Faixa Piritosa
Ibérica: A Pirite Alentejana na Economia Nacional Oitocentista“ in Iberian Interconnections –
Conference Proceedings, (eds.) Susana Rocha Relvas, Rikki Morgan-Tamosunas e Maria Gómez
Bedoya (eds.), Porto: Universidade Católica, 2016.
RAMOS, Maria João, Mason & Barry e a construção da Mina de São Domingos: indústria, turismo,
globalização, Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2012.
REIS, Jaime, “A Industrialização num País de Desenvolvimento Lento e Tardio: Portugal, 1870-
-1913”, Análise Social, vol. xxiii, 1987, pp. 207-227.
Idem, “O Atraso Economico Português em Perspectiva Histórica (1860-1913)”, Análise Social,
vol. xx, 1984, pp. 7-28.
RIOUX, Jean-Pierre, A Revolução Industrial, 4.ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982.
SIDNEY, Pollard, Peaceful Conquest. The Industrialization of Europe. 1760-1970, New York: Oxford
University Press, 1981.
VACCARI, Ezio, “Mining Academies as Centers of Geological Research and Education in Europe
between the 18th and 19th centuries”, De Re Mettalica, Madrid: Sociedad Española para la
Defensa del Patrimonio Geológico y Minero, 2009, pp. 35-41.
VASCONCELOS, José Leite de, Etnografia Portuguesa, vol. v, Lisboa: Imprensa Nacional, 1967.

103 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial


Anexos

Figura 1. A Corta (inundada através do rompimento das represas após o esgotamento económico da mina)
104 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 2. Águas ácidas na Achada do Gamo


Figura 3. A degradação do II palácio do administrador James Mason, situado no
bairro dos ingleses (antes da reconversão em estabelecimento hoteleiro)

105 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 4. Estabelecimento metalúrgico da Achada do Gamo


Figura 5. O rio Guadiana e a aldeia do Pomarão (fronteira com a barragem da ribeira de Chança e Espanha)
106 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 6. A Tapada Grande, antiga represa industrial n.º 4, materialização do turismo de lazer
La memoria del paisaje.
Marcas sagradas en el paisaje simbólico
de la región Duero-Douro

Pedro Javier Cruz Sánchez


Investigador post-doctoral en la Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD)
Colaborador del Centro de Estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento
(CETRAD)

Introducción

Sobre los conceptos de paisaje sagrado


Ciertos tipos de marcas indican la presencia de fronteras y de límites en el paisaje. En
este sentido, cabe mencionar como en las inmediaciones del monasterio riojano de Valvanera
las denominadas Cruces Blancas, situadas en las inmediaciones a una distancia prudencial del
santuario, se prohibían traspasar las fronteras del mismo a las mujeres desde la Edad Media.
A este respecto un privilegio de Alfonso VI fechado en el año 1092 mandaba que:
(…) conforme establecido el día de la congregación en la predicha iglesia (de
Valvanera) de los obispos D. Sancho, D. García y D. Gomesando y del abad D. Domingo,
que ninguna mujer entre en este término. Del mismo modo ordeno y confirmo que nin-
guna (mujer) entre allí; y si entrare, sea detenida hasta que pague sesentas sueldos al
107 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
procurador del rey (…). (PÉREZ ALONSO, 1971: 62).

Estas marcas, de las que se constatan multitud de tipos, como tendremos oportu-
nidad de analizar más adelante, se encuentran en el paisaje como hitos, como señales,
formando parte de fronteras, pero también como memoria de diferentes prácticas cul-
turales, según se manifiesta en una bien contrastada ritualidad agraria (ARIÑO, 1992).
Se trata de marcas o huellas que dan cuenta, en la mayor parte de los casos, de unos pai-
sajes dotados de sacralidad, territorios en los que la carga simbólica aparece conformada
a través de multitud de elementos reconocibles, materiales pero también inmateriales,
conformando espacios de notable personalidad que cabe diferenciar de aquellos otros
de naturaleza diferente. Tratamos no solo de paisajes físicos, perceptibles, sino también
de lo que se denominan paisajes inconscientes o paisajes entrópicos o lo que es lo mismo,
aquellos espacios que no llegamos a ver, que escapan a nuestra mirada (CARERI, 2016:
137). Y lo hacemos a partir de una interpretación simbólica del territorio, entendido
este como una representación donde los espacios llenos y los espacios vacíos se alternan,
conformando territorios híbridos, es decir, los paisajes sagrados objeto de nuestro análisis
(ibidem, 24-25).
Con la investigación de los paisajes simbólicos de la región Duero-Douro hispano-
-portuguesa que nos encontramos efectuando en la actualidad1, pretendemos dar cuenta
de este tipo de marcas, a través de su estudio tipológico y de los cambiantes significados
que estas tienen en función de los contextos donde las documentamos. Los objetivos son,
como podemos comprobar, bastante ambiciosos; no obstante, con las presentes notas in-
troductorias pretendemos avanzar en el conocimiento de estas huellas, más o menos inde-
lebles, a través del análisis de los tipos que con mayor frecuencia comparecen en el mundo
rural tradicional, en especial de los contextos, de los espacios, donde éstas hacen acto de
presencia, así como de las intenciones para las que se realizaron. Es una empresa compleja
y somos conscientes, no cabe duda. Ello es evidente al advertir la extensa variedad de tipos
y subtipos que se disponen en el contexto urbano y especialmente en el campo.
El interés en recuperar la memoria de las casi indelebles huellas en el paisaje es alto desde
que ciertos autores se han interesado por la región Duero-Douro y se ha mantenido inaltera-
ble hasta la fecha. En este sentido, este interés se acrecienta en la actualidad atendido el hecho
de que este tipo de paisajes culturales no han de entenderse como conjuntos estáticos cerrados
sobre sí mismos, sino que hay que analizarlos y explicarlos en contextos más amplios, no solo
paleo-económicos y científicos, sino también de rentabilidad cultural y turística, tratando de
integrar los elementos objetos de estudio con los de otra naturaleza – accidentes naturales
destacados, construcciones sagradas, fortificaciones, tradiciones, gastronomía, etc., con el fin
de comprender de una manera holística el paisaje o paisajes culturales del territorio Duero-
108 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

-Douro y de actuar sobre el mismo posteriormente de una manera integrada.


Nuestro ámbito de trabajo se puede encuadrar, según el Atlas de los Paisajes Agrarios
de España y a un nivel de análisis escalar, dentro del dominio Mediterráneo, una catego-
ría de paisaje que cabe catalogar en los “Paisajes ganaderos mediterráneos” y dentro de
una clase definida como “paisajes de monte mediterráneo, dehesas y grandes pastade-
ros”, uno de cuyas unidades arquetípicas en la comunidad de Castilla y León podría ser

1
Proyecto de investigación post-doctoral titulado: “Paisajes sagrados en la región Duero-Douro. Definición,
catalogación, análisis, procesos de patrimonialización y creación de recursos como generador de riqueza
turística”, de la Escola da Ciências Humanas e Sociais de la Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro,
dirigido por la profesora Maria Olinda Rodrigues Santana.
el Sayago zamorano (MOLINERO, BARAJA Y SILVA, 2013 [1]: 19) y, por extensión,
El Abadengo salmantino.
Como se acepta en la actualidad, la tipificación de los paisajes agrarios, como el que es-
tudiamos, se basa en sus elementos constituyentes, concretados en los campos de cultivo y
los espacios incultos, los núcleos de poblamiento y las infraestructuras viarias, incluyendo
todas las combinaciones posibles y las formas complejas derivadas de éstas (ibidem, 8). En
función de las actividades humanas sobre el paisaje, existen tres categorías de aprovecha-
miento agrario: el cultivo de la tierra, el cuidado de los animales y la explotación forestal,
las cuales en combinación han contribuido de manera intensa a la construcción del pai-
saje. Son además la manifestación visual y patente de la acción de la mano del hombre en
la naturaleza, siendo las propias huellas que imprimen la cultura la transformación a lo
largo del tiempo. Se pasaría así, de un paisaje como concepto amplio derivado del término
latino pagus (campo y tierra pero también el pueblo o la aldea), a otro con matices más
culturalistas, a otro de tipo “cultural” (CAPEL, 1983: passim).
Con todo, el Consejo Europeo del Paisaje (CEP) redefine el término, renovándolo y
reorientándolo, para adaptarse a las nuevas concepciones normativas y académicas de los
últimos años. Así, el CEP pasa a definir los paisajes como “cualquier parte del territorio tal
y como lo percibe la población, cuyo carácter sea el resultado de la acción y de la interacción
de factores naturales y/o humanos” (MOLINERO, BARAJA y SILVA, 2013[1]: 9). Esta
definición es de vital importancia si consideramos que abarca todo el territorio, agrupan-
do en una misma definición el patrimonio natural, el arquitectónico o el arqueológico.
Ello permite hablar de paisajes agrarios o paisajes rurales que conforman un “conjunto de
tramas integradas en la configuración, en la imagen y en la gestión del paisaje” (ibidem, 9).
El CEP sincretiza así otras definiciones de paisajes para ofrecer un nuevo enunciado mul-
tifacético del paisaje que prioriza algunos temas como las áreas de consumo y aprovisio-
namiento, sus formas y funciones, los objetos y las miradas, la naturaleza y la cultura, la
herencia histórica, la actualidad del paisaje agrario y las prospectivas de futuro. Atendidas
109 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
estas premisas y atendiendo a que lo rural “(…) está presente en la configuración histórica
y en la interpretación de prácticamente todos los paisajes de territorios de añeja ocupación
agraria de España” (MATA, 2004: 112), este tipo de paisajes pasarán a ser totalizadores
históricos que sincretizan en el presente las huellas del pasado, las metabolizan en la
dinámica del presente y las proyectan hacia el futuro (MOLINERO, BARAJA Y SILVA,
2013[1]: 10).
El proyecto de análisis y puesta en valor de los paisajes sagrados de la región Duero-
-Douro, pretende ser un estudio integrador de su paisaje cultural. Ante todo no persigue,
como apuntaba Antonio Ariño Villarroya (2002), una “fiebre de nostalgia” conserva-
cionista que subyace en las prácticas patrimonializadoras ni tampoco fetichizar este
patrimonio, sino más bien generar conocimiento y conservar sin destruir ni transformar.
Como apunta este mismo autor, nuestro objetivo es mejorar las condiciones de vida de
las personas más frágiles en el tiempo presente, levantar su dignidad y reforzar su calidad
de vida. Por otro lado, intervenir sobre un patrimonio que permita mirar al pasado sin
cultivar la complacencia y la compasión, sino invitar al asombro, al sobrecogimiento,
provocando inquietud y conmoción.
Nuestra intención de estudiar los paisajes sagrados de la región Duero-Douro gira,
grosso modo, en torno al análisis de un paisaje cultural específico. Tal y como lo define la
Convención de la UNESCO los paisajes culturales representan las “(…) obras que combi-
nan el trabajo del hombre y la naturaleza”; incluye este concepto, por tanto, una diversidad
de manifestaciones de la interacción entre el hombre y su ambiente natural. En este sen-
tido, la pregunta, a la hora de plantearse el desarrollo del tema es la siguiente: ¿existe un
paisaje cultural sagrado específico en tierras del Duero-Douro? Nosotros planteamos que
efectivamente se constata, a través de unos caracteres específicos que tienen que ver con el
desarrollo histórico y la localización en un marco de frontera, la hipótesis de que existe una
marcada personalidad cultural en este territorio fronterizo que permite el surgimiento de
un paisaje cultural sagrado el cual percibimos, con especial intensidad, en las marcas físicas
y mentales existentes en el territorio (CRUZ, 2016b).
Tal y como lo define el geógrafo Eduardo Martínez de Pisón, el paisaje “es la proyección
cultural de una sociedad en un espacio determinado desde una dimensión material, espiritual,
ideológica y simbólica”. En consecuencia, por paisaje simbólico hay que entender la com-
binación dinámica de elementos físicos (en este caso, el entorno natural) y los antrópicos
(es decir, la acción humana) los cuales, conjuntados, convierten el territorio en un entra-
mado social y cultural en continua evolución. Como lo entiende el Convenio Europeo del
Paisaje, éste se corresponde con un: “área, tal y cual lo percibe la población, resultado de la
interacción dinámica de factores naturales y humanos”. A través de esta serie de definiciones,
parece quedar claro que el fundamento del paradigma del paisaje distingue entre paisaje
110 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

y medio ambiente, entre los que dan cuerpo a un extenso conjunto de recursos culturales
y son el escenario para todo tipo de actividades de una comunidad de la cual, en cada
generación, se imponen unos mapas cognitivos propios, antropogénicos e interconectados.
El Plan Nacional de Paisajes Culturales los entiende, en este sentido, como “el resultado de la
interacción en el tiempo de las personas y el medio natural, cuya expresión es un territorio perci-
bido y valorado por sus cualidades culturales, producto de un proceso y soporte de la identidad de
una comunidad” (CRUZ PÉREZ, 2015: 13).
Dentro de los mismos se distinguen los denominados “paisajes simbólicos” que se
fundamentan en acontecimientos de carácter social, históricos, artísticos, religiosos o lú-
dicos creadores de nuevos “escenarios” que se suman a otros tipos de paisajes y que suelen
generar uno nuevo (paisajes sagrados)2. Se trata, de “espacios narrativos” entendidos como
“aquellos con capacidad para comunicar, guardar la memoria y transmitir información, desar-
rollado a partir del análisis de las características y condiciones de los espacios singulares y de los
hechos o acontecimientos cuando los resultados son destacables (events places)” (SABATÉ BEL,
2004). Los paisajes simbólicos comparten e intercambian valores con otras categorías de
paisajes –urbanos, agrarios, históricos, religioso, etc.- y con determinadas manifestaciones
como las propias del patrimonio cultural inmaterial, especialmente cuando responden a
un soporte espacial concreto que forma parte de la identidad de un sitio (por ejemplo,
celebraciones religiosas). Además, como apunta Margarita Ortega, suelen estar ritualiza-
dos y marcan escenarios de representación o de recorridos que incorporan experiencias de
carácter sensorial. Sigue detallando esta autora “Los paisajes simbólicos requieren, con mayor
motivo, la explicación y transmisión –la narrativa- de su significado por las diversas activida-
des objeto de apreciación (artística, histórica, religiosa, lúdica…), muchas veces imposibles de
delimitar de manera clara y, por tanto, a integrar o complementar” (ORTEGA, 2015, 384).
Consideraba Durkheim que lo sagrado es aquello superior en dignidad y poder, esto
es, lo sujeto a estar prohibido, pero que se puede acceder a ellos a través de una serie de
rituales propios, así como de la religión misma; concepto de sagrado y manifestación de
lo sagrado que Mircea Eliade denominaba como hierofanía (ELIADE, 1998: 15). Por su
parte, Baez-Jorge apunta como la noción de lo sagrado de una comunidad determinada
tiene una explicación particular, no necesariamente igual a la comunidad vecina. Otros
autores, como Alicia Barabás, denominan santuarios a los lugares sagrados, si bien dife-
rencia entre aquellos que tienen construcciones y aquellos otros que son sitios naturales;
los segundo carecen de control de la Iglesia sobre el calendario celebrativo, así como de las
devociones efectuadas en ellos. Esta misma autora, finalmente, apunta como el territorio
en si mismo también tiene carácter sagrado para las sociedades tradicionales, debido a su
evidente vinculación con los ancestros, al tiempo que está dotado de lugares sagrados y
simbólicos, construidos diacrónicamente a partir de los derechos adquiridos de acceso,
111 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
control y uso a lo largo de los tiempos (BARABAR, 2003: 112, citado en MADRIGAL
et alii, 2016: 3).
En otra ocasión, tratamos el tema de los paisajes sagrados al hilo del análisis de dos
modelos que establecimos para la comarca salmantina de El Abadengo (CRUZ, 2016a: 35-
-56). Apuntábamos como el desarrollo de los distintos conceptos de paisaje ha ido variando
a lo largo de los años, en función de los especialistas que se han adentrado en el tema,

En los últimos años, la literatura sobre los espacios simbólicos o paisajes sagrados ha crecido notablemente.
2

Destacamos las aportaciones, para el caso de la prehistoria, de Richard Bradley (1993, 1998 y 2000), la
recopilación de estudios sobre los espacios sagrados medievales (SABATÉ y BRUFAL, 2015) o el libro sobre
los espacios sagrados toledanos (VIZUETE y MARTÍN, 2008).
tal y como han puesto de manifiesto algunos autores (ANSCHUETZ, WILSHUSEN Y
SCHIECK, 2001: 164-168), destacando los denominados “paisajes rituales”, como pro-
ducto de acciones estereotipadas que representan órdenes socialmente preceptuadas, me-
diante las que las comunidades definen, legitiman y mantienen la ocupación de las tierras
que los acoge (ibidem, 178). Los estudios de los paisajes rituales en la literatura científica
anglosajona, examinan las pautas de distribución espacial de rasgos rituales tales como
los edificios religiosos, los monumentos, las plazas o los petroglifos, combinando así la
potencialidad de los espacios y las representaciones sociales de todos ellos (HIRSCH y
O’HANLON, 1995: passim). Con ello se mejora el potencial para evaluar de forma crítica
la incorporación ritualizada de lugares especiales (periferia) a los paisajes segregados de los
espacios de población y actividad (centro), dentro del entorno construido por un grupo
(ANSCHUETZ, WILSHUSEN Y SCHIECK, 2001: 178-179). Con todo, el paisaje es
un producto socio-cultural creado por la objetivación de la acción social y del imaginario
que modela una realidad multidimensional: ambiental, social, simbólica, cultural y per-
ceptiva. El paisaje según autores es, en definitiva, una realidad eminentemente social que
se fundamenta culturalmente (AYÁN VILA, 2005: 120). En consecuencia, el espacio se
erige en una construcción social, imaginaria, en movimiento continuo arraigada en la cul-
tura, a causa de lo cual se establece una estrecha relación estructural entre las estrategias de
apropiación del espacio y la organización social y simbólica del mismo (ibidem, 120-121).
Por su parte, la antropología anglosajona y especialmente la alemana –M. Eliade,
R. Otto, Dhile, etc.- ha tratado con cierto detenimiento la cuestión conceptual de la sacra-
lización del espacio, al menos en su acepción espacio-temporal (HERBERS, 2009: 568),
no llegando a definir convincentemente el concepto de lugar o espacio sagrado. En fecha
reciente, se ha establecido la definición de Sitio Sagrado como un “área de especial significa-
do espiritual por los pueblos y comunidades”, en tanto que los Sitios Naturales Sagrados son
“áreas de agua o tierra que tienen especial significado espiritual para los pueblos y comunidades”
(WILD y McLEOD, 2008: 21), si bien estas definiciones, asentadas en una observación de
112 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

los pueblos indígenas de Sudamérica, apenas si son aplicables a nuestro ámbito de estudio.
Se destaca así como las pautas de actuación de la denominada “geografía religiosa”, nos
puede permitir determinar los modelos de ocupación de una comarca determinada a través
del análisis de las señales más evidentes en el paisaje, como son las ermitas y los santuarios.
A partir del estudio de la composición de las advocaciones titulares, la ubicación de ermitas
en antiguos despoblados o en sitios arqueológicos, la localización en tierras de propiedad
comunal, al pie de vía de comunicación y de la ubicación de los templos en los límites ter-
ritoriales, se pueden estudiar los desniveles creados por la existencia de lugares cargados de
sacralidad y desvelar el afloramiento de hitos o marcadores netamente insertados de forma dia-
crónica por los grupos que ocupan un territorio determinado (SALLNOW, 1987: 12-13).
La geografía religiosa queda definida entonces, por las relaciones mantenidas entre las
imágenes y sus fieles, las formas ritualizadas, los tiempos para el culto y la atracción devo-
cional periódica, activada y deseada (FERNÁNDEZ SUÁREZ, 1999: 42). En este tipo de
paisajes sacros confluyen vectores, en definitiva, de muy diversa índole cuya conjunción
contribuye a reforzar, como ocurre en el caso de algunos santuarios andaluces, su valor pa-
trimonial y simbólico (NARANJO RAMÍREZ, 2010: 48). Siguiendo el modelo cordobés
es preciso basarse en vectores históricos, entendidos como lugar mágico y mítico, vectores
religiosos que comprenden la devoción mariana, cristológica o de determinados tipos de
santos, vectores sociológicos a través de los cuales se puede identificar la esencia del pueblo,
en nuestro caso del occidente salmantino y finalmente vectores geográficos en cuanto que
la selección territorial, en el campo antropológico, constituye una de las mejores atalayas
para analizar el tema de los espacios sagrados y simbólicos (CRUZ, 2016a: 35-56).
Destacamos, por su interés, la definición que de paisaje sagrado hacen constar Madrigal,
Escalona y Vivar (2016: 3); apuntan estos autores como el “Paisaje sagrado de una comu-
nidad es una porción de territorio modelado y transformado por ella a lo largo del tiempo en
función de la relación con sus deidades o con su sobrenaturaleza” (2016: 4). El territorio se
puede sacralizar a través de la marcación y transformación de ciertos lugares por parte de
la deidad o de lo sobrenatural, los cuales pueden cambiar la percepción y la valoración de
ciertos lugares a través de su manifestación que puede ser, a su vez, casual o estratégica. En
este orden de cosas, el paisaje sagrado suele ser transformado a partir de ciertos cambios de
posesión del territorio o a través de determinados mecanismos geopolíticos o económicos-
-administrativos, los cuales suelen acontecer a lo largo del tiempo (ibidem, 4).
En el territorio la noción de lo sagrado y la forma en que se plasma en este, siguen
apuntando estos autores, va a dar lugar a un paisaje aparentemente físico dentro del que
se forma una suerte de meta-paisaje o paisaje espiritual, al que solo suelen acceder ciertos
especialistas rituales que, en comunión con toda una serie de seres físicos pero también
imaginarios, dan lugar a una sobrenaturaleza: “La forma de redefinir y darle legitimidad
113 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
como sagrados a estos paisajes es a nivel de las prácticas rituales, su señalización por medio de
cruces, objetos simbólicos, piedras y ofrendas, y la realización de otras actividades que demues-
tren el respeto y mantengan la relación con la sobrenaturaleza manifestada” (MADRIGAL,
ESCALONA y VIVAR, 2016: 4); paisaje que se ha de estudiar, como cabe esperar, desde
una óptica de la construcción social del territorio (BERGER, 1969).
Como vemos, la conceptualización de los paisajes sagrados o simbólicos y subsidia-
riamente, las marcas que los dan cuerpo, es compleja y varía en función de las ópticas que
apliquemos, bien sean antropológicas, históricas o incluso ecológicas. Para una correcta
interpretación de paisaje sagrado que contemple la multitud de elementos que lo conforman,
se puede resumir a través del siguiente esquema:
1. Paulatina conquista simbólica del territorio a través de:
· Evolución histórica
· Usos económicos, políticos, sociales y culturales del territorio
2. Evolución de los rituales. Transformación del paisaje en clave ritual
· Espacios agrarios. Ritualidad específica agraria:
· Rituales agrícolas: rituales estáticos
·Bendición de campos
· Rogativas
· Rituales ganaderos: rituales en tránsito
· Espacios simbólicos naturales
· Rocas, bosques, agua
· Espacios políticos
· Fronteras: límites y periferia
· Espacios de ritualidad específica
· Ermitas y santuarios
· Espacios de paso
· Caminos, cañadas
· Mojones, amilladoiros, cantos de los responsos

Dentro de los paisajes sagrados encontramos, tal y como apuntaban Madrigal,


Escalona y Vivar, una serie de señales, de marcas, de muy variada naturaleza que vienen a
responder a un amplio abanico de necesidades, que cuentan, a grandes rasgos, con algunas
de las siguientes características que dejamos aquí simplemente apuntadas:
1. Las marcas de sacralidad o demarcación actúan de efectivo control físico, pero tam-
bién mental del territorio (paisajes entrópicos).
2. Responden al control simbólico de determinados espacios, bien sean económicos,
religiosos, sociales como administrativos.
3. Las marcas establecen de manera física las fronteras y límites de territorios vecinos.
4. Las marcas responden a la necesidad de contar con elementos referenciales.
5. Se relacionan, por lo tanto, con el derecho consuetudinario a través de determinadas
instituciones tradicionales (veceras, compañas, quiñones, fetosines, etc.) (TUERO, 1976),
114 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

dando lugar a ciertos patrimonios comunes que conforman la denominada “memoria del
paisaje” (ABELLA, 2016).
6. Los paisajes sagrados se suelen formar a partir de cierta acumulación de marcas o
hitos cargados de ritualidad, tanto tangibles como intangibles.
7. Finalmente, dan lugar a “espacios narrativos” o event places generadores de “lugares
de memoria” (NORA, 1989).

Marcas y paisaje están íntimamente unidos. Aunque, como lo hace Francesco Careri,
podemos entender el concepto de marca –marche-, como denominación tradicional que
solía darse a los lugares situados en los confines mismos de un territorio, a los bordes
de sus fronteras (CARERI, 2017:11), somos partidarios de ampliar a una idea de mayor
alcance, como lo hacen Jelin y Langland, como escenarios donde se despliegan, a lo largo
de la historia, las más variadas demandas y conflictos, siendo además puntos de identifi-
cación de los pueblos. Las marcas territoriales se encuentran justificadas en términos de
derechos de propiedad anclados en la memoria de los antepasados, a través de los esfuerzos
por “(…) recrear y traer al presente memorias e identidades referidas a un pasado colectivo, sea
histórico o mítico” (JELIN y LANGLAND, 2003: 1-2).

Las “marcas” en los paisajes a través de algunos ejemplos de la


región Douro-Duero

Los paisajes, del tipo que sean, cuentan con una serie de elementos que los individuali-
zan de los demás. Así, mientras que en los agrarios son las actividades agrícolas y ganaderas
y todas las prácticas asociadas a estas actividades las que lo modelan y lo dotan de unos
caracteres propios, en los sagrados es la presencia de unas determinadas construcciones y
prácticas sociales, cargadas de ritualidad, las que otorgan carta de naturaleza. Con todo, la
sacralidad se manifiesta en la mayor parte de los paisajes culturales, incluso los naturales, a
través de una serie de prácticas rituales y de una serie de marcas u objetos simbólicos que
permiten realizar una diferenciación respecto al entorno que los rodea. En cierto sentido,
las huellas de lo sagrado, material e inmaterial, se manifiesta de manera constante en
diferente escala, una veces de forma intencionada y otras de manera accidental.
Nos interesa destacar, en este orden de cosas, la presencia de marcas en el paisaje, que
pueden ser de naturaleza material cuando se trata de elementos visibles, pero también inma-
terial las cuales suelen llevar implícitas, por su parte, una serie de “acciones rituales”, que se
pueden originar en prácticas religiosas pero también profanas. En función de esta primera
diferenciación se pueden dividir, a su vez, en marcas de sacralidad y, por otro lado, marcas de 115 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
demarcación. Esta doble distinción nos permite analizar la extensa variedad de tipos de marcas
que encontramos en los paisajes tradicionales. A través de algunos ejemplos que se documen-
tan a ambos lados del Duero, especialmente en la parte salmantina, tratamos de dar cuenta
de algunos de los principales tipos de marcas que hipercaracterizan este territorio de frontera.
Lo que hemos dado en llamar marcas de sacralidad acoge, en realidad, un sinfín de
situaciones en las que lo sagrado se manifiesta en el territorio, de manera física, a través de
monumentos naturales y realizados por el hombre y a través de un amplio abanico de huellas
entre las que destacan las cruces, pero también de acciones rituales3 de los individuos sobre
Al respecto resulta de obligada consulta los trabajos de Cruces Villalobos (2010) y de Vallverdú Vallverdú
3

(2010). El primero de ellos realiza un interesante análisis crítico del concepto de ritual y ritualidad.
el territorio a través de unos “principios de congregación” (VV.AA., 1991: 263), que otorgan
un carácter performativo a dichas acciones. Para el caso de las marcas físicas éstas son, como
apuntamos, de muy variada naturaleza, de ahí la lógica dificultad de resumir en unos pocos
tipos, la extensa variedad de marcas que podemos documentar en el paisaje.
Una de las marcas más evidentes son los monumentos, bien los naturales como los
levantados por el hombre. En el caso de los segundos, la erección de las construcciones
sagradas, especialmente las ermitas y los santuarios campestres se erigen en las principales
marcas sobre el paisaje, al erigirse en hitos referenciales del territorio4. La erección de estos
monumentos responde a numerosas causas, tal y como ha puesto de manifiesto Henares
(HENARES DÍAZ, 2004: 115-126):
– Nacimiento del espacio sagrado por medio de una leyenda que da origen al culto de
la Virgen, de Cristo o de algún santo, especialmente la primera, que lo hace por hallazgo
o aparición (VELASCO MAÍLLO, 1996: 87).
– Selección de un entorno privilegiado para situar la aparición, entorno que en el
que suelen concitarse determinadas características topográficas, naturales o con especial
significado histórico (castro prerromano o ocupación anterior, etc.).
– Ha de existir una apropiación de la imagen (y del lugar) por parte de la comunidad,
con el fin de crear vínculos no solo físicos, sino también afectivos.
– La creencia y, por ende, la imagen y su espacio físico, ha de institucionalizarse a
través del control por parte de la autoridad eclesiástica.
– Finalmente, los posibles conflictos por la propiedad del santuario o ermita, muy comu-
nes en los lugares liminales se han de resolver por medio de determinados rituales y prácticas
como pueden ser las romerías, las rogativas u otro tipo de manifestaciones, como pueden ser
los traslados temporales de las imágenes a las parroquias de las poblaciones en conflicto.

Aunque no son abundantes las ermitas o santuarios en la región Duero-Douro, en-


contramos algunos ejemplos interesantes gracias a sus ubicaciones – ermita de Nuestra
116 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Señora del Castillo en Pereña de la Ribera o ermita de San Cristóbal en Villarino de los
Aires –, las cuales se levantan en sitios en altura, destacados en su entorno, habitualmente
sobre montes santos o tenidos por sagrados en virtud de sus particularidades orográficas o
por la existencia de leyendas sobre los mismos. En este sentido, una de las marcas sagradas
más habituales son las relativas a lugares naturales, habitualmente montes o rocas, árboles
singulares – no pocas veces bosques – o lugares con presencia de agua (fuentes sacras),
4
Existe una abundantísima bibliografía sobre este tema. Al respecto, es de obligada consulta los trabajos de
William Christian (1976, 1978, 1990 y 1991), de Díez Taboada (1989 y 1995), de Velasco (1996), de
Garganté y Solá (2017) y de Muñoz Jiménez (2010), entre otros muchos. Para el caso portugués, no pode-
mos dejar de consultar el trabajo de Resende (2011) o el estudio que de la Capela de Nossa Senhora do Fojo
realiza Olinda Santana (2017).
entre los más comunes, muchos de los cuales son recursos estratégicos que es necesario
singularizar por medio de una sacralización física – habitualmente presencia de cruces o
de otro tipo de marcas – a través del componente mítico o legendario. En territorio de
la raya hispano-portuguesa constatamos numerosos ejemplos de esta naturaleza, caso de
La Peña Gorda en la localidad homónima, un imponente domo granítico que la leyenda
justifica como la china que la Virgen se sacó del zapato, en el conocido episodio bíblico de
la Huída a Egipto, por no decir los abundantísimos casos de rochas sacras, fragas de abalar
o penedos de mouros conocidas en buena parte del territorio portugués (ROLINHO, 2000;
RODRÍGUEZ CRUZ, 2008: 115-116).
No vamos a analizar de forma detenida los cruceros, por cuanto ya lo hemos realizado
en otras ocasiones (CRUZ, 2016b)5, uno de los elementos que mejor definen la propia
naturaleza de los paisajes sagrados. Los cruceros no se levantan al azar, sino que responden
a una lógica de ocupación del territorio muy determinada, unas veces establecida por la
autoridad eclesiástica –como los viacrucis, los cruceros de atrio o las cruces que se erigen en
el lugar donde se levantó una vieja ermita–, y en otras ocasiones erigidos por el poder local
como auténticos mojones o hitos viarios, como ocurre con lo que hemos dado en llamar
cruces de dirección, de las que contamos con magníficos ejemplos en la comarca zamorana
de Sayago (CRUZ, 2018). Los cruceros no dejan de ser, en definitiva, elementos referencia-
les en el territorio (CRUZ, 2012: 315-352), de ahí que, frente a otras marcas, se le otorgue
carta de naturaleza tanto religiosa –cruces de asilo– como jurídica o administrativa –cruces
de villa, cruces juraderas–, de ahí su reconocimiento en fueros y ordenanzas municipales.
Encontramos en estos mismos territorios un particular tipo de marcas que tienen
relación directa con las rocas sagradas o sacra saxa (ALMAGRO, 2015; ALMAGRO y
GARI, 2016), habitualmente localizadas al pie de los caminos, denominados amilladoiros
o cantos de las Ánimas, de los que conocemos abundantes ejemplos en tierras del occi-
dente castellano y leonés. De entre ellos, destacamos la Peña del Perdón de La Redonda6,
en la provincia de Salamanca y varios en la comarca vecina de Sayago. En territorio de 117 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

los Arribes del Duero zamoranos, en Almeida de Sayago, en el camino a la ermita de


Nuestra Señora de Gracia, se encuentra la denominada encina de las Ánimas, donde el
caminante, tras rezar un Padrenuestro por las Ánimas, depositaba una limosna en una
caja (PANERO, 2000: 134-135). En Carbellino, por su parte, se localiza la Peña de las
Ánimas, en el camino de esta localidad a Arroyo. La tradición obligaba a tirar una piedra
y rezar un Padrenuestro para evitar tener problemas con las ánimas en el transcurso del
En este trabajo recogemos la abundantísima bibliografía existente sobre el particular, especialmente la gallega.
5

Este y otros hallazgos fueron dados a conocer en su día por Benito y Grande (1992: 91), otorgando una serie
6

de interpretaciones erróneas que no vienen al caso comentar. En fecha más reciente, Almagro en varios traba-
jos que listamos en el apartado bibliográfico, se ha preocupado de efectuar una efectuar su análisis científico.
viaje (ibidem, 135). Este ritual nos remite, en todo caso, al de la presencia de amilladoiros,
tan populares en tierras gallegas, uno de cuyos ejemplos más conocido es la Cruz de Ferro
de la localidad leonesa de Foncebadón, protectora para el peregrino, conocidos en otras
regiones castellano y leonesas como cantos de los responsos, ya mencionados, carneiros en
Galicia o fieis de Deus (ALMAGRO GORBEA, 2006: 14) o pedras do namorados o de ca-
samento (ALMAGRO Y TORRES, 2015: 7-22), en tierras portuguesas. Estos amilladoi-
ros, muchas veces camino de santuarios principales (Nuestra Señora de Gracia en Sayago;
Nª Sª de Majadas Viejas en La Alberca o camino de San Andrés de Teixido en A Coruña),
siguen una vieja tradición pagana, al decir de Taboada (TABOADA CHIVITE, 1975:
101-112), que asociaba los cantos con las almas de los difuntos (ALMAGRO, 2006: 14).
En este sentido, existe una relación directa de este tipo de manifestaciones culturales con
las viejas prácticas medievales llevadas a cabo en torno a los túmulos prehistóricos7, los
cuales vienen a ser interpretadas como la afirmación de las élites locales en la tierra por
medio de una continuidad con el pasado (BRADLEY, 1993: 113-129).
En cierto sentido, las cruces de dirección guardan grandes similitudes con las almi-
nhas del territorio portugués8; La función principal de las alminhas portuguesas es la
conmemorativa, al erigirse en monumentos que apelaban a la realización de una oración,
un responso, para la salvación de los fieles; en determinados casos sirven de señal de una
muerte y como los cruceros de la Raya, se localizan al pie de los caminos, en zonas de paso
y encrucijadas, siguiendo similares patrones de situación geográfica.
Tampoco vamos a adentrarnos en el tema de las cruces y frases alegóricas que se plasman
en la arquitectura, debido a que en otras ocasiones nos hemos centrado en ellas de manera
extensa (CRUZ, 2014, 2016b, 2017 y e.p). La cruz emite una serie de mensajes, a veces
cifrados, que permiten un diálogo entre emisor y receptor. La cruz se erige en un símbolo
de significado polisémico que, en función de su cronología y de su ubicación, significa unas

Para esta cuestión remitimos a los trabajos de Blas Cortina (1997: 84-87) y, sobre todo, de Álvarez Vidaurre (2011).
7
118 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

La literatura sobre las alminhas portugueses es extensa y desde que se publicara el clásico trabajo de F.
8

BABO titulado Alminhas. Padrões de Portugal cristão, encontramos una veintena de trabajos sobre este
particular elemento simbólico del paisaje. Destacamos de entre ellos, el de M. C. CHIEIRA PREGO
(1997): Roteiro das alminhas do Concelho de Sever de Vouga. Cámara Municipal de Sever de Vouga; el
de AFONSO RODRIGUES, J. A. (2003): Marcos de santidade nos caminos do Rochoso. O silêncio dos
costumes, Guarda analiza, por su parte, las alminhas desde una óptica antropológica. También son inte-
resantes el trabajo de BROCHADO DE ALMEIDA, C.; SOUSA GONÇALVES, M. C. Y RAMOS B.
DE ALMEIDA, J. (2013): Fé e Religiosidade Popular en Ponte de Lima. Cruzeiros, Vías-Sacras, Nichos e
Alminhas. Municipio de Ponte da Lima; el de F. ABREU y R. MIRANDA (2001): Alminhas do Concelho
de Condeixa-a-Nova. Cámara Municipal de Condeixa-a-Nova; el de P. C. LOPES DE MIRANDA y O. J.
CARRASQUEIRA MARTINS (2003): As alminhas do Concelho de Tábua. Parroquia de Midoes; el de
R. PEREIRA, J. ARAUJO y M. COSTA (2007): Alminhas, Cruzeiros e Vias-Sacras do Concelho de Paços
de Ferreira. Religiosidade e Cultura Popular. Cámara Municipal de Paço de Ferreira y el de J. TORRES
(2011): “Alminhas de ontem o de hoje”, Sabucale, 3: 83-90. Revista do Museu de Sabugal, quien además se
encuentra en la actualidad realizando el catálogo de las alminhas del Concelho de Sabugal (com. personal).
cosas u otras. No solo es señal de la presencia de ciertos contingentes poblacionales –con-
versos o cripto-judíos–, sino que también es marca indicadora de la pertenencia a una orden
religiosa, en conjunción con una larga serie de emblemas o frases religiosas, y es, a la vez,
detente contra la entrada del mal –espantabrujas o espantademonios–, donde configura una
suerte de barrera mental, de marca que permite definir lo interior/exterior, lo de afuera y
lo adentro. Como apuntaba Campbell, las cruces en la arquitectura son los “guardianes del
umbral” (CAMPBELL, 2015:109)9, dando cuenta de una interesante dialéctica ya tratada
por Gastón Bachelard (1992: 250-270). Se trata, en todo caso, de las marcas que mejor
identifican los paisajes sagrados gracias a que la cruz es el símbolo religioso por antonomasia.
Dentro de la familia de las marcas de sacralidad, debemos de mencionar, finalmente, otro
tipo que se emparenta con las sacra sax o piedras sagradas, cuales son las huellas tenidas por
sagradas, de entre las que podemos mencionar las pisadas de la Virgen, herraduras, cazoletas,
huellas de pies, la Pata de la Mula, la huella del caballo de Santiago, etc. Se trata de elementos
que habitualmente se encuentran en plein champ, en espacios agrestes, en lugares rocosos,
singularizados gracias a los extraordinarios testimonios orales y legendarios de estos lugares
que ilustran, como apunta Jesús Suárez, la asimilación de estas huellas por parte de las clases
populares y su inmediata conversión en iconos religiosos, específicamente cristianos para la
mayor parte de ellos, capaces de generar determinadas acciones rituales como arrodillarse o
elevar una plegaria al cielo. Dan pie, a su vez, a la generación de leyendas o motivos legenda-
rios basados en su potencial como desencadenantes de fenómenos meteorológicos adversos
que se suceden ante ciertos actos contrarios a la creencia popular (SUÁREZ, 2016: 281-282).
En nuestra zona de estudio debemos mencionar la roca de La Patá (o La Patica) en Pereña
de la Ribera (Salamanca), que la creencia popular interpreta como la huella de la mula de la
Virgen en el pasaje bíblico de la Huída a Egipto; se trata de una “marca” que ya tratamos en
su momento (CRUZ, 2016a: 52), por lo que no vamos a volver sobre ella.
Hay que apuntar como las marcas de demarcación tienen un origen antiguo que podemos
retrotraer, al menos, a la época romana, en la que documentamos una de las primeras ope-
119 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
raciones emprendidas por el poder para ordenar los espacios. En el Noroeste de la Península
Ibérica encontramos una serie de documentos que permiten precisar la forma en que se
plasmaba la ordenación de las provincias romanas, modelo que se perpetuó en el tiempo. Por
un lado, encontramos los mojones o termini que marcaba los límites de las comunidades;
por otro lado, se solía recurrir a otros sistemas para definir los territorios tales como la propia
orografía del terreno, los cruces de caminos, las fuentes, los ríos, etc. (VV.AA., 2002: 83-85).
Dentro de esta familia hemos de destacar, pues, los hitos y mojones como una de las
marcas que mejor definen la personalidad del territorio. En fecha reciente, Concepción
Son interesantes las aportaciones que, en este sentido, realiza Manuel Delgado sobre lo que denomina “los
9

monstruos del umbral” (DELGADO, 2008: 105-117).


de la Peña ha realizado un magnífico estudio sobre este tipo de marcas (PEÑA, 2008:
115-139) que fijan los límites, marcas rumbos, manifiestan dominios, facilitan la regula-
ción de paso y adquieren un elevado valor tutelar y simbólico (ibidem, 138). Hitos y mo-
jones dan testimonio, a su vez, de la presencia de lugares de pasto y de viejos caminos y
generan, como cabe esperar, las fronteras10 entre comunidades para lo cual se efectuaron
los amojonamientos, necesarios para la correcta convivencia de las comunidades. Con
cierta periodicidad era necesario revisar los confines del término señalados por medio
de cruces en peñas y árboles, lo que suponía la afirmación espacial propia frente a la del
vecino y la definición de la liminaridad y territorialidad local dentro de cada comarca
en las que subyacían conceptos tales como “(…) autoridad, sometimiento, conflictividad,
convivencia, vecindad y sociabilidad, hábitat y paisaje, recursos humanos y cotidianeidad”
(CEA, 2012: 398). Desde la antigüedad, estos límites territoriales había sido objeto de
culto por parte de las capas más bajas de la sociedad, quienes los habían adornado y trans-
formado a lo largo del tiempo erigiéndose en una especie de lithoi empsychoi y “piedras
con vida” o piedras animadas (FREDBERG, 2010: 89), tema que de forma tan magistral
trató Fumagalli (1989).
Para ello se organizaba un tipo de procesión cívica11, un itinerarium, formado por los
alcaldes ordinarios de los cabildos, el procurador síndico de cada población y varios tes-
tigos, así como los escribanos con sus mesas y carpetas (CEA, 2012: 398); con un orden
determinado se revisitaban y (re)definían los límites del término12 comprobando los hitos
que solían ser cruces grabadas en ciertas piedras, contando con pasos los tramos entre ellos
y remarcándolos o supliéndolos, según tocara, manteniendo así en perfecto estado el “mapa
mental” y físico del territorio, fundamental en la vida cotidiana del Antiguo Régimen.
Estas visitas a los amojonamientos son frecuentemente citadas en la documentación
serrana; el doctor Cea Gutiérrez describe con detalle el que se realizó el 17 de septiembre
de 1792 para “renovar las mojoneras y cruces” que separan los términos salmantinos de La
Alberca de Monforte (ibídem, 399-400). En este documento, de excepcional importancia
120 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

para el conocimiento en profundidad de esta práctica comunal, se describen los hitos-cruces,


10
Es de obligada consulta el análisis de las fronteras que desde la óptica antropológica realizan Ana Rivas
(1994), Lisón (1994) y Delgado (2008). Sobre la frontera hispano-portuguesa es necesario consultar
PEREIRO, RISCO y LLANA (2006) y SALINAS DE FRÍAS (2013).
11
Las Ordenanzas de Astorga y San Justo de la Vega (León) relatan con detalle cómo era el ritual de apeo:
“Item, cuando se hallan apeos en el lugar, donde se hicieren, vayan los regidores y avisen a los lugares inmediatos
que señalen día y hora para que vayan dos hombres de capacidad [peritos], y temerosos de Dios [requisito para la
jura] y dos muchachos nombrados por los concejos con el presente notario y juez de comisión y renueven las arcas
[o mojones]” (LEAL, 2000: 158),
12
En la actualidad se continúa haciendo en el norte de la provincia de Palencia, en la localidad de Brañosera,
bajo la significativa denominación de la “mojonera” (ALLENDE Y MARTÍNEZ, 2011), también “mojona-
da” o “mojollas” que se celebraban cada diez años levantándose acta con sus correspondientes “apeos”, una
vez comprobado el estado de conservación y su restauración, llegado el caso.
inter-distanciados una media de 2.950 pasos, y se especifican las señales que se emplean para
fijar el territorio: árboles, piedras, peñascos (movedizos, hundidos o subterráneos) así como
la orientación de los mismos, gracias a los cuales la identidad de ambas localidades quedaban
perfectamente reforzadas hasta una nueva visita (ibídem, 401). En este sentido, la aprehen-
sión o mancipatio de tierras por parte de particulares o tomas de posesión jurisdiccional se
ejercían mediante un complejo ritual, oral y gestual, que se ejercía en ciertas circunstancias
poniendo las manos sobre los mojones y más concretamente sobre la cruz grabada en el hito,
ritual cuya génesis se encuentra ya en los textos latinos (LEAL, 2000: 159).
Los mojones, como símbolos parlantes que indican propiedad, están definidos en el
Diccionario de la RAE como la “Señal permanente que se pone para fijar los linderos de here-
dades, términos y fronteras”; son, por tanto, elementos que señalizan y protegen las tierras,
dividen el espacio, fragmentando el entorno y testifican además la identidad al encontrarse
unidos al orden y a la autoridad. Poseen una función demarcadora y de vigía, por lo que
en la mayor parte de las ocasiones son necesarias unas dimensiones determinadas o unas
marcas características para que pudieran ser vistos o al menos saber dónde se encuen-
tran, de ahí que se ubicaran en lugares elevados y destacados como montículos o túmulos
prehistóricos, sobre piedras o accidentes naturales singulares, (PEÑA VELASCO, 2008:
118; ÁLVAREZ VIDAURRE, 2011: 74).
Las marcas más habituales en los deslindes de término son la representación de cruces en
los árboles y, más comúnmente, en ciertas piedras localizadas en lugares por lo común elevados
o destacados en el entorno (FERRO COUSELO, 1952: 69-77). Aunque se tiene constancia
documental de su existencia desde el siglo IX (en Cataluña hay documentos fechados en el
año 882 y en Galicia en el 911), los ejemplos de cruces que han llegado a nuestros días se
suelen datar a partir del siglo xvi en adelante. Tal y como Fernández Ibáñez y Lamalfa Díaz
ofrecieron en su día, la tabla tipológica de las cruces de términos que aparecen en afloramien-
tos naturales de roca, menhires prehistóricos, miliarios romanos o piedras enhiestas clavadas
para tales fines es bastante corta, reduciéndose a cruces incisas simples –latinas y griegas–,
121 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
cruces de Calvario, cruces potenzadas en T y cruces trinitarias (2005: 260), acompañadas
de representaciones humanas y animales, alquerques, letreros, huellas de plantas de calzado,
pentalfas, etc. bien aisladas o en abigarrados conjuntos localizados en abrigos rocosos. En este
sentido, el tipo de cruz de término más empleado en los deslindes fue la griega con un círculo
inserto en cada cuadrante13, como marcando los cuatro puntos cardinales.
Todo este conjunto de “representaciones rupestres de época histórica”, según los definen
estos autores, ofrecen unas formas de expresión cultural propias de momentos medieva-
les o post-medievales, de eminente carácter rural que al tiempo que se empleaban como
En otras variantes menos frecuentes varía el número de puntos de cuatro a doce (FERNÁNDEZ y
13

LAMALFA, 2005: 260).


referencia física y mental de un territorio compartido, servían de elemento sacralizador14 y
por ende protector; como apuntan Fernández y Lamalfa “Este corto repertorio iconográfico
se localiza en lugares muy concretos y actúan con un lenguaje simbólico (codificado), mediante
el cual se expresaba una comunidad” (2005: 265).
La relación entre territorio y poder queda evidenciada a través de ciertas marcas que se
levantan en un contexto en el que éstas se erigen como hitos inviolables de elevado valor
simbólico que exige de la comunidad gran respeto (AFONSO, 1993: 100), que generan
entre la población cierto sentido de pertenencia a la tierra. Destacan, en este sentido, los
marcos de demarcação do Alto Douro Vinhateiro que, al valor simbólico de los mismos, se
asocian otros como los económicos y administrativos. Estos “marcos”, conocidos como de-
marcación pombalina, nacieron en 1756 a instancias de Sebastião José de Carvalho e Melo,
marqués de Pombal. El objetivo principal era delimitar el área capaz de producir vinos de ca-
lidad, con especial atención a los denominados como vinhos de feitoria que eran exportados
a Inglaterra (FAUVRELLE, 2007: 27). Mediante la erección de hitos de cantería labrada,
se establecía el control de una frontera conformando un cuerpo estable capaz de perpetuar
una demarcación que servía además de garante a través de su propia materialidad, referencia
física que permitía la creación de mapas “mentales” del territorio duriense (ibidem, 30).
Nos dejamos conscientemente muchos otros tipos de marcas; marcas que se encuentran
al pie de caminos, marcas que se dibujan en los árboles como señal de propiedad (ABELLA,
2016: 236-237), marcas escondidas, marcas de cantero. Tan solo se han apuntado algunos
ejemplos que permiten definir, en conjunto, no solo los paisajes sagrados sino, más bien, la
mayor parte de los paisajes culturales que caracterizan los territorios bañados por el río Duero.

Bibliografía citada

ABELLA MINA, I. (2016): La memoria del paisaje. Pasado y futuro de un patrimonio común. Libros
122 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

del Jata. Bilbao.


AFONSO, B. (1993): “Ritos de delimitação e sacralização do espaço no Nordeste Transmontano”,
Brigantia, vol. XIII (3/4): 89-105. Braga.
ALLENDE VALCUENDE, A. y MARTÍNEZ GIMÉNEZ, E. (2011): La Mojonera. Una tradición
ancestral de Brañosera y el valle de los Redondos. Brañosera.
ALMAGRO GORBEA, M. (2006): “El ‘Canto de los Responsos’ de Ulaca (Ávila): un rito celta del
Más Allá”, Ilu. Revista de Ciencias de las Religiones, 11: 5-38. Madrid.
___, (2015): “Sacra saxa. ‘Peñas sacras’ propiciatorias y de adivinación de la Hispania céltica”,
Estudos Arqueológicos de Oeiras, vol. 22: 329-410. Barcarena.
Como se decía en ciertas partes de la sierra malagueña, “Una vez que se amojona una finca, eso es sagrado (…)”,
14

habla bien a las claras de la configuración semántica del territorio a través de las acciones que puntualmente se
realizan en el espacio (SÁNCHEZ PÉREZ, 1990: 146-147).
ALMAGRO GORBEA, M. y GARI LACRUZ, A. (2016): Sacra Saxa. Creencias y ritos en peñas
sagradas. Actas del Coloquio Internacional celebrado en Huesca del 25 al 27 de noviembre de
2016. Instituto de Estudios Altoaragoneses. Huesca.
ALMAGRO GORBEA, M. y TORRES, J. (2015): “Pedras de namorados no Concelho de
Sabugal”, Sabucale, Revista do Museu do Sabugal 7: 7-22. Sabugal.
ÁLVAREZ VIDAURRE, E. (2011): Historia de la precepción del megalitismo en Navarra y Guipúzcoa.
Aproximación a una biografía de sus monumentos. Ediciones Universidad de Navarra. Pamplona.
ANSCHUETZ, K.; WILSHUSEN, R. Y SCHEICK, C. (2001): “An archeology of Landscape:
Perspectives and Directions”, Journal of Archaeological Reseach, vol. 9, nº 2: 152-197.
ARIÑO VILLARROYA, A. (1992): “Ritos agrarios”, Torres González, B. (coord.): Surcos. Museo
Nacional del Pueblo Español: 44-55. Madrid.
___, (2002): “La patrimonialización de la cultura y sus paradojas en la sociedad de riesgo”, en
GARCÍA BLANCO, J. M. (ed.) ¿Más allá de la modernidad?: las dimensiones de la información
y sus nuevas tecnologías: 329-354. Centro de Investigaciones Sociológicas. Madrid.
AYÁN VILA, X. (2005): “Etnoarqueoloxía e microhistoria dunda paisaxe cultural: a parroquia de
San Pedro de Cereixa (Pobra do Brollón, Lugo)”, Cadernos de Estudos Galegos, tomo LII, Fasc.
118: 117-172. Santiago.
BACHELARD, G. (1992): La poética del espacio. Tercera reimpresión. Fondo de Cultura
Económica. Argentina.
BÁEZ-JORGE, F. (2010): Conceptos fundamentales en torno a la religión y lo sagrado. Seminario del
Instituto de Investigaciones Históricas. Universidad Autónoma de México. México.
BARABAR, A. (2003): Diálogos con el territorio. Simbolizaciones sobre el espacio en las culturas indí-
genas de México. 3 vols. INAH. México.
BENITO DEL REY, L. y GRANDE, R. (1992): Santuarios rupestres prehistóricos en las provincias
de Zamora y Salamanca. Salamanca.
BERGER, P. (1969): El dosel sagrado. Elementos para una sociología de la religión. Amorrortu.
Buenos Aires.
BLAS CORTINA, M. A. de (1997): “El arte megalítico en el territorio cantábrico: un fenómeno
entre la nitidez y la ambigüedad”, en Brigantium, vol. 10. III Coloquio Internacional de Arte
Megalítico: 69-89. A Coruña.
BRADLEY, R. (1993): Altering the earth. Society of Antiquaries of Scotland Monograph Series nº
8. Edingburh.
123 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
___, (1998): The Significance of Monuments. On the shaping of human experience in Neolithic and
Bronze Age Europe. Rouledge. London.
___, (2000): An Anchaeology of Naturals Places. Rouledge. London.
CAMPBELL, J. (2015): El héroe de las mil caras. Psicoanálisis del mito. Fondo de Cultura Económica.
Madrid.
CAPEL, H. (1983): Filosofía y ciencia en la Geografía contemporánea. Una introducción a la geogra-
fía. Barcanova. Barcelona.
CARERI, F. (2016): Pasear, detenerse. Gustavo Gili. Barcelona.
___, (2017): Walkscapes. El andar como práctica estética. 2ª edición. Gustavo Gili. Barcelona.
CEA GUTIÉRREZ, A. (2012): “Cuando las cosas hablan: devoción, patrimonio y mecenazgo en
la sociedad salmantina”, en ROBLEDO HERNÁNDEZ, R. (coord.) Historia de Salamanca.
Tomo VI Recapitulación, Fuentes, Índices: 355-430. Centro de Estudios Salmantinos. Salamanca.
CHRISTIAN, W. A. (1976): “De los santos a María: panorama de las devociones a santuarios es-
pañoles desde el principio de la Edad Media hasta nuestros días”, en Lisón Tolosana, C. (ed.):
Temas de Antropología Española: 49-105. Akal. Madrid.
___, (1978): Religiosidad Popular. Estudio antropológico en un valle español. Editorial Tecnos. Madrid.
___, (1990): Apariciones en Castilla y Cataluña (siglos XIV-XVI). Nerea. Madrid.
___, (1991): Religiosidad local en la España de Felipe II. Nerea. Madrid.
CRUCES VILLALOBOS, F. (2010): Símbolos en la ciudad. Lecturas de antropología urbana. UNED
Cuadernos. Madrid.
CRUZ PÉREZ, L. (2015): “El Paisaje Cultural”, en CRUZ PÉREZ, L. (coord.) 100 paisajes cultu-
rales españoles: 13-16. Ministerio de Educación, Cultura y Deporte. Madrid.
CRUZ SÁNCHEZ, P. J. (2012): “Cruces de piedra, cruces en piedras, notas de religiosidad popu-
lar robledana”, Cahiers du PROHEMIO, XII: 315-352. Université d’Orléans. Orléans.
___, (2014): “La cruz en la arquitectura salmantina y algunos ecos en las manifestaciones religiosas
populares”, en Blanco, F. ( coord.) Mixticismo. Devociones populares e identidades salmantinas:
71-86. Instituto de las Identidades. Salamanca.
___, (2016a): “Paisajes sagrados en el occidente salmantino. Definición y análisis a través de los
ejemplos de El Abadengo y La Ribera”, en R. JACINTO e V. CABERO (coords.) Diálogos
(Trans)fronteiriços. Patrimonios, Territorios, Culturas. Iberografías, 31: 35-56. Centro de Estudos
Ibéricos. Áncora editora, Guarda.
___, (2016b): La cruz en la arquitectura tradicional de El Abadengo. Instituto de las Identidades.
Diputación de Salamanca. Salamanca.
___, (2017): “Antropología simbólica de un territorio de frontera. Las cruces grabas en la ar-
quitectura popular como thopos”, en Jacinto, R. (coord.) Outras fronteiras, novas geografías.
Intercâmbios e Diálogos Territoriais. Iberografías, 32: 39-54. Centro de Estudos Ibéricos.
Áncora editora, Guarda.
___, (2018): “Hitos de piedra en el paisaje del occidente zamorano. Análisis antropológico de los
cruceros de la comarca de Sayago”, en Cruz Sánchez, P. J. y Lorenzo Fernández, J. (coords.)
Cruceros de las comarcas de Alba, Aliste y Sayago.
___, (2017): “Creencias sobre la pared. Epistemología y problemática del emblema de la cruz en
el ámbito urbano tradicional”, Encontro Internacional Escritas e Vozes Silenciosas. 14-15 de
noviembre de 2016: 319-340. APHVIN/GEHVID. Porto.
DELGADO, M. (2008): El animal público. Hacia una antropología de los espacios urbanos. Anagrama,
124 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

colección Argumentos. Barcelona.


DÍEZ TABOADA, J. Mª (1989): “La significación de los santuarios”, en Álvarez Santaló, C.; Buxó
Rey, Mª J. y Rodríguez Becerra, S. (coords.): La Religiosidad Popular III. Hermandades, romerías
y santuarios: 268-281. Anthropos. Barcelona.
___, (1995): “Concepto y función del santuario”, Demófilo, 16. Revista de Cultura Tradicional de
Andalucía. Santuarios andaluces: 13-45. Fundación Machado. Sevilla.
ELIADE, M. (1998): Lo sagrado y lo profano. Paidós. Barcelona.
FAUVRELLE, N. (2007): “Marcos de demarcação”, en Fauvrelle, N. (coord.) Marcos de demarca-
ção: 22-37. Museu do Douro. Peso da Régua.
FERNÁNDEZ IBÁÑEZ, C. y LAMALFA DÍAZ, C. (2005): “Manifestaciones rupestres de época
histórica en el entorno de la cabecera del Ebro”, Munibe, 57: 257-267. San Sebastián.
FERNÁNDEZ SUÁREZ, R. (1999): “Geografía religiosa y ermitas: la focalización de símbolos
sagrados”, en Rodríguez Becerra, S. (coord) Religiosidad y Cultural, vol.II: 41-50. Fundación
Machado. Junta de Andalucía, Consejería de Cultura. Sevilla.
FERRO COUSELO, J. (1952): Petroglifos de término. Orense.
FREDBERG, D. (2010): El poder de las imágenes. Estudios sobre la Historia y la Teoría de la Respuesta.
Grandes temas Cátedra. Madrid.
FUMAGALLI, V. (1989): Las piedras vivas. Ciudad y naturaleza en la Edad Media. Nerea. Madrid.
GARGANTÉ I LLANES, M. y SOLÁ I COLOMER, X. (2017): Santuaris, ermites i capelles a
l’època del barroc. Institut d’Estudis Catalans. Diputació de Barcelona. Barcelona.
HENARES DÍAZ, F. (2004): “La ermita: una visión multidisciplinar”, Revista Murciana de
Antropología, 11: 115-126. Murcia.
HERBERS, K. (2009): “Sacralizar el tiempo y el espacio. Visitar lugares sagrados en los siglos XII
y XV”, en del Val Valdivieso, Mª I. y Martínez Sopena, P. (dirs.) Castilla y el mundo feudal.
Homenaje al profesor Julio Valdeón, vol. III: 567-581. Junta de Castilla y León. Valladolid.
HIRSCH, E. Y O’HANLON, M. (Eds.) (1995): The Archeology of landscape. Perspectives on Place
and Space. Clarendon Press. Oxford.
JELIN, E. y LANGLAND, V. (2003): “Introducción: las marcas territoriales como nexo entre
pasado y presente”, en Jelin, E. y Langland, V. (comps.) Monumentos, memoriales y marcas
territoriales: 1-18. Memoria de la represión. Siglo Veintiuno. Madrid.
LEAL, A. (2000): “Ceremoniales administrativos en las microgeografías norteñas”, en TORRIONE,
M. (ed.) La España Festejante. El siglo XVIII: 155-163. Centro de Ediciones de la Diputación
de Málaga. Málaga.
LISÓN TOLOSANA, C. (1994): “Antropología de la frontera”, Revista de Antropología Social, 3:
75-103. Madrid.
MADRIGAL CALLE, B. E.; ESCALONA MAURICE, M. y VIVAR MIRANDA, R. (2016): “Del
meta-paisaje en el paisaje sagrado y la conservación de los lugares naturales sagrados”, Sociedad
y Ambiente, año 4, vol.1, núm. 9 (noviembre de 2015-febrero de 2016): 1-25. México.
MATA, R. (2004): “Agricultura, paisaje y gestión del territorio”, Polígonos. Revista de Geografía, 14:
97-137. Madrid.
MOLINERO HERNANDO, F.; BARAJA RODRÍGUEZ, E. y SILVA PÉREZ, R. (2013): “La
tipificación de los paisajes agrarios de España: categorías y clases. Una clasificación escalar”,
en Molinero, F. (coord.) Atlas de los paisajes agrarios de España, tomo I: 8-24. Ministerio de
Agricultura, Alimentación y Medio Ambiente. Madrid. 125 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
MUÑOZ JIMÉNEZ, J. (2010): Arquitectura, urbanismo y paisaje en los santuarios españoles. Madrid.
NARANJO RAMÍREZ, J. (2010): “Los espacios cordobeses con valoración patrimonial”, A.H.
octubre 2010: 46-49. Sevilla.
NORA, P. (1989): “Between Memory and History: Les Lieux de Memorie”, Representations, 26.
Memory and Counter-Memory: 7-24. University of California Press.
ORTEGA, M. (2015): “Paisajes simbólicos e itinerarios culturales”, en CRUZ PÉREZ, L. (coord.)
100 paisajes culturales españoles: 382-388. Ministerio de Educación, Cultura y Deporte. Madrid.
PANERO, J. A. (2000): Sayago. Costumbres, creencias y tradiciones. Valladolid.
PEÑA VELASCO, C. (2008): “Los mojones, hitos y guardianes de límite”, en Díaz Serrano, A;
Mazín, O. y Ruiz Ibáñez, J. J. (eds.) Alarde de armas y festividades. Valoración e identificación de
elementos de patrimonio histórico: 115-139. Murcia.
PEREIRO, X.; RISCO, L. y LLANA, C. (coords.) (2006): As fronteiras e as identidades raianas entre
Portugal e España. Universidad de Trás-os-Montes e Alto Douro. Vila Real.
PÉREZ ALONSO, A. (1971): Historia de la Real Abadía de Nuestra Señora de Valvanera en La
Rioja. Gijón.
RESENDE, N. (2011): Fervor e Devoçao: Património, culto e espiritualidade nas ermidas de
Montemuro. Séculos XVI a XVIII. Tese de Doutoramento. Universidade de Lisboa. Lisboa.
RIVAS RIVAS, A. (1994): “Mediación divina y negociación ritual en los conflictos de identidad: la
creación simbólica de fronteras”, Revista de Antropología Social, 3: 27-47. Madrid.
RODRIGUES SANTANA, Mª O. (2017): Capela de Nossa Senhora do Fojo. Castro Daire.
RODRÍGUEZ CRUZ, J. (2008): “A cultura inmaterial da Raia Seca. Puxanza e esvamento dalgún
dos seus aspectos”, Arraianos VII: 112-121. Santiago de Compostela.
ROLINHO PIRES, C. (2000): O país das pedras. Viseu.
SABATÉ BEL, J. (2004): “Algunas lecciones de lugares con acontecimientos asociados”, Event
Places. Universidad Politécnica de Cataluña y Massachusetts Institute of Technology. Barcelona.
SABATÉ, F. y BRUFALS, J. (Dirs.) (2015): Arqueología medieval. Els espais sagrats. Agira Col.lecció
VII. Pagés editors. Lleida.
SALINAS DE FRÍAS, M. (coord.) (2013): Interpretar la frontera. Jornadas de Patrimonio, turismo y
desarrollo local. Diputación de Salamanca. Salamanca.
SALLNOW, M. (1987): Pilgrims of the Andes. Regional cults in Cusco. Smithsonian Institution
Press. Washington.
SÁNCHEZ PÉREZ, F. (1990): La liturgia del espacio. Casarabonela: un pueblo aljamiado. Nerea.
Madrid.
SUÁREZ LÓPEZ, J. (2016): “Piedras mágicas en Asturias”, en Almagro Gorbea, M. y Gari Lacruz,
A. (eds.) Sacra Saxa. Creencias y ritos en peñas sagradas. Actas del Coloquio Internacional
celebrado en Huesca del 25 al 27 de noviembre de 2016: 275-283. Instituto de Estudios
Altoaragoneses. Huesca.
TABOADA CHIVITE, J. (1975): “La encrucijada en el folklore de Galicia”, Boletín Auriense.
Arqueología, Historia, Etnografía. Homenaje al Dr. Ferro Couselo, tomo V: 101-112. Ourense.
TUERO BERTRAND, F. (1976): Instituciones tradicionales en Asturias. Ayalga ediciones. Gijón.
VALLVERDÚ VALLVERDÚ, J. (2010): Antropología simbólica. Teoría y etnografía sobre religión,
simbolismo y ritual. Editorial UOC. Barcelona.
126 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

VELASCO, H. M. (1996): “La aparición de los símbolos sagrados. Historias y leyendas de imá-
genes y santuarios (siglos xv-xviii)”, Revista de Antropología Social, 5: 84-114. Universidad
Complutense de Madrid. Madrid.
VIZUETE MENDOZA, J. C. y MARTÍN SÁNCHEZ, J. (Coords.) (2008): Sacra loca toletana. Los
espacios sagrados en Toledo. Universidad de Castilla-La Mancha. Colección estudios 114. Cuenca.
VV.AA. (1991): Rituales y proceso social. Estudio comparativo en cinco zonas españolas. Ministerio de
Cultura. Madrid.
___, (2002): Las Médulas. Patrimonio de la Humanidad. Junta de Castilla y León. Salamanca.
WILD, R. y MCLEOD, CH. (Eds.) (2008): Sitios Naturales Sagrados. Directrices para administra-
dores de áreas protegidas. UICN. Suiza.
PATRIMÓNIOS IMATERIAIS
E TURISMO
A Flauta de Tamborileiro na raia portuguesa:
meio e estratégia de desenvolvimento social
e cultural

Helena Santana
DeCA, Universidade de Aveiro
Rosário Santana
UDI, Instituto Politécnico da Guarda

Introdução

Antecipamos que, não só a música, como os patrimónios materiais e imateriais de


uma região, de um povo, de um país são, e cada vez mais, tidos como factores de efetivo
desenvolvimento não só cultural, como económico, social e regional de inegável valor e
eficiência, constituindo-se ainda ferramentas de animação social e civilizacional que se
expõem, a cada vez, mais eficazes na promoção e valoração de uma região, de um país, de
um povo. Neste sentido, todos os elementos que compõem a memória dos povos e das
gentes, se evidenciam como recursos que se revertem, obrigatoriamente, em conteúdos e
práticas a serem desenvolvidos por agentes promotores de progresso, não só a nível local,
como a nível artístico, cultural e regional.
Tendo como principal objetivo a identificação e valorização dos recursos do território,
129 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
dos recursos tangíveis e intangíveis de um povo enquanto factores críticos e estratégicos de
desenvolvimento, pensámos efetuar uma reflexão sobre a forma como a música e, em par-
ticular aquela específica à prática da Flauta de Tamborileiro, surge e se exterioriza enquan-
to recurso de uma região. Será ainda nossa intenção mostrar de que forma esta se pode
constituir factor de preservação e promoção de um património. Como estratégia de desen-
volvimento regional, pretendemos identificar a forma como a Flauta de Tamborileiro, e o
Tamborileiro em particular, se exteriorizam na região da raia portuguesa e espanhola, bem
como além-fronteiras, quer seja na Europa, como além-mar.
Sabemos que a representação mais antiga que se conhece de um Tamborileiro remonta
ao século xiii. Essa representação encontra-se no Códice Escurialense das Cantigas de
Santa Maria de Afonso X, Rei de Castela e Leão1. O Tamborileiro, bem como o conjunto
dos instrumentos que interpreta – a Flauta e o Tamboril –, estão presentes ainda hoje em
muitos países da Europa e do Mundo, surgindo em algumas regiões de Portugal, mas tam-
bém de Espanha, nomeadamente a região de Aragão, bem como no sudoeste de França2.
Reveladores de uma cultura muito própria, percebemos que os aspetos performativos e
interpretativos da sua prática musical surgem ligados à sua interpretação, mas, também, ao
contexto social e cultural em que se inserem. Estes contextos são também, e simultaneamen-
te, de natureza religiosa, mas, também, pagã, e indicadores de uma prática musical com
dupla intencionalidade. Revelando a riqueza dos povos e das suas tradições, mas igualmente
os diversos patrimónios materiais e imateriais referenciados, os Tamborileiros denotam
uma capacidade musical, gestual, interpretativa, social, cultural e interventiva bastante
fortes. São por isso, mas não só, alvo da nossa particular atenção e pesquisa.

1. A Flauta de Tamborileiro e o seu tocador

Fernando Lopes-Graça, grande estudioso e divulgador da música tradicional portu-


guesa, menciona por diversas vezes, e em numerosos dos seus escritos, que a riqueza da música,
nomeadamente da música dita portuguesa, se encontra na maneira como se trabalha a melodia
e a harmonia, o ritmo e o tempo, a partir dos elementos do folclore nacional. Paralela e simul-
taneamente, permitimo-nos afirmar que a riqueza da nossa música se expressa, também,
na natureza do canto e do instrumental que o acompanha, bem como na especificidade
dos contextos culturais e sociais onde se produz3. Mas não só em Portugal esta riqueza se
mostra, também além-mar ela se exterioriza. No caso da Flauta de Tamborileiro e do seu
tocador, ela denota características comuns em diferentes países, mas também as apresenta
exclusivas. Os contextos em que se exibe são identicamente próprios, particularizando in-
tenções, ações e representações culturais e religiosas de inegável valor e tradição, conforme
130 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

nos encontremos em Portugal, Espanha, França ou além-mar, bem como mais a Norte ou
a Sul dos países e regiões referenciadas.

