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LUGARES E TERRITÓRIOS:
PATRIMÓNIO, TURISMO SUSTENTÁVEL,
COESÃO TERRITORIAL
Coordenação de
Rui Jacinto
IBEROGRAFIAS
33
Colecção Iberografias
Volume 33
Âncora Editora
Avenida Infante Santo, 52 – 3.º Esq.
1350-179 Lisboa
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O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e
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A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores.
Apoios:
Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial 7
Rui Jacinto
RECURSOS DO TERRITÓRIO: PAISAGENS E PATRIMÓNIOS
Rui Jacinto
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT)
A declaração de 2017 pela Organização das Nações Unidas (ONU) como Ano
Internacional do Turismo Sustentável para o Desenvolvimento levou o Centro de Estudos
Ibéricos (CEI) a incluir este tema no Curso que promove regularmente quando estão prestes
a terem inicio as férias escolares. A XVIIª Edição do Curso de Verão, realizada entre 28 de
junho e 1 de julho, sob o lema “Lugares e territórios: novas fronteiras, outros diálogos”, além
de afirmar o CEI como uma plataforma de difusão de conhecimento, aberta à cooperação
cientifica e ao diálogo institucional, deu publica expressão do seu compromisso para com
os territórios mais débeis, onde relevam os espaços de baixa densidade e fronteiriços. As de-
zenas de investigadores participantes, onde se incluem muitos provenientes de diferentes
universidades do espaço lusófono, testemunham a aposta do CEI em aprofundar, aquém e
além-fronteiras, parcerias e diálogos que o articulem com diferentes redes de investigação.
O Curso de Verão é pautado pelas seguintes preocupações: (i) identificar e valorizar
os recursos do território, naturais e humanos, materiais e intangíveis, enquanto fatores
7 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
1
Jorge Gaspar (2001) – O retorno da paisagem à Geografia. Apontamentos místicos. Finisterra, XXXVI, 71,
pp. 83-99.
2
Para efeitos de Convenção “«Paisagem» designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas po-
pulações, cujo carácter resulta da acção e da interacção de factores naturais e ou humanos”. Os objetivos
da Convenção foi “promover a protecção, a gestão e o ordenamento da paisagem e organizar a cooperação
europeia neste domínio” (Artigo 3.º), aplicar “a todo o território das Partes e incide sobre as áreas naturais,
rurais, urbanas e periurbanas. Abrange as áreas terrestres, as águas interiores e as águas marítimas. Aplica-se
tanto a paisagens que possam ser consideradas excepcionais como a paisagens da vida quotidiana e a paisagens
degradadas” (Artigo 2.º).
A Unesco adotou mais recentemente (2011) uma Recomendação sobre a Paisagem Urbana Histórica (PUH).
para a criação de emprego”, antes de enunciar os pressupostos que devem presidir a uma
“política da paisagem”.
As autoridades públicas devem, pois, enunciar os “princípios gerais, estratégias e linhas
orientadora que permitam a adopção de medidas específicas tendo em vista a protecção,
a gestão e o ordenamento da paisagem”. Além da preocupação “em alcançar o desen-
volvimento sustentável estabelecendo uma relação equilibrada e harmoniosa entre as ne-
cessidades sociais, as actividades económicas e o ambiente” considera-se que a paisagem:
(i) “desempenha importantes funções de interesse público, nos campos cultural, ecológico,
ambiental e social, e constitui um recurso favorável à actividade económica, cuja protecção,
gestão e ordenamento adequados podem contribuir para a criação de emprego”; (ii) “con-
tribui para a formação de culturas locais e representa uma componente fundamental do
património cultural e natural europeu, contribuindo para o bem-estar humano e para a
consolidação da identidade europeia”; (iii) “é em toda a parte um elemento importante
da qualidade de vida das populações: nas áreas urbanas e rurais, nas áreas degradadas bem
como nas de grande qualidade, em áreas consideradas notáveis, assim como nas áreas da
vida quotidiana” (Decreto n.º 4/2005, de 14 de Fevereiro).
O património, por seu lado, conheceu uma considerável evolução desde que deixou de
exprimir o significado que vulgarmente lhe é associado. O valor exclusivamente mesurável
que lhe era atribuído, ligado ao sentimento de posse e de propriedade, pessoal, familiar
ou empresarial, alargou-se ao incorporar dimensões mais intangíveis que lhe passam a
conferir, também, uma representação simbólica. A maior abrangência do significado com
a assunção destes valores nunca lhe retirou o antigo significado associado à ideia de me-
mória e de herança, que o vincula a direitos adquiridos, que tanto podem ser detidos por
indivíduos ou grupos sociais, por lugares ou países.
A carga simbólica e a dimensão cultural que carrega não impediu que o património con-
tinue a ser regulado por convenções e normas vigentes na ordem jurídica local, nacional ou
internacional. Os valores que incorpora conjugados com o estado de abandono e progres-
9 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
siva degradação, patente em muitos locais, levou à intervenção de diferentes organizações,
nacionais e internacionais, com destaque para UNESCO que gizou uma Convenção vi-
sando a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural (Paris, 1972). Esta deci-
são, que passou a constituir uma referência, acabou por desencadear um movimento que
apostou em sinalizar e salvaguardar obras ímpares, testemunhos únicos e de excecional
interesse que são merecedoras de serem transmitidos como legados da Humanidade às
gerações futuras. Anualmente, durante a reunião do Comité da Convenção do Patrimônio
Mundial, aprova-se a inscrição de novos bens na Lista do Património Mundial, após estu-
dos, levantamentos científicos, investigações, análises, informações históricas e visitas aos
locais. Até ao momento foram classificados 1073 bens como Património da Humanidade,
entre monumentos, sítios, edifícios, cidades, bosques, montanas, lagos, etc. ou paisagens
culturais, estando entre os consagrados alguns ícones mundialmente conhecidos, como a
Grande Muralha, Machu Picchu, Palácio de Versalhes, Acrópole de Atenas, centro histórico
de Florença ou o Parque Nacional e Cataratas do Iguaçu.
Estados com
Cultural Natural Misto Total %
bens inscritos
Esta Lista é constituída, no caso de Portugal, pelos seguintes bens: Fado (2011), Dieta Mediterrânica (2013,
3
em conjunto com Chipre, Croácia, Espanha, Itália, Grécia, Marrocos), Cante Alentejano (2014), Manufatura
de Chocalhos (2015), Olaria negra de Bisalhães (2016), Falcoaria Portuguesa (2016), Boneco de Estremoz
(Figurado em Barro) (2017). A falcoaria inclui os seguintes países onde tem longa tradição: Emirados Árabes
Unidos, Áustria, Bélgica, República Checa, França, Alemanha, Hungria, Itália, Casaquistão, República da
Coreia, Mongólia, Marrocos, Paquistão, Qatar, Arábia Saudita, Espanha, República Árabe da Síria.
raia portuguesa, p. ex.) ou à literatura, por permitir traçar possíveis roteiros a partir de certos
autores (Rotas de Escritores, p. ex.) ou de algumas obras (A viagem de Salomão). Além do
contributo para o desenvolvimento sociocultural ajudam a reforçar o património natural e
demais recursos locais (termas, p. ex.) na diversificação da oferta e valências turísticas. Outras
práticas (p. ex. turismo de base comunitária) e a analise comparativa do turismo em distintos
contextos regionais e socio espaciais (p. ex.: litoral sul de Sergipe e litoral do Algarve) pode
ajudar e encontrar boas práticas, soluções e modalidades mais inovadoras e criativas.