1
A sua disseminação pela Europa terá acontecido ainda nesse século, século xiii.
2
Mesmo que durante o século xvii a sua representação iconográfica surja mais enfática na Europa, percebe-
mos, no entanto, que é pouco frequente a sua presença em iconografias no decorrer do século xviii. Este
facto surge fruto de uma não aceitação pelas classes ditas mais cultas e eruditas deste tipo de prática musical.
3
Neste sentido, a Flauta de Tamborileiro, e as práticas musicais a ela associadas, surgem diversas em distintas
regiões de Portugal, da Europa e do mundo, revelando um modo de ser e estar único e que revelamos ao
longo deste trabalho.
Presente ainda hoje em diversas regiões do nosso país, nomeadamente na região de
Miranda do Douro, a Flauta de Tamborileiro surge identicamente na sua congénere es-
panhola Zamora. Diz-se ainda no interior Alentejano, encontrando, neste caso, paralelo
com a região de Huelva na província de Andaluzia, assim como com o sul de Badajoz na
Estremadura, na vizinha Espanha. Na região da Beira Alta e Beira Baixa, encontra paralelo
com a região fronteiriça de Castela e Leão. De referir também a presença do Tamborileiro,
e da sua maneira tão particular de executar duplamente a Flauta e o Tamboril, na região
Provençal de Fontvieille Alpilles em França, e na região de Vera Cruz no México4. Sendo
em Portugal conhecida como Flauta de Tamborileiro, sobrevém na vizinha província
de Andaluzia sob a designação de Pito Rociero. Em França, nomeadamente na região de
Provence, a Flauta é denominada de Galoubet e na região de Gascogne de Flabuta. Nas duas
regiões o Tamboril é denominado de Tambourine e o instrumentista de Tambourinaire.
Apuramos assim que o conjunto instrumental denominado de Flauta de Tamborileiro
é constituído por uma Flauta e um Tamboril. Os Tamboris admitem modificações es-
truturais e sonoras de relevo conforme as regiões e os países referenciados, sendo que os
Tamboris portugueses são, no nosso entender, de natureza mais arcaica que os congéneres
de Espanha. De grande dimensão, o Tamboril alentejano é semelhante ao seu congénere
espanhol, sendo a sua decoração idêntica nos dois lados da fronteira. Já em França, e no
México, encontramos diferenças significativas neste instrumento5.
Sendo nosso intento mostrar a forma como um caso tão particular de prática musical
do Tamborileiro se exprime ao longo dos tempos, e em contextos territoriais e civilizacio-
nais tão diversos como os apresentados, buscaremos as especificidades que adquire nos
diversos países, procurando delinear ainda, a particularidade dos contextos onde emerge e
se define ferramenta de desenvolvimento e animação social e culturais. Analisaremos tam-
bém a forma como o Tamborileiro surge em ambos os lados da região da raia, buscando
a forma como este se torna reflexo da cultura e símbolo de um povo que, pelo seu caráter
forte e empreendedor, se lançou na conquista de outros mundos, denunciando além-mar
131 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
a presença de símbolos que definem estruturas culturais e sociais próprias. Neste sentido,
intentamos a valorização de um património histórico e cultural, material e imaterial, que
se mostra, no nosso país, infelizmente quase extinto. Contrariamente, surge valorizado
além-fronteiras.

4
Esta presença dá-se, no nosso entender, fruto da influência portuguesa e castelhana que decorre aquando do
processo de colonização iniciado em por volta de1500.
5
No que concerne a região francesa, o tamboril é em madeira, ornamentado no corpo da caixa-de-ressonância e
de formato alongado. Já no que ao México diz respeito, o tambor é igualmente em madeira mas de pequenas
dimensões. O seu formato remete para as representações da Idade Média na Europa, nomeadamente aquelas
das cantigas de Santa Maria de Afonso X Rei de Castela. O seu formato contribui de forma única e indelével
para o bom desempenho nas interpretações musicais e cénicas dos tamborileiros no México.
1.1. A Flauta – Definição geral e descrição
Como mencionado, o conjunto instrumental interpretado pela figura do Tamborileiro
é constituído por dois instrumentos: a Flauta e o Tamboril. É do conhecimento geral que
a Flauta define um tipo de instrumento musical da família dos aerofones (instrumentos
de sopro), consistindo, e no caso da Flauta interpretada pelo Tamborileiro, numa flauta
de bisel com três orifícios. Estes orifícios situam-se no extremo oposto ao bisel, dois na
parte superior e um na parte inferior do instrumento. Dado a rusticidade e simplicidade
do instrumento, este toca-se utilizando várias intensidades de sopro. Esta ação visa a ob-
tenção dos diferentes harmónicos de uma fundamental, conseguindo-se assim, produzir
uma escala diatónica. O instrumento toca-se, recorrendo sempre à mão menos expedita
do instrumentista, para que a mão mais ágil atue no manejo da baqueta que se destina a
percutir o Tambor. Este instrumento, que normalmente é de duas membranas, é nele que
se realiza o acompanhamento da melodia que se faz ouvir na Flauta. Quanto à forma de a
suster, esta é presa entre a boca onde se situa o bocal, e o dedo anelar e o mindinho da mão
que o sustenta, no extremo oposto do instrumento.
A Flauta de Tamborileiro toma diversas designações, conforme já referido, nos diver-
sos países e regiões em análise. Especificamente em Portugal, e no Alentejo, a Flauta de
Tamborileiro toma a designação de Pífaro, Pífano, Flaita6 ou Gaita, sendo este último o
termo mais usado nesta região de Portugal. As Flautas, construídas geralmente pelo pró-
prio tocador, seguem modelos pré-existentes, com medidas pré-estabelecidas e formatos
bem simples. Os modelos e práticas de construção seguidos pelos seus construtores, são
transmitidos de geração em geração, e surgem como conhecimento que convém preservar
e valorar. Os materiais empregues na sua construção, nomeadamente as madeiras, provêm
da flora local, utilizando-se preferencialmente a madeira do sabugueiro7. Como elemen-
tos decorativos vislumbramos o uso do corno na zona da boquilha e do bisel, assim como
de molduras esculpidas na zona do pé do instrumento, no extremo oposto ao bisel, para
que o tocador coloque o dedo anelar e mindinho, ajudando assim a segurar o instrumento.
132 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

No que à decoração diz respeito, as Flautas podem ainda conter gravações e incisões
feitas no seu corpo, representando formas geométricas e figurativas várias. Em alguns casos
as incisões são também pintadas utilizando-se preferencialmente as cores vermelha, verde e
amarela8. No que concerne a sua dimensão, não se conhece um tamanho ou formato único,
podendo ser encontrados exemplares com comprimentos e formatos diversos, pois a sua di-
mensão pode oscilar entre os 34 e os 46 cm. Este facto contribui de forma muito marcada

6
Termo usado igualmente para designar a gaita de beiços.
7
É esta a madeira que encontramos nos exemplares mais antigos, exemplares esses que servem de modelos aos
instrumentos construídos mais recentemente.
8
Pontualmente, encontramos os instrumentos pintados na totalidade do seu corpo.
para a variabilidade do sonoro e do campo de frequências do instrumento. Esta variabilidade
age sobre o espectro do som e, consequentemente, sobre o seu timbre. A furação interior é,
nestes casos e na maior parte das vezes ligeiramente cónica, com a zona mais larga no extremo
da boquilha, o que concorre identicamente para a determinação da sua afinação e sonoridade.
Segundo a organologia e a acústica musical, a Flauta de Tamborileiro assemelha-se a
alguns instrumentos que encontramos na Idade Média na Europa. Os sons fundamentais
não são muito empregues nas diversas peças que constituem o seu repertório, sendo que a
escala começa, usualmente, na oitava superior ao som fundamental, recorrendo ao 2.º har-
mónico. Em seguida, torna-se contínua ao ser executada, por intensidade de sopro, através
da realização dos 3.º, 4.º e 5.º harmónicos9. Esta escala pode chegar a ter um âmbito supe-
rior a uma oitava no caso do Galoubet Ocitano. As afinações, diferindo em cada tetracorde,
permitem, como estruturas de afinação, modelos que podem ser de dois tetracordes iguais.
Neste caso, estes instrumentos consentem a composição de melodias em apenas quatro
modos base, segundo a estrutura do primeiro tetracorde, a que corresponde o modo de Dó,
Ré, Mi e Fá, respectivamente10. No caso do Galoubet, a Flauta da região de Provence, o ins-
trumento inicia normalmente a sua escala em Dó, sendo a sua estrutura intervalar definida
por tons inteiros. Este facto permite tocar, se iniciarmos a escala na 2ª e na 3ª nota acima
da fundamental, em Ré Maior e em Mi Menor, respetivamente11. No caso da Península
Ibérica, os dois sistemas de organização sonora em uso mais frequente, são os que corres-
pondem os modos de Ré e de Mi, frequentes na música popular da raia portuguesa. Tendo
a extensão de uma oitava, o instrumentista amplia esta extensão no âmbito de uma quinta,
unicamente variando a intensidade do seu sopro. Através de uma eficaz combinatória da
posição dos dedos, o Tamborileiro pode tocar um total de doze sons diferentes, incluindo,
ainda, todos os graus cromáticos. Deste facto sobressai a possibilidade de uma combinatória
melódica bastante rica, e potenciadora de diversas organizações melódicas.

1.2. O Tamboril – Definição geral e descrição


133 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
O outro instrumento executado pelo Tamborileiro é o Tambor, instrumento designa-
do de Tamboril, um bimembranofone de caixa-de-ressonância cilíndrica. Feito em madei-
ra ou chapa de metal, este instrumento possui ainda um bordão em cada uma das peles que
o constituem. As membranas são em geral de pele de cabra, encontrando-se enroladas
e cosidas usando estruturas de madeira que se colocam nos topos do instrumento. As
peles são postas em tensão, recorrendo a procedimentos diversos. No caso do Tamboril
9
Como neste caso, o intervalo maior entre dois registos é de uma quinta (2.º e 3.º harmónicos), os furos
existentes são suficientes para se obter as alturas necessárias para perfazer toda a escala.
10
Pontualmente encontramos instrumentos onde a afinação, não difere.
11
Medindo cerca de 25 cm, o Galoubet é fabricado com madeira de ébano, pau rosa, amendoeira ou oliveira.
Estes factos permitem-lhe um sonoro diferenciado dos exemplares construídos em Portugal.
alentejano, o instrumentista recorre a um sistema bastante elementar e arcaico, sistema
esse no qual a pele é esticada diretamente a partir do arco de madeira a que se encontra
presa a pele. A corda passa, neste caso, pelos pequenos furos que se encontram na pele,
junto do arco do instrumento. Esta forma de esticar a pele, apesar de usar o dobro das
presilhas de um Tambor, encontra-se presente em vários exemplares de Tambores não só
europeus, como nas representações mais antigas deste instrumento, demonstrando a an-
tiguidade do seu processo de construção. Os bordões, simples cordéis ou tripas de porco
enroladas e esticadas ao longo das peles do Tamboril, quando tensos e percutidos, fazem
com que o bordão vibre. Na sua forma de tocar, o Tamboril, é preso por uma correia
ao braço com que se toca a Flauta, e percutido com uma baqueta com a mão contrária.
O Tamboril usado na região alentejana tem como principal característica a sua grande
dimensão. O seu som é grave e propício à execução de ritmos simples e lentos, construções
rítmico temporais próprias da música da região. Já na vizinha Espanha, em Huelva, os
Tamboris, apesar de possuírem formato similar aos portugueses, diferenciam-se nos aros
de madeira onde se prendem as cordas com que se esticam as peles. Da mesma forma que
as Flautas, os Tamboris são também eles construídos pelos próprios tocadores. Dos exem-
plares que felizmente chegaram até nós, encontramos alguns com uma estrutura de chapa
de metal, cuja origem pode ter sido a reutilização de latas e recipientes de metal12.
O Tambourine, que tem semelhanças com o Tamboril em uso em Portugal e em
Espanha, possui uma caixa cilíndrica de formato alongado, podendo conter ornamen-
tações diversas no corpo da caixa de ressonância. Possui ainda duas membranas de pele
em cada uma das suas extremidades, permitindo a diferenciação mais marcada da sono-
ridade. Pelas características que apresentam as peles ressoam diferentes. Uma, pelo facto
de uma ser muito fina, geralmente de veado jovem, possui uma sonoridade mais aguda; a
outra, mais espessa, de cabra, permite ao Tamboril francês ter uma sonoridade mais grave.
Em conjunto com a primeira, produz um som muito peculiar.
O Tamborileiro ao executar o instrumento percute a pele mais fina que se situa na parte
134 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

superior do instrumento, pondo assim em oscilação o ar dentro da caixa. Esta ação coloca se-
guidamente em vibração a pele inferior que, dadas as suas características, reenvia o ar em ba-
lanceamento para a pele superior. Esta ação permite a este instrumento o desenvolvimento
de características sonoras e timbricas peculiares, outorgando um acompanhamento do tipo
bordão/baixo continuo à flauta – o Galoubet. A baqueta usada é constituída por três partes
bem distintas, o punho que serve de contrapeso, o corpo fino de madeira dura e, a ponta em
osso, que percute a pele do Tamboril. Estas características permitem uma subtileza de toque
e um gestualidade interpretativa muito precisa, da qual resulta o som único do Tamboril.
12
No que toca à decoração, os Tamboris alentejanos são, na sua maioria, pintados de forma monocromática,
usando as cores azul ou verde. O mesmo proceder se verifica do outro lado da fronteira, em Huelva.
2. A presença da Flauta de Tamborileiro na Europa

Ao longo dos tempos e da história do homem, a Flauta de Tamborileiro surge diligente


em diversas regiões do país e do mundo. Na Europa, este conjunto instrumental assoma de
diferentes formas, sendo que representações suas retratando os dois instrumentos de forma
conjunta – a Flauta e o Tamboril –, se encontram ligadas a momentos bem precisos da prática
musical, cultural, religiosa e social dos países e das gentes em apreço. Numa primeira fase,
e associado às classes sociais mais abastadas e, socialmente mais bem representadas, nome-
adamente a corte europeia e os seus eruditos, este conjunto instrumental surge em vários
contextos e acontecimentos sociais, nomeadamente a prática musical em bailes, casamentos,
torneios ou paradas militares, momentos que se mostram de forte influência e presença a
nível não só social, como económico e cultural. Para além da Flauta e do Tamboril tocados
por um só indivíduo, existem ainda representações de músicos tocando a Flauta em simultâ-
neo com outros instrumentos, tais como pequenos Sinos ou Tambores de cordas13. Da análise
documental podemos aferir ainda que as primeiras representações deste conjunto instrumen-
tal, tocado em simultâneo pelo mesmo intérprete, surge, durante o século xiii, na Europa,
estando representado no Códice do Escorial, nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X, rei de
Castela e Leão14. Podemos afirmar também, e analisando as representações que nos chegaram
até hoje, que até à primeira metade do séc. xv a figura do Tamborileiro surge frequentemente
retratado a solo. O alargamento do conjunto instrumental, e a sua associação a outros instru-
mentos como a Harpa, a Viola da Gamba ou mesmo a Sanfona, assoma em período posterior,
de acordo não só com a época, como com o contexto da representação.
Mais tarde, a partir da segunda metade do séc. xvi, a Flauta e o Tamboril, bem como
a sua prática interpretativa e musical, surgem, progressivamente, associados às classes so-
ciais mais desfavorecidas, o que faz com que este conjunto instrumental perca popularidade
e prestígio entre as classes mais abastadas e, socialmente, mais representativas. Este facto
conduz ao seu progressivo desaparecimento, não só como prática musical, mas também
como prática cultural, religiosa e social. Ao nível das suas representações iconográficas, repre- 135 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

sentações essas que se mostrariam reveladoras de uma prática musical consentânea com o
analisado, a sua presença revela igualmente um decréscimo significativo atestando o desme-
recimento que o mesmo toma por parte das classes sociais mais representativas da sociedade.
Este facto dá-se a partir da segunda metade do século xvii. A representação da Flauta e do
Tamboril torna-se, consequentemente, pouco frequente no decorrer do séc. xviii.
13
Ao longo do século xx, percebemos estas representações em algumas partes da vizinha Espanha, nomeada-
mente na região de Aragão e do sudoeste de França, junto aos Pirenéus. O facto, permite-nos afirmar que
esta prática transcorre todo um tempo que se mostra bastante longo e, por isso, difícil de desmerecer.
14
No entanto, mesmo que este apareça somente na segunda metade do séc. xiii, a sua disseminação por toda
a Europa aconteceu de uma forma tão rápida, que surgem menções e representações da sua existência em
muitos países europeus já ao longo deste século.
Se nas classes mais abastadas, se junto dos nobres e dos mais eruditos, a sua prática
tende a ser desmerecida, se não abolida, junto do povo e das classes mais desfavorecidas, a
sua prática e mérito desenvolveu-se, progredindo e existindo até hoje. Este facto, este júbi-
lo, deu-se por via popular, sendo disso exemplo não só Portugal, como a Espanha e França,
países onde a Flauta e o Tamboril detém ainda hoje um grande poder de enraizamento,
enraizamento esse que se faz não só a nível local, como regional15. Num contexto mundial
mais alargado, e como já referido, a figura do Tamborileiro encontra-se presente em vários
países da América Latina, o que nos leva a colocar a hipótese que esta presença se dá fruto
da ação direta dos povos europeus e do processo de colonização, ação que se mostra a vá-
rios níveis e com diversos graus de atuação. No entanto, percebemos as diferenças culturais
que lhe são próprias, inerentes a um dizer e fazer de além-mar.

2.1. A Flauta de Tamborileiro em Portugal


Em Portugal, a representação mais remota da figura de um Tamborileiro da qual temos
referência, encontra-se numa iluminura da Crónica Geral de Espanha datada do séc. xiv16.
No que concerne esta representação, e segundo Veiga de Oliveira (2000: 260-261) o
Tamborileiro surge,
(...) aparentemente em funções mundanas, (...) tocado por um jovem que o leva no
antebraço esquerdo, não pendurado, como hoje, mas pousado e preso verticalmente; a
mão esquerda segura e dedilha a flauta (com o braço esquerdo flectido e encostado ao
peito), enquanto a direita bate a pele com uma baqueta virada para cima. O desenho
deixa dúvidas quanto à estrutura e formato exato do tamboril, não se podendo dizer
qual o sistema de prisão de peles, nem quanto à existência ou não de bordões (...).17

O Tamborileiro surge representado ainda na “Adoração dos Pastores”, representação


dos finais de séc. xvi, depositada atualmente no Instituto de Odivelas, e na “Natividade –
136 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Adoração dos Pastores” presente na igreja de Santa Maria de Alcáçova, em Elvas18.

15
No entanto, e no que diz respeito a Portugal, a sua presença é bem menos significativa que noutros países da
Europa. Em todos estes casos, a Flauta e o Tamboril surgem com especificidades e características próprias,
numa grande variedade de modelos que resultam, em parte, da sua grande dispersão geográfica. Este facto é
bastante importante para a caracterização e especificação de uma prática interpretativa e musical que ainda
hoje impera em algumas regiões do mundo.
16
Esta iluminura encontra-se na Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa.
17
A maneira como o Tamborileiro prende o Tamboril parece-nos idêntica à presente nos Tamborileiros retra-
tados nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X, e naquela que emerge dos eventos protagonizados por “Los
voladores de Papantla”, no México, uma tradição Totonaca. No entanto, a natureza melódica e rítmica das
canções interpretadas, bem como o contexto social, cultural e, muitas vezes religioso, em que se insere, é outro.
18
Esta pintura está datada dos séc. xvii-xviii.
É ainda possível encontrar a Flauta tocada em simultâneo com o Tambor de Cordas
em duas pinturas do retábulo da Igreja de Madre Deus, monumento do séc. xvi, assim
como a figura de um rapaz a tocar Flauta e Tamboril, conjuntamente com um velho tocador
de Sanfona, num painel do Mosteiro de S. Vicente de Fora, em Lisboa19.
Atualmente, e em Portugal, encontramos a figura do Tamborileiro em duas zonas bem
distintas do território nacional. A primeira, em Trás-os-Montes em Terras de Miranda do
Douro, estando a sua prática associada às festividades que aí têm lugar, tais como as Danças
dos Pauliteiros e dos Velhos, as Festas dos Rapazes, o Presépio de Natal, além dos diferentes
Ofícios e outras Solenidades Religiosas. Apesar da sua presença ser mais forte no Nordeste
Transmontano, não deixa de ter alguma expressividade de atuação mais a Sul, no Alentejo.
Notamos uma forte influência e paralelismo com Espanha, nas duas zonas de atuação do
Tamborileiro. Os conjuntos instrumentais denotam semelhanças nos dois lados da fron-
teira. Verificamos essas semelhanças não só entre Miranda do Douro e Zamora (Castela
e Leão), como no Alentejo no que concerne a margem esquerda do Guadiana, compre-
endendo os concelhos de Serpa, Moura, Barrancos e Mourão, com Huelva (Andaluzia) e
com o sul de Badajoz (Estremadura).
Da análise documental, percebemos ainda que no Alentejo, a Flauta e o Tamboril são
tocados em simultâneo pela mesma pessoa. O Tamborileiro surge como presença regular
nas festas patronais e romarias de cada povoação, sendo uma figura indispensável nos
momentos mais importantes das festividades, nomeadamente o peditório, a alvorada ou
ainda nos bailes. Contudo, notamos que ao longo do século xx, a prática deste conjunto
instrumental e a presença do Tamborileiro no Alentejo sofre um decréscimo significativo
em termos qualitativos e quantitativos dos seus tocadores. No entanto, este decréscimo
não é recente, ele já se vem a efetivar, desde o final do século xix. Este decréscimo de efe-
tivos, e consequente desaparecimento dos seus agentes está, de acordo com alguns autores,
relacionado com o advento das bandas filarmónicas que se tornaram uma ameaça à figura
do Tamborileiro, não só na região do Alentejo, como um pouco por todo o país. Contudo,
137 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
e citando Breyner (1900: 71-72), no concelho de Serpa “(...) ainda mesmo com as filar-
mónicas, o tamborileiro faz-se ouvir em todos os círios, ou festas d›arraial, e romarias aos
santos (...), [para as quais era] (...) indispensável o tamborileiro(...)”.

Toda esta informação nos atesta da importância da figura do Tamborileiro, tanto a nível social como cultu-
19

ral, em ambientes de natureza não só religiosa como pagã. Concomitante, o Tamborileiro surge, ao longo
dos séculos, como figura maior de uma cultura, de uma prática musical, de uma região, de um país, de um
povo, estando representado em diversos contextos, tanto ao nível da nobreza como do clero e daqueles que
possuíam os meios de fazer arte.
Paralelamente, Oliveira (2000: 128) explica que no início dos anos 60 do século passado,
o Tamborileiro teria já
(...) desaparecido há aproximadamente 50 anos da maioria das localidades onde
era tradição – de Serpa, nas festas de S. Pedro; de Moura; de Aldeia Nova de S. Bento,
no círio do Espírito Santo e nas festas de Junho, onde também acompanhava as
Danças dos Coices; de Brinches e das Pias, na Santa Luzia; de Santo Amador; de
Safara, na festa das Endoenças, que era muito concorrida; da Póvoa, no S. Miguel;
da Granja, no S. Sebastião; etc., – o tamborileiro pode contudo ver-se ainda em
Barrancos, nas Festas de Santa Maria, em Santo Aleixo, nas de Santo António e da
Tomina, e em Vila Verde de Ficalho, nas da Senhora da Pazes. [acrescenta ainda que
a flauta e o tamboril são aqui utilizados com] (...) funções nitidamente cerimoniais,
e o seu repertório reduz-se a uma breve fórmula de feição tradicional20.

No século passado, e noutras regiões de Portugal, existe referência, por parte de Michel
Giacometti, à presença de Flautas de Tamborileiro na Beira Alta e na Beira Baixa, zonas
fronteiriças com a região de Salamanca na província espanhola de Castela e Leão, onde o
instrumento mantém, ainda hoje, um grande enraizamento (Correia, 2004).
Como podemos observar, são numerosos os testemunhos que nos relatam a presença
e a prática da Flauta e do Tamboril em Portugal em diversas regiões do país, testemunhos
esses que se dão em torno das várias práticas que se desenvolvem aquando das romarias e
das festas patronais, nas quais a figura do Tamborileiro desempenharia um papel influente.
Neste sentido, seria figura de destaque no peditório, no qual percorria as ruas da povoação
anunciando a presença do Santo, dos festeiros e do fogueteiro, para que todas as casas da
povoação estivessem receptivas à sua passagem. Noutros momentos, surge aquando da
alvorada que se inicia na madrugada dos dias de festa, anunciando as cerimónias religiosas
e litúrgicas que se seguiam em honra do patrono21. A sua presença manifestar-se-ia tam-
bém aquando da procissão, neste caso tocando à frente do cortejo. No caso dos bailes, dos
138 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

quais ainda possuímos alguns registos, a figura do Tamborileiro fazia face às necessidades
musicais de uma ação dançante, ação essa na qual os moços e as moças da região poderiam
encetar conversa e um contacto mais próximo se assim o desejassem.
No que concerne os bailes, Nunes (1899: 20-21), refere as danças “religiosas” bailadas
ao som do Tamborileiro, nomeadamente,
(...) na Festa do Espírito Santo, Aldeia Nova de S. Bento; nas festas das Pazes,
em Vila Verde de Ficalho; na Festa da Tomina, em Santo Aleixo; na Festa de Santa

20
No entanto, nestas mesmas povoações ainda hoje encontramos a figura do Tamborileiro aquando das festas
e romarias da região.
21
Aqui existem vários relatos da Flauta e do Tamboril tocados dentro do templo, da Igreja.
Luzia, em Pias; entre outras, [as quais estariam já em decadência. No entanto, temos
que referenciar as danças “populares e amorosas”, presentes na margem esquerda do
rio Guadiana, nomeadamente, [(...) os bailes de roda, o maquinéu, os pinhões, o seu
pésinho, o fandango, os escalhavardos, o sarilho, e o fogo del fuzil.

O Tamborileiro, além de ser um agente cultural de inquestionável valor, seria também


um detentor das tradições da terra, conhecendo todas as características e preceitos a seguir
nas várias etapas de uma festa ou romaria22.
No Sul do país, nas festas e romarias de diversas povoações da região do Alentejo,
era usual juntarem-se os Tamborileiros e os Guiões das terras vizinhas. Como nos re-
fere Oliveira (2000: 128), relativamente à Festa da Senhora das Pazes em Vila Verde
de Ficalho:
(...) aqui, como em Santo Aleixo, também outrora acorriam as “festas” das várias
povoações, incluindo as da vizinha Espanha, com os seus guiões e tamborileiros, que
os da terra iam esperar de cada vez, tocando depois ora uns, ora outros; e aos carros
dos romeiros de toda a parte. Numa fila contínua, vinham ornamentados com arcos
e verduras (…).

A proximidade entre povoações dos dois lados da fronteira evidencia-se nesta afir-
mação, pelo que, e no caso da povoação de Vila Verde de Ficalho (Serpa), e a povoa-
ção espanhola de Rosal de la Frontera (Huelva), se mantém ainda hoje laços estreitos de
colaboração23. Musicalmente sobressaem as suas semelhanças, mas, sobretudo, as suas
dissemelhanças, pois que o Tamborileiro alentejano usa um Tamboril de dimensões consi-
deráveis, cujo som é grave, acarretando, na sua forma de tocar, a exigência de ritmos lentos
e simples, característica que encontramos também nos Tamborileiros das terras vizinhas
de Huelva. Já os Tamborileiros das regiões mais a Norte, utilizam Tamboris de menores
dimensões, instrumentos que permitem a execução de ritmos mais complexos e rápidos,
139 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
próprios a um repertório mais expedito.
Na Península Ibérica, e no que ao traje diz respeito, não nos deparamos com qualquer
particularidade, pelo que aduzimos que não existe nada de relevante a mencionar. Já no que
concerne a sua ocupação profissional, podemos atestar que os tamborileiros se encontravam
ligados a atividades de pastorícia e criação de animais, o que lhes permitiu aceder à Flauta
22
Neste sentido, era muitas vezes o Tamborileiro que, tendo conhecimento de todas as especificidades do ofício,
indicava o caminho a seguir no peditório, e demais ações a cumprir nas festas. Fruto dos vários anos de ex-
periência no ofício, a sua figura surge assim, como a presença e saber de uma cultura e tradição externa à sua
própria prática. A sua ação não é, neste sentido, pura e unicamente musical, mas também social e ritualista.
23
Ainda hoje são conhecidas as visitas de Rosal de la Frontera à Festa de Nossa Senhora das Pazes em Vila
Verde de Ficalho, acompanhadas do Guião de Santo Isidro e do Tamborileiro.
de três furos e ao uso de peles de cabra nos Tambores24. Breyner (1900: 72) afirma a este
respeito que “(...) o ser tamborileiro foi sempre de exclusiva competência dos cabreiros”.
Este oficio é aquele ao qual estavam (e ainda estão ligados) alguns antigos Tamborileiros,
como é o caso do Tamborileiro de Santo Aleixo que detinha a ocupação de pastor (Oliveira
2000: 132), ou do Tamborileiro de Aldeia Nova de S. Bento, que Michel Giacometti foi
encontrar no Monte de Belmeque. Este encontro deu-se na década de sessenta do século xx,
trabalhando o mesmo como “vaqueiro” e “porqueiro” simultaneamente.
De carácter artesanal, e muitas vezes feitos pelo próprio tocador, ou por algum artesão
local, a aprendizagem da feitura e da maneira de tocar os instrumentos era feita tanto em
contexto familiar, como pela observação de outros Tamborileiros. Estes podiam pertencer,
não só a regiões mais próximas da sua área de influência, como a povoações vizinhas. No caso
de povoações da raia, esta observação poderia, inclusive, ser feita do outro lado da fronteira,
o que lograria conduzir à apropriação de outras formas de tocar os instrumentos, outros
ritmos e melodias25. Verificamos identicamente uma evolução na sua prática interpretativa
e musical, assim como na maneira como o conjunto instrumental se apresenta. Neste fazer,
o juntar de outros instrumentos ao conjunto primeiro, leva a uma alteração desse mesmo
conjunto instrumental e, consequente, da sua natureza timbrica e instrumental. O alarga-
mento e desenvolvimento da natureza melódica, rítmica, harmónica e timbrica do conjunto,
assim como da densidade e natureza do discurso musical construído, dimensiona uma ação
interpretativa outra, que se mostra mais densa e transmissora de um outro fazer artístico,
musical e cultural. Podemos ainda afirmar, e especificamente em relação à região sul do
nosso país que, e sem qualquer hesitação, a prática da Flauta e do Tamboril a acompanhar
o canto, ou outros instrumentos, embora não conhecidos enquanto registos no território
português, se encontram presentes numa prática instrumental em que a Flauta e o Tamboril
estão acompanhados pela Viola Campaniça, instrumento popular nesta região, e que poderá
ter partilhado o seu repertório com a referida formação. Este facto surge como elemento
potenciador de um desenvolvimento musical, cultural e social diferenciado26.
140 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

A prática da Viola Campaniça surge hoje mais viva em Portugal. Sabemos que ressur-
giu o interesse por este instrumento, o que levou a um reaparecimento dos seus tocadores
24
Neste sentido, podemos aferir que a Flauta de Tamborileiro, também conhecida por Flauta de três furos, é
particularmente conhecida não só em Portugal como em Espanha, estando muito divulgada ao nível dos
instrumentos tradicionais. De fabrico artesanal, este instrumento alargou o seu perímetro de influência a
outros continentes que não o Europeu, sempre com a função de animar festividades. Recorrendo a um só
músico, o facto permite uma maior versatilidade de ação e um menor custo para os romeiros.
25
Esta apropriação de elementos de um e outro lado da fronteira encontra-se descrita e considerada na
observação e análise dos documentos que nos foram disponibilizados.
26
Neste sentido, é possível encontrar na Biblioteca-Museu da povoação de Vila Verde de Ficalho um
velho exemplar de Viola Campaniça, que nos pode remeter para o uso deste instrumento na formação
instrumental em análise.
na região do Alentejo, para nós um sinal de que se poderá recuperar a tradição não só da
prática deste instrumento a solo, como da tradição Tamborileira na região. Revela-se então
fundamental, e necessário, proteger e estudar o pouco repertório ainda existente sobre
a forma de tocar deste instrumento, bem como a dos Tamborileiros alentejanos, pois o
património é rico e passível de se perpetuar no futuro. A riqueza deste património poderá
constituir-se factor de progresso económico destas regiões, revelando-se o capital necessá-
rio para a criação e o desenvolvimento de uma diferente atratividade dos territórios e, con-
sequente, das regiões e do país a que pertencem. Apesar de ainda raro e difícil, cremos crer
que, fruto do interesse das novas gerações pelo que é da terra, pelo que é autêntico, pelo
que é natural e tradicional, os fará, a médio e longo prazo, procurar as raízes e tradições de
um povo que é o seu, tornando-os motores de desenvolvimento e renascimento dos terri-
tórios. Neste sentido, a prática Flauta e do Tamboril, não só no Alentejo, mas progressiva-
mente em outras regiões do país, poderá vir a ser, dadas as peculiaridades e especificidades
dos instrumentos, um fator de desenvolvimento regional que levará inevitavelmente a uma
revitalização da figura do Tamborileiro como forma de dinamizar os territórios, revitalizar
tradições e recuperar a memória musical das gentes pela preservação e recuperação dos ri-
tuais e ritos ao seu uso inerentes, bem como dos instrumentos musicais, elementos de um
património material e imaterial que devemos preservar27.

2.2. A presença do Tamborileiro em Espanha, França e além-mar


Já do outro lado da fronteira, em Huelva na Andaluzia, ou em Badajoz na Estremadura,
encontramos uma tradição tamborileira bem viva. Mesmo tendo havido identicamente
uma redução do número de tocadores, ainda assim mantiveram-se em número significati-
vo para que a figura do Tamborileiro não desaparecesse. Notamos que depois da recupera-
ção que se efetuou deste instrumento em meados dos anos 80, este conjunto instrumental
é, agora, um conjunto instrumental muito popular. Da mesma forma que em Portugal, o
Tamborileiro surge em algumas povoações da província de Badajoz ligado às festas e ro-
141 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
marias de cada povoação, tocando nos vários momentos da festividade. Do seu repertório,
destacam-se os temas de baile e de danças de espadas. Neste sentido, nas serras de Huelva
e na província de Badajoz, a Flauta e o Tamboril surgem ligados aos bailes e danças de
espadas, por oposição à região de Huelva em que este conjunto, exceção feita às partes
serranas, assoma ligado às romarias, nomeadamente à romaria do Rocio. Deste facto surge
que o instrumento, a Flauta de três furos tenha, nesta região, a denominação de Gaita

De referir que o interesse crescente pela área da etnomusicologia e da organologia ao nível das ciências musi-
27

cais, se tornou igualmente um motor de desenvolvimento de materiais e grupos instrumentais diferenciado-


res das inúmeras regiões do país e do globo; um conhecimento fundamentado e científica e historicamente
informado, também.
Rociera28. Na região de Huelva, além da sua presença aquando dos toques de alvorada,
o Tamborileiro marca presença na procissão e nos bailes. Incorporando, desde a primeira
metade do século xx, temas de sevilhanas e, desde finais dos anos 80, temas do flamenco
no seu repertório, surge como elemento diferenciador de uma cultura, dita, popular. A sua
prática musical surge ainda, e muitas vezes, realizada juntamente com outros instrumentos,
nomeadamente a Guitarra29.
Sabemos igualmente que, e no que concerne a maioria dos territórios rurais do inte-
rior da raia, as atividades agrícolas predominam, modelando a paisagem e estabelecendo a
identidade de um território que transmite, ainda assim, o espírito arreigado das gentes que
lutam contra a adversidade. Particular nesta população, é a esperança e a luta continuada
na defesa daquilo que é seu, não só no que concerne o território, mas, acima de tudo, da
identidade e da tradição. Assim,
e para todas as fainas, e para todas as estações, e para todas as horas, lá tem a can-
ção dolorida ou álacre, estimulante ou resignada, que, no alvor da manhã, no pino
do dia ou no crepúsculo do anoitecer, ecoa por devesas, vales e outeiros, dizendo a
secular comunhão ou a secular luta do homem com a terra (Lopes-Graça s.d.: 24).

Apesar das transformações que inevitavelmente ocorrem nos territórios, a carga sim-
bólica e o espaço das vivências que revelam, constituem a identidade que se mostra na
forma de ser e estar de um povo, e na sua relação com o meio. De acordo com diversos
autores, é na alternância entre o tempo de trabalho e o tempo de ócio, que o tempo se
revela e demarca, em tempos de fainas e de romarias,
em que moços e moças, velhos e velhas, escorreitos e aleijadinhos, se enca-
minham, por montes e vales, às vezes durante léguas e léguas, ao Santuário da
sua devoção, em grande concurso do povo, que, feitas as preces, cumpridas as
promessas ou dados os louvores ao orago, se liberta, numa alegria rútila e saudá-
vel, de cuidados e canseiras, folgazando, mercadejando, comento e amando em
142 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

toda a simplicidade de espírito e sem qualquer ideia de ofensa aos lugares sagrados
(Lopes- Graça s.d.: 35).

28
De notar, que esta Gaita, a norte, possui dimensões menores, pelo que produz sons mais agudos por oposi-
ção às suas congéneres de Huelva e Badajoz, cujas dimensões maiores nos presenteiam com sons mais graves.
29
Esta diferença em relação ao território português surge como uma mais valia para este estudo, dado que nos
revela, a riqueza e a evolução dos grupos instrumentais nos diferentes países e regiões, evolução essa que se
mostra fruto de uma cultura, de uma sociedade, e de uma economia bem diversa, que se desenvolve nos dois
lados da fronteira.
Nestas romarias, a música e a dança possuem um papel de relevo, dando ordem e mes-
tria ao que de mais inato e percebido o homem detém. Assim, é necessário perceber que a
música não está dissociada do homem enquanto ser pensante, e que tem, no momento da
festa e da romaria, a oportunidade de mostrar um pouco mais livre. Estas vivências são, no
nosso entender, especialmente importantes no decorrer de práticas sociais e culturais que
padronizam comportamentos e relações sociais.
Na província de Andaluzia assistimos a uma mescla de práticas cujos repertórios mu-
sicais, seja dos grupos de tamborileiros ou dos grupos de flamenco, seguem modelos bem
definidos e institucionalizados, referentes ao património social e cultural da Romería de
El Rocío30. Sabemos que as romarias estão sempre ligadas às manifestações populares pagãs
que secundam a festa religiosa. Neste sentido, devem ser vistas como demonstrações cultu-
rais e rituais de quem o homem se apropria enquanto crente e temente a um Deus maior.
Para Arregi (1993: 532)
a la religiosidad popular pertenecen las ideas de una comunidad sobre los seres
sobrenaturales y su influencia en la vida (creencias), así como las prácticas mediante
las cuales el individuo o la colectividad se pone en relación con estos seres (ritos).

Esta religiosidade, visível nas festas populares entre as quais vimos a destacar as ro-
marias e as peregrinações aos santuários, e nas quais se englobam a prática musical
dos Tamborileiros, mostra-se também nos elementos estudados e característicos das
Festividades de Santo Isidro em Rosal de la Frontera, São Mamede em Aroche e Santo
António em Cortegana. A religiosidade presente nestas festividades em honra das imagens
titulares das festas e irmandades de cada região, constituem-se espaços de determinação
religiosa e cultural que não podemos, nem devemos escamotear, e que podem ser vistos
como ferramentas de desenvolvimento social, económico e territorial de inegável valor e
eficácia. No que concerne as irmandades, estas encontram-se presentes nos dois lados da
fronteira, sendo bastante importantes no desenrolar das festas, das romarias e dos rituais.
143 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
A presença dos seus Mordomos na organização das festividades em honra dos seus Santos
Padroeiros, frequentemente associadas a Ermidas que se situam na periferia das aldeias
e povoações é da sua inteira responsabilidade. Em outro, sabemos que é em volta destas
Ermidas e Santuários que se conservam com maior fervor as crenças populares, e onde têm
lugar as festividades mais importantes para o povo. Organizando-se de forma similar em
todas as regiões, seguem padrões pré-definidos, pois que desempenham um papel e uma
O calendário festivo das gentes de Andaluzia segue as antigas festividades religiosas romanas que organizam os
30

tempos do homem diferenciando-o do tempo de ócio ou do tempo de lazer. As festividades que se celebram têm
por base o calendário pagão, comemorando distintos momentos da vida; as festividades dos santos padroeiros
de cada região, também. Notamos igualmente a apropriação da cultura nas diversas regiões e o enriquecimento
das suas formas musicais pela incorporação de elementos da dança e do folclore de um dado território.
função muito importante para esse mesmo povo, tanto do ponto de vista religioso, como
do ponto de vista profano, no qual se englobam os aspectos político, social, artístico e
cultural aí vigentes31.
Mas não só em Portugal e em Espanha se verifica a existência desta prática musical –
o Tamborileiro. E, mesmo que a presença e a execução conjunta da Flauta associada ao
Tamboril esteja presente em todos os países da Europa, é só a partir do século xvii que
este conjunto instrumental toma a sua forma definitiva, dado que é neste período que as
artes e tradições populares se afirmam. Neste sentido, podemos constatar a presença do
Tamborileiro, da Flauta e do Tamboril, em inúmeras representações de pintores ao longo
dos tempos, tais que Joseph Vernet (1714-1789), Jacques Rigaud (1680-1754), Antoine
Raspal (1738-1811) e Nicolas Lancret (1690-1743). Em França, a presença de músicos
provençais em Paris faz aparecer aí, a figura do Tamborileiro. De referir, neste sentido, as re-
presentações de Joseph-Noël Carbonel (1741-1804) e Jean Joseph Châteauminois (1744-
-1815). No entanto, o início do século xix foi um ponto de viragem para a presença do
Tamborileiro em França, nomeadamente na sua capital, Paris, pois a Revolução Francesa
e a queda da Monarquia põem fim ao uso regular deste conjunto instrumental, dando
lugar às orquestras32. Relegados para segundo plano e obrigados a deslocar-se para ou-
tras regiões do país, encontramos a figura do Tamborileiro na região de Vaucluse e em
Arles. No entanto, e mais recentemente, notamos que a presença do Tamborileiro em
regiões como as de Provence e Gascogne onde o uso destes instrumentos, a Flauta e o
Tamboril, se encontra bem enraizado e conservado. Em Provence, a Flauta é denomi-
nada de Galoubet e em Gascogne, de Flabuta, como referido anteriormente. Nas duas
regiões o Tamboril é denominado de Tambourine e o instrumentista de Tambourinaire.
Relativamente aos instrumentos utilizados, percebemos que os Tambores são bastante
semelhantes, no que ao seu diâmetro diz respeito, e em relação aos usados na Península
Ibérica. Contudo, notamos que são maiores em profundidade e mais ricos em relação à
sua decoração33.
144 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Relativamente às práticas musicais, culturais e sociais a eles associadas, diferenciam


significativamente das praticadas em Espanha e em Portugal, pois são fruto de práticas
de maior relevo e qualidade, tanto a nível musical, como instrumental. Estas práticas

31
De referir que, a romaria, possui um carácter mais lúdico e festivo que as festividades religiosas em torno do
patrono. Na província de Andaluzia predomina a romaria. Este facto surge como factor diferenciador face a
outras festividades desta região espanhola.
32
Já referimos que, e no caso de Portugal, esta prática se viu constrangida, se não aniquilada e desmerecida,
pelo florescimento das Bandas Filarmónicas.
33
De salientar ainda que este conjunto instrumental assoma também em Inglaterra, Itália e nos Países Baixos,
assim como na Eslováquia, República Checa e Rússia. Nestes países mais a oriente, a Flauta é tocada a solo
não requerendo a presença do Tambor.
decorrem de um saber que se quer continuado, e que, os franceses, relevam aquando das
suas festas e romarias. Ao nível de um ensino formal e institucional, a formação faz-se em
escola contribuindo para o seu desenvolvimento. No entanto, percebemos que somente as
Regiões de Marselha, Aix en Provence e Toulon mantém, ainda hoje, a tradição popular do
Tamborileiro, sendo possível encontrar a disciplina de Flauta de Tamborileiro em diversos
Conservatórios de Música em França34, facto que nos permite aferir da importância do
folclore e das tradições nestes territórios35.
Por outro lado, não só a formação de músicos em contexto formal mas, sobretudo, a
sua formação em contexto informal, permitem a prática sistemática destes instrumentos.
O uso deste conjunto instrumental, em contextos sociais e festivos mais tradicionais e
populares, como são as festividades, as festas e as romarias populares, permitem que os
mesmos não se extingam e, a sua presença, seja de grande valor para o desenvolvimento
e para a continuidade de uma prática em contexto. Os grupos de música tradicional,
os grupos e associações folclóricas, as casas da música, os centros de interpretação, e
demais agentes promocionais de cultura e tradição, possuem aqui um papel fundamen-
tal. Simultaneamente, os grupos folclóricos provençais permitem preservar a cultura e
as tradições locais, dado que os trajes, as danças e as músicas são executadas ao som da
Flauta de três furos (Galoubet) e do Tamboril, pondo em relevo o nome desta região.
Durante as suas representações, estes grupos usam instrumentos tradicionais da região
de Provence. Acompanhando a Farandola, uma dança tradicional, este conjunto instru-
mental está presente nas Festas de São João, Santo Elói, nas cavalgadas, podendo ainda
animar casamentos, aniversários e outras cerimónias a pedido dos seus organizadores. As
festividades de São João em particular, possibilitam a presença dos Tamborileiros num
costume provençal que remonta à região da Catalunha, onde as fogueiras de São João
eram presença habitual nos rituais associados a estas festividades. Estas práticas estendem-
-se desde o Principado do Mónaco até à região dos Alpes, sendo motivo de festejos e
ajuntamentos populares vários. Esta tradição, presente desde o século v, ligada aos cultos
145 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
pagãos dos Solstícios, foi transformada pelos cristãos, consentindo o uso das fogueiras

34
Em 1864 é fundada uma Academia do Tamboril em Aix o que promove a criação de uma classe, mesmo que
efémera, de Tamboril no Conservatório de Aix. Em Marselha surge em 1888 um movimento de conservação
do tamboril e, depois da Primeira Grande Guerra (1914-1918), é revitalizado este conjunto instrumental
pelos grupos folclóricos. René Nazet publica mesmo em 1964 um Método Elementar de Flauta e Tamboril
da autoria de Maurice Guis. Atualmente existem classes de Tamboril em diversas Escolas e Conservatórios
de Música em Aix, Avignon, Arles e Martigues.
35
Neste sentido, e fruto de uma prática informada, a presença de um conjunto tão característico como este
nas festividades populares e regionais, conduz à revitalização não só desta prática, como dos patrimónios
material e imaterial das regiões referidas. Simultaneamente, pode ser um marco diferenciador na cultura e
nas tradições, assim como um fator de desenvolvimento económico, social e cultural.
aquando das referidas Festas36. As Festas em honra de Santo Elói, padroeiro dos ferreiros
e dos animais, eram acontecimentos onde os desfiles realizados em volta destes eventos
eram acompanhados pelas Flautas e Tamboris, tocando árias tipicamente provençais ao
ritmo de danças populares e tradicionais37.
Se a disseminação e importância deste conjunto instrumental, denominado de Flauta
de Tamborileiro, se encontra ligada a diversas formas de culto que se acham já desde a
Idade Média, verificamos que esta disseminação se faz relevante também pela natureza da
sua prática instrumental. A correspondência desta, com as danças e as coreografias que
acompanham a prática musical da Flauta e do Tamboril, práticas essas que se encontram
relacionadas, a nível religioso com as festividades do Corpo de Deus e, a nível pagão, com
as festividades do Solstício e as Recoltas de Verão, é marcante. De notar ainda que os
trajes usados nas festividades pagãs são parecidos: vestes brancas com cinturas e chapéus
engalanados com flores. As coreografias são também elas muito similares, pois são danças
em volta de um mastro, com cintas que se entrelaçam em movimentos circulares bem
ensaiados38. Concomitantemente, não podíamos deixar de referenciar neste trabalho, a
presença deste conjunto instrumental do outro lado do Atlântico, nomeadamente por
Terras de Vera Cruz e no México. No que concerne o uso deste conjunto instrumental
nesta região do globo, podemos afirmar que as culturas Inca e Asteca já usavam este tipo
de instrumentos antes da chegada dos Portugueses e dos Espanhóis, pelo que, não será de
estranhar a presença destas características e modos de dizer o musical nas suas danças. Esta

36
Em 1955, um grupo de escalda, ao chegar ao cimo do Monte Canigou próximo de Perpignan, alumia
todo o vale de luz para relembrar o costume dos povos Celtas que, instalados na província de Roussillon,
acendiam fogueiras para alumiar toda a região aquando do Solstício de Verão. Depois de 1963, esta chama
de São João desce da montanha e chega à localidade de Perpignan afim de permitir a todos os habitantes o
acesso à chama de Canigou. Ao longo do seu caminho, esta chama é transportada por indivíduos vestidos
de branco e transmitida às localidades vizinhas. Atualmente, esta chama está presente em Arles e todas as
localidades de Provence que aí vêm buscar a chama, revitalizando uma série de tradições presentes nas mú-
146 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

sicas, danças, profissões e utensílios usados em épocas anteriores. Num caso como no outro está ligada ao
Solstício de Verão, conservando as suas características pagãs.
37
As Festas em honra de Santo Elói, padroeiro dos ferreiros e dos animais, são celebradas em dois momentos
distintos: a festa religiosa no dia 1 de Dezembro e as festividades pagãs no dia 25 de Junho aquando da
transferência das suas relíquias da Catedral de Noyon para Paris em 1212. Esta festa é um costume Provençal
dos mais coloridos que se realiza ao norte dos Alpes desde Avignon a Toulon. Composta pelas Cavalgadas
dos Carreto Ramados, assim como por charretes engalanadas por ramagens, esta festa é uma homenagem
aos cavalos como ferramenta de trabalho e meio de transporte antes do aparecimento de outros meios de
transporte mais modernos. O desfile de Santo Elói remonta à Idade Média, época em que os aldeões defen-
diam as suas terras e pertences. Esta prática obrigava a que possuíssem uma cavalaria, uma milícia dirigida
por um capitão, e um chefe das cavalarias que portava um estandarte como forma de identificação. Os des-
files são acompanhados pelas Flautas e Tamboris, os Galoubets e os Tambourines, tocando árias tipicamente
provençais ao ritmo de danças populares e tradicionais.
38
De notar que, na sua origem, estas danças com mastros eram danças guerreiras.
presença faz-se notar, nomeadamente na Danza del Venado, uma dança ritual dos índios
Yaquis e Mayos dos estados mexicanos de Sinaloa e Sonora, e dos Voadores de Papantla.
No caso dos Voadores de Papantla, esta tradição, de origem Totonaca, consiste numa
dança em que quatro homens se lançam de uma altura superior a vinte metros de cabeça
para baixo e presos por fitas que se encontram enroladas no seu corpo. À medida que o
ritual prossegue, e a estrutura superior do poste gira, as fitas vão-se desenrolando e os
homens descendo progressivamente até ao solo. A dança dá-se de forma lenta, e o ritual
se faz sacrifício. Pendurados num poste que se encontra encimado pelo Sacerdote – o
Tamborileiro –, que toca de forma contínua os seus instrumentos, a dança prossegue, e
os quatro homens, que simbolizam os quatro pontos cardeais, lançam-se numa descida
extasiada até ao solo. Mostram assim a sua força mas também um sacrifício, um sacrifício
do que é de si para que a comunidade renasça, revitalize e floresça. Do ponto de vista
social, cultural e económico, são, no nosso entender, denunciadores de desenvolvimento.
Não podemos ainda deixar de referir que esta representação da Flauta de Tamborileiro se
encontra presente em quase toda a América Latina, presença essa que se faz sentir desde o
Equador até ao Peru e Venezuela. Não podemos deixar de fazer notar ainda, que a flauta
de três furos também se mostra mais a Oriente, na China, Coreia e Japão. Neste dizer,
permitimo-nos salientar a importância da presença Portuguesa e Espanhola nestes locais,
bem como na disseminação destes instrumentos pelo mundo.

Considerações finais

Como breve reflexão, queremos salientar a presença da música, da dança e da arte,


bem como da manufatura de instrumentos musicais tradicionais, e da sua prática aquando
das manifestações religiosas e pagãs nas diversas partes do globo, como fator de desen-
volvimento económico, social e cultural. Queremos ainda relevar a importância destes
147 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
contextos como materializações e manifestações decorrentes da existência e permanência
de um património material e imaterial da maior importância e relevo. Queremos identica-
mente referir que, em cada uma das regiões, esse património, para além de ser um factor
de desenvolvimento social, económico e local, se torna fator de preservação das tradições,
revelando-se elemento de desenvolvimento cultural, artístico e humano.
A prática musical do Tamborileiro, e os seus instrumentos em particular, revelam iden-
ticamente, e em todos os locais referidos, uma importância maior no que concerne a per-
manência e imanência das tradições, sejam elas de natureza religiosa ou profana. Estando
presente tanto nos cultos, como nas festas pagãs, traz até nós a necessidade de refletir sobre
a sua importância, bem como sobre a sua relevância, e a de certos conjuntos instrumentais
na vida das gentes. Como recurso endógeno, urge ponderar nos meios necessários à sua di-
vulgação e preservação, para que o saber e cultura locais não sucumbam no esquecimento
do tempo e dos espaços de uma barbárie contemporânea.
A Flauta de Tamborileiro, presente na Europa e no mundo, surge uma representa-
ção daquilo que se faz de mais puro a nível religioso e profano, numa interação entre
o Tamborileiro e o povo, povo e o meio, o meio e o rito, o rito e a tradição, a tradição
e culto, o culto e o conhecimento, o conhecimento e a materialidade, a materialidade
e a imaterialidade de um recurso que nos permite a fruição e a divulgação de um saber
que é nosso, em festivais, romarias e eventos que promovem não só as crenças, como o
património e as tradições que se vão fazendo de todos nós. Fruto da força e da atrativi-
dade daquilo que se constituiu um recurso puro, vemos, na revitalização destas práticas e
saberes, assim como na sua divulgação, a necessidade de conservação da memória indivi-
dual e coletiva de um povo, bem como do conhecimento e das práticas a ela associadas.
Neste fazer se dá o progresso, se mostra uma necessidade, e se torna o homem um ser e
ter que é de todos.

Referências bibliográficas:

Arregi, Gurutze & Manterola, Ander, (1993) “Religiosidad popular”. In Diccionario temático de
Antropología, Barcelona: Boixareu.
Breyner, Alexandre de Mello, (1900) “O Tamborileiro”, A Tradição, Ano II, nº5, Serpa. (http://
www.archive.org/stream/tradio12lisbuoft#page/n7/mode/2up)
Correia, Conceição e Roquete, Catarina, Michel Giacometti, (2004) Caminho para um Museu,
Câmara Municipal de Cascais.
Jambrina Leal, Alberto e Cid, José Ramón, (1989)  La Gaita y el Tamboril, Centro de Cultura
Tradicional, Salamanca.
Lopes-Graça, Fernando (s.d.), A Canção Popular Portuguesa, Lisboa, Colecção Saber, Publicações
148 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Europa-América.
Nunes, M. Dias, (1899), “Danças Populares do Baixo Alentejo” A Tradição, Ano I, nº 1, Serpa.
(http://www.archive.org/stream/tradio12lisbuoft#page/n7/mode/2up)
Oliveira, Ernesto Veiga de,  (2000) Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Fundação
Calouste Gulbenkian, Lisboa.
Itinerários literários: Leituras e Leitores
de Camilo Castelo Branco, em particular
Agustina Bessa-Luís

Daniela Maria Vaz Daniel

“Mudo de terra para terra, precedido sempre do tédio que lá me


vai esperar” (Camilo Castelo Branco1).

1. Introdução

Sendo a zona da Raia pródiga em autores de renome, quer a ela estejam ligados por
nascimento ou por opção afetiva, conhecer a vida e a obra desses escritores e estabelecer per-
cursos literários será certamente uma mais-valia para a comunidade e para a própria região.
É comum afirmar-se que Camilo Castelo Branco amava o Norte apesar de ter nascido
em Lisboa. De facto, o mestre demostra esse amor na escolha de personagens e locais que
conhece ou lhe são familiares, centrando-se a larga maioria das suas obras de ficção em
Trás-os-Montes ou no Minho onde viveu a maior parte da sua vida e conviveu de perto
com as populações. Contudo, o mais profícuo autor luso e um dos maiores escritores por-
149 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
tugueses do século xix não limita o espaço das suas narrativas a essas duas áreas geográficas,
localizando inclusivamente parte de diversas obras no estrangeiro.
Ainda no respeitante ao território nacional, o autor não foi indiferente às gentes do
Centro. O seu avô paterno, Domingos José Correia Botelho, alcunhado por Bexiga e co-
nhecido pelo Dr. Brocas, formara-se na Universidade de Coimbra em Leis e em Cânones,
tendo exercido funções em Cascais, no Porto, em Vila Real e em Viseu. Assim, a razão para
alguns dos romances de Camilo, ou cenas dos mesmos, se passarem em terras da Beira,

In TRANCOSO, Miguel (Coordenação). Camilo e Castilho – correspondência do primeiro dirigida ao


1

segundo. Coimbra, Imprensa da Universidade,1930, pp.11-12.


nomeadamente em Gouveia, Lamego, Pinhel e Viseu, poderá dever-se ao facto de o seu
avô ter desempenhado o cargo de juiz de fora na comarca de Viseu durante três anos.
É do conhecimento geral que o mestre leu os clássicos, mas tal asserção parece-nos
demasiado vaga e abrangente reclamando uma clarificação sobre as suas escolhas de entre
os mesmos. Assim, o presente artigo reflete a análise deste autor multifacetado, amado por
uns e odiado por outros, numa perspetiva biobibliográfica, literária e cultural.
Conscientes de não pertenceu a nenhuma escola, cremos que as leituras por ele realizadas
se refletem no seu trabalho literário, tal como as vivências, o que se pode facilmente observar
nas leituras que outros da sua obra fizeram, interpretando os percursos e as escolhas que fez.
Que autores leu Camilo Castelo Branco? Quais desses escritores o influenciaram? Que
figuras da cultura portuguesa e internacional leram Camilo? Quem reflete na sua obra a
vida ou a produção literária do autor? E, finalmente, como o vê Agustina Bessa-Luís, uma
das maiores romancistas portuguesas do nosso século, admiradora confessa do mestre e
autora de duas obras em que o coloca como figura central?

2. Enquadramento Literário

Poderíamos definir Camilo Castelo Branco como um escritor romântico com in-
cursões no Realismo, tendo a maioria dos críticos defendido que foi a figura central do
Ultrarromantismo apesar da sua desafeição a escolas. Tal enquadramento não dispensa um
conhecimento profundo da sua vida já que a existência tipicamente romântica o definiu
enquanto homem e como romancista.

“São estas circunstâncias biográficas – a bastardia, a orfandade, as tradições ro-


manescas da família, a educação religiosa, o convívio com a paisagem física e huma-
na das províncias do Norte, o conhecimento íntimo do meio portuense, as aventuras
sentimentais, os lances da vida boémia e turbulenta, a pobreza, os desgostos, a doen-
150 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

ça, o isolamento de S. Miguel de Ceide, o profissionalismo na carreira das letras – o


quadro fundamental de referências para a leitura de Camilo, enquanto a experiência
biográfica o modelou e enriqueceu […]” ( Prado Coelho, 2001: 67)

A corrente literária do Romantismo que durou cerca de quarenta anos (1825-1865)


tinha como referência os ideais liberais, repudiava as formas rígidas da Literatura e veio
destronar a epopeia enquanto género narrativo mais comum e acarinhado, dando prefe-
rência ao romance. O enriquecimento da classe burguesa, a par do desenvolvimento das
técnicas tipográficas, assim como do fim da censura e da inquisição proporcionaram uma
manifesta difusão do livro.
É frequente dividir-se o período romântico em três fases. A primeira decorre de 1825
a 1840, destacando-se como principais autores Almeida Garrett (1799-1854), António
Feliciano de Castilho (1800-1875) e Alexandre Herculano (1810-1877) estando estes
ainda muito ligados ao Classicismo, já que mantêm diversas características neoclássicas.
A segunda geração romântica, comummente denominada de ultrarromântica, desenvolveu-
-se essencialmente em torno das cidades de Coimbra e do Porto, tendo sido liderada por
João de Lemos (1819-1890), e apresentando como principais expoentes Camilo Castelo
Branco (1825-1890) e Soares de Passos (1826-1860). As principais características desta
fase do Romantismo são o fascínio pela morte, o pessimismo exacerbado, a inatingibilidade
da felicidade no amor, a religiosidade e o naturalismo.
Também conhecida por pré-realista, a terceira geração romântica portuguesa teve
como representantes fundamentais João de Deus (1830-1896) e Júlio Dinis (1839-1871)
em cujas obras já era notória a dissolução das características românticas.
O Realismo, género literário também presente nalgumas obras de Camilo, veio desen-
volver olhares postos no futuro, no progresso e na ciência, uma vez que a preocupação for-
mal dos realistas assentava na exatidão, na precisão de estilo e de linguagem para descrever
a realidade. Balzac (1799-1850) foi o fundador do Realismo na Literatura, sendo Eça de
Queirós (1845-1900) apontado como o criador da corrente em Portugal.
De acordo com David Frier2, Camilo é a única figura representativa da segunda fase
do Romantismo, sendo o carácter do autor, assim como o tom da sua obra, indubitavel-
mente românticos, apesar de certas produções de pendor realista. Este crítico defende
ainda que certas obras lusitanas seriam inimagináveis se Camilo não tivesse criado uma
prosa tipicamente portuguesa.
Há também a enfatizar a linguagem e o estilo do mestre: um vasto e riquíssimo
vocabulário, umas vezes arrancado, sem retoques, da fala do povo, outras vezes de sabor
arcaizante. De facto, na sua obra encontramos uma oratória vocabular extraordinária,
graças ao uso de léxico extremamente rico e colorido, assim como de uma linguagem
151 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
vernácula exemplar. Camilo revelava um estilo invulgar, onde a vertente clássica, a par
da sentimental e romântica, se explicam pela leitura dos autores clássicos junto de padre
António de Azevedo, e a linguagem popular se deve ao contacto direto tido com o povo,
nomeadamente do Minho e de Trás-os-Montes.
Todavia, o convívio com as gentes da Beira está igualmente patente na sua produção
literária, nomeadamente em Amor de Perdição, o seu mais aclamado romance, assim como
em Noites de Lamego e O Bem e o Mal. Relativamente ao primeiro, no qual Camilo narra a
história de seu tio paterno, Simão António Botelho, a ação passa-se em Coimbra, no Porto
In FRIER, David. As (Trans)Figurações do Eu nos Romances de Camilo Castelo Branco (1850-1870). 1.ª edição.
2

Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, pp. 52.


e em Viseu, sendo esta última o local de nascimento das personagens principais e residên-
cia das respetivas famílias. No que respeita ao volume intitulado Noites de Lamego, do qual
fazem parte diversos contos, a alusão a esta cidade da Beira Alta, pertencente ao distrito
de Viseu, surge não só no título da obra e no prefácio da mesma, como no último conto.
De facto, uma das personagens principais do texto intitulado César ou João Fernandes? é o
filho do barão da Penajóia e reside em Penajóia, freguesia do concelho de Lamego. Quanto
ao romance O Bem e o Mal, que Camilo dedica a padre António de Azevedo, toda a ação
se centra nas ermas terras do atual distrito da Guarda. Efetivamente, não só o padrinho
do alter-ego de padre António de Azevedo era um velho fidalgo de Pinhel, como uma das
personagens principais, Ladislau Tibério Militão, nascera no termo de Pinhel, em Vila
Cova (o verdadeiro topónimo é Bouça Cova) e o vicariato situava-se em S. Julião da Serra,
uma das freguesias urbanas de Gouveia.
Apesar da paixão pela gente simples do povo e das características marcadamente lusas
da sua pena, Jacinto do Prado Coelho salienta a originalidade e a independência do mestre:

“Camilo, dentro da restrita esfera do Portugal do Romantismo, construiu o seu


mundo peculiar. Fê-lo com bastante independência, procurando obedecer à sua lei
própria, seguir o seu caminho, elaborar os materiais da experiência que ia adquirindo
dos homens e da vida. Por isso geralmente se apresenta Camilo como uma força da
natureza, sobranceiro a escolas, impermeável a tendências que não fossem as pró-
prias tendências instintivas” (Prado Coelho, 2001: 107).

De facto, este conceituado académico da crítica camiliana definiu Camilo como


um escritor entre dois mundos, considerando o seu Romantismo contido dada a grande
influência dos clássicos, e o seu Realismo pessoal e singular.
Além das obras em prosa narrativa, Camilo distinguiu-se noutros géneros, designadamen-
te antologia, biografia, crítica literária, epistolografia, folhas volantes, história, jornalismo,
152 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

polémica, prefácios, romance, teatro, traduções e versos.

3. Camilo Castelo Branco

3.1. Breves notas biográficas

Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco nasceu em Lisboa, na Rua da Rosa, a 16 de


Março de 1825. Foi baptizado na Igreja dos Mártires a 14 de Abril de 1825, vindo a ser
perfilhado pelo pai aos quatro anos. Era filho de Manuel Joaquim Botelho Castelo Branco,
solteiro, e de Jacinta Rosa do Espírito Santo Ferreira. Ambos viviam em mancebia e já
tinham uma filha mais velha, Carolina.
Camilo ficou órfão de mãe com cerca de dois anos e de pai quando contava dez, carre-
gando a sua orfandade pela vida fora. Toda a sua instabilidade afetiva, nascida da ausência
do amor e do carinho dos pais, assim como do facto de não ter uma casa a que pudesse
chamar lar, se veio a revelar no seu carácter melancólico e no modo depressivo de encarar
a vida. Assim, quando a cegueira ameaçava afastá-lo do mundo das letras, o génio escolheu
retirar-se do palco da vida.

3.2. O autor e a sua obra

Camilo iniciou os estudos primários em Lisboa, em 1830, mas com a morte do pai, a
22 de Dezembro de 1835, as duas crianças foram viver para Vila Real de Trás-os-Montes.
Os órfãos foram entregues aos cuidados de sua tia paterna, D. Rita Emília da Veiga Castelo
Branco, e do amante desta, João Pinto da Cunha, que fora nomeado tutor dos menores.
Em 1839, Carolina casou-se com Francisco José de Azevedo, estudante de medicina,
integrando Camilo o novo lar em Vilarinho de Samardã, no distrito de Vila Real. Aí, passava
a maior parte do tempo em contacto com a natureza e a vida transmontana, recebendo uma
irregular educação ministrada por padre António José de Azevedo, irmão do seu cunhado.
A vivência de Camilo foi um saltitar de paixão em paixão, de desgosto em desgosto,
de procura constante de um regaço onde se acolher, tendo perseguido, incessantemente,
esse amor, confundindo-o, com frequência, com breves paixonetas. Assim, aos dezasseis
anos casou-se com Joaquina Pereira de França, de quinze, e dois anos depois, após o nas-
cimento da filha, fugiu para o Porto, onde levava uma vida de boémia, iniciando-se então
no jornalismo e na poesia. Em 1845, publicou os seus primeiros poemas: Os Pundonores
Desagravados e O Juízo Final, redigindo também O Sonho do Inferno3. Em 1846, de volta
a Vila Real, apaixonou-se por Patrícia Emília de Barros, fugindo com ela para o Porto.
153 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
João Pinto da Cunha mandou-os prender alegando que lhe haviam roubado dinheiro e,
até se provar a sua inocência, a 23 de outubro, o casal permaneceu na Cadeia da Relação
do Porto, de onde o escritor escreveu a Alexandre Herculano pedindo-lhe proteção. Nessa
data, Camilo passou a colaborar nos periódicos O Nacional e Periódico dos Pobres, estreando-
-se ainda como dramaturgo com a peça Agostinho de Ceuta.
Em 1847 Camilo e Patrícia Emília regressaram a Vila Real tendo nascido, a 25 de
Junho de 1848, Bernardina Amélia Castelo Branco, fruto dessa relação. Contudo, Camilo

Dado o elevadíssimo número de obras do autor, apenas referiremos o nome e a data de publicação de al-
3

gumas que nos pareceram mais importantes por assinalarem uma iniciação de género ou uma inovação de
estilo, ou, ainda, por serem obras mormente conhecidas ou apreciadas.
abandonou mãe e filha pouco depois e voltou para o Porto onde entrava em polémicas
acesas n’ O Nacional.
Na primeira fase do autor está patente a influência de cultores do romance negro como
Ana Radcliffe (1764-1823) e Eugène Sue (1804-1857) tendo Camilo publicado folhetos
de cordel anonimamente. Foi então que fez uso de inúmeros pseudónimos, não conse-
guindo, no entanto, disfarçar a autoria dos mesmos, dado o cunho inconfundível da sua
escrita e o tom jocoso a eles associado. Há a destacar, por ordem cronológica, Arqui-Zero,
Barão Gregório, O Cronista, Fouché, Ninguém, Saragoçano, Anastácio das Lombrigas,
Carolina da Veiga Castelo Branco, Anacleto dos Coentros, AEIOUY, C. da Veiga, A Voz
da Verdade, Visconde de Qualquer Coisa, O Antigo Juiz das Almas de Campanhã, José
Mendes Enxúndia, D. Rosária dos Cogumelos, João Júnior, Manuel Coco, Modesto,
Felizardo, e Egresso Bernardo de Brito Júnior.
De 1848 a 1850, Camilo residiu no Porto onde colaborou no Jornal do Povo e convi-
veu com os “mais notáveis e esperançosos talentos da burguesia portuense”4 pertencendo
ao grupo dos Leões do café Guichard. Frequentava teatros e cafés, envolvia-se em brigas e
duelos, vindo também a cometer uma tentativa de suicídio da qual o salvou José Augusto
Pinto de Magalhães, morgado da Quinta do Lodeiro e mais tarde uma das personagens
principais do romance Fanny Owen de Agustina Bessa-Luís. Apesar da educação marcada-
mente eclesiástica que fez dele um crítico do suicídio, a sua vida trágica levou-o a ponderá-lo
e tentá-lo por diversas vezes.
Foi em 1850 que Camilo redigiu Anátema, o seu primeiro grande romance. Também
participou na polémica “Alexandre Herculano e o clero”, assumindo-se como escritor pú-
blico. De facto, a escrita seria, a partir de então, a sua única profissão e fonte de rendi-
mentos. Consta que foi nesse ano que se cruzou pela primeira vez com Ana Plácido e se
matriculou no Seminário Episcopal. Em 1852 e 1853, fundou, respetivamente, os jornais
religiosos O Cristianismo e Cruz. A sua participação jornalística manteve-se, sendo de
assinalar que Camilo se tornou redator do jornal Porto e Carta. A partir de 4 de Março
154 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

de 1853, o romance Mistérios de Lisboa foi sendo publicado, em folhetins, no diário por-
tuense O Nacional, tendo sido editado em livro em 1854. Em 1855, publicou as obras
Cenas Contemporâneas e O Livro Negro do Padre Dinis, vindo a luz, em 1856, o romance
Onde Está a Felicidade? que foi recebido com agrado pela crítica e a partir do qual se crê
que o autor atingiu a maturidade literária. São desta fase os romances passionais de forte
intensidade dramática em que revisita temas como a bastardia, a orfandade, o abandono
das mulheres, a reclusão em conventos das raparigas apaixonadas e os amores fatais.

4
CASTELO BRANCO, Camilo. Anátema. Lisboa, Círculo de Leitores, 1981, pp. 24.
Em 1857, Camilo e Ana Plácido viviam já uma relação íntima, tendo pouco cuidado
em esconder o adultério que em breve se viria a tornar público. Vãs foram as tentativas
de Manuel Pinheiro Alves, abastado marido de D. Ana, para afastar os apaixonados e
silenciar a sociedade portuense pois, decidida a lutar pela felicidade ao lado do homem
que amava, Ana Plácido abandonou o lar conjugal em 1859, levando o seu filho, Manuel
Plácido, e indo viver com Camilo. Foram presos na Cadeia da Relação do Porto, em 1860,
sob a acusação de adultério. Aí Camilo trabalhava sem cessar e gozava de um tratamento
especial. Para além de ter colaborado na imprensa do Porto e de Lisboa, redigiu diversos
livros. A segunda passagem do mestre pela prisão foi imprescindível para o seu amadure-
cimento enquanto homem e enquanto escritor: “Enfim, a estada na prisão levou Camilo a
concentrar-se, a debater no seu íntimo os grandes problemas morais; mais ainda: apressou
a maturidade do escritor; a sua linguagem tornou-se, dum modo geral, mais reflexiva, mais
densa, com a sóbria contenção do desengano e da sabedoria” (Prado Coelho, 2001: 57).
Após a absolvição, o autor manteve uma intensíssima atividade literária, fruto da ur-
gência catártica e da necessidade económica, o que lhe valeu o reconhecimento por parte da
sociedade cultural de então e uma notoriedade invejável. Em 1861 publicou, para além de
Doze Casamentos Felizes, a obra que mais parecia apreciar: O Romance de Um Homem Rico.
Amor de Perdição, Coisas Espantosas, Estrelas Funestas, Memórias do Cárcere, As Três Irmãs, e
Coração, Cabeça e Estômago foram publicados em 1862. Na última surgem certos toques de
um humorismo discreto que se viria a desenvolver em A Queda dum Anjo e a transformar
na truculenta sátira de costumes de Eusébio Macário e A Corja. Em 1863 publicou, entre
outras, duas obras nas quais faz alusão à Beira: O Bem e o Mal e Noites de Lamego.
Apesar do sucesso do escritor e da absolvição de ambos, a sociedade portuense não per-
doou ao casal que acabou por se exilar, a partir de 1864, na quinta de S. Miguel de Ceide que
fora herdada por Manuel Plácido, filho legítimo de Manuel Pinheiro Alves mas em relação
ao qual havia dúvidas se não seria, na realidade, fruto dos amores entre a sua mãe e Camilo.
A 28 de Junho de 1863, nasceu Jorge, o primeiro filho (legítimo) de Camilo e Ana Plácido,
155 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
tendo Nuno nascido a 15 de Setembro de 1864. Ambos lhes deram muitas preocupações e
desgostos devido aos problemas mentais do primeiro e à vida desregrada do segundo.
Camilo foi publicando, entre 1875 e 1877, as Novelas do Minho, consideradas, a par
com A Brasileira de Prazins (1882), obras de transição do Romantismo para o Naturalismo.
O mestre foi agraciado com o título de Visconde de Correia Botelho, a 18 de Junho de
1885, o que provocou um grande escândalo na sociedade portuense de então, tendo vindo
a casar-se com Ana Plácido, a 9 de Março de 1888, no Porto, pelas dez horas da noite.
Graças à iniciativa de João de Deus, o autor foi homenageado na data do seu 64.º ani-
versário por escritores, artistas e estudantes, mas nada parecia minorar o seu depressivo
estado de espírito dada a iminente cegueira. No dia 1 de Junho de 1890, o conceituado
oftalmologista Edmundo de Magalhães Machado observou o mestre e recomendou-lhe
uma cura de águas no Gerês. Compreendendo o subterfúgio, Camilo desferiu um tiro de
revólver na têmpora direita enquanto Ana Plácido acompanhava o médico à saída.

4. Leituras Camilo

“A sua maneira de escrever é bem reveladora da formação que recebeu, no assíduo con-
tacto com os clássicos portugueses, mas também da natural inclinação para a eloquência,
expressa num estilo simultaneamente vigoroso e coloquial, literário e popular, dramático e
cómico” (Prado Coelho, 2001: 44).

Como já afirmámos, Camilo leu os clássicos, nomeadamente os portugueses e os latinos,


bem como a literatura eclesiástica, pela mão de padre António José de Azevedo que, para
além da doutrina cristã, lhe ensinou latim, francês e um pouco de literatura portuguesa.
Padre António é um marco essencial na vida do mestre, não apenas pelos ensinamen-
tos que lhe ministrou e pelos escritores cujo convívio lhe facultou, mas fundamentalmente
pela amizade e cumplicidade que existia entre ambos.
Mais tarde, quer por ser um leitor compulsivo, quer pela sua profissão, revisitou os
clássicos e tomou contacto com os autores de diferentes nacionalidades, sendo ávida a
necessidade de se cultivar e atualizar, sendo de salientar os trabalhos de tradução que lhe
permitiram a aproximação a um variadíssimo leque de autores estrangeiros, particularmente
franceses e ingleses.

“[…] Camilo, excepcional devorador de livros, decerto se deixou influenciar,


mais ou menos conscientemente, por escritores que o impressionaram e lhe suge-
riram maneiras de encarar o real e processos de fazer novelas. Não podemos, pois,
156 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

deixar de realçar a influência que a literatura francesa exercia na Península Ibérica,


desde os tempos remotos dos provençais, passando pela época das luzes. “Os heróis
das primeiras novelas camilianas, soturnos e febris, descendem em linha directa de
Oswald, René e Manfred” (Prado Coelho, 2001: 121).

Da leitura de autores portugueses há a referir tanto os escritores mais conceituados


como os menos conhecidos. Dos primeiros destacam-se Alexandre Herculano, Almeida
Garrett, António Feliciano de Castilho, padre António Vieira, Bernardim Ribeiro, Camões,
Eça de Queirós, Fernão Mendes Pinto, Guerra Junqueiro, Gil Vicente, Luís António
Verney e Tomás Ribeiro, sendo de destacar a aparente influência de Garrett na propensão
para divagações, no carácter satírico e no estilo faceto de obras do mestre, como Anátema,
O  Senhor do Paço de Ninães ou O Que Fazem Mulheres, entre outros. No concernente aos es-
critores ditos menores surgem Barbosa e Silva, Bulhão Pato, Coelho Lousada, Ernesto Biester,
Faustino Xavier de Novais, Francisco Morais Sarmento, Inácio Pizzaro de Morais Sarmento,
D. João de Azevedo, Joaquim Pinto Ribeiro, José Gomes Monteiro, Júlio César Machado,
padre Manuel Bernardes, Rebelo da Silva, Soares de Paços e padre Teodoro de Almeida
Quanto à literatura francesa salientam-se nomes como Alexandre Dumas (Pai), Balzac,
Chapelain, Chatterton, Chateaubriand, Madame Cottin, Descartes, Feuillet, Flaubert,
George Sand, Joseph Marie Eugène Sue, La Calprenède, La Fontaine, Lamartine, Léon
Bloy, Malherbe, Musset, Pascal, Prévost, Racine, Roselly De Lorgues, Rosseau, Sainte-
-Beuve, Sénancour, Stendhal, Teófilo Gautier, Vigny, Voltaire, Victor Hugo, para além
dos autores de menor relevo, parecendo inevitável a intertextualidade. “Leitor incansável,
Camilo pode dizer-se que conheceu a melhor parte da literatura francesa da primeira
metade do século, desde os grandes astros até aos autores de segunda ou terceira plana,
psicólogos e moralistas […]” (Prado Coelho, 2001: 120).
No tocante à literatura inglesa há a nomear, para além dos clássicos Alexander Pope,
Byron, John Milton, e William Shakespeare, romancistas tão celebrados como Ana
Radcliffe, Eugène Sue, Henry Fielding, Hugh Walpole, Jonathan Swift, Oliver Goldsmith,
Samuel Richardson, Walter Scott e William Thackeray.
Relativamente à vizinha Espanha, Camilo conhecia essencialmente os autores dos sé-
culos xiv, xv, xvi, xvii e xviii: Caldéron, Cervantes, Gôngora, S. João da Cruz, Marquês
de Santillana, frei Agostinho Antolínez, António Pérez, frei Ciríaco Pérez, Francisco de La
Cueva, Francisco Santos, Mira de Amescua, Moratin e Tirso de Molina. Relativamente aos
escritores seus contemporâneos há a salientar Espronceda, Balmes e Zorrilla.
Crê-se que a leitura de autores italianos foi diminuta, apontando Jacinto do Prado
Coelho nomes como Alessandro Manzoni, Alessandro Tassoni, Carlo Goldoni, Dante,
Giovanni Boccaccio, Giacomo Leopardi, Ludovico Ariosto, Marino, Pietro Aretino,
157 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Petrarca, Silvio Pellico e Torquato Tasso.
Até que ponto terá Camilo convivido com a literatura alemã? Acredita-se que a sua cul-
tura germânica seria reduzida uma vez que Camilo não falava essa língua que designava como
áspera e bárbara e terá acedido a tal cultura através das traduções francesas ou portuguesas de
obras de August von Kotzebue, Christian Johann Heinrich Heine, Christoph Wieland, Ernst
Theodor Hoffmann, Goethe, Kant, Klopstock, Schiller e os discípulos de Lessing.
No que respeita aos autores suíços salientam-se Gessner e Zimmerman.
Camilo era um viajante mas fazia-o essencialmente através dos livros, não só pela ânsia
de se manter ao corrente das obras que iam surgindo ou que ainda não lera, mas também
pela urgência de fugir à realidade que o cercava.
5. Leitores de Camilo

“Compreender a obra de Camilo depende muito duma experiência fatal, não


exactamente empírica, e que nos marca para as coisas extremas da existência: as pai-
xões. Veladas pela linguagem às vezes típica, outras vezes gongórica, as paixões são
o húmus da obra de Camilo. Não as que ele conta, mas as que ele viveu, ou desejou
viver” (Bessa-Luís, 2008: 15).

Inúmeros são os leitores de Camilo, divididos em diferentes faixas etárias, extratos so-
ciais e épocas, nos vários suportes que a leitura oferece. Do mais simples lavrador ao mais
conceituado analista literário a todos ele conquista com o tema, o enredo ou a linguagem,
no âmbito do texto literário, da literatura marginal, de folhetos vários, de representações
teatrais ou reflexões filosóficas. “Camilo, escritor de novelas, personagem de novela (…)
Camilo mexe connosco, os seus leitores. Faz-nos participar nas suas novelas, incita-nos a
refletir, obriga-nos a tomar partido como se nos consultasse e lhe fosse indispensável a nossa
opinião de leitor, um diagnóstico médico que ele, impaciente, aguarda” (Ferreira, 1997: 55).
Para além das análises académicas, emergem outras abordagens nomeadamente na
ficção e na arte pictórica, sendo de salientar alguns dos nomes da cultura que, atraídos
pelo estilo, pela obra ou pelo temperamento do mestre, foram leitores de Camilo e vieram
a assumir esse fascínio e a dar as suas leituras a públicos diversificados, num diálogo trans-
versal que pode adotar diversas variantes, como o género literário, o cinema ou a pintura.
Contudo, seria impossível assinalar neste breve artigo os inúmeros leitores de
Camilo5,nomeadamente os camilianistas cujos ensaios vão desde 1888 até aos nossos
dias, pelo que nos cingiremos a alguns dos nomes incontornáveis da cultura portugue-
sa e estrangeira, entre os quais destacamos Agustina Bessa-Luís, Alexandre Herculano,
António Lopes Ribeiro, Aquilino Ribeiro, Carlos Botelho, Eduardo Lourenço, Francisco
José Viegas, Francisco Moita Flores, Francisco Santos, Guerra Junqueiro, Jacinto do
158 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Prado Coelho, José Régio, Júlio Pomar, Luiz Francisco Rebello, Manoel de Oliveira,
Mário Cláudio, Miguel de Unamuno, Paula Rêgo, Ramalho Ortigão, Raúl Ruiz, Teresa
Bernardino, Teixeira de Pascoaes, Teófilo Braga, Vasco Graça Moura, Vasco Pulido Valente,
Vieira de Castro, Vitorino Nemésio.
Agustina tem vindo a evidenciar, não só uma desmesurada atração pelo mestre e um
conhecimento abrangente da sua obra, como também características de escrita comuns
que nos permitem ver nos seus textos um reflexo do primeiro profissional das letras lusas.
A ascendência de Camilo está patente quer ao nível do conteúdo, quer no que respeita aos
5
Vide DANIEL, Daniela Maria Vaz. Leituras e Leitores de Camilo Castelo Branco, em especial, Agustina Bessa-
-Luís. Dissertação de Mestrado, Universidade da Beira Interior, 2010.
temas ou ao tom utilizado pela autora. As semelhanças mais óbvias poderão prender-se
com a localização espacial da ação e as vivências do povo nortenho, uma vez que inúmeras
narrativas da autora e a grande maioria das do mestre decorrem no Norte, particularmente
na zona de Entre Douro e Minho, cujas gentes e suas existências os fascinaram, vindo a
ser o mote de diversas obras. Outras características comuns são a proficuidade de ambos,
a versatilidade de géneros e a inspiração em factos reais já que os dois se apoiam em estó-
rias verídicas para a redação de belos romances ou novelas, e ambos nutrem prazer pelos
romances históricos. Cremos ainda que Agustina, na senda de Camilo, tem a preocupação
de fazer denúncia social e comunga da ironia e do sarcasmo que tanto seduziam o mestre,
sendo esta característica marcante na sua obra. Outra característica destacada em Agustina
que nos faz pensar na influência de Camilo é o prazer que a autora parece sentir ao analisar
os sentimentos e as relações humanas, conforme atesta Bigotte Chorão: “[…] Agustina,
romancista que é sobretudo – romancista de lúdica e, não raro, implacável análise dos
sentimentos e das relações humanas […]” (Chorão, 1987: 156-157).
Agustina Bessa-Luís tem retratado “o tipo-limite do génio português” como ninguém,
pelo que este estudo incide sobre a sua caracterização a partir das obras Fanny Owen e
Camilo: Génio e Figura. Todavia, consideramos importante ressalvar que tanto os nossos
juízos de valor como os da autora poderão não ser fiéis pois Camilo possuía uma personali-
dade obscura que até na vivência do quotidiano era difícil de conhecer, como o salienta em
Camilo – A Obra e o Homem, João Bigotte Chorão: “As contínuas contradições de Camilo
– negando hoje o que afirmava ontem, resignado um dia, revoltado no outro, rezando para
depois blasfemar –, essas contradições tornam problemática, e mesmo abusiva, a tentativa
de catalogá-lo” (Chorão, 1979: 61-62).
Porém, e apesar do risco que corremos, pensamos que tem a maior pertinência refletir
sobre a imagem que de Camilo veio, de geração após geração. Aliás, a romancista teve a
preocupação de nos presentear com uma representação fidedigna, como afirma no prefácio
de Fanny Owen: “Pareceu-me necessário e útil trazer Camilo Castelo Branco à luz da nossa
159 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
experiência humana sem o traduzir na opinião de escritor que é a minha” (Bessa-Luís,
1985: prefácio).
De facto, e contrariamente ao que na autora é habitual, Agustina incluiu um prefácio
à obra Fanny Owen, para explicitar a génese do mesmo, utilizando a ironia que, no nosso
entender, herdou de Camilo: “Não é coisa usual eu incluir prefácios nos meus livros.
Entendo que eles se recomendam como os peregrinos de Santiago, pelas conchas que têm
no chapéu e que simbolizam a viagem no sentido supremo, de descoberta, testemunho
e redenção” (Bessa-Luís, 1985: prefácio). Mas, o encantamento de Agustina pelo nosso
autor vem de longe. O seu primeiro ensaio surge em 1964, na revista O Tempo e o Modo,
num artigo denominado “Camilo Castelo Branco, Um pé dentro do mar, outro na areia”.
Posteriormente, a 26 de Dezembro de 1978, redige o estudo A Enjeitada, que reeditará,
em 2008, integrado na obra Camilo: Génio e Figura. O seu magnetismo fará com que a
autora se venha a debruçar sobre a sua vida e a sua obra transformando-o numa “entida-
de” do romance Fanny Owen ou em personagem nos textos dramáticos “Ana Plácido” e
“O Tempo de Ceide”, textos esses incluídos no livro Camilo: Génio e Figura.

5.1. Retratos de Camilo segundo Agustina

“Camilo, lido ou ignorado, mantém-se como o tipo limite do génio português”


(Bessa-Luís, 2008: 27)

Na nossa opinião, e tal como Eduardo Lourenço afirma, Agustina Bessa-Luís é a her-
deira de Camilo, quer a nível temático, quer no que respeita à narrativa, estando assim a
escritora associada à corrente neorromântica. Algumas das asserções de Agustina, proferi-
das numa entrevista à Sociedade Portuguesa de Autores, revelam essa atração, claramente
assumida, que Camilo exerce sobre si, chegando a escritora a apontar Bernardim Ribeiro e
Camilo Castelo Branco como figuras tutelares do nosso passado literário.
Assim, demonstraremos como a sua mais profícua leitora tem potenciado a obra
do mestre muito para além das letras, nomeadamente nas duas obras sobre as quais nos
debruçaremos de seguida.

5.1.1. Fanny Owen (1985)


Este romance retrata o caso verídico, ocorrido em 1850, da paixão e tragédia entre José
Augusto Pinto de Magalhães e Fanny Owen. José Augusto, descendente dos senhores da
Ponte da Barca, era um proprietário rural que desperdiçava o tempo pelas mesas dos cafés
e a escrever poesia. Era um rapaz altivo, triste e desinteressado. Fanny era uma rapariga
bonita e esbelta, de pele fina, filha do coronel Owen, auxiliar e conselheiro de D. Pedro
160 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

aquando das lutas liberais. José Augusto e Camilo Castelo Branco frequentavam o mesmo
círculo literário tendo-se tornado amigos. Aparentemente, estavam ambos apaixonados por
Fanny e José Augusto sentia ciúmes de qualquer tipo de cumplicidade entre a sua amada e o
escritor. José Augusto raptou Fanny com a intenção de se casar com ela. Quando lhe comu-
nicou tal facto Camilo tentou dissuadi-lo e posteriormente enviou-lhe um embrulho com
as cartas que a musa de ambos lhe escrevera, datadas de quando já havia um compromisso
entre Fanny e José Augusto. Este, sentindo-se ferido no seu orgulho e, apesar da aparente
ingenuidade das missivas, acusou Fanny de o ter humilhado e informou-a de que, mesmo
que mantivesse o casamento, nunca a chamaria sua esposa nem viveria com ela. A cerimó-
nia do casamento teve lugar sem a presença de nenhum elemento da família Owen e nunca
se consumou. A infeliz definhava a olhos vistos, devido ao desprezo a que a família a votava
e à injusta rejeição do marido, acabando por morrer a curto trecho. Sentindo-se culpado
pela morte da mulher e atormentado com a hipótese de ela não ser virgem aquando do
casamento, José Augusto quis que fosse autopsiada vindo o resultado confirmar a ino-
cência da jovem esposa. Sem a mulher que amara e a quem destruíra, José Augusto viveu
atormentado, vindo a falecer com uma overdose de ópio pouco tempo depois.
A visão de Camilo encontrada na obra Fanny Owen afigura-se-nos algo contraditória já
que Agustina ora o celebriza e enaltece, ora o critica contundentemente. A justificação de
tal atitude parece-nos ser apenas uma: a extrema complexidade do carácter de Camilo que
seduz a autora, sem, no entanto, lhe toldar o poder de discernir um homem egocêntrico,
invejoso, vingativo, insurreto, colérico, frívolo, manipulador, ambicioso, malevolamente
irónico, libertino e mesmo vil. No entanto, também nos apresenta a outra faceta exaltando
a sua sensibilidade, emotividade, inteligência, argúcia, lealdade e, até, generosidade.

5.1.2. Camilo: Génio e Figura (2008)


Na obra Camilo: Génio e Figura, constituído por análises de Agustina ao homem e
ao escritor, enquadram-se, a par dos ensaios camilianos mais representativos, dois textos
dramáticos inéditos, dividindo-se o volume em duas partes: “Camilo Autor” e “Camilo
Personagem”.Na primeira parte, designada por “Camilo Autor”, inserem-se os estudos
“Um monstro a Retalho”; “O romanesco em Camilo – A Enjeitada”; “Camilo e as cir-
cunstâncias”; “Camilo – a dissimulação”; “Riso e castigo em Camilo Castelo Branco” e
“Camilo e Eugénia ”. A segunda parte, denominada “Camilo Personagem”, é constituída
pelas peças “Ana Plácido” e “O Tempo de Ceide”.
Ao longo da obra e à medida que a autora vai analisando Camilo enquanto autor e
como personagem, é-nos apresentada uma visão clara do que o mestre representa para a
escritora, sobressaindo do livro, para além do conhecido deslumbramento pelo homem e
pelo escritor, um estudo profundo e continuado sobre o mesmo, sendo de assinalar um
161 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
invejável conhecimento, não só do percurso de vida, como de toda sua a obra literária.

5.1.3. Camilo: homem, escritor e personagem


Tal como já anteriormente asseverámos, Agustina idolatra Camilo apesar de também
lhe reconhecer os inúmeros defeitos. Contudo, o temperamento neurasténico do autor,
evidente na sua ironia corrosiva, tudo parece justificar e amenizar.
Da leitura das duas obras anteriormente citadas surge a imagem que os leitores mais
atentos já retinham do mestre: homem complexo e de forte personalidade, capaz de atos
de grande generosidade ou de enorme malvadez; impulsionado por um carácter impetuoso
e bélico, mas sincero e possuidor de bons sentimentos.
Deste modo, faremos uma breve síntese das principais e contraditórias características
apontadas por Agustina.
Talentoso: Camilo Castelo Branco, um moço com talento, bexigas e má memória. A má
memória é essencial para escrever romances e para os poder viver; na vida e nos romances, tudo
se repete (Bessa-Luís, 1985: 8).
Mal-amado: Camilo era um gazeteiro, no parecer dos comendadores da Ordem de Cristo.
Não o convidavam para os seus salões senão na véspera dos bailes, para que ele estampasse no
jornal os primores dos novos aristocratas e as suas púrpuras, onde se encabritavam leões pareci-
dos com grifos e górgonas (Bessa-Luís, 2008: 12).
Inspirador: Quando o coração me falha neste dialecto de escrever livros, volto-me para
Camilo, que é sempre rei mesmo em terra de ciclopes (Bessa-Luís, 2008: 11).
Desprezado: Camilo, um folhetinista pago para usar o talento nos litígios em que os ho-
mens ricos não gostavam de comprometer-se pessoalmente. O barão do Bolhão pagava-lhe as
verrinas para atingir os seus inimigos. E desprezava-o (Bessa-Luís, 1985: 46-47).
Prodigioso: Não sei como Aquilino se enganou aqui, e só viu em Camilo um adulado, um
jornalista pegajoso, com vales metidos à caixa e botas cambadas. Ele era o que todos nós já sa-
bemos, um Voltaire à moda do Porto, com mais tripas do que carne do lombo. Eu cá, parece-me
bem assim. É um monstro a retalho, o que produz grandes obras (Bessa-Luís, 2008: 13).
Amargurado: Toda a obra de Camilo está enraizada num trauma de juventude que ul-
trapassou toda a anterior experiência sensual. Possivelmente não é do alcance desta meditação
sobre A Enjeitada essa exploração da psique camiliana. No entanto, em A Enjeitada apare-
cem nitidamente as fundas perversões da razão que lançam Camilo na carreira de romancista
(Bessa-Luís, 2008: 17).
Estratega: Nesse tempo Camilo era conhecido nos saraus dos conventos e nos colóquios pagãos
com professas. […] Aquelas assembleias de freiras e comerciantes que respiravam forte pelo nariz,
e senhoras com a atroz mantilha e bandos chatos como iscas de fígado, deviam dar-lhe a noção da
sua pequena importância, da sua miserável celebridade. Basta ver como Camilo usava a língua
162 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

portuguesa para ficarmos informados sobre a sua vontade de poder, de conquistar a atenção, a
fama e alma da Praça. Isso acontece com o espírito que é ávido porque é extremamente sobrecarre-
gado de talentos. Aconteceu com Shakespeare, por exemplo (Bessa-Luís, 1985: 112-113).
Timorato: Tanto temia Camilo o punho da sociedade para quem escrevia e que, afinal,
não era persistente na crueldade nem obstinada na estupidez (Bessa-Luís, 2008: 24).
Mordaz: Camilo é um autor que não compulsa o léxico do coração com muita ousadia. Um
Luciano de Rubempré, que desabrocha com Eça num Charlie Gouvarinho, mal entrevisto de ras-
pão numa vitória, “ao trote estepado de duas éguas inglesas”, parece-nos impossível nos romances
de Camilo. Não lhe pedia a alma sagacidades endémicas, e o livro que depôs no regaço de Ana
Plácido, Eusébio Macário, escrito em quinze dias numa prosa sumptuosa e quase estrídula, como
os cantos campesinos do Minho, não é um romance realista, mas um delírio de desapontamento,
de náusea combatida pelo exorcismo do riso. É por isso que, depois de dar franco exercício à sua
língua viperina, viperina como a de Thackeray e humorista como a dele, estaca o olhar sobre
Vítor Hugo e exclama: “Esse velho não era nada tolo!”. E ri-se. Logo a seguir fica outra vez triste,
cismador de cenas patéticas e dolorosas como a do avô que vê entrar o neto ferido pela porta a den-
tro. Ri-se para que a angústia não lhe petrifique o coração, é apenas isso (Bessa-Luís, 2008: 46).
Apreciado: E, agora, eles sabiam que aquele rapaz de quem todos dependiam um pouco,
tanto para escrever um poema como para escolher a amante, estava a convergir para esse centro
de irrealidade e de terrível destruição, onde a rejeição do amor não era mais possível (Bessa-
-Luís, 1985: 80).
Desencantado e Sarcástico: Camilo, como Flaubert, teve desde cedo essa visão duma bibliote-
ca feita para não ser entendida. Achou o mundo vulnerável, a cultura uma fraude, e o intelectual
um depravado. E riu-se. Este riso, nascido como um escudo, para invalidar a força do seu desen-
canto perante a vulgaridade dos homens, esse riso surtiu efeito enquanto a juventude o justificou.
Depois tornou-se numa má consciência, e a sociedade não lhe perdoou. Faltou-lhe a concisão de um
Swift para fazer verdade um estado de alma e não uma figura retórica (Bessa-Luís, 2008: 72).
Erudito: Camilo conhece o significado gramatical e moral de cada palavra, nunca usa um
termo sem propriedade (Bessa-Luís, 2008: 42).
Símbolo da identidade portuguesa: Camilo, lido ou ignorado, mantém-se como o tipo-
-limite do génio português. A Enjeitada tem muito da sistemática fuga à felicidade que, por
estranho que pareça, é muito da nossa índole. Desfrutamos do presente, mas não desejamos
dele senão um furtivo encontro, pois sabemos que a fortuna é sempre ilegítima para os homens,
errantes neste mundo onde tudo acontece e nada se resolve (Bessa-Luís, 2008: 27).
Genial: Quem quiser ler Camilo em esplendor e glória, leia a Maria da Fonte, um dos
maiores livros de língua e fígados e coração portugueses. Camilo é isso: génio truculento, esti-
lo maduro de risadas entre aventuras truanescas e sentimento sufocado de algumas lágrimas.
Homem da nossa lei, nem bom nem fingido; capaz de matar com os olhos fechados e de renegar
163 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
até a honra, se ela é negócio de ferir os outros. Português, não há outro tão grande nas
letras. (Bessa-Luís, 2008: 26).

6. Considerações Finais

Entendemos que a ação formativa presente na obra de mestre pode concretizar-se


através de duas atitudes fundamentais: os preceitos de ordem moral e a atenção do leitor
para o ridículo existente nos vários grupos sociais. Assim, poderemos afirmar que Camilo
foi um educador tendo a sua pedagogia sido essencialmente levada a cabo através da sátira,
da ironia e do sarcasmo. Com efeito, o leitor era sistematicamente alertado para os juízos
de valor do narrador e convidado a reflectir sobre os desvios da sociedade. Dado um certo
ressentimento perante a mesma, e até em relação à própria vida, Camilo sentia a necessi-
dade de denunciar, desafrontar e reabilitar, colocando-se muito frequentemente em franca
solidariedade para com os desvalidos. De facto, e ao estilo romântico, as vivências foram
essenciais na sua produção literária, sendo o circuito obra-biografia-obra muitas vezes fre-
quentado pelo mestre. Temas como a bastardia, a orfandade, o abandono, o desengano
amoroso, a omnipotência do dinheiro, a fidalguia decadente, a prosápia dos senhores, os
arrivistas, os falhos de escrúpulo, ou os brasileiros de torna-viagem foram por ele glosados,
numa assumida intertextualidade entre a vida vivida e a vida ficcionada.
Primeiro profissional das letras portuguesas, Camilo foi largamente influenciado pelos
autores clássicos, nomeadamente pelos latinos, assim como por Alexandre Herculano ou
Almeida Garrett, ilustres portugueses seus contemporâneos. Escritores franceses como
Lamartine, Vítor Hugo e Voltaire também terão sido cruciais no seu desenvolvimento
enquanto homem e como escritor. A marca de Byron, Cervantes, Shakespeare, Hugh
Walpole, Eugène Sue ou Ana Radcliffe está, ainda, patente no seu trabalho literário.
Apesar de não ter seguido nem criado uma escola, o valor de Camilo enquanto homem
de letras é inquestionável, assim como o seu papel na literatura portuguesa do século xix,
estando o seu cunho presente nos trabalhos de importantes nomes da cultura, como disse-
mos, umas vezes inconscientemente, em outras ocasiões com clara assunção. Efetivamente,
têm vindo a surgir, tanto na sua época como ao longo dos anos, claros ou mais subtis sinais
da influência do ultra-romântico mais amado e odiado, como foi dado ver por Agustina
Bessa-Luís que com as obras Fanny Owen e Camilo: Génio e Figura se lançou no desafio
de tirar Camilo das brumas e o exibir “à luz da nossa experiência humana”, desafio esse
já levado a cabo por muitos outros leitores e admiradores do mestre. Nesta autora é bem
visível a influência do mesmo, nomeadamente no interesse por determinados temas, na
análise psicológica das personagens ou no uso do tão singular tom irónico.
164 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Camilo pretendia, paralelamente, ser popular e bem remunerado, sem, no entanto,


ter de prescindir dos seus ideais literários. Nem sempre tal foi possível, tendo, por vezes,
de se submeter às diretrizes e encomendas dos editores, redigindo, na tentativa de cativar
os leitores, simultânea ou alternadamente, obras que agradassem às diferentes classes dos
mesmos: elementos do povo ávidos de sensacionalismo, senhoras ociosas que se delicia-
vam com grandes emoções e lances dramáticos, pais de família que se pareciam rever
no atento e ilustre narrador, moças ingénuas sonhando com heróis românticos, e jovens
contestatários à procura de pensamentos filosóficos e críticas sociais. Criador da típica
novela passional, a sua marca indelével permanecerá para sempre no seio da cultura e da
identidade portuguesas.
A Literatura e a Geografia andam sempre de mãos-dadas dado que os autores são
amplamente influenciados pela paisagem física e humana, como é fácil de verificar no lé-
xico extremamente rico e expressivo das personagens de Camilo ou na ascendência da sua
aldeia e da Serra da Estrela na escrita de Vergílio Ferreira. Assim, cremos que urge usufruir
do que a Literatura traz aos lugares e do modo como estes moldam os escritores criando
projetos culturais que evidenciem os autores de cada região, enriquecendo deste modo o
conhecimento das populações e valorizando os próprios locais.
Atendendo ao enorme legado que nos foi deixado pelo mestre, e à semelhança dos
projetos levados a cabo pela Casa de Camilo ou das atividades realizadas em municípios
nos quais Camilo centrou alguns dos seus romances, ou tendo ainda como exemplo o pro-
jeto cultural que se criou partindo de Viagem do Elefante, de José Saramago, cremos que
a promoção de roteiros dos escritores da nossa região deveria ser um caminho a percorrer
no desenvolvimento sustentado deste território de baixa densidade.

7. Referências

7.1. Bibliográficas

BAPTISTA, Abel Barros. Camilo e a Revolução Camiliana. Lisboa: Quetzal, 1988, ISBN:
9789725640074.
BAPTISTA, Abel Barros. O Inexorável Romancista – Episódios da Assinatura Camiliana. Lisboa:
Hiena Editora, 1993.
BAPTISTA, Abel Barros. O padre, o amigo do padre e o romancista – Figurações do romancista em
“O Romance de Um Homem Rico”. Colóquio/Letras, n.º 119, Jan. 1991, pp. 41-55.
BERNARDINO, Teresa. O Segredo de Ana Plácido. 2ª edição. Lisboa, Vega Editora, 2000, ISBN
972-699-584-1.
BRAGA, Teófilo. Camilo Castelo Branco: esboço biográfico. Lisboa, Tipografia Mendonça, 1916.
165 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
BESSA-LUÍS, Agustina. Camilo: Génio e Figura. 1ª edição. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2008.
BESSA-LUÍS, Agustina. Fanny Owen. Lisboa: Círculo de Leitores,Lda.,1985.
BESSA-LUÍS, Agustina. Riso e castigo em Camilo Castelo Branco. In Camilo Castelo Branco –
Jornalismo e literatura no século XIX, Centro de Estudos Camilianos/Casa-Museu de Camilo, de 13
a 15 de Outubro de 1988. Vila Nova de Famalicão: Câmara Municipal de Famalicão/Centro
de Estudos Camilianos.
BESSA-LUÍS, Agustina. Um pé dentro do mar, outro na areia. O Tempo e o Modo, Abril 1964, pp.
93-105.
CABRAL, Alexandre. Camilo Castelo Branco – Roteiro Dramático dum Profissional das Letras. 2ª edição.
Lisboa: Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão/Centro de Estudos Camilianos, 1988.
CABRAL, Alexandre. Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Editorial Caminho, 1988.
CASTELO BRANCO, Camilo. A Brasileira de Prazins. Porto: Edições Caixotim, 2001, ISBN:
9789728651039.
CASTELO BRANCO, Camilo. A Corja. Lisboa: Alêtheia Editores, 2015, ISBN:978-989-622-720-3.
CASTELO BRANCO, Camilo. A Queda dum Anjo. 12ª edição. Lisboa: Parceria A. M. Pereira,
Lda., 1976.
CASTELO BRANCO, Camilo. Agostinho de Ceuta. 1ª edição. Bragança: Tipografia de Bragança, 1847.
CASTELO BRANCO, Camilo. Amor de Perdição [Memórias de uma família]. Porto: Porto Editora,
2006, ISBN: 972-0-40109-5.
CASTELO BRANCO, Camilo. Anátema. Lisboa: Círculo de Leitores, 1981.
CASTELO BRANCO, Camilo. Doze Casamentos Felizes. Mem Martins: Publicações Europa-
-América, 2003, ISBN: 9789721027176.
CASTELO BRANCO, Camilo. Eusébio Macário – Sentimentalismo e História: História Natural
e Social de Uma Família no Tempo dos Cabrais. Porto: Lello & Irmão Editores, Colecção
Lusitânia, 1972.
CASTELO BRANCO, Camilo. Maria Moisés – Com ilustrações de Paula Rêgo. Porto: Edições
Asa, 2005, ISBN: 972-41-4221-3.
CASTELO BRANCO, Camilo. Memórias do Cárcere. Lisboa: Parceria A. M. Pereira Lda., 2013,
ISBN: 9789728645700.
CASTELO BRANCO, Camilo. Mistérios de Lisboa. Lisboa: Relógio D’Água, 2010, ISBN:
9789896411954.
CASTELO BRANCO, Camilo. Noites de Lamego. Porto: Porto Editora, 1991.
CASTELO BRANCO, Camilo. Novelas do Minho – Um retrato de Portugal. Lisboa: Bertrand
Editora, 2009, ISBN: 9789722519496. 
CASTELO BRANCO, Camilo. O Bem e o Mal. Guimarães: Câmara Municipal de Pinhel e Opera
Omnia Editora, 2013, ISBN: 9789898309518.
CASTELO BRANCO, Camilo. O Juízo Final e o Sonho do Inferno: poema em 3 cantos.1ª edição.
Porto: Typographia da Revista, 1845.
CASTELO BRANCO, Camilo. O Livro Negro do Padre Dinis. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, Lda.,
2007, ISBN: 9789728645373.
CASTELO BRANCO, Camilo. O que Fazem Mulheres. Lisboa: Editora Guerra & Paz, 2016,
ISBN: 9789897021732.
166 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

CASTELO BRANCO, Camilo. O Romance dum Homem Rico. Lisboa: Círculo de Leitores, 1981
CASTELO BRANCO, Camilo. O Senhor do Paço de Ninães. Porto: Edições Caixotim, 2007,
ISBN: 9789728651923.
CASTELO BRANCO, Camilo. Onde Está a Felicidade?. Porto: Caixotim, 2003, ISBN:
9789728651251.
CASTELO BRANCO, Camilo. Os Pundonores Desagravados: poemeto em duas partes, offerecido aos
académicos portuenses. Porto: Typographia da Revista, 1845.
CASTRO, Aníbal Pinto de. Narrador, tempo e leitor na novela camiliana. Vila Nova de Famalicão,
Câmara Municipal – Centro de Estudos Camilianos,1995.
CASTRO, Aníbal Pinto de. Viajar com...Camilo Castelo Branco. Porto: Edições Caixotim, 2005.
CHORÃO, João Bigotte. Camilo – A Obra e o Homem. 1ª edição. Lisboa: Editora Arcádia, 1979.
CHORÃO, João Bigotte. Camilo Camiliano. 1ª edição. Lisboa: Rei dos Livros, 1993.
CHORÃO, João Bigotte. “O Apocalipse de Albrecht Dürer” de Agustina Bessa-Luís. Colóquio/
/Letras, n.º 100, Nov. 1987, pp. 156-157.
CHORÃO, João Bigotte. Páginas Camilianas e outros temas oitocentistas. 1ª edição. Lisboa:
Guimarães Editores Lda., 1990.
CLÁUDIO, Mário. Camilo Broca. 3ª edição. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2006.
DANIEL, Daniela Maria Vaz. Leituras e Leitores de Camilo Castelo Branco, em especial, Agustina
Bessa-Luís. Dissertação de Mestrado, Universidade da Beira Interior, 2010.
FERREIRA, Vítor Wladimiro. Entre Almas. In (A) Mulher na Vida e Obra de Camilo, Centro
de Estudos Camilianos/Casa-Museu de Camilo, de 19 a 21 de Outubro de 1995. Vila Nova de
Famalicão: Câmara Municipal de Famalicão/Centro de Estudos Camilianos.
FRIER, David. As (Trans)Figurações do Eu nos Romances de Camilo Castelo Branco (1850-1870).
1.ª edição. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005.
FRIER, David. Visions of the Self in the Novels of Camilo Castelo Branco (1850-1870), Lewiston,
New York, Queenstown, Ontario, and Lampeter, Dyfed, The Edwin Mellen Press, 1996.
LOPES, Óscar. Claro-escuro camiliano. Colóquio/Letras, nº 191, Janeiro-Março 1991, pp. 5-24.
LOPES, Óscar. Ensaios Camilianos. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2007, ISBN:
978-972-8386-69-6.
LOPES, Óscar & SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora,
S.A., 2007. ISBN: 978-972-0-30170-3.
LOURENÇO, Eduardo. O Canto do Signo – existência e literatura (1957-1993). 1.ª edição. Lisboa:
Editorial Presença, 1994, ISBN: 9789722317306.
MENESES, Ludovico de. História de Eusébio Macário e de A Corja: notas camilianas. Lisboa:
Armando J. Tavares, 1927.
MOUTINHO, José Viale. Poses Para Um Retrato Na Época – Camilo Castelo Branco visto pelos sus
contemporâneos. 1ª Edição. Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2005.
PASCOAES, Teixeira de. O Penitente (Camilo Castelo Branco). Lisboa: Assírio & Alvim,1985.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Camilo, leitor dos clássicos. Colóquio/Letras, n.º 119, Jan.
1991, pp. 119-135. 
PRADO COELHO, António do. Espiritualidade e arte de Camilo: estudo crítico. Porto: Simões
Lopes, 1950. 167 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

PRADO COELHO, Jacinto do. A Letra e o Leitor. 1ª edição. Lisboa: 1969, Portugália.
PRADO COELHO, Jacinto do. Introdução ao Estudo da Novela Camiliana. 3ª edição. Lisboa:
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001, ISBN: 9789722710770.
RIBEIRO, Aquilino. O romance de Camilo – desenhos de Júlio Pomar e litografias em extra-texto de
Carlos Botelho. Lisboa: Fólio, 1957.
SEIXO, Maria Alzira. Agustina e Fanny Owen. Colóquio/Letras, n.º 64, Nov. 1981, pp. 68-71.
TRANCOSO, Miguel (Coord). Camilo e Castilho – correspondência do primeiro dirigida ao segundo.
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930.
VIEIRA de CASTRO, José Cardoso. Correspondencia epistolar entre José Cardoso Vieira de Castro e
Camillo Castello Branco. Porto: Livraria Portugueza e Estrangeira, 1874.
7.2. Fílmicas

COSTA, Jorge Paixão da & Antinomia, Produções Vídeo. 2004. A Ferreirinha. Série televisiva de
13 episódios da autoria de Francisco Moitas Flores. Lisboa: Antinomia, Produções Vídeo.
OLIVEIRA, Manoel de & Instituto Português de Cinema/IPC, Centro Português de Cinema/
/CPC, Radiotelevisão Portuguesa/RTP, Cinequipa, Tobis Portuguesa. 1978. Amor de Perdição.
Longa-metragem baseada na obra homónima de Camilo Castelo Branco. Lisboa: V.O. Filmes,
Ver Filmes.
OLIVEIRA, Manoel de & V.O. Filmes. 1981. Francisca. Longa-metragem baseada no romance
Fanny Owen de Agustina Bessa-Luís. Lisboa: Rank Filmes de Portugal.
OLIVEIRA, Manoel de & Madragoa Filmes. 1992. O Dia do Desespero. Longa-metragem baseada
na epistolografia e na história verídica de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Atalanta Filmes.
RUIZ, Raúl & Paulo Branco/Leopardo Filmes/Alfama Films Production/RTP. 2010. Mistérios
de Lisboa. Longa-metragem baseada na obra homónima de Camilo Castelo Branco. Lisboa:
Leopardo Filmes.
RUIZ, Raúl & Paulo Branco/Leopardo Filmes/Alfama Films Production/RTP. 2010. Mistérios de
Lisboa. Série televisiva de 13 episódios baseada na obra homónima de Camilo Castelo Branco.
Lisboa: Leopardo Filmes.
168 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Quatro cartas de Hermès bilíngue

Willian Morais Antunes de Sousa


EHESS Paris

É um prazer ir a essa cidade-fronteira mais uma vez que está se tornando, pouco a
pouco, um porto para os jovens, pesquisadores e curiosos em geral. Desta vez, propomos
a leitura de quatro das noventa cartas que compõem Cartas de Hermès. O propósito desta
apresentação é somente estabelecer um primeiro contato entre o universo de Hermès e o
público do XVII Curso de Verão do Centro de Estudos Ibéricos de Guarda, Portugal.
Meus agradecimentos vão aos amigos Dominique Pomente, Julien Boucly, Maria
Leidiana Mendes, Mark Gamal e Thalita Miranda.
A versão bilingue é para criar outras possibilidades na Guarda.
Grand Paris, 13.05.17

XXIX
“Senhor Pescador de Tartarugas, “Seigneur Pêcheur de Tortues, 169 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
vós não me conheceis mas, vous ne me connaissez pas,
não há problema. Sois um Pescador da Terra, mais ce n’est pas grave. Vous êtes un Pêcheur de
o qual merece uma carta. Ontem, a proa la Terre,
deste barco suportou o peso de dois qui mérite une lettre. Hier, la proue
golfos bravos, correntezas e de mon bateau a subi le poids des tourments de
qualquer coisa mais. Um se chama a Boca, deux
o outro a Rosa. Juntos se chamam na Boca golfes sauvages, des courants en colère
da Rosa. Não sei o porquê. Por quê? Por que et de quelque chose d’autre. L’un se nomme la
Boca e Rosa? E por que não cactos? Por Bouche,
onde passei, senhor Pescador da Terra, não l’autre la Rose. Ensemble ils s’appellent Dans la
havia tartarugas. Vi Bouche
elefantes cobertos de mantos de mitra, de la Rose. Je ne sais pourquoi. Pourquoi
macacos que carregavam ao peito Bouche et Rose ? Et pourquoi pas cactus ? Par où
um pingente de esmeralda, alguns linces je suis passé, seigneur Pêcheur de la Terre, il n’y
de estimação e cobras que embelezavam as avait pas
crianças e os jardins das casas. Que de tortues. J’ai vu
maravilha seria se o deserto, que tanto me des éléphants qui portaient des toges en mitre,
faz falta, fosse todo em pó de ouro. des singes qui portaient sur la poitrine
Compraríamos un pendentif d’émeraude, quelques lynx
todas as florestas, animais e rios do mundo. domestiques et des serpents qui embellissaient à
É tão difícil crer em um elefante la fois
quando sequer tem uma matinha le cou des enfants et les jardins des maisons.
para criar um veado. Ah o deserto... Só Quelle merveille serait notre désert, celui
no deserto para crer na união do pó e da água, qui me manque, s’il était tout en poudre d’or.
o homem, Nous achèterions
e nada mais. Pescador da Terra, retirai tudo toutes les forêts, les animaux et les fleuves du monde.
o que ele disse. Eis o senhor no cais, olhando Il est si difficile de croire en un éléphant
para mim. Não vos assustais, pois isto na proa quand on n’a même pas un bois
foi apenas o rebento do beijo pour élever un cerf. Ah le désert...
da Boca da Rosa.” Il n’y a que le désert pour croire en l’union
de la poudre et de l’eau, l’homme,
et rien de plus. Pêcheur de la Terre, oubliez tout
ce qui vous a été dit. Vous voilà sur le quai à me
regarder.
Ne vous effrayez pas, car ce bruit
c’est la proue qui craque,
c’était le fruit du baiser
de la Bouche de la Rose.»
4.2.17

XXX
“Oi senhor Pescador de Caranguejos, “Bonjour seigneur Pêcheur de Crabes,
170 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

sou este rapaz que acaba de vos dar esta c’est moi qui viens de vous offrir cette
carta. Não me conheceis, o que não é um lettre. Vous ne me connaissez pas.
problema. Como ides senhor Pescador da Lama? Comment allez-vous, seigneur Pêcheur de la Boue ?
Oiço dizer por aí que a lama é os restos J’ai entendu dire que la boue n’est que les restes
do mundo das nascentes e de todas as margens. du monde des sources et de toutes les rives.
Para onde vou não há, com certeza, nem Où je vais il n’y a sûrement ni crabes
caranguejos ni boue. Par contre, il y a beaucoup de décombres
nem lama. Há muitos destroços de tempos hérités de temps
passados, velharias de lembranças que passés, des souvenirs antiques qui
serão conservadas no seront conservés sur du
papel. Desculpai-me Pescador da Lama, papier. Excusez-moi Pêcheur de la Boue,
é que contraí a doença de mar. Vejo coisas j’ai attrapé le mal de mer. Je vois des choses là
onde não há. Imagino pássaros, onde où il n’y a rien. J’imagine des oiseaux là où
nem borboletas há. Lembro-me de terras il n’y pas même de papillons. Je me souviens des terres
por onde passei, e que me são caras suas que j’ai connues, et leurs palmiers me sont
palmeiras, e que me vem à boca o gosto chers, et me revient aux lèvres
do beijo velho com sabor de amêndoas brancas. le goût d’un baiser ancien,
Essa vontade de voltar, de amar a mesma celui des amandes blanches.
gazela, de experimentar o mesmo cavalo, Cette envie de rentrer, d’aimer la même
de correr os mesmos caminhos de areia, gazelle, de monter le même cheval,
e de ver o céu avermelhado sobre as de courir les mêmes chemins de sable
dunas. Isso é sintoma da doença et de voir le ciel rougeâtre sur les
de mar. Meu corpo rejeita comida, não dunes, c’est le symptôme du mal
que esta não seja boa, mas porque ele quer de mer. Mon corps refuse la nourriture, cela ne
aquela que outrora comera, daí se veut pas
emagrece quando se está no mar. dire qu’elle n’est pas bonne, mais il veut celle-là
E as cartas também vão ficando penosas, qu’il avait autrefois mangée. C’est ainsi
labirínticas e carnívoras, também que l’on perd du poids quand on est en haute mer.
sintomas dessa doença que dá vontade Et les lettres deviennent pénibles,
de voltar. – Volver!, gritou um homem labyrinthiques et carnivores, ce sont aussi
ontem à noite. Atracávamos em um les symptômes de cette maladie qui donne envie
porto produtor de cobre e bronze. – Volver!; de rentrer. – Volver!, a crié un homme
aquele homem não suportará a navegação, pensei. hier soir. Nous débarquions dans un
Está doente e sente falta de suas pedras port producteur de cuivre et de bronze. – Volver!;
preciosas, ele quer voltar. Quando um il ne survivra pas à la navigation, me suis-je dit.
doente quer morrer, ele se deita, fecha os Il est malade et ses joyaux lui manquent,
olhos e se cobre. Em alguns casos a cura il veut rentrer. Quand une
parece ser o silêncio. Outra vez, chegando ao personne veut mourir, elle se couche, ferme les
porto de Nucam, quatro mulheres e suas yeux et se couvre. Certains pensent que
crianças carregaram três homens, que la seule guérison possible est le silence. Un jour,
sofriam da tal doença, para descansar en arrivant au
aos pés de uma Adansonia digitata, trazida de longe, port de Nucam, j’ai vu quatre femmes et leurs
e os homens foram colocados lá onde já não se podia enfants amener trois hommes qui
mais ouvir as vagas do mar. Que eu souffraient de cette maladie, pour les faire reposer
mesmo me livre desse pesadelo. Não aux pieds d’un Adansonia digitata qui venait de loin.
quero adoecer disso. Os marinheiros Ils furent laissés là où l’on ne peut plus
a chamam saudade. Doença de mar entendre le bruit des vagues de la mer. Loin de moi
que é tratada com o silêncio. Ó senhor, que vós mesmo ce cauchemar. Je ne veux 171 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
vos livreis dessa má sorte. Pescador pas attraper ce mal. Les marins
da Lama, eu sou livre porque nunca l’appellent saudade. Mal de mer
tive vontade de voltar, de reamar, de tudo. qui se guérit par le silence. Ô seigneur, que vous-même
Pescador da Lama, esta é uma carta e soyez libéré de ce malheur. Pêcheur
obrigado por acenar, agradecendo com de Crabes, je suis libre parce que je n’ai jamais eu
a mão, chapéu ao peito e este vosso envie
sorriso de quem não sabe ler. Pescador de rentrer, d’aimer encore, du tout.
da Lama, uma boa viagem.” Pêcheur de la Boue, voici une lettre et je vous remercie
de me saluer, votre chapeau sur la poitrine et votre
sourire de celui qui ne sait pas lire. Pêcheur
de la Boue, bon voyage. »
4.2.17
XXXI
“Senhor Pescador de Garças, “Seigneur Pêcheur d’Aigrettes,
hoje tenho um sono de garça, voo baixo aujourd’hui j’ai un sommeil d’aigrette, mon vol
e se meus olhos tivessem membranas, est bas
seriam olhos com membranas. As et si mes yeux avaient des membranes,
aranhas têm tantos olhos e os ce serait d’yeux avec des membranes. Les
flamingos têm tanto rosa e os araignées ont beaucoup d’yeux,
macacos têm todo o futuro, mas les flamants ont autant de roses et
nenhum deles precisa de um les singes ont tout l’avenir à eux, mais
nome, Hermès. aucun d’eux n’a besoin d’un
Pescador dos Mares, estou dormindo nom, Hermès.
em pé. Desculpai-me, dormirei três Pêcheur des Mers, je m’endors
dias, e na quarta noite terminarei esta debout. Excusez-moi, je dormirai trois
carta. Durmo. jours, et la quatrième nuit je finirai cette
É quarta noite e desembarco em vosso lettre. Je m’endors.
cais, senhor Pescador dos Mares. Não C’est la quatrième nuit et je débarque dans votre
venho vos contar das doenças que vi, não. port, seigneur Pêcheur des Mers. Je ne viens pas
Eu vim dançar ao lado esquerdo das vous raconter les maladies que j’ai vues, non.
garças de vossa Je suis venu danser du côté gauche des
festa. Hoje é dia de festa, retirai aigrettes de votre
de mim o que me ballet. Aujourd’hui est jour festif, enlevez-moi
deram. Retirai de mim meus olhos, ce qu’on m’a donné.
retirai meus olhos do mar. Retirez-moi mes yeux,
Agradeço a todos retirez mes yeux de la mer.
pelos cinco flautistas, três Je vous remercie tous,
harpistas e infinitos músicos. les cinq flûtistes, trois
Nesta noite, eu harpistes et les infinis musiciens.
só quero dançar com as garças Ce soir, je veux
desta cidade danser avec les aigrettes
de colunas de de cette ville
turquesa. Por aqui passaram aux colonnes de
meus amigos. Ai ai senhor Pescador, nem vos turquoise. Par ici mes amis
conto o que sei. Ai ai, nem vos conto que sont passés. Ah seigneur Pêcheur, je ne vous
172 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

a vaga que está para chegar nos cobrirá raconte


ao menos nossos três planos do tempo. pas ce que je sais. Ah ah, je ne vous raconte pas que
Espero que ela não venha endurecer minhas la vague qui arrive nous enveloppera
penas. Olhai como as garças nos trois plans de temps.
levam ao ar suas mãos. Olhai como J’espère qu’elle ne durcira pas
os dedos brincam no ar tentando mes plumes. Regardez comme les aigrettes
eclipsar a lua. Hoje eu vim para lèvent leurs mains en l’air. Regardez comme
dançar convosco, retirai minhas leurs doigts jouent dans l’air, essayant
penas. – Até amanhã lembranças d’éclipser la lune. Aujourd’hui je suis venu pour
de flamingo. Hoje eu quero estar com danser avec vous, enlevez-moi mes
todos, quero doar o que há de melhor plumes. – A demain, souvenirs
de mim, meus passos. Olhai como des flamants! Aujourd’hui je veux être avec
nós tentamos acortinar a lua. vous tous, je veux vous faire le don du meilleur
Olhai nosso bronzeado de en moi, mes pas. Regardez comme
madrugada prateada. Cá na Terra, nous essayons de voiler la lune.
forma-se um cordão de prata, em roda Regardez notre peau bronzée
derivamos ao som dos músicos, d’aube argentée. Ici sur la Terre,
bebemos pouco porque amanhã trabalhamos, on forme une chaîne d’argent, en ronde,
dançamos por que sonhamos nous dérivons au son des musiciens,
em ser o motor do mundo. Não nous buvons peu car demain
esquecei que eu mesmo não bebo, meus amigos nous travaillons, nous dansons parce que nous rêvons
sim. Não esquecei que eu vos deixo d’être le moteur du monde. N’oubliez
o melhor de mim, meus passos. pas que je ne bois pas, mes amis
Senhor, vossas garças não querem me deixar ir, si. N’oubliez pas que je vous laisse
dei-lhes alguns de meus melhores tecidos, le meilleur de moi-même, mes pas.
não querem me deixar ir, dancei para elas, Seigneur, vos aigrettes ne veulent pas me laisser
não querem me deixar ir, não lhes dou enfim partir,
o que todas querem, o meu beijo. Pescador je leur ai donné quelques-uns de mes plus beaux
de Garças, eu nunca beijei. Retiro-me.” tissus,
elles ne veulent pas me laisser partir, j’ai dansé
pour elles,
elles ne veulent pas me laisser partir, mais je ne
leur offre pas
ce qu’elles veulent toutes, mon baiser. Pêcheur
d’Aigrettes, je n’ai jamais donné un baiser. Je me
retire.”
5.2.17

XXXII
“Difícil é escrever à luz do dia. “J’ai du mal à écrire sous la lumière du jour.
Eu gostaria que minhas pegadas não me Je voudrais que les empreintes de mes pas ne me
seguissem, mas que fossem por aí procurando o suivent pas, mais qu’elles partent
que fazer. à la recherche d’autre chose.
Senhor Pescador de Olhos, não tenho Seigneur Pêcheur d’Yeux, je n’ai pas 173 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
pratas. Procurei em meus sacos, encontrei folhas d’argent. J’ai beau chercher dans mes sacs,
secas, não tenho pratas. j’ai trouvé des feuilles sèches, je n’ai pas d’argent.
Devo então aguardar a vinda da tripulação. Je dois alors attendre le reste de l’équipage
Navegamos em grupo e meu car nous naviguons en groupe et mon
barco não carrega metais. Ah se eu pudesse vos bateau ne transporte pas de métaux. Ah si je pouvais
pagar com uma carta, isso me arranjaria. Estou vous payer avec une lettre, cela m’arrangerait.
ferido, Pescador dos Céus. Não foi Je suis blessé, Pêcheur des Cieux. Ce n’était pas
lança, até porque não faço guerra. Quando une lance, car je ne fais jamais la guerre. Quand
encontro guerras, cavalarias e lanças je croise les guerres, les cavaleries et les lances,
por aí, eu me sento à beira da je m’asseois au bord des chemins,
estrada e aguardo a tragédia passar. attendant que passe la tragédie.
Estou ferido, foi o vento que me rasgou ontem Je suis blessé, c’est le vent qui m’a déchiré hier
à noite. Passaram três rajadas de vento: soir. Passèrent trois rafales de vent :
uma das velas se partiu e voou une des voiles s’est rompue et s’est envolée
feito morcego cego na solidão do mar, comme une chauve-souris aveugle dans la solitude
um homem que se curava de saudade de la mer,
se cobriu de cetim e pulou ao mar; un homme qui se guérissait de sa saudade
talvez ele tenha morrido, e eu fiquei entre as s’enveloppa de satin et sauta dans la mer ;
cordas e correntes, precisamente fiquei il est peut-être mort, et je suis resté entre
debaixo de uma âncora. Nunca tive âncora como les cordes et les chaînes, précisément je suis resté
escudo, mas foi assim. Perdi pouco sous une ancre. Je n’avais jamais eu d’ancre comme
sangue e no lugar ganhei vento bouclier, mais ce fut ainsi. J’ai perdu peu de
dentro de minhas veias. Passei a respirar sang, et à sa place du vent
melhor. Fora est entré dans mes veines, j’ai pu mieux
o frio e o medo da tripulação, ganhei respirer. En plus
três rasgos de pele. Cada um para du froid et de la peur de l’équipage, je me suis fait
lembrar da existência dos planos trois coupures sur la peau du bras. Chacune d’elles
do tempo. Parece que a escrita é uma maneira pour me rappeler l’existence des plans du
de forçar a passagem entre temps. Il semble que l’écriture soit une manière
esses planos. Pescador de Olhos, por que de forcer le passage entre
pescais olhos e não astros? Sois Pescador ces plans. Pêcheur d’Yeux, pourquoi
dos Céus, mas em vosso anzol só pêchez-vous les yeux et non pas les étoiles ? Vous
vejo olhos de gaivotas. Quereis apenas olhos êtes Pêcheur
e nada mais? Vedes as gaivotas livres, des Cieux, mais à la pointe
elas não podem ver. Elas morrem? de votre hameçon je ne vois que
Pescador de Olhos, cada carta que escrevo é como se des yeux de mouettes. Ne voudriez-vous que des yeux
um dos planos do tempo et rien de plus ? Voyez les mouettes libres,
se abrisse e me dissesse, Retirai-vos elles n’arrivent pas à voir, meurent-elles ?
do mundo!. RETIRAI-VOS DO MUNDO!, Pêcheur d’Yeux, chaque lettre que
repete o vento. RETIRAI-VOS DO MUNDO!, j’écris est comme si l’un des plans du temps
repetem as velas dos barcos que chegam. s’ouvrait et me disait, – Retirez-vous du
RETIRAI-VOS DO MUNDO!, repetem as gaivotas monde ! RETIREZ-VOUS DU MONDE !,
sem olhos que voam baixo. E por que répète le vent qui passe. RETIREZ-VOUS DU
eu escrevo Retirai-vos do mundo! se não MONDE !,
tenho coragem de arriscar a assertiva da répètent les voiles des bateaux qui arrivent.
frase? Quem é que deve ser o objeto RETIREZ-VOUS DU MONDE !, répètent les
174 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

dessa oração? Assinarei esta carta antes mouettes


de responder à pergunta. Pescador de qui passent au vol bas. Qui est-ce
Olhos, eis três sacos de prata. Dai-nos l’objet de cette phrase ? Sans courage,
um abrigo.” je te signerai cette lettre avant
de répondre à cette question.
Pêcheur d’Yeux, voici trois sacs d’argent.
Hébergez-nous. »

10.2.17
Natureza e patrimônio de valor turístico do
território de Icatu, estado do Maranhão:
possibilidades de uso ambiental sustentável

Antonio Cordeiro Feitosa


Degeo-NEPA
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Introdução

O uso dos recursos do território é inerente aos animais superiores e apresenta um


panorama evolutivo inscrito no processo de apropriação das técnicas e das tecnologias
pelos grupos humanos. Neste percurso, alguns grupos desenvolveram estratégias e técnicas
que permitiram avanço mais rápido na exploração e processamento dos materiais dispo-
nibilizados pela natureza, enquanto muitos permaneceram em estado gregário e outros
se beneficiaram de intercâmbios que representaram avanços técnicos rápidos, mas com
custos incalculáveis.
As terras da costa norte do Brasil figuraram no contexto das disputas entre os portu-
gueses e os espanhóis, pela partilha do mundo imaginado, no final do século xv, ratificadas
pelos tratados de Alcáçovas-Toledo, em 1479, e de Tordesilhas-Simanca, em 1494. Com a
175 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
localização do Brasil, em 1500, a nova possessão passou a integrar o patrimônio e o ima-
ginário dos portugueses até a instituição do sistema de capitanias hereditárias e a primeira
tentativa de ocupação do Brasil em 1530 (FEITOSA, 2014), quando se tornou conhecida
através da visita de Diogo Leite, por determinação de Martim Afonso de Souza.
Os insucessos dos donatários da capitania do Maranhão, durante a primeira metade
do século xvi, resultaram na inibição de novas empresas de portugueses com tal propósito,
por cerca de meio século, fato que abriu espaço para aventureiros – piratas e corsários – de
várias nacionalidades, inclusive portugueses, que passaram a frequentar a costa norte do
Brasil para negociar com os índios, obtendo muitas vantagens na aquisição de diversos bens
minerais além dos da fauna e da flora regional que tinha grande valor no mercado europeu.
Mariz e Provençal (2011, p. 29) referem que “de 1594 até 1596 Jacques Riffault, com três
naus, patrulhava a costa do Rio Grande do Norte até o Maranhão e concluiu aliança com
os índios” para cooperação com a coroa francesa. Destas aventuras resultou a permanência
de franceses como Charles des Vaux e Du Manoir que conviveram com os índios da ilha do
Upaon-açu e no entorno do Golfão antes da ocupação oficial, granjeando sua amizade e acei-
tação de aliança para este fim. Para além da simples amizade, nas tentativas de conquista do
Ceará, havia relatos de que alguns grupos indígenas possuíam armas obtidas dos aventureiros.
Autoridades espanholas e portuguesas estavam devidamente informadas sobre a presen-
ça de aventureiros na costa norte do Brasil, pois, conforme Mariz e Provençal (2011, p. 75),
ao final do século xvi, “numerosos franceses viviam entre os índios no Maranhão” negocian-
do trocas e aquisição de produtos da região que tinham alto valor de mercado na Europa.
Estas atividades continuaram no início do século xvii, como atesta a presença de
navios comandados por dois corsários de Diepe na ilha de Santana, quando da chega-
da da expedição de Daniel de la Touche para fundar a França Equinocial, ato marcado
pela construção e inauguração do forte de São Luís, celebração da primeira missa no dia
8 de setembro de 1612, data da fundação da cidade em homenagem ao monarca francês
Luís XIII, apoiador da iniciativa.
Sobre a presença francesa no Maranhão por ocasião da chegada da esquadra de Daniel
da la Touche, Monteiro (2013, p. 16) afirma que “lá, já se encontravam uns 400 franceses
e navios oriundos do Havre e de Dieppe, o que mostra que já frequentavam bastante o
local. Isto justifica o clima de festa descrito por Meireles (1982) por ocasião da recepção a
Daniel de la Touche.
Para avaliar os perigos da presença e da ocupação do Maranhão pelos franceses, o
Governador de Pernambuco, Diogo de Menezes, encarregou a Diogo de Campos Moreno,
sargento-mor do reino, a missão de investigar acerca do estado dos acontecimentos relacio-
nados com as notícias da presença de franceses e outros aventureiros na costa da Paraíba
ao Maranhão, no início do século xvii (SERRÃO, 1968; MORENO, 1968; MARIZ e
176 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

PROVENÇAL, 2011).
Após executar missão que lhe fora atribuída, Diogo de Campos recomendou a urgên-
cia nas ações para a conquista das referidas terras das quais se diziam “tantas grandezas que
parecia fabuloso” (MORENO, 2011, p. 29), e, pelo êxito da missão, logrou ser mandado a
Lisboa e a Madrid para defender suas propostas perante as autoridades das respectivas coroas.
No início do século xvii, duas iniciativas de particulares ganharam a simpatia do
Governador em Pernambuco. Segundo Studart Filho (1959) e Lisboa (2012), em 1603,
Pero Coelho de Sousa tomou a inciativa e recebeu apoio das autoridades de Pernambuco
para organizar uma expedição ao Maranhão, a qual não ultrapassou o rio Parnaíba devi-
do aos improvisos, reduzido apoio oficial e desavenças entres os expedicionários. Sucesso
maior do que a expedição comandada por Pero Coelho não obtiveram os padres Luís
Filgueira e Francisco Pinto, em 1607, que não conseguiram ultrapassar a serra da Ibiapaba
onde fora dizimada pelos índios, e novamente o Maranhão foi relegado ao desamparo das
coroas portuguesa e espanhola.
No alvorecer do século xvii, a costa norte do Brasil movimentou o cenário político
internacional adquirindo visibilidade global pela via da ocupação francesa do Maranhão,
para fundar a França Equinocial, e da consequente circulação das informações relativas a
este episódio no âmbito do império luso-espanhol. Os domínios desse império se esten-
diam desde a Península Ibérica até a África, América e Ásia, e integravam estruturas eco-
nômicas e políticas de alta produtividade e competividade que interessavam diretamente
à Inglaterra, Itália e à República das Sete Províncias dos Países Baixos, atual Holanda
(BETHENCOURT, 1998).
Alguns testemunhos da negligência das autoridades portuguesas, espanholas e de seus
prepostos no governo do Brasil para com a integração da costa norte, compreendendo as
terras entre o Ceará e o Maranhão, são recorrentes na literatura histórica. Dentre os quais
destacamos o de Serrão (1968, p. 152) ao afirmar que somente em face da perspectiva de
invasão francesa e dos riscos que este episódio representaria para a coroa espanhola foi
capaz de reconhecer

que a zona equatorial do Brasil, que fora, até então, mais ou menos ignorada na
sua grandeza geográfica, era, de igual modo, parte integrante do vasto território. [...]
Mas tendo conhecimento da ameaça francesa no Maranhão, os Filipes “acordaram”
para a existência das partes do norte, desde o Rio Grande ao início do Amazonas,
que convinha povoar e defender, pois eram a porta de entrada da América Central
— e com mais rigor — da América espanhola.

No contexto das disputas entre os reinos que competiam por terras e por recursos
em territórios de além-mar, o Maranhão passou a despertar o interesse desses povos por
177 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
integrar uma região muito rica em produtos que tinham ampla aceitação no mercado eu-
ropeu e, no plano geopolítico, por representar uma possibilidade de acesso ao interior da
Amazônia e mesmo às riquezas de ouro do Peru, já conhecidas dos espanhóis e cobiçadas
por muitos aventureiros.
No presente estudo, apresenta-se uma análise da evolução do território do municí-
pio de Icatu, localizado na margem oriental da baía de São José, área que desempenhou
papel destacado por ocasião da campanha dos portugueses para expulsar os franceses do
Maranhão e frustrar a tentativa de implantação da França Equinocial, projeto que inte-
grava os objetivos da coroa francesa desde a derrota na campanha de instalação da França
Antártica, no Rio de Janeiro.
O território de Icatu: da casualidade à condição estratégica

Abandonado pelos donatários, inalcançado pelas expedições de Pero Coelho de Sousa


e dos padres Francisco Pinto e Pereira Filgueira, e negligenciado pela coroa portuguesa
antes e durante o reinado de Filipe II durante a União das Coroas Ibéricas, apesar das
medidas requeridas pelas autoridades da colônia na Bahia e em Pernambuco, mediante
a invasão francesa, o território do Maranhão, já no reinado de Filipe III, recebeu toda
atenção das autoridades de Madrid, de Lisboa e de Pernambuco, o que se materializou por
meio da Jornada do Maranhão, em 1614.
A ocupação indígena da ilha Upaon-Açu, atual ilha do Maranhão, denuncia percur-
sos e percalços dos primitivos habitantes desde a Amazônia (LOUREIRO, 1982) e do
nordeste do Brasil, tanto pela costa como pelo sertão, com testemunhos mais relevantes
desta última região pelas conexões com as culturas dos grupos primitivos e as evidên-
cias expressas pela memória das lutas contra os portugueses na Bahia e em Pernambuco
(MORENO, 2011).
Ao início do processo de conquista e povoamento do Maranhão pelos europeus, o
território estava ocupado por grande número de aldeias indígenas com atividade seminô-
made que se distribuíam acompanhando a costa e os vales dos rios, todos perenes e muitos
com grande caudal e abundante fauna. Em face da diversidade e da quantidade de recursos
produzidos pela natureza, os primitivos habitantes vivenciavam os mais diversos conflitos
sociais para garantir a posse das áreas mais produtivas.
A ocupação francesa do Maranhão constituiu a motivação que faltava para acelerar
a decisão das autoridades de Portugal e Espanha. Diante do risco potencial de invasão
dos territórios espanhóis das Caraíbas e dos Andes, Filipe III de Espanha e II de Portugal
substituiu o governador de Pernambuco nomeando Diogo Botelho com a missão de
dar prioridade ao resgate da hegemonia das coroas ibéricas sobre a costa norte do Brasil,
compreendendo toda a extensão desde a Paraíba até a Amazônia.
178 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Para superar todas as frustrações das tentativas anteriores, realizadas por iniciativas
particulares e com apoio oficial secundário, o Governador de Pernambuco assumiu a coor-
denação das ações iniciais, escolhendo a equipe e custeando a logística com o melhor que
a situação permitia. Mariz e Provençal (2011, p. 79) afirmam que, se “não fosse o auxílio
de outras capitanias, os luso-espanhóis teriam sido forçados a adiar as operações” contra a
colônia francesa, o que poderia ser desastroso para as duas coroas.
Uma importante missão preparatória para a campanha contra os franceses no Maranhão
foi atribuída a Martim Soares Moreno, em 1611 (ARAÚJO, 2015; PIANZOLA, 2008;
MORENO, 2011), com o propósito de examinar os fatos relacionados com a presença de
franceses na Costa Norte do Brasil, missão cumprida com grande atraso e pouca utilidade
para o planejamento operacional, uma vez que o relatório chegou com grande atraso na
Espanha e em Portugal, mas só foi recebido pelo comandante da Jornada do Maranhão
quando as operações já estavam em curso.
A Chegada da frota comandada por Albuquerque a Graxenduba, às 10 horas do dia
26 de outubro de 1614, ocorreu a salvamento, mas não incógnita, como atesta o sargento-
-mor Diogo de Campos Moreno (2011, p. 60) que “fizeram tal aparato que subitamente
em toda a Ilha Grande, a qual a duas léguas e meia estava defronte, se fizeram fumaça por
toda a costa, dando aviso que durou espaço grande”. Outra evidência da exposição dos
portugueses é referida por Moreno (2011, p. 61) que, ainda durante a descarga dos navios,

viram vir correndo à ribeira uma canoa grande com muitos índios, a qual che-
gada à terra foram recebidos de Jerônimo de Albuquerque e de todos com muita
alegria. Porém ele, mostrando mui pouca, estavam com tanta turbação que ao prin-
cipal lhe tremiam quantos ossos tinha descompostamente, e não de frio [...] Nas
perguntas variavam: houve deles que disseram que na ilha havia muitos franceses;
outros disseram que já eram idos, e que não havia ninguém...