A relação entre património e turismo, complexa e cada vez mais cúmplice e estreita,
pode representar uma oportunidade ou um problema, caso a hipotética salvação se trans-
forme numa irremediável perdição. A relação intrínseca com o território levou a encarar o
património como um fim, se os projetos se esgotam e restringem apenas à sua recuperação,
ou um meio, quando servem de pretexto para abordagens integradas que, superando o
âmbito local, sejam enquadradas em estratégias de desenvolvimento regional ou nacional.
O modo como passou a ser encarado pode ser ilustrado pelas intervenções levadas a cabo
na Região Centro quando, partir dos anos 90, foi reconhecido como um recurso critico
para o desenvolvimento territorial. A valorização e promoção do património desenca-
deou uma multiplicidade de intervenções diretas, quase sempre restritas e focadas num
único imóvel, classificado como monumento nacional ou, em alguns casos, distinguido
pela UNESCO como Património da Humanidade, como aconteceu nos Mosteiros de
Alcobaça, da Batalha e no Convento de Cristo.
As intervenções que transcenderam a estrita incidência ser local inseriram-se em es-
tratégias regionais que apostavam na definição de redes de lugares organizados segundo
critérios geográficos ou temáticos. O caso das Aldeias Históricas de Portugal e da Rede das
Aldeias de Xisto, os mais representativos, configuraram Ações Integradas de Base Territorial
que, partindo de intervenções ao nível do património de cada uma das aldeias, contem-
plaram ainda projetos de infraestruturas, de melhoria dos espaços públicos e de apoios
específicos à economia local, incentivando microiniciativas que aproveitassem diferentes
12 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
4
Turismo de Portugal – Centro: http://www.centerofportugal.com/pt/
5
São destacadas: Aveiro, Coimbra, Figueira da Foz, Viseu, Guarda, Covilhã, Castelo Branco, Leiria, Alcobaça,
14 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Introdução
Numa altura em que o território europeu atravessa algumas ameaças, com base na
violência de guerrilha e de terror, que visam colocar em causa os princípios de dignidade,
de liberdade e de segurança do cidadão europeu – mas em geral e por extensão do Ser
Humano – e também, para assinalar os cem anos sobre o fim da Primeira Grande Guerra,
o Conselho Europeu assume uma posição bastante clara, ao estabelecer o período de 2018
como o Ano Europeu do Património Cultural. Também em 2018, a Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) comemora os quarenta
anos das primeiras inscrições na LPM. Num tempo de incertezas quanto ao futuro, uma
certeza devemos ter: através do património cultural podem ser estabelecidos os discursos
de paz e, por isso, qualquer comemoração de cultura é uma afirmação positiva sobre o
19 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
futuro da e na humanidade.
O papel do património cultural sai mais reforçado, para se afirmar como um recurso
no desenvolvimento de uma comunidade global de paz, construindo e reconstruindo pon-
tes de diálogo que promovam a tolerância e a diversidade dos patrimónios do mundo e,
assim, promover relações interculturais. Seguindo a mesma lógica e, por consequência, a
proteção e a salvaguarda do património também saem reforçadas, como um eixo estratégico
fundamental para o desenvolvimento das comunidades e dos seus territórios.
No entanto, o património cultural é um recurso não renovável, levando a que o tema
da sua sustentabilidade assuma algum relevo nas práticas de investigação e nos estudos
que vão sendo desenvolvidos a nível global, com mais evidência nas últimas décadas,
nomeadamente, ao nível do PM, tendo em conta a sua gestão e o seu planeamento
para futuro.
A inscrição de um bem na LPM, ou qualquer outra classificação patrimonial, implica
algumas transformações para o desenvolvimento do seu contexto urbano. Por um lado, na sua
vertente material, pelas condições consequentes dessa distinção internacional, com a introdu-
ção de políticas e dinâmicas de proteção e salvaguarda do património, dentro do perímetro
classificado, mas também na sua área de influência urbana adjacente, que também vai ab-
sorver essas dinâmicas de intervenção, sobretudo, pela reabilitação dos seus espaços públicos
e privados, assumindo uma contaminação positiva da atribuição do título. Por outro lado,
também devem ser tidas em conta, as transformações decorrentes de um título PM, nomea-
damente, na vertente imaterial do seu contexto urbano, ou seja, nas práticas e nos usos das
dinâmicas socioculturais, que se verificam e manifestam no domínio do contexto urbano ma-
terial, uma vez que, essa distinção internacional assume contornos de mediatização global, na
promoção desses espaços, que passam a ser procurados por um número crescente de pessoas.
Mas muitas vezes, a atribuição de um título pode induzir a uma criogenização do
espaço urbano e monumental, sem se considerar, que o valor patrimonial está sujeito a
uma evolução, porque é parte integrante de um sistema dinâmico. Essa postura assente na
criogenização desses espaços demonstra o entendimento a que está sujeita qualquer área
patrimonial – que se deve demarcar com um limite claro e estático, dentro do resto do seu
contexto urbano – e, por isso, o princípio da proteção e da salvaguarda do património é
entendido como contrário ao desenvolvimento urbano.
Para rebater essa postura, têm contribuído algumas organizações e instituições in-
ternacionais, como a UNESCO, através dos seus Centro e Comité do PM, com os seus
consultores – o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), o Centro
Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro dos Bens Culturais de Roma
(ICCROM) e a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) – e ainda,
alguns parceiros, como o Conselho Europeu, que tendo em conta a evolução do pensa-
20 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
1
No campo disciplinar da geografia, em 1984, Denis Cosgrove já defendia a paisagem como produto cultural
(Cosgrove, 1998, 2002) e Augustin Berque assumia a paisagem na dualidade, marca e matriz, das ações do
ser humano sobre o território (Berque, 1998). No início dos anos 90, no campo disciplinar da teoria da ar-
quitetura da paisagem, Elizabeth Meyer e James Corner enfatizavam a ligação profunda entre a teoria crítica
e o contexto social e político, no qual aquela era feita e usada, sendo que, esta ligação, enquanto mediação
e reconciliação da paisagem com outras ideias culturais, fazia parte da própria sociedade, tendo em conta
a evolução histórica dos processos e experiências relacionais entre a sociedade-paisagem e o seu papel ativo
numa agenda político-social (Corner, 2002a, 2002b; Meyer, 2002; Swaffield, 2002).