Mariz e Provençal (2011, p. 83) relatam evento semelhante e atestam a artimanha dos
franceses ao registrarem que Du Prat, um dos oficiais de comando da armada de Daniel de
la Touche, enviou um dos chefes indígenas de Upaon-Açu para conversar com Jerônimo
de Albuquerque, fingindo-se decepcionado com os franceses e esperando avaliar as forças
dos portugueses”. Esta estratégia marcava o modus operandi da abordagem dos franceses,
à época, que se passavam por amigos confiáveis para extrair tudo que pudessem em troca
de poucas quinquilharias.
O episódio da visita dos índios demonstra a primeira estratégia dos franceses e a per-
cepção dos portugueses acerca dos acontecimentos vindouros, fartamente descritos por
historiadores, mas ainda sem uma análise acurada sobre o teatro da guerra, que culmina-
179 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
ram com a vitória das tropas de Jerônimo de Albuquerque. Na sequência das artimanhas,
Daniel de la Touche convenceu Albuquerque a enviar comissões às respectivas coroas para
resolver as pendências políticas quanto a quem deveria permanecer no Maranhão. Este
ardil é comprovado mediante o aliciamento de oficiais da tropa de Albuquerque, enquanto
esperava reforços da França, ainda sob o regime anteriormente acordado. A solução defi-
nitiva da guerra foi assumida por Alexandre de Moura com a prisão do comando francês e
sua deportação para Lisboa (MOURA, 1905, p. 61).
A emergência da situação de guerra condicionou a escolha de um sítio para ocupar
apenas enquanto durassem as ações contra os franceses, o mais próximo que se podia al-
cançar incógnito e com segurança. Foi escolhido o topo da colina de Guaxenduba, como
posição estratégica para segurança das operações, mas para o Sargento-mor Diogo de
Campos Moreno, integrante do comando da armada (MORENO, 2011, p. 60), o ponto
escolhido era desfavorável por ser uma costa franca com planície de maré alternando partes
com vasas, pedras e areias, por extensão de mais de meia légua, “de modo que, tirando ser
água para beber, e boas terras, e madeiras ao redor de si, tudo o demais que se busca em
razão de guerra lhe falta; mas já chegados ali, e descobertos, não havia outro remédio”.
Entre outras desvantagens estavam o efetivo e o poder bélico.
As características ambientais encontradas pelos portugueses no Maranhão divergiam, em
grande medida, das reconhecidas nos trechos até então percorridos na costa norte do Brasil,
pela notável magnitude da energia expressa pelas forças da natureza, pois a proximidade da
linha equinocial tudo maximizava. Para a tropa da Jornada incumbida de expulsar os franceses
do Maranhão, o desconhecimento do ambiente e a falta de conhecimento dos índios represen-
taram obstáculos logo suplantados pela emergência da expectativa da defesa em face da missão.
Reconhecendo as potencialidades do ambiente, Jerônimo de Albuquerque mandou que
preparassem o desembarque e a primeira instalação portuguesa no Maranhão, para abrigo
contra os rigores do clima e defesa contra eventuais investidas dos franceses. Foi escolhido
o local denominado Monte de Guaxenduba (CARVALHO, 2014) onde, segundo Moreno
(2011, p. 61), de imediato foi construído o Forte, um hexágono “perfeito, capaz de alojar
em si toda aquela gente e se defender com
mui pouca, acomodando-se com o terre-
no” (Figura 1), batizado com o nome de
Santa Maria, e a Capela para ofício dos
sacerdotes, instalações que obedeciam ao
padrão de todas as infraestruturas iniciais
de ocupação portuguesa, quando se trata-
va de missão oficial. Segundo Johnson e
Silva (1992), a localidade ocupada depois
180 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

foi chamada Vila Velha.


Enquanto construíam a estrutura de
apoia à tropa, o comando da Jornada do
Maranhão não podia descurar da vigilân-
cia dos franceses, enquanto mediava apoio
dos índios tapuias das vizinhanças de
Guaxenduba que também eram inimigos
dos Tupinambás, da Ilha Grande, apoia-
Figura 1. Planta do Forte de Santa Maria, em Guaxenduba
dores das tropas invasoras. E as animosi-
Fonte: adaptado de https://www.google.com.br dades continuavam configurando o clima
de guerra com incursões de espionagem de ambas as partes. Moreno (2011, p. 64) registra
“que continuamente andavam com as armas nas mãos, e atravessando matos, e rondando os
postos das praias, guardando postos, fazendo emboscadas, batendo varedas, reconhecendo
pistas, vigiando lanchas e trabalhando nas obras e na descarga dos navios, de sorte que não
havia sair de um trabalho sem se deixar de entrar em outro”.
Almeida (2016), Araújo (2015), Carvalho (2014), Moreno (2011), Mariz e Provençal
(2011), Lacroix (2006), Meireles (1982) destacam os conflitos, as escaramuças e as refre-
gas recorrentes na costa norte do Brasil durante a campanha para expulsar os franceses.
Especificamente sobre o embate em Guaxenduba, registram as ações de espionagem de
ambas as tropas, a emboscada dos franceses no dia 7 de novembro de 2014, a participação
dos índios, a intimidação dos franceses e as respostas da artilharia portuguesa, a batalha
campal que culminou com a vitória dos portugueses e os desdobramentos subsequentes,
até a consolidação do domínio lusitano, merecendo destaque a desaprovação do acordo
pela corte de Madrid (LACROIX, 2006) por ter sido feito com um pirata.
A localização do forte de Santa Maria e do sítio exato onde ocorreu a Batalha de
Guaxenduba tem sido objeto de algumas dúvidas em face da toponímia e das dificulda-
des técnicas próprias da época dos acontecimentos, notadamente em termos da precisão
das medições. Lago (1822) refere uma posição do Forte de Santa Maria, considerada por
Bonnichon e Guedes (1975), Meireles (1982) e reproduzida por Mariz e Provençal (2011,
p. 83), como a mais precisa situada “na foz do rio Anajatuba (ou Inajatuba) onde localizou
numa ponta junto ao rio Tajuaba, vestígios de um forte”.
Abordando o teatro das operações de Guaxenduba, a historiografia valoriza a intervenção
milagrosa de uma virgem cuja simbologia foge ao objeto desta análise. Com referência à loca-
lização e situação geográfica, Lima (2006) situa Guaxenduba nas proximidades da cidade de
Icatu, na praia perto do rio Mamuna. Entende-se que a referência mais próxima é de Almeida
(2016, p. 68) que registra a localização referida por Lago (1822) como “as ruinas da Fazenda
Tatuaba da missão dos padres jesuítas”. Para este autor, “o forte de Santa Maria está localizado
181 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
no sítio Guaxenduba, na colina acima da praia de Santa Maria. Dista na direção norte, seis
quilômetros para a boca do rio Tatuaba e ao sul, 12 quilômetros para o estuário do rio Munim”.
À luz dos estudos referidos, concordamos com a descrição de Almeida (2016) e acres-
centamos a localização exata próxima ao povoado e à praia de Santa Maria, obtida com uso
de GPS por ocasião de visita às ruínas do Forte, sendo mensuradas as coordenadas geográ-
ficas 02º38’25” de latitude sul e 44º05’46” de longitude oeste (Figuras 2 e 3). A colina de
Guaxenduba ocupa uma das extremidades de um conjunto de tabuleiros costeiros modela-
dos pela drenagem pluvial e pelo esbatimento das ondas e correntes de marés, resultando
numa paisagem de intensa dinâmica que alterna áreas de praias arenosas, terraços de abrasão
marinha limitados por falésias de até 25 metros de altura, reentrâncias preenchidas por vasas.
Figura 2: Localização geográfica do município de Icatu Fonte: adaptado de IBGE, 2014.

Com a consolidação do domínio português no Maranhão, as autoridades se transfe-


riram para o forte de São Luís, fundado por Daniel de la Touche, na Ilha Grande e reno-
meado após a conquista como São Filipe, pelos portugueses. Almeida (2016, p. 93) relata
que, antes da mudança definitiva, Jerônimo de Albuquerque fundou o arraial de Santa
Maria de Guaxenduba junto ao forte, para abrigar os portugueses que lutaram na batalha,
com “casas simples, inclusive a igreja, todas de casas de taipa de pilão, cobertas de palha
de pindoba, portas e janelas de meaçabas e piso de saibro batido”. Em seguida os índios
182 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

tapuias, também remanescentes da batalha, com suas famílias, construíram uma aldeia na
borda do tabuleiro, situada a cerca de 1 km do forte de Santa Maria.
Para facilitar as operações de embarque e desembarque na comunicação com a sede da ca-
pitania e atender as demandas da administração, Alexandre de Moura mandou construir uma
povoação, em local próximo a Guaxenduba, com estrutura capaz de contribuir para a defesa
da Ilha Grande, proteger a foz do rio Munim contra a entrada de aventureiros e recuperar
embarcações. No local parece ter sido edificada a sede da capitania de Icatu, pois, em 1621,
detinha o único porto de entrada para a conquista e o povoamento das terras do Munim.
Os moradores das povoações desenvolviam atividades compatíveis com os recursos
ambientais e a técnicas que dominavam: caça, pesca, cultivo de feijão, milho e fava, com
sementes doadas por Ravardière. Nas famílias indígenas predominava a prática do extrativis-
mo vegetal, constando de palha, frutos e caules, da caça, da pesca e o cultivo da mandioca.
Não há registros de que os índios da região de Icatu cultivassem o algodão, embora algumas
tribos da Região Nordeste do Brasil utilizassem a fibra desse arbusto (COUTO, 2011).

Natureza e patrimônio em Icatu

Antes de dar posse a Jerônimo de Albuquerque na direção da Capitania do Maranhão


e retornar a Pernambuco, Alexandre de Moura fez a primeira distribuição de terras da
província do Maranhão para a instalação de um povoado que abrigasse os portugueses e
brasileiros que auxiliaram na conquista do Maranhão. Nessa mesma tendência, seguiu-se a
ocupação das aldeias indígenas mais estruturadas e a fundação de novas aldeias e fazendas
por padres jesuítas com o pretexto de se promover a salvação dos índios e sua incorporação
ao conjunto dos súditos do reino.
Logo que foi empossado na direção da Capitania do Maranhão, Jerônimo de Albuquerque
desencadeou o processo de conquista e colonização de todo o território maranhense. Como
medidas iniciais destinadas a reverter a influência dos franceses junto aos índios, procurou
estreitar relações com chefes indígenas da Ilha Grande, de Tapuitapera, atual Alcântara, e de
Cumã, atual Guimarães, que constituíam as maiores aglomerações com as quais os france-
ses haviam estabelecido laços de amizade. Nesta empresa foi brilhante, conforme Viveiros
(1992, p. 14), “na conquista da amizade do indígena, que se achava grandemente intrigado
com o português, conquistador, pela habilidade ardilosa dos franceses”.
Diante das perspectivas da coroa portuguesa em relação ao Maranhão e à Amazônia,
e da conjuntura geopolítica da época, marcada pelo interesse da França, Inglaterra e
Holanda pelo norte da América do Sul, a emergência das comunicações com a metrópole
motivou a criação do estado do Maranhão Colonial, separado do Brasil. Por esta divisão,
183 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
o território de Icatu constituiu uma das sete capitanias subsidiárias em que foi dividido o
Maranhão, integrando uma vasta região composta pelas capitanias do Ceará, do Itapecuru
e do Mearim (CAVALCANTI FILHO, 1990; MEIRELES, 2001; ALMEIDA, 2016),
com administração direta da Coroa e protegida por algumas particularidades da legislação
que resultaram em vantagens significativas, como a isenção de algumas proibições impostas
pela Companhia Geral de Comércio.
Na cronologia da conquista, seguiu-se a integração da região de Icatu no processo de
povoamento da capitania do Maranhão, tornando-se a segunda vila edificada no conti-
nente (FEITOSA e TROVÃO, 2006; TROVÃO, 2008), situada na foz do rio Munim.
Para Almeida (2016, p. 96), um verdadeiro paraíso, pela abundância de recursos naturais:
“uma terra boa e fértil, de água pura e cristalina, de flora e fauna abundantes”, com uma
exuberante variedade de animais silvestres. A qualidade da água motivou a denominação
toponímica de Icatu que, no idioma tupi, significa “Água Boa”.
À época dos primeiros empreendimentos portugueses na região de Icatu, o território
estava ocupado por tribos de indígenas que transitavam pelas terras do nordeste maranhen-
se e que vivenciavam os mais diversos conflitos sociais, muitos dos quais foram estendidos
para as relações com os portugueses, pois eram tribos seminômades que não reconheciam
direitos de outros sobre a terra e os bens inerentes a esta condição. Almeida (2015) discri-
mina as aldeias de São Gonçalo, São Jacob, Iguaranos, Tabajaras, Engenho do Munim e
as fazendas Tatuaba, Nossa Senhora da Vitória e Munim Mirim, além de episódios entre
os padres e os índios, e registra conflitos com os índios Guianares, Caicases e Tapuias na
forma de quebra de acordos, perseguição e captura para escravização como mão-de-obra.
Os elementos do meio físico do município de Icatu integram uma região de litologia
sedimentar arenosa, inconsolidada (Fotos 1 e 2), sobreposta à estrutura ígnea do Arco
Ferrer-Urbano Santos (BANDEIRA, 2013; FEITOSA, 1983), com o relevo evidenciando
a planície costeira marcada por extensa superfície tabular rebaixada, modelada pela dre-
nagem pluvial, configurando pequenos cursos d´água (Figura 3), com forte ocorrência de
formações superficiais arenosas que conformam paleodunas, com maior ocorrência na área
nordeste do município. No litoral, a grande amplitude das marés expõe uma ampla planí-
cie litorânea caracterizada pela deposição sedimentar de areia muito fina, silte e argila que
formam praias (Foto 3), e ambientes de manguezais modelados pelo complexo de canais
de marés onde drenam os braços de mar Anajatuba e Mamuna (Foto 4).
184 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Foto 1. Estrutura sedimentar – praia de S. Maria. Fonte: Acervo do autor.


Foto 2. Estrutura sedimentar – povoado Salgado. Fonte: Acervo do autor.

Foto 3. Vista da praia de Santa Maria. Fonte: Acervo do autor.

185 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Foto 4: Vista do canal de maré com manguezal. Fonte: Acervo do autor.


O clima da região de Icatu é do tipo tropical úmido, evidenciando a proximidade da
linha equinocial pela singularidade das médias anuais de temperatura, pluviosidade e de
umidade relativa do ar, além de estar situada em uma área franca aos ventos e às ondas
marinhas que atingem a borda oriental da baía de São José, embora abrigada das fortes
correntes de marés do Golfão Maranhense, por ter como anteparo a ilha do Maranhão.
A cobertura vegetal das superfícies tabulares é dominada por formações pioneiras de
dunas e restingas e formações mistas de cerrado com babaçu, apresentando fitofisionomia
de capoeirão misto. Nos leitos dos rios, a flora é marcada pela ocorrência de formações de
palmáceas, dentre as quais predominam as palmeiras da juçara (Euterpe edulis) e do buriti
(Mauritia flexuosa) (Fotos 6). Na faixa litorânea alternam-se praias, falésias e manguezais
com Rizophora mangle, L., depósitos de vasas predominantes nos rios Anajatuba e Munim.
No continente, o relevo tabular é modelado por diversos cursos fluviais, distinguindo-
-se os rios Amazonas, Anajatuba, Grande, Itatuaba, Munim e a cachoeira do Boqueirão,
além de cursos menores, todos mantendo razoável volume d´água ao longo do ano e
utilizados pela população para os mais diversos fins, como banho de pessoas e de animais,
dessedentação de animais, lavagem de roupas e de veículos, uso doméstico e preparo da
mandioca para fazer farinha d´água (Fotos 6), entre outros. A qualidade das águas motivou
a denominação toponímica da vila, depois capitania e mais tarde município.
Acerca do significado toponímico de Icatu, validamos a descrição de Navarro (2005)
que remete à origem tupi do vocábulo, com o significado de “águas boas”, obtido pela
aglutinação do signo y (água, rio) e do termo katu (bom). Por ocasião da invasão francesa,
Abbeville (2002) e d’ Evreux (2002) fizeram os primeiros registros do termo “Icatu”,
seguindo-se muitos historiógrafos dentre os quais Almeida (2016) que compila referências
de valor toponímico em Bettendorff (2010) e Varnhagen (1953) como “fontes boas”. Essa
visão está em desacordo com o significado, pois, excetuando-se as águas do mar, as demais
se enquadram na concepção da língua tupi.
186 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Foto 5. Formação de palmeira da juçara. Acervo do autor.


Foto 6. Banho no rio Areia – povoado Ribeira. Acervo do autor.

As características climáticas e hidrológicas atuando sobre as formações superficiais de do-


mínio arenoso, mesmo durante longo período geológico sem intervenções humanas signifi-
cativas, não possibilitaram o aporte de matéria orgânica suficiente para desencadear processos
edáficos de maturação do solo, fato que explica a baixa fertilidade natural e a tipologia domi-
nante dos Neossolos Quartzarênicos (SANTOS, 2013). Esta condição é reforçada pelo regis-
tro de Marques (2008, p. 617) de carta do governador enviada à corte em 1716, afirmando
que a vila de Icatu “se vai despovoando por ser um sítio muito doentio e morrer muita gente e,
sobretudo, por não criarem as terras os mantimentos, por serem a maior parte delas areadas”.
Sobre a flora de Icatu, Gaioso (2011, p. 84) refere que “abundam de muitas árvores de
angiroba, ou andiroba, de cuja castanha se tira uma massa que, desfeita ao sol, desfila um azeite
para alumiar e de que se faz sabão”. Marques (2008, p. 618) registra a existência de matas com
madeiras “próprias para construção de casas, navios e móveis” como “aroeira, ameiju amarelo
e preto, angelim, bracutiara, bacuri vermelho e branco, maçaranduba, pau-roxo, pau-santo,
187 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
paparaúba branca e amarela” e que “são muito próprios para a criação de gado vacum.” A esta
descrição podem-se acrescentar as formações dos exuberantes manguezais e de espécies vege-
tais como babaçu (Attalea speciosa), buriti (Foto 6) e juçara (Foto 5), entre outras. O consu-
mo dos produtos derivados não se valorizava à época, como acontece na atualidade, além de
permitirem a elaboração de subprodutos artesanais com boa aceitação no mercado turístico.
O território de Icatu evoluiu mais rapidamente com as técnicas introduzidas pelos
conquistadores, pois os índios usavam instrumentos trabalhados em pedra e madeira e
receberam ferramentas vindas de Portugal. Isto representou um enorme avanço técnico
que foi registrado por d´Abbeville (1975, p. 60) ao transcrever o discurso do cacique
Japiassu de que estavam dispostos a não mais pensar “em foices, machados, facas e outras
mercadorias, e conformados com voltar à antiga e miserável vida de nossos antepassados
que cultivavam a terra e derrubavam as árvores com pedras duras”.
Os instrumentos trazidos da Europa foram incorporados ao desenvolvimento das ati-
vidades de extrativismo animal, apoiado na caça e na pesca; vegetal, baseado na coleta de
frutos e corte de madeira; na cultura agrícola e pecuária para subsistência, com a orienta-
ção dos padres jesuítas e posteriormente dos donos da terra, todos apoiados pela navegação
fluvial como meio de escoamento do excedente da produção, o que não era abundante,
pois, conforme Gaioso (2011, p. 83), “suas terras não serviam para a cultura do arroz e
algodão. Porém, por outra parte são muito propícias para a produção de farinha”.
As atividades dos primeiros conquistadores foram desenvolvidas com maior produtivida-
de nas aldeias e fazendas controladas pelos jesuítas, onde se fabricava açúcar e cachaça de cana,
e tiquira, de mandioca (ALMEIDA, 2016), além do cultivo de outros produtos destinados
ao consumo interno. Uma exceção a esta tendência parece ter sido o Engenho do Munim,
cuja prioridade estava apoiada na exploração de madeira para exportar (VIVEIROS, 1965).
A continuidade do desenvolvimento territorial de Icatu alternou conflitos entre os na-
tivos e os colonizadores, motivados pela escravização daqueles para emprego nas atividades
produtivas, e também entre os colonizadores e gestões da capitania, fatos que motivaram o
esvaziamento das terras da vila por morte ou por fuga. Almeida (2016, p. 101) assinala que
“os capitães-mores, constantemente, promoviam guerra aos índios reduzindo-os à escravi-
dão. Usavam desses meios pretextando haver ameaças de ataques dos gentios à vila ou a en-
genhos e lavouras”. Ademais, registra fases positivas e negativas desse processo, destacando-se
a rapidez da construção da vila instalada em 1691, junto do forte de Santa Maria. Segundo
Betendorff (1910, p. 509), este fato despertou interesses financeiros de muitos portugueses
radicados na região do Itapecuru, e sua acelerada destruição, em 1698, em decorrência do
massacre feito pelos índios caicases que afugentou os colonos não vitimados.
A continuidade da crise parece ter representado uma extensão das condições de toda a
capitania, apesar dos esforços da coroa no sentido de estimular a aquisição de mão-de-obra
188 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

escrava a baixo custo. Em 1749, o governador do estado do Maranhão refere que a povoa-
ção da vila de Santa Maria de Icatu “tem poucos moradores e a maior parte de pequenos
cabedais (BERREDO e CASTRO, 1749, p. 11) e, em 1751, o Governador Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, sobre a situação encontrada no Maranhão, afirma que

Vim parar a uma terra onde não só se não conhece o comércio, mas nem nunca ou-
viram estas gentes falar na mais leve máxima dele; vindo os comissários de Lisboa roubar
estes moradores, eles despicam-se não lhes pagando, ou fazendo-o com gêneros falsifica-
dos e por preços exorbitantes, e com estes estabelecimentos não é muito que tenha che-
gado ao ponto de ser quase impossível o restabelecer-se (MENDONÇA, 2005, p. 86).
O Governador Mendonça Furtado transferiu a sede do Governo para Belém, colo-
cando São Luís e o Maranhão em plano secundário com reflexos em todas as capitanias
subsidiárias. Uma década mais tarde, Moraes (1860, p. 78) trata da vila de Icatu afirmando
ser “tão falta de cabedais, como de moradores [...] a mais pobre de toda a comarca”. A con-
tinuidade da situação motivou reivindicações dos representantes da vila de Santa Maria
de Icatu, rogando ao Rei que autorizasse a transferência da povoação para um local cuja
situação geográfica possibilitasse maiores recursos e lhes facilitasse mais produtividade.
Com a anuência do Rei, foi implantada a nova vila, onde se situa a sede do municí-
pio desde 1759, mantendo-se o topônimo da vila antiga. Almeida (2016, p. 120) relata
a prosperidade inicial da Vila Nova de Icatu, cujo porto “servia de parada obrigatória de
canoas, cúteres e depois de vapores que subiam e desciam o rio Munim, até o afluente
Iguará, transportando passageiros e mercadorias”, além da posição estratégica para a defesa
da capital, pela baía de São José, e de toda a interlândia do rio Munim.
Os sucessos da nova vila de Icatu resultaram no crescimento de alguns núcleos de
povoamento como o de Miritiba e o de Morros, cuja emancipação implicou perdas de
território e de recursos. Para Almeida (2016), a abolição dos escravos e o crescimento da
povoação de Morros, emancipada em 1898, deram inicio à fase de decadência da vila nova
de Icatu, pois em pouco tempo esta povoação se tornou mais importante do que a sede,
concentrando grande parcela da economia do município e oferecendo boas estradas para
a comunicação com São Luís, através do rio Itapecuru, e com Parnaíba, no Piauí. O sítio
de Morros tinha a seu favor a melhor qualidade das águas dos rios, melhores condições de
travessia do rio Munim e de acesso ao rio Itapecuru e à vila de Rosário.
No início do século xx, a construção da estrada de ferro interligando as cidades de São
Luís e Teresina contribuiu para acelerar as relações da vila de Morros com a de Rosário,
resultando no declínio da navegação fluvial e relegando a vila de Icatu ao plano secundário
em que ainda se encontra, apesar dos investimentos em infraestrutura, no início deste
século, como a pavimentação da BR 402 que beneficiou a região com rodovia asfalta-
da ligando a sede do município à capital do estado e ao polo turístico de Barreirinhas. 189 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Atualmente as perspectivas de crescimento econômico de Icatu são renovadas em face do
projeto de implantação de uma linha de Ferry Boat para servir à região, interligando-a à
capital do estado através da cidade de São José de Ribamar.
Considerando a avaliação dos elementos naturais no contexto da patrimonialização, o
território de Icatu possui muitas áreas enquadradas como de proteção legal por serem am-
bientes costeiros, como praias, mangues, falésias, e continentais, como mananciais, bosques
de babaçu e de bacuri, entre outros, todos protegidos pelo Código Florestal Lei 12.727/2012
e pelas resoluções próprias do Conselho Nacional de Meio Ambiente-CONAMA.
As leis federais são objeto de ações de fiscalização no âmbito do governo do Estado que
institui documentos legais com vistas ao melhor cumprimento dos estatutos. O território
de Icatu integra a Área de Proteção Ambiental Upaon-Açu/Miritiba/Alto Preguiças, ins-
tituída pelo governo do estado do Maranhão através do Decreto no 12.428/92, com o
propósito de disciplinar o uso sustentável dos recursos naturais da região abrangida. Em
nível municipal, deve-se atender ao que disciplina a legislação federal e estadual além das
deliberações da competência específica. Neste contexto merece destaque a aprovação da lei
municipal nº 350/2015 que “dispõe sobre a faixa de proteção, recuperação e conservação
ambiental do curso do rio Itatuaba e suas matas ciliares” (PMI, 2015).
Através de estudos de campo, destacamos os pontos de maior relevância por valor pa-
trimonial para o município (Figura 3), para além da proteção legal já instituída e outros de
grande potencial como patrimônio cultural por seu valor histórico, arquitetônico e religio-
so, entre outras manifestações. Dentre os locais de maior potencial natural consideramos
os locais já instituídos pela população, como a praia de Santa Maria com suas respectivas
falésias (Fotos 1 e 3), a falésia e o manguezal próximos ao povoado Salgado (Fotos 2 e
4), os banhos próximos ao povoados Moinho, Ribeira (Foto 6), São Lourenço, Itatuaba,
Salgado (Foto 7), Boa Vista e a cachoeira do Boqueirão (Foto 8).

Foto 7. Banho rio Amazônia – pov. Salgado. Acervo do autor.


190 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Foto 8. Banho cachoeira do Boqueirão. Acervo do autor.


Como sítios de valor histórico e cultural merecem destaque os locais do forte de Santa
Maria, da Vila Velha de Icatu, as sedes das antigas missões religiosas e das fazendas, e a sede
da cidade de Icatu. O sítio do forte (Foto 9) deve ser recuperado e compreender a borda do
tabuleiro com extensão para o local da batalha de Guaxenduba e do cemitério respectivo,
cuja localização precisa carece de pesquisa. Almeida (2016) registra as principais missões
religiosas e fazendas com uma descrição superficial sobre a respectiva localização, o que
também carece de pesquisa histórica, cartográfica e arqueológica. Na sede do município,
o conjunto formado pela praça da Matriz e praça folclórica (Foto 10) reúne a Casa da
Câmara, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição (Foto 11) e o Porto, bem como o busto
de Jerônimo de Albuquerque (Foto 12), construído no século xviii.

Figura 3. Locais de maior interesse como patrimônio turístico em Icatu. Fonte: adaptado de IBGE, 2014

191 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Foto 9. Ruínas do forte de Santa Maria. Acervo do autor.


Foto: 10. Praças da Matriz e Folclórica. Acervo do autor.

Foto 11. Igreja Matriz de Icatu. Acervo do autor. Foto 12. Busto de Jerônimo de
192 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Albuquerque.
Fonte: https://www.google.com.br

Conclusão

O uso sustentável do patrimônio turístico de Icatu é possível e desejável, pois facil-


mente reconhecemos o elevado potencial de vários segmentos do território municipal.
Entretanto, com maior rigor, devemos mencionar que, mesmo os segmentos do ambiente
cujo potencial é mais facilmente perceptível, ainda não mereceram a devida atenção das
autoridades municipais, pois não existem estudos e nem se percebem ações efetivas para
reconhecer, valorizar e planejar estes sítios no sentido de que sejam incorporados ao plano
turístico do estado do Maranhão.
Com referência aos elementos do meio natural, pode-se afirmar o grande poten-
cial da geodiversidade, notadamente na paisagem costeira da praia de Santa Maria de
Guaxenduba, nas falésias costeiras arenosas próximas ao povoado Salgado e nos cursos
fluviais onde já são utilizados como banhos, entre outros fins.
Na área de Santa Maria, o conjunto de praias e falésias tem grande beleza estética ainda
preservada da intervenção do homem em face da reduzida frequência, mesmo nos finais
de semana e feriados. No litoral, alternam-se áreas de praia e terraço de abrasão marinha
encerrados por belas falésias onde se pode aglutinar a estética da paisagem com a simbo-
logia dos fatos históricos ocorridos durante as operações para a expulsão dos franceses do
Maranhão, fundamentais para o Maranhão e o Brasil.
Com grande potencial estético se pode destacar o conjunto de falésias costeiras areno-
sas, localizadas próximo ao povoado Salgado, com excelente possibilidade de uso turístico
contemplativo em virtude do alto grau de vulnerabilidade ambiental em face do conjunto
de areias inconsolidadas. Nesta área, pode-se agregar o valor da exuberância da biodiversi-
dade do ecossistema de manguezal e do sistema de canais de maré, cuja preservação ainda
é evidente ao primeiro exercício do observador.
Nos cursos d´água que servem aos povoados, são recorrentes os locais utilizados de
forma não-consuntiva para banhos e outros usos domésticos que carecem de ordenamen-
to através de orientação adequada da população. Neste estudo foram elencados diversos
locais cujo potencial pode ser avaliado com vistas à implementação de pesquisa, de ações
educativas e divulgação para o município e a região.
É importante que as autoridades responsáveis pela identificação, preservação e recupera-
ção dos sítios dotados de potencial natural, histórico e cultural com valor turístico, em nível
municipal e estadual, despertem para esta temática, procurando estimular empreendedores
locais em potencial no sentido de valorizar os recursos e promover sua utilização adequada,
193 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
inserindo as comunidades nesse processo e agregando valor aos demais recursos existentes.
Dentre ações prioritárias, deve-se considerar a construção do cenário de Guaxenduba,
incluindo o forte de Santa Maria, a identificação do local da batalha e do cemitério, além da
infraestrutura viária e hoteleira para estimular a visitação.
Relativamente às manifestações culturais, o território de Icatu possui registros comuns
a todo o norte do Maranhão, particularmente evidenciando as tradições indígenas, por-
tuguesas e africanas. Considerando o longo tempo que marca a história do município,
deve ser estimulado o resgate através de pesquisas das tradições que ficaram no imaginário
popular e o apoio e estímulo às que estão sendo regularmente praticadas e reconhecidas
como tradicionais, evidenciando manifestações religiosas de origem portuguesa, como a
Jornada de São Gonçalo, a festa de Nossa Senhora da Conceição, de São Pedro e o Bumba-
-meu-boi de Matraca, trazidas pelos portugueses do continente e dos Açores; e de origem
africana como o Tambor de Crioula e o Tambor de Mina, além do carnaval que não possui
vinculação mística.
Em convergência com o panorama cultural dos municípios contíguos como Axixá,
Morros e com o polo cultural de São Luís, Icatu é representado especialmente pelo Bumba-
-meu-boi de Icatu e de Itapera, entre outras manifestações, dispondo de infraestrutura
adequada para apresentação, como a Praça do Folclore. A articulação com o polo de São
Luís pode resultar em uso mais intenso dos recursos do território para fomentar as ativi-
dades turísticas por meio da captação de recursos, qualificação de mão-de-obra e melhoria
das condições de oferta de produtos e inserção no mercado turístico.

Referências

ABBEVILLE, Claude d’. História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e regiões
circunvizinhas. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: EDUSP, 1975. Coleção Reconquista do
brasil, v. 19.
ALMEIDA, José. Icatu: terra de Guaxenduba 1614-2014. 2ª ed. Imperatriz: Ética, 2016.
___, Os Jesuítas na capitania de Icatu. Imperatriz: Ética, 2015.
ARAÚJO, Joseh Carlos. Crônicas de São Luís: 1615 – A fundação da cidade sob o olhar tupinambá.
São Luís: Halley S.A, 2015, v. 2.
BANDEIRA, Iris Celeste Nascimento. (Org.) Geodiversidade do estado do Maranhão. Teresina:
CPRM, 2013.
BETHENCOURT, Francisco. O Complexo Atlântico. In: BETHENCOURT, Francisco;
CHAUDHURI, Kirti. História da Expansão Portuguesa. Navarra: Círculo de Leitores, 1998.
Vol. 2, pp. 315-342.
BETTENDORFF, João Filipe. Crônica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do
194 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Maranhão. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010. Edições do Senado Federal vol. 115
BONNICHON, Philippe e GUEDES, Max Justo. A França Equinocial: ações navais contra os
estrangeiros na Amazônia 1616-1633. Rio de Janeiro: SDGM,1975.
CARVALHO, João Renôr Ferreira de. Ação e presença dos portugueses na costa norte do Brasil no
século XVII: a Guerra do Maranhão 1614-1615. Teresina: Edufpi Ethos Editora, 2014.
CAVALCANTI FILHO, S. B. A Questão Jesuítica no Maranhão Colonial: 1622-1759. São Luís:
SIOGE, 1990.
COUTO, Jorge. A construção do Brasil: Ameríndios, portugueses e africanos, do início do povoa-
mento a finais de quinhentos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense Universitária, 2011.
ÉVREUX, Yves d’. Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614. São Paulo: Siciliano,
2002. Coleção Maranhão Sempre.
FEITOSA, Antonio Cordeiro. Condicionantes ambientais à formação do território maranhen-
se: primeira fase da colonização. Actas do XIV Colóquio Ibérico de Geografia: ‘A jangada de
pedra’ – Geografias ibero-afro-americanas. Guimarães-Pt., 2014, v.1, pp. 1420-1427. ISBN
9789729943683.
___, O Maranhão primitivo: uma tentativa de reconstituição. São Luís: Editora Augusta, 1983.
FEITOSA, Antonio Cordeiro e TROVÃO, José Ribamar. Atlas escolar do Maranhão: espaço geo-
-histórico e cultural. João Pessoa: ed. Grafset, 2006.
GAIOSO, Raimundo José de Souza. Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do
Maranhão. 3ª ed, São Luís: Instituto Geia, 2011.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sistema de coordenadas geográ-
ficas dos estados e municípios do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2014.
JOHNSON, Harold e SILVA, Maria Beatriz Nizza da. O Império Luso-Brasileiro 1500-1620.
Lisboa: Editorial Estampa, 1992.
LAGO, Antonio Bernardino Pereira do. Estatística Histórica-Geográfica da Província do Maranhão.
Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências, 1822.
LIMA, Carlos de. História do Maranhão. São Luís: Instituto Geia, 2006. 1º v. a Colônia
LISBOA, João Francisco de. Obras de João Francisco Lisboa. 4 ed, São Luís: edições AML, 2012,
volume ii.
MARIZ, Vasco e PROVENÇAL, Lucien. Os franceses no Maranhão: La Ravardière e a França
Equinocial (1612-1615). 2ª Ed. São Luís: Instituto Geia, 2011.
MARQUES, César Augusto. Dicionário Histórico-Geográfico da Província do Maranhão. 3ª ed. São
Luís: Edições AML, 2008
MEIRELES, Mário Martins. França Equinocial. São Luís: Secretaria de Cultura do MA/Civilização
Brasileira, RJ, 1982.
MENDONÇA, Marcos C. de. A Amazônia na era pombalina: correspondência do Governador e
Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado:
1751-1759. 2. Ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005. Tomo I.
MONTEIRO, Deolinda Oliveira. Jerônimo de Albuquerque: um marinheiro na conquista do
Maranhão. Revista Marítima Brasileira, Rio de Janeiro, v. 133, n, 10/12, out./dez. 2013.
MORAES, José de. História da Companhia de Jesus na extincta Provincia do Maranhão e Pará. Rio
de Janeiro: Typ. Do Comercio, de Brito e Braga, 1860. 195 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
MORENO, Diogo de Campos. Jornada do Maranhão por ordem de sua Majestade feita em 1614.
Brasília: Edições do Senado Federal, 2011, volume 161.
MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro – MEC, 1968. Organização de Max Justo Guedes.
MOURA, Alexandre de. Relatório sobre a expedição à Ilha do Maranhão em 1615. Documentos
para a História da Conquista e Colonização da Costa Leste-Oeste do Brasil. Rio de Janeiro:
Officina Typographica da Biblioteca Nacional, 1905.
NAVARRO, E. A. Método moderno de tupi antigo: a língua do Brasil dos primeiros séculos. 3ª Ed.
São Paulo: Global. 2005.
PIANZOLA, Maurice. Os papagaios amarelos: os franceses na conquista do Brasil: (século xvii). São
Luís: Alhambra, 1991.
PREFEITURA MUNICIPAL DE ICATU. Lei municipal no 350/2015. Icatu: PMI, 2015.
Disponível em https://diario.famem.org.br/570/. Acesso em 26/12/2017.
SANTOS, Humberto Gonçalves dos. Sistema brasileiro de Classificação de Solos. 3 ed., Brasília:
Embrapa, 2013
SERRÂO, Joaquim Veríssimo. Do Brasil Filipino ao Brasil de 1640. São Paulo: Cia, Editora
Nacional, 1968. Coleção Brasiliana, v. 336
STUDART FILHO, Carlos. Fundamentos Geográficos e Históricos do Estado do Maranhão e Grão-
-Pará. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1959.
TROVÃO, José Ribamar. O Processo de ocupação do território maranhense. São Luís: IMESC, 2008.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. 4ª Edição Integral. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1953. Tomo II.
VIVEIROS, Jerônimo José de. História do comércio do Maranhão 1612-1895. São Luís: Associação
Comercial do Maranhão, 1992, v. 1.
VIVEIROS, Jerônimo José de. A Rainha do Maranhão. São Luís: 1965
196 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Amazônia Atlântica: Patrimônio Natural
versus Turismo Balnear

Adrielson Furtado Almeida


Universidade Federal do Pará
(Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais)

Introdução

A Zona Costeira Brasileira possui 8.698 km de extensão voltada para o oceano Atlântico
Sul, abrigando em sua paisagem diversos ecossistemas tropicais e subtropicais, distribuídos
em 17 estados, 13 capitais e 395 municípios, em que as praias correspondem a 2% de todos
os ecossistemas costeiros brasileiros (SCHERER; SANCHES; NEGREIROS, 2009).

197 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 1: Divisão geomorfológica da Zona Costeira Amazônica Brasileira (ZCAB).


Fonte: Adaptado pelo autor a partir de Google Earth.

No litoral norte, localiza-se a Zona Costeira Amazônica Brasileira (ZCAB), que se divide
geomorfologicamente em: Litoral do Amapá; Golfão Amazônico; Litoral das Reentrâncias
do Pará-Maranhão; na Costa de Reentrâncias do Pará e Maranhão, localiza-se a costa
Atlântica do Salgado paraense, entre as baías de Marajó, a oeste (0°30`S e 48°00`W.), e a
baía de Gurupi, a leste (0°30`S e 46°00`W.), com 598 km de extensão (79.795 km²), cor-
respondendo a 6,5% da superfície do Estado (FURTADO, 2011a; REBELO-MOCHEL,
2011; SOUZA FILHO et al., 2005) (Figura 1).
O processo de ocupação das terras litorâneas da zona costeira do Estado do Pará inicia-se a
partir dos grupos de caçadores-coletores a 5.000 mil anos antes do presente (AP), denominados
no século xvi como povos Tupinambás pelos europeus (SILVEIRA; SCHAAN, 2010). Estes
aproveitaram o conhecimento local dos indígenas para viabilizar a colonização da região costeira
do Estado do Pará, através de povoações à beira-mar, tendo como base econômica o extrativis-
mo marinho, envolvendo uma extensa e diversificada cadeia produtiva (FURTADO, 2011b).
Até à metade do século xx, as cidades litorâneas da Amazônia Atlântica paraense
caracterizavam-se como pequenos povoados de pescadores artesanais (SANTANA, 2011).
Neste período, inicia-se o modelo desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitscheck
(1950), que se consolida na Ditadura Militar (1964-1985), promovendo alterações no uso
e ocupação dos territórios litorâneos paraenses, tendo como vetores a expansão rodoviária,
a urbanização e o turismo balnear (sol e praia) (ALMEIDA, 2017).
Nesta comunicação analisam-se os efeitos do embate entre a paisagem natural do lito-
ral amazônico e o turismo balnear, a partir do modelo governamental de desenvolvimento
socioeconômico, nas praias do Crispim (Marapanim), Atalaia (Salinópolis) e Ajuruteua
(Bragança), no Nordeste do Estado do Pará, Brasil (Figura 2).
198 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 2. Localização das áreas de estudo. Fonte: Elaborado pelo autor.

A Paisagem da Amazônia Atlântica

A Amazônia Atlântica denominada nesta comunicação corresponde a Zona Costeira


Amazônica Brasileira (ZCAB), situa-se na região tropical úmida da América do Sul, estende-
-se por 2.250 km, entre o Cabo Orange no Estado do Amapá (5°N, 51°W) até a Ponta do
Tubarão no Maranhão (4°S, 43°W), representando 35% do litoral brasileiro (FURTADO,
2011a; REBELO-MOCHEL, 2011).
A fisiografia da Amazônia Atlântica apresenta-se retilínea na costa do Amapá, en-
quanto o nordeste do Pará e a costa ocidental do Maranhão apresenta-se profundamente
recortada por inúmeras baías e reentrâncias, em virtude do estuário do rio Amazonas
(bacias hidrográficas do Araguaia-Tocantins e bacias costeiras do Nordeste Ocidental)
(SCHERER; SANCHES; NEGREIROS, 2009).
A zona costeira do NE paraense apresenta o trecho do litoral brasileiro menos povoado
do país, com alta radiação solar, temperatura média anual de 27°C, baixa variação térmi-
ca, elevada precipitação (2.600 mm/ano) e, alta descarga fluvial de água doce (SOUZA
FILHO et al., 2005). Sua paisagem apresenta uma planície fluvio-marinha baixa e recor-
tada por baías, composta de vários ambientes, com predominância de manguezais (8.900
km², o que representa 85% dos manguezais brasileiros), além de restingas, praias, dunas,
planícies de marés, lagoas, lagunas, estuários, ilhas, rias, deltas, pântanos salinos e doces,
floresta de várzea, floresta de terra firme, etc. (SZLAFSZTEIN, 2009) (Figura 3).

a) manguezal b) restinga

199 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

c) lagoa d) floresta de várzea


Figura 3. Ambientes da paisagem da zona costeira do NE paraense. Fonte: Adrielson F. Almeida

Os ambientes litorâneos apresentam alta energia (ação hidrodinâmica), dominados


por macromarés de flutuações semidiurnas (4 a 6 m de amplitude), com praias arenosas
do tipo expostas e transgressivas, com suave inclinação em direção ao mar, classificadas
como dissipativas; as ondas são progressivas e deslizantes (até 2 m de altura), geradas por
ventos predominantes alísios de NE (média 5 m/s); a zona de surfe é larga e desenvolvida
(média de 350 m de largura), com vários sistemas de crista e calhas paralelos à linha da
costa (MENDES et al., 2011; RANIERI; EL-ROBRINI, 2015) (Figura 4).

Figura 4. Ambientes litorâneos da praia da Marieta (Maracanã) e praia do Atalaia (Salinópolis).


Fonte: Adrielson F. Almeida

A diversidade de ambientes constitui desde a pré-história importante fonte de recursos


para grupos pesqueiros litorâneos e estuarinos, com o desenvolvimento hábitos culturais e
técnicas de manejo transmitidas a gerações posteriores, de baixo impacto sobre os ecossis-
temas costeiros (SENNA; MELLO; FURTADO, 2002). No período colonial (séc. xvii),
a inserção desta região nas políticas públicas de fomento mercantilista da Companhia de
Comércio e o Sistema de Capitanias Hereditárias, contribuíram para a ocupação humana
e as primeiras mudanças na paisagem do litoral amazônico (FURTADO, 2011b).
A partir da segunda metade do século xx, o litoral do NE paraense de domínio das
populações nativas e dos pescadores artesanais, começa a receber os reflexos da evolu-
ção social resultante da formação socioeconômica capitalista no Brasil (BECKER, 2008;
SANTANA, 2011). Em 1960, a região amazônica foi interligada por via rodoviária ao
200 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

centro-sul do país com a inauguração da rodovia Belém-Brasília (BR-010), como parte da


estratégia desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubistchek, que visava incorporar a
Amazônia na economia nacional (AREND; FONSECA, 2012).
No período de 1964-85, durante o regime militar de governo, o Estado promoveu a
modernização do país através do Projeto Nacionalista/Militarista, por meio de um sistema
de planejamento centralizado nas decisões e metas econômicas (TREVISAN, 1987). Para
a região costeira do NE do Estado do Pará, os investimentos públicos concentraram-se na
expansão de rodovias para a interligação regional, incentivo a urbanização e o desenvol-
vimento do turismo balnear, estes contribuíram para o uso e a ocupação inadequada da
região, gerando perdas e alterações na paisagem litorânea (ALMEIDA, 2017).
O Turismo Balnear na Amazônia Atlântica

Em 1966, a criação da Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR) é considerada o


marco da regulação da atividade turística no país pelo poder público, dando inicio a fase
do planejamento turístico (PINTO, 2007). O incentivo ao turismo visavam o desenvol-
vimento e crescimento econômico e, o combate à imagem de ditadura assassina, promo-
vendo uma imagem positiva do país no cenário internacional, ocultando as repressões e
torturas denunciadas nacional e internacionalmente pela imprensa e setores da sociedade
(LOHMANN; NETTO, 2008).
No Pará, em 1971 é criado a Companhia Paraense de Turismo (Lei 4.368), promoven-
do um aumento significativo da atividade turística nas áreas do litoral do Estado (PINTO,
2007). Em 1988, a Constituição Federal Brasileira em seu artigo 180 legitima o turismo
como força motriz de desenvolvimento social e econômico da União, dos Estados, dos
Municípios e do Distrito Federal, passando a ser uma atividade econômica prioritária dos
estados e municípios (ALMEIDA, 2017).
Antes da criação destes órgãos e promulgação das políticas públicas de turismo, o gover-
no do Estado do Pará promove investimentos na cidade de Salinópolis visando o aproveita-
mento dos recursos naturais para o turismo balnear. Em 1936, inaugurou-se o primeiro meio
de hospedagem financiado e administrado pelo poder público (Hotel Atlântico), sendo este
o marco inicial do segmento turístico de sol e praia no litoral paraense (BRITO, 2004). Em
1937, após a conclusão da estrada Capanema-Salinópolis (PA-124), o acesso ao município
deixou de ser exclusivamente marítimo, passando a atrair os primeiros veranistas em busca de
descanso e tratamentos de saúde relacionados ao banho de mar (FRANÇA, 2008).
Em 1966, a existência de uma nascente de água mineral (fonte do Caranã) moti-
vou a nomeação do município de Salinópolis em Estância Hidromineral (Decreto-Lei
3.786/66) pelo governo Federal; o governo do Estado passou a investir em infraestruturas
(transporte, energia, saneamento e lazer) e incentivo ao turismo (ADRIÃO, 2006).
201 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Em 1974, após asfaltamento da rodovia PA-124, as viagens rodoviárias passaram a
ser realizadas por linha regular de ônibus, aumentando o fluxo de veranista no municí-
pio (BRITO, 2004). O investimento público em infraestrutura rodoviária fazia parte do
Programa de Integração Nacional (PIN), que visavam à conexão rodoviária intrarregional
no país. Enquanto os investimentos em infraestrutura visavam à urbanização, estabelecendo
uma nova estrutura sócio-espacial das cidades.
Paisagem Natural versus Turismo Balnear

A partir da década de 1960, o desenvolvimento urbano das principais cidades litorâneas


brasileiras ocorreu marcado pelos investimentos em políticas públicas desenvolvimentistas,
através da implantação de rodovias, circulação de capital e o desenvolvimento de novos
mercados, como atividade turística (ALMEIDA, 2017).
O turismo balnear acompanhou o processo de urbanização nas zonas costeiras sem o
planejamento adequado, intensificando o processo de uso e ocupação desordenado (infraestru-
turas de apoio, meios de hospedagem, bares, restaurantes e residências), desqualificando a
oferta e degradando a paisagem da zona costeira (SCHERER, 2013).
A facilidade de acesso terrestre aos ambientes litorâneos aumenta a pressão do turismo bal-
near sobre os ecossistemas costeiros. A exemplo da zona costeira do NE paraense, que associa-
do a urbanização (especulação imobiliária) provocaram mudanças socioambientais na ilha do
Atalaia (Salinópolis) a partir de 1973 com a construção PA-444 (RANIERI; EL-ROBRINI,
2015). No entanto, a praia do Atalaia tornou-se o modelo e o destino turístico referência no
segmento de sol e mar. Sendo copiado pelo poder público e privado na praia de Ajuruteua
(Bragança), após a construção da PA-458 (1987) e, na praia do Crispim (Marapanim), após a
construção da PA-318 (1991) (BASTOS et al., 2011; MONTEIRO et al., 2009).
Na atualidade, a praia do Atalaia é considerada a praia arenosa com maior afluência
turística do Estado, recebendo cerca de 50 mil carros em suas areias e, 280 mil veranistas
durante as férias escolares de julho (ALMEIDA, 2017) (Figura 5).
202 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 5. Afluência turística na praia do Atalaia. Fonte: Adrielson F. Almeida

Todos estes investimentos públicos e privados visando o desenvolvimento socioeconômico


da região a partir de 1960, não alcançaram os objetivos esperados pelos seus executores, com-
provados pelo Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), que em 2010 regis-
trou índice médio de desenvolvimento para os municípios que abrigam as três praias citadas
(Marapanim (0,609), Salinópolis (0,647), Bragança (0,600)). Demonstrando a necessidade de
investimentos em políticas públicas nas áreas de educação, saúde e renda (ALMEIDA, 2017).
Almeida (2017), ao analisar a Matriz PEIR (Pressão-Estado-Impacto-Resposta), a partir
dos princípios do método GEO Cidades (PNUMA, 2004), identificou os principais im-
pactos da urbanização sobre os ecossistemas costeiros, referente a disponibilidade de água
doce nos aquíferos subterrâneos, qualidade do solo, cobertura vegetal e perda de espaços
terrestres. Os investimentos pretéritos para o desenvolvimento urbano além de afetarem o
estado do meio ambiente, desencadearam vários impactos sobre os aspectos socioeconômicos,
que exigem na atualidade respostas por parte das políticas públicas.
Os investimentos públicos em turismo balnear nos últimos anos também foram ava-
liados por Almeida (2017), que ao analisar os dados qualitativos baseados nos princípios
do Índice de Competitividade do Turismo (ICT/MTUR, 2014), a partir da noção de efi-
ciência baseada nos recursos presentes nas três praias, constatou que a competitividade
está comprometida pela ausência de recursos que as qualificam, relacionados aos serviços e
equipamento turístico, aspectos ambientais, acesso e marketing. Assim os impactos negati-
vos do turismo desordenado se sobrepõem aos impactos positivos, refletindo negativamente
sobre os demais aspectos numa relação sistêmica.
Os impactos ambientais resultantes do embate entre a paisagem natural versus o tu-
rismo balnear, que no passado afetaram as populações nativas e, no presente constituem
os principais problemas socioambientais e, que no futuro podem se intensificar caso não
sejam mitigados, estão mencionados na figura 6.

203 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 6. Os efeitos ambientais negativos provocados pelo turismo balnear na Amazônia Atlântica.
Fonte: ALMEIDA, 2017.

O turismo balnear encontrou na costa Atlântica do litoral paraense o produto ideal para
a sua efetivação. No entanto, a deficiência da infraestrutura básica, ausência de planejamento
da atividade turística, somado a grande afluência de veranistas, vem comprometendo a pai-
sagem litorânea nas últimas décadas, gerando poluição e o esgotamento dos recursos naturais
(QUARESMA; CAMPOS, 2006; FURTADO, 2011a; GREGÓRIO; MENDES; BUSMAN, 2011).
Os resíduos sólidos deixados pelos veranistas na faixa praial, e não coletados pelo serviço
de limpeza pública, acabam tornando-se lixo marinho, depositando-se nas praias vizinhas
ao longo da costa paraense. A praia da Marieta (Maracanã) apesar de constituir uma re-
serva extrativista marinha, de baixo fluxo de visitantes, recebe da deriva litorânea uma
grande quantidade de plástico e isopor, que se acumulam nas dunas frontais, provenientes
principalmente das praias balneares de Salinópolis (Figura 7).

Figura 7. Resíduos sólidos nas dunas frontais da praia da Marieta. Fonte: Adrielson F. Almeida

A artificialização da paisagem litorânea pela urbanização e a implementação de infra-


estrutura de apoio à atividade turística provocam a perda do equilíbrio dinâmico da praia.
Na busca pelo reequilíbrio, nem sempre é favorável a continuidade da ocupação humana
no ambiente de pós-praia, por serem áreas geologicamente desfavoráveis à ocupação e
edificação, provocando acidentes e desastres por erosão costeira (ALMEIDA, 2017).
A praia de Ajuruteua (Bragança) vem sofrendo nos últimos anos com a perda de espa-
ço terrestre por erosão costeira, provocado pela ocupação desordenada dos ambientes de
praia e pós-praia, que contribuíram para acelerar os processos erosivos atuantes no litoral.
O mesmo vem ocorrendo nas praias do Crispim e do Atalaia (Figura 8).
204 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

a) praia de Ajuruteua b) praia de Ajuruteua


c) praia do Crispim d) praia do Atalaia
Figura 8. Mudança de perfil de praia por avanço do mar e erosão costeira. Fonte: Adrielson F. Almeida

Recomenda-se que os investimentos futuros em expansão rodoviária, urbanização e


turismo balnear devam considerar a fragilidade deste ambiente e as mudanças na posi-
ção do litoral (erosão ou acreção) em resposta às variações no nível do mar, balanço de
sedimentos e condições hidrodinâmicas. Além de considerar os ordenamentos jurídicos
ambientais vigentes sobre preservação e conservação dos ecossistemas costeiros.
O uso e ocupação das outras praias arenosas na Amazônia Atlântica, que possuem
qualquer tipo de afluência turística, devem ser fiscalizados e controlados pelos órgãos am-
bientais competentes, em suas diferentes esferas. A escolha do turismo como atividade eco-
nômica deve ser planejada considerando a sustentabilidade dos aspectos socioambientais e
econômicos, além da implantação da infraestrutura adequada que minimize os impactos
gerados pela visitação turística.
Torna-se imprescindível a atuação coletiva da comunidade local no processo de plane-
jamento, execução e avaliação das políticas públicas direcionadas a solução dos problemas
socioambientais e econômicos existentes na atualidade. Estes devem organizar-se, informar-
-se e priorizar suas demandas coletivas e individuais, evitando soluções imediatistas em
detrimento das assertivas, considerando os estudos técnicos sobre a realidade local e a
legislação ambiental, evitando o mau direcionamento das políticas públicas e o desrespeito 205 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

a paisagem natural da Amazônia Atlântica.

Considerações Finais

Nesta comunicação verificou-se que a paisagem natural da Amazônia Atlântica é al-


tamente dinâmica, com elevada biodiversidade e interação biológica. No entanto, seus
ecossistemas são variados, frágeis, complexos e vulneráveis as modificações ambientais.
As potencialidades da paisagem litorânea para o banho de sol e mar motivou o poder
público e o setor privado a obter divisas a partir do turismo balnear. Desconsiderando a
fragilidade ambiental do principal atrativo turístico da região, em detrimento aos benefícios
econômicos obtidos a partir da exploração da atividade turística.
O ambiente de praia e pós-praia foram explorados desordenadamente, sem prover in-
fraestrutura adequada aos visitantes e aos moradores locais (permanentes e temporários), a
fim de evitar os problemas atuais identificados nas praias do Crispim, Atalaia e Ajuruteua,
referentes à redução da disponibilidade de água (uso excessivo por poços particulares e,
ausência de rede pública de abastecimento), degradação do solo (resíduos sólidos e líqui-
dos), contaminação do lençol freático (dejetos humanos e água servida) e, perda de espaços
terrestres por mudança de perfil de praia (erosão costeira e avanço do mar).
Nos últimos anos, o turismo de sol e mar vem se proliferando em outras praias areno-
sas na Amazônia Atlântica, copiando o mesmo modelo utilizado pelas praias pioneiras no
turismo balnear, desconsiderando a necessidade do planejamento turístico, implantação
de infraestrutura adequada, serviços e equipamentos turísticos, cumprimento da legislação
ambiental vigente, políticas públicas direcionadas, gestão adequada dos atrativos turísticos,
ordenamento, controle e fiscalização do uso e ocupação das APP’s.
Neste contexto, esta comunicação reforça o alerta para estas áreas balneares na
Amazônia Atlântica, que possuem afluência turística em diferentes níveis quantitativos, a
fim de evitar os prejuízos socioeconômicos e o esgotamento dos recursos naturais resultantes
do embate entre a paisagem natural e o turismo balnear.

Agradecimentos

O autor agradece à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior


(CAPES) pela concessão da bolsa de doutorado e, da bolsa de doutorado Sanduíche no
exterior (CEGOT/Universidade Coimbra, PT).
206 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Referências

ALMEIDA, A.F. Os efeitos das políticas públicas de desenvolvimento socioeconômico na zona cos-
teira do Nordeste paraense: expansão rodoviária, urbanização e atividade turística. 115f. Tese
(Doutorado). Instituto de Geociências, Universidade Federal do Pará, Belém, 2017.
ADRIÃO, D.G.S. Pescadores dos sonhos: um olhar a cerca da mudança nas relações de trabalho e
na organização social entre as famílias dos pescadores diante do turismo balnear em Salinópolis,
Pa. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Sér. Ciênc. Hum., v. 1, n. 2, p. 11-21, 2006.
AREND, M.; FONSECA, P.C.D. Brasil (1955-2005): 25 anos de catching up, 25 anos de falling
behind. Revista de Economia Política, v. 32, n. 1, p. 33-54, 2012.
BASTOS, M.N.C.; SENNA, C.; NETO, S.V.C. Comunidades vegetais em paisagens litorâneas
do estado do Pará: as restingas do Crispim e Algodoal. In: FURTADO, L.F.G.; QUARESMA,
H.D.A.B. (Org.). Gente e ambiente no mundo da pesca artesanal. Belém: Museu Paraense
Emílio Goeldi, 2002. p. 239-258.
BASTOS, M.N.C.; SANTOS, J.U.M.; AMARAL, D.D.; COSTA NETO, S.V. Alterações am-
bientais de origem natural e antrópica na vegetação litorânea do nordeste do Pará. In: PROST,
M.T.R.C.; MENDES, A. (Org.). Ecossistemas costeiros: impactos e gestão ambiental. Belém:
MPEG, 2011. 220p.
BECKER, K.B. Um futuro para Amazônia. São Paulo: Oficina de Textos, 2008. 150p. (Série in-
ventando o futuro).
BRITO, F.M.O. Salinópolis-PA: (re) organização sócio-espacial de um lugar Atlântico-Amazônico.
121f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004.
FRANÇA, D.L.S. Turismo e dinâmica demográfica: reflexos da atividade turística no comportamento re-
produtivo da mulher no município de Salinópolis, PA. 198f. Dissertação (Mestrado em Geografia)
– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal do Pará, Belém, 2008.
FURTADO, L.F.G. Zona costeira amazônica: um espaço de reflexões teóricas e práticas sociais.
In: MENDES, A.C.; PROST, M.T.; CASTRO, E. (Org.) Ecossistemas amazônicos: dinâmicas,
impactos e valorização dos recursos naturais. Belém: MPEG, 2011a. 436p.
______. Ocupação humana do litoral amazônico. In: PROST, M.T.R.C.; MENDES, A. Ecossistemas
costeiros: impactos e gestão ambiental. Belém: MPEG, 2011b. 220p.
GREGÓRIO, A.M.S.; MENDES, A.C.; BUSMAN, D.V. Erosão na praia do Atalaia – Salinópolis/
PA. In: MENDES, A.C; PROST, M.T; CASTRO, E. (Org.) Ecossistemas amazônicos: dinâmi-
cas, impactos e valorização dos recursos naturais. Belém: MPEG, 2011. 436p.
LOHMANN, G.; PANOSSO NETTO, A. Teoria do turismo: conceitos, modelos e sistemas. São
Paulo: Aleph, 2008. 486p.
MENDES, A.C.; SILVA, M.S.; SANTOS, V.F. Análise do meio físico para gestão ambiental das ilhas
de Algodoal e Atalaia (NE do Pará). In: PROST, M.T.R.C.; MENDES, A. (Org.) Ecossistemas
Costeiros: Impactos e Gestão Ambiental. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2011.
MONTEIRO, M.C.; PEREIRA, L.C.C.; GUIMARÃES, D.O.; COSTA, R.M. Ocupação terri-
torial e variações morfológicas em uma praia de macromaré do litoral amazônico, Ajuruteua
– PA, Brasil. Revista da Gestão Costeira Integrada, v. 9, n. 2, p. 91-99, 2009. 207 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

MTUR. MINISTÉRIO DO TURISMO. Índice de competitividade do turismo nacional: destinos


indutores do desenvolvimento turístico regional: relatório Brasil 2013. Ministério do Turismo,
Brasília, Brasil, 2014.
PINTO, P.M. Políticas de turismo e sustentabilidade em comunidades tradicionais: perspectivas
conceituais. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 2, n. 1, p. 11-22, 2007.
PNUMA. PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE. Metodologia
para elaboração de relatório GEO Cidades: manual de aplicação. v. 2. Programa das Nações
Unidas para o Meio Ambiente, Rio de Janeiro, Brasil. 2004.
QUARESMA, H.D.A.B.; CAMPOS, R.I.R. Turismo como instrumento de ação coletiva em áreas
pesqueiras do litoral da Amazônia. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Sér. Ciênc. Hum., v. 1, n. 2,
p. 139-147, 2006.
REBELO-MOCHEL, F. Manguezais amazônicos: status para a conservação e a sustentabilida-
de na zona costeira maranhense. In: MARTINS, M.B.; OLIVEIRA, T.G. (Org.). Amazônia
Maranhense: diversidade e conservação. Belém: MPEG, 2011.328p.
RANIERI, L.A; EL-ROBRINI, M. Evolução da linha de costa de Salinópolis, nordeste do Pará,
Brasil. Pesquisas em Geociências, v. 42, n. 3, p. 207-226, 2015.
SANTANA, G. Formas organizativas e estratégias de vida no litoral paraense. In: PROST,
M.T.R.C.; MENDES, A. (Org.). Ecossistemas costeiros: impactos e gestão ambiental. Belém:
MPEG, 2011. 220p.
SCHERER, M. Gestão de praias no Brasil: subsídios para uma reflexão. Revista da Gestão Costeira
Integrada, v. 13, n. 1, p.1-11, 2013.
SCHERER, M.; SANCHES, M.; NEGREIROS, D.H. Gestão das zonas costeiras e as políticas públi-
cas no Brasil: um diagnóstico. [S.l.]: Rede Iberoamericana de Manejo Costeiro (Brasil), Agencia
Brasileira de Gerenciamento Costeiro, 2009. 37p.
SENNA, C.; MELLO, C.F.; FURTADO, L.F.G. Impactos naturais e antrópicos em manguezais do
litoral nordeste do estado do Pará. In: FURTADO, L.F.G.; QUARESMA, H.D.A.B. (Org.).
Gente e ambiente no mundo da pesca artesanal. Belém: MPEG, 2002. 258p.
SILVEIRA, M.I.; SCHAAN, D.P. A vida nos manguezais: a ocupação humana da costa Atlântica
Amazônica durante o Holoceno. In: PEREIRA, E. GUAPINDAIA, V. (Org.). Arqueologia
Amazônia 1. Belém: MPEG, IPHAN, SECULT, 2010. 2 v.
SOUZA FILHO, P.W.M.; SALES, M.E.C.; PROST, M.T.R.C.; COSTA, F.R.; SOUZA. F.F.M.O.
A zona costeira Amazônica: o cenário regional e os indicadores bibliométricos em C&T. In:
SOUSA FILHO, P.W.M. et al (Org.). Bibliografia da zona costeira Amazônica. Belém: MPEG,
UFPA, PETROBRAS, 2005. 401p.
SZLAFSZTEIN, C.F. Indefinições e obstáculos no gerenciamento da zona costeira do Estado do
Pará, Brasil. Revista da Gestão Costeira Integrada, v. 9, n. 2, p. 47-58, 2009.
TREVISAN, L. O pensamento militar brasileiro. 2. ed. Ed. Global, 1987. 94p.
208 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Turismo de Base Comunitária: Vivências dos
Discentes do IFCE no Território Cearense

Conceição Malveira Diógenes


Instituto Federal do Ceará, Brasil / Universidade de Coimbra, Portugal
Pedro de Alcântara Bittencourt César
Universidade de Caxias do Sul, Brasil

Introdução

O turismo, enquanto fenómeno social, possibilita a manifestação de expressões, de


desejos e interesses dos viajantes. Enquanto atividade econômica, observa-se o grande im-
pulso tomado pelo setor depois das grandes guerras e a partir dos avanços tecnológicos.
A sociedade, aproveitando as novas formas de uso do tempo de trabalho e de lazer, a
maior mobilidade espacial e o maior acesso as informações, passou a construir uma ima-
gem das viagens que, segundo Santos (2014) é como uma amalgamada e fictícia ideia de
momento de livre arbítrio.
Inicialmente, o fluxo estava concentrando em países desenvolvidos e com uma infra-
estrutura básica e turística que atendia a demanda dos visitantes. Com o passar dos anos
ocorreu uma ampliação significativa da oferta de destinos turísticos, bem como um au-
209 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
mento do fluxo. Em 2016, segundo dados da Organização Mundial de Turismo (OMT),
o turismo internacional representa 7% das exportações de bens e serviços, tendo registrado
um aumento superior ao comércio mundial.
Apesar da diversificação da oferta de destinos, observa-se ainda uma grande concen-
tração de fluxos em áreas de preservação natural e cultural. Essa concentração do fluxo
turístico em cidades históricas é associada à gentrificação em cidades como Lisboa, Veneza
e Barcelona. Em Barcelona, a população residente, que por vezes é inferior a de visitantes,
parece perceber os custos de uma “indústria” que apesar de representar 15% do Produto
Interno Bruto (PIB) da cidade, traz com a massificação a desvalorização da vida cotidiana
da cidade. Há pouco mais de 25 anos, Barcelona abria-se para o mundo, celebrando jogos
olímpicos que ficaram para a história dos jogos e do turismo. Referência de planeamento
de um evento que deixa heranças positivas para a cidade em longo prazo, tais como, a
recuperação de áreas degradadas, a construção de parques e a ressignificação do mar, são
exemplos de temáticas estudadas quando se fala do destino. Nesse curto espaço de tempo,
o turismo que, segundo estudos de Moragas e Botelha (2002), havia sido evidenciado
através dos jogos que foram um instrumento significativo de marketing e de consolidação
do destino, passou a ser encarado como um problema.
As questões evidenciadas lançam luz sobre as estratégias de desenvolvimento da ati-
vidade e principalmente sobre para quem o turismo traz benefícios. Países como França,
Estados Unidos, Espanha e China, registram os maiores fluxos de chegadas internacionais,
e esses fluxos ainda devem crescer.
Estudos do OMT preveem um crescimento entre 3,5% e 4,5%, aumentando a pressão
em destinos consolidados.
O Brasil vive atualmente um cenário de crise económica e política, após a realização
de uma Copa do Mundo (2014) e de uma Olimpíada Mundial (2016), o país enfrenta o
desemprego e o déficit nas contas públicas.
O desenvolvimento do turismo no Brasil e, mais especificamente, no nordeste brasilei-
ro, ocorreu sob a luz dos projetos turísticos e hoteleiros implantados nos modelos de resort
e village. Não faltam exemplos de empreendimentos de lazer de grande porte instalados
em áreas litorâneas e que buscavam maximizar a permanência dos hóspedes em suas depen-
dências através da criação de estruturas de entretimento, lazer e alimentação. A criação
dessas estruturas aumenta o tempo de permanência do hóspede, mas, a priori, afasta-o
das localidades em que os empreendimentos estão inseridos. Os impactos da atividade,
portanto, concentravam-se nos empreendimentos, ilhas de isolamento e desenvolvimento.
Em destinos turísticos que seguem a lógica do desenvolvimento através desses modelos
é comum observarmos a criação de infraestruturas públicas para atender as demandas dos
empreendimentos, de vias de acesso, fornecimento de água e energia em áreas onde an-
210 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

teriormente não existiam. Abrem-se as vias de desenvolvimento para que o turismo possa
chegar a pequenas localidades, sempre com a promessa de geração de empregos e renda
para as populações.
Seguindo padrões de hoteleiros e de desenvolvimento turísticos internacionais padro-
nizados (Cruz, 2001), onde as prioridades eram os desejos dos turistas e, obviamente, dos
investidores, não são estabelecidos vínculos entre as comunidades locais e os visitantes. As
trocas culturais restringiam-se aos espaços do empreendimento, assim como aos benefícios
gerados. As pequenas localidades onde a população não dispõe desses serviços, com raras
exceções, tinham as condições para empreender, mão de obra qualificada para atuar ou
mesmo condição de fornecer produtos aos empreendimentos.
Contribuindo com as ideias apresentadas, Coriolano e Vasconcelos (2008) defendem
que nessa fase as comunidades eram ignoradas e excluídas do processo de planeamento e
gestão da atividade. Os autores criaram uma linha de evolução histórica para a atividade
turística no Ceará, dividindo esse processo em três fases distintas.
A primeira etapa começou no final da década de 1960 consolidando-se no ano de 1980.
Esta etapa pode ser caracterizada como a “fase da descoberta” de verdadeiros “paraísos li-
torâneos” pelos veranistas oriundos basicamente das capitais dos estados, das metrópoles e
viajantes do movimento hippie. Consolidava-se nesses espaços o que Diegues denominou
de o mito moderno da natureza intocada, alterando radicalmente a relação homem-natureza.
Em espaços onde existia a pesca tradicional para subsistência, o trabalho das marisqueiras,
as rendeiras e o plantio de alimentos, instala-se uma atividade com características típicas da
pós-modernidade, alterando as dinâmicas e lógicas locais. Ainda na primeira fase, ocorreu a
construção de segundas residências (casas para finais de semana e gozo de férias) ao longo
do litoral e foi uma das primeiras formas de ocupação de áreas litorâneas, por populações
não autóctones. Cria-se ainda o primeiro contraste na paisagem com mansões sendo
construídas ao lado de cabanas ou no lugar de pequenas casas rústicas de pescadores.
A segunda etapa teve início no ano de 1990, consolidando-se nos primórdios dos
anos 2000. A atividade turística gerou alguns empregos diretos, vinculados aos equipa-
mentos turísticos como hotéis, pousadas, agências de viagens (operadoras), etc. Nesta fase.
O poder público passou a atuar de forma direta no turismo e ser tratado de forma diferen-
ciada, foi criada a Secretaria Estadual do Turismo (1995) e muitos municípios montaram
órgãos locais para gerir a atividade. A terceira etapa passou a ter uma forte identificação
com o lugar está na essência do surgimento da etapa turística que é caracterizada pelo forte
interesse desses turistas em adquirir ou construir residência no local e prestar também ser-
viços turísticos. Era bastante incipiente até o final da década de 1990, mas intensificou-se
e tornou-se uma realidade nos últimos 10 anos, podendo ser observada ao longo de todo
o litoral leste e oeste do Ceará.
211 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Neste cenário surge o turismo de base comunitária que apresenta-se como uma alter-
nativa ao modelo tradicional de desenvolvimento da atividade, podendo ser desenvolvido
em áreas pouco exploradas pelo turismo de massas ou mesmo como iniciativas em destinos
já massificados. O interesse por esta temática surgiu ao longo do percurso académico, mas
principalmente no planeamento de aplicação da disciplina de Teoria Geral do Turismo,
ministrada no Instituto Federal de Educação do Ceará – Campus Aracati, entre os anos
de 2010 e 2016. A busca por outros modelos possíveis de desenvolvimento do turismo
para a realidade cearense, para discussão com os alunos do curso tecnológico em hote-
laria e o curso técnico em guia, acabou por trazer exemplos de vivências já praticas em
nosso território. Alguns dos espaços estudados não utilizam a terminologia turismo de
base comunitária (TBC), no entanto seguem os princípios defendidos pelo TBC e forma
encampados esse trabalho.
Na primeira parte deste estudo, realizamos um levantamento do processo de desen-
volvimento do turismo no estado do Ceará e tentamos entender o processo de massifi-
cação desses destinos. Na segunda parte, buscou-se entendimento sobre como o turismo
de base comunitária pode se apresentar como uma alternativa ao modelo massificado.
Na terceira parte, apresentamos as iniciativas vivenciadas pelos alunos no âmbito da dis-
ciplina de Teoria Geral do Turismo e apresentamos uma conclusão preliminar do estudo.
Como um estudo ainda preliminar pretendemos um aprofundamento da pesquisa
para avaliarmos a perceção dos alunos sobre as práticas do turismo comunitário e sua
implicação nas localidades. Espera-se ser oportuno a realização de um levantamento junto
aos turistas que vivenciam o TBC quanto à sua avaliação do destino e das praticas.

1. O Desenvolvimento do Turismo no Ceará e a Massificação


dos Destinos

O Estado do Ceará1 está situado na Região Nordeste do Brasil, possui uma área
de 148 mil quilómetros quadrados e uma faixa litorânea de 547 km, com clima tropical
e ameno, ventilado, apresenta temperaturas numa amplitude entre 25 e 32ºC, forte
insolação e águas marítimas mornas durante todo o ano. Possui serras de temperatura
úmida, regiões que respiram cultura e um sertão repleto de mistérios. Esse cenário aliado
à hospitalidade própria do povo cearense compõe o destino turístico do Ceará.
Inicialmente o Ceará, assim como os demais destinos nordestinos, investiu no seg-
mento de sol e praia, vinculado ao lazer e entretenimento. O sol e a escassez de chuva que
durante séculos foram os grandes vilões do desenvolvimento cearense passam a ser vistos
em uma outra uma perspectiva, sendo utilizados como estratégia de marketing.
212 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Os dados existentes quanto ao fluxo de turistas no Ceará demonstram o crescimento con-


tínuo pelo qual a atividade vem passando nas últimas décadas. Segundo informações divul-
gadas na publicação, Ceará Turístico – cenários referenciais de gestão caminhos percorridos
e a percorrer, observou-se a ocorrência de um crescimento expressivo do fluxo turístico via
Fortaleza, entre os anos de 1995 a 2005, quando à taxa média de crescimento do fluxo é de
11,7% ao ano, aumentando consequentemente a oferta hoteleira (CEARÁ/SETUR, 2016).

1
Dados do IPECE referentes ao ano de 2006. Disponível em: <http://www.ipece.ce.gov.br>. Acesso em:
26 nov. 2007.
Figura 1. Localização do Ceará. Fonte: IBGE, 2017

Os principais mercados emissores, de acordo com a SETUR, para o Estado no Brasil


eram: São Paulo com 23,8% da demanda; Rio de Janeiro e Pernambuco, ambos com 213 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
9,89%; Bahia com 6,1%; Rio Grande do Norte com 6,09%; Pará 5,6%; e Distrito Federal
com 5,3%. Já no turismo internacional, Portugal ocupa a primeira colocação com 23%,
Itália ocupa a segunda posição com 14,5%, seguido pela França, Argentina, Estados
Unidos e Holanda, em 2005.
A necessidade de investimentos foi identificada e surgiu, em 1998, o então Programa
de Ação para o Desenvolvimento do Turismo no Ceará (PRODETUR/CE), uma parceria
entre o Governo Federal, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Banco do
Nordeste (BNB) e os Governos Estaduais. Em sua primeira fase2, o programa inaugurou o
2
Os municípios beneficiados na primeira fase do Programa de Desenvolvimento do Turismo são: Fortaleza,
Caucaia, São Gonçalo do Amarante, Paracuru, Paraipaba, Itapipoca e Trairi.
Aeroporto Internacional Pinto Martins e, posteriormente, concluiu a rodovia estruturante
que liga Fortaleza a Itapipoca e o saneamento de onze sedes municipais e localidades tu-
rísticas. Alguns exemplos são: Paracuru, São Gonçalo do Amarante, Paraipaba, Itapipoca,
Baleia, Taíba, Cumbuco, Icaraí dentre outras do litoral oeste.
O programa investiu ainda 5,39 milhões de dólares no componente de meio am-
biente e 2,68 milhões no desenvolvimento institucional da própria Secretaria Estadual do
Turismo e órgãos municipais do turismo integrantes da primeira fase do PRODETUR/
/CE, mas beneficiava apenas o litoral Oeste do Ceará.
O litoral leste, no mesmo período, também foi beneficiado por diversas ações de estru-
turação, duplicação de rodovias, implantação de saneamento básico, urbanização de orlas,
tais como, a de Canoa Quebrada e algumas capacitações.
O PRODETUR/CE II apontava para outros objetivos, ampliou o número de muni-
cípios beneficiados e, além dos integrantes da primeira fase, foram incluídos municípios
impactados pelas ações da primeira fase, Aquiraz, Camocim e Jijoca de Jericoacoara.
O programa teve como objetivos: dar sustentabilidade ao turismo no Pólo Ceará Costa
do Sol; melhorar a capacidade de gestão do turismo dos governos municipais; apoiar in-
vestimentos e ações geradoras de renda nos municípios; e assegurar que os investimentos
fossem expandidos para suas populações fixas (CEARÁ/PRODETUR II, 2005).
A segunda fase o PRODETUR surgiu, para seus integrantes, como uma alternativa
para a escassez de recursos para investimentos na área do turismo nos estados do nordeste
brasileiros. Seus integrantes passaram a ter a possibilidade de executar obras e desenvolver
ações que busquem a sustentabilidade da atividade turística.
Em 2011, a Secretaria de Turismo contratou a realização de uma pesquisa para identi-
ficar o perfil dos turistas que visitaram o Ceará e traçar estratégias para o desenvolvimento
do turismo. O estudo foi intitulado “Estudo da Demanda Turística do Ceará”.
O governo do estado do Ceará, através de suas políticas, busca interiorizar o turismo
elevar o desenvolvimento da atividade como uma alternativa para regiões pouco desen-
214 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

volvidas. A construção dos aeroportos regionais foi a ação mais evidente dessas políticas,
tendo sido construído um no litoral leste, em Aracati (Canoa Quebrada), e um no litoral
oeste, em Cruz (Jijoca de Jericoacoara), ambos em áreas identificadas pelo Ministério do
Turismo como destinos indutores do desenvolvimento regional. O aeroporto regional de
Aracati ainda não entrou em operação. O aeroporto de Jeircoacoara iniciou suas atividades
no dia 24 de junho de 2017, com um voo inaugural da companhia área GOL. A capa-
cidade do terminal é para receber 600 mil turistas e prevê uma ampliação da demanda
turística em 7%. O destino em questão é um Parque Nacional e, segundo o órgão gestor
de turismo, receberá investimentos para o fornecimento de água e esgotamento sanitário
para o controle de entrada de visitantes e para coleta de lixo.
Atualmente, no Brasil, o grande fluxo turístico é doméstico. Fatores como a localização
geográfica do país e a dimensão territorial são citados como justificativa para o pequeno
fluxo internacional. O Ceará, apesar de estar localizado na Região Nordeste, mais próxima
da África, Europa e América Central e do Norte, segue a mesma tendência do restante do
país, sendo dependente do fluxo doméstico, conforme demonstrado na Figura 2.

Figura 2. Fluxo de turistas no Ceará via Fortaleza. Fonte: Secretaria de Turismo do Estado do Ceará, 2015.

Em 2015 o Ceará recebeu 3.343.815 turistas, sendo os principais mercados emissores


domésticos o Rio Grande do Norte, Bahia e Distrito Federal, e no mercado internacional,
Portugal, Itália e França despontam como os países que mais enviam turistas para o estado,
conforme demonstra a figura 3.

215 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 3. Principais mercados emissores de turistas para o Ceará. Fonte: Secretaria de Turismo do Estado do Ceará, 2015.
No mercado internacional ocorreu uma pequena mudança – a Itália superou Portugal e
atualmente é o destino que mais envia turistas para o Ceará. A França manteve-se como terceiro
mercado que mais consome o produto Ceará, seguindo-se a Alemanha, Argentina e Suíça.
A atual condição pós-moderna, apresentada por Harvey (2005: 264) onde “As ima-
gens de lugares e espaços se torna tão aberta à procura e ao uso efémero quanto qualquer
outra coisa”, faz-nos refletir sobre a massificação dos destinos turísticos.
O significativo crescimento do fluxo turístico do Ceará acarreta problemas semelhantes
aos vivenciados em outros destinos. A concertação do fluxo, a fragmentação do espaço
entre espaços do turismo e espaços de vivencias cotidianas das populações residentes, a es-
peculação imobiliária e o aumento de custo de vida em áreas de maior circulação, acabam
por evidenciar os impactos negativos da atividade e chamam atenção para a necessidade de
repensarmos a atividade e o modo como ela se desenvolve.

2. As Fases do Consumo, as Mudanças de Paradigmas e o Turismo de


Base Comunitária

Vivemos na sociedade do consumo e o turismo é uma das formas contemporâneas de


consumir. O aumento do tempo livre e os avanços tecnológicos estimularam o surgimento de
fluxos significativos de pessoas e de capitais. Lipovetsky (2017) apresenta o consumo em três
fases distintas em seu modo de comprar. Essas fases, no entanto, não ocorrem da mesma forma
e ao mesmo tempo em todos os lugares, sendo possível observar características da primeira e
da segunda fase ainda nos dias atuais de acordo com o desenvolvimento do espaço observado.
A primeira fase inicia-se, segundo o autor, no ano de 1880, tendo se estendido até fim da
Segunda Guerra Mundial. Nasce o mercado de massa, há uma expansão da produção seguindo
princípios da organização científica do trabalho, criam-se as marcas e há uma democratização
do desejo e o “consumo-distração” de que o turismo tanto necessita para se desenvolver.
A segunda fase começa por volta do ano de 1950, ou seja, está associada aos novos va-
216 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

lores sociais definidos na restruturação do mundo ocidental pós Segunda Grande Guerra,
prologando-se apenas até o final dos anos de 1970. Lipovetsky (2017) acredita que é neste
momento que se chega ao modelo puro da sociedade do consumo de massa ou sociedade
da abundância, onde há um alargamento do poder de compra, cresce o modo de vida que
busca o lazer e as férias como forma de realização. Imperam, nesse momento, os princípios
da sedução efémera, inicia-se a segmentação de mercado e há a criação de necessidades ar-
tificiais. O princípio do trabalho-sacrifício é gradualmente substituído pelo desejo crônico.
As novas tecnologias, o avanço dos meios de comunicação e o encurtamento das distân-
cias, acabam por finalmente popularizar as viagens, fazendo com que um maior número
de viajantes queira ostentar o status social de viajante. Nessa fase, surgem novos destinos
turísticos, fora da centralidade europeia. Os destinos exóticos e ligados ao turismo étnico
ganham força em países periféricos.
A última fase, segundo Lipovetsky (2017) inicia-se a partir do final do ano de 1970
e estende-se até os dias atuais. Nesse momento o consumo deixa de estar relacionado
ao status e passa a ser interpretado como uma lógica de diferenciação social. Existe uma
pressão contínua por reenchimento de valores. As referências de conforto, lazer, modelo
de consumo do tipo individualista, mas mantem o potencial de prestígio passaram. A era
do “hiperconsumo” requer objetos para “viver”, mais do que para exibir, cria-se o valor
experimental e esse é o cenário ideal para o turismo cultural, o turismo criativo e o turismo
de experiências, uma vez que a curiosidade torna-se “uma paixão das massas”. Os artigos
comprados, assim como as viagens realizadas, criam uma identidade individual, revelando
personalidades a partir das compras.
Seria essa nova fase do consumo o cenário ideal para o surgimento de novos modelos para
o desenvolvimento sustentável do turismo? Estaria o consumidor despertando para o con-
ceito de consumo sustentável e para os princípios defendidos pela Conferência das Nações
Unidas sobre o Ambiente Humano, ocorrida em Estocolmo, em 1972? E esse consumidor,
mais consciente e responsável estaria tomando conhecimento de seu poder na sociedade?
Andrade, Tachizawa e Carvalho (2002) afirmam que a Conferência Sobre a Biosfera
(Paris, 1968), mesmo tendo sido uma reunião específica da área de Ciência, marcou o
despertar de uma consciência ecológica mundial, enquanto a Primeira Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente (Estocolmo, 1972) colocou a questão ambiental em
pauta nos eventos oficiais internacionais, tendo sido a primeira vez que o Poder Público
discutiu a necessidade de controlar os fatores que causam a degradação ambiental. Era o
início da preocupação com o consumo massificado e como as gerações futuras.
Seguindo esta tendência, o Brasil, a partir de 1973, iniciou a criação e dissemina-
ção de órgãos ambientais, inicialmente em âmbito federal e posteriormente nos diversos
Estados da Federação e municípios, seguindo a legislação e a regulamentação específicas
de controle. 217 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Dessa forma, os padrões de consumo foram-se modificando e, em países desenvolvi-
dos como Alemanha, Inglaterra e Suíça, segundo Andrade, Tachizawa e Carvalho (2002),
cerca de 50% de sua população já denomina consumidores verdes. O marketing ecológico
tornou-se sinônimo das empresas que pretendem transparecer uma imagem competitiva
e moderna.
Nesse cenário de mudança de paradigmas, onde os padrões de consumo são questio-
nados e a preocupação com as necessidades atuais e das gerações futuras são evidenciadas,
surge uma forma diferenciada de fazer turismo. Assim como defendido por Zaoual (2003),
tentaremos enxergar o turismo de base comunitária não como um modelo, mas como uma
forma distinta de pratica turística.
Estudiosos do turismo alternativo de base comunitária afirmam que o segmento busca
se contrapor ao turismo massas, requerendo menor densidade de infraestrutura e serviços
e buscando valorizar uma vinculação situada nos ambientes naturais e na cultura de cada
lugar. Essa nova forma desponta como uma possibilidade para turistas que buscam um
contato mais harmónico com as comunidades que os recebem, bem como para as comu-
nidades que se organizam para desenvolvê-lo.
Para Coriolano (2003), o turismo de base comunitária pode ser conceituado como aquele
que é desenvolvido pelos próprios moradores de um determinado lugar, que se tornam os arti-
culadores e os construtores do arranjo produtivo local, ficando a renda e o lucro na própria co-
munidade, contribuindo de forma significativa para melhoria da qualidade de vida da mesma.
O turismo comunitário não se preocupa apenas em percorrer rotas exóticas diferen-
ciadas daquelas do turismo de massas. Trata-se efetivamente de outro modo de visita e
hospitalidade, diferenciado em relação ao turismo massificado, ainda que porventura se
dirija a um mesmo destino (Bursztyn, Bartholo, Delamaro, 2010).
Contrapondo-se as crenças de Molina e do seu pós-turismo que pressupõe o desin-
teresse das culturas locais, a reconstrução de ambientes em sistemas fechados e produtos
turísticos que não utilizam recursos naturais ou culturais, o TBC busca autenticidade,
valorização de atrativos naturais e culturais e um sentido de lugar, de identidade, se distan-
ciando do que o autor define como uma tendência para a atividade turística.
De acordo com Zaoual (2003), o turismo comunitário propõe um diálogo de sentidos
entre os visitantes e os visitados, opondo-se ao modelo convencional adotado.
A Bolívia destaca-se nesse segmento, tendo desenvolvido um Plano Nacional de
Turismo Comunitário dedicado ao seu fomento. Um exemplo dessas praticas em territó-
rio colombiano é o que ocorre em Isla Grande. Uma série de outros destinos se espalham
pela America Latina, no Peru no Lago de Titicana, no Chile, no Deserto do Atacama e a
Reserva Mamirauá na Amazónia brasileira.
Algumas organizações no Brasil assumiram o protagonismo nesse segmento. A Rede
Brasileira de Turismo Solidário e Comunitário (TURISOL) e a Rede Cearense de Turismo
218 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Solidário e Comunitário (Rede TUCUM) merecem destaque devido ao caráter pioneiro e


articulador. De acordo com essas organizações, os objetivos do TBC são: (1) qualificação
e posse referem-se à participação da comunidade no planejamento e gestão do turismo;
(2) conservação dos recursos, ou seja, o turismo deve impactar positivamente na conserva-
ção dos recursos naturais e/ou culturais; e (3) desenvolvimento econômico e social, no que
concerne à geração de benefícios econômicos e sociais para a comunidade local.
Além desses objetivos, mais focando nas questões endógenas do destino turístico,
o TBC preocupa-se com a qualidade na experiência do visitante, focando no compro-
misso de assegurar ao visitante uma experiência de qualidade e comprometida com a
responsabilidade social e ambiental Hiwasaki (2006).
3. As Iniciativas do Turismo de Base Comunitária no Ceará e outras
Formas de Turismo

Os cursos superiores de turismo e hotelaria estruturam suas grades curriculares nas


exigências do mercado de trabalho e na formação de mão de obra qualificada. O Instituto
Federal de Educação Ciência e Tecnologia, em seus 100 anos de existência, construiu
a tradição de formar jovens para o mercado de trabalho, munidos de senso crítico e de
capacidade empreendedora.
O Campus Aracati, no litoral leste do Ceará, foi inaugurado em 2010, através de politicas
públicas que visavam a interiorização do ensino técnico e superior no Brasil. Inicialmente, a
oferta restringia-se a cursos técnicos nas áreas de turismo, informática e aquicultura, sendo
ampliada a partir de 2012 para cursos de nível superior nas mesmas áreas.
Atualmente, no eixo de turismo hospitalidade e lazer funcionam três cursos, sendo
dois de nível técnico, guia e organização de eventos e o curso superior em hotelaria. Na
grade curricular dos cursos as disciplinas de Introdução ao Turismo e Teoria Geral do
Turismo buscam trazer reflexões sobre o planejamento e a gestão da atividade turística.
Temas como demanda, oferta e imagem dos destinos turísticos são abordados em diferentes
níveis em ambos os cursos.
A oferta do destino mais próximo do Campus Aracati, a Praia de Canoa Quebrada,
é massificada e segue a lógica descrita neste trabalho. A perspectiva de discutir e promo-
ver formas de oferta turísticas locais que possam garantir às populações tradicionais a
permanência em seu território e possibilitar a continuidade das atividades econômicas
tradicionais (em particular a pesca e a agricultura), dando visibilidade às lutas sociais para
reconhecimento das comunidades participantes, torna-se um grande desafio.
O turismo de base comunitária busca oferecer aos viajantes responsáveis a oportunida-
de de conhecer e vivenciar experiências de turismo junto às populações tradicionais. Dessa
forma, abordar essa “nova forma” de turismo apresenta-se como uma necessidade para a
formação de profissionais do setor. 219 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
O Turismo Comunitário se fundamenta na diversidade de culturas e tradições, promo-
vendo a valorização da produção, da cultura e das identidades locais, e para vivenciar essas
praticas com os alunos buscamos inicialmente exemplos de Turismo Comunitário no litoral
leste do Ceará e na área de influencia do Campus Aracati. As primeiras atividades de campo
foram realizadas na Praia de Ponta Grossa, município de Icapuí e Prainha do Canto Verde,
no município de Beberibe.
Em Ponta Grossa foram desenvolvidas muitas atividades, desde visitas aos Projetos
de Olho N’agua e Mulheres de Corpo e Alga, trilhas ecológicas e rodas de conversa com
gestores da atividade turística do município de Icapuí. Os alunos do IFCE que residem na
comunidade assumem o protagonismo e conduzem os colegas por seus lugares cotidianos.
Figura 4. Práticas em Ponta Grossa. Figura 5. Aluno do curso de hotelaria.
Fonte: Diógenes, 2016 Fonte: Diógenes, 2016

Em paralelo a essas atividades também são realizadas visitas técnicas em complexos hotelei-
ros que seguem a lógica da massificação, como Beach Park, em Aquiraz, e Vila Galé Cumbuco,
no município de Caucaia. A proposta não é idealizar um modelo único de desenvolvimento
para o turismo e muito menos julgar o que seria o bom e o mau turismo. A proposta da ativi-
dade é mostrar alternativas, segmentação de mercado e adequação da demanda a oferta.
O Turismo Comunitário promove o relacionamento direto e constante entre grupos
que também desenvolvem a experiência de um turismo diferente, estabelecendo relações
de cooperação e parceria entre si e essas praticas são vivenciadas pelos alunos como forma
de aguçar o senso crítico dos discentes.
Observadas as praticas locais, passamos a buscar outras experiências, seja em destinos
que trabalham exclusivamente com a pratica do turismo comunitário, seja através de
iniciativas de envolvimento comunitário em destinos massificados.
Foram realizadas visitas e atividades na Fundação Casa Grande, município de Nova
Olinda, no Cariri cearense.
Na Fundação, o turismo comunitário parte da perspectiva de construção de uma
relação entre sociedade, cultura e natureza que busque a justiça ambiental. Tendo como
220 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

missão a formação educacional de crianças e jovens protagonistas em gestão cultural por


meio de seus programas: Memória, Comunicação, Artes e Turismo. Atualmente é uma
escola de referência em educação e tem o intuito de levar “o mundo ao sertão”.
O programa de turismo surgiu da necessidade de sistematizar ações para potenciali-
zar o crescente fluxo de turistas que, anualmente, vai conhecer de perto a experiência da
Fundação Casa Grande. Para atender à demanda de “turistas curiosos”, a Fundação Casa
Grande criou, junto aos pais, uma cooperativa (COOPAGRAN) para comercializar a Casa
Grande como um destino turístico e forma meninos e meninas para receber e acolher os
visitantes. Nas atividades o turista tem acesso ao acervo dos laboratórios de conteúdo e
interage com as atividades desenvolvidas nos laboratórios de produção.
Fonte: Diógenes, 2015

Em Jericoacoara, destino descoberto no mesmo período que Canoa Quebrada e que


segue a lógica da massificação, apesar na imagem de destino natural e exótico, buscamos
exemplos de atividades pontuais que buscam integrar a comunidade. Algumas iniciativas
foram mapeadas, tais como o Hotel Vila Kalango.

4. Conclusões Preliminares

De acordo com a teoria pesquisada o turismo de base comunitária até os anos de 1990
era visto como segmento periférico e marginal. O surgimento de inúmeras iniciativas e a
221 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
formação de redes, mesmo que informais, de pesquisa e fomento da atividade a partir do
Encontro de Turismo de Base Comunitária, conseguiu mudar a forma como o segmento
é percebido pelo poder público.
As pesquisas apontam ainda que existem entraves, tais como: oferta dispersa e frag-
mentada, escassa divulgação, dificuldade de identificação de praticas de TBC em destinos
massificados como apontado na teoria, participação marginal ou subordinada das mulheres
na prestação de serviços.
O turismo comunitário e um arranjo sócio-produtivo de base local onde os elementos
encontram-se imbricados, se desenvolve no contexto territorial, as comunidades se desen-
volvem a partir da atividade e o TBC, se fortalece com o aumento do número de iniciativas.
Nas praticas de TBC visitadas não se observa segregação do espaço dos turistas e
das comunidades. Existe interação e a partilha nas relações constituídas entre visitantes
e visitados.
As iniciativas visitadas, assim como a maioria das iniciativas apontadas na literatura
especializada, ocorrem em áreas próximas ou inseridas nas unidades de conservação. Outra
proximidade com a teoria estudada é que as iniciativas contaram com apoio externo.
Alguns indicativos de possibilidades de melhorias também foram identificados, tais
como a necessidade de envolver outros atores sociais na cadeia produtiva do turismo para
maximizar os resultados da atividade e a necessidade de consumo de produtos locais e da
própria região.
Em avaliações realizadas entre os alunos que participaram das atividades de campo,
existem algumas características que diferenciam o turismo de base comunitária do turismo
de massa, são elas:
222 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 6. Diferenças percebidas pelos discentes. Fonte: Pesquisa direta, 2016

A preocupação da atividade de campo não era, contudo, estabelecer critérios absolutos


para o desenvolvimento do turismo, mas sim apresentar alternativas aos modelos vigentes
e despertar o senso crítico dos alunos e futuros gestores do turismo em suas localidades.
5. Referências

BARTHOLO, Roberto; SANSOLO, Davis Gruber; BURSZTYN, Ivan (Org.). Turismo de Base


Comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras. Rio de Janeiro: Letra e Imagem,
2008. Disponível em: <http://www.turismo.gov.br/sites/default/turismo/o_ministerio/publi-
cacoes/downloads_publicacoes/TURISMO_DE_BASE_COMUNITxRIA.pdf>. Acesso em:
01 maio 2017.
BARTHOLO, R. (2009): “Sobre o sentido da proximidade: implicações para um turismo situado
de base comunitária”, BARTHOLO, R., SANSOLO, D.G, BURSZTYN, I. (Orgs.). Turismo
de base comunitária: Diversidade de olhares e experiências brasileiras. Rio de Janeiro (RJ), Letra
e Imagem, pp. 45-5
CEARÁ, Governo do Estado do. Demanda turística via Fortaleza e Fluxo Turístico Receptivo:
Dezembro de 2015 a Fevereiro de 2016. Fortaleza: Setur/ce, 2016.
CRUZ, Rita de Cássia Ariza da. Política de Turismo e Território. São Paulo: Contexto, 2001.
DIÓGENES, Conceição Malveira. Estruturação e Dinâmica da Rede de Serviços Turísticos em
Aracati/canoa quebrada-ce: 1970-2015. 2016. 222 f. Tese (Doutorado) - Curso de Geografia.
Programa de Pós-graduação em Geografia. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”. Rio Claro, 2016. Cap. 9.
EURONEWS: A “incómoda” indústria do turismo. Barcelona, 28 jun. 2017. Disponível em: <http://
pt.euronews.com/2017/06/28/a-incomoda-industria-do-turismo-em-barcelona>. Acesso em:
19 jul. 2017.
G1 CE: Portal de Noticias. Fortaleza, 24 jun. 2017. Disponível em: <http://g1.globo.com/ceara/
noticia/aeroporto-de-jericoacoara-no-ceara-recebe-o-primeiro-voo-comercial.ghtml>. Acesso
em: 24 jun. 2017.
HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2005 (Coleção
Geografia e Adjacências).
HIWASAKI, L. “Comunity-based tourism: A pathway to sustainability for Japan`s protected
areas”, Society and Natural Resources, vol. 19, pp. 133-143, 2006.
LIPOVESTSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. 2. ed.
Portugal: Edições 70, 2017.
MORAGES, Miguel de; BOTELHA, Miguel. Barcelona: l’herencia deus jobs 1992-2002. Barcelona: 223 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Editorial Planeta, 2002.
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do.  Turismo de Base Comunitária: Dos conceitos às prá-
ticas e das práticas aos conceitos. 2013. 185 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Política e
Gestão Ambiental. Centro de Desenvolvimento Sustentável. Universidade de Brasília. Brasília,
2013. Disponível em: <file:///C:/Users/user/Desktop/CONCEIÇÂO 2017/TURISMO
COMUNIÁRIO/2013_NathaliaHallackFabrino (1).pdf>. Acesso em: 15 mar. 2017.
SANTOS, N. Turismo e Cidades: conhecer o turista para valorizar a oferta do turismo cultural
urbano. Paisagens e dinâmicas territoriais em Portugal e no Brasil. As novas geografias dos países de
língua portuguesa (451-477). Iberografias, 26, 451-477, 2014.
TACHIZAWA, T., DE ANDRADE, R. O. B., & Carvalho, A. B. Gestão ambiental: enfoque es-
tratégico aplicado ao desenvolvimento sustentável, 2002
TERRAMAR, Instituto. REDE TUCUM. Disponível em: <http://www.tucum.org/>. Acesso em:
02 mar. 2017.
VASCONCELOS, Fábio P.erdigão; CORIOLANO, Luzia Neide. Impactos Sócio-Ambientais no
Litoral: Um Foco no Turismo e na Gestão Integrada da Zona Costeira no Estado do Ceará/
Brasil.  Revista da Gestão Costeira Integrada.  Fortaleza, p. 259-275, 2008. Disponível em:
<http://www.aprh.pt/rgci/pdf/rgci-134_vasconcelos.pdf>. Acesso em: 06 mar. 2017.
VASCONCELOS, F. P., & Coriolano, L. N. M. T. Impactos sócio-ambientais no Litoral: um foco
no turismo e na gestão integrada da zona costeira no Estado do Ceará/Brasil. Revista de Gestão
Costeira Integrada-Journal of Integrated Coastal Zone Management, 8(2), 2008
ZAOUAL; HASSAN. Nova Economia das Iniciativas Locais: uma introdução ao pensamento
pós global. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.
SANTOS, N. Turismo e Cidades: conhecer o turista para valorizar a oferta do turismo cultural ur-
bano. Paisagens e dinâmicas territoriais em Portugal e no Brasil. As novas geografias dos países
de língua portuguesa (451-477). Iberografias, 26, 451-477, 2014.
224 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Singularidades no Litoral Sul de Sergipe/Bra
e Litoral do Algarve/Pt: Turismo, Cultura
e Políticas Públicas.

Lillian Maria de Mesquita Alexandre


Curso de Turismo. Grupo de Pesquisa ANTUR – Antropologia e Turismo.
Universidade Federal de Sergipe

Hélio Mário de Araújo


Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Sergipe

João Albino M da Silva


CIEO – Centro de Investigação sobre o Espaço e Organizações.
Universidade do Algarve

Introdução

Ao destacar o turismo como um conjunto de atividades geradas e induzidas pelo com-


plexo processo de transformação de diversos recursos em ativos específicos com interesse
para a procura turística, percebe-se que é possível ter na criatividade, um referencial de sus-
tentabilidade em prol da visão meramente econômica desse fenômeno, pois ao buscar na
cultura e na identidade os elos inovadores, desperta nos destinos o seu melhor potencial.
225 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Pensar nesse conjunto como viés para o desenvolvimento local é identificar singula-
ridades e potencialidades muitas vezes imperceptíveis quando o assunto é inovação em
produto turístico que se faça valer da cultura como viés para essa promoção. A cultura nas
localidades vem despertando interesse maior do novo perfil de turista, que busca não mais
o consumo do espaço como promulgado pelo turismo de massa nos anos 90, mas pela ne-
cessidade maior de adquirir experiências únicas e vivenciadas junto às comunidades locais.
Por isso, organizar uma comunidade para o turismo é estabelecer uma aliança entre
interesses econômicos locais e não locais, objetivando atribuir uma relevante importân-
cia na valorização das questões culturais e meio ambiente. Isto porque para o turismo,
essas questões constituem a base da elaboração de produtos que podem ser a principal
motivação de deslocamento – uso direto – e/ou quando fazem parte de um rol de atrativos
regionais – uso indireto (MILKE, 2009).
O turismo pode contribuir para concretizar algumas das aspirações comunitárias na
medida em que se chegou à atividade econômica viável, socialmente solidária, cultural-
mente enriquecedora e ambientalmente responsável, pois entender o turismo como um
sistema complexo, é mais do que necessário para a formulação de novas práticas que atendam
as dimensões relacionadas.
Dessa forma, a proposta do estudo foi analisar as singularidades entre as regiões tu-
rísticas em Sergipe-Brasil e Algarve-Portugal, traçando paralelos possíveis no tocante à
identificação das similaridades e singularidades motivadoras de fluxos turísticos para as
regiões; análise do formato de inclusão de políticas públicas voltadas ao turismo nas re-
giões; identificação dos impactos causados por estas nas localidades e ainda, as mudanças
espaciais ocorridas a partir da implementação do Turismo de Sol e Praia (caso Sergipe)
ou Turismo Balnear (caso Algarve) nestas regiões. Foi utilizado como base de pesquisa a
descritiva, partindo da análise de documentos em fontes primárias e secundárias e pesquisa
de empírica, utilizando-se do método fenomenológico para análise da realidade local en-
contrada. O registro fotográfico e sua interpretação a partir da análise do discurso realizado
a partir das entrevistas com os atores sociais do sistema turístico nos municípios turísticos
identificados nas regiões turísticas pontuadas.
A partir dessa realidade observada e pesquisada, afirma-se que o turismo criativo,
advindo da nova visão de uso da atividade turística não apenas sob o viés econômico,
mas com o fortalecimento no social, é um poderoso fomentador para uma construção
coletiva, pois ele promove o fortalecimento das singularidades e potencialidades das
regiões turísticas pesquisadas, assim como melhora a autoestima das comunidades, pois
busca valorizar os modos, saberes, fazeres e costumes outrora esquecidos pela prática
focada no turismo de massa.
226 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Algarve e Sergipe: Regiões Turísticas e suas Singularidades.

As procuras turísticas pelos espaços litorâneos ligadas ao contato, primeiro com o vi-
sual e depois como sensorial, com o mar, tem um longo percurso histórico, que remete aos
banhos terapêuticos das elites europeias, a partir de finais do século xviii (Tradução nossa)
(SIMÕES e FERREIRA, 2017).
No pós-Segunda Guerra Mundial, com o aprofundamento da mudança econômica,
cultual e societal, a ida à praia passou a estar associada também a uma maior familiarização
com a água, ao prazer do banho e aos lazeres na água, à aprendizagem da natação, aos
novos, reduzidos e elegantes roupas de praia e às novas sociabilidades à beira-mar (Tradução
nossa) (SIMÕES e FERREIRA, 2017).
Descobertos e apropriados no percurso histórico de construção do turismo contem-
porâneo, os espaços costeiros tem sido protagonistas crescentes na dinâmica da atividade
turística em âmbitos, nacional e internacional. Tal é fruto de uma procura continuada e
cada vez mais intensa pelo litoral, designadamente pelos caminhos costeiros que permitem
uma fruição turístico-recreativa facilitada pelos diversos planos e ações governamentais de
implantação de infraestrutura básica e de acesso, que podem facilitar a chegada do turista,
como por exemplo, o Plano Costeiro e ainda, o próprio PRODETUR (Tradução nossa)
(SIMÕES e FERREIRA, 2017).
O turismo em áreas costeiras – fortemente ligado às práticas balneares – sempre teve,
e ainda tem um peso preponderante na atividade turística, tanto ao nível nacional como
internacional, tanto em Portugal com o fluxo turístico que emana no período de “Férias de
Verão” para a região do Algarve, quanto no Nordeste do Brasil, com águas quentes e uma
infraestrutura diferenciada do que se vê em terras lusitanas, conforme é possível visualizar
nas Figuras 01 e 02.

Figura 01 Litoral Algarvio. Figura 02 Praia do Saco. 227 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Créditos: Lillian Alexandre, 2017. Créditos: Lillian Alexandre, 2016.

Vale ressaltar que em Portugal, segundo Simões e Ferreira (2017), a crescente interna-
cionalização do turismo de sol e mar:

Atraiu novos usos e costumes, de vestiário balnear às atividades de lazer na


praia, das práticas de sociabilização, dentre e fora da praia, da forma de usar os
espaços no entrono das praias, nos eventos de pôr de sol e noturnos, proporcio-
nam um surgimento de uma nova e diversificada ofertas de serviços de apoio nas
praias, criando “marcações de territórios” inerentes a movimentação de fluxos
distintos de turistas, ora das cidades em questão, ora vindos de outras cidades
da Europa, como Inglaterra, Espanha e outras (Tradução nossa) (SIMÕES e
FERREIRA, 2017, p. 244).

No nordeste do Brasil, segundo Vilar e Santos (2010), o turismo se destaca como uma
forma de:

Lazer e ócio capaz de produzir sensação de bem-estar e satisfação, e tem nas


zonas de praia um dos destinos mais requisitados, configurando um modelo tu-
rístico de forte base territorial, o modelo de sol e praia. A apropriação cultural do
litoral para o lazer sustenta na atualidade uma das indústrias de maior dinamismo,
o turismo de praia e sol (VILAR e SANTOS, 2010, p.37).

Assim, essa segmentação toma conotações semelhantes em ambos os países, mas com
as suas devidas peculiaridades advindas do clima, do sol e o tempo em que ele está “dispo-
nível” aos que fazem uso dessa prática. No que em Portugal, no litoral do Algarve se tem
três meses intensos de sol e de férias de verão, aumentando sensivelmente o fluxo de turis-
tas na região; no Nordeste do Brasil, há uma procura durante todo o ano e pontualmente
no litoral sul de Sergipe, essa demanda não sofre muitas alterações, apesar do período
chuvoso, pois há sol por mais dos três meses portugueses (por assim dizer) o que estimula
uma demanda grande para a região.
Conforme a definição trazida pelo documento Segmentação de Mercado, elaborado
pelo Ministério do Turismo (Brasil, 2010), o “Turismo de Sol e Praia constitui-se das
atividades turísticas relacionadas à recreação, entretenimento ou descanso em praias, em
função da presença conjunta de água, sol e calor” e como tal, afirma Vilar e Santos (2010),
em que “a ocupação do litoral nordestino pode ser entendida por três momentos através
dos quais se registram significados variados sobre a concepção de litoraneidade e sobre a
228 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

incorporação de hábitos ocidentais pela população local”:

No primeiro momento se registra uma aversão à praia e ao marítimo. No se-


gundo, o litoral é apropriado como lugar de veraneio materializado principalmente
pela presença da segunda residência e do turismo litorâneo. No terceiro, o capital
imobiliário se articula ao turismo e se produz uma configuração territorial, na qual
novas formas de ocupação do espaço se impõem e o litoral é incorporado pela
lógica de valorização turística. Esse trajeto histórico entre o medo, o desejo e a ca-
pitalização imobiliária (necessidade ou obsessão?) de objetos geográficos tão inter-
-relacionados como o mar, o litoral e a praia se faz por meio de práticas espaciais
que desvalorizam e valorizam e revalorizam as zonas costeiras e por isso desenham
um território que transita entre “vazio” e o adensamento. Ao longo das últimas
décadas, paulatinamente está sendo construída uma nova geografia do litoral com
formas e fluxos diferenciados que se materializam numa urbanização seletiva que
escolhe os ambientes costeiros como vetor privilegiado de ocupação territorial
(VILAR e SANTOS, 2010, p.37).

Isso faz com que os litorais em questão, tenham vários símbolos e significados no ima-
ginário do turista, seja nacional ou internacional e nesse momento, as cidades litorâneas
inseridas em roteiros turísticos nos Estados, tendem a receber, de forma planejada ou não,
incentivos para que o “turismo de praia e sol” seja tratado como estratégia de desenvolvimen-
to local, em que, teoricamente, as comunidades, agentes e atores locais, estejam envolvidos.
O turismo balnear, segundo Simões e Ferreira (2017) vem sofrendo declínio em
Portugal em virtude da similaridade de produtos oferecidos pelo turismo de praia e sol e
ainda, pelos preços diferenciados atribuídos ao primeiro em detrimento ao segundo, fazendo
com que os turistas em sua maior parte, escolham a segunda opção, pois:

Os cenários e antevisões de “exaustão” do modelo de desenvolvimento turísti-


co de muitos espaços litorâneos pontuam o produto “sol e mar”, estão na origem
da forma de pensar sobre a implementação de estratégias de diversificação ou de
qualificação deste produto o dos destinos que lhe estão associados (Tradução nossa)
(SIMÕES E FERREIRA, 2017, p. 225).

Assim, no momento em que se pensa no turismo balnear, é necessário refletir sobre


a diversificação, com adição de ofertas alternativas ou complementares ao produto “sol e
praia” e a qualificação, requerem do destino que os serviços prestados ao turista estejam à
altura do custo que se tem em está neste ambiente costeiro e que o planejamento dessas
229 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
áreas se faça de forma eficiente, pois nem só de paisagem se faz o turismo balnear.
No Algarve, as atividades econômicas que formam seu cluster1 acomodam-se em três
setores-chave: o turismo, que integra a rede hoteleira e a restauração (bares e restaurantes),
a construção civil e o comércio, que são nucleares na região, pelo pessoal que empregam
ou pela riqueza que geram. No entanto, outras atividades, como as ligadas à indústria, à
agricultura e à pesca, podem ser destacadas, embora apresentando tendências para a perda
de importância relativa à economia regional (Figura 03) (SANTOS, 2013).

É o conjunto de atrativos com destacado diferencial turístico, concentrado num espaço geográfico delimi-
1

tado dotado de equipamentos e serviços de qualidade, de eficiência coletiva, de coesão social e política, de
articulação da cadeia produtiva e de cultura associativa.
Figura 03. Região do Algarve. Fonte: Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região do Algarve (CCDRA, 2017).

A Região do Turismo do Algarve (RTA) pretende continuar a implementar, em 2018,


ações que permitam desenvolver e valorizar o potencial turístico da região, bem como dar
uma contribuição para a gestão integrada do destino turístico como base territorial da
principal atividade económica do Algarve (COMISSÃO EXECUTIVA DA RTA, 2017).
A RTA, no âmbito das políticas de desenvolvimento turístico, cultural, entre outras,
apoia entidades que desenvolvam atividades que promovam a qualidade turística da região,
através da realização de programas, projetos ou ações que prossigam o interesse turístico
regional (ALGARVE, 2017).
A RTA reforça através de suas peças publicitárias, ações, projetos e iniciativas, a im-
portância do turismo para a região, como podemos perceber na fala do Vice-presidente da
230 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

RTA, em entrevistas realizadas nos dias 11 e 22 de maio de 2017.


O GESTOR RTA apresentou:

“O planejamento está baseado no enriquecimento da oferta, na diferenciação do des-


tino por sua identidade, trabalhando a identidade local como atrativo e ofertas turísticas
sustentáveis. Isso faz com que haja interesse em estimular novos modelos mais sustentáveis
de fazer turismo no Algarve.”
“Pode-se promover a intervenção no território, a partir dos municípios e os produtos
e tradições locais são mais estimulados a partir das ações de políticas de cada autarquia,
isso promove novas parcerias entre os atores e fortalece ainda mais o turismo na região.”
Percebe-se na fala do GESTOR a importância que o planejamento das políticas públicas
voltadas ao turismo tem na organização do território e do fortalecimento das parcerias públi-
co privado como sendo elos para o desenvolvimento regional. E isso pontua na necessidade
de diferenciação do produto turístico oferecido, despertando o interesse desse novo perfil de
turista em conhecer diversos destinos e não apenas um, pois apesar do apelo paisagístico das
praias, a cultura atrelada a ela oportunizará novos conhecimentos e sensações.
O documento estratégico nacional orientador de Política Setorial para o Turismo –
Plano de Atividades e Orçamento da Região de Turismo do Algarve, 2017, juntamente
com o Plano Estratégico Nacional para o Turismo (PENT) 2013-2015 (TP) (TURISMO
DE PORTUGAL, 2013), definiu como principais produtos turísticos para a região do
Algarve, os seguimentos de Sol e Mar, Golfe, Saúde e Bem-estar, Cultura, Natureza,
Turismo Náutico, Desporto e Turismo de Negócios, sendo considerados relevantes para
complementar à oferta turística e atenuar a sazonalidade (RAMOS, 2016).
Com o slogan “O horizonte como ponto de encontro”, o segmento Sol e Mar tem
como texto introdutório nesta folhetaria (TP) (TURISMO DE PORTUGAL, 2013):

São quase 200 quilómetros de costa, mais de 100 praias, mais de 50 com ban-
deira azul e, mais do que isso, uma grande diversidade de paisagens. Falésias, areais
intermináveis, rias, ilhas, lagoas, algumas conhecidas e outras ainda secretas e ape-
nas acessíveis a quem conhece bem o caminho. O sol brilha intensamente cerca de
300 dias por ano, mais no verão e na primavera é certo, mas também no outono e
no inverno (TURISMO DE PORTUGAL, 2013).

E esse é o maior diferencial da região Sul de Portugal, uma vez que o fator climático é
um grande segregador dos destinos e tem influenciado na demanda, pois é uma região de
clima ameno durante mais tempo, ou seja, o inverno é menos acentuado, fazendo com que
seja possível “turistar” pela região por mais tempo (Figura 04 e 05).

231 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 04. Praia D. Ana em Lagos Figura 05. Praia de Tavira


Créditos: Lillian Alexandre, 2017. Créditos: Lillian Alexandre, 2017.
O litoral sergipano é relativamente pequeno, entretanto, apresenta cenários paisagís-
ticos e atrativos naturais com potencial turístico. Em termos geomorfológicos, registra-se
em seus ambientes físicos a presença da formação barreiras e, principalmente, da planície
costeira que recebe influência direta dos estuários (do rio São Francisco, do rio Japaratuba,
do rio Sergipe, do rio Vaza-Barris, do complexo Piauí-Real) e do Oceano Atlântico. Em
função dessa base territorial, a maior parte do litoral sergipano é ambientalmente frá-
gil e por isso necessita de uma ocupação ordenada (Figura 06) (FONSECA, VILAR e
SANTOS, 2010).

Figura 06. Litoral Sul Sergipano


232 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

O Litoral Sul Sergipano está composto pelos municípios de São Cristóvão, Itaporanga
D’Ajuda, Estância, Santa Luzia do Itanhy e Indiaroba, totalizando uma área de 2.480 km²,
apresentando uma elevada fragilidade ambiental, acentuada pela presença de lagoas encaixa-
das entre cordões litorâneos e os atrativos naturais são ampliados pela presença de uma eleva-
da densidade de rede hidrográfica e pela diversidade geomorfológica, que, aliados ao acesso
rodoviário, facilitam a utilização do espaço como área de segunda residência para o veraneio
e o turismo. Do Polo Costa dos Coqueirais é extraída a região objeto deste estudo, litoral
sul de Sergipe, abrangendo os municípios de Estância, Itaporanga D’Ajuda, Santa Luzia do
Itanhy e Indiaroba (Figura 07, 08, 09 e 10) (FONSECA, VILAR e SANTOS, 2010).
Figura 07. Praia da Caueira Figura 08. Praia do Abaís
Créditos: Lillian Alexandre, 2017. Créditos: Lillian Alexandre, 2017.

Figura 09. Praia fluvial povoado Crasto Figura 10. Praia fluvial povoado Pontal
Créditos: Lillian Alexandre, 2017. Créditos: Lillian Alexandre, 2017.

As paisagens registradas nas fotos acima apresentam todo o potencial natural e cultu-
ral que o litoral sul de Sergipe apresenta, tanto nas praias fluviais, como nas praias oceâ-
nicas. A partir desses recursos naturais, a cultura associada e a infraestruturas já existentes,
possibilitam aos visitantes experiências bastantes diferencias das vivenciadas em outras
regiões no litoral brasileiro, em particular no Nordeste, porém é necessário que a articula-
ção do planejamento se faça presente, partindo da lógica percebida no Algarve português,
233 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
principalmente na parceria público privado.
O relevo caracteriza-se por altitudes modestas e se eleva à medida que se caminha
para o interior. Classifica-se em planície litorânea e tabuleiros costeiros. A primeira
estende-se de norte a sul ao longo de toda a faixa costeira e é formada por praias,
manguezais, restingas, campos de dunas, as duas últimas com alturas de até 30 metros.
A segunda, após a planície costeira, em direção ao interior forma morros e colinas com
altura de até 100 metros. Há variedade de solos, dentre eles se destacam: arenoso do
litoral (podzol, areias, quartzosas), “são solos ácidos, profundos, de baixa fertilidade.
Drenam com rapidez toda a água que cai e, devido à salinização, dificultam o uso
agrícola”. No entanto, os coqueiros adaptam-se a esse tipo de solo; arenoso argiloso
dos tabuleiros (podzóicos e latossolos) é de cor avermelhada pela liberação de ferro
existente na rocha, além de pobre em nutrientes; e devido à alta acidez, necessita de
corretivos: adubação orgânica e fertilizante. “A textura arenosa desses solos facilita as
ações erosivas, sobretudo quando o relevo é ondulado. A retirada da Mata Atlântica e
a exposição desse solo às chuvas, somadas aos processos de lixiviação e de escoamento
superficial, facilitam a degradação do mesmo” (BRASIL, 2005, p. 52 apud SANTOS,
2009, p.77).
O planejamento regional do turismo era gerido pela Secretaria Estadual de Turismo
(SETUR) e Empresa Sergipana de Turismo (EMSETUR) com eventual participação do
setor privado e terceiro setor por meio do Fórum Estadual de Turismo (FORTUR), as re-
giões/polos de desenvolvimento turístico são representadas no Fórum que está organizado
num modelo tripartite na expectativa de reunir o poder público, setor privado e terceiro
setor, ligando os municípios ao estado para discutir e deliberar sobre o desenvolvimento
integrado e sustentável da atividade (SERGIPE, 2009).
Este planejamento atendeu as diretrizes do Programa de Regionalização do Turismo
criado pelo Ministério do Turismo (Mtur) em 2004 (BRASIL, 2004), surtindo efeito em
Sergipe no ano de 2005, com uma divisão que contemplou cinco regiões/polos de desen-
volvimento do turismo: Costa dos Coqueirais, Velho Chico, Serras Sergipanas, Tabuleiros
e Sertão das Águas.
O Polo Costa dos Coqueirais nasceu como área de planejamento do PRODETUR-
-NE I, abrangendo tanto os municípios da costa atlântica sergipana mais Laranjeiras,
Santo Amaro e Santa Luzia do Itanhy, aqueles banhados pelo Rio São Francisco, área está
reduzida posteriormente coma retirada dos municípios banhados tão somente pelo São
Francisco. Foram selecionados os municípios por estarem relacionados às ações pontuais
de investimentos em projetos de TBC, em instâncias públicas, privadas ou de instituições
de educação ou outras (SERGIPE, 2009).
O Programa de Desenvolvimento do Turismo (PRODETUR), desde 1994 atua na
234 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

região, com intervenções e investimentos na região que vão desde a recuperação de rodo-
vias até a instalação de atracadouros de usos de pesca e turismo, tendo investido na área
nos últimos 10 anos cerca de R$ 40 milhões e hoje é o principal articulador de recursos e
de ações de políticas públicas do Estado, confundindo-se com a própria política pública
estadual (Figura 11) (SILVA e ALEXANDRE, 2014).
Figura 11. Espacialização dos investimentos do PRODETUR. Fonte: SERGIPE, 2012.

Os equipamentos, serviços turísticos e infraestrutura nos municípios de estudo par-


tem da identificação dos atrativos naturais e culturais realizados no estudo do Plano de
Desenvolvimento Integrado e Sustentável para o Turismo (PDTIS) que serviu de base
para a realização do planejamento para a localidade e indicando as necessidades para que
os investimentos ocorressem ao longo dos anos.
Na entrevista cedida pelo ex-GESTOR de Indiaroba, quando questionado sobre como
funcionava as políticas públicas para o turismo no município e os impactos gerados pelos
235 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
investimentos do PRODETUR na região, verbalizou que:

“Logo quando começamos aqui em 2013, com a construção da Ponte


Gilberto Amado, teve o impacto positivo em algumas questões [pausa] po-
sitivas em quê? aumento da transição de turistas aqui, do acesso de turistas
[pausa]. Porém os negativos, especulação imobiliária e os investimentos pri-
vados, né, investimentos como resorts que de qualquer forma tem impacto
ambiental principalmente, e posteriormente tem o impacto social, né? A gente
sabe que este tipo de empreendimento que está sendo construído aqui, que é
o maior condomínio do Estado de Sergipe (reforçou na entonação de voz)
que é o Bele Ville litoral sul, ele é maior, muito maior do que a comunidade,
e agora está sendo positivo porque está gerando empregos, porém se nós não
estivermos articulados com as políticas públicas, principalmente com a ca-
pacitação e uma política pública voltada que não atrapalhe, porque a gente
sabe que no turismo existe tudo isso, a gente vê várias comunidades ao norte
da Bahia, que sofreram disso (...) esses empreendimentos foram chegando e a
gente tem medo que isso aconteça, que a população perca seu lugar, suas casas
e seus empregos”

Na compreensão do então ex-GESTOR, é necessário que as políticas públicas estejam


voltadas para a realidade da localidade e o que vem ocorrendo, como a especulação imobi-
liária, como foi relatado, mostram a fragilidade nessas questões, entretanto, o mesmo não
mencionou a existência de um plano de desenvolvimento turístico para o município, ou
ainda, de ações efetivas para a realidade da localidade, a partir do que foi pontuado por
ele, descortinando sérios problemas de articulação políticas entre o município, o Estado e
ainda, na relação público privado entre os setor do trade turístico.
Em entrevista realizada com a coordenação estadual do PRODETUR, em março de
2017, conseguimos perceber que a dinâmica existente entre o planejamento e a execu-
ção perpassam por várias etapas e que as ações são direcionadas para a implantação de
infraestrutura urbana, o que acarreta em impactos em todas as dimensões ambientais e
isso desperta a necessidade de total articulação entre os atores sociais envolvidos com o
turismo em cada um dos municípios em estudo e mais uma vez entendemos a impor-
tância dessa articulação como viés para o fomento da localidade e como consequencia,
a sua sustentabildiade:

“2012-2013 foram iniciadas as consultas, foram construídos os PDITS (...)


A execução do programa tem todo um direcionamento. Tem uma matriz, essa matriz
236 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

está elencada aos 5 componentes e cada componente tem suas ações específicas pra cada
componente, entendeu?Dentre esses componentes, tem várias ações, e tem naquela re-
gião do litoral sul, hoje, no município de Santa Luzia, nós estamos desenvolvendo lá,
uma ação de infraestrurutra, que é o esgotamento do povoado Crasto e estamos agora,
é prestes a lançar também, a licitação da orla, que vai ser a orla lá de Santa Luzia,
né? Nós vamos ter a orla lá....e em Itaporanga nós também estamos agora, prestes
a lançar a licitação de 2 atracadouros, um na Ilha Mém de Sá e Caibros (...). Tá
previsto também para região do litoral sul, uma orla em Indiaroba, que vai ser em
Pontal, naquela região de lá (...) Na região de Estância tá prevista tb uma orla, mas
no caso de Estância tem uma particularidade (...) nas regiões que estão previstas ações
e que tem ações do ministério público, só depois do entendimento do município com
o ministério público (...) Só depois disso é que o PRODETUR vai poder fazer algum
tipo de intervenção (...)”

Entre os investimentos do Programa, destacam-se os que mais de perto interessam à


gestão ambiental, por interferirem diretamente no ambiente natural: (a) complementação
e abertura de rodovias; (b) obras desconstrução ou recuperação de orlas d›água, atraca-
douros e marinas; (c) desmonte de morro para melhoria de aeroporto; e, (d) sistemas de
esgotamento sanitário. O Programa não tem uma amostra representativa dos projetos, e
em sua maioria e outras ações dos demais componentes corresponde a atividades de apoio
ao desenvolvimento turístico e às empresas desse setor e à comercialização, elaboração de
estudos e projetos, atividades de capacitação, regulamentação e fortalecimento institucional
para a gestão do turismo e do meio ambiente (SERGIPE, 2009).
Cabe reforçar que é notória a falta de diálogo entre os gestores no tocando a for-
matação de documentos voltados a uma política pública articulada, pois ao longo das
pesquisas ficou claro que há um esforço advindo de exigências do PRODETUR e dos
bancos de fomento para que a documentação municipal esteja organizada, porém, os
municípios não se organizam para que o planejamento seja realizado por equipes técnicas
que formulem ações a médio e longo prazo, planos e programas eficazes para o turismo
nestas localidades, possíveis de serem continuadas e sem as exigências pontuais e emer-
genciais para receberem recursos externos, como percebemos no relato da coordenação
estadual do PRODETUR:

“quando começamos a fazer os contatos com os municípios, a visitar os muni-


cípios, a fazer os levantamentos, os estudos de viabilidade e tudo, percebemos que a
maioria dos municípios que estavam previstas a execução na área de infraestrutura,
eles não tinham projetos [...] Nós aqui enquanto PRODETUR hoje, estamos asses-
237 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
sorando tanto na área de infraestrutura como ambiental pra que les pssam entregar
esse check list completo”.

Com isso percebemos a necessidade de adoção de boas práticas em relação ao pla-


nejamento do turismo nos municípos do litoral sul sergipano, como forma fomento de
políticas públicas não para atender a exigências externas, mas pela importância em se ter
na política pública norteadora de ações para o desenvolvimento local, como relatamos no
tocante a região turística do Algarve português.
Do Turismo Cultural ao Turismo Criativo. Considerando para Novos
(Re) Começos?

Para Rodrigues (2008) “cultura é uma forma particular de ser, de estar, de viver e de
sentir o mundo, onde está inserida uma somatória de costumes, tradições e valores”. Nesta
descrição a autora esclarece que a cultura não é o conhecimento adquirido pelo indivíduo
e sim a vivência dos símbolos representativos da sociedade do indivíduo.
A relação intrínseca entre o turismo e a cultura solidifica a base de sustentação do
turismo cultural, de acordo com Botelho (2007) “o turismo cultural é realizado a partir
do movimento de pessoas impulsionadas por motivos culturais como viagem de estudo,
viagens a festivais ou outros eventos artísticos, visitas a sítios e monumentos, viagens para
estudar a natureza, a arte, o folclore, as peregrinações”. Dias e Aguiar (2002) afirmam
que o turismo cultural é “uma atividade de lazer educacional que contribui para aumen-
tar a consciência do visitante e sua apreciação da cultura local em todos os seus aspectos
– históricos, artísticos, etc.”.
Turismo cultural pode ser definido como um fenômeno social, produto da experiên-
cia humana, cuja prática aproxima e fortalece as relações sociais e o processo de interação
entre indivíduos e seus grupos sociais, ou de culturas diferentes (BRASIL, 2010).
Nesse contexto, é importante reforçar o papel das atividades inerentes a uma comuni-
dade, pois a cultura emana dela e a partir disso, é que surgem as inúmeras possibilidade de
se inovar no campo do produto turístico diferenciado, ou seja, aproveitando muito mais
do que os recursos naturais das localidades como motivadoras, mas a interação comunidades
e turistas/visitantes, favorecendo assim que o turismo criativo venha a tona.
Segundo Molina (2015), “o turismo criativo se propõe como um modelo que promove o
desenvolvimento integral dos indivíduos e das comunidades” e continua afirmando que “está
fundamentado em cinco critérios simples, mas poderosos: a criatividade, a participação, a
inclusão, a excelência e o desenvolvimento integral”.
238 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

O turismo criativo é considerado como uma nova geração de turismo, que implica
na participação de turistas em atividades criativas, com a população local, por exemplo,
manusear uma vara de pescar ou elaborar uma peça artesanal, como uma cesta.
O idealizador do conceito de Turismo Criativo, Richards (2012) afirmou que:

O turista não quer mais ver apenas prédios históricos, ele quer ter o contato
com as pessoas locais. E isso é possível a partir de atividades criativas, nas quais
a comunidade e o visitante criam algo juntos, contribuindo para aumentarem a
qualidade de vida dos locais e enriquece a experiência do turismo (RICHARDS,
2012, p. 34).
Richards (2012) definiu experiências criativas como “aquelas que são distintas, que
mudam as pessoas, as envolvem e fazem com que as pessoas queiram retornar”, destacando
a diferença entre o Turismo Criativo e Turismo de Experiências: o criativo é composto de
experiências criativas, há interatividade, já no de experiências, pode ser passivo. A diferen-
ciação está no tipo de experiência, pois para que um destino seja criativo, precisa oferecer
experiências autênticas, que contribuam para o desenvolvimento pessoal do visitante. É ne-
cessário que haja envolvimento, engajamento para que sejam criadas relações entre a comu-
nidade local e o turista. “O turismo criativo é um lugar para estar, seja para quem vive lá o
tempo inteiro ou para o cidadão que permanece por um tempo”, definiu Richards (2016).
O novo turista procura experiências autênticas, que proporcionem desenvolvimento
pessoal e aprendizagem. A existência de recursos culturais e de patrimônio histórico não são
condições obrigatórias ao desenvolvimento deste tipo de turismo, e estabelecem fronteiras
com o turismo cultural (GONÇALVES, 2008).
Afirma que esse novo turista é percebido pela maior flexibilização e integração mais
diagonal de todo o sistema, a crescente necessidade de segmentação e a valorização do
componente ambiental, conforme é possível visualizar na Figura 12.

239 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 12. Fluxograma do novo perfil de turista. Fonte: Gonçalves, 2008.

Esse novo turista está preocupado não só com as questões locais de sustentabilidade,
mas também em adquirir o máximo de experiências possíveis em sua viagem, podendo
interagir com a comunidade local de várias formas e esperando que tais interações possam
promover nele, mudanças inclusive de olhar, pois as experiências são as mais diversas pos-
síveis e a integração com a produção local, com a mudança de valores e percepção, a forma
com que a gestão lida com a localidade, como a inserção de infraestrutura e ainda, a in-
clusão das novas tecnologias, são aspectos importantes para esse novo modelo de fomento.
Gonçalves (2008) afirma que:

À medida que a cultura é utilizada pelas cidades como forma de desenvolvi-


mento econômico e social, a proliferação de produtos de turismo cultural ameaça
a transformação deste tipo de turismo num mercado massificado. Numa tentativa
de sensibilizar os agentes locais, a OMT aponta a necessidade de uma melhor seg-
mentação da oferta turística e de gerar uma maior variedade de produtos de turismo
cultural, assim como, o controle da pressão naqueles locais patrimonializados mais
visitados (GONÇALVES, 2008, p. 11).

Com isso é necessário reforçar o papel das culturas locais para que esse novo segmento
possa ser, de fato, um elo de fomento local, de integridade das identidades locais e acima
de tudo, que possa contribuir para a sustentabilidade das atividades que já faziam parte do
meio social local e que vieram a fazer parte desse novo “consumo” da atividade.
Assim, a região do Algarve, em Portugal, é uma região de destino turístico de excelência
com mais relevância em Portugal e na Europa, pois já é conhecida como “estância balnear
nacional” e ainda, com a prática do turismo de “praia e sol”, surgem problemas semelhantes
ao do Brasil, na massificação dos destinos com essa característica e isso a transforma em
referência de boas práticas.
Ambas as regiões de estudo aqui apresentadas, tem singularidades a partir da visão do
turismo de Praia de Sol e proporcionando um rico campo de estudo, uma vez que, estão
localizadas em zonas turísticas de intensa mobilidade e fluxos, que acarretam em mudanças
significativas direta e indiretamente, nas comunidades locais.
Todas as ações de políticas públicas de turismo implantadas remetem ao desenvol-
vimento como objetivo fim e nele, as regiões e suas comunidades são observadas como
240 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

membros ativos na realidade do litoral algarvio e não tão importantes na realidade do


litoral sul de Sergipe, como percebemos ao longo das pesquisas. Há uma grande lacuna
temporal de percepção e entendimentos do papel do turismo cultural e criativo para o
desenvolvimento local no segundo caso.
Observamos também que apesar das ações do PRODETUR estarem voltadas a infra-
estrutura local para, principalmente, o aumento do fluxo turístico nas cidades limites com
a Bahia (principalmente), não há movimentação explícita de articulação entre os atores
sociais do sistema turístico existente, com ações frágeis no âmbito ambiental, social e cul-
tural, permitindo que a comunidade local não se veja partícipe dos processos sugeridos nos
discursos aplicados pelas iniciativas de políticas públicas voltadas para estas localidades.
Respeitando-se as devidas particularidades históricas e geográficas de cada região tu-
rística do estudo, o que podemos elencar como fator primordial é que é possível a partir
das singularidades de cada lugar e comunidade, atrelar as ações de políticas públicas ar-
ticuladas, claras e eficientes, um real modelo de desenvolvimento, onde a partir das boas
práticas apresentadas pelas regiões turísticas e suas experiências positivas e também negati-
vas do Algarve português, o litoral sul sergipano poderá ter referências de como proceder
positivamente para fomentar o turismo e nele, o turismo criativo como estratégia para
melhor inserir as comunidades nas questões políticas, nas reflexões para estratégias de
desenvolvimento integral e além de tudo, na melhoria da alto-estima dessas comunidades,
fortalecendo as bases para que sua cultura e identidade possam servir de instrumentos para
o pensar sustentavelmente do turismo. Eis que se considera um novo recomeço a partir
deste olhar: turismo cultural, turismo criativo e políticas públicas de turismo como alicerces
estruturantes para o fortalecimento sócio cultural local.

Referencial

BOTELHO, Cléria. Sustentabilidade Sociocultural do Turismo. Brasília: CET/UNB, 2007.


BRASIL, Programa de Regionalização do Turismo: Roteiros do Brasil – Diretrizes Políticas. Brasília:
Ministério do Turismo. 2004.
BRASIL, Ministério do Turismo – MTUR: Marcos conceituais. Brasília, 2010. Disponível em:
<http://www.turismo.gov.br/export/sites/default/turismo/o_ministerio/publicacoes/downloa-
ds_publicacoes/Marcos_Conceituais.pdf>. Acesso em: 20 out. 2012.
DIAS, Reinado; AGUIAR, Marina Rodrigues de. Fundamentos do Turismo: conceitos, normas e defi-
nições. Campinas, SP: Editora Alínea, 2002.
FONSECA, Vânia; VILAR, José Wellington Carvalho; SANTOS, Max Alberto Nascimento.
Reestruturação territorial do litoral de Sergipe. In: VILAR, José Wellington Carvalho; ARAÚJO,
Hélio Mário de (Org.). Turismo, meio ambiente e turismo no litoral sergipano. São Cristóvão: 241 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Editora UFS, 2010, 40-61.
GONÇALVES, A. As comunidades criativas, o turismo e a cultura. Dos Algarves – Revista da Escola
Superior de Gestão, Hotelaria e Turismo da Universidade do Algarve, 17, 11-18. 2008.
MIELKE, Eduardo J. Costa. Desenvolvimento turístico de base comunitária. Campinas, SP: Editora
Alínea, 2009.
MOLINA, Sergio. Turismo Criativo: além da competitividade – uma experiência no México
In NETTO, Alexandre Panosso e ANSARAH, Maria Gomes dos Reis. Produtos turísti-
cos e novos segmentos de mercado: planejamento, criação e comercialização. Barueri, Sp:
Manole, 2015.
RAMOS, George Manuel de Almeida; FERNANDES, João Luís Jesus. Tendências recentes em
turismo: algumas reflexões na perspectiva dos territórios de baixa densidade COGITUR
disponível em: <http//www.revistas.ulusofona.pt/index.php/jts/article/view/4425/2986>
Acesso em: 10 ago. 2016.
RICHARDS, G.. Tourism, creativity and creative industries. Comunicação apresentada na
Conferência Creativity and creative industries in challenging times, 2012, In Portal da
Academia. Disponível em: <https://www.academia.edu/2198992/Tourism_Creativity_and_
the_Creative_Industrie>. Acesso em: maio 2017.
RICHARDS, Greg. O que é Turismo Criativo? In I Encontro Internacional de Turismo Criativo,
em 2016. Disponível em: <http://www.academia.edu/18507121/O_que_%C3%A9_turismo_
criativo>. Acesso em: maio 2017.
RODRIGUES, Sonia. Eu sou Maria/Doze trabalhos de Hercúles. Ed.5.Rio de Janeiro. Formato,
2008.
SANTOS, J. C. V.. Região e destinos turísticos: sujeitos sensibilizados na geografia dos lugares. São
Paulo: All Print Editora, 2013.
SANTOS, Milton. Por uma nova geografia: da crítica da Geografia a uma geografia crítica. 6ª ed.
São Paulo: editora da Universidade de São Paulo, 2009.
SILVA, Joab. A e ALEXANDRE, Lillian Mª de Mesquita. Organização do Turismo rural no
Litoral Sul de Sergipe In: Anais IX Congresso Internacional de Turismo Rural e Desenvolvimento
Sustentável – CIRTUDES: Turismo rural comunitário: estratégias de desenvolvimento, São
Paulo, 2014. p.1 – 17. Disponível em: <http://143.107.95.102/prof/kasolha/citurdes/anais/>.
Acesso em: fev. 2015.
SIMÕES, José Manuel e FERREIRA, Carlos Cardoso. Sol, Mar e Praia: Da Vilegiatura Balnear
à Reinvenção do Produto Turístico In SILVA, Francisco e UMELINO, Jorge (coord.)
Planejamento e Desenvolvimento turístico. Lisboa: Idel, 2017.
SERGIPE. Plano Estratégico Estadual de Turismo 2009 – 2014. Secretaria de Estado do Turismo –
SETUR. (SETUR). Aracaju, Sergipe, Brasil, 2009.
________. Unidades de Conservação da Natureza em Sergipe. Secretaria de Estado do Meio Ambiente
e dos Recursos Hídricos – SEMARH. (SEMARH), Aracaju, Sergipe, Brasil, 2012.
VILAR, José Wellington Carvalho; SANTOS, Priscila Pereira. o crescimento da segunda residência
no litoral nordestino: uma análise da expressão territorial do fenômeno. 2010. Disponível em:
<http://eng2012.agb.org.br/lista-de-artigos?download=223:vilar-e-santos-agb&start=2040>.
Acesso em: out. 2017.
242 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Fontes eletrônicas

<http://www.confederacaoturismoportugues.pt/press/view/id/574> Acesso em: 12 jul. 2017.


<http://www.turismodoalgarve.pt/projetos-e-iniciativas/plano-de-atividades-e-orcamento.html>
Acesso em: 13 jul. 2017.
<https://www.ccdr-alg.pt/site/info/ccdr-algarve> Acesso em: 13 jul. 2017.
<http://www.turismodoalgarve.pt/ficheirosSite/469/469_0_mapa_algarve2014.pdf> Acesso em:
12 jul. 2017.
<http://www.algarvepromotion.pt/pt/252/aheta---associacao-dos-hoteis-e-empreendimentos-
-turisticos-do-algarve.aspx. Acesso em: 12 jul. 2017.
DINÂMICAS SOCIOECONÓMICAS
EM DIFERENTES CONTEXTOS
TERRITORIAIS
O GTP aplicado ao estudo da Bacia
Hidrográfica do Ribeirão Santo Antônio/
/Sudoeste do Estado de São Paulo – Brasil

MESSIAS MODESTO DOS PASSOS


Programa de Pós-Graduação em Geografia
UNESP – Presidente Prudente

1. Introdução – a abordagem teórica (ou o estado da arte)

O Pontal do Paranapanema – Sudoeste do Estado de São Paulo, sofreu uma série


de mudanças socioambientais desde a chegada da frente pioneira, nos anos 40 do
século passado. Inicialmente, essa região foi palco do “ciclo do algodão”, estruturado
a partir do tripé: indústrias beneficiadoras (SANBRA, MACFADEN, CLAYTON),
proprietários de terras e arrendatários. O algodão teve um ciclo curto e, as terras de
algodão se transformaram em terras de pastagens. O processo de erosão-lixiviação do
solo levou os pecuaristas a adotarem a estratégia de “renovar as pastagens”; pouco
capitalizados economicamente e tecnicamente, os proprietários rurais não adotaram
245 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
práticas culturais que revertessem a degradação ambiental e, pior, que repusessem as
perdas do agrossistema1 regional.
Essas transformações paisagísticas, associadas às condições de mercado, determinaram
a desvalorização dos terrenos agrícolas que, por sua vez, causou problemas econômicos
para os pequenos produtores, provocando a venda das terras e a migração para as cidades
ou para regiões mais distantes.