2
Em 1994, a LPM contava com 439 bens inscritos, sendo 326 culturais, 94 naturais e 19 mistos; 93 dos bens
eram inscritos na categoria cidade. Ou seja, 74.26% de bens inscritos eram património cultural e, 28.53%
desse património cultural eram cidades históricas. Ou seja, um número considerável dos bens inscritos
(21.18%) pertencia à categoria cidades históricas, sem considerar as áreas e os monumentos urbanos que
eram inscritos como património cultural, mas não estariam considerados na categoria cidade.
económicas – a UNESCO reconhecia, todavia, que as paisagens e os sítios estavam sujeitos
a um rápido desenvolvimento e progresso tecnológico, sobretudo os urbanos, devido à es-
peculação do uso de solo para investimentos imobiliários, colocando em causa o seu aspeto
e o seu carisma. Por esse motivo, os gestores e os decisores das políticas da cidade e do terri-
tório deveriam assumir medidas de salvaguarda, não só para as paisagens e sítios, mas para a
generalidade do território, de modo a prevenir e a corrigir alguma ação que prejudicasse ou
destruísse a sua imagem (Lynch, 1989), beleza e carácter, enquanto valores reconhecidos.
Deste modo, o planeamento urbano e a supervisão deveriam ser entendidos como
medidas de salvaguarda, bem como o zonamento, que poderia escalonar as áreas mais
sensíveis e suscetíveis a interferências externas, se tivessem sido definidas e estipuladas
normas de controlo e de fiscalização que conseguissem impedir, ou pelo menos, minimizar
as interferências prejudiciais ao conjunto em causa.
No entanto, desde 1976 que a UNESCO, através da Recomendação sobre a salvaguarda
e o papel contemporâneo das áreas históricas (Carta de Nairobi), também estimulava o de-
senvolvimento urbano, de forma sustentável, equilibrada e em consonância com os modos
de vida da sociedade contemporânea, uma vez que o espaço físico enquanto suporte de
vida, deveria corresponder às necessidades demonstradas em cada momento. Para isso, as
áreas históricas e o seu contexto adjacente deveriam ser considerados como um todo, como
refere a Recomendação. Logo, o planeamento e a gestão dessas áreas históricas, também de-
veriam ser coerentes numa perspetiva abrangente, assumindo a fusão das especificidades,
diversidades e variações territoriais – ou pelas atividades humanas, ou pela topografia, ou
pela organização espacial, ou pelos espaços construídos, ou pelas suas marcações visuais
– de modo equilibrado, não assumindo o todo como uma soma de partes, sob pena de se
introduzir fronteiras e limites espaciais, mesmo que invisíveis, dentro do território.
Desde o primeiro instrumento de orientações operativas e técnicas para a implemen-
tação da CPM1972, de 19773 que, nas candidaturas de bens à inscrição na LPM, eram
solicitados detalhes de medidas de proteção administrativas e legais, diagnósticos do esta-
23 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
do de preservação e conservação dos bens, a propriedade e a responsabilidade sobre o bem
(nacional, regional ou local), planos de gestão ou propostas para desenvolver esses planos
ou, ainda, planos diretores locais e regionais de desenvolvimento urbano.
A partir de 1984, para além dos detalhes já existentes acrescia a solicitação de uma
previsão de medidas e contraordenações, para cenários de alteração do contexto urbano
adjacente ao bem proposto, nomeadamente, na altura e no volume das construções.
Complementarmente, também eram solicitados elementos visuais, por levantamento fo-
tográfico, que evidenciassem, especificamente: a vista aérea sobre o bem proposto e o seu
O primeiro rascunho de trabalho do documento das Operational Guidelines é datado de 30/06/1977 e
3
a primeira versão oficial do texto data de 20/10/1977. Cf. (Capela de Campos & Murtinho, 2017b).
contexto; a vista dos monumentos dentro da área proposta; e, várias vistas panorâmicas
com diferentes ângulos de visão, desde o perímetro externo do bem, para avaliar a skyline,
e o seu contrário. Ou seja, vistas panorâmicas que pudessem mostrar a paisagem urbana
do bem e do seu contexto, a partir e para além dos seus limites.
A partir de 1997, todas estas informações sobre o bem candidato passavam a ser obri-
gatórias, apresentando uma estrutura específica, que ia sendo cada vez mais detalhada,
com a sua identificação, a sua descrição, a sua gestão, os fatores que afetam o bem, a sua
monitorização, bem como, outras documentações que sejam relevantes para informar e
clarificar a pretensão (Capela de Campos & Murtinho, 2017b). Deste modo, ao nível
das candidaturas de inscrição na LPM, o escalonamento do nível de preocupação sobre a
relação entre o património e o seu contexto urbano, ia sendo mais exigente e específico, ao
longo dos anos, uma vez que se verificava uma pressão crescente nos processos de desen-
volvimento local e regional, para atingir os padrões de globalização económico-financeira.
As paisagens urbanas, enquanto registos dos usos e das impressões das suas populações
ao longo dos tempos, não tinham sofrido grande impacte, até às décadas finais do sécu-
lo xx, mantendo as características morfológicas das cidades, no geral, com poucas varia-
ções (Conzen, 2004). Estas premissas eram verificadas, principalmente, nos seus espaços
urbanos antigos e, por isso, estes espaços, comummente denominados Centros Históricos,
evidenciavam o processo histórico das transformações que iam sendo realizadas, por ne-
cessidade, em cada contemporaneidade, mas de modo a não alterar a paisagem urbana do
contexto territorial, deixando visíveis os estratos de intervenções de todas as épocas como
um palimpsesto (Corboz, 1983). À paisagem urbana pode ser atribuído, assim, um valor de
autenticidade representativa da evolução à qual havia sido sujeita.
No entanto, a partir dos anos 80, era sobre as cidades que estes impactes se verificavam
com mais intensidade, principalmente, pelo setor da construção, que conhecia períodos de
forte ascensão, com produção de muita riqueza, sendo assumido como uma alavanca da
economia global, alterando o paradigma do planeamento urbano (Sonkoly, 2011). Ainda
24 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
assim, essa riqueza seria feita à custa de valores essencialmente sociais e culturais, o que
seria prejudicial para as cidades e para os espaços urbanos: os centros antigos, com um
forte cunho sociocultural, tinham sido abalados por fenómenos de abandono e de con-
sequente gentrificação, bem como os próprios limites das cidades que tendiam a crescer.
A transformação morfológica dos espaços urbanos e as suas dinâmicas, em geral, contri-
buía para a alteração da imagem e da configuração espacial das cidades, colocando a sua
integridade visual em causa, com alterações da skyline.
As permanências que tinham sido referências identificadoras do lugar, ao longo dos séculos,
estavam em risco de serem transformadas ou destruídas, sob a perspetiva de uma modernização
high-tech do espaço da cidade. Além disso, essas transformações também eram assimiladas pelas
populações que atuavam nesses espaços e lugares urbanos. Transformava-se o lugar, transformava-
-se a população, pois «o lugar é considerado o suporte essencial da identidade cultural, (…) que
ancora a pessoa humana (…) na sua geograficidade» (Le Bossé, 2013, p. 225).