Todo agrossistema é um ecossistema exportador, ou seja, a perda de macro e de micro nutrientes é inevitável
1

e, portanto, é imprescindível que se efetuem as reposições dos elementos químicos, objetivando a manutenção
da capacidade produtiva do solo.
Entendemos que as frentes pioneiras e, mesmo, a
“vida rural” nessa parcela do território brasileiro per-
maneceram pouco tempo ligadas à terra, quer como
atividade econômica, quer como local de moradia ou
de afinidade, o que se manifesta no padrão da paisa-
gem edificada, na qual predominam: (1) pastagens
pouco produtivas que dão suporte a uma pecuária
extensiva com manejos atrasados; (2) habitat rural
disperso e baixo Índice de Desenvolvimento Humano
– materializado na ausência de serviços públicos es-
senciais (escolas, postos de saúde...); na inexistência
de culturas alimentares. É comum o morador rural se
abastecer de produtos “banais” (verduras, frutas etc.)
na cidade; (3) o desenho rural foi elaborado a partir
das rupturas entre o campo e a cidade e, assim, o pri-
meiro foi deixado em plano bastante inferiorizado no
que diz respeito à sua construção.
Nós vamos apreender uma parcela do conjunto
territorial mais amplo, denominado de Pontal do
Paranapanema – a bacia hidrográfica do ribeirão
Santo Antônio (Figura 1), a partir de um procedi-
Figura 1. Córrego do Engano mento teórico-metodológico centrado no modelo
ou Santo Antonio GTP (Geossistema – Território – Paisagem).
(Landsat 1999 – CC 453)

O método GTP – Geossistema – Território – Paisagem: para dominar a


complexidade e a diversidade ambiental
246 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

A exploração geográfica da interface natureza-sociedade exige um método de comple-


xidade e de diversidade. Ele se situa no encontro de vários percursos metodológicos e deve
responder a princípios contraditórios: evitar todo globalismo ambíguo, evitar ser unívoco
e linear, permanecer didático para ser operatório.
A maioria dos objetos, dos conceitos e das noções que encontramos pertence ao mesmo
tempo ao campo cultural e ao campo social. São “mistos” no sentido de Serge Moscovici e
eles devem ser tratados como tal, isto é, como entidades polissêmicas.
O meio ambiente não é mais um simples substituto e/ou um prolongamento das ciên-
cias da natureza e da ecologia científica. Atualmente, mais que nunca, o meio ambiente
reclama um “método de complexidade”, associando dialeticamente epistemologia e história
das ciências, teoria e prática, método e técnica, saber e formação.
As dificuldades não serão superadas enquanto a separação entre teoria e prática,
epistemologia e método, método e tecnologia não sejam ultrapassadas por tentativas
integradas e interativas de tipo paradigmático. Proposto desde 1990, o sistema GTP, que
associa o geossistema-fonte ao território-recurso e à paisagem-identidade2 não tem outra
razão de ser. É uma tentativa, de ordem geográfica, para matizar, ao mesmo tempo, a
globalidade, a diversidade e a interatividade de todo sistema ambiental. Ele não é um fim
em si mesmo. É apenas uma ferramenta. É apenas uma etapa. O sistema GTP não substitui
nada. Sua função essencial é de relançar a pesquisa ambiental sobre bases multidimensionais,
no tempo e no espaço, quer seja no quadro de disciplinas ou mesmo em formas de construção
da interdisciplinaridade. Sua vocação primeira é favorecer uma reflexão epistemológica e
conceitual e, na medida do possível, desencadear proposições metodológicas concretas.
A interface sociedade-natureza está ainda muito insuficientemente dominada. Não
se passa diretamente dos conceitos usados nas ciências da natureza para os conceitos
sociais; não se pode conceitualizar a totalidade da interface a partir de um conceito único
e unívoco; devemos elaborar um método de complexidade e de diversidade.
O sistema proposto define três campos semânticos que, cada um com sua própria finalida-
de, varrem a interface a partir de três conceitos centrais: o geossistema, o território, a paisagem.
O geossistema, inspirado na geografia soviética e em diversos “land-use” anglo-saxões,
é um conceito de inspiração naturalista que leva em consideração as massas, os volumes e
os funcionamentos bio-físico-químicos. Ele está estreitamente ligado com as linguagens,
os conceitos e os métodos das ciências da natureza. Ele introduz a dimensão geográfica
nos estudos de meio ambiente natural privilegiando a dimensão histórica (impacto das
sociedades) e a dimensão espacial (horizontal: geohorizontes, e vertical: geótipo, geofácies,
geocomplexo etc.), campos nos quais ele é mais eficiente que o ecossistema.
O território, conceito central da ciência geográfica é, de alguma forma, a interpretação
247 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
socioeconômica do geossistema, como o agrossistema é aquela do ecossistema. A dialética
fonte-recurso fundamenta esta análise do território.
A paisagem, noção mais que conceito, permite aqui ao geógrafo aceder ao mundo das
representações sociais da natureza assegurando ao mesmo tempo um elo com os objetos
naturais em sua dimensão geossistêmica.
O GTP permite ir, por exemplo, no caso de um solo, de um fenômeno físico-químico
bruto (“perfil pedológico”) para sua interpretação socioeconômica (“perfil cultural”) e sua
representação social (fertilidade). No outro sentido, ele assegura a transição de um projeto

Géosystème-source – territoire-ressource – paysage-ressourcement.


2
socioeconômico (silvicultura) e de uma representação social (espaço verde) para um objeto
natural (ecossistema florestal).
O sistema GTP não esgota a totalidade da paisagem. O mesmo ocorre com o geossiste-
ma e o território que encontram alhures seu pleno desenvolvimento (Cl. e G. BERTRAND,
2007). O que conta aqui antes de tudo é reaproximar estes três conceitos ou noções para
analisar como funciona um meio ambiente geográfico na sua globalidade. Trata-se então,
essencialmente, de apreender as interações entre elementos constitutivos diferentes e, muito
especialmente, de ver como interagem a paisagem, o território e o geossistema.

O geocomplexo da bacia do ribeirão Santo Antônio

A compartimentação geomorfológica
Na análise integrada da paisagem, a sua diversidade apropriada à compartimenta-
ção geomorfológica leva-nos a definir as unidades básicas da Alta, Média e Baixa bacia
hidrográfica (Figura 2).
– a alta bacia, cuja geodiversidade é marcada pela ocorrência da formação Bauru que
define um relevo mais rugoso. Aqui estão as nascentes dos afluentes formadores da bacia
do ribeirão Santo Antonio. Os primeiros pioneiros – menos preparados tecnicamente e
economicamente – ocuparam essas áreas mais elevadas, autênticas “bocas-do-sertão”3,
resultando num caráter muito agressivo de lesionamento da paisagem. A ocupação inicial
se deu numa matriz de pequenas propriedades que abrigavam os pioneiros e plantadores
de algodão. Esse “mundo rural” se encontra, atualmente, envelhecido e empobrecido...
à espera da chegada da cana-de-açúcar;
– a média bacia, cuja geodiversidade se notabiliza pela ocorrência de solos derivados do
arenito Caiuá. A forma desleixada de manejar a média e grande propriedade, regra geral,
com pecuária extensiva, imediatamente após o desestímulo à cultura do algodão (1965),
248 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

é responsável pelo lesionamento agudo da paisagem – desperenização, erosão e voçoroca-


mento... O baixo rendimento das pastagens, a pressão do Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra (MST) e a incapacidade de gestão dos médios e grandes proprietários favorecem
a substituição de pastagens degradadas pela cana-de-açúcar;
– a baixa bacia, cujo desmatamento inicial (1940) teve como objetivo maior “legiti-
mar” a posse da terra. A partir dos anos 1990, esta porção territorial foi objeto de intenso
e contínuo processo de assentamentos rurais.
3
No atual município de Mirante do Paranapanema, o povoamento “efetivo” deu-se a partir da chegada de
cerca de 40 imigrantes (tchecos e húngaros), em 1926, que desmataram a machado, construíram as mora-
das, desenvolveram uma agricultura de subsistência e viveram em total isolamento até a chegada da frente
pioneira que subsistiu na euforia das boas colheitas de algodão.
Figura 2. A compartimentação da bacia hidrográfica da bacia do ribeirão
Santo Antônio – Alta – Média – Baixa –

249 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Foto 1. Ribeirão Santo Antônio ou do Engano (a 500 m a jusante da ponte/SP-613. O leito principal se
encontra totalmente assoreado e a lâmina d´água não atinge usualmente mais de 40 cm de profundidade
na estação chuvosa. A drenagem apresenta-se anastomosada – em vários trechos desse ribeirão –, devido à
incompetência do curso d´água em transportar todo o material sedimentar que vem de montante
O ribeirão Santo Antônio apresenta intenso processo de assoreamento e de despe-
renização, conforme se observa na foto 1. Esta situação é motivada, de um lado pela
suscetibilidade da litologia arenítica da Formação Caiuá e, de outro, pela vulnerabilidade
resultante do processo de desmatamento, inclusive das matas ciliares, conforme mostra
a figura 3.

Figura 3. O registro de 2010 acusa, como fato novo e mais relevante, a redução da mata ciliar na alta bacia do
ribeirão Santo Antônio. Essa realidade foi motivada pelo temor dos proprietários em relação ao Novo Código
Florestal Brasileiro e, então, anteciparam o desmatamento: lamentável!
250 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

As pirâmides de vegetação..., ou melhor, os geohorizontes do


geocomplexo

A Pirâmide de Vegetação, acompanhada da Ficha de Levantamento Fitossociológico,


por representar cartograficamente a estrutura vertical – do solo aos estratos superiores da
vegetação – se presta para diagnosticar os geohorizontes do geocomplexo.
Embora tenhamos efetuados seis levantamentos fitossociológicos, vamos apresentar,
nesse artigo, apenas o levantamento do lote número 1, efetuado na alta bacia do ribeirão
Santo Antônio.
Lote nº 01
(a) Ficha biogeográfica
Lote nº 1 Domínio bioclimático: Tropical
Formação vegetal: Floresta Tropical Semidecídua Série de vegetação: Floresta do SW de São Paulo
Município: Mirante do Paranapanema – Estado: São Paulo
Localização: Nascentes do ribeirão Santo Antônio. Latitude: 22º12’12”S - Longitude: 51º55’52” W - Data: 12/03/2015
Nº de Alt (m)(aprox.) Espécies Estrato
Espécies por estrato
Indiv. A/D S
ARBÓREO
ARBORESCENTE
2/Progressão
Nectandra megapotamica (Spreng.) (Canelinha) 12 5 1 3
ARBUSTIVO
1/Progressão
Nectandra megapotamica (Spreng.) (Canelinha) 5 2 1 1
SUBARBUSTIVO
1/Progressão
Candeia 15 1,5 1 3
HERBÁCO/RASTESIRO
Goiabeira 5 1 + +
Candeia 15 1 1 1
Castelo-branco 50 1 + +
1/Progressão
Mirtácea 20 0,5 + +
Açoita-cavalo 5 0,5 1 2
Grama-”Mato Grosso” Contín 0,1 5 4
Bico-de-Pato 10 0,3 + 1
HUMUS: superfície recoberta, predominantemente, por grama tipo “Mato Grosso” que se presta como pastagem ao
rebanho. Solo sem o perfil superficial, ou seja, sem a presença de matéria orgânica/húmos
ALTITUDE: 390 m DECLIVIDADE: 30º EXPOSIÇÃO: SE/SW
CLIMA: Tropical, com duas estações: chuvosa (outubro-abril) e seca (maio-setembro). MICRO-CLIMA: Ensolarado semi-úmido
ROCHA-MÃE: Arenito Bauru. Solo: Latossolo Ação antrópica: extensiva, ou seja, a fase de uso intensivo - culturas - está
atenuada pelo uso da área com pastagem. DINÂMICA DE CONJUNTO: vegetação em processo de regeneração, motivada
pela diminuição da pressão antrópica. EROSÃO: ausente.

(b) A Pirâmide de vegetação

251 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 4. Pirâmide representativa do levantamento fitossociológico efetuado no lote 01 (Alta Bacia do ribeirão
Santo Antônio). Observa-se, além da inclinação da vertente, a ocorrência do estrato rasteiro (pastagem) que re-
cobre toda a superfície do lote, do estrato arbustivo e, notadamente, o estrato arborescente (como estrato supe-
rior) constituído de espécies vegetais dispersas, conforme pode ser observado na foto tirada do lote (Figura 21).
As unidades básicas de paisagem da bacia do ribeirão Santo Antônio

A combinação dos elementos naturais associada à cultura dos seus agentes e sujeitos de-
finem processos que se prestam para diagnosticar-prognosticar as transformações históricas e
as dinâmicas atuais em cada um dos três segmentos da bacia hidrográfica, objeto desse estudo.
A decomposição do todo espacial em suas partes, ou seja, a subdivisão da área em unida-
des elementares, tem como fim compreender as “descontinuidades objetivas da paisagem”,
segundo propôs Bertrand (1968, p. 251).
Partindo dos elementos fornecidos pela pesquisa, é possível uma classificação das uni-
dades componentes da paisagem, na bacia do ribeirão Santo Antônio, em função de uma ti-
pologia dinâmica e da fragilidade dos equilíbrios morfo-pedogenéticos, nos seguintes tipos:
a) áreas de vegetação residual em biostasia subclimácica e paraclimácica – nessas áreas, o po-
tencial ecológico se mantém praticamente estável e em equilíbrio com a exploração biológica,
embora esta se apresente sensivelmente alterada pela ação antrópica, principalmente de sua
composição florística e da fauna. A título de exemplificar essas unidades, inserimos a figura 5,
onde a vegetação de mata tropical semidecídua eliminada, foi substituída por espécies vegetais
de maior valência ecológica (embaúba, taquaras, sapé e o próprio capim colonião, semeado
pelos posseiros). A madeira de maior valor econômico foi parcialmente retirada de todas as
áreas de matas que restaram por efeito da ação antrópica. Embora o potencial ecológico dessa
unidade não tenha sido alterado, ele não oferece condições muito favoráveis ao ressurgimento
da biota tropical, nos geótopos de onde ela foi eliminada. Certamente, a fase mais favorável –
“otimum climaticum” – para o ressurgimento natural da mata talvez tenha passado.
Nas condições biogeográficas atuais – tanto do potencial ecológico, quanto da explora-
ção biológica – se não ocorrerem novas intervenções antrópicas, é possível que essas biotas
evoluam para uma dinâmica climácica (plenitude da biostasia), mesmo sofrendo alterações
florísticas. O desequilíbrio deu-se no momento em que a ação antrópica se fez presente.
b) os “núcleos de desertificação”/setores em resistasia, retomada por ação antrópica, com potencial
252 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

ecológica degradado –, podendo ser reconhecidos como verdadeiros geótopos áridos, sem que a
pedogênese completasse sua evolução. Em sua gênese, incluem-se fatos ligados a uma predisposi-
ção da estrutura geoecológica, na maior parte das vezes acentuada por ações antrópicas. Figura 6.
Durante a última glaciação quaternária, a vegetação de mata de alguns geótopos foi mais
lesionada e até mesmo eliminada e que, na fase pós-glacial, embora tenham ocorrido inter-
valos de “otimum climaticum” favoráveis à biota tropical úmida, não houve tempo suficiente
para o desenvolvimento da pedogênese. Quando as ações antrópicas destruíram a cobertura
vegetal, o suporte geoecológico revelou sua natureza de sedimentos (sedimentos cenozóicos)
não pedogeneizados. A dinâmica atual observada nesses “núcleos de desertificação” – sob o
clima tropical úmido – revela que a pedogênese é parcialmente anulada pela morfogênese.
Figura 5. áreas de vegetação residual em biostasia Figura 6. “núcleos de desertificação”/setores
subclimácica e paraclimácica que, apesar das alterações em resistasia, retomada por ação antrópica,
florísticas, mantém o estado de equilíbrio biostásico: com potencial ecológica degradado
Alta bacia do ribeirão Santo Antônio.

c) áreas de veredas com dinâmica regressiva de origem antrópica –. as várzeas do ribeirão


253 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Santo Antônio. Originalmente, estavam inseridas em um geossistema em biostasia, repre-
sentando geofácies parcelados com campos ou matas ciliares. Mesmo as ocupadas com
pastagens às vezes se diferenciam do conjunto devido às inundações sazonais, com o pasto
apodrecendo pela ação da água. Figura 7.
d) área canavieira com dinâmica estável – área inicialmente ocupada com a cultura
de algodão e, em seguida com pastagens. Nos últimos anos, a crise da pecuária e os con-
flitos com o MST levaram os proprietários a optarem por arrendamento de suas terras
às usinas de álcool. Os contratos de arrendamento são atenciosos em relação às «terras
produtivas» evitando, sobretudo, o plantio da cana em áreas suscetíveis à erosão ou nas
APPs. Figura 8.
Figura 7. áreas de veredas com dinâmica regressiva de Figura 8. área canavieira com dinâmica estável.
origem antrópica

O território: a dimensão naturalista de um conceito social

Os geossistemas estão lá, no seu mosaico funcional com seus componentes à base de ar,
254 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

água, de rocha e de vida. Mas eles não exprimem em si mesmos nenhuma possibilidade ou
impossibilidade social. Eles não têm projeto social. A potencialidade e a limitação não estão
na natureza da natureza. Os determinantes, se existem, estão na sociedade. Eles exprimem ali
a desigualdade das sociedades e dos homens diante da natureza, do território, da paisagem.

A dinâmica territorial

Nós abordaremos a dinâmica territorial, ou seja, as transformações paisagísticas, ocor-


rida no recorte da bacia do Santo Antônio a partir de 1985, enfatizando o uso da terra,
notadamente a expansão da cana-de-açúcar apoiado nas imagens do satélite LANDSAT
TM referentes aos anos de 1985, 1995, 2005, 2010 e 2014.
A expansão da cana-de-açúcar na bacia do ribeirão Santo Antônio

– Inegavelmente, a expansão da cana-de-açúcar na bacia do ribeirão Santo Antônio


teve como determinante variáveis externas e internas. Entre as variáveis internas destaca-
mos: a morfologia do relevo, a estrutura fundiária, os assentamentos rurais e a pressão do
MST pela reforma agrária no Pontal do Paranapanema.
– A Figura 9 acusa, em 1985, pequenas áreas ocupadas pela cultura da cana-de-açúcar,
notadamente na média bacia. As pastagens predominavam em termos de cobertura do
solo. Aqui, na média bacia, a estrutura fundiária – médias e grandes propriedades –, asso-
ciada às condições de relevo mais plano e, sobretudo à pressão/invasão de terras efetuadas
pelo MST, levam os fazendeiros ao arrendamento de parcelas de suas propriedades ao
plantio da cana.
– Merece destaque a ocorrência de vegetação secundária e fragmentos de floresta na-
tiva, notadamente na alta bacia. Nunca é demais lembrar que foi na alta bacia onde se
iniciou a ocupação do território, com a chegada de imigrantes tchecos, eslavos...
– No início da ocupação, década de 1930, o desmatamento atendeu às necessida-
des de sobrevivência dos colonos e motivou o surgimento de inúmeros bairros rurais.
(Foto 2)
– O período de 1950 a 1965 foi marcado pelo «ciclo do algodão». Este ciclo mo-
tivou a rápida substituição da floresta pela agricultura e uma pujança socioeconômica
dos pequenos proprietários. A partir dos anos 1970, observa-se acentuado êxodo rural,
agregação de pequenas propriedades rurais que originam as médias propriedades atuais.
A população jovem migra, notadamente para a periferia da Amazônia que, diga-se de pas-
sagem, era o «eldorado da vez». Os mais velhos se transferem para a cidade de Mirante do
Paranapanema e vão viver de rendimentos da caderneta de poupança ou do arrendamento
das suas propriedades.
A imagem LANDSAT de 1995 (figura 10), revela: (a) inúmeras pequenas áreas de
255 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
cana-de-açúcar dispersas em praticamente toda a bacia hidrográfica; (b) a coalescência
das pastagens, inclusive na alta bacia, visto que muitas pequenas propriedades/”terras de
agricultores” foram agregadas constituindo-se em “terras de fazendeiros”; (b) a faixa con-
tínua ocupada com cana-de-açúcar, praticamente no limite entre a média e a baixa bacia
se explica pela instalação da ETH – Usina de Álcool e Açúcar – no município de Mirante
do Paranapanema.
– O registro de 2005 (figura 11) revela significativa retração da faixa contínua e o sur-
gimento de um número maior de pequenas manchas com cana-de-açúcar. Esta dinâmica
se explica, em parte, pela crise do setor sucro-alcooleiro a partir do anos 2000 e que vai se
aprofundar de forma muito negativa a partir do ano de 2008.
– Observa-se, notadamente na baixa bacia – área predominantemente de assentamen-
tos rurais, o surgimento de manchas significativas de vegetação secundária, muitas delas
são, na verdade, de plantio de eucalipto.
– Em 2010, (figura 12) a presença de outras usinas de álcool nos municípios vizinhos
– Narandiba, Sandovalina, Teodoro Sampaio, Presidente Venceslau, Santo Anastácio... –
associado à crise da pecuária, à insegurança dos fazendeiros pela presença do forte MST
– motivam, ainda mais a expansão da cana-de-açúcar, apesar desse setor, também, está em
crise.. nesse período.
– É possível prognosticar que a dinâmica de uso da terra, registrado na imagem de
2014 (figura 13), está praticamente sedimentada, notadamente com o predomínio da
cana-de-açúcar. Na baixa bacia, dominada pelos assentamentos rurais, cujos assentados
vivem da renda gerada pelo leite, do salário aferido pelo trabalho de cortador de cana e/ou
de outros serviços prestados às usinas de álcool.
– É necessário, no entanto, acompanhar a evolução das dinâmicas socioeconômico
dos pequenos proprietários da alta bacia e, notadamente dos assentados da baixa bacia,
pois, certamente as mudanças políticas atuais podem impactar toda essa população em
consequência de (possíveis) mudanças das políticas públicas.
256 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 9. Uso da terra da bacia hidrográfica Figura 10. Uso da terra da bacia hidrográfica
do ribeirão Santo Antônio – 1985. do ribeirão Santo Antônio – 1995.
Figura 11. Uso da terra da bacia hidrográfica Figura 12, Uso da terra da bacia hidrográfica
do ribeirão Santo Antônio – 2005. do ribeirão Santo Antônio – 2010.

257 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 13. Uso da terra da bacia hidrográfica do ribeirão Santo Antônio – 2014.
A paisagem e sua dimensão sócio-cultural

No modelo GTP a paisagem deve ser tratada como um subsistema: o da percepção da


paisagem, ou seja, a paisagem é considerada/abordada como o lado sensível do meio ambiente.
Todos sabem hoje que a paisagem não é apenas a natureza. Ela é uma criação humana,
a marca de uma sociedade sobre um território.
Criadora da identidade, ela participa do patrimônio dos indivíduos e das sociedades.
Ela tornou-se uma das facetas culturais do meio ambiente.
A análise paisagística, por sua própria natureza, enfim e sobretudo, traz dois elementos
capitais e totalmente inovadores à transformação do território:
– se a análise paisagística é, por sua própria essência, de natureza profundamente pa-
trimonial, ela deve ser também prospectiva. Uma paisagem vive no longo prazo, e sua
consideração obriga a ultrapassar a necessidade do curto prazo.
– enfim, a análise paisagística, que faz constantemente apelo à sensibilidade, à qualidade
da vida, à identidade, ao território, parece ser uma das ferramentas privilegiadas de reflexão
e de desenvolvimento em escala local. A análise paisagística faz então parte deste aspecto
“subsidiário ativo” que pode animar uma reflexão renovada sobre o desenvolvimento local e
regional. A consideração da paisagem participa da dinâmica de um procedimento cidadão.
258 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Foto 2. Cemitério abandonado que se presta como paisagem indicadora


do processo de desterritorialização: alta bacia do ribeirão Santo Antonio.

A ideia de associar a qualidade de uma paisagem à qualidade de uma região e à quali-


dade de um produto agrícola, artesanal, industrial ou cultural, não é nova, mas ela merece
ser sistematizada e tornar-se um dos fundamentos do desenvolvimento econômico e da
promoção das regiões (exemplo dos queijos da Serra da Estrela...).
Apesar de não ser possível, nesse espaço, explicitar as questões que orientaram as entre-
vistas semi-dirigidas, ressalto que a partir das mesmas foi possível diagnosticar níveis muito
diferentes de sentimentos de identidades e de pertencimento entre os moradores da alta
bacia (pequenos agricultores, que aí moram desde a década de 1960/70) e os assentados
rurais, a partir da reforma agrária iniciada na última década do século passado, da baixa
bacia do ribeirão Santo Antônio.

Considerações finais

A respeito de um novo desafio que é colocado para a ciência geográfica, em razão da


análise integrada, Bertrand & Bertrand apresentam uma interessante reflexão:
O avanço entre a geografia e as ciências da natureza é difícil. Por um lado, é preciso
ultrapassar um limite epistemológico de primeira grandeza entre ciências da sociedade
e ciências da natureza com os obstáculos que são, por exemplo, a analogia, o reducionis-
mo, o superdeterminismo, a babelização etc. Por outro lado, a geografia não tem mais
diante dela as antigas “ciências naturais” que um espírito pouco culto poderia mobilizar
diretamente. Atualmente, a geografia se encontra diante de ciências “duras”, complexas,
diferenciadas, em incessante recomposição e usando as mais altas tecnologias.
A geografia também tem a obrigação de transformar um produto natural bruto (massa
de ar, árvore, montanha, fonte) em um produto “socializado”, isto é, incorporado nas
problemáticas sociais, econômicas e culturais. A partir de um fato natural, a geografia
tem a obrigação de produzir a mais-valia social. A nascente se transforma em recurso.
Esta transformação, até esta transmutação foi por muito tempo confiada à geografia física
considerada, pelo menos no início, como um subconjunto da disciplina. (BERTRAND;
BERTRAND, 2009. p. 130)
259 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Desta forma, na esteira das discussões mais recentes sobre o meio ambiente e a necessi-
dade de planos adequados de utilização e conservação dos recursos naturais, a ideia de estudo
integrado é fundamental ao desenvolvimento de uma pesquisa, que pretende contemplar os
impactos socioambientais e seus múltiplos significados e efeitos dentro da complexidade dos
territórios. Então, é imprescindível analisar o modo pelo qual o processo de territorialização
dos agentes sociais impacta o meio ambiente para se apresentar sínteses que contemplem as
orientações para tomada de decisão. Isto quando se trata de políticas de ordenamento territo-
rial coerentes à urgente recomposição das paisagens degradadas em diferentes tempos e lugares.
Em relação às mudanças mais recentes, observadas no recorte geográfico da bacia hi-
drográfica do ribeirão Santo Antônio, há que se destacar, uma vez mais, a expansão da
cana-de-açúcar, notadamente na média bacia hidrográfica, enquanto que na baixa bacia
predominam os assentamentos agrários. Os pequenos proprietários da alta bacia prati-
camente ficaram à margem dessas mudanças recentes, por duas razões principais: (a) a
rugosidade do relevo associada à estrutura fundiária (pequena e média propriedade) não
motivou o interesse das usinas de álcool pelos contratos de arrendamento; (b) as políticas
públicas ficaram quase que restritas (eu ia dizendo: concentradas) nas áreas de assentamentos
rurais, ou seja, na baixa bacia.
Apesar de ainda não suficientemente aprofundada, acreditamos que a alta, a média e a
baixa bacia hidrográfica do ribeirão Santo Antônio constituem-se em unidades totalmente
diferenciadas nos atributos próprios do potencial ecológico, da exploração biológica e, no-
tadamente nos agentes e atores (eu ia dizendo: das sucessivas sociedades) que construíram
as suas paisagens para produzir, morar e sonhar.
Nos aspectos da identidade, sentimento de pertencinimento, ou seja, de relação com
a terra, é na alta bacia que se encontram, de forma mais explícita – e mesmo, mais “guar-
dadas” – as paisagens à frente e atrás dos olhos.... dessas pessoas que viveram o áureo,
próspero e alegre ciclo do algodão e que, hoje, estão empobrecidas, desiludidas.

Agradecimentos

Este artigo foi extraído do Relatório Científico apresentado à FAPESP (Processo:


2013/03805-0).

Referências
260 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

BERTRAND, G.; BERTRAND, C.: Uma geografia transversal e de travessias: o meio ambiente
através dos territórios e das temporalidades. Tradução: Messias Modesto dos Passos. Maringá:
Massoni, 2007.
PASSOS, M.M. Relatório Científico FAPESP, nº 2010/51074-6.
Canais de levada e regos d’água:
contribuições portuguesas para
uma outra abordagem brasileira

Renato Emanuel Silva1


Silvio Carlos Rodrigues2
António Avelino Batista Vieira3

1. Os canais abertos artificiais na apropriação dos espaços

As origens dos pequenos canais de transposição de água podem ser incluídas no con-
junto de esforços que evocam a busca do homem para superar a dependência de cenários
instáveis, em nome da adaptação dos ambientes às suas necessidades (Sojka, Bjorneberg e
Entry, 2002). Conforme as demandas de consumo agrícola e as adequações dos espaços se
tornaram maiores, as sociedades buscaram superar as sazonalidades climáticas pela irrigação
com canais.
Estas estruturas têm registros em diferentes períodos históricos e regiões do globo,
produtos de inúmeras culturas, acabando por perdurar suas técnicas de modificação dos
regimes fluviais, das áreas de inundação e mesmo das vertentes irrigadas. Compõe este
mosaico as terras das áreas do Crescente Fértil, entre o norte da África e Oriente Médio, a
261 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
agricultura de jardinagem asiática e os canais de irrigação americanos pré-coloniais.
Na Europa, que mais tarde dissemina essa cultura também nas colônias, são observados
esforços de irrigação a partir de canais pré-romanos, sendo difícil, como apontam
Leibundgut e Kohn (2014) rastrear suas origens. Observamos contributos dos povos pré-
-romanos, gregos, romanos, indo-europeus ou árabes, que desenvolveram técnicas, cada

1
Aluno Programa de Pós-graduação em Geografia/Universidade Federal de Uberlândia/Brasil, com mobili-
dade pelo Doutorado Sanduiche (CAPES 88881.135170/2016-01) para Universidade do Minho/Portugal
renato.logan@gmail.com
2
Professor Doutor do Instituto de Geografia/ Universidade Federal de Uberlândia/Brasil, silgel@ufu.br
3
Professor Doutor do Departamento de Geografia/ Universidade do Minho/Portugal, vieira@geografia.uminho.pt
vez mais adaptadas e especificas aos territórios, se destacando também os grupos religio-
sos da idade média. Contudo, para além dos territórios ligados aos monastérios e ordens
religiosas, outras regiões foram objeto de aplicação de diversificadas técnicas de irrigação,
implementadas por diferentes perfis culturais, como apontam Stalder (1994), em áreas
suíças, e Cook (2003 e 2007) com estudos na Grã-Bretanha.
No mundo ibérico ocorreram influências romanas e mouras, no desenvolvimento
dos processos de irrigação (Gerrard, 2011), também os clérigos tiveram sua importân-
cia (Berman, 1986; Evans, 1996 e Lajusticia, 2014). Entre os estados nações europeus,
Portugal se destaca pela antiga origem de sistemas de rega, pré-romanos, e no aspecto da
adaptação dos espaços para as suas demandas produtivas, principalmente agrícolas, em um
território reduzido. Como estes modelos se mostraram bem-sucedidos, acabaram sendo
exportados, no período colonial, para outros territórios, como Guiné Bissau, Cabo Verde,
Angola, Moçambique, Brasil, além dos territórios portugueses como Ilhas da Madeira e
dos Açores.
Em diversas regiões do planeta se pode passar por pequenos canais abertos artificiais
confundindo-os com canais naturais ou simplesmente não percebe-los. Estes elementos,
fundamentais no meio agrícola tradicional, são muitas vezes ignorados por setores cientí-
ficos e civis. Por consequência, se perde a oportunidade de conhecer e refletir como estas
técnicas de apropriação geram impactos sobre natureza e sociedade.
Pensando especificamente nos territórios lusófonos, embora se acredite que tenham
ocorrido distinções e adequações nas gestões destes canais, eles devem partilhar uma
mesma origem histórica. Logo é pertinente considerar como estes canais têm sido tratados
em diferentes regiões, se ainda possuem importância nos contextos socioeconômicos e
quais impactos representam do ponto de vista ambiental. É justamente esta a oportunida-
de apresentada neste estudo ao avaliar estes canais em Portugal Continental (região norte
do País), em um território insular ainda pertencente ao país (região autônoma da Ilha da
Madeira) e em território lusófono independente, o Brasil.
262 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

2. Desafios na investigação de canais derivados multifuncionais

Os pequenos canais derivados multifuncionais são de difícil localização na paisagem,


o que prejudica levantamentos precisos que queiram quantificá-los e espacializá-los. Em
muitos casos a ausência de documentos e fiscalizações tornam o trabalho ainda mais com-
plicado, passam despercebidos, cortando meias vertentes, atravessando bosques, pastagens,
campos agrícolas e vilas. A figura 1 sugere a dificuldade de encontrá-los em imagens do
Google Earth, tão usadas para levantamentos e estudos de gestão do espaço.
Figura 1: Imagens de sensores remotos e a dificuldade de identificar os canais derivados artificiais em meio a
vegetação ou na distinção dos mesmos de outras assinaturas topográficas humanas.

Para localizar estes canais é necessário combinar um conjunto diversificado de meto-


dologias, desde os levantamentos de registros cartográficos, documentos técnicos, passan-
do por imagens de satélites e finalmente atividades de campo. A seguir apresentamos os
procedimentos utilizados para o levantamento destes elementos nas áreas dos estudos de
caso, de modo a revelar quais resultados preliminares os mesmos ofereceram:
a) Levantamento de registros referentes aos canais derivados: para esta pesquisa foram
importantes os arquivos da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), entidade que possui
arquivos oriundo das atividades realizadas pelos Serviços Hidraulicos para gerir as águas do
263 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
país. O acervo documental e técnico constitui oportunidade de entender o funcionamento de
uma Instituição Pública onde a água e o seu uso marcam profundamente as relações sociais
e as atividades económicas. Parte desses registros estão atualmente sob responsabilidade do
Departamento de Geografia da Universidade do Minho. O acesso aos documentos é facili-
tador na identificação de possíveis canais a serem visitados, sugerindo ainda uma gestão mais
eficiente destes recursos. Contudo, nem sempre os registros trazem informações suficientes,
principalmente em casos em que os canais são facilmente ocultos na paisagem. Por exemplo,
na fase de levantamento documental dos regadios do norte de Portugal, em um universo de
mais de 150 arquivos, cerca de 20 apresentavam algum croqui ou referência de localização e
somente 5 revelavam, além dos mapas, esquemas, registros das obras e, em 3 casos, fotografias.
De modo que foram estes os casos escolhidos para visitação e avaliação das condições. Na Ilha
da Madeira, embora não se tenha buscado arquivos públicos, se encontrou uma outra forma de
localização das levadas, que inclusive se mostrou de forma bastante prática, trata-se do levanta-
mento de rota turísticas. O que ocorre é que grande número destes canais já está consolidado
como percurso de pedestres, o que os torna um dos principais meios de promoção turística
da ilha. Portanto, a partir da valorização turística, os canais são geridos, protegidos e alvo de
divulgação ostensiva das suas potencialidades turísticas, históricas e culturais. Assim, sites na
internet, guias e reportagens são encontradas no ambiente virtual facilitando a identificação e
localização dos mesmos. A figura 2 apresenta as duas fontes de informação utilizada nesta fase.
264 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 2. Arquivos do APA com fotografias, mapas, esquemas e outros dados (A)
e Site com informações ligadas a promoção do turismo na ilha da Madeira (B)

b) O trabalho de campo, na tentativa de suprir a ausência de registros: em situações


em que não existem ou não se tem acesso aos documentos dos canais, é necessário se
valer de outros recursos investigativos. Primeiro, é importante conhecer o contexto da
região, se são comuns ou raros os canais artificiais, se são partilhados, e em que contextos
aparecem (tipos de propriedade rural, relevo, canais fluviais de origem, serviços que aten-
dem). As atividades de campo seriam o recurso ideal para contatar moradores, que pode-
riam fornecer mais informações relativas à existência e funcionamento destes sistemas de
derivação. Nessa fase também pode se perceber quais usuários dos canais são mais abertos
à visitação e a realização de trabalhos em série, como monitoramento regulares dos canais
ou realização de registros fotográficos e uso de veículos aéreos não tripulados. Outra pos-
sibilidade é que se tenha nos agricultores mais receptivos a porta de entrada para visitar
outras propriedades e ser inserido em núcleos de reunião, como associação de agricultores.
Durante a atividade de campo é importante tomar cuidados para certificar se o canal de
interesse é de fato um derivado multifuncional, que pode ser confundido com um sulco
de irrigação sazonal, ou com uma vala de drenagem. Também é possível que diferentes de-
signações surjam em cada área visitada. Por exemplo, em Portugal os canais são chamados
de levadas ou regos, mas também possuem a fase de rega, identificados como regadios.
No Brasil são comuns nomes como canal de rega, derivação, rego d’água, sulco e canale-
ta. Uma vez localizados, é coerente realizar registros fotográfico e o georreferenciamento,
identificar os tipos de serviços que atendem, se são perenes, se existem conflitos pelo uso
da água, quantas manutenções são realizadas por ano e por quem, entre outras demandas
que surjam para cada pesquisa. Por se tratarem de uma herança cultural, a identificação
de um canal artificial significa que outros ainda possam ser também identificados naquela
mesma bacia ou região. Em caso de dificuldades de acesso a certos locais, pelas condições
do relevo ou presença de vegetação densa, podem-se utilizar drones para sobrevoos que
apontem ou descartem a presença de canais artificiais. Nesta pesquisa drones foram uti-
lizados também para verificar as relações dos canais com as vertentes e os fundos de vale.
A figura 3 revela algumas das atividades realizadas a partir dos trabalhos de campo.

265 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 3. Atividades de campo e instrumentação no registro de imagens e georreferenciamento


c) Uso de imagens de sensores remotos e dispositivos de monitoramento: nem sempre a
resolução do sensor remoto disponível é suficiente para a identificação destes canais. Logo,
esta operação funciona melhor como complemento das outras já apresentadas. Em caso de
uso de imagens áreas, de satélites e no Google Earth, recomenda-se a observação de possíveis
barramentos, ponto inicial de derivação, ou “linhas” que partam do fundo de vale em direção
à vertente. Também poços e lagos artificiais, nas vertentes, ou áreas agrícolas policulturais, su-
gerem um abastecimento via canal aberto artificial. Como alguns canais são muito pequenos,
é necessário que se esteja ciente do risco de não identificar todos os canais de uma área ou
mesmo de confundir canais com outras assinaturas topográficas humanas. O ideal é conciliar
o levantamento por produtos de sensores remotos com atividades de campo para confirmar a
verdade terrestre. Sistemas de monitoramento hídrico e de autorização e cobrança de uso da
água podem também apontar canais que estejam legalizados. Finalmente, em caso de bacias
de drenagem pequenas com monitoramento de vazão no exutório, anomalias no comporta-
mento da série histórica da vazão podem auxiliar na identificação de assinaturas topográficas
humanas, como barramentos, drenos e canais abertos artificiais. Por exemplo, quando uma
bacia apresenta mudanças nas vazões máximas e mínimas, sugere-se a existência de elementos
a alterar o seu comportamento nas duas fases discutidas: a diminuição das vazões máximas
sugerem regularização (barramentos) das vazões mínimas que se estabilizam em um nível
superior ao anterior da intervenção; já o aumento das vazões máximas (impermeabilização e
construção de drenos) deveria sugerir a queda das vazões mínimas, pela redução das infiltra-
ções; em um contexto onde ambas vazões extremas se reduzem é possível que desvios (canais
abertos artificiais) estejam atenuando os picos e reduzindo ainda mais as mínimas. Este último
caso, se encontrado, é um bom indicativo a se procurar por tais intervenções e foi empregado
na localização de canais em bacias brasileiras que serviram de base para este estudo. A figura 4
realça como arquivos históricos podem ser uteis na localização dos canais pesquisados .
266 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 4. Croqui com a localização da Levada do Abadim (A),


posteriormente identificada em imagem do Google Earth (B e C)
Localizados e escolhidos os canais de estudo, seguem-se as operações consideradas
pertinentes para o levantamento de dados. Nesta pesquisa foram realizadas análises das
condições ambientais (impactos nos canais naturais, nas vertentes, ecossistêmicos), da
manutenção dos canais (responsabilidade, sazonalidade e técnicas), dos perfis de uso e
ocupação a eles atrelados e dos serviços que fornecem. De modo que os canais para serem
investigados, como estudos de caso, foram escolhidos a partir das seguintes pontuações:
a) Serem testemunhas da realidade regional, tanto para aspectos abióticos, como relevo,
condições dos cursos naturais para capitação, clima e condições dos canais;
b) Serem exemplos da interação com elementos bióticos, como fauna e flora, bem
como no desenvolvimento ou impedimento de ecossistemas;
c) Serem bons exemplos do contexto humano, desde o desenvolvimento histórico,
possíveis práticas de revitalização, manutenção e usos;
d) Passiveis de serem percorridos para conhecimento da realidade do longo do canal.
Considerando estes elementos e se verificando de fato que tais condições são seme-
lhantes em outros canais, os mesmos foram aqui então apresentados como exemplos ge-
rais. Interessados em conhecer as realidades especificas dos mesmos, ou das regiões em
que se encontram, podem buscar leituras em Silva e Rodrigues (2015), Silva, Rodrigues e
Maruschi (2016), Fernandes (2010), Quinta (2011) e Pedrosa (2013).

3. Portugal Continental, a Ilha da Madeira e a importância das levadas

A condição dos canais de levada nos territórios portugueses é interessante. Eles ainda
são importantes para a economia rural e têm um papel no fornecimento de água para a
agricultura e em alguns casos são utilizados no controle de cheias. Existem desde pequenos
sulcos de terra, quase despercebidos na paisagem e semelhantes aos encontrados no Brasil,
até levadas mais elaboradas, revestidas, que se estendem por vários quilômetros, chegando
a canais de maior porte com atendimento de grandes faixas agrícolas (Figura 5).
267 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 5. Diversidade das levadas e seus serviços como (A, B, C) atendimento agrícola,
(D) movimentar moinhos, (E) atividades turísticas e (F) industrial
Em Portugal continental foram investigados canais, principalmente no noroeste do
País, desde o rio Minho, na fronteira com a Galiza, passando pelo Lima, Cávado até às re-
giões que drenam para o Douro. Nestas áreas concentra-se um número expressivo de canais
derivados multifuncionais, chamados canais de levada, que atendem regadios, moinhos de
grãos, engenhos de ração, lagares de azeite, atividades turísticas, entre outras possibilidades.
São significativos, para estes cenários, principalmente a partir da renovação e gestão des-
tes canais, as atividades de engenheiros, guarda-rios e técnicos que contribuiram para uma
administração mais eficiente dos recursos hídricos e o atendimento dos cidadãos usuários
(Costa, 2012; Costa e Cordeiro, 2015; Costa et al., 2015).
De fato, na região é conhecida a cultura de irrigação, como no caso das limas, que já
alterava as condições naturais, tendo Pôças (2011) apontado mudanças nas paisagens a
partir de intervenções como canais artificiais e terraços. Wateau (2011) realizou estudo
sobre a irrigação na região do Minho, na fronteira com a Galiza, Espanha, indicando
uma origem pré-romana e suas características, tanto a partir dos elementos de apropriação
quanto da gestão partilhada do recurso pelos usuários.
Se observou, nas atividades de campo e nos registros documentados, vários canais reves-
tidos, alguns dos quais foram reformados nas ultimas décadas, outros apontados e explorados
pelo seu potencial turístico. As reformas ocorreram, principalmente, a partir de meados do
século passado, na esteira de investimentos realizados na aproximação e posterior inclusão de
Portugal no Bloco Europeu, e deram um novo folego às estruturas, tornando-as mais eficien-
tes no fornecimento de água para os agricultores. Este fato foi atestado, principalmente nos
registros das levadas do noroeste de Portugal, apontando a maior preocupação, por parte dos
órgãos gestores, de conhecer, registrar e monitorar estes sistemas de produção.
O sistema de administração destes canais é público, organiza as associações dos usuá-
rios para definir a partilha de água, arbitrar sobre conflitos, as demandas de manutenção
e os custos envolvidos. Se percebe que as relações se tornaram mais artificiais em nome
de uma melhor gestão dos recursos e da redução de possíveis conflitos entre os usuários.
268 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Do ponto de vista ambiental, principalmente nas visitas realizadas na Levada do


Piscaredo, foi chamativo o problema com erosões em encostas, colocando em risco os
usuários e pedestres, além da própria estrutura. Também se nota a associação de fauna
(insetos, anfíbios e peixes) nos canais artificiais, sugerindo alguma emulação de habitats
fluviais. Em certos pontos, canais perenes ao cruzarem a levada estavam sem manuten-
ção, de forma que o fluxo se conectava a ela, quando deveria seguir pelo fundo de vale.
Finalmente foram apontados problemas com desmoronamentos nos socalcos, muros de
contenção, quedas de blocos e vazamentos nos canais.
Na Levada do Abadim, durante a estação seca, chamou a atenção o fato do canal
natural ser praticamente todo desviado para a levada, gerando impacto ecossistêmico
considerável, pela supressão dos habitats fluviais a jusante do ponto de derivação. Nesta
mesma levada alguns deslizamentos sugerem que por vezes o fluxo no canal foi interrom-
pido, especialmente nas áreas onde uma floresta de pinheiros tem sinais de ter sido afetada
por incêndio florestal.
Em síntese, para os canais em Portugal, é perceptível que ainda possuem relevância
econômica e social, de forma que são protegidos pela legislação, geridos a partir dela por
meio de associações de usuários e órgãos públicos. Em muitos casos são encontrados re-
gistros que atestam as datas de construção das levadas ou de suas principais alterações, e
também existem registros sobre a partilha da água e cobrança pelo recurso. Até conflitos
são intermediados e remediados para que se continue com o foco na produtividade e no
bem-estar dos envolvidos.
Outra questão se refere aos esforços para que também sejam resgatados como elemen-
to culturais, o que gera valoração turística dos ambientes, nos quais se encontram, com
vocação para o bucólico e a tradição rural. Esta condição foi observada, por exemplo, na
levada do Abadim, que tem divulgação de certos trechos para a visitação de antigos moi-
nhos, construídos a partir da ordem de um monarca medieval. Este canal também tem um
interessante aspecto: a associação as datas de início da partilha de água com a festa de São
João, atestando o caráter tradicional que ainda são observados em alguns canais.
Já a levada do Piscaredo, a exemplo daquelas observadas na ilha da Madeira, constitui
um modelo ainda mais avançado de exploração turística, pois a própria levada é tratada
como percurso para pedestres, havendo trabalho de divulgação e sinalização no local para
interessados em seus atrativos cênicos. A elevação de canais multifuncionais a elementos
com potencial turístico é um passo significativo na direção da preservação dos mesmos
como elemento cultural e, caso exista uma gestão imbuída de valores ambientais, pode
contribuir para a preservação de elementos abióticos, ligados a geodiversidade e bióticos
relativos aos ecossistemas e seus elementos.

269 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

4. Impactos e gestão na parte da ilha da Madeira

Mas os investimentos turísticos em canais abertos artificiais em Portugal continental


não se comparam as condições encontradas na Ilha da Madeira. Naquele território as leva-
das têm um papel histórico e agora turístico marcante. Elas levam água das áreas mais hú-
midas àquelas com menores índices pluviométricos. Também têm sido exploradas como
percursos para pedestres, com cerca de 18 rotas bem estabelecidas e exploradas ativamente
por turistas. A Figura 6 revela os aspectos turísticos encontrados nas levadas da Madeira ao
longo de atividades de campo, sendo perceptível o apelo cênico encontrado nestas áreas.
Figura 6. Alguma das paisagens encontradas na ilha da Madeira com presença de canais de levadas

5. Brasil Central e os subestimados regos d’água

No Brasil, com território maior e poucos registros de controle sobre estes canais, é
inviável estimar o seu número, distribuição e impactos. No entanto, se sabe que na região
central os regos d’água se popularizaram e são ainda encontrados próximos a cabeceiras
de drenagem. A origem destes canais remonta ao período colonial, empregados em pro-
priedades rurais e também em atividades minerárias, foram se tornando essenciais para o
estabelecimento de sedes rurais em áreas mais afastadas dos fundos de vale.
Atualmente, embora já não sejam tão importantes para grandes empreendimentos,
resistem sobretudo em áreas tradicionais. Estes atestam uma expressiva multifuncionalida-
de que impacta desde a pluriatividade rural até à segurança alimentar dos usuários, sendo
significativas atividades como: abastecimento de sedes rurais, irrigação, abastecimento de
carneiros hidráulicos, piscicultura, dessedentação de animais, valorização de propriedades
rurais, laser e ornamentação (Figura 7).
270 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 7. Multifuncionalidade dos regos d’água no Brasil: (A, B) transposição de água em meio rural,
(C, G) cultivo irrigado, (D) canais para alivio de cheia, (E, H, F) ornamentação

No entanto, é necessário ressaltar que estes canais não são abordados sob o mesmo
grau de administração observada nos casos anteriores. Pelo contrário, prevalece a rus-
ticidade quanto a abertura, manutenção e partilha da água, sendo comuns cenários
conflituosos. Também é sentida a ignorância por parte de órgãos públicos ligados à gestão
das águas, sendo fraca a legislação no que se refere à normatização e regularização dos
regos d’águas. Não há, por exemplo, inventários sobre quantas são e onde se localizam tais
intervenções, nem se conhece o número de usuários beneficiados e de que modo fazem
uso destas águas.
Em campo, se observaram as condições frágeis destes canais que acabam por contribuir
aquém de suas potencialidades, dada a falta de técnicas para manejo. Como não passaram
por um ciclo de renovação, os canais de terra perdem fluxos por vazamento, transborda-
mento e pela infiltração. O comprometimento de sua eficiência diminui o interesse de
alguns usuários, que acabam por utilizar outras formas de abastecimento hídrico. Em
alguns casos se notam problemas com supressão da vazão do curso natural, prejudicando
a conectividade hidrológica, uma questão complexa, pois os mesmos canais artificiais re-
gistraram a formação de alagado com presença de ictio e avifauna. Também se encontrou
canais artificiais abandonados, quase imperceptíveis, de forma que, no contexto vigente,
a tendência é a desvalorização dos que ainda perduram, não sendo comuns projetos de
inovação a exemplo da exploração turística dos percursos portugueses.

6. Lições entre as realidades portuguesa e brasileira

Em comum, os canais portugueses e brasileiros têm o fato de serem estratégicos para a


apropriação dos espaços tradicionais, otimizando ao longo de séculos a experiência produ-
tiva e de ocupação destas áreas. Contudo, existem distinções no modo como estes canais
têm sido abordados, tanto na importância do uso, quanto em sua gestão. Em Portugal as
propriedades de menor porte seguem valorizadas e respondem por uma importante parce-
la da produção agrícola de modo que os regadios ainda possuem papel na sua organização.
Também existe o foco turístico, com destaque para a ilha da Madeira, que aproveita uma
271 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
série de percursos conectados: as levadas.
Já no Brasil, a concentração de terra tem absorvido pequenas propriedades, tornando
evidente que a produção familiar brasileira não é valorizada e atendida com os recursos
necessários. Os canais artificiais são impactados, sobretudo no que se refere à gestão, justa-
mente por essa relativização dos espaços agrícolas tradicionais e familiares que demandam
do seu fornecimento de água. A realidade portuguesa aponta para algumas contribuições
que poderiam ser adequadas à realidade brasileira:
a) A realização de levantamentos para cadastro e regularização do uso dos canais: o
problema passa pelo desenvolvimento de leis especificas sobre o uso destes canais, preven-
do normatizações técnicas, responsabilidades ambientais e da intensificação da fiscalização
dos mesmos. O primeiro passo é o trabalho de gabinete, sensoriamento remoto e campo,
contatando usuários, para que os canais sejam localizados;
b) A organização dos usuários em associações: no Brasil é comum a existência de
associações de produtores, associações comunitárias e regiões. Mas, a exemplo do que se
verifica em áreas de regadio em Portugal, seria interessante que fossem formados grupos
específicos para os consumidores das águas transpostas pelo canal, afim de que o poder de
decisão seja focado nos agentes envolvidos diretamente nas questões;
c) Definição de planos de gestão: manutenção, revestimento – a partir das associações
criadas e da aproximação do poder decisório das mesmas, seria possível definir projetos
para se realizar manutenções periódicas ou mesmo obras, como o revestimento dos ca-
nais, impactando na eficiência do serviço, redução de desperdícios e da vazão captada no
curso natural;
d) Estudos para desenvolvimento de outras atividades ligadas aos canais: se estiverem em
dia com seu papel primordial de atendimento rural, podem contribuir para o fortalecimento
da agricultura familiar e oferecer também a possibilidade de ampliar o leque de atividades
econômicas para as áreas atendidas. É o caso da exploração turística, como na criação de per-
cursos para pedestres ou o uso das levadas para formação de ambientes com interesse cênico.
As contribuições nestas esferas podem inclusive reincidir em aspectos ambientais.

7. Considerações finais
Os canais estudados constituem valoroso recurso, na interface homem/natureza, para
apropriação dos espaços em distintos territórios. Pensando em modelos tradicionais de
uso da terra, é possível traçar um significativo paralelo entre as realidades brasileira e por-
tuguesa para os pequenos canais derivados multifuncionais. Contudo, também ocorrem
distinções no modo como têm sido gerido estes sistemas e os impactos que produzem a
partir disso.
272 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

A experiência portuguesa realça como a abordagem brasileira necessita de uma atuali-


zação para que os canais sejam melhor conservados, atendidos por uma legislação específi-
ca e que os benefícios alcancem os usuários e o ecossistema. Assim, a iniciativa portuguesa
de valorizar e regimentar o uso destes canais, constitui experiência a ser adaptada ao Brasil.
Neste contexto, atividades de campo, junto aos canais, são um meio pedagógico para for-
mação dos agricultores envolvidos, de maneira que seu modo de vida e saberes também
sejam aproveitados na formação desta nova abordagem.
O que se vislumbra, a partir desta proposição, é que os canais derivados multifun-
cionais brasileiros, tão antigos e integrados nas paisagens rurais, contribuam ainda mais
com o desenvolvimento das comunidades de usuários. Uma abordagem responsável dos
mesmos deve inclusive ecoar na resistência deste modelo agrícola e familiar, no fortaleci-
mento das relações culturais tradicionais e na melhor relação do homem com o meio. São
mesmo pequenos e quase despercebidos estes canais, contudo seus impactos são reais de
modo que sua gerencia urge em direção a sua correta abordagem.

Referências

Almeida, A.; Soares, J.; Alves, A. (2013). As levadas da Madeira no contexto da afirmação e da con-
fluência do turismo de natureza com o turismo ativo. Revista Portuguesa de Estudos Regionais,
n.º 33, 2.º Quadrimestre, pp. 27-42.
Berman, C. H. (1986). Medieval agriculture, the southern French countryside, and the early
Cistercians. A study of forty-three monasteries. Transactions of the American Philosophical
Society, New Series 76(5): 1–179. DOI: 10.2307/1006411
Cook, H.; Stearne, K.; Williamson, T. (2003). The origins of watermeadows in England. Agricultural
History Review 51(2), pp. 155–162.
Cook, H.; Williamson, T. (2007). The later history of water meadows. In Water Meadows: History,
Ecology and Conservation, Cook H, Williams T (eds). Windgather Press: Bollington, pp. 52–69.
Costa, F. S. (2012). O arquivo da Administração da Região Hidrográfica do Norte. Roteiro meto-
dológico. In Manuela Martins, Isabel Vaz de Freitas, Maria Isabel Del Val Valdivieso (Coords.).
Caminhos da água. Paisagens e usos na longa duração., CITCEM-Centro de Investigação
Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória”, Braga, p. 267-293.
Costa, F. S., Cordeiro, J. M. L. (2015). O Sistema de Informação Arquivística da Agência Portuguesa
do Ambiente (SIAPA) – um projeto para recuperar a memória dos Serviços Hidráulicos. In
Membiela, P., Casado, N. C., Cebreiros, M. A. (Eds,), Panorámica interdisciplinar sobre el
agua. Educación Editora, Ourense, Espanha, p. 63-67.
Costa, F. S., Cordeiro, J. M. L., Vieira, A., Silva, C. C. S. (2015). Archiv-Ave: um projeto para con-
servar e divulgar o património documental do rio Ave. In António Vieira & Francisco Costa
(Orgs,) II Simpósio de Pesquisa em Geografia, Universidade do Minho – Universidade Federal
de Santa Maria, 27 e 28 de maio de 2015, Guimarães, Coleção Atas, 4, UMinhoDGEO, 273 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Departamento de Geografia da Universidade do Minho, Guimarães, p.50-63.
Evans, F. T. (1996). Monastic multinationals: the Cistercians and other monks as engineers.
Transactions of the Newcomen Society 68, pp. 1–28.
Fernandes, F. (2010) A cultura da água: da patrimonialização das levadas da Madeira à oferta turís-
tica. Vol. 8, Nº4, pp. 529-538.
Gerrard, C. (2011). Contest and co-operation: strategies for medieval and later irrigation along the
upper Huecha valley, Aragón, north-east Spain. Water History 3, pp. 3–28. DOI: 10.1007/
s12685-011-0030-y
Lajusticia, F. S. R. (2014). EL regadío en Magallón (Zaragoza) hasta el siglo xv y la documentación
medieval sobre agua conservada en su archivo municipal y sindicato de riegos Aragón en la
Edad media, 25, pp. 239-272. E-ISSN en trámite ISSN 0213-2486
Leibundgut, C.; Kohn, I. (2014). European traditional irrigation in transition part i: irrigation in
times past—a historic land use practice across Europe. Irrig. and Drain., 63, pp. 273–293.
Pedrosa, A. (2013). A rota cultural na senda da paisagem, da cultura, do patrimônio, das tradições,
das lendas: o exemplo do Alto Barroso (Norte de Portugal), Geografia Ensino e Pesquisa, v. 17,
n. 3. DOI: 10.5902/223649949205
Pôças, I.; Cunha, M.; Pereira, L. S. (2011). Remote sensing based indicators of changes in a moun-
tain rural landscape of northeast Portugal. Applied Geography, 31(3), pp. 871–880. DOI:
10.1016/j.apgeog.2011.01.014
QUINTAL, R. (2011). Levadas da Ilha da Madeira. Da epopeia da água ao nicho de turismo eco-
lógico. AmbientalMENTE sustentable, ano VI, vol. I, núm. 11-12, pp. 137-155.
Silva, R. E.; Rodrigues, S. C. (2015). Levantamento de estradas rurais e canais fluviais artificiais,
em pequena bacia hidrográfica, e sua relação com o escoamento superficial. In: XXI Simpósio
Brasileiro de Recursos Hídricos, Brasilia – DF. Trabalhos técnicos do XXI SBRH.
Silva, R. E.; Rodrigues, S. C.; Maruschi, V.O. (2016) . Análise da vazão e turbidez em um pe-
queno canal aberto natural com derivação artificial. In: XI SIMPÓSIO NACIONAL
DE GEOMORFOLOGIA, 2016, Maringá. XI SIMPÓSIO NACIONAL DE
GEOMORFOLOGIA – Anais do Evento, 2016. v. 1.
Sojka, R. L.; Bjorneberg, D. L.; Entry, J. A. (2002). Irrigation: an historical perspective. Soil
Scientist, Irrigation Engineer, and Soil Microbiologist, Kimberly, Idaho, U.S.A Encyclopedia
of Soil Science 745.
Stalder, C. (1994). Haben die Mönche des Klosters St. Urban die Langete nach Roggwil geleitet?
Jahrbuch des Oberaargaus 37, pp. 215–226. Jahrbuch-Vereinigung Oberaargau: Herzogenbuchsee.
Wateau, F. (2000). Vallée du Minho (Portugal). Usage de l’eau et nouvelle politique agricole. In
Approches sociales de l’irrigation et de la gestion collective de l’eau, Rivière-Honegger A, Ruf
T (eds). Territoires en mutation 7. Université Paul-Valery: Montpellier; pp. 181–190. https://
hal.archives-ouvertes.fr/halshs-00509937/document
274 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Um território, uma raça, um património
genético: a “Região” do Jarmelo
e a Vaca Jarmelista

Agostinho da Silva
Professor. Ex-Presidente de Junta;
Defensor da vaca jarmelista

A “Região” do Jarmelo

O enquadramento histórico da região do Jarmelo, não sendo uma tarefa fácil, pela
notória falta de documentação compilada e sistematizada, tem sido feito em trabalhos
como o realizado sobre o seu Foral (Coelho et al., 2010). Embora não seja conhecida
uma eventual primeira carta de foral, o concelho é de “facto” uma realidade que se perde
na noite dos tempos. As atuais freguesias do Jarmelo (S. Pedro e S. Miguel), do concelho
da Guarda, integraram outrora, com alguns outros lugares, a vila e sede de concelho com
aquela designação1. O facto deste concelho medieval se localizar numa região beirã sujei-
ta às incursões muçulmanas e aos possíveis avanços dos reis de Leão e Castela levou os mo-
narcas a conceder-lhes algumas liberdades, que permitissem as populações regerem-se por
normas próprias, além de garantirem proteção com a construção de muralhas e castelos.
Jarmelo terá integrado a rede de ocupação castreja beneficiando da sua localização a cerca 275 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
de 949 metros de altitude. A sua posição estratégica, levou a que fosse calcorreado por roma-
nos como mostra, ainda hoje, a marca visível da sua presença no troço da calçada romana, na
via que ligava a Guarda a Almeida. A ocupação do Jarmelo, embora muito remota, segundo
Jarmelo é uma antiga vila e sede de município português, estatuto que perdeu em 1855, quando foi extinto
1

e o seu território integrado no concelho da Guarda. O concelho era constituído, até ao início do século xix,
por doze freguesias, tinha, em 1801, 99 km² e 3 083 habitantes. Mais tarde foram anexadas as freguesias de
Lamegal e Penha Forte e de Codesseiro, tendo sido extintas algumas das mais pequenas freguesias do con-
celho. Em 1849 tinha 4 918 habitantes e 132 km². Atualmente, o território da antiga vila reparte-se pelas
freguesias de São Miguel do Jarmelo e de São Pedro do Jarmelo.
Reza a lenda que, por causa dos amores e dissabores do infante D. Pedro com Inês de Castro, esta vila sofreu
na pele toda uma atrocidade e brutalidade que ainda hoje, passados sete séculos, estão bem patentes e visíveis
nas terras e almas dessa bendita/amaldiçoada serra (que não fique pedra sobre pedra...).
uma certa tradição oral, só aparece documentada pelos séculos ix e x, conforme refere Tiago
Ramos (2014) no estudo sobre “O castro do Jarmelo em época medieval. O contributo da ar-
queologia para o seu estudo”. Este tipo de ocupação, comum em diversos pontos da Península
Ibérica, privilegiou o povoamento em lugares elevados, a que se atribuía também algum signi-
ficado mítico, como foi o caso do Jarmelo (e sua ocupação) e de outros lugares que se avistam
do alto dos seus mais de 900 metros de altitude. A ocupação de “Penhas”, habitual nesse
período da ocupação do território, aliada a uma topografia peculiar que a destaca da super-
fície aplanada da Meseta Ibérica, acabou por conferir uma dimensão mítica ao lugar, cujas
reminiscências ainda subsistem, hoje, na microtoponímia, onde é possível encontrar lugares
como “Barroco do dinheiro”, “Buraco das feiticeiras”, “Fonte da moira”, “Moinho do vento”.
A toponímia, ao remeter para um imaginário mítico-estórico (de estórias) da tradição
oral, acaba por se transformar, ela própria, num património imaterial das gentes do Jarmelo;
a passagem de vários povos e culturas que antecederam a reconquista e o repovoamento cris-
tão também deixaram marcas na região (Almeida, Almofala, etc.). A partir das Astúrias e da
Cantábria, último reduto que os cristãos mantiveram na Península Ibérica, disseminaram-se
no restante território peninsular, incluindo as terras do Jarmelo, um considerável grupo de
cristãos, senhores (soberanos) com seus pertences e suas tradições. Este processo da recon-
quista cristã acabou por trazer dessas terras montanhosas do Norte um núcleo de ferreiros,
tradição ainda hoje bem presente tanto naquelas terras de origem como no Jarmelo. Com os
ferreiros vieram também os carros das vacas, carregados com seus pesados utensílios de apoio
ao desenvolvimento da sua actividade – que nessa época era referência por questões óbvias de
construção de material de apoio à defesa (portanto utensílios de guerra). Vieram os perten-
ces, forçosamente as próprias vacas, que além de força motriz para a deslocação, serviriam “a
posteriori” para o amanho das terras e sustento dos povos. Aqui pode estar, segundo alguns
autores e que a tradição oral corrobora, a origem da raça autóctone: a Vaca Jarmelista.
276 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Messias Monteiro da Fonseca, o “último” guardião das vacas amarelas


Gado jarmelista: uma raça autóctone, um património nacional

A este propósito refere João Tierno (1904) que “a ganaderia vacum do Jarmello tão
pouco corresponde a qualquer forma intermédia; afigura-se-nos (…) que não é uma sub-
-raça, mas um verdadeiro grupo ethnico independente, em estado de variação desordena-
da”. Adianta, uns passos à frente, que “ no Jarmello as condições de ambiência são análogas
às destas regiões (…) Este conjunto de circunstâncias permitiu que a raça bovina leiteira,
esparsa pelo trato norte-ocidental da península, aqui se fixasse também, mantendo durante
largos séculos as suas qualidades originárias…”
Face ao exposto, cabe explorar a teoria do aparecimento das raças jarmelistas, associada
à vinda de cristãos das Astúrias e da Cantábria, como o trabalho de Manuel Mouta Faria
(2007), que no capítulo dedicado à “Raça ou Gado jarmelista”, aponta a ligação entre as
diferentes raças ibéricas e a possível ligação/ascendência/descendência das raças umas das
outras. Por outro lado, existe desde há séculos a tradição das ferragens no Jarmelo, como
documenta Tiago Ramos (2014), permitindo ligar, portanto, as ferragens e os bovinos do
Jarmelo, atividade que numa primeira e mais longínqua etapa podia estar relacionada com
o fabrico de utensílios de guerra. Como se disse, há e houve nas Astúrias e na Cantábria,
tal como no Jarmelo, uma grande tradição de ferragens e ferreiros, como existe, ainda
hoje, nas Astúrias e na Cantábria, uma raça autóctone de vacas (Asturiana). Lá como cá,
ao longo dos séculos, conseguiram manter-se estes dois patrimónios.

277 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Crias de jarmelista (2000) Jarmelistas no amanho da terra (anos 60 do séc. xx)

Os atuais avanços científicos e técnicos permitem o melhoramento e manuseamento


genético das raças em poucos anos, processos que antes de meados do século xx eram
muito demorados, feitos de um modo quase natural, muito próximo do instinto animal,
pouco suportados pela ciência. Aires Dinis (2004) refere que o apuramento de raças é
relativamente recente, tão só por finais do século xix, processo que foi atribulado para as
raças autóctones nacionais, pois as entidades que superentendiam na agricultura e pecuária
sempre manifestaram uma certa resistência a tais tentativas. O clima foi apontado, entre as
demais condições naturais, como a principal causa da evolução das raças autóctones com
as características das do Jarmelo (além das vacas também existem as cabras), quer por Aires
Dinis como por Manuel Virgílio Coelho2. Estes autores, como outros já o haviam feito
relativamente às raças autóctones das regiões espanholas atrás referenciadas, advogam ser
o microclima da região o responsável por vincar a identidade e a diferença que caracteriza
a vaca jarmelista.
Os bovinos já haviam sido referenciados nos finais do século xix, por técnicos e vete-
rinários da província, em diversos documentos, dos serviços desconcentrados do estado à
época, dando-lhe uma visibilidade e autonomia que antes não tinham, designadamente
em 1884, quando “foi realizada a Primeira Exposição pecuária na Exposição Agrícola de
Lisboa“ (Dinis, 2004). Posteriormente, como explica, houve uma quebra das raças nacio-
nais autóctones, com o destaque que passou a ser dado aos bovinos importados de outros
países. Os importadores e seus interesses passaram a ocupar lugares de destaque nas mos-
tras públicas de gado bovino, relegando as raças nacionais para segundo plano, a maneira
fácil que encontraram para alimentarem o seu emergente e florescente negócio.
Na referida “Primeira Exposição Pecuária” (1884) “só apareceram algumas vacas ou
crias, entre as quaes prenderam particularmente a nossa atenção as vacas da subraça do
Jarmello, notáveis e muito de apreciar pela sua aptidão lactífera. O geral da raça mirandesa
não possue esta aptidão.” Refere-se ainda o destaque que deram ao gado caprino jarmelista
quando referiram: “na classe de gado caprino, só apareceu de notável um lote de cabras lei-
teiras de Jarmello, admiráveis pelo desenvolvimento do ubre e quantidade de leite que amo-
jam. Conviria investigar como e porque, tanto as vacas, as cabras na região circumscripta de
Jarmello, próximo da Guarda, assumem aptidão lactígena”.
O texto transcrito, reforça a teoria sobre a importância dos pastos e, certamente, o
trato/cuidado dispensado pelos criadores de animais do Jarmelo. Nesta época (finais de
século xix) vários técnicos da então Direcção Geral de Agricultura, consideraram impor-
278 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

tante o estudo e apoio à raça jarmelista, Mouta Faria, citando Miranda do Vale (técni-
co do ministério da agricultura á época), que apresentou “uma proposta de intervenção
2
Manuel Virgílio Coelho (1954) – Os gados na economia do Jarmelo, 1954, tese de Licenciatura em
Geografia (Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra). Refere este autor: “No arrolamento do gado
de 1870 encontramos largas e abonadas referências a esta raça já então em decadência”. “Esta raça é sem
contestação não só a melhor do distrito, mas talvez a do país, e atrevo-me a dizer que pode rivalizar a vários
respeitos com muitas raças estrangeiras. Ainda hoje existem bastantes indivíduos como sendo reservatórios
de raça, que não lhes acudindo em breve desaparecerá mercê de cruzamentos com raças inferiores. Estes
animais tinham uma estrutura mais que média, pelagem fina, cor amarela clara; anca larga, cauda desem-
penada e preta na extremidade; o úbere bastante desenvolvido era muito largo na base e pendente, tendo a
cor branca, a cabeça apresentava perfil recto, testa larga e focinho comprido com pêlos brancos na ponta;
os chifres brancos de pontas pretas e afiadas eram achatados, com inclinação para trás à raíz e a virar depois
para a frente e um pouco para cima”.
estatal, com o duplo objectivo de seleccionar e fomentar este tipo de vacas e, paralela-
mente, promover a economia da região através da produção de leite e de manteiga”. Entre
finais do século xix e finais do século xx, vários autores divergem sobre a origem e até
sobre a utilidade da preservação da raça jarmelista, estudo comparativo que importava
efetuar (p. ex.: Mário Costa, 1919; Manuel Leitão, 1950; Mouta Faria, de hoje em dia,
cf. ACRIGUARDA). As características que valorizavam a especial capacidade leiteira e,
portanto, de produção de manteiga da vaca jarmelista já eram destacas em finais do sécu-
lo xix. No seguimento das lutas havidas pela produção de manteiga, aparece um elemento
novo a ter que ser tido em conta: a margarina, apresentado por Aires Dinis, que são os
impostos sobre as margarinas, que eram do gosto do “cobrador” uma vez que rendia mais
em impostos que a manteiga nacional.

Concurso/mostra de vacas jarmelistas Jarmelistas na Mostra do Mundo Português (1940)


(meados do séc. xx)

Com o avançar do século xx, com a cada vez mais influente presença das raças importa-
das, quer leiteiras, quer de produção de carne, veio tornar mais complexa a manutenção das
raças autóctones. Sendo o território continental de Portugal tão diverso, não é de admirar que
pese embora a pequena dimensão (cerca de 92 000 km2), haja neste momento reconhe-
cidas 13 raças autóctones de bovinos, algo inigualável em qualquer outro espaço europeu
279 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
(da mesma dimensão), ou até a nível mundial.
Os textos consultados mostram que desde finais do século xix, mesmo durante todo
o século xx, a recuperação da raça jarmelista nunca teve a tarefa facilitada, encontrando
sempre questões de maior ou menor monta a impedir a sua sobrevivência. Denota ainda
a documentação disponível uma forte falta de compromisso do poder central face a esta e
outras raças de bovinos nacionais. A preservação, a chegada até aos nossos dias foi possível
graças, essencialmente, ao esforço, brio e forte empenho que decorre do sentimento de
pertença a um território; sem a perseverança de uns poucos durante mais de uma centena
de anos seria possível assegurar e trazer até nós os animais que, nos últimos anos, tornaram
possível o reconhecimento oficial.
Este singelo trabalho pretende ser, em boa medida, uma homenagem a essas pessoas
anónimas que, ao seu modo, colaboraram abnegadamente, por vezes de forma inconscien-
te, para que fosse possível preservar a raça bovina jarmelista. A longa apatia dos serviços dos
diferentes ministérios da agricultura não facilitou o querer e a utopia dos que sempre apos-
taram nesta causa. Em 1954, de modo simples, a ousadia Manuel Virgílio Coelho levou-o
a abordar a temática da vaca jarmelista no seu trabalho de fim do Curso de Geografia, na
Universidade de Coimbra. Trata-se de um estudo que o próprio recentemente confessou, lhe
causar nos dias de hoje alguma inibição, pelo modo como na altura o produziu e a disponibi-
lidade de meios e saberes atuais. A leitura desta obra de Virgílio Coelho deve ser enquadrada
e de levar em conta o que representava para um aluno proveniente de uma aldeia do interior
do Portugal profundo, confrontado com as naturais dificuldades da época, arrisca com um
tema desta natureza que acabou por não sair do anonimato. Só foi ressuscitada em 2004 pela
mão do ilustre geografo e professor, António Gama, que numa conversa informal, trouxe
à luz esse documento perdido desde 1954 numa biblioteca da Universidade de Coimbra.
O exemplar policopiado da referida obra de Virgilio Coelho que teve a amabilidade de me
oferecer por ocasião duma visita a Coimbra levou-me, uns anos mais tarde, a contactar o
autor, na Guarda; tivemos uma longa e interessante conversa, onde foi possível perceber o
contexto (da vida pessoal do autor) em que o documento foi produzido.

Desenvolvimento, um longo caminho: valorizar recursos, promover o


património local

Desde os longínquos anos 50 até 1999, tirando um ou outro apontamento que sobre-
viveu na memória popular, onde se destacam alguns episódios com veterinários munici-
pais mais ou menos entusiastas, pouco foi feito em prol da salvaguarda do legado genético
que se foi apurando no Jarmelo ao longo dos séculos. Sempre se fizeram na região do
280 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Jarmelo, ou mesmo na Guarda, capital de concelho e distrito, concursos para se mostrarem


os melhores exemplares.
Estas mostras/concursos dirigiam-se antes de mais à raça de vacas amarelas sem, no
entanto, terem como objecto defender ou promover a vaca/raça jarmelista; por isso há
quem afirme que, neste processo, há uma história antes, e uma história depois, um tempo
antes e depois de Agostinho da Silva (designer) e de Isidro Almeida (arquitecto), como
fica evidente desta transcrição (Boletim): “Para Agostinho da Silva e Isidro Almeida (a
feira do Jarmelo) foi um acontecimento ao qual chegaram na edição xvii (nesta edição
com Leonel pereira) e daí até à xxiv (2007) estiveram a ela sempre ligados; ajudados
sempre de forma imprescindível pelos apoios de retaguarda que nunca faltaram, embora
quase sempre reduzidos aos mesmos de sempre que, contrariamente a nós, tiveram sempre
menos protagonismo e visibilidade pública”.
Durante esta caminhada fez-se muito “show off”: cartas abertas, comunicados à im-
prensa, manifestações públicas diversas, como a da mochila de ondes saía uma vaca; uma
tarja no jogo da seleção de sub 21 na guarda. Conseguimos provocar que a exposição
“Memória das coisas”, num ano fosse com a vaca jarmelista, da qual se fez uma réplica em
tamanho real que ainda temos no Jarmelo (custeada pela CM Guarda). Um dos cadernos
dos “Fios da Memória”, “A vaca jarmelista, nas memórias do Silva da Ima” feito pelo
Agostinho, com o pai (Silva da Ima), a relatar as experiencias com as vacas. O lançamen-
to do site (da freguesia de S. Pedro do Jarmelo) e daí a promoção da vaca e da feira do
Jarmelo, que tem neste momento 1700 000 visitas, tornando-se a nível nacional dos sites
de freguesias mais visitados.
No ano em que a febre aftosa impediu que a feira se fizesse, conseguimos ainda assim,
ser notícia de primeira página em alguns jornais regionais, alertando para a falta de apoio e
o que isso poderia significar para o futuro desta luta. Quer na primeira edição em que to-
mámos parte, quer na segunda, ainda não percebíamos que havia ali mais potencial do que
o primário: falar-se do Jarmelo. Na primeira edição, convidámos técnicos de Miranda, para
ver se conseguíamos que os nossos agricultores contactassem com os detentores do livro
genealógico (da mirandesa) e recebessem o subsídio a que tinham direito. Reconhecemos
que da expectativa que tínhamos na altura, quase nada de proveitoso para as nossas gentes
resultou. Sabemos posteriormente, que, tal “fracasso” dos nossos intentos, veio revelar-se
no maior trunfo que nos caiu nas mãos sem sabermos bem como. Fruto de um acaso,
anos despois veio dizer-se ao país que aquilo que parecia uma brincadeira de uns loucos, se
tornou um caso sério para o ministério.

281 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Joaquim Monteiro da Silva. Agostinho da Silva


Especialista em vacas Jarmelistas (à época das lutas pelo reconhecimento da raça)
Exemplo de cartaz da Feira concurso Promoção da carne jarmelista certificada

O facto de já desde várias edições conseguirmos sempre, pelo menos uma TV a fazer
a cobertura à feira do Jarmelo e ainda reportagens pontuais sobre o tema, veio dar uma
visibilidade maior a um evento, que só se tornou referência regional porque a comunicação
social (sempre regional, e depois a nacional) assim o quis. Com eles fizemos reportagens,
com eles fizemos passatempos, fizemos notícia Jarmelo, pelo menos a cada edição que
passava. Em 2004, a TVI, pelo seu, agora ilustre amigo do Jarmelo, Victor bandarra, fez
uma reportagem de cerca de 20 minutos no Jornal Nacional em que deu um forte impulso
à causa. Foi uma reportagem com forte incidência sobre o perigo de extinção da vaca jar-
282 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

melista, fazendo um apanhado geral das lutas que já se tinha travado e ecoando para todo
o país a gravidade da situação.
Um dia conseguimos, nem sabemos muito bem como, que o Director de Serviços da
DG Veterinária, Dr Mário Costa (acompanhado do Dr. Pina Fonseca) achasse interessante
a nossa ideia… e daí para cá tem sido uma luta por manter os criadores “vivos” para evitar
que desaparecesse a vaca. Logo nesta altura, achámos que a ACRIGUARDA poderia ser
o parceiro ideal para desempenhar as funções que, noutras regiões do país, são de associa-
ções de criadores com nome das vacas que representam. Achámos e continuamos a achar,
pois sempre foram parceiros nas diferentes edições da nossa feira concurso. Reconhecendo
aqui que, algumas vezes a Acriguarda era o nossos parceiro, sem nós sabermos, pois nós
de organigramas dos ministérios e serviços desconcentrados do estado, pouco ou nada
sabíamos, a não ser que tínhamos que ir com este papel aqui, com aquele papel ali, para
carimbar e depois entregar mais além… e que o Sr. Doutor ou engenheiro tal é que dizia…
nós pensávamos então que a Acriguarda também “era dessa coisa lá da DRABI” e que não
faziam favor nenhum em vir colaborar com a feira do Jarmelo. Mais tarde lá percebemos o
que significava Acriguarda (Associação de Criadores de Ruminantes da Guarda), e que não
era um serviço desconcentrado de qualquer ministério e que, portanto, estavam ali numa
colaboração, que não numa obrigação.”
Atualmente a carne jarmelista está certificada, com denominação de origem, consome-
-se essencialmente em restaurantes da região da Guarda, em diversos pratos e em diferentes
conceitos, que vão já da chouriça e da farinheira à alheira de jarmelista. Conforme foi am-
plamente divulgado, no carnaval de 2017, cerca de três dezenas de restaurantes do conce-
lho da Guarda, aderiram a uma iniciativa promovida pela Câmara Municipal da Guarda,
um roteiro gastronómico, sendo que de 24 a 28 de fevereiro, se consumiram quase duas
dezenas de animais.
Como será de fácil entendimento, este não pode ser o ritmo de consumo das carnes
jarmelistas, pois tratando-se de uma raça em vias de extinção, e mesmo com os incentivos á
produção, não haveria como alimentar a procura do mercado. Reside aqui a principal difi-
culdade do momento: como tornar viável a “lei da oferta e da procura” de modo sustentável?

Nota final: os textos que se anexam, que poderiam ser outros, com outro critério de
escolha, podem ser complementados com uma consulta na internet para se aferir da parte
recente da luta pela causa das raças/MARCA Jarmelo. Esta abordagem, propositadamente,
coincide com a “saída de cena” do autor deste “humilde trabalho”.

Algumas referências
283 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Agostinho da Silva (2003) – “Vaca jarmelista nas memórias do Silva da Ima”. Produção e edição:
Nucleo de Animação Cultural da Câmara Municipal da Guarda.
Aires Antunes Diniz (1951) – Título: A vaca jarmelista e a agricultura experimental / Aires Antunes
Diniz. In: Praça Velha : revista cultural da cidade da Guarda. – ISSN 0873-8343. – Ano VII,
n.º 16, 1ª série (Novembro 2004), p. 87-102. Assuntos: Jarmelo · Agricultura / Bovinos / Vaca
jarmelista. CDU: 631(469.311). Direcção Geral da Agricultura (1904) - O gado bovino miran-
dês. Boletim da Direcção Geral da Agricultura, oitavo anno, nº1; Lisboa, Imprensa Nacional.
Manuel Mouta Faria (2007) – Textos inéditos a inserir numa actualização de “OS CORNOS
DO AUROQUE – RAÇAS DE BOVINOS NO ENTRE DOURO E MINHO. Direcção”
Regional de Agricultura e Pescas do Norte (Edição on-line – 2007, capítulo sobre a “Raça ou
Gado jarmelista”).
Manuel Virgílio Coelho (1954) – Os gados na economia do Jarmelo. Trabalho de final do Curso de
Geografia, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra.
Maria Helena da Cruz Coelho e Maria do Rosário Barbosa Morujão (2010) – Foral Manuelino de
Jarmelo. Edição IMC.IP – Museu da Guarda, Associação Cultural e Desportiva do Jarmelo.
Tiago Ramos (2014) – O castro do Jarmelo em época medieval. O contributo da arqueologia para
o seu estudo. Tese de Mestrado apresentada à Universidade Nova de Lisboa (Policopiada).

Apontamento noticioso

Algumas notícias sobre o evento “Feira concurso do Jarmelo” visto por


jornalistas da região

Nova esperança para a vaca jarmelista


(22.ª Edição da Feira concurso do Jarmelo, 2005)
A vaca jarmelista ganhou um novo alento no último domingo durante a XXIIª Feira-
-Concurso do Jarmelo que, mais uma vez, atraiu um mar de gente. O primeiro estudo mor-
fológico da espécie, que corre riscos de extinção, elaborado pela Direcção-Geral de Veterinária
(DGV), apresentou conclusões que atestam as características únicas da espécie. Actualmente,
o universo jarmelista é bastante reduzido, tendo sido identificadas 63 fêmeas e dois machos,
havendo necessidade de o preservar, sendo que a próxima década será vital para se avançar, ou
não, para a certificação da raça. (…) Na apresentação do estudo, Fátima Sobral, da DGV,
deixou um alerta aos produtores de vacas jarmelistas: «O que é importante, neste momento, é
manter este número de animais e haver muito cuidado para não se fazerem misturas», realça.
Estes resultados são «positivos», do ponto de vista da «expectativa das pessoas», mas agora é
providencial que não se façam «cruzamentos de uma forma descontrolada» com outras raças.
Do mesmo modo, «é preciso ter muito cuidado com aquilo que se faz em termos de raça para
preservar este tipo de animais», reforça. Também Mário Costa, do mesmo organismo, confi-
284 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

dencia que as conclusões retiradas desta fase do estudo indiciam «algo interessante», mas frisa
que a população jarmelista identificada é «muito diminuta». Contudo, o estudo indicia uma
«certa diferenciação desta população em relação a populações muito próximas», o que é um
«bom sinal», já que se não fosse assim era «mais complicado» distingui-las. Agora, esta popu-
lação «tanto pode gerar uma raça como fixar-se numa variedade de outras raças ou então não
ser nada, mas não é isso que queremos», assegura. De resto, este é apenas o «primeiro passo»,
havendo que continuar a trabalhar para depois «darmos passos concretos que possam levar à
criação de um registo», adianta. Há que «continuar a avaliar e a estudar com segurança, cri-
tério e rigor, de modo a que a nossa acção não possa ser criticada e possa logicamente chegar a
bom porto», sublinha. (Ricardo Cordeiro – O Interior, 09-06-2005)
Vaca do Jarmelo tem interesse municipal
(23ª Edição da Feira Concurso do Jarmelo, 2006)
O estudo divulgado o ano passado pela Direcção-Geral de Veterinária concluía que existem
24 vacas com diferenças comparativamente às outras raças, mas ainda há um longo caminho
a percorrer até se poder falar em raça jarmelista. Até essa altura, os técnicos tinham apenas
identificada uma pequena população de animais diferentes. (…) O próprio estudo feito pela
DGV às vacas existentes no Jarmelo refere que é perfeitamente visível a diferença entre as vacas
jarmelistas e as mirandesas. Fátima Sobral, uma das técnicas daquele organismo, adiantou na
ocasião ao PÚBLICO que, “utilizando a técnica denominada por taxinomia numérica, base-
ada em características morfológicas, concluiu-se que havia uma separação entre as populações
que foram estudadas”. “As características externas apresentam diferenças comparativamente
às outras raças, sobretudo a mirandesa, que é a mais próxima”, salientou, por seu lado, Lola
Navais, do Instituto Nacional de Investigação Agrária e das Pescas. Agora, vai ser feito um
estudo genético, mas, como admite a própria técnica, “vai ser muito difícil encontrar diferenças
genéticas, porque as nossas raças sempre foram seleccionadas pelo aspecto, pela morfologia”.
Lola Novais disse também que “transformar o pequeno núcleo de 24 vacas numa raça é um
trabalho muito lento, sendo primeiro necessário redefinir as características”. “Por enquanto, só
podemos dizer que há uma população que se difere pelas suas características”, considera a técnica.
Mas admite que, “se se continuar a trabalhar, se se estabelecerem parâmetros produtivos, com
o tempo é possível chegar a dizer que há uma raça jarmelista”. (…) Depois de, no passado dia
27 de Abril, a Assembleia Municipal da Guarda ter aprovado por unanimidade uma proposta,
apresentada pela Junta de São Pedro do Jarmelo, para que a raça bovina jarmelista “fosse classifi-
cada” como tendo interesse municipal, a 23.ª edição da feira-concurso será, salienta Agostinho da
Silva, presidente da junta, “novamente uma boa oportunidade para relançar esta nobre causa”.
“Os criadores do Jarmelo necessitam de continuar a sentir o apoio de todos na sua luta
diária”, salienta, apelando por isso para que “todos os visitantes vistam uma t-shirt da vaca
jarmelista, passando simbolicamente a trazer essa notável raça no seu peito”. “Será uma forma
285 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
de se mostrar o apoio às raças do Jarmelo”, frisa Agostinho da Silva. (Gustavo Brás – Público,
4-06-2006)

Vaca do Jarmelo com futuro garantido


(Reconhecimento oficial da raça, 2007)
A vaca jarmelista já é uma raça certificada. Um estudo feito pela Direcção-Geral de Veterinária
(DGV), divulgado na Guarda no último sábado, não deixa margem para dúvidas e afasta de vez
os rumores de que não seria uma raça autóctone, mas sim uma subespécie da mirandesa. Tendo
sido identificados cerca de 30 animais que correram risco de extinção, a ambição dos autores do
estudo é conseguir ter 10 vezes mais em 2013. O estudo foi apresentado na sede da Associação
de Criadores de Ruminantes do Concelho da Guarda (Acriguarda), entidade que vai gerir o
registo zootécnico da jarmelista, perante cerca de uma dezena de criadores que receberam um
“prémio” monetário em forma de «reconhecimento» pelo seu esforço em tentarem preservar estas
vacas. O método utilizado para a análise foi «científico e objectivo», em vez de só se ter recorrido
à apreciação visual, que «pode ser ambígua», disse Fátima Sobral. Perante os resultados obtidos,
a veterinária da DGV garantiu que «hoje temos a certeza que é diferente das outras vacas e que
só existe aqui», destacando a «separação notória» quando comparada com a mirandesa. De resto,
explicou que «a população bovina jarmelista formou um grupo distinto das restantes raças», tendo
revelado características morfológicas «diferentes». No entanto, é necessário prosseguir com o traba-
lho efectuado, de modo a reforçar o resultado deste estudo morfológico com uma análise genética.
O que ainda não é possível realizar com os perto de 30 animais estudados, que constituem «pouca
população para permitir a validação dos resultados», justificou.
Já Mário Costa, igualmente da DGV, enalteceu que este é um «caso feliz que acaba bem»,
relembrando os muitos anos de luta e de perseverança dos produtores e dos vários presidentes de
Junta de uma freguesia situada a poucos quilómetros da Guarda, que nunca desistiram de rea-
lizar a Feira Concurso dedicada à vaca jarmelista. O técnico lançou depois um desafio a todos
os que encheram a sala: «O futuro é o que nós quisermos. Temos uma população diminuta e daí
termos que fazer um esforço suplementar para ver se aumenta. No final de mais um Quadro
Comunitário de Apoio, em 2013, gostaríamos de ter umas 200 a 300 fêmeas dispersas por 50 a
60 agricultores», realçou. Deste modo, «há que apostar na difusão do efectivo actual», através
da inseminação artificial e transferência embrionária, o que permitirá obter «matéria-prima
para uma fileira de produtos de qualidade», reforçou. Visivelmente satisfeito e emocionado com
a certificação da raça jarmelista pelo Governo, que passou a ser a única autóctone no distrito da
Guarda, ficou o presidente da Acriguarda.
António Louro afirmou ser este um «marco histórico» que coloca termo a um processo «pe-
noso e difícil», assegurando ainda que a entidade a que preside está «devidamente preparada
com os recursos humanos e técnicos para ir para a frente com este projecto». Já Rui Moreira,
286 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

responsável pela Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Centro (DRAPC), salientou o


facto de ter ficado «cientificamente provado» que a jarmelista é uma «raça diferente das outras».
E considerou a apresentação do estudo «uma festa do querer, da vontade e da persistência, em
especial de quem lida diariamente com as vacas». Por último, Vergílio Bento, vice-presidente
da Câmara da Guarda, considerou a certificação da raça jarmelista um acto com um «valor
simbólico de extrema importância». (Ricardo Cordeiro – O interior, 01-11-2007)
Os movimentos migratórios e o encontro
de culturas em microterritórios insulares
lusófonos: a diversidade da imigração
nas pequenas ilhas dos Açores

Paulo Espínola
CEGOT/Universidade de Coimbra
Vicente Zapata
OBITen/Universidad de La Laguna

Introdução

As ilhas são territórios naturais com fronteiras bem delimitadas pelo contacto imedia-
to entre a sua linha de costa e o mar. Se por um lado, a existência deste elo comum torna-as
unidades geográficas muito especificas, por outro lado, as desigualdades verificadas entre
os espaços insulares, nomeadamente ao nível da dimensão e da posição (relativamente a
outros territórios habitados), tem diretamente consequências no tipo de crescimento so-
cioeconómico, e, por conseguinte, no desenvolvimento humano dos habitantes insulares.
Duas circunstâncias geográficas, como a pequenez e a enorme distância aos grandes
centros socioeconómicos, geralmente acarretam dificuldades acrescidas para os espaços
insulares. Com efeito, uma área demasiado reduzida limita bastante os recursos que esse
território poderá oferecer, pelo que perante elevadas densidades demográficas muitas vezes
287 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
a população procura melhorar o nível de vida através da emigração (King, 1993; King,
1999; McCall, 1994). No entanto, quando o total de habitantes de uma ilha decresce até
determinado limite torna-se complicado obter investimento privado, dado que a dimen-
são do mercado local não possibilita grandes margens de lucro, podendo mesmo originar
prejuízo (trata-se de um mau negócio, portanto!) (Srebrnik, 2000). Por seu lado, estar
distante dos territórios com os quais estão interligados economicamente (exportações vs.
importações) assume-se como uma desvantagem, pois naturalmente a distância promove
o aumento dos custos do transporte de mercadorias e pessoas, o que encarece as desloca-
ções de gente e os bens que chegam às ilhas, bem como aqueles que são exportados (Read,
2004; King, 2010).
John Connell (2007) afirma que as ilhas estão invariavelmente caracterizadas por mi-
gração. Genericamente este geógrafo australiano considera três etapas principais: a uma
longa fase de colonização que contribuiu para o crescimento demográfico insular, seguiu-se
um período de declínio demográfico das ilhas marcado por um processo de intensa emigra-
ção (a partir dos anos 60 do século anterior), mais recentemente destaca o aparecimento de
um novo tipo de imigração de reformados em determinadas ilhas próximas do continente
europeu, originando assim um novo incremento populacional. No entanto, a imigração la-
boral também pode ocorrer em ilhas, caso se verifique uma certa recuperação da vitalidade
económica insular, sendo o turismo, e os seus serviços complementares, uma das atividades
económicas que exige maior recrutamento de mão de obra exterior (Royle, 2001).
O cruzamento de culturas nas ilhas não é algo novo, uma vez que já Vidal de la Blanche
(1926) referia-se às ilhas como centros de encontro e fusão de povos. Porém, Baldacchino
(2010) distingue os visitantes de curta duração (turistas) dos residentes de longa duração
provenientes do exterior. Sugere que a população local insular exibe uma atitude de tole-
rância otimista face ao primeiro grupo (tendo em conta os benefícios económicos que estes
trazem no imediato), mas muitas vezes demonstram desagradado e desconfiança, senão
mesmo hostilidade, para com os elementos do segundo conjunto, excluindo-os da parti-
cipação do modo de vida insular. Será desta forma que todos os imigrantes insulares são
tratados? Este tipo de atitude dos autóctones acontecerá em todas as sociedades das ilhas?
O inglês Russell King (2010), propõe mais duas hipóteses no âmbito das relações sociais
entre os locais e os imigrantes: será que a pequena escala das sociedades insulares constituiu
um ambiente mais acolhedor? Ou será que alguns grupos de imigrantes são bem-vindos,
outros tolerados e outros ainda rejeitados?
Com o propósito de esclarecer este tipo de dúvidas, elaboramos o presente texto. Para
tal, optamos por estudar três ilhas açorianas, Graciosa, Flores e Corvo, as que possuem
menos população das ilhas portuguesas habitadas. Imigrantes nos Açores? A ideia pode
parecer estranha quando se sabe que o arquipélago tem uma longa história de emigração
288 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

(Machado, 2010, p. 19). Mas de facto faz parte da realidade atual do arquipélago e que
atravessa as suas nove ilhas, quando se sabe que a sua mais pequena parcela – o Corvo – foi
a que registou maior acréscimo demográfico relativo ao longo do último período inter-
censitário, alicerçado sobretudo na fixação de imigrantes estrangeiros ao longo dos seus 17
km². O estudo realizado sobre a imigração açoriana por Rocha et al. (2009) enquadra este
fenómeno migratório no plano nacional, embora refira um certo desfasamento temporal,
dado ser mais recente nos Açores relativamente ao território ibérico português. Apesar da
tendência dominante ser para os imigrantes se concentrarem nas principais cidades do
arquipélago, os efeitos da imigração estende-se a todas as ilhas e sente-se com mais inten-
sidade em áreas de baixa densidade demográfica, mais envelhecida e com tendência para o
declínio demográfico (Fonseca, 2007, p. 128). É neste contexto que se justifica um estudo
deste tipo nas ilhas selecionadas.
O principal objetivo deste artigo passa por determinar os tipos de relação entre as várias
comunidades imigrantes e as sociedades (de) autóctones, numa perspetiva que pretende
verificar o padrão de inserção social dos não naturais nas três ilhas dos Açores. Além disso,
será igualmente analisada a relação entre os diferentes grupos de estrangeiros residentes.
O tratamento e interpretação de dados provenientes de dois inquéritos aplicados du-
rante a realização do trabalho de campo da nossa dissertação de doutoramento constituiu
a metodologia principal. No conjunto das três ilhas foram realizados 124 inquéritos aos
imigrantes estrangeiros e 167 à população autóctone, durante o último semestre de 2013.
A distribuição do número de entrevistas foi efetuada tendo em conta o peso dos habitantes
residentes nacionais e nascidos no estrangeiro de cada ilha, utilizando-se como referência
os resultados do último Recenseamento Geral de População de Portugal (2011).
O presente texto encontra-se organizado com a seguinte lógica. Em primeiro lugar,
será realizado um enquadramento natural e demográfico das unidades espaciais em análi-
se. Segue-se uma abordagem às principais diferenças e ao modo de relacionamento entre
as várias comunidades imigrantes, para numa fase posterior determinar-se os tipos de
relação entre os imigrantes a população natural, numa perspetiva dos que migraram. Por
último, será apresentada a perceção e o tipo de interelação dos autóctones com as diversas
comunidades de imigrantes.

O Enquadramento Geodemográfico das ilhas açorianas

O arquipélago dos Açores é composto por nove ilhas cujas superfícies e populações são
muito desiguais entre si e situadas, sem exceção, a mais de 1000 quilómetros do ponto do
continente europeu mais próximo, registando, portanto, um tipo de insularidade natural
289 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
profunda. As ilhas do grupo ocidental – Flores e Corvo – são as que verificam maior grau
de afastamento, quase 2000 quilómetros da Europa, e de uma segunda ilha, depois de
Santa Maria. A Graciosa, por sua vez, está localizada no grupo central, destacando-se neste
subconjunto pela sua área bastante reduzida. As três ilhas estudadas apresentam a curio-
sidade geográfica de serem as que ocupam posição mais a Norte do arquipélago, sendo as
que registam menos habitantes, além disso, Corvo e Graciosa são as que possuem menor
superfície, uma vez que a ilha das Flores apresenta maior área que Santa Maria.
Assim, se os Açores beneficiam do estatuto de região ultraperiférica, aquelas três ilhas
não serão muito mais que ultraperiféricas, tendo em conta a dimensão e a posição que
ocupam no arquipélago?
Figura 1. Localização das ilhas Graciosa, Figura 2. Quadro-resumo das principais características territoriais
Flores e Corvo no arquipélago dos Açores. e demográficas, nas ilhas Graciosa, Flores e Corvo.
(Fonte: Elaboração própria) (Fonte: INE, 2013)

O conjunto de habitantes das três ilhas representa somente 3,5% da população dos Açores,
mas a sua importância sobe para os 5,3% quando consideramos apenas os imigrantes estran-
geiros. A Graciosa é a mais povoada, porém a ilha das Flores destaca-se com o maior valor
absoluto de imigrantes, enquanto o Corvo, por sua vez, surge com a importância de imigrantes
mais elevada entre a sua população, correspondendo a quase 12% do total de habitantes.
Considerando a região de origem do total de imigrantes das três ilhas, verificamos
que são os europeus e os norte-americanos que dominam (Figura 3). Relativamente a este
grupo, Lucinda Fonseca (2007) destaca o contributo particular que a emigração açoria-
na para a América do Norte tem na formação do contingente proveniente dos Estados
Unidos e do Canadá (cônjuges e descendentes). Os africanos também são expressivos,
representando 1/4 do total, enquanto os latino-americanos não vão além dos 13% e os
asiáticos apresentam uma percentagem residual.

Figura 3. Distribuição do stock de imigrantes


estrangeiros formado pelo conjunto das ilhas
Graciosa, Flores e Corvo, por grandes regiões de
origem, em 2011. (Fonte: INE, 2013)
290 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Os Censos da População de 2011 revelaram uma enorme variedade no que concerne ao


país de origem dos imigrantes, reunindo no seu conjunto 32 origens estrangeiras. É a ilha
das Flores que apresenta maior diversidade, apresentando 26 países diferentes, sendo as co-
munidades mais numerosas provenientes dos Estados Unidos da América (EUA), Alemanha
e Cabo Verde. Os imigrantes graciosenses, por sua vez, registam 22 origens, sendo as dos
EUA, Brasil e Alemanha as mais importantes. O Corvo não tem mais de 11 naturalidades
estrangeiras (nenhuma asiática), cujas comunidades mais significativas são oriundas da Guiné-
-Bissau e de Cabo Verde. Por grandes regiões, verificamos que na Graciosa residem sobretudo
imigrantes da América do Norte (37,5%), nas Flores principalmente europeus (38,6%) e no
Corvo existe uma enorme concentração de africanos (63,4%). Nestas três ilhas também é
possível encontrar países tão longínquos e tradicionalmente com poucas ligações a Portugal,
como residentes que vieram do Usbequistão, Laos ou da Guiné-Conacri, por exemplo. Sem
dúvida que numa pequena escala estas três ilhas têm revelado alguma capacidade para atrair
imigrantes das mais diversas paragens do globo.

As Diferenças e as Relações entre as várias Comunidades de Imigrantes

Existindo uma significativa variedade nas origens dos imigrantes nas três ilhas estuda-
das, naturalmente que há diferenças entre as comunidades. Desde logo os motivos porque
ao decidirem emigrar do seu país optaram por residir em espaços com uma insularidade
tão profunda (Figura 4).

Figura 4. Principais motivos da


imigração para o conjunto das
ilhas Graciosa, Flores e Corvo,
por grande região de origem.
(Fonte: Elaboração própria)

No cômputo geral, as razões profissionais e a procura de ambientes naturais/tranquilos


291 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
são as motivações principais apontadas pelos entrevistados, com pouco mais de 22% cada.
No entanto, se o primeiro motivo está sobretudo associado aos africanos e latino-americanos,
o segundo é muito mais expressivo entre europeus e norte-americanos. Nestas duas regiões
desenvolvidas também assume importância um outro fator de ordem natural: a existência de
um clima ameno. As razões de ordem económica também são importantes, mas enquanto nas
comunidades da América do Norte e da Europa o motivo está relacionado com o baixo custo
de vida existente nas ilhas, as restantes áreas do globo apontam os salários mais elevados como
o aliciante principal, comparativamente ao do país de naturalidade. A reunificação familiar
é referida por mais de metade dos asiáticos, sendo expressiva em todas as regiões, à exceção
da Europa. Por fim, o nível de segurança tem importância particularmente na comunidade
latino-americana. Numa distribuição por ilhas, o Corvo apresenta características especificas,
uma vez que mais de 80% da amostra chegou à ilha por razões de ordem económica-laboral,
na sua grande maioria por decisão das entidades patronais, enquanto os fatores naturais cons-
tituem a principal atração das ilhas Graciosa e Flores. De qualquer forma, a um nível geral,
este tipo de análise inicial permite-nos avançar para a formação de dois conjuntos principais,
os europeus e norte-americanos, por um lado, e as restantes comunidades, por outro.
Outra diferença observada entre
os dois grandes grupos supramen-
cionados está relacionada com o tipo
e o local da habitação. Se por um
lado, a maioria dos imigrantes pro-
venientes da América do Norte e da
Europa frequentemente adquire an-
tigas casas de freguesias mais rurais
para a reconstrução, frequentemente
em zonas muito isoladas (Figura 5),
por outro lado, o tipo de imigração
económica opta pela forma de arren-
damento de apartamentos ou viven-
Figura 5. Habitação recuperada na ilha das Flores por casal de
imigrantes, ele norte-americano, ela do Laos. das nos principais núcleos urbanos
(Fotografia própria) das ilhas (vilas), com o objetivo de
minimizar a distância e os gastos da
mesma relativamente ao local de trabalho. Alguns dos trabalhadores imigrantes das grandes
empresas de construção civil estão instalados nos estaleiros da entidade patronal. Outra espe-
cificidade está relacionada com os elementos femininos da América Latina, dado que a maio-
ria vive com um companheiro natural da ilha, não se registando propriamente uma lógica de
fixação, uma vez que em muitas situações é uma condição pré-determinada pelos parceiros
292 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

(pois podem já ser detentores de habitação própria nas freguesias mais rurais ou nas vilas).
Convém referir que o tipo de descrição realizada não se aplica ao Corvo, uma vez que
a imigração de países desenvolvidos é quase inexistente e também porque esta ilha não
possui freguesias, nem qualquer aldeia habitada fora do perímetro da sua única vila.
No que concerne à relação entre as diferentes comunidades são os asiáticos que estão menos
conectados com outros imigrantes, uma vez que quase 80% declarou não ter nenhum amigo
de outro país na ilha em que reside. Para esta circunstância contribui nomeadamente os chi-
neses, claramente a comunidade mais fechada, uma vez que também raramente se relacionam
com outros naturais do mesmo país. Embora os restantes conjuntos estejam mais interligados
com imigrantes de outros países, é possível observar uma maior aproximação social consoante
a região de origem: africanos, latino-americanos, europeus de leste e europeus ocidentais e do
Norte. Os amigos de outros países são maioritariamente oriundos de Estados da mesma região.
De um modo geral, verificam-se casos de inclusão, exclusão e de autoexclusão social
entre as comunidades imigrantes. A comunidade da Europa Ocidental (e do Norte) é das
que mais se fecha sobre si mesma, tendo sido detetado na ilha das Flores um grupo que
classificamos como uma (pequena) sociedade estrangeira organizada. Este conjunto não
interage frequentemente com locais e habitualmente não domina a língua portuguesa.
Nela encontra-se integrada a população norte-americana (sem ascendentes portugueses),
mas não a da Europa de Leste. As outras naturalidades para serem aceites, inclusive a
portuguesa, geralmente têm de casar primeiro com um dos seus membros. Trata-se de um
tipo de sociedade que possui um programa de atividades económicas e sociais planeadas
e fixas, como, por exemplo, a organização do mercado biológico e das classes de Yoga de
periodicidade semanal ou a festa anual dos piratas (Figura 6).

Figura 6. A festa anual dos piratas, na ilha das Flores. (Fotografia cedida por Gabriela Silva)

No entanto, é possível encontrar na ilha elementos com idêntica origem que não se
identificam com o grupo, rejeitando participar nele (autoexclusão, portanto). São elemen-
tos constituídos por famílias que preferem não ter contacto social, indivíduos solitários ou
que estão casados com pessoas de outros países.

293 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial


Relações entre os Imigrantes e a População Local

A nossa amostra revelou que aquando do momento inicial de chegada à ilha com
objetivo de permanecer a principal dificuldade encontrada pelos imigrantes foi o idioma
(49%), uma vez que a língua oficial portuguesa é sempre necessária nos serviços e espaços
comerciais das ilhas. Na ilha Graciosa, uma das estratégias encontradas por alguma po-
pulação que não domina o português passou por recorrer a alguns elementos autóctones
que dominam o inglês, não sendo complicado encontrá-los, pois naturalmente há entre
os residentes ex-emigrantes regressados da América do Norte que são fluentes na “língua
de Shakespeare”. Com o passar do tempo, estabelece-se uma estreita relação de confiança
entre as duas partes, na qual os naturais passam a ler a correspondência em português e a
redigir os textos na “língua de Camões”, principalmente quando se trata de documentos
oficiais para a administração pública. Não obstante, cerca de 38% declarou não ter encon-
trado qualquer tipo de dificuldade na chegada ao seu destino final, enquanto 11% sentiu
alguma falta de recetividade da população local.
Quando indagados sobre algumas das atitudes da população autóctone insular, os resul-
tados revelam uma opinião bastante favorável, considerando-os principalmente educados e
acolhedores (Figura 7). Mais de 2/3 dos imigrantes entrevistados concordam com as caracte-
rísticas apresentadas dos locais, apenas ao nível da partilha não foi atingindo aquele limite, mas
situando-se muito próximo do mesmo. Em todas as atitudes o Corvo destaca-se por apresentar
a opinião mais favorável, significativamente superior às restantes ilhas. Nenhum imigrante
corvino discordou do facto dos nativos serem acolhedores, educados e tolerantes. Tendo em
conta que a maioria dos imigrantes neste território provém de África, é possível avançar que
se encontram bem integrados na sociedade da ilha mais pequena dos Açores. As percentagens
dos que discordam nunca ultrapassam os 22%, sendo a tolerância e a resposta à questão “se
sentiria falta dos locais se tivesse de partir de modo definitivo?” que se aproxima mais daquela
percentagem. Por região de origem, são os africanos e asiáticos que consideram os locais das
Flores pouco tolerantes, enquanto na Graciosa, são principalmente os latino-americanos (re-
presentando mais de 1/3 de cada conjunto). São novamente os imigrantes de África das Flores,
aos quais se junta outra vez os asiáticos da mesma ilha, que sentiriam menos a falta dos insu-
lares, em caso de partida permanente. Em relação aos europeus, é principalmente na Graciosa
que apresentam respostas mais desfavoráveis relativamente a estas características da população
natural, sem, contudo, ultrapassar os 23,1% do total de imigrantes da Europa.
Somente 8,1% da amostra afirmou não possuir qualquer amigo natural da ilha. São os
africanos (13,3%) que referem em maior proporção não ter amigos insulares, sendo no Corvo
a ilha que apresenta a percentagem mais elevada (16,7%). Todos os imigrantes americanos
revelaram ter pelo menos alguns amigos das ilhas. Apenas na Graciosa há asiáticos sem amigos
294 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

insulares e também é nesta ilha que se verifica maior percentagem de europeus naquela condi-
ção (23,1%). Sabemos de antemão que o conceito de amizade é muito subjetivo, na medida em
que varia bastante de pessoa para pessoa, daí poder condicionar este tipo de análise, porém a
esmagadora maioria dos imigrantes nas três ilhas considera ter amigos locais. Sendo consequên-
cia direta ou não desta circunstância, cerca de 30,6% do total de imigrantes inquiridos revelou
já ter sido alvo de um qualquer ato de discriminação, constituindo o racismo e/ou a xenofobia
a discriminação mais usual (71%). Não foi registado qualquer tipo de problema com os norte-
-americanos, em oposição, são os asiáticos (44,4%) e, principalmente, os latino-americanos
(53,6%) que declaram serem vitimas de discriminação. De salientar o facto de apenas 30% dos
africanos e 18,9% dos europeus terem registado este tipo de problemas. É na Graciosa (36,1%)
que a amostra revelou mais atos de discriminação, pelo contrário, somente 16,7% dos imigran-
tes corvinos sentiu-se discriminado, enquanto a ilha das Flores ficou-se pelos 25%.

Figura 7. Opinião do conjunto de imigrantes Figura 8. A figura social que reflete o grau inserção
das ilhas Graciosa, Flores e Corvo sobre das comunidades imigrantes na sociedade insular,
algumas das atitudes da população local. no conjunto das ilhas Graciosa, Flores e Corvo.
(Fonte: Elaboração própria) (Fonte: Elaboração própria)

Relativamente à figura social sentida pelos imigrantes estrangeiros na sociedade local,


46,8% dos indagados declarou sentir-se como um imigrante aceite, sendo que 28,2% sente-
-se equiparado à população natural da ilha. Somente 1 europeu da ilha das Flores considera
que é um imigrante indesejado e 23,4% revelou o papel de estrangeiro, como a figura social
mais adequada à sua situação (Figura 8). Quase 60% dos imigrantes corvinos consideram-se
equiparados à população local, enquanto nas Flores 52,8% sente-se como imigrante aceite,
por sua vez, a Graciosa é ilha que regista maior proporção de indivíduos que se declaram so-
cialmente como estrangeiros (27,5%). No entanto, nas três ilhas o somatório das categorias
sociais de imigrante aceite e de equiparado à população natural é sempre superior a 72%, logo
em todas a maior parte dos imigrantes encontra-se confortável ao nível da sua inserção social,
pelo que podemos pressupor que a grande maioria está de certo modo integrada nas socieda-
des insulares. São os norte-americanos e latino-americanos que revelam um sentimento de
maior aceitação, pese embora o facto de os primeiros considerarem-se sobretudo equipara-
dos aos locais, enquanto os segundos sentem-se principalmente imigrantes aceites. Mais de
295 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
metade dos asiáticos revelam um sentimento de estrangeiro, seguindo-se os europeus com a
segunda maior percentagem (30,2%), uma vez que apenas 16,7% dos africanos declarou-se
como estrangeiro. A larga maioria destes considera-se bem aceite pela população local.

A opinião das sociedades locais sobre os imigrantes estrangeiros

Solicitou-se à população local insular que numa escala de 0 a 10, classificassem as ca-
racterísticas dos imigrantes que mais determinam a interação com eles (Figura 9). Nota-se
que de forma bem destacada surge o idioma dos imigrantes (5,48) como o fator que pode
influenciar uma aproximação ou um distanciamento social.
Depois surge a orientação sexual, a nacionalidade e religião, cujos valores se encontram
entre os 2,18 e os 2,70 pontos, respetivamente. É relevante referir que a raça (2,01) possui
pontuação inferior à nacionalidade e à ética, assim pressupõe-se que a existir problemas nes-
tas ilhas será mais de xenofobia de que propriamente de racismo. O resultado da amostra à
população imigrante parece de certa forma corroborar esta ideia, por exemplo, 39,3% dos
latino-americanos declararam ter sido vitimas de atos de racismo ou xenofobia, enquanto nos
africanos essa percentagem não vai além dos 30%. Por outro lado, a classe social, o género e o
nível de instrução são as características que menos importam para o surgimento de contactos
sociais entre os nativos e a população residente nascida no estrangeiro. Numa distribuição por
ilhas são os graciosenses que revelaram de forma significativa os valores mais elevados em todas
as categorias sociais apresentadas, ficando a ideia de se tratar de uma sociedade mais seletiva.
No que concerne ao contacto efetivo com os imigrantes estrangeiros, aproximadamen-
te 81% do total de inquiridos afirmou interagir habitualmente com imigrantes. Enquanto
nas ilhas do grupo ocidental cerca de 89% das amostras contacta geralmente com eles, na
Graciosa 26,7% não o faz, aliás 20% destes graciosenses refere que não tem qualquer in-
teresse, o que não acontece nas outras duas ilhas. Verifica-se assim uma certa rigidez social
para com os que vêm do estrangeiro para uma determinada percentagem de graciosenses.
Apesar disso, o motivo geral mais comum para não haver interação está relacionado com
o facto de os autóctones não conhecerem imigrantes. Não falar a mesma língua é também
uma razão apontada por habitantes da Graciosa.
No que se refere às razões que estão subjacentes à interação usual com imigrantes, a
principal tem a ver com o contacto através das relações comerciais/serviços (46,5%), segue-
-se a vizinhança (21,2%) e motivos laborais (11,8%). Se nas Flores e na Graciosa o principal
motivo são as relações nos estabelecimentos comerciais e de serviços, mais de metade dos cor-
vinos apontaram a vizinhança como o principal fator responsável, o que não surpreende dada
a reduzida dimensão da ilha e pelo facto de toda a população residir numa única povoação.
296 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Figura 9.As características que influenciam a Figura 10. O grau de interação com os imigrantes,
relação da população natural com os imigrantes. segundo a grande região de origem.
(Fonte: Elaboração própria) (Fonte: Elaboração própria)
Tendo em conta o grau de interação com as várias comunidades imigrantes (Figura
10), é com os americanos que a população mais contacta, principalmente com os latino-
-americanos (4,2). Como se demonstrou anteriormente, a principal característica apontada
pelos nativos para se relacionarem com os imigrantes é a língua, ora sendo o conjunto
proveniente da América Latina formado sobretudo por brasileiros é natural que se verifi-
que uma intensificação do contacto com estes. Por outro lado, com uma comunidade de
emigrantes açorianos tão significativa na América do Norte, torna-se fácil a identificação
dos insulares com aquela região do globo, confundindo-se muitas vezes os emigrantes
com os nacionais daqueles dois países. Os Asiáticos surgem em seguida, sendo a últi-
ma comunidade acima dos 3,0 pontos, não surpreende pelo facto de estarem maiori-
tariamente ligados a profissões de atendimento direto ao público (lojas de comércio),
se relembrarmos que a principal razão de contacto com imigrantes apontada ter sido,
precisamente, as relações comerciais/serviços. Os europeus de Leste são os que menos
interagem com a população autóctone, uma das razões tem a ver com o facto de muitos
deles não dominarem a língua portuguesa, o que não acontece com os naturais de África,
pois a maioria é oriunda do espaço lusófono africano. Os europeus ocidentais e do Norte
estão pontuados acima destas duas últimas comunidades imigrantes, mas ficou patente
nas entrevistas que muitos dos insulares preferem alguns (por exemplo, franceses e italianos)
a outros (como os alemães).

Figura 11. A perceção da população autóctone sobre


as várias comunidades imigrantes, segundo determi- 297 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
nadas características sociais dos imigrantes. (Fonte:
Elaboração própria)

Por fim, foi proposto aos naturais das ilhas que efetuassem uma hierarquização dos
diferentes conjuntos regionais de imigrantes, considerando algumas características so-
ciais da população natural do estrangeiro. Esta classificação permitiu-nos elaborar um
quadro-resumo sobre os diferentes rumores e preconceitos afetos a cada comunidade
(Figura 11). Por conseguinte, os chineses surgem como os mais empreendedores e tra-
balhadores, mas também os mais desconfiados! Os brasileiros são sem dúvida os mais
integrados socialmente, o que resulta também do facto de serem os mais simpáticos,
além de serem os menos desconfiados em conjunto com os norte-americanos. Estes, por
outro lado, são considerados os menos trabalhadores a par dos europeus ocidentais (não
surpreende, pois nas ilhas a faixa etária dos imigrantes destes conjuntos é mais elevada
que nos restantes). Para os insulares os mais instruídos vêm da Europa, não importando
ser do Ocidente ou de Leste, enquanto os africanos aparecem destacados como os deten-
tores do menor grau de instrução. Os africanos e os europeus de Leste são em conjunto
os menos empreendedores, os menos simpáticos e cooperantes e os que estão menos
integrados socialmente. Esta é, com efeito, a perceção geral que a população autóctone
tem sobre os vários grupos de imigrantes.

Notas Finais

As ilhas analisadas neste texto possuem um tipo de perfil muito periférico, mesmo
considerando a escala dos Açores, pois como ficou patente, apresentam áreas e populações
com pouco significado no contexto regional. Embora remotas, estas ilhas demonstraram
recentemente capacidade atrativa sobre diversos grupos de imigrantes estrangeiros. A este
respeito o que impressiona não é tanto o volume dos contingentes imigratórios, mas a
diversidade das origens desses imigrantes. Coexiste dois tipos de migrações principais nes-
tas ilhas tão pequenas: uma migração económica-laboral e outra baseada em condições
atrativas de ordem natural (paisagem e clima), frequentemente associada à migração de
reformados. Enquanto a primeira é predominantemente constituída por trabalhadores
de países em desenvolvimento, podendo assumir-se com carácter conjuntural, na medida
em que é formada sobretudo por uma oferta de postos de trabalho nas grandes obras pú-
blicas, a segunda, surge num contexto de opção previamente planeada, frequentemente
associada a uma imigração não ativa (de reformados) proveniente de países (europeus)
desenvolvidos. Com efeito, verifica-se assim o cruzamento de culturas nestes pequenos
298 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

espaços insulares, de países desenvolvidos com países em desenvolvimento e destes com a


população autóctone.
Relativamente às hipóteses colocadas por Baldacchino (2010) e King (2010) sobre a
forma como as pequenas sociedades insulares recebem os residentes de longa duração que
vieram de fora, este estudo mostra que as populações locais da Graciosa, Flores e Corvo
estão longe de rejeitar ou de demonstrar qualquer forma de hostilidade à presença fixa de
imigrantes estrangeiros, caso contrário a opinião dos imigrantes sobre os naturais não teria
tido resultados tão favoráveis. Naturalmente que também foi registado descontentamento
por parte de alguns imigrantes em relação às atitudes dos autóctones e observou-se a exis-
tência de um subgrupo de nativos graciosenses que parecem estar desligados dos imigrantes
por vontade própria, mas em ambas situações as percentagens são bastante reduzidas consi-
derando o cômputo geral. Aproximadamente 31% da amostra dos imigrantes declarou já ter
sido alvo de discriminação, mas não se trata de uma situação diretamente relacionada com a
cor da pele, uma vez que a análise aos inquéritos da população natural revelou que a língua,
a religião, a nacionalidade e a orientação sexual são mais determinantes que a raça no estabe-
lecimento de contacto dos autóctones com os imigrantes. O processo de integração/exclusão
é mais evidente entre os vários subconjuntos que constituem a comunidade imigrante, pois
como ficou demonstrado a origem pode ser um fator decisivo no acesso a um grupo social.
As três ilhas açorianas apresentam-se num contexto favorável à vinda de imigrantes,
porém numa análise mais aprofundada são os graciosenses que possuem os valores mais
elevados nas preferências ao nível das características exibidas pela população nascida no
estrangeiro e as maiores diferenças em termos da interação com os diferentes conjuntos
de imigrantes. Acresce o facto de ter sido precisamente este território insular a registar a
maior percentagem de imigrantes discriminados. Por oposição surge a pequena ilha do
Corvo, detentora de uma comunidade africana significativa, parece ser a sociedade mais
acolhedora, onde a maioria dos imigrantes se identifica com a população local. Esta cir-
cunstância poderá corroborar de forma afirmativa uma das questões levantadas por Russel
King (2010), que relaciona a pequena escala das sociedades insulares com um modo de
acolhimento mais bem-sucedido.

Referências Bibliográficas

Baldacchino, G. (2010). Imigrantes, Turistas e Outros de Fora: ´venha visitar, mas não permaneça´
– A ameaça de invasão para as sociedades insulares. Em M. L. Fonseca, Actas da Conferência
Internacional Internacional Aproximando Mundos: Emigração, Imigração e Desenvolvimento em
Espaços Insulares (pp. 63-86). Lisboa: FLAD.
Bertram, G. (1986). “Sustainable Development” in Pacific Micro-economies. World Development, 299 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
14, N.º 7, 809-822.
Bertram, G., & Poirine, B. (2007). Political Economy. In G. Baldacchino, A World of Islands: an
Island Studies Reader (pp. 325-377). Malta and Canada: Agenda Academic and Institute of
Islands Studies.
Bertram, G., & Watters, R. (1985). The MIRAB Economy in South Pacific Microstates. Pacific
Viewpoint, 26(3), 497-519.
Connell, J. (2007). “Migration”. In G. Baldacchino, A World of Islands (pp. 455 - 481). Malta &
Canada: Agenda Academic, Institute of Island Studies.
Fonseca, M. L. (2007). Inserção Territorial – Urbanismo, Desenvolvimento Regional e Políticas
Locais de Integração . In A. Vitorino, Imigração: Oportunidade ou Ameaça? (pp. 105-150).
Estoril: Princípia.
INE (2013) – XV Recenseamento Geral da População de Portugal-Resultados definitivos dos Açores.
King, R. (1993). “The Geographical Fascination of Islands”. In D. Lockhart, D. Drakakis-Smith,
& J. Schembri, The Development Process in Small States (pp. 13-37). London: Routledge.
King, R. (1999). “Islands and Migration”. In E. Biagini, & B. Hoyle, Insularity and Development:
International Perspectives on Islands (pp. 93-115). London: Pinter.
King, R. (2010). A Geografia, as ilhas e as migrações numa era de mobilidade global. In M. L.
Fonseca, Actas da Conferência Internacional Aproximando Mundos: Emigração, Imigração e
Desenvolvimento em Espaços Insulares (pp. 27-62). Lisboa: FLAD.
Machado, F. L. (2010). Prefácio. In G. Rocha, Perfis e Trajectórias dos Imigrantes nos Açores (pp. 19-24).
Ponta Delgada: Governo Regional dos Açores.
McCall, G. (1994). “Nissology: A proposal for Consideration”. Journal of The Pacific Society, 17,
N.º 2-3, pp. 93-106.
McCuster, M., & Soares, A. (2011). Introduction. In M. McCuster, & A. Soares, Islanded Identities:
Constructions of Postcolonial Cultural Insularity (pp. xi-xxviii). New York: Editions Rodopi B.V.
Read, R. (2004). The Implications of Increasing Globalization and Regionalism for the Economic
Growth of Small Island States. World Development, 32(2), 365-378.
Rocha, G., Medeiros, O., & Ferreira, E. (2009). Perfis e Trajectórias dos Imigrantes nos Açores. Ponta
Delgada: Governo Regional dos Açores.
Royle, S. (2001). A Geography of Islands: Small Island. London: Routledge.
Srebrnik, H. (2000). Identity, Culture and Confidence in the Global Economy . In G. Baldacchino,
& D. Milne, Lessons from the political economy of small islands: the resourcefulness of jurisdiction
(pp. 56-71). New York: St. Martins`s Press.
Vidal de la Blache, P. (1926). Principles of Human Geography. London: Constable.
300 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Perfil dos Alunos que frequentam
o 3º Ciclo do Ensino Básico nas
Escolas do Distrito da Guarda

Fernando Manuel Videira dos Santos


Investigador Doutorado Integrado do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares
do Século XX da Universidade de Coimbra E Investigador Colaborador do Centro
de Estudos em Educação e Inovação

1. Breve Enquadramento

Esta investigação tem como objetivo responder à questão por nós formulada que foi
a seguinte:
Qual é o perfil dos alunos que frequentam o 3º ciclo do ensino básico nas escolas do distrito
da Guarda?
Para responder a esta pergunta de partida elaborámos recorrendo a métodos valida-
dos e seguindo as melhores práticas recomendadas por investigadores de referência para
a construção de um inquérito por questionário, que foi respondido por uma amostra
representativa da população alvo. A seleção da amostra seguiu o método de amostragem
probabilístico por agrupamento pois os sujeitos da população constituíam grupos naturais,
escolas e turmas do distrito da Guarda.
301 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Em Portugal, distrito, é um território, uma divisão administrativa com um nível au-
tárquico e supramunicipal desde 1835. A Lei de 25 de Abril de 1835 suprimiu o modelo
das províncias até então vigente criando dezassete distritos no continente a que mais tarde
se adicionou mais um, dezoito que ainda hoje permanecem e quatro nas ilhas adjacentes
à plataforma continental. O distrito é constituído por municípios e foi liderado até 2011
por um Governador Civil. O Governo Civil, foi até aí, o órgão da administração pública
que representava administrativamente o Governo da República. O distrito da Guarda é
constituído por catorze municípios, a saber:
Aguiar da Beira; Almeida; Celorico da Beira; Figueira de Castelo Rodrigo; Fornos
de Algodres; Gouveia; Guarda (que é a capital); Manteigas; Mêda; Pinhel; Sabugal; Seia;
Trancoso; Vila Nova de Foz Côa. Foi neste território singular, cheio de potencialidades
mas também com um conjunto de problemas ao nível do seu desenvolvimento económico
e social de que destacamos pela sua acuidade o seu despovoamento, que esta investigação
teve lugar.
Realizado o processo de seleção da amostra é possível observar que a mesma ficou
constituída por 772 adolescentes de ambos os géneros. Destacamos, por que nos parece
lícito, sugerir que os sujeitos da nossa amostra representam o universo de que são prove-
nientes, e é de supor que o sorteio aleatório da escolha seja das escolas, seja das turmas,
tenha facilitado uma distribuição aleatória dos adolescentes que foram entrevistados e
estudados na presente investigação.
Vamos, de seguida, apresentar de forma detalhada como foi realizada a análise descri-
tiva da amostra e apresentar um conjunto de características dos sujeitos que nos permitem
apontar um perfil dos alunos do 3º Ciclo deste território.

2. Análise descritiva

Partimos do princípio de que a estatística descritiva é um ramo da estatística que aplica


várias técnicas para descrever uma dada amostra. A análise da estatística descritiva consiste
na descrição das caraterísticas da amostra em estudo, da qual provêm os dados recolhidos.
Permite, como bem afirma, Fortin (1999) descrever os valores obtidos através da medida
das variáveis presentes no estudo.
Por uma questão de organização estrutural, subdividimos a análise descritiva sobre o
perfil dos alunos do 3º Ciclo do Ensino Básico que frequentam as escolas públicas no distrito
na Guarda em diversas variáveis que caraterizam os sujeitos nas seguintes singularidades:
– Caraterização sociodemográfica;
– Caraterização subjacente ao contexto da vida religiosa;
302 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

– Caraterização subjacente ao contexto escolar;


– Caraterização subjacente ao contexto familiar;
– Caraterização subjacente à perceção da indisciplina escolar.
A apresentação destes dados surge delineada em várias tabelas, precedidas das correspon-
dentes análises, salientando-se que a análise inerente às frequências relativas e percentuais
será processada em função dos valores expressos nas colunas das respetivas tabelas e quadros
como de seguida expomos.
3. Resultados

Tendo como referência os objetivos que orientaram esta investigação, neste particular,
implícito à análise dos resultados, procurámos caracterizar não apenas os scores obtidos
pelos sujeitos da nossa amostra para as variáveis dependentes e independentes em estudo,
mas também, analisar como estas variáveis se associam entre si.
Após a análise descritiva dos dados obtidos, passámos de seguida à análise inferencial dos
mesmos através da estatística analítica. Deflectimos assim, através do estudo das associações
entre as variáveis independentes e as dependentes da nossa investigação, para a verificação
da validade dos objetivos formulados.
Vamos em seguida apresentar os resultados da variável género em função da idade
dos sujeitos.

4. Género em Função da Idade

A tabela 1, que de seguida vamos apresentar, descreve a amostra relativa ao género dos
sujeitos em função da idade:

Tabela 1 – Estatísticas relativas ao género dos sujeitos em função da idade


Skweness/ Kurtosis/ Teste t
Género n Min Máx x Dp CV (%)
Std.E Std.E Student
Feminino 402 12 17 13,29 1,03 5,10 0,59 7,80 t= -0,983
Masculino 370 12 17 13,36 1,04 4,62 0,80 7,85 p= 0,326
Total 772 12 17 13.33 1.042 6,87 0,92 7,81

Pela análise da tabela anterior, podemos constatar que a totalidade da nossa amostra
é constituída por 772 sujeitos. Verificámos ainda que 402 sujeitos são do género femi-
nino a que corresponde um valor percentual de (52,1%) e que do género masculino são
303 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
370 sujeitos a que corresponde um valor percentual de (47,9%).
Poderemos ainda apurar que a oscilação das idades em ambos os géneros se cifra entre o
mínimo 12 anos e o máximo de 17 anos. No que diz respeito ao valor da média das idades, na
totalidade da amostra ela é de (x 13,33) anos e o desvio padrão (Dp=1,04). Tendo por base as me-
didas de assimetria ou enviesamento (Skweness/Std. Error) e de achatamento ou curtose (Kurtosis/
/Std. Error) na totalidade da nossa amostra podemos concluir que a distribuição das idades é as-
simétrica e mesocúrtica e o coeficiente de variação é de (7,81%) o que nos indica a existência de
uma (CV ≤ 15%) pelo que poderemos concluir que há uma dispersão fraca em torno da média.
Analisando a estatística representada na tabela 1 relativa à idade em função do género,
verificamos que a média das idades no género feminino se cifra nos (x = 13,29), apresentando
uma dispersão de (CV=7,80%) considerada fraca – CV ≤ 15%. No género masculino a
média é de (x = 13,36) e, como se pode verificar, é superior à do género feminino. Quanto à
dispersão, esta também é fraca uma vez que o valor se cifra nos (CV=7,85%) – (CV≤ 15%).
Contudo, as diferenças entre médias não são estatisticamente significativas (t= 0,983;
p= 0,326).
Com base nas medidas de assimetria ou enviesamento (Skweness/Std. Error) e de acha-
tamento ou curtose (Kurtosis/Std. Error), podemos concluir que a distribuição das idades
em ambos os géneros é assimétrica e mesocúrtica.
Vamos de seguida apresentar os valores relativos ao local de residência dos sujeitos,
tendo como delimitação se o sujeito vive em zona considerada urbana ou rural em função
do género dos respondentes.

5. Zona de Residência dos Sujeitos em Função do Género

A tabela 2 que se apresenta em seguida descreve a amostra no que respeita à variável


zona de residência segundo o género dos sujeitos:
Tabela 2 – Estatísticas relativas à variável zona
de residência segundo o género dos sujeitos
Género Feminino Masculino Total Residuais
Zona de Residência n % n % n % Fem. Masc.
Zona Rural 205 51,0 190 51,4 395 51,2 -0,1 0,1

Zona Urbana 197 49,0 180 48,6 377 48.8 0,1 -0,1

Total 402 100 370 100 772 100

Analisando os resultados em função da distribuição dos elementos da amostra por zona


geográfica segundo o género patenteados na tabela 2, poderemos constatar que na totalida-
304 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

de da nossa amostra o grupo com maior representatividade é o que diz residir na zona rural,
perfazendo 395 sujeitos, um valor percentual de (51,2%), enquanto 377 sujeitos a que cor-
responde um valor percentual de (48,8%) respondeu dizendo que reside na zona urbana.
Particularizando esta análise da variável, zona de residência em função do género, ve-
rificamos que os respondentes do género feminino 205 cujo valor percentual corresponde
a (51%) diz residir na zona rural, em contraponto com 197 sujeitos num valor percentual
de (49%) afirma residir na zona urbana.
No que diz respeito ao género masculino poderemos verificar que 190 sujeitos a que
corresponde uma percentagem de (51,4%) reside na zona rural, ao passo que 180 sujeitos
cuja percentagem corresponde a (48,6%) dizem residir em zona urbana.
De seguida vamos apresentar os resultados relativos ao ano de escolaridade que os
sujeitos frequentam em função do género.

6. Ano de Escolaridade que os Sujeitos frequentam em Função do Género

A tabela 3, que se apresenta em seguida, descreve a amostra por grupo tendo em conta
o ano de escolaridade que os sujeitos frequentam em função do género.

Tabela 3 – Distribuição da amostra por grupo ano


de escolaridade em função do género
Género Feminino Masculino Total Residuais
Ano de escolaridade n % n % n % Fem. Masc.
7º Ano 161 40,1 161 43,5 322 41,7 -1,0 1.0
8º Ano 124 30,8 107 28,9 231 29,9 0,6 -0,6
9º Ano 117 29,1 102 27,6 219 28,4 0,5 -0,5
Total 402 100 370 100 772 100

Analisando os resultados em função da distribuição dos elementos da amostra por ano


de escolaridade que frequentam os sujeitos em função do género – tabela 3, poderemos
constatar que na totalidade da nossa amostra o grupo com maior representatividade é o que
frequenta o 7º ano com 322 sujeitos a que corresponde (41,7%), seguindo-se os sujeitos
que frequentam o 8º ano com 231 sujeitos que corresponde (29,9%) e por último os sujei-
tos que frequentam o 9º ano de escolaridade num total de 219 sujeitos a que corresponde
em termos percentuais (28,4%).
Particularizando esta análise, ano de escolaridade em função do género, poder-se-á
constatar que aos 161 sujeitos do género masculino a que corresponde uma percentagem
305 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
de (43,5%) frequentam o 7º ano, 107 sujeitos a que correspondente (28,9%) frequentam
o 8º ano e 102 sujeitos a que correspondente a percentagem de (27,6%) frequentam o
9º ano de escolaridade.
Verificámos também que os respondentes do género feminino 161 a que corresponde
(40,1%) frequentam o 7º ano, 124 a que corresponde (30,8%) dos sujeitos frequentam o
8º ano, e que 117 sujeitos a que corresponde um valor percentual de (29,1%) frequentam
o 9º ano de escolaridade.
De seguida vamos apresentar os resultados relativos ao grau de escolaridade que os su-
jeitos ambicionam atingir no seu futuro descriminado os resultados em função do género
dos respondentes.
7. Grau de Escolaridade que os Sujeitos ambicionam atingir no futuro em
Função do Género

Analisando os resultados em função da distribuição dos elementos da amostra por


grau de escolaridade que os sujeitos pretendem atingir no futuro em função do género, na
tabela 4, poderemos constatar que na totalidade da amostra o grupo com maior represen-
tatividade é o que anseia ir para o ensino superior com 546 sujeitos a que corresponde uma
percentagem de (70,7%). Seguem-se os que dizem querer ficar pelo 12º ano 189 sujeitos
a que corresponde um valor em percentagem de (24,5%), e por último um número muito
mais reduzido de sujeitos dizem desejar ficar com o 9º ano, 37 sujeitos cujo valor percentual
se fica pelos (4,8%), como se poderá verificar nesta tabela:

Tabela 4 – Distribuição da amostra por grupo grau de escolaridade


que os sujeitos ambicionam atingir no futuro em função do género
Género Feminino Masculino Total Residuais
Escolaridade que os Alunos
n % n % n % Fem. Masc.
ambicionam atingir
9º Ano 12 3,0 25 6,8 37 4,8 -2,5 2,5
12º Ano 72 17,9 117 31,6 189 24,5 -4,4 4,4
Ensino Superior 318 79,1 228 61,6 546 70,7 5,3 -5,3
Total 402 100 370 100 772 100

Analisando com mais profundidade estes dados poderemos referir que são os su-
jeitos do género feminino 318 cujo valor percentual é de (79,1%) que de uma forma
muito expressiva afirmam desejar ir para o ensino superior. Ainda do género feminino,
72 sujeitos a que corresponde uma percentagem de (17,9%) querem ficar pelo 12º ano e
apenas 12 sujeitos do género feminino a que corresponde um valor percentual de (3%)
dizem desejar ficar com o 9º ano de escolaridade.
Em contrapartida, os sujeitos da nossa amostra do género masculino afiguram-se
306 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

muito menos ambiciosos quanto ao nível académico que querem atingir no futuro, pois
228 sujeitos a que corresponde um valor de (61,6%) declaram querer ir para o ensino
superior, 117 a que corresponde um valor de (31,6%) querem ficar com o 12º ano e por
fim são os sujeitos que enunciam querer ficar com o 9º ano de escolaridade, estes, são
25 sujeitos a que corresponde um valor percentual de (6,8%).
É de salientar, por que nos parece preocupante, que (20,9%) dos sujeitos do género
feminino e (29,3%) dos sujeitos do género masculino revelem nas suas respostas que não
querem ir para o ensino superior questão que merece alguma reflexão e estudo.
Poder-se-á constatar ainda ao realizarmos uma análise mais detalhada através dos valores
residuais que estas diferenças são estatisticamente significativas (res.> 1,96).
De seguida vamos apresentar os resultados relativos ao nível socioeconómico dos su-
jeitos estudados através da escala de (GRAFFAR) (Sitkewich & Grunberg) escala validada
para a População Portuguesa e os resultados serão apresentados descriminados considerando
o género do respondente.

8. Nível Socioeconómico calculado através da Escala de GRAFFAR


(Sitkewich & Grunberg) em Função do Género

A tabela 5, que se apresenta em seguida, descreve a distribuição da nossa amostra


Índice de Graffar – Classes Sociais, em função do género dos sujeitos.

Tabela 5 – Distribuição da amostra por Índice de Graffar


– Classes Sociais em função do género do sujeito
Género Feminino Masculino Total Residuais
Índice Graffar
Classes sociais n % n % N % Fem. Masc.

Classe I – Superior Alta 23 5,7 13 3,5 36 4,7 1,5 -1,5


Classe II – Superior Baixa 122 30,3 131 35,4 253 32,8 -1,5 1,5
Classe III – Classe Média 202 50,2 172 46,5 374 48,4 1,0 -1,0
Classe IV – Inferior Alta 52 12,9 51 13,8 103 13,3 -0,3 0,3
Classe V – Inferior Baixa 3 0,7 3 0,8 6 0,8 Não aplicável
Total 402 100 370 100 772 100

Este método de cálculo baseia-se no estudo de caraterísticas sociais e económicas da


família – características tais como, profissão, nível de instrução, fontes de rendimento
familiar, conforto do alojamento e aspeto do bairro onde habita a família do sujeito. Esta
escala é constituída por cinco subescalas às quais os sujeitos respondem e cujas respostas
são classificadas de um a cinco pontos e posteriormente são somadas. Esta escala permite
307 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
diferenciar cinco classes sociais em função da pontuação obtida pelos sujeitos. A primeira,
correspondente ao somatório obtido no intervalo entre, 5-9 (Classe I – Classe Superior
Alta); a segunda ao somatório obtido no intervalo entre 10-13 (Classe II – Classe Superior
Baixa); a terceira ao somatório obtido no intervalo entre 14-17 (Classe III – Classe Média);
a quarta ao somatório obtido no intervalo entre 18-21 (Classe IV – Classe Inferior Alta);
e a quinta a classe socialmente mais baixa (Classe V – Classe Inferior Baixa), ao somatório
obtido no intervalo entre 22-25 pontos.
Assim, aludimos (Martins, J. D. S. 2003) citando (Sitkewich & Grunberg, 1979) refe-
re que estes autores ao analisarem a validade e significância deste instrumento encontraram
coeficientes de correlação para a escala dos cinco critérios entre 0.90 e 0.96.
Para nós, é um instrumento indispensável de trabalho pois, assim, conseguimos
quer em termos quantitativos, quer qualitativos, informação pertinente que nos permite
caraterizar melhor os sujeitos que participaram no nosso estudo.
Portanto, foi-nos possível observar que os resultados analisados em função da distribuição
dos sujeitos da nossa amostra, na sua totalidade por grupos, quanto ao seu enquadramento
e distribuição pelas classes sociais sugeridas pela escala de GRAFFAR que, 374 sujeitos a que
corresponde uma percentagem de (48,4%) pertencem à Classe III – Classe Média. Seguem-
-se os sujeitos que pertencem à Classe II – Classe Superior Baixa num total de 253 sujeitos a
que corresponde um valor percentual de (32,8%). É ainda possível observar que 103 sujeitos
a que correspondem (13,3%) da nossa amostra pertencem à Classe IV – Classe Inferior Alta.
Quanto ao que podemos observar no que diz respeito aos sujeitos que pertencem à Classe I
– Classe Superior Alta estes cifram-se em 36 sujeitos a que corresponde uma percentagem de
(4,7%). Poderemos ainda verificar que os sujeitos que pertencem à Classe V – Classe Inferior
Baixa, o número de sujeitos é de 6 a que corresponde uma percentagem de (0,8%).
Detalhando esta análise, Índice de Graffar – Classes Sociais em função do género dos
sujeitos, poderemos verificar que maioritariamente são os sujeitos do género feminino 202 a
que corresponde um valor percentual de (50,2%) que pertencem à Classe III – Classe Média,
122 sujeitos do género feminino a que corresponde um valor percentual de (30,3%) perten-
ce à Classe II – Classe Superior Baixa, 52 a que corresponde (12,9%) pertence à Classe IV
– Classe Inferior Alta, 23 sujeitos, também do género feminino, a que corresponde um valor
em percentagem de (5,7%) e quanto aos sujeitos do género feminino que pertencem à Classe
V – Classe Inferior Baixa são 3 a que corresponde um valor em percentagem de (0,7%).
Analisando com mais detalhe as respostas dos sujeitos do género masculino poderemos
verificar que 172 a que corresponde um valor percentual de (46,5%) pertence à Classe III
– Classe Média, 131 sujeitos a que corresponde (35,4%) pertence à Classe II – Classe
Superior Baixa, 51 sujeitos do género masculino cujo valor percentual se cifra em (13,8%)
pertence à Classe IV – Classe Inferior Alta, 13 sujeitos cujo valor percentual é de (3,5%)
308 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

pertencem à Classe I – Classe Superior Alta e 3 sujeitos também do género masculino a


que corresponde (0,8%) em valor percentual pertence à Classe V – Classe Inferior Baixa.
De seguida vamos apresentar os resultados relativos à prática religiosa, uma questão
pouco estudada e que nos pareceu importante para este estudo sobre o perfil dos alunos,
e tivemos em conta a variável género.

9. Prática Religiosa dos Sujeitos em Função do Género

A tabela 6, que se apresenta em seguida, carateriza a distribuição da amostra por grupos


tendo em conta a prática religiosa dos sujeitos em função do género.
Tabela 6 – Distribuição da amostra por grupos de prática
religiosa em função do género
Género Feminino Masculino Total Residuais
Prática
Religiosa dos sujeitos n % n % n % Fem. Masc.

Pratica uma Religião 350 87,1 279 75,4 629 81,5 4,2 -4,2

Não pratica Religião 52 12,9 91 24,6 143 18,5 -4,2 4,2


Total 402 100 370 100 772 100

Interessava-nos compreender que tipos de condutas tinham os sujeitos da nossa amostra


relativamente ao seu envolvimento em práticas religiosas.
Feito o tratamento estatístico adequado dos dados, é possível constatar que na totalidade
da nossa amostra a distribuição dos sujeitos por grupos que dizem que pratica uma religião é de
629 sujeitos a que corresponde um valor percentual de (81,5%), em contraponto, 143 sujeitos
a que corresponde uma percentagem de (18,5%) dizem não ter nenhuma prática religiosa.
Particularizando esta análise de forma mais detalhada em função do género do respon-
dente, poderemos verificar que maioritariamente são os sujeitos do género feminino os
que dizem ter essa prática num total de 350 sujeitos a que corresponde uma percentagem
de (87,1%), ao passo que os sujeitos do género masculino, 279 a que corresponde uma
percentagem de (75,4%) dizem ter também essa prática religiosa.
É possível verificar ainda que 91 sujeitos do género masculino, a que corresponde
uma percentagem de (24,6%) respondem não ter nenhuma prática religiosa, ao passo que
52 sujeitos do género feminino cuja percentagem se cifra em (12,9%), declaram não ter
hábitos de prática religiosa.
Vamos, de seguida, apresentar os resultados relativos às crenças religiosas que os sujeitos
dizem que praticam em função do género do respondente.

10. Que Crença Religiosa os Sujeitos praticam em Função do Género


309 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
A tabela 7, que se apresenta em seguida, carateriza a distribuição da amostra por grupos
tendo em conta a religião que praticam os sujeitos em função do género.