A UNESCO e o PM entendiam que estas transformações das cidades, dos seus espa-
ços e lugares urbanos, trariam consequências irreversíveis, sobretudo para as cidades com
um maior cunho sociocultural e para aquelas que já estavam inscritas na LPM (Cameron,
2008; UNESCO, 2009), se não fossem adotadas medidas de contenção, salvaguarda e
proteção. Por norma, os bens e sítios PM eram (e são) espaços mais sensíveis e suscetíveis a
sofrerem maiores danos materiais quando as ações de proteção e de salvaguarda tendiam a
falhar, em grande parte, devido à falta de eficácia ou de eficiência na prevenção, sobretudo
nos seus processos de planeamento e planos de gestão, quando não eram devidamente
equacionados ou quando não lhes era dada a devida importância.
Todavia, a transição do milénio conhecia aquele caso que alterava o modo de se encarar
e confrontar os processos de desenvolvimento urbano, que faziam pressão sobre as dinâmicas
políticas de gestão das cidades e que, por isso, se tornava paradigmático: o caso de Viena.
culação entre as dinâmicas de gestão dos bens PM com a gestão e planeamento das suas áreas
adjacentes, tanto ao nível físico, como ao nível sociocultural, como se fossem realidades dis-
tintas. Neste sentido, estas barreiras ou fronteiras invisíveis ainda podem subsistir, no modo
como se enquadra a abordagem a esta realidade – que é só uma – num contexto territorial.
Em 2011, a UNESCO promovia a Recomendação sobre a PUH, que ganhava um es-
tatuto de instrumento político, no enquadramento de uma gestão patrimonial integrada.
Tornava-se essencial, por isso, esclarecer de modo exigente a definição concetual7 desta
6
O caso de Viena era o motivo da primeira conferência específica sobre o tema, dando origem ao Vienna
Memorandum (WHC, 2005), considerado como a primeira tentativa de definição do conceito PUH. Cf.
(Bandarin & Oers, 2012; Sonkoly, 2011; Veldpaus, 2015).
7
Cf. (Jokilehto, 2010).
nova abordagem, sobretudo, devido às circunstâncias verificadas nos desenvolvimentos
urbanos contemporâneos à transição do milénio, período em que as tensões entre o desen-
volvimento local e os processos de globalização se intensificaram. Por ser um tema quase
transversal ao contexto do desenvolvimento urbano europeu, o caso de Viena assumia
contornos paradigmáticos, sendo reconhecida tanto a urgência como a necessidade de um
debate específico sobre o tema e sobre as suas implicações e consequências no futuro.
A Recomendação define a PUH como sendo a área urbana entendida como resultado de
sucessivos layers históricos de atributos e valores culturais e naturais, que para além da noção
de Centro Histórico ou conjunto, se enquadram num contexto urbano mais alargado na sua
condição geográfica8. Ou seja, o entendimento sobre a PUH é o reflexo da evolução histórica
e da expansão concetual sobre o património cultural, codificado pelo desenvolvimento social,
cultural e económico, que se manifesta, atua e surge nas dimensões material e imaterial do
território, sendo representativo do estágio intelectual de cada contemporaneidade (Capela de
Campos, 2017, p. 67; Oers & Roders, 2012; Sonkoly, 2011; UNESCO, 2011, pp. 50–55).
Desta forma, este resultado conferia uma identidade ao território, dotada de elemen-
tos e características inerentes a si próprio e à sua circunstância, dotando o território de
uma singularidade distintiva de qualquer outra. Tal facto constituía essa identidade como
uma construção cultural (Corrêa, 2013, p. 61), onde o espaço visado se transformava num
lugar, no qual os seus habitantes (insiders) e todos os outros (outsiders) reconheciam essa
sua singularidade, tanto funcional, como morfológica ou até simbólica (Relph, 2008).
Sob esta leitura, a PUH podia ser considerada como uma matriz cultural do território
(Capela de Campos & Murtinho, 2017a). Uma matriz conferia o grau de unidade a um
sistema, como um território, a partir da qual, se podem gerar, estabelecer, potenciar ou in-
tensificar inter-relações entre os seus componentes e elementos. Apesar da complexidade de
um território, uma leitura e análise da sua matriz cultural permitia verificar as inter-relações
entre população-território e, consequentemente, estabelecer princípios que possibilitassem
potenciar e promover ações para a sua identificação e para a sua apropriação pela população.
27 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
A promoção e o fortalecimento da inter-relação entre a população e o território po-
tenciava uma base ao nível do conhecimento emocional9, para que a PUH se constituísse
como uma plataforma interdisciplinar, onde é possível estabelecer correlações entre as
8
A Recomendação sobre a PUH define-a como «the urban area understood as the result of a historic layering
of cultural and natural values and attributes, extending beyond the notion of historic centre or ensemble to
include the broader urban context and its geographical setting» (UNESCO, 2011, p. 52).
9
A propósito de se fortalecerem os laços emocionais entre a população e o território, através de ações e práticas
de «conhecer para compreender» (Capela de Campos & Murtinho, 2017a), verificava-se que «o património
cultural não define identidades estáticas. É por ir incorporando e assumindo as novas realidades e os novos
modos de uso, com base nas dinâmicas de reconhecimento e de apropriação, que são criados laços emotivos de
pertença, entre as comunidades e os patrimónios, numa garantia de continuidade de utilização das máquinas
de memória, quer no tempo presente, quer para o futuro» (Capela de Campos & Murtinho, 2017b, p. 147).
várias dinâmicas existentes nos layers que a compunham: tanto aqueles da sua vertente
material – espaços construídos ou naturais – como os da sua vertente imaterial – usos,
vivências, tradições e costumes – e, assim, contribuir com conteúdos pró-ativos para uma
gestão sustentável do território. Este aspeto tornava-se relevante e pertinente pois conduzia
a um objetivo de planeamento e de gestão integrada do património, numa escala urbana
mais ampla e com perspetiva territorial, extrapolando claramente a própria área patrimo-
nial. Ou seja, a abordagem da PUH permitia ter uma visão de planeamento e gestão mais
inclusiva, quer ao nível do contexto urbano social, cultural, económico e ecológico, enfati-
zando que os processos de transformação e de desenvolvimento faziam parte integrante da
evolução normal de um sistema urbano, ao longo do tempo (Veldpaus, 2015, pp. 48–49).
Seria por todas estas novas perspetivas centradas na melhoria da qualidade de vida
das populações, que no futuro, no campo da gestão do património seja expectável que
haja mais desenvolvimento ao nível de uma transformação de pensamento e de consci-
ência sobre as dinâmicas e sinergias criadas pelos processos patrimoniais, que promova,
consequentemente, uma transformação nas abordagens e nas metodologias de proteção e
salvaguarda do património, do que propriamente sobre o património em si.
Tendo em conta estas considerações – e antecipando que o conhecimento teórico pode
surgir de acontecimentos reais e de atuações e casos práticos –, considera-se que o caso da candi-
datura da Universidade de Coimbra – Alta e Sofia (UC-AS) à LPM, que ocorreu em simultâneo
ao desenvolvimento do processo de definição da PUH e de toda a sua envolvência, pode con-
tribuir com algumas possibilidades de abordagem à avaliação e à monitorização dos processos
de intervenção urbana, para uma gestão integrada das áreas patrimoniais no espaço urbano.
Durante muito tempo, a imagem urbana de Coimbra definida pela Alta e pela Baixa até
à margem do rio Mondego (conformada entre a baixinha e o Jardim Botânico e, encimada
28 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Figura 1. Vista sobre a colina da Lusa Atenas, a partir da beira-rio e Estádio Universitário.
Fotografia: Joana Capela de Campos.
Não é inconsequente que Coimbra se tenha constituído «um caso raro, senão mesmo
único, do urbanismo português, em que no seu conjunto uma cidade se transformou
numa estrutura mono-funcional, quase um equipamento por alguns séculos» (Rossa,
2001, p. 11). Pelo papel desempenhado pela Universidade na estabilização do contributo
sócio-político-económico-cultural que tinha vindo a imprimir a Coimbra e na constante
que tinha vindo a ser o valor refúgio da imagem da Lusa Atenas ao longo dos séculos, se 29 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
compreenda que tivesse recaído, sobre a Universidade, a responsabilidade de uma candi-
datura patrimonial à UNESCO13. Em 22 de junho de 2013, o VUE do bem UC-AS era
reconhecido, sob os critérios ii, iv e vi, passando a integrar a LPM.
12
Dias verificava que, desde quinhentos, havia «claramente, a declaração da consciência do valor do Saber e
da sua preponderância em relação a todas as coisas. O Saber é o maior tesouro do homem, que pode utilizar
para o bem ou para o mal» (Dias, 2010, p. 5).
13
O processo de candidatura de Coimbra a PM teve início em 1982, podendo ser verificadas três fases: 1) de
1982 a 1998, onde várias áreas da cidade foram equacionadas para candidatura, sendo identificados diversos
proponentes, desde Matilde Sousa Franco (em 1982 era a Diretora do Museu Nacional de Machado de
Castro) à Câmara Municipal de Coimbra; 2) de 1998 a 2003, uma fase mais introspetiva e preparatória para
uma candidatura da Universidade; e 3) de 2003 a 2013, com o desenvolvimento da candidatura da UC-AS
à UNESCO, até à sua inscrição na LPM a 22/06/2013. Cf. (Capela & Murtinho, 2015; WHC, 2013).
Tendo em conta a sua definição, a PUH de Coimbra, onde se inseria o bem UC-AS,
espacialmente, seria constituída num contexto urbano mais alargado do que aquele pelo
qual era imediatamente reconhecida. Esta matriz cultural do território da cidade, condi-
cionante da forma urbana e, ao mesmo tempo, condicionada por ela, podia ser considera-
da tanto pela sua valência material como pela imaterial (Capela de Campos & Murtinho,
2017a). Ao se equacionar o contexto urbano numa valência material, esta podia ser ve-
rificada no espaço físico do bem classificado PM com 117 hectares. Esta área era cons-
tituída pela área do bem UC-AS – 35,5 hectares, sendo 29 hectares dessa área na Alta
e 6,5 hectares na Sofia – e pela sua zona de proteção com 81,5 hectares (Fig. 2). Além
desta área UC-AS PM, também deveria ser considerada para uma valência material, a
sua área urbana de influência, que se delimitava pelas linhas de cumeeira envolventes à
colina da Universidade, para constituir a plataforma de estudo Alta/Baixa/Santa-Clara.
Considerando o seu contexto urbano refletido numa valência imaterial, tal poderia ser
verificado através das dinâmicas socioculturais e dos usos que se iam estabelecendo e sendo
realizados na valência material dos espaços urbanos, traduzindo para o espaço físico as
novas formas de estar e de viver a cidade.
30 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Figura 2. Localização da área UC-AS e da sua zona de proteção, na LPM. Imagem: Hugo Andrade, UC.
Alguns acontecimentos visíveis terão sido determinados durante e pelo processo de can-
didatura de Coimbra a PM (1982-2013), no contexto urbano definido, por ser um espaço
privilegiado para se criar sinergias capazes de correlacionar a dinâmica comunidade-território.
A proteção e a salvaguarda de patrimónios ou a reabilitação e a requalificação de equipamentos
e espaços públicos ou áreas urbanas podem ser verificadas, por toda a área afeta à área PM. Mas
também podem ser verificadas ações de proteção e salvaguarda, de requalificação e reabilitação
em espaços dentro da área urbana de influência e adjacente à área PM, como a zona ribeirinha,
frente de rio ou ainda a margem de Santa Clara (Capela de Campos & Murtinho, 2017a).
As transformações, que a cidade vinha absorvendo em cada contemporaneidade, permi-
tiam estabelecer continuidades urbanas de permanência, de atravessamentos e de vivência ao
longo dos seus espaços, promovendo o conhecimento para uma compreensão do território,
aos seus habitantes, residentes e utilizadores. Aqueles que promoviam, principalmente, o ca-
minhar, o percorrer, o deambular pelo espaço urbano e que, em simultâneo, fortaleciam as
suas continuidades, ou seja, aqueles que participavam na ação da cidade (Certeau, 1998) iam
definindo protocolos de identidade ao longo do espaço, transformando o existente numa con-
dição de cultura (Botta, 1996), dinamizando as relações entre o indivíduo, a comunidade e a
sociedade com o território. Práticas que, nesse sentido, iam criando uma diversidade de visões
individuais, criando e estabelecendo laços comuns, definindo um lugar com singularidade.
Para além de todas as manifestações enunciadas, o campo da arquitetura ensinava, há
muito, a necessidade de usar o espaço – para além da questão física, havia ainda a questão
dimensional espácio-temporal – para serem estabelecidas as inter-relações necessárias à
compreensão do território onde estava inserido o património cultural. No entanto, era por
se estabelecerem estas inter-relações entre o indivíduo-comunidade-sociedade com o terri-
tório, em diversos locais e em diversos momentos, que se permitia ir estabilizando a PUH
e salvaguardando a sua integridade e a sua autenticidade, que se assumiam dinâmicas14 no
processo evolutivo da criação de uma identidade do lugar e do seu contexto urbano.
No âmbito do PM estão a ser desenvolvidas e estudas algumas ferramentas, metodolo-
gias e taxonomias, que se pretendem operativas, para a aplicação da abordagem da PUH,
na gestão e no planeamento integrado dos recursos patrimoniais e das dinâmicas urbanas,
não tanto sobre as transformações que vão sendo realizadas sobre o território, mas sim,
sobre a orientação e o enquadramento, em que essas transformações devem ser realizadas.
31 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Apesar de cada caso ser único, o processo de candidatura de Coimbra à inscrição na LPM
não deixa de ser um laboratório, cujos resultados de experiências e dinâmicas próprias
podem ser um contributo válido para futuras candidaturas semelhantes ou, ainda, para se
poderem ajustar e melhorar metodologias e práticas utilizadas na gestão integrada de sítios
classificados em contexto urbano e em futuras intervenções urbanas. Conforme já foi refe-
rido, é sobretudo um investimento na transformação das abordagens e, consequentemen-
te, das metodologias de proteção e salvaguarda do património, do que sobre o património
em si e, por isso mesmo, podem ser extensíveis a qualquer contexto urbano.
integrante e, no limite, pelas alterações que poderia impor à imagem da própria cidade.
A Associação RUAS15 (gestora do bem UC-AS) respondia a todas as questões e dúvidas, de forma
justificada, recorrendo aos regulamentos e instrumentos legais em vigor à data, nomeadamente:
15
A Associação RUAS – Recriar a Universidade, Alta e Sofia foi fundada em janeiro de 2012, pela UC, a
Câmara Municipal de Coimbra (CMC), a Direção Regional de Cultura do Centro, com poder executivo
e a SRU Coimbra Viva (Sociedade de Reabilitação Urbana) sem poder executivo, por serem as quatro
entidades com poderes e responsabilidades sobre a área candidata e, assim, poder ser feita uma gestão inte-
grada. A Associação RUAS contava com o trabalho de um quadro de técnicos, de áreas como arquitetura,
engenharia civil, arqueologia, relações internacionais, administração pública e economia, previstos para os
três Gabinetes Técnicos – de Estruturação Urbana (GTEU), de Acompanhamento do Plano (GTAP) e de
Informação, Valorização e Salvaguarda (GTIVS), afetos à UC ou à CMC. Além disso, a Associação RUAS
contaria com o apoio de um quadro de peritos de várias entidades externas à estrutura de gestão (como do
ICOMOS-Portugal, a título de exemplo). Cf. (RUAS – Raimundo M. Silva, 2012, 2013).
1) A Lei nº 107/2001, de 8 de setembro e o Decreto-lei nº 309/2009, de 23 de outu-
bro – que estabeleciam a lei de bases e a sua regulamentação sobre o regime de proteção e
valorização do património cultural português;
2) O Regulamento Municipal de Edificação, Recuperação e Reconversão Urbanística da
Área afeta à candidatura da Universidade de Coimbra a Património Mundial da UNESCO,
incluindo a Zona de Proteção, publicado por Aviso nº 2129/2012, no Diário da República
nº 30/2012, Série II de 10 de fevereiro e que, se encontrava em vigor desde Março de 2012;
3) O Plano Diretor Municipal de Coimbra (PDM), que estaria em fase de revisão,
sendo expectável a sua conclusão até ao final de 2013 e a sua publicação em 201416; e,
4) O Plano Estratégico para a Cidade de Coimbra, aprovado pela Câmara Municipal
de Coimbra (CMC) e publicado no Edital nº 21/2010, onde elencava os quatro grandes
objetivos estratégicos para Coimbra17, com a definição das Áreas de Reabilitação Urbana.
Estes quatro instrumentos seriam, de acordo com a resposta da RUAS, suficientes e
adequados para garantir a devida proteção e salvaguarda do bem UC-AS, da sua área de
proteção e da sua área urbana adjacente18. Tal facto era corroborado pelos limites definidos
nos vários instrumentos legais em vigor e pela sua gestão concentrada e integrada numa só
entidade, a Associação RUAS. Além disso, anexava um estudo, para justificar que a combi-
nação entre a proteção do bem UC-AS, com a proteção prevista no PDM – a definição da
zona do Centro Histórico com os seus três graus de proteção – era a adequada e assegurava
as preocupações sobre os possíveis impactes visuais que pudessem ser equacionados por
qualquer intervenção na área urbana em causa.
Esse estudo baseava-se no sistema de vistas ou tudo aquilo que era visível a partir de
vários lugares (viewshed), constituído por três elementos essenciais: um observador, um
ponto ou lugar de observação e uma área de observação.
A área de observação era determinada com recurso a uma ferramenta de projeto urbano
e de arquitetura paisagística – a Zona de Influência Visual (Zone of Visual Influence – ZVI),
também denominada por Zona de Impacto Visual –, que se caracterizava por considerar a
área geográfica que era visível a partir de um determinado ponto, a partir da qual se estabelecia 33 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
uma bacia visual (visual bay), que era a área física, na terra, na água ou no ar, visível pelo olho
humano (assumido, geralmente, com 1,65 metros de altura) a partir de determinado ponto
ou lugar (LI & IEMA, 2013). Com a aplicação da ZVI verificavam-se as áreas privilegiadas de
16
Tal como previsto, o PDM era anunciado por Aviso nº 7635/2014, no Diário da República nº 124/2014,
Série II de 1 de julho.
17
Os objetivos estratégicos estipulavam: «A) desenvolvimento integrado dos activos da saúde, numa envolvente
empresarial dinâmica; B) densificação económica da região, com empresas integrando um elevado grau de
I&D; C) revitalização de Coimbra como destino turístico diferenciado; D) redefinição urbana da Cidade, po-
tenciando os actuais vazios urbanos e privilegiando a centralidade do Rio Mondego» (CMC, 2010, pp. 21–24).
18
A inscrição da UC-AS na LPM, em 22/06/2013, era publicada no Anúncio nº 14917/2013, no Diário da
República nº 236/2013, Série II-B de 5 de dezembro, constituindo-se como mais um instrumento legal de
proteção e salvaguarda da área PM.
visualização e perceção, entre um lugar e o seu contexto territorial, permitindo, assim, avaliar
e determinar as áreas sujeitas a um maior impacte visual em caso de intervenções urbanas.
Cada bacia visual era definida e registada segundo as coordenadas do ponto ou lugar de
observação, sendo que, para o caso de estudo tenham sido escolhidos os lugares preferenciais de
visualização sobre o bem classificado, como o caso de ruas, praças, percursos, eixos viários, mi-
radouros, edifícios e espaços públicos, terraços, varandas ou colinas; mas também seriam identi-
ficados os lugares preferenciais de visualização do contexto urbano a partir do bem classificado.
Os procedimentos metodológicos aconteciam por várias etapas. A primeira baseava-se
nos levantamentos cartográficos, topográficos e altimétricos do existente em modelação tri-
dimensional, constituindo um Modelo Digital de Superfície (Digital Surface Model – DSM)
incluindo todos os detalhes existentes à superfície terrestre (volumes construídos e vegeta-
ção), onde os dados eram recolhidos com o recurso a um Sistema de Informação Geográfica
(Geografic Information System – GIS) e tecnologia LiDAR de leitura laser e introduzidos no
modelo digital. Na segunda etapa, com o modelo tridimensional estabelecido, eram feitas
as leituras de amplitude de visibilidade para vários pontos ou lugares de observação, previa-
mente identificados, ou seja, para cada lugar escolhido era definida uma bacia visual, que
determinava o alcance visual territorial desse lugar. Posteriormente, eram feitas análises aos
dados recolhidos e, através de sobreposições de resultados, verificavam-se as manchas que,
em simultâneo, correspondiam à bacia visual comum e, assim, definir uma maior ou menor
amplitude visual entre os vários pontos de visualização, definindo a magnitude da ZVI.
As conclusões do estudo assumiam que a área de maior impacte visual passível de ser preju-
dicial ao bem UC-AS, correspondia à coincidência de área entre a magnitude da ZVI e os limites
definidos pela área de proteção do Centro Histórico, definido no PDM, ficando, desta forma,
justificada a não necessidade de expansão dos limites da área de proteção do bem UC-AS.
Todavia, a possibilidade de utilização desta ferramenta de projeto de um modo perma-
nente, pelo menos, nestes contextos urbanos, deveria ser equacionado, tendo em conta as
vantagens que apresenta (Capela & Murtinho, 2014).
O sistema de vistas estabelece o princípio do ver e ser visto em simultâneo, assumindo
34 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
a sua valência pública e introduz o conceito de inter-visibilidade (Lalana Soto & Santos y
Ganges, 2011), em que a vista sobre o bem é essencial mas, a vista a partir do bem, também
é relevante para a sua compreensão e identidade dentro do seu contexto urbano (Fig. 3).
A inter-visibilidade acrescenta uma complexificação na abordagem da compreensão e do en-
tendimento do bem, uma vez que, a importância das vistas para além de refletirem princípios
de composição visual inerentes à valência material do bem em si, também refletem os valo-
res19 associados ao bem, mais subjetivos e sujeitos a escolhas e interpretações (Beaudet, 2008).
19
Relembre-se que o tema geral do congresso científico e Assembleia Geral do ICOMOS, realizado em
Florença entre 10 e 14 de novembro de 2014, tinha como título Heritage and Landscape as Human Values,
sendo que o seu quinto sub-tema abordava, precisamente, Emerging tools for conservation practice, onde esta
problemática estava a ser debatida. Cf. (Capela & Murtinho, 2014).
Figura 3. Vista sul da Torre da UC. Fotografia: FG+SG, UC.
Considerações finais
36 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
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40 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
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Sofia Salema
Centro da História da Arte e Investigação Artística (CHAIA), Departamento de
Arquitectura da Universidade de Évora
Fernando Baptista Pereira
Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes de Lisboa (CIEBA),
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa,
Nos séculos xiii e xiv, promoviam-se na cristandade as relações entre nobreza, santi-
dade e caridade, especialmente relacionadas com as Ordens Franciscanas. Diversas casas
de nobreza seguiam de perto o exemplo de Santa Isabel da Turíngia, em particular os seus
descendentes. A obtenção da canonização, e por consequência do status de beata stirps,
enfatizava a importância político-religiosa destas famílias, cuja hagiografia frequentemen-
te utilizavam na Diplomacia. Entre seus descendentes canonizados figuram, São Luís de
França, São Luís de Anjou e a Rainha Santa Isabel de Portugal. (Dupuy 2002)
O culto da Rainha Santa Isabel nasce por vox populi, foi posteriormente cultivado
44 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Desde 1514 que o ensino da cosmografia era leccionado no Armazém da Guiné e da Índia.
Em 1562 D. Catarina de Áustria oficializa a Escola de Moços Fidalgos do Paço da Ribeira. A esco-
la preparava jovens nobres, entre os quais D. Sebastião, no estudo da matemática, cosmografia,
geometria e arquitectura. Em 1576 António Rodrigues (Mestre de todas as Obras Régias e das
Obras de Fortificação) produz para as aulas diversos tratados manuscritos e sebentas das aulas
teóricas de Arquitectura Militar, com base em Vitrúvio e nos Primo Libro e Secondo Libro di
Prespectiva di Sebastian Serlio Bolognese. Esta estrutura oficial de ensino, consolidada desde
1562 em Portugal, foi transferida para Madrid por Filipe I e Juan de Herrera, após a união da
Coroas, criando no Alcázar a Academia de Matemáticas e Arquitectura (1583). (Moreau 2011)
Durante o Reinado de Filipe I é criada a Aula de Architectura do Paço da Ribeira,
ou Aula do Risco (1594), cujo primeiro mestre de Arquitectura foi Filipe Terzi, seguido
por Nicolau de Frias (1598), Matheus do Couto o velho (1631) e António Torres. Era
composta por três alunos remunerados, com experiência suficiente em arquitectura, que
prestavam serviço ao Gabinete de Obras D’el Rei. Estes aprendiam as questões teóricas da
46 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Os Torriani/Turriano;
Engenheiros e Arquitectos ao serviço dos Habsburgo e dos Bragança
No séc. xvi artistas italianos ao serviço da coroa moviam-se entre as cidades do Império
Habsburgo onde formavam as suas oficinas e famílias. Na época moderna não existiam
quaisquer garantias de cuidados sociais, indigentes dependiam da caridade que era um con-
ceito diferente do direito social actual. Os laços familiares eram a base sólida para negócios
eficazes, os quais se apoiavam na confiança e no bem da comunidade. Na maior parte dos
contractos verifica-se de facto que as responsabilidades legais e dívidas de determinado
artesão ou mestre eram também imputadas aos seus herdeiros, sendo muitas vezes estes
também assinados por suas esposas. Por sua vez o ingresso de familiares em cargos na Corte
era uma garantia da execução de dívidas que o Rei tivesse para com estes. A prática do
nepotismo era portanto usual, sendo considerada estabilizadora neste contexto político/
/social. Este é também o caso da família Turriano. (Zanetti 2015)
Juanelo Turriano (engenheiro, matemático, mecânico, astrónomo e Relojoeiro-Real;
Cremona1500 - Toledo 1585) era um artesão-empreendedor que se tornou uma celebri-
dade ao serviço de Carlos V e de Filipe I de Portugal, tendo durante essa altura construído
os relógios astronómicos mais importantes do Renascimento e participado na reforma do
calendário do Papa Gregório XIII. Nas obras reais de engenharia, foi o autor da maquinaria
hidráulica que elevava água do Tejo ao Alcázar de Toledo, os célebres Los Artificios (1569).
Era mester e amigo do arquitecto Juan de Herrera, tendo privado com personagens ilustres
como Joana de Áustria, sobretudo devido à fama internacional que adquiriu. (Garcia 2008)
O cargo de Relojoeiro Real obrigava Turriano a trabalhar continuamente para o Rei,
porém podia angariar e executar trabalhos para outros clientes, tendo patenteado durante
esse período diversas invenções para as cidades de Veneza, Mântua, Florença e Roma.
Como mestre da sua oficina, dependeu de um conjunto de oficiais de forma a poder
dar resposta às encomendas e ao Imperador. Estes oficiais teriam que dar assistência aos
relógios, à construção e administração dos equipamentos hidráulicos e inspecções técni-
cas (fundição, engenharia hidráulica, topografia, astronomias, entre outras). Entre eles
figuram diversos familiares sendo um deles o seu sobrinho Bernardino Turriano (futu-
ro capitão de Cremona), cujo filho Leonardo será anos mais tarde nomeado do Filipe I
Engenheiro Maior do Reino de Portugal.(Zanetti 2015)
Bernardino Turriano mudou-se para Toledo, a seguir ao nascimento do seu filho
Leonardo Torriani (Cremona 1558 - Lisboa 1628), para aprender os segredos do ofício do
48 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
seu tio, os quais desejava praticar com igual sucesso. É bastante provável que tenha pro-
curado também desta forma ser apresentado à Corte, tal como ocorreu a outros membros
da família. Efectivamente conseguiu trabalhos nas cortes de Emanuele Filiberto (Duque
de Sabóia) e Ottavio Farnese (Duque de Parma e Piacenza), sem no entanto ter adquirido
qualquer sucesso nas suas empresas. Porém, Bernardino deve ter capitalizado dos seus laços
familiares para ajudar o seu filho, é possível que este tenha sido recomendado na Corte em
Espanha por intervenção seu tio-avô Juanelo. (Vigano 2010)
Durante a Dinastia Filipina a importância da defesa dos territórios dos Habsburgo
implicou a contratação de diversos engenheiros-militares estrangeiros. Leonardo Torriani,
antes de ser chamado à Península Ibérica, já tinha adquirido fama internacional ao serviço
do Imperador Rodolfo II de Habsburgo. Em 1584 é nomeado por Filipe I de Portugal
Engenheiro do Rei na Ilha de La Palma, com instruções de construir um molhe e um tor-
reão. Passados três anos foi encarregado de visitar todas as fortificações do Arquipélago
das Canárias para avaliar e desenvolver o sistema defensivo. A maioria dos seus projectos
não será edificada, tendo no entanto publicado a Descripción e Historia del reino de las
Islas Canarias (As Afortunadas 1588-1590).(Fig. 1) Em 1590 efectua os primeiros aponta-
mentos de carácter meteorológicos sobre o Pico de Teide, sendo o pico do vulcão um dos
pontos mais altos desde a antiguidade.
Figura 1. Mapa das Ilhas das Canárias associadas ao signo zodiacal de Câncer, segundo Leonardo
Torriani, finais do séc. xvi. (fonte: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, cota Ms. 314, pág. 8.)
Frei João Turriano é o segundo filho do segundo casamento de Torriani com uma por-
tuguesa. Em 1629 professa na Ordem de São Bento, no Mosteiro da Saúde. Segundo al-
guns historiadores inicia os seus estudos continuados na Aula do Risco, onde o pai leccionava
Engenharia e Fortificação. Não obstante ao seu regime de observância e seguindo a longa tra-
dição de herança de cargos públicos, após a morte do pai é nomeado em 1631 por D João IV
para o cargo de Engenheiro-mor do Reino, tendo no entanto sido preterido pelo seu irmão
Diogo Turriano. Durante o serviço à coroa traça diversas fortificações e obras de arquitectura
religiosa, onde a estética resultante de um aprendizado de pai para filho, se encontra presente.
Segundo Fr. Francisco de S. Luiz, Turriano estava “ (…) sempre ocupado nos estudos do desenho,
de obras de arquitectura, a que se inclinavam os papéis de seu pai.”. (Abreu 2003)
Na Guerra da Restauração D. António Luís de Meneses, Conde de Cantanhede, im-
pulsiona e superintende a continuação das obras da defesa da Barra do Tejo, tendo con-
tando com o contributo inicial do Engenheiro das Fortificações da Barra, Mateus do Couto
(o velho). Em 1643 na sequência da administração danosa de Mateus Couto (o qual mais
tarde será ilibado de traição), D. João IV pede a nomeação de um engenheiro acima de
qualquer suspeita e de nacionalidade portuguesa. Terá sido por conhecer em pormenor o
trabalho do pai que Frei Turriano assume após a morte de Diogo Turriano a direcção das
obras de São Julião da Barra (O Escudo do Reino) e desenha o Forte do Bugio e o Forte
de São Bruno de Caxias. Para além das obras no Tejo acompanhou e deu pareceres das
Obras da Praça Forte de Peniche, do Forte de São Francisco Xavier no Porto e projectou
igualmente o Forte de Nossa Senhora das Neves em Matosinhos.(Boiça and Barros 2004)
Apesar do conhecimento e experiência de Frei Turriano em Engenharia Militar, o
maior número de projectos da sua autoria são sobretudo de arquitectura religiosa, incluin-
do diversos dormitórios: o do Mosteiro de Santa Maria em Alcobaça, o das Inglesinhas
e da Estrela em Lisboa, o de Odivelas, o Travanca e o de Semide.(Abreu 2003) Terá sido
porventura a necessidade urgente de construir um dormitório para albergar as freiras do
Convento de Santa Clara de Coimbra, que é emitido o alvará de 1647 de sua Majestade
para a construção do novo Convento no Monte da Esperança, nomeando para a gestão
financeira da obra o Conde de Cantanhede: “…do meu Conselho de guerra e vedor da
minha fazenda (…) que terá particular cuidado e vigilância de ver e examinar como e de que
maneira (…) se despende o dinheiro (…) ”. (Silva 2000) É sobre a sua autoridade que no
ano seguinte delega que o Padre Frei João Turriano faça a traça do Mosteiro.
A documentação relativa à construção do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova mostra de
facto que, apesar da multiplicidade de arquitectos e engenheiros militar que sucederam a
Frei Turriano, a Planta Universal e infra-estruturas, tais como a “ (…) obra e canos de água
(…) ”, são da sua autoria. (Silva 2000)
D. João IV, no contexto da política de renovação das casas religiosas e devido ao asso-
reamento do velho Mosteiro de Santa a Clara-a-Velha, ordena a construção do Mosteiro de
Santa Clara-a-Nova para acolher o corpo de “sua Avó e Senhora”. A necessidade de afirmação
política da Dinastia Bragantina resultou num novo programa construtivo e na busca de um
novo figurino estético na arquitectura nacional. Esta corrente estética, nascida do utilitarismo,
da escassez de recursos e da falta de encomendas, transita do estático maneirismo para um
decorativismo “epidérmico” barroco. A arquitectura muitas vezes foi exercida por projectistas
pertencentes às Ordens Religiosas, onde permaneciam em observância. É neste enquadra-
mento que se desenvolve a obra de arquitectura religiosa de Fr. João Turriano. (Abreu 2003)
Em 1648, é determinado pelo Superintendente das obras do cenóbio que o Padre
Frei João Turriano execute a traça para o dito Mosteiro, a qual segue as orientações régias
de albergar sepulturas de reis e da construção de um edifício anexo destinado a Paço Real.
As obras de fundação do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova foram condicionadas pelo es-
forço de guerra, como mencionado no registo do Alvará de Sua Majestade (1647), o qual
salientava que “(…) não aja nisto superfluidades gastos nem despesas de que Deus se não
servira nem