Tabela 7 – Distribuição da amostra por grupos tendo em conta


as religiões que praticam os sujeitos em função do género
Género Feminino Masculino Total Residuais
Religião praticada pelos sujeitos n % n % n % Fem. Masc.
Religião Católica 344 98.3 274 98,2 618 98,3 0,1 -0,1
Outras Confissões Religiosas 6 1,7 5 1,8 11 1,7 -0,1 0,1
Total 350 100 279 100 629 100
Desejávamos saber se os respondentes que haviam respondido ao nosso questionário
e que praticavam uma religião eram praticantes da religião Católica ou de outra qualquer
confissão religiosa.
Assim, depois de termos feito o tratamento estatístico adequado, é possível verificar
que dos sujeitos que dizem praticar uma religião, no total de 629 sujeitos, tal como se pode
comprovar na tabela anterior.
Destes, constata-se que 618 sujeitos a que corresponde um valor percentual de
(98,3%), a maioria, diz praticar a Religião Católica e 11 sujeitos dizem praticar outras
religiões ao que corresponde um valor em percentagem de (1,7%).
Caraterizando esta análise de forma mais circunstanciada em função do género do
respondente, poderemos apurar que maioritariamente são os sujeitos do género femini-
no aquelas que dizem praticar a Religião Católica com 344 sujeitos a que corresponde
um valor percentual de (98,3%), enquanto os sujeitos do género masculino 274 sujeitos
a que corresponde um valor em percentagem de (98,2%) também afirmam praticar a
religião católica.
Quanto aos que dizem praticar outra religião, poderemos afirmar que os números não são
muito expressivos. No entanto, sempre se poderá verificar que 6 sujeitos do género feminino a
que corresponde um valor de (1,7%) dizem praticar outra religião e que 5 sujeitos do género
masculino a que corresponde um valor em percentagem de (1,8%) responderam de igual forma.
De seguida vamos apresentar os resultados relativos ao grau de crença na religião
praticada pelos sujeitos em função do género dos respondentes.

11. Grau de Crença na Religião Praticada pelos Sujeitos

A tabela 8 que de seguida se apresenta carateriza a distribuição da nossa amostra tendo


em conta o grau de crença na religião que praticam os sujeitos.
310 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Tabela 8 – Estatísticas relativas ao grau de crença


na religião que praticam os sujeitos da nossa amostra
Grau de crenças na Skweness/ Kurtosis/ Teste t
n Min Máx x Dp CV (%)
religião praticada Std.E Std.E Student
Feminino 350 1 7 4,62 1,55 -2,31 -1,36 33,59 t= -3,104
Masculino 279 1 7 4,24 1,49 -0,41 -0,38 35,28 p= 0,002
Total 629 1 7 4,45 1,53 -1,88 -1,61 34,56

Pretendíamos saber qual o grau de crença dos sujeitos na religião que estes dizem pra-
ticar, grau esse autoatribuído, tendo em conta uma escala tipo Likert de 1 a 7 pontos em
que 1 significava muito pouco crente, e 7 muitíssimo crente na própria Religião.
Assim, poderemos verificar que responderam 629 sujeitos de ambos os géneros e que
as suas respostas variaram entre os limites que haviam sido sugeridos 1 e 7. A média global
das respostas é de (x 4,45), o desvio padrão de (Dp= 1,53) e o coeficiente de variação de
(34,56%) o que nos indica a existência de uma dispersão elevada CV> 30%.
Analisando as estatísticas relativas em função do género dos sujeitos, verificámos que
a média da crença obtida no género masculino é de (x = 4,24) e é, como se pode verificar,
inferior à do género feminino que se cifra nos (x = 4,62) apresentando uma dispersão
elevada para ambos os géneros, no género masculino (CV=35,28%) - (CV > 30%), e no
género feminino (CV=33,59%) - (CV> 30%) ambas elevadas, contudo, as diferenças entre
médias são estatisticamente muito significativas (t= 3,104; p= 0,002).
Com base nas medidas de assimetria ou enviesamento (Skweness/Std. Error) e de achata-
mento ou curtose (Kurtosis/Std. Error), podemos concluir que a distribuição no género mas-
culino é simétrica e mesocúrtica e no género feminino é assimétrica negativa e mesocúrtica.
Em seguida vamos apresentar os resultados relativos ao grau de prática religiosa relativo
à religião praticada pelos sujeitos em função do género dos respondentes.

12. Grau de Prática Religiosa da Religião Praticada pelos Sujeitos

A tabela 9, que de seguida se apresenta, carateriza a distribuição da nossa amostra


tendo em conta o grau de prática religiosa dos sujeitos em função do género.
Pretendemos saber como é que os sujeitos da nossa amostra viviam a sua prática reli-
giosa, isto é, como é que eles autoavaliavam a sua prática e o seu empenhamento na sua
Fé. Os resultados obtidos estão refletidos na tabela que se apresenta:

Tabela 9 – Estatísticas relativas ao grau de prática religiosa


dos sujeitos da nossa amostra em função do género
Nível de prática x Skweness/ Kurtosis/ Teste t
n Min Máx Dp CV (%)
religiosa Std.E Std.E Student 311 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Feminino 350 1 7 3,93 1,52 0,44 -2,08 38,70 t= -3,026
Masculino 279 1 7 3,57 1,47 1,52 -0,63 41,28 p= 0,003
Total 629 1 7 3,77 1,51 1,38 -2,16 40,05

Assim, numa escala tipo Likert em que 1 significava muito pouco praticante, e 7 mui-
tíssimo praticante, as respostas que obtivemos são as seguintes.
Poderemos verificar na tabela anterior, que responderam 629 sujeitos de ambos os géneros
e que as suas respostas variaram entre os limites que haviam sido sugeridos 1 e 7. A média
global das respostas é de (x 3,77) o desvio padrão de (Dp=1,51) sendo o seu coeficiente de
variação de (CV=40,05%) que nos indica a existência de uma dispersão elevada (CV> 30%).
Analisando as estatísticas relativas em função do género, verificámos que a média da
prática religiosa dos sujeitos do género masculino se situa em (x = 3,57) e é, como se pode
verificar, inferior à do género feminino (x = 3,93) apresentando uma dispersão elevada
em ambos os géneros - masculino (CV=41,28%) - (CV > 30%) e no género femini-
no (CV=38,70%) – (CV> 30%), porém, as diferenças entre médias são estatisticamente
muito significativas (t= 3,026; p= 0,003).
Com base nas medidas de assimetria ou enviesamento (Skweness/Std. Error) e de achata-
mento ou curtose (Kurtosis/Std. Error), podemos concluir que a distribuição no género mas-
culino é simétrica e mesocúrtica e no género feminino é simétrica e ligeiramente leptocúrtica.
Em seguida vamos apresentar os resultados referentes à nossa amostra tendo em conta
a variável que colocámos para sabermos se os sujeitos já tinham alguma reprovação no seu
percurso académico trabalhando os resultados obtidos em função do género dos respondentes.

13. Reprovações dos Sujeitos no seu Percurso Académico

A tabela 10, que se apresenta de seguida, carateriza a nossa amostra tendo em conta a
sua distribuição por grupos de sujeitos com e sem reprovações na sua vida académica em
função do género:
Tabela 10 – Distribuição da amostra por grupos de
Alunos com ou sem reprovações em função do género
Género Feminino Masculino Total Residuais
Já reprovaste alguma vez? n % n % n % Fem. Masc.
Sim 87 21,6 110 29,7 197 25,5 -2,6 2,6

Não 315 78,4 260 70,3 575 74,5 2,6 -2,6


Total 402 100 370 100 772 100

Desejávamos saber se na biografia académica dos respondentes havia algumas reprova-


312 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

ções. Assim, depois de termos feito o tratamento estatístico adequado dos resultados obti-
dos poderemos verificar que na totalidade da nossa amostra 197 sujeitos a que corresponde
um valor em percentagem de (25,5%) dizem que sim. Isto é, já têm reprovações no seu
percurso escolar. Em contraponto, 575 o que perfaz (74,5%) dos sujeitos dizem que não.
Isto é, não têm reprovações na sua vida académica.
Assinalando estes resultados de forma mais circunstanciada em função do género dos
respondentes, poderemos verificar que maioritariamente são os sujeitos do género femini-
no aqueles que dizem não ter nenhuma retenção no seu percurso escolar, isto é, 315 sujeitos
a que corresponde (78,4%). Em contrapartida afirmam que já têm algumas retenções
87 sujeitos a que corresponde um valor percentual de (21,6%).
Relativamente ao género masculino poderemos verificar que 260 sujeitos a que correspon-
de um valor percentual de (70,3%), afirmam não ter nenhuma retenção e 110 a que corres-
ponde um valor em percentagem de (29,7%) dizem já ter retenções no seu percurso escolar.
Poderemos verificar ainda ao realizarmos uma análise mais detalhada através dos valo-
res residuais, que se pode inferir que estas diferenças são estatisticamente significativas (res
> 1,96) como se poderá verificar na tabela que acabámos de descrever.
Vamos de seguida apresentar os resultados referentes à nossa amostra tendo em conta
a variável que colocámos para saber quantas reprovações os sujeitos já tinham no seu
percurso escolar em função do género.

14. Quantas Reprovações os Sujeitos têm no Seu Percurso Escolar

A tabela 11, que se apresenta de seguida, carateriza a distribuição da nossa amostra por
grupos de alunos com uma ou mais retenções em função do género.

Tabela 11 – Distribuição da amostra por grupos de Alunos


com uma ou mais retenções em função do género
Género Feminino Masculino Total Residuais

Quantas vezes já reprovaste? n % n % n % Fem. Masc.


1 Vez 71 81,6 80 72,6 151 76,6 1,5 -1,5
2 Vezes 15 17,2 26 23,6 41 20,8 -1,1 1,1
3 ou mais vezes 1 1,1 4 3,6 5 2,5 Não aplicável
Total 87 100 110 100 197 100

Uma variável que também nos interessava esclarecer era o número de retenções que os
alunos tinham tido no seu percurso académico.
313 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Assim, depois de termos feito o tratamento estatístico adequado poderemos verificar
que, na totalidade da nossa amostra os alunos que já tinham alguma reprovação eram no
total de 197 sujeitos 110 do género masculino e 87 do género feminino. Destes, 151 a que
corresponde um valor percentual de (76,6%) têm uma retenção, 41 a que corresponde um
valor percentual de (20,8%) têm duas retenções e 5 sujeitos a que corresponde um valor
percentual de (2,5%) têm três ou mais retenções na sua vida escolar.
Caraterizando esta análise de forma mais pormenorizada em função do género do
respondente, poderemos verificar que maioritariamente são os sujeitos do género mas-
culino, aqueles que mais retenções têm no seu percurso escolar uma vez que 80 sujeitos
a que corresponde um valor percentual de (76,6%) manifesta ter uma retenção 26 a que
corresponde um valor em percentagem de (23,6%) dizem ter duas retenções e 4 sujeitos a
que corresponde um valor percentual de (3,6%) dizem ter três retenções ou mais. No que
diz respeito ao género feminino poderemos verificar que 71 sujeitos a que corresponde um
valor de (81,6%) dizem ter uma retenção, 15 a que corresponde (17,2%) dizem ter duas
retenções e 1 a que corresponde um valor percentual de (1,1%) dizem ter três ou mais
retenções. Estes resultados merecem uma reflexão muito bem estruturada, uma vez que os
mesmos nos parecem ser muito preocupantes.
Vamos, em seguida apresentar os resultados referentes à nossa amostra tendo em conta
a variável que lhe colocámos para saber em que anos de escolaridade os sujeitos reprovaram
em função do género.

15. Em que Anos de Escolaridade os Sujeitos Reprovaram em Função


do Género

A tabela 12, que se apresenta carateriza a distribuição da nossa amostra tendo em


conta os anos de escolaridade em que os sujeitos reprovaram em função do género.
Interessava-nos esclarecer em que anos os alunos tinham reprovações tendo em conta
o seu percurso académico.
Assim, depois de termos feito o tratamento estatístico adequado, poderemos verificar
que na totalidade da nossa amostra os alunos que já tinham algumas reprovações eram no
total 197 sujeitos, 110 do género masculino e 87 do género feminino, como se poderá
constatar na tabela que se apresenta de seguida:

Tabela 12 – Distribuição da amostra tendo em conta os anos de


escolaridade em que os sujeitos reprovaram em função do género
Género Feminino Masculino Total Residuais
Anos de reprovação
314 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

em função do género n % n % n % Fem. Masc.


2º Ano 20 23 21 19,1 41 20,8 0,8 -0,8
3º Ano 14 16,1 10 9,1 24 12,2 1.5 -1.5
4º Ano 10 11,5 7 6,4 17 8,6 1.3 -1,3
5º Ano 9 10,3 19 17,3 28 14,2 -1,4 1,4
6º Ano 2 2,3 12 10,9 14 7,1 -2,4 2,4
7º Ano 21 24,1 28 25,5 49 24,9 -0.2 02
8º Ano 5 5,7 6 5,5 11 5,6 0.1 -0.1
9º Ano 6 6,9 7 6,4 13 6,6 0.1 -0.1
Total 87 100 110 100 197 100
Descrevendo esta análise de forma mais aprofundada em função do género, apurámos
que em todos os anos, isto é, do 2º ao 9º ano de escolaridade se verificam retenções. Só não
apurámos retenções no 1º ano, no entanto, há que ter em conta que, nos termos da Lei, no
1º ano do ensino básico não são autorizadas retenções. Também, poderemos constatar que
há alguns anos em que os alunos são mais vezes retidos do que em outros, pelo que, vale a
pena destacá-los pela expressividade e importância desta problemática.
Por conseguinte, no 7º ano é possível verificar que são 49 sujeitos a que corresponde
um valor percentual (24,9%) que já tiveram reprovações.
Particularizando um pouco mais esta análise, poder-se-á constatar que os sujeitos do
género feminino 21 a que corresponde um valor em percentagem de (24,1%) têm reten-
ções. Quanto ao género masculino, estes, são em maior número pois são 28 sujeitos a que
corresponde um valor percentual de (25,5%) que dizem já ter sido retidos no 7º ano.
Outro ano em que o número de retenções merece ser assinalado é o 2º ano do ensino
básico, pois, pelo que é possível constatar, na totalidade da nossa amostra, são 41 sujeitos
o que corresponde um valor percentual de (20,8%) que dizem ter sido retidos nesse ano
de escolaridade.
Particularizando esta análise em função do género dos respondentes, poder-se-á cons-
tatar que no género feminino são 20 os sujeitos a que corresponde um valor percentual
de (23%) que referem já ter sido retidos no 2º ano, ao passo que no género masculino são
21 os sujeitos que dizem ter retenções a que corresponde um valor percentual de (19,1%).
Destacamos também o número de retenções no 5º ano de escolaridade, uma vez que é
possível constatar que na totalidade da nossa amostra são 28 os sujeitos que referem ter
sido retidos nesse ano ao que corresponde um valor em percentagem de (14,2%).
Particularizando esta análise em função do género dos respondentes é possível veri-
ficar que os sujeitos do género feminino que dizem ter sido retidos no 5º ano são 9, ao
que corresponde um valor em termos percentuais de (10,3%). No género masculino são
17 os sujeitos que responderam já ter sido retidos ao que corresponde um valor em termos
315 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
percentuais de (17,3%).
É ainda de salientar os números de retenções no 6º ano de escolaridade, uma vez
que são os únicos em que as diferenças estatísticas entre médias são significativas quando
analisamos estes dados de forma mais detalhada através dos valores residuais (res > 1,96).
Também aqui há que refletir sobre estes resultados de forma muito apurada. É necessário
entender por que razão eles são tão expressivos e encontrar soluções duradouras, sustenta-
das e aferidas do ponto de vista pedagógico para pôr cobro a estes números tão elevados de
reprovações e por isso tão preocupantes.
Vamos, de seguida apresentar os resultados relativos à forma como os alunos dizem
gostar da escola que frequentam.
16. Gostas da tua Escola em Função do Género do Respondente

A tabela 13, que se apresenta de seguida, carateriza a distribuição da nossa amostra


tendo em conta a forma como os alunos dizem gostar da escola que frequentam em função
do género.
Confrontámos os sujeitos com a pergunta, gostas da tua escola? Assim, oferecíamos a
possibilidade de respostas numa escala tipo Likert de 4 pontos que ia do, Gosto muito ao
Não gosto, como se pode constatar na tabela exposta:

Tabela 13 – Distribuição da amostra tendo em conta a forma


como os Alunos dizem gostar da escola em função do género
Género Feminino Masculino Total Residuais

Gostas da tua escola? n % n % n % Fem. Masc.


Gosto muito 60 14,9 47 12,7 107 13,9 0,9 -0,9
Gosto 208 51,7 150 40,7 358 46,4 3,1 -3,1
Gosto mais ou menos 112 27,9 124 33,5 236 30,6 -1,7 1,7
Não gosto 22 5,5 49 13,2 71 9,2 -3,7 3,7
Total 402 100 370 100 772 100

Das respostas obtidas é possível constatar que na totalidade da amostra 358 sujeitos
a que corresponde uma percentagem de (46,4%) dizem que gostam, seguem-se os que
dizem que gostam mais ou menos com 236 sujeitos a que corresponde (30,6%), de se-
guida os que dizem que gostam muito com 107 sujeitos a que corresponde um valor em
percentagem de (13,9%), e por último os que dizem que não gostam com 71 sujeitos e
uma percentagem de (9,2%).
Pormenorizando esta análise em função do género dos respondentes, poderemos ob-
servar que os sujeitos do género feminino 208 a que corresponde um valor percentual
316 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

de (51,7%), a maioria, dizem que gostam da sua escola, 112 a que corresponde (27,9%)
dizem gostar mais ou menos, 60 sujeitos a que corresponde um valor percentual de
(14,9%) dizem que gostam muito e 22 ao que corresponde um valor em percentagem de
(5,5%) dizem não gostar da sua escola.
Quanto os sujeitos de género masculino, poderemos verificar que 150 a que corres-
ponde (40,7%) dizem gostar da escola, seguem-se os que dizem que gostam mais ou menos
com 124 sujeitos a que corresponde um valor percentual de (33,5%), os que dizem que
não gostam da escola são 49 sujeitos que corresponde a um valor em termos percentuais de
(13,2%), e por último são 47 sujeitos a que corresponde um valor percentual de (12,7%)
que dizem gostar muito da escola.
Porém, ao realizarmos uma análise mais detalhada através dos valores residuais con-
cluímos que são estatisticamente significativas as diferenças referentes aos que dizem gostar
da escola e os que dizem não gostar, como se pode verificar, (res.> 1,96).
De seguida, vamos apresentar os resultados referentes à nossa questão feita aos
sujeitos para sabermos em termos familiares como era a sua família em termos da sua
funcionalidade e para isso utilizámos uma escala validada para a População Portuguesa a
escala (APGAR) tendo esta informação sido posteriormente tratada em função do género
do respondente.

17. Funcionalidade Familiar, Escala (APGAR) em Função do Género

Pretendíamos compreender como é que se caraterizavam, em termos da funcionali-


dade familiar os sujeitos da nossa amostra. Para isso, solicitámos-lhe que respondessem à
escala (APGAR), escala validada para a População Portuguesa, que também foi validade
para a nossa amostra e que avalia essas dimensões e os resultados estão espelhados na tabela
que de seguida se apresenta:

Tabela 14 – Distribuição da amostra tendo em conta a Funcionalidade


Familiar Escala APGAR em função do género
Género Feminino Masculino Total Residuais
Escala (APGAR) -
Funcionalidade Familiar n % n % n % Fem. Masc.

Famílias com disfunção acentuada 13 3,2 9 2,4 22 2,8 0,7 -0,7


Famílias moderadamente funcionais 83 20,6 70 18,9 153 19,8 0,6 -0,6
Famílias altamente funcionais 306 76,1 291 78,6 597 77,3 -0,8 0,8
Total 402 100 370 100 772 100

317 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial


Como poderemos observar, depois de termos feito o tratamento estatístico das respostas
obtidas, poderemos constatar o seguinte.
Na totalidade da nossa amostra é possível constatar que 597 sujeitos a que corresponde
um valor percentual de (77,3%) é oriunda de famílias altamente funcionais, 153 ao que
corresponde uma percentagem de (19,8%) advém de famílias moderadamente funcionais
e 22 sujeitos ao que corresponde uma percentagem de (2,8%) identifica a sua família
como família com disfunção acentuada quando responde à escala que lhe foi proposta.
Em termos de distribuição da amostra por géneros, poderemos constatar que 291 su-
jeitos do género masculino a que corresponde uma percentagem de (78,6%) pertencem
à classe das famílias altamente funcionais, 70 sujeitos ao que corresponde (18,9%) do
género masculino avalia a sua família como pertencente à classe considerada moderada-
mente funcional e 9 sujeitos ao que corresponde em termos percentuais a (2,4%) dizem
pertencer a famílias com disfunção acentuada.
No que respeita ao género feminino, poder-se-á observar que 306 sujeitos cuja percen-
tagem é de (76,1%) pertence a famílias altamente funcionais, 83 sujeitos cuja percentagem
se cifra nos (20,6%) pertencem a famílias moderadamente funcionais e 13 sujeitos cuja
percentagem é de (3,2%) pertencem a famílias com disfunção acentuada.
Em seguida vamos apresentar os resultados relativos ao enquadramento dos sujeitos
tendo em conta a sua posição na fratria familiar.

18. Posição dos Sujeitos na Fratria

A tabela que se apresenta de seguida descreve a distribuição da nossa amostra tendo em


conta a posição na fratria dos sujeitos em função do género.

Tabela 14 – Distribuição da amostra tendo em conta


a posição na fratria dos sujeitos em função do género
Género Feminino Masculino Total Residuais
Posição do sujeito na sua fratria n % n % n % Fem. Masc.
Tenho irmãos mais novos e mais velhos 51 12,7 49 13,2 100 13 -0,2 0,2
Só tenho irmãos mais novos 123 30,6 107 28,9 230 29,8 0,5 -0,5
Só tenho irmãos mais velhos 158 39,3 140 37,8 298 38,6 0,4 -0,4
Não tenho irmãos 70 17,4 74 20 144 18,7 -0,9 0,9
Total 402 100 370 100 772 100

Como poderemos constatar, na totalidade da amostra, poderemos verificar que 298


sujeitos de ambos os géneros a que corresponde um valor percentual de (38,6%) afirmam
318 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

que só têm irmãos mais velhos, 230 sujeitos a que corresponde um valor em percentagem
de (29,8%) enunciam que só têm irmãos mais novos, 144 sujeitos a que corresponde um
valor de (18,7%) afirmam que não têm irmãos, e 100 sujeitos a que corresponde um valor
de (13%) expressam que têm irmãos mais novos e mais velhos.
Analisando os resultados obtidos de forma mais pormenorizada em função do género
dos respondentes, poderemos constatar que no género feminino 158 sujeitos a que corres-
pondem (39,3%) dizem que só têm irmãos mais velhos, 123 sujeitos a que corresponde um
valor percentual de (30,6%) afirmam que só têm irmãos mais novos, 70 sujeitos a que cor-
responde um valor de (17,4%) dizem que não têm irmãos, e 51 sujeitos a que corresponde
um valor de (12,7%) afirmam que têm irmãos mais novos e mais velhos.
Quanto ao género masculino os resultados são similares pois poder-se-á verificar que
140 sujeitos a que corresponde um valor em percentagem de (37,8%) dizem que só têm irmãos
mais velhos, 107 sujeitos a que corresponde um valor de (28,9%) afirmam que só têm irmãos
mais novos, 74 sujeitos a que corresponde um valor de (20%) não têm irmãos, e 49 sujeitos
a que corresponde um valor de (13,2%) enunciam que têm irmãos mais novos e mais velhos.
Vamos em seguida apresentar os resultados tendo em conta a Escala Indisciplina
Escolar Percecionada por Alunos (EIEPA) de que somos autores considerando o género
do respondente.

19. Escala Indisciplina Escolar Percecionada por Alunos (EIEPA) em


Função do Género

A escala (EIEPA), de que somos autores, é uma escala que visa avaliar a perceção dos
alunos Portugueses do limite e do seu reconhecimento, relativamente aos atos indisciplinados
praticados na escola. Como está patente, esta questão é uma problemática muito presente na
escola Portuguesa. Nestes termos, apresentamos aqui algumas referências para mais e melhor
entendimento relativo à sua construção e validação que nos parecem ser oportunas.
Depois de um conjunto de procedimentos complexos, seguiu-se tratamento estatís-
tico uma vez que era necessário encontrar graus diversificados – recordo que estávamos
a querer delimitar a perceção dos alunos acerca dos comportamentos indisciplinados na
escola. Por conseguinte, foi necessário encontrar grupos diferenciados considerando as
pontuações obtidas pelos sujeitos que responderam à escala.
Lembramos que, como é uma escala cujas possibilidades de resposta colocadas ao dis-
por dos sujeitos é do tipo Likert de quatro pontos, em que, 1 é considerado muito grave,
2 grave, 3 pouco grave, e 4 sem gravidade, aportámos, tendo em conta as boas práticas
estatísticas aludidas em (Pestana & Gageiro, 2008), a metodologia que vamos explicitar.
319 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Por conseguinte, poderemos dizer que as pontuações obtidas poderiam variar entre um
mínimo de 37 e o máximo de 148, pelo que, a sua classificação tendo por base as respostas
obtidas, havia que tomar algumas decisões para assim podermos estratificar os sujeitos de
forma a formar grupos de pertença. Assim, decidimos optar pelos grupos de corte para a
nota global da escala preconizados por Pestana & Gageiro (2008 p. 114) e, depois de apli-
carmos a fórmula (Média ± 0,25 desvio padrão) foram formados três grupos de corte, gru-
pos de respondentes que ficaram assim delimitados, no que diz respeito à pontuação obtida:
– Forte perceção: 37 - 55;
– Média perceção: 56 - 93;
– Fraca perceção: 94 - 148.
A tabela 15, que se apresenta de seguida, descreve a distribuição da nossa amostra
tendo em conta as respostas obtidas à Escala Indisciplina Escolar Percecionada por Alunos
(EIEPA) em função do género dos respondentes.

Tabela 15 – Distribuição da amostra tendo em conta a Escala Indisciplina


Escolar Percecionada por Alunos (EIEPA) em função do género
Género Feminino Masculino Total Residuais
Indisciplina escolar
percepcionada por Alunos n % n % N % Fem. Masc.

Forte perceção da indisciplina 64 15,9 51 13,8 115 14,9 0,8 -0,8


Média perceção da indisciplina 297 73,9 251 67,8 548 71 1,8 -1,8
Fraca perceção da indisciplina 41 10,2 68 18,4 109 14,1 -3,3 3,3
Total 402 100 370 100 772 100

No que respeita à perceção da indisciplina escolar auto proferida pelos sujeitos da


nossa amostra as resposta que obtivemos poder-nos-ão sugerir o seguinte.
Na totalidade das respostas obtidas poderemos verificar que, 548 sujeitos a que cor-
responde um valor em percentagem de (71%), têm uma média perceção da indisciplina
escolar, 115 sujeitos a que corresponde um valor de (14,9%) têm uma forte perceção da
indisciplina, e por último, 109 sujeitos a que corresponde um valor de (14,1%) têm uma
fraca perceção da indisciplina.
Pormenorizando esta análise em função do género dos respondentes, poderemos verifi-
car que o género feminino, 297 sujeitos ao que corresponde um valor percentual de (73,9%)
têm média perceção da indisciplina, 64 sujeitos ao que corresponde um valor de (15,9%)
têm forte perceção da indisciplina, e 41 sujeitos a que corresponde um valor em percenta-
gem de (10,2%) têm uma fraca perceção da indisciplina descrita pela escala, (EIEPA).
No que respeita ao género masculino poderemos observar que, 251 sujeitos o que
corresponde a (67,8%) têm uma média perceção da indisciplina, 68 sujeitos ao que corres-
320 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

ponde um valor de (18,4%) têm uma fraca perceção da indisciplina, e por fim, 51 sujeitos
ao que corresponde um valor de (13,8%) têm uma forte perceção da indisciplina.
Poderemos verificar ainda ao realizarmos uma análise mais detalhada através dos valores
residuais, que estas diferenças, umas não são estatisticamente significativas (res <1,96), e
outra são nomeadamente, as que dizem respeito às respostas que referem que os sujeitos têm
uma fraca perceção dos comportamentos descritos pela escala construída e validada por nós.
Vamos de seguida fazer uma breve síntese do que aqui foi descrito uma vez que com
a informação e tratamento estatístico que acabámos de descrever é possível traçar o perfil
dos alunos do 3º Ciclo do Ensino Básico que frequentam as escolas públicas no Distrito
da Guarda.
20. Breve Síntese

Se com o contorno do rosto de uma pessoa, vista de lado, se o aspecto nos dá, ou
pode dar uma certa representação de uma pessoa ou objecto visto de um dos seus lados,
então, sempre poderemos dizer que essa é uma representação parcial uma vez que há
certamente um conjunto de características a vários níveis que nos fazem falta para po-
dermos afirmar que conhecemos uma pessoa ou um conjunto de pessoas. A verdade é
que não será possível a qualquer um de nós ser perentórios ao dizer que a conhecemos
verdadeiramente uma pessoa ou um grupo. Há, por certo, aspetos, algumas característi-
cas de qualquer um de nós que não são visíveis assim de forma tão simplista. Portanto, é
tão necessário investigar, questionar, tanto mais quanto maior é o grupo de pessoas que
queremos conhecer ainda que seja de forma parcial e tentar entender qual é o seu perfil,
sociodemográfico, saber em que zona vivem, quais são os seu anseios académicos para o
futuro, como é que é a sua família do ponto de vista socioeconómico, quanto ao seu fun-
cionamento… um conjunto de questões que nos poderão, como é o caso, definir qual
é o seu perfil, uma questão importante para uma escola que ensina e aprende de forma
cada vez mais no respeito pelo aluno que a ela chega. Este ano (2017) muito se falou do
perfil do aluno na perspetiva da sua saída da escolaridade obrigatória. Mas como se pode
avançar com um perfil de saída quando se não conhece o perfil à entrada da escola, se se
quer apostar cada vez mais num ensino para todos no respeito pela individualidade que
é cada um dos alunos?
Foi nesta perspetiva que este trabalho de investigação foi elaborado, para tentar res-
ponder a algumas questões que devem merecer a preocupação das escolas de hoje para
formar cidadãos para o amanhã com competências, saberes…, capazes de responder a
problemas novos e complexos mais conscientes do seu papel numa cidadania global para
um mundo global em que o digital, a inteligência artificial vai por certo marcar o seu
tempo, um tempo à velocidade da luz em que a perenidade da Ciência e da Técnica estará
321 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
por certo em causa.
Assim, é com estes dados concretos que recolhemos e que trabalhámos numa análise
estatística cuidada bem representativa da população alvo, uma vez que, entendemos que a
amostra dela extraída é suficientemente ampla e por isso, poderemos ter nos valores dela
extraídos a confiança suficiente para lograrmos sobrepor os mesmos à população. Isto
é, aos alunos que frequentam o 3º ciclo do ensino básico das escolas do ensino público
Português no distrito da Guarda.
Apresentaremos os resultados em função das variáveis sociodemográficas, dos con-
textos familiar, psicossocial e de contexto escolar e terminamos este trabalho com uma
breve síntese.
Portanto, considerando a literatura revista e os objetivos do nosso estudo, optámos
por explorar um conjunto de questões que depois de termos ponderado em articulação
com a literatura revista considerámos como variáveis a explorar, nomeadamente, de caráter
sociodemográfico, de contexto religioso, sociofamiliar, psicossocial e de contexto escolar.
Por conseguinte, constatámos que os sujeitos da nossa amostra têm uma idade com-
preendida entre os 12 e os 17 anos. Deixamos aqui um conjunto de dados objetivos que
nos podem permitir retirar um vasto leque de conclusões e por isso nos dão um conjunto
de informação pertinente para nos ajudar a traçar o perfil dos alunos do 3º ciclo do Ensino
Básico que frequentam as escolas públicas do Distrito de Guarda. O aqui descrito é uma
breve parte de um trabalho muito mais vasto que neste tipo de publicações não nos permite
ir mais longe em termos de abordagem.
Apresentámos de forma detalhada esses resultados considerando os sujeitos em função
do género do respondente uma vez que esta forma de apresentação dos resultados nos
permite ter uma visão mais particularizada.
Portanto, com este conjunto de informação que julgamos ser pertinente ficámos com
um conhecimento muito mais minucioso do conjunto dos grupos que se formaram na
nossa amostra em função das suas reais caraterísticas e motivações, indo assim, ao encontro
de alguns objetivos que nos propusemos atingir quando iniciámos esta investigação.

21. Bibliografia

Alonso, B. (2007). La disciplina Escolar en los distintos modelos pedagógicos. Revista de Ciências
de la Educación, nº 131, pp. 289-315.
Amado, J., & Freire, I. (2005). A Gestão da sala de aula. Psicologia da educação, temas de desen-
volvimento, aprendizagem e ensino, 311-331.
Amaro, F. (1996). Escala de Graffar adaptada. AM B. Costa, FR Leitão, J. Santos, JV Pinto, & MN
322 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Fino, Currículos funcionais, 2.


Carvalho, A. (1992). A Educação como Projeto Antropológico. Porto: Edições Afrontamento.
Ceia, A. (2011). Um olhar de dentro: O clima de escola na perspectiva dos alunos. Lisboa:
Universidade Aberta.
Forero Ariza, L. M., Avendaño Durán, M. C., Duarte Cubillos, Z. J., & Campo Arias, A. (2006).
Consistencia interna y análisis de factores de la escala APGAR para evaluar el funcionamiento
familiar en estudiantes de básica secundaria. Revista Colombiana de Psiquiatría, 35(1).
Fortin, M. F., & Salgueiro, N. (1999). O processo de investigação: da concepção à realização.
Maroco, J. (2011). Análise estatística com o SPSS Statistics. Report Number.
Maroco, João & Garcia Marques, Teresa (2006). Qual a fiabilidade do alfa de Cronbach? Questões
antigas e soluções modernas?. Laboratório de Psicologia. Vol. 4, nº 1, p. 65-90.
Pestana, Maria Helena; Gageiro, João Nunes (2008). Análise de dados para ciências sociais: A com-
plementaridade do SPSS. (5ª ed. rev. e corrigida). Lisboa: Edições Sílabo.
Santos, F. & Veiga F. H. (2006), Representações dos Pais e Encarregados de Educação acerca dos
comportamentos indisciplinados dos Alunos, in Livro de Atas do XV Colóquio da AFIRSE/
/AIPELF Sessão Portuguesa. Portugal: Lisboa.
Santos, F. (1998). Indisciplina Escolar: Representações dos professores, um estudo no Distrito da
Guarda. Tese de Curso de Estudos Superiores Especializados não publicada. Porto: I.S.E.T..
Santos, F. (2006). Representações de encarregados de educação da gravidade de comportamentos
indisciplinados dos alunos. Tese de Mestrado não publicada. Porto: Universidade Portucalense
Infante D. Henrique.
Santos, F. (2010) Indisciplina escolar sua vivência e representações em adolescentes. Tesina não
publicada. Salamanca: Universidade Pontifícia de Salamanca, Departamento de Ciências da
Educação.
Santos, F. (2014). Indisciplina escolar uma questão problemática!?. Saarbrucken: Novas Edições
Acadêmicas. ISBN 978-3-639-89574-2.
Santos, F. (2015) Indisciplina Escolar: Determinantes sociodemográficos, familiares, psicosso-
ciais, e de contexto escolar – um olhar sobre a indisciplina escolar. Tese de Doutoramento não
publicada. Salamanca: Universidade Pontifícia de Salamanca, Departamento de Ciências da
Educação.
Santos, F. (2017). Construção e validação da escala indisciplina escolar percecionada por alunos
(EIEPA). Revista de Estudios e Investigación en Psicología y Educación, (02), 020-025.
Tuckman, Bruce W. (2005). Manual de Investigação em Educação. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian.
Zapata Sánchez, G. A., Plaza Serrato, G., Leiva, C., Paola, Y., & Bermúdez, J. J. (2014). Diseño y
validación de un instrumento para medir el clima escolar en instituciones educativas

323 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial


Quali(ficar) o Caminho

Tiago Teotónio Pereira


Gestor de Programas Regionais de Juventude no IPDJ
– Instituto Português do Desporto e Juventude.

I. Preâmbulo

A revisitação do conceito de interior é, aos dias que correm, mais do que uma necessi-
dade, uma oportunidade que deve ser aproveitada por todos. O debate, que extravasou em
muito o círculo da Academia, transportou para a sociedade e para os decisores públicos a
tarefa difícil de delimitação e operacionalização do conceito de interior e, paralelamente
a este, também o sentimento de interioridade. Neste percurso existe sempre a questão da
propriedade, conhecimento e legitimidade com que cada um, ou cada estrutura, fala
das questões da interioridade, dado que muitas vezes estamos apenas confrontados com
mudanças de opinião com fins políticos e cálculos eleitorais.
Com este propósito escrevi na publicação online, Tribuna Alentejo, um texto que sin-
325 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
tetizava as lutas e constantes buscas de legitimação recentes sobre o tema da interioridade
– “O interior: entre o estatuto e a unidade de missão”. Este enquadramento resume bem
o tipo de debate superficial e descentrado que muitas vezes acaba por ocorrer, onde são
férteis os argumentos de tática política ao invés de opiniões fundamentadas, conhecedoras,
competentes e acima de tudo inovadoras sobre a matéria em causa.
Nesse texto, fiz uma constatação evidente – “nos últimos tempos, o Interior, esse
conceito lato, está na ordem do dia porque, de forma surpreendente, todos quiseram
começar a tirar benefícios políticos à custa dos anos de abandono a que estamos vo-
tados há largos anos” (TEOTÓNIO PEREIRA, 2016). Estes argumentos passaram a
ser esgrimidos, no plano político-partidário, aquando da apresentação da Unidade de
Missão para a Valorização do Interior, em que muitas vozes defenderam que este era
o veículo certo para a promoção do interior e outro bloco, como é costume, defendeu
outras iniciativas.
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 3/2016, de 14 de janeiro, criou a
Unidade de Missão para a Valorização do Interior (UMVI) e incumbiu esta de elabo-
rar e implementar um programa nacional para a coesão territorial. Este programa foi
levado a efeito com “mais de cento e sessenta Medidas, maioritariamente de iniciativa
governamental, e uma Agenda para o Interior que integra oito Iniciativas de caráter
temático” (PNCT, 2016).
Em oposição à criação da Unidade de Missão e do referido Programa, estava a ser
discutido o projeto de lei n.º 292/XIII que pretendia criar o Estatuto dos Territórios
de Baixa Densidade. Neste debate, concordei que a tentativa de “catalogação” da faixa
de interior, por si só, nada resolveria, sem ser o de promover o desalento aumentado à
população daqueles 165 concelhos. A esta intenção teria de se juntar sempre um mix
de políticas públicas, transversais e com governação multinível, em áreas tão essenciais
como a mobilidade, fiscalidade, edução e emprego, para que o estatuto tivesse conse-
quências visíveis. Noutro plano, as principais críticas que eram apontadas ao Programa
Nacional para a Coesão Territorial era o facto de não ter metas bem definidas e objeti-
vos mensuráveis.
Ainda neste sentido importa referir a necessida-
de da promoção de medidas multinível, o que, no
contexto atual, está vedado pelos mecanismos de go-
vernação intermédios entre o estado centralista e os
municípios, que detêm pouco poder e recursos em
matéria de política pública. Também aqui há imen-
so a fazer com a democratização das Comissões de
Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR)
326 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

e o respetivo reforço de competências.


No quadro atual importa, por isso, analisar as
últimas respostas de políticas para o território, no
Ilustração 1. Níveis de governação no longo caminho das políticas de desenvolvimento
plano nacional regional no nosso país. Aqui, a Unidade de Missão
para a Valorização do Interior e o Programa Nacional
para a Coesão Territorial assumem um novo papel e uma expectativa renovada na área da
coesão territorial, perante a ausência de outras estruturas de planificação e governação.
O desenvolvimento e a cooperação continuam a ser os principais objetivos das políticas de
desenvolvimento regional, no entanto, com variadíssimos caminhos possíveis.
II. Desenvolvimento

Aquilo que se pretende realizar é uma abordagem ponderada que, com base no conheci-
mento do território, possa contribuir para uma síntese crítica das políticas de desenvolvimen-
to regional no século xxi, no novo paradigma do programa nacional para a coesão territorial.
Falar de Desenvolvimento regional no Século xxi é indissociável dos fundos comuni-
tários e estruturais. Sem que o balanço que se propõe seja uma memória retrospetiva dos
primeiros programas de desenvolvimento regional, porque o que se pretende é a reflexão
no estádio atual e no contexto do chapéu do Programa Nacional para a Coesão Territorial,
importa rever a lógica de funcionamento destes fundos e o seu “imperativo comunitário”.
Revisitando a lógica dos primeiros QCA’s (Quadros Comunitários de Apoio), podem
estes ser caracterizados por “um conjunto de documentos elaborados pelos Estados
Membros estruturados por Eixos (estratégicos) correspondentes aos objetivos gerais, que,
por sua vez, integram vários Programas Operacionais (sectoriais ou regionais), com obje-
tivos específicos, desagregados em subprogramas, com várias medidas e em que cada uma
integra um conjunto de ações” (CCDRC, 2017).
O centro do debate aqui acaba por estar cativo de uma lógica burocrata, rígida e impos-
ta por Bruxelas. Este que tem sido uma das principais críticas apontadas aos programas de
desenvolvimento, têm nos últimos ciclos de programação sofrido algumas alterações. Neste
período os programas foram alterando e reforçando a componente da sustentabilidade para
o desenvolvimento.
A estratégia Europa 2020 estabelecia três prioridades que se reforçam mutuamente:
“Crescimento inteligente: desenvolver uma economia baseada no conhecimento e na
inovação. Crescimento sustentável: promover uma economia mais eficiente em termos de
utilização dos recursos, mais ecológica e mais competitiva. Crescimento inclusivo: fomen-
tar uma economia com níveis elevados de emprego que assegura a coesão social e territorial
(COMISSÃO EUROPEIA, 2010)”
327 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
É sobre o último que devemos centrar a nossa atenção, crescimento inclusivo, isto porque
temos de aliar o desenvolvimento à participação. Diria que este será o maior dos desafios que
temos pela frente: na transformação, não só, dos programas comunitários, mas bem como na
mudança de atitude das políticas públicas de desenvolvimento regional no nosso país.
A arquitetura dos programas de desenvolvimento regional, com o recurso a financia-
mento comunitário, estão essencialmente assentes em dois pilares: os ITI – Investimentos
Territoriais Integrados, geradores dos Pactos de Desenvolvimento e Coesão Territorial,
com base nas NUT III e por isso com uma base de programação muito assente nas
Comunidades Intermunicipais e o DLBC – Desenvolvimento Local de Base Comunitária,
com a gestão feita pelos GAL – Grupos de Ação Local.
No capítulo da coesão territorial há, por isso, uma novidade com a introdução de uma
Unidade de Missão para questões do interior. Introduzindo uma abordagem pragmática,
por seu turno, o Programa Nacional para a Coesão Territorial, fixa-se em torno de 160 me-
didas de caracter intergovernamental. No entanto destacava a importância de o documen-
to ser aberto e flexível, “pressupõe uma atitude permanente de cocriação, experimentação,
teste e revisão que se prolongará no futuro próximo” (PNCT, 2016).
Esta leitura indica-nos um caminho novo, o da procura de soluções ajustadas e de
novos desafios nas políticas públicas de coesão. A assunção de novas plataformas colabora-
tivas, que consiga congregar vários participantes do processo de desenvolvimento, parece
ser um caminho importante a seguir.
Pela participação que tive neste Programa, tenho de destacar o facto de “voltar” a colo-
car todos à mesma mesa a discutir os problemas do interior. A descrença generalizada, em
torno deste tipo de discussões, só pode ter uma resposta positiva se der, efetivamente, corpo
às propostas enunciadas pelos participantes – agentes do território. Tive esta participação,
no apoio à coordenação do distrito de Portalegre, através do Fórum Cidadania & Território.
Neste debate regional, no Alto Alentejo, no qual participei e auxiliei a organizar, foi
acompanhado de bastantes propostas concretas apesar do discurso de forte desconfiança.
O ceticismo em relação à Unidade de Missão de Valorização do Interior era uma realidade
bem presente, apesar de estarem nessa discussão vários membros com responsabilidades
institucionais. O desgaste em torno do tema e a falta de vontade política foram os principais
fatores para a desconfiança no seio da discussão.
Dos vários encontros regionais foi criado o documento “Valorizar o Interior: um con-
tributo da sociedade civil para o Programa Nacional para a Coesão Territorial” (FC&T,
2016) que contém mais de uma centena de propostas para o desenvolvimento do Interior
e que nasceu da ampla consulta pública realizada durante mais de cinco meses em todo o
território nacional.
Este modelo de participação, que veio referenciado no Plano final, teve bastante mé-
328 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

rito pela Abordagem bottom-up, colocando nos vários níveis de participação bastante
informação qualificada. A própria metodologia foi bastante feliz pelo foco entre as Medidas
e os instrumentos já existentes versus Medidas inovadoras. Reconhecer assim o que está
bem feito e o que há por fazer, é uma atitude que cada vez mais deveria ser procurada pelos
decisores púbicos.
Este é o caminho para discussões como esta: olhar para o território como um todo,
juntar o máximo de agentes de base local profundos conhecedores do território, refletir
sobre as ferramentas atuais de política pública, ter a coragem para se adotarem medidas
inovadoras e decidir o caminho em conjunto, reforçar a base de trabalho no caminho a
percorrer e a sua qualificação.
III. Cooperação

No que respeita à cooperação, no seguimento das medidas e caminhos seguidos, é


importante fazer uma análise sobre casos e dinâmicas espaciais inspiradoras. Quando des-
cemos à realidade é mais fácil enquadrar os conceitos e operacionaliza-los, na medida em
que existem muitos pontos em comum nos territórios que estamos a falar.
Revisitando a definição clássica de Redes, gosto particularmente desta definição: “um
modo de organização e de gestão da criação colectiva que se distingue dos sistemas habituais
de hierarquia (das empresas, das administrações) ou na independência total dos actores
(o mercado)” (PERRIN, 1991 apud LOPES, 2001).
Neste ponto, seria interessante colocarmos a tónica na “criação coletiva” e as ferra-
mentas que temos ao nosso dispor para esse desígnio. O Plano Nacional para a Coesão
Territorial versa sobre a constituição de redes, e um ponto transversal para a constituição
de redes capazes e duradouras é a capacitação.
O conceito de capacitação como pilar do desenvolvimento local: “o conceito de em-
powerment surge como um processo de reconhecimento, criação e utilização de recursos e
de instrumentos pelos indivíduos, grupos e comunidades, para si mesmos e para o meio
envolvente.” (RODRIGUES, 2010).
Neste capítulo e com base nos preceitos que temos seguido, posso aditar a experiência,
como caso prático, do Projeto de Gestão Comunitária do Castelo de Marvão entre os anos
de 2013 e 2015.
A vila de Marvão situa-se no Distrito de Portalegre, região Alentejo e sub-região do Alto
Alentejo. É sede de um município com 154,90 km² de área e 3 512 habitantes (Censos
2011), subdividido em 4 freguesias.
O Centro Cultural de Marvão, associação fundada nos anos 80, na era das instituições
de cultura e recreio, chegou até aos dias de hoje principalmente com a afirmação nos festejos
e convívios populares. No ano de 2013, um grupo de jovens que liderava a associação, de-
329 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
cidiu responder ao convite/concurso que a Câmara Municipal fez para a gestão do Castelo
de Marvão por uma Associação. Pese embora este processo tenha sido atribulado palas na-
turais vicissitudes do poder local, que fez com que esse concurso estivesse aparentemente
perdido à altura, esta associação acabou por ganhar o mesmo.
A partir daí tudo era novo. Todos os processos foram construídos pelos membros da
Associação e todas as tarefas foram adequadas pela comunidade. Na ótica da “utilização
de recursos e de instrumentos” existentes, a planificação e gestão feita neste Monumento
Nacional foi realizada integralmente pela comunidade. E assim continuou.
Os Jovens faziam a receção e com isso ganhavam experiência no contacto com o públi-
co e domínio de línguas estrangeiras. Passaram durante estes três anos de gestão, mais de
50 jovens pela receção do Castelo de Marvão. As senhoras da Instituição, na sua maioria
aposentadas, ajudavam na limpeza diária de todos os espaços interiores e os senhores,
também eles com tempo disponível, tratavam dos espaços verdes e da limpeza exterior.
A preparação para a mudança (comunidades ágeis) só se dá com a capacitação de pes-
soas e a confiança entre atores. A experiência que vos trago tem na base a gestão coletiva de
um equipamento cultural e que muito se foca na partilha de tarefas com um fim comum.
Para além de outras distinções e conquistas, que esta experiência conseguiu, os resultados
estiveram à vista de todos:

Ilustração 2. Entradas Castelo de Marvão 2013-2015

Em suma, esta experiência, que foi uma referência de gestão de um equipamento


cultural, ao aproveitar os recursos existentes na comunidade, apenas terminou porque o
Município de Marvão em 2016 assumiu diretamente a gestão do Monumento. O caso em
análise, mais do que cooperação, fala sobre Confiança. Este ingrediente, a par do profundo
conhecimento do território e da realidade, são os verdadeiros motores do desenvolvimento
da comunidade. A Confiança entre parceiros é essencial ao sucesso de qualquer projeto e à
criação efetiva de Redes de criação e colaboração para o desenvolvimento.
330 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

IV. Operacionalização das ideias principais

Os conceitos expressos ao longo do texto apontam no sentido de uma reflexão pro-


funda sobre as metodologias de construção das políticas públicas no que respeita ao
desenvolvimento regional. Estes conceitos são determinantes para encurtar a distância
entre o caminho (operacionalização) e as metas (resultados).

a) capacitação de agentes
Este é um ponto absolutamente fundamental para o sucesso de qualquer Programa,
seja no plano do Desenvolvimento regional ou em qualquer outra área. Neste quadran-
te assume uma importância adicional porque estamos a falar de territórios com muitas
carências e por isso mesmo existe necessidade de ser continuarem a canalizar alguns fundos
para a capacitação de agentes no território.
A este respeito, fiz uma questão a mim próprio: Quanto se gasta em “Assistência técnica”
nos Programas comunitários?

Ilustração 3. INALENTEJO 2007-2013

A resposta não teve nada de surpreendente, no programa operacional do Alentejo –


INALENTEJO 2007-2013, apenas confirmou algo que já esperava. Canalizar apenas 2%
do valor investido nas áreas de execução, para assistência técnica, parece-me manifestamente
diminuto. Outra questão, para analisar no futuro, seria perceber qual a percentagem deste
valor que vai efetivamente para a “capacitação para a implementação dos Fundos”.

b) novas plataformas colaborativas


A agenda para o interior refere, e bem, a necessidade de encontrarem “novas plataformas
colaborativas” e, por isso mesmo, reforçar e qualificar as redes existentes.
Na operacionalização deste ponto, colocava a necessidade de inventar novos espaços
e de recuperar velhas metodologias, como animação comunitária, perdida e ultrapassada
por programas estruturais. Os espaços de criação coletiva eram férteis em novas ideias e
em abordagens para o território, assim, e com o objetivo de encontrar novas plataformas
de colaboração, era interessante voltar a essas experiências.

c) governança de base local


A experiência do Centro Cultural de Marvão, como também recentemente por moti- 331 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
vos profissionais com a gestão de programas de juventude, mostra-nos que a gestão local/
/regional dos programas tem de ser fortemente participada.
Caso contrário o território e a demografia vão-se encarregar de fazer o resto. A espiral
de despovoamento afasta também as pessoas, por várias razões, dos centros de decisão
efetivos, assim temos de procurar novamente este realinhamento para que as políticas
implementadas tenham uma forte base de participação.

d) avaliação de políticas
Tudo começa com a avaliação. Neste contexto a perspetiva de permanente revisão
aqui trazida pelo Programa Nacional para a Coesão Territorial parece ser um excelente
caminho. Sem uma avaliação constante dos nossos programas todos os outros esforços de
envolvimento e participação caem por terra, porque muitas vezes pensamos que estamos a
“abrir” os processos quando na prática estamos a fazer exatamente o oposto.
Por fim, e como remate final, faço minhas as palavras do Professor Doutor José Reis,
temos de, definitivamente, olhar para o Território como Urgência Nacional, isto porque
está a acontecer um processo de “«deslaçamento» original dos nossos espaços regionais (es-
paços de vida; espaços produtivos; estruturas urbanas; recursos materiais e naturais), com a
maioria deles a ficar para trás e abaixo de limiares mínimos de capacidade” (REIS, 2017).
A conclusão deste texto e as pistas de reflexão futuras são simples, existe um longo cami-
nho a percorrer. Temos de qualificar o caminho para desenvolvimento, reforçando os progra-
mas de capacitação e de criação coletiva. Se o fizermos bem vai “ficar” a experiência adquirida
e as metodologias de trabalho. Vamos colocar o foco no caminho e menos nas metas. Se
apostarmos em qualificar o caminho, no fim vai ficar qualquer coisa de útil e positiva.

Referências

CCDRC, Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro. Programas


de Desenvolvimento Regional. Em: http://www.ccdrc.pt/index.php?option=com_
content&view=article&id=2994. Janeiro, 2017.
COMISSÃO EUROPEIA. Estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo. Em:
https://infoeuropa.eurocid.pt/registo/000043517/documento/0001/. Março, 2010.
FC&T, Fórum Cidadania e Território. Valorizar o Interior: um contributo da sociedade civil para
o Programa Nacional para a Coesão Territorial. Em: https://docs.wixstatic.com/ugd/bb70c8_
b5239925675441e69c6df57216725449.pdf. Junho, 2016.
INALENTEJO, Programa Operacional Regional do Alentejo. O INALENTEJO em núme-
ros. EM: http://www.alentejo.portugal2020.pt/index.php/documentacao/category/86-
-publicacoes?download=343:livro-inalentejo-maio-de-2017. Maio, 2017.
332 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

REIS, José. Conferência de encerramento das Conferências de Aljustrel. Em: http://conferenciasde-


aljustrel.com/files/Apresenta%C3%A7%C3%A3o%20Jos%C3%A9%20Reis.pdf. Maio, 2017.
LOPES, Raul. Competitividade, Inovação e Territórios, Celta Editora: Oeiras. 2001.
PNCT, Programa Nacional para a Coesão Territorial. Em: https://www.portugal.gov.pt/pt/gc21/
governo/programa/programa-nacional-para-a-coesao-territorial-/ficheiros-coesao-territorial/
programa-nacional-para-a-coesao-territorial-pdf.aspx. Outubro, 2016.
RODRIGUES, Eduardo Vítor. Escassos caminhos: os processos de imobilização social dos benefi-
ciários do rendimento social de inserção. Porto: Edições Afrontamento. 2010.
TEOTÓNIO PEREIRA, Tiago. “O interior: entre o estatuto e a unidade de missão”, Tribuna
Alentejo. Em: https://tribunaalentejo.pt/artigos/o-interior-entre-o-estatuto-e-unidade-de-missao.
Outubro, 2016.
Contradições e Possibilidades nos Conflitos
por Terra: o Caso do Maranhão

Ronaldo Barros Sodré


Doutorando pela Univesidade Federal do Pará
Samuel de Jesus Oliveira Maciel
Mestrando, Universidade Estadual do Maranhão.
José Sampaio De Mattos Júnior
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Socioespacial e Regional na Universidade Estadual do Maranhão

Introdução

Os conflitos evidenciam a incapacidade institucional do Estado, ao tempo que mostram


também a capacidade dos mais pobres na busca dos seus direitos pela luta que aponta caminhos
para a cidadania. Apesar da grande extensão territorial do Brasil e das transformações sociais e
econômicas das últimas décadas, os conflitos agrários permanecem, sob a vigência do padrão da
propriedade da terra. No Maranhão, estado com a população mais rural do país, os conflitos en-
volvem um índice elevado de famílias camponeses que lutam para voltar/permanecer na terra.
O principal objetivo desse trabalho foi demonstrar os conflitos por terra no Estado
do Maranhão entre os anos de 2001 a 2015. Por isso foi relevante levantamos, analisa-
mos e discutimos referenciais sobre a questão agrária, violência, conflitos agrários, entre
outros. Esse levantamento foi baseado principalmente nas informações coletadas junto
333 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a Comissão Pastoral da Terra
(CPT). Ficou evidente, após análises do dados, que ainda é significativo...

Conflitos por terra: contradições e possibilidades

A incompatibilidade de situações é uma das definições mais usuais quando nos re-
ferimos a um conflito, seja ele entre indivíduos ou pessoal (intrapsíquico), em ambas
as situações, o conflito é um desequilíbrio com possibilidades de resolução por meio de
mecanismos específicos. Logo, os conflitos por terra pronunciam-se como uma assimetria
intrínseca a um sistema (a questão agrária).
Antes de investigarmos as causas e efeitos do conflito por terra, consideramos impor-
tante desprende-lo de algumas definições usuais que aparentam se tratar da mesma coisa.
Não há discordâncias de que um conflito de terra é um conflito social por uma porção do
território, o que torna o conflito por terra também um conflito socioterritorial, mas nem
todo conflito social é pôr e/ou a partir do território.
Uma situação de conflito social é resultado de um exercício de poder, embora nem
toda relação de poder tenha como efeito o conflito. O conflito é produto de toda estrutura
social e está envolvido em um processo dialético, em que sendo solucionado, ocasionará
mudanças. Para Pasquino (1998, p.225) o “conflito é uma forma de interação entre indi-
víduos, grupos, organizações e coletividades que implicam em choques para o acesso e a
distribuição de recursos escassos”.
Cada situação de conflito terá seus recursos particulares, podendo eles assumirem uma
ou mais causas, o território por exemplo, – instituído a partir da afirmação de um indiví-
duo ou grupo de indivíduos em um espaço apropriado – pode ser um recurso de conflitos
sociais, políticos, econômicos etc. (SODRÉ e MATTOS JÚNIOR, 2016).
A terra como elemento analítico do conflito socioterritorial, por excelência é um re-
curso em disputa. Diversos instrumentos são utilizados nas situações conflituosas que a
envolvem. As sociedades que não conseguem diluir ou diminuir essas disputas, tendem a
criar um campo de barbárie, que não necessariamente ocorre segundo a contraposição de
classes ou grupos opostos.
O processo de acumulação sem enfrentamento aos obstáculos que se manifestam ao
longo do tempo em uma sociedade, promove um tipo de desenvolvimento social e eco-
nômico marcadamente desigual e conservador. A questão agrária brasileira e suas formas
arcaicas destacam-se como impedimento a superação das desigualdades. Entre essas formas
estão os conflitos por terra, intrínsecos à questão agrária.
Os conflitos por terra, assim como todo conflito agrário mostram a incapacidade ins-
titucional do Estado na resolução da questão agrária e fundiária, ao tempo que mostram
334 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

também a resistência dos camponeses para continuar tendo seus direitos respeitados.
Quando se rebelam contra os seus opostos, os camponeses demonstram suas vontades
políticas, ainda que sejam conscientes das possibilidades de sofrer violências e de perder
a própria vida na luta pela cidadania.
Ao tempo que um conflito possa levar a violência e/ou a morte dos trabalhadores
rurais, nascem também a vida e a esperança. Esse paradoxo se concretiza nas ações dos
camponesas, que negam as forças do capital e se recriam por meio da luta pela terra e na
terra, contrariando um tipo de desenvolvimento que não lhes envolve.
Existem lógicas distintas no que concerne ao desenvolvimento rural para grandes pro-
prietários de terras e camponeses, onde um, depende do infortúnio do outro para sua
realização. Por não levar em consideração essa dualidade, muitos estudiosos costumam
separar o conflito agrário do desenvolvimento rural, entendendo, inclusive, que um con-
flito prejudica o desenvolvimento. Fernandes (2008) entende que o conflito agrário e o
desenvolvimento rural são processos inerentes da contradição estrutural do capitalismo e
paradoxalmente acontecem simultaneamente.
Pensemos nos quilombos distribuídos por todo o país, lugares que mantém vivas as
histórias dos povos negros por meio de uma organização social própria e das relações de tra-
balho, das lutas, das religiões, tradições e da vida. O lugar de refúgio dos escravos contra as
forças do capitalismo, deu vez a um lugar de manifestação cultural e da existência humana.
Um assentamento rural também nos dar suporte para entender essa relação, pois ele
se constitui num território em que as famílias buscam desenvolver-se nas suas dimen-
sões sociais, econômicas, políticas e culturais, mas, que se originou de um conflito – não
necessariamente de um confronto – com a lógica capitalista.
A essência do sistema capitalista converge ao mesmo tempo no desenvolvimento e
no conflito. Fernandes (2008, 2013) alerta para que o conflito não seja tratado como um
processo externo ao desenvolvimento, isto é, desenvolvimento rural e conflito não são
externos um ao outro.
Apesar das transformações sociais e econômicas, a questão agrária e os conflitos agrá-
rios, continuam sob a vigência do padrão da propriedade da terra. A modernização das
estruturas agrícolas e a participação substantiva do agronegócio no superávit da balança
comercial, relegam e negam os problemas da concentração fundiária e a concentração de
renda. A modernização conservadora do latifúndio reforçou a propriedade da terra e o seu
caráter excludente (BUAINAIN, 2008).
Os conflitos agrários nesse início de século persistem como resultado da implanta-
ção de um modelo agropecuário “moderno” de uma sociedade profundamente desigual e
excludente, tanto em termos econômicos como sociais, políticos e culturais. A expansão
do agronegócio no Brasil contraria as afirmações dos seus defensores, que veem nele uma
335 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
revolução pacífica, quando na realidade se observa o agravamento do problema agrário e a
manutenção da violência no meio rural (SAUER, 2008, P.239).
O aumento dos conflitos no campo está atribuído a uma série de fatores, que pesem
o modelo de desenvolvimento com base na modernização conservadora, da ineficácia das
políticas de acesso de acesso à terra e o fracasso da reforma agrária. Segundo Buainain
(2008, p.46) decorrem ainda, da crise da agricultura familiar, restruturação dos sistemas
produtivos e sua absorção de mão-de-obra, desemprego e falta de alternativas para as famílias
rurais que perdem suas terras ou ocupações no trabalho.
Além dessas razões mais estruturais somam-se ainda causas mais específicas como:
construção de grandes obras públicas ou privadas, que provocam o deslocamento de
populações residentes (Mesmo que algumas obras tenham projetos que incluam reassen-
tamentos, dificilmente eles englobam a todos); geração súbita de superpopulação relativa
ao fim de grandes projetos; degradação ambiental por meio de derrubadas e queimadas
de árvores ou mesmo por desastres ecológicos; regulamentação de terras indígenas já ocu-
padas; conflitos em torno da definição do domínio, posse ou uso da terra; conflitos entre
beneficiários de assentamentos e o governo; entre outros (BUAINAIN, 2008, p.47).
Observamos que muitos conflitos são resultantes da implementação de projetos de-
senvolvimentistas e seus processos severamente excludentes, modelo assumido desde o
processo de ocupação do território brasileiro e ainda hoje mantido.
Em contraposição existem forças que buscam esterilizar as desigualdades através do
questionamento da lógica capitalista. Enquanto a problemática das questões relacionadas a
estrutura fundiária persistirem, os conflitos perduram, temporalmente passam por peque-
nos refluxos e se inflam. Seus sujeitos também mudam de acordo com as novas estruturas
capitalistas que levam a uma nova organização social.
Nos últimos 20 anos, a criação de uma ingente quantidade de movimentos sociais
rurais, que lutam por terra, revelam a vigência dos conflitos no campo. Conflitos que per-
passam as relações de propriedade, o domínio político, o controle econômico, o reparto
dos lucros etc. Conflitos que definem a dinâmica do meio rural muito mais que a busca
conjunta pelo desenvolvimento por meio de uma participação esvaziada de sentido e de
objetivo (GOMEZ, 2006, p.105).
336 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Gráfico 1. Conflitos por terra no Brasil

Ainda segundo Gomez (2006), em uma análise sobre políticas de desenvolvimento


rural, por mais que se tente vender por meio de políticas públicas um desenvolvimento em
que prevaleça a harmonia social, ela se resume a uma aparência criada. A competitividade
e a concorrência de territórios não incorporam os excluídos ao Sistema. Os conflitos entre
grupos continuam porque os desequilíbrios permanecem e, geralmente, se acirram.
A leitura que envolve a relação espaço-tempo, nos leva a observar no Gráfico 1 que
os conflitos no século xxi estão espacializados em todo o território brasileiro. Embora
alguns estados se destaquem pela maior quantidade, todos quantificam conflitos por terra.
Distingue-se, porém, as particularidades dos casos em cada estado, isto é, os desdobramen-
tos dos enfrentamentos pela posse, uso e propriedade da terra e pelo acesso a territórios,
que desencadeiam na maioria das vezes, diferentes formas de violência.
De todos os estados brasileiros, o Maranhão é o que apresenta o maior quantitativo de
conflitos por terra, em termos percentuais, os números correspondem a 16% dos conflitos
registrados no país. Os dados revelam uma média de pouco mais de 107 conflitos por ano
no Maranhão nos últimos quinze anos, o que nos permite afirmar que nesse estado, existe
uma latente disputa de interesses por territórios.

O Maranhão em conflito

Em dessemelhantes escalas, os números demonstram a atual conjuntura agrária formada ao


longo de séculos e que se modifica no tempo e no espaço de acordo com novos elementos que
a ela são incorporados. No estado brasileiro com os maiores números de conflitos por terra, a
questão agrária adquire singularidades além dos contornos comuns a questão agrária brasileira.
O Maranhão chega ao século xxi com um dos mais elevados quadros de pobreza e
desigualdades sociais do país. A maioria da população sobrevive em péssimas condições
de vida e não desfrutam de direitos assegurados pela Constituição como saúde, educação,
moradia, emprego, entre outros. No campo, a concentração fundiária e de capital con-
trasta com a renda da maioria da população, no estado que ainda é o mais rural do país.
Entre os anos de 2001 e 2015 foram registrados pela CPT, 1.606 conflitos pela terra
no Maranhão. A partir do ano de 2010 nota-se um significativo aumento, quando os
casos mais que dobraram em relação ao ano anterior e continuaram aumentando no ano
de 2011. O Gráfico 2 mostra uma queda do número de conflitos a partir de 2012, mas
ainda assim, os últimos quatro anos apresentam uma média de pouco mais de 136 casos
337 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
de conflitos pela terra por ano.

Gráfico 2. Conflitos por terra no Maranhão Gráfico 3. Famílias envolvidas em conflitos


por terra no Maranhão
O número de famílias envolvidas em conflitos no Maranhão também teve aumento
nos últimos anos em comparação ao início do século. A soma totaliza 105.465 famílias en-
volvidas em situações de conflitos no período de 2001 a 2015. O Gráfico 3 exibe variações
com algumas quedas, contudo, os números se mantêm altos.
Quando apresentamos a distribuição territorial dos conflitos por terra no Maranhão e
também o número de famílias envolvidas nesses conflitos (Prancha 1), verificamos que os casos
cobrem grande parte do território maranhense, dos 217 municípios, 54 não tiveram registros
de conflitos por terra nos últimos quinze anos, o que significa dizer em termos percentuais que
75,12% dos municípios tiveram ao menos um conflito entre os anos de 2001 a 2015.

Prancha 1
338 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Na primeira representação, chamamos atenção a concentração de conflitos no Leste


do estado, onde o agronegócio tem se expandido nos últimos anos e entrado em disputa
com o modo de vida ali existente. A exemplo, tem-se o município de Codó, de povoação
antiga, o quinto munícipio mais populoso do Maranhão (IBGE,2010) tem sido palco de
diversos conflitos que envolvem comunidades quilombolas, posseiros e empreendimentos
capitalistas. Em quinze anos, o município teve contabilizados 106 conflitos por terra,
o que equivale a 5,3% dos conflitos ocorridos no Maranhão em igual período.
No que tange as famílias envolvidas em conflitos chamamos atenção a capital do estado,
São Luís. Com 1.014.837 de habitantes, o município possui apenas 6% de sua população
morando na área rural (IBGE,2010), mesmo assim, São Luís registra o maior número de
famílias envolvidas em conflitos por terra no Maranhão, de acordo com a CPT entre 2001 e
2015, foram somados 5905 conflitos entre posseiros, assentados, pequenos proprietários, pes-
cadores e grandes empreendimentos que constantemente ameaçam os camponeses da capital.
O modelo de desenvolvimento social e econômico baseado na monocultura se expande
e entra em atrito na disputa pelos territórios do diversificado campesinato maranhen-
se. Avançando sobre Unidades de Conservação, Terras Indígenas, Áreas Quilombolas,
Assentamentos Rurais e outros territórios. Constatamos que, o agronegócio busca a máxima
exploração para se consolidar a partir do controle territorial.
A Prancha 2 exibe a diversidade de sujeitos envolvidos em conflitos pela terra no
Estado entre os anos de 2011 e 2015, entre eles, famílias de posseiros, quilombolas, assen-
tados, sem-terra, indígenas, ribeirinhos, pequenos proprietários, pescadores, extrativistas e
quebradeiras de coco babaçu.

339 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

Prancha 2

Nesse recorte temporal foram contabilizados 1042 conflitos envolvendo 44.495 famílias,
dessas, 17.325 eram posseiras, 12.782 quilombolas e 5.589 assentadas. Respectivamente esses
números correspondem a 38,5%, 28,4% e 12,4% das famílias maranhenses em situação de
conflito pela terra. Esses números indicam que a conflituosidade no campo é nutrida pelas
intencionalidades concebidas no sistema capitalista. No jogo de forças, dois elos disputam
entre si territórios para suas realizações, de um lado o capital e suas formas exploratórias, do
outro, os camponeses que buscam autonomia e a manutenção de seus territórios.
Considerações finais

O campo maranhense chega ao século xxi com um acentuado grau de desigualdades so-
ciais impulsionadas pelo avanço do capital. No contexto das novas territorialidades do capi-
tal, os conflitos levam alterações sociais, econômicas, culturais e naturais no espaço por meio
de diferentes formas de territorialização, desterritorialização e reterritorialização. As articula-
ções e intermediações dos arranjos espaciais interagem no contexto espacial e temporal em
que estão inseridas e criam novas territorialidades, modificando as configurações espaciais.
O Estado como instituição importante na resolução e mediação dos conflitos que deveria
levar em conta o reconhecimento dos direito dos territórios dos povos e comunidades tradicio-
nais, apresenta morosidade nas suas ações de intervenção, levando a desencontros na articulação
de políticas públicas que por vezes acabam promovendo ainda mais tensões por meio de um
modelo de desenvolvimento de reprimarização econômica, que não prioriza a função social da
terra e estabelece um padrão de concentração de capital, tecnificação e mecanização do campo.

Referências

BUAINAIN, Antônio Márcio. Reforma agrária por conflitos. In BUAINAIN, Antônio Márcio. (Org).
Luta pela terra, reforma agrária e gestão de conflitos no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
p.17 – 128.
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão Agrária: Conflitualidade e Desenvolvimento
Territorial. In BUAINAIN, Antônio Márcio. (Org). Luta pela terra, reforma agrária e gestão de
conflitos no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2008B. P. 173 – 230.
GÓMEZ, Jorge Ramon Montenegro. Desenvolvimento em (des)construção: narrativas escalares
sobre desenvolvimento territorial rural. 438 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade
Estadual Paulista, Presidente Prudente – SP, 2006.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo 2010.
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 27 de janeiro de 2016.
340 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial

PASQUINO, Gianfranco. Conflito. In: BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO,


Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1 ed., 1998. P.225 - 229.
SAUER, Sérgio. Conflitos agrários no Brasil. In BUAINAIN, Antônio Márcio. (Org). Luta pela terra,
reforma agrária e gestão de conflitos no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. p.231 – 266.
SODRÉ, Ronaldo Barros; MATTOS JUNIOR, José Sampaio de. O emaranhado dos conflitos
de terra no campo maranhense. Revista de Geografia e Ordenamento do Território (GOT),
n.10. 2016

You might also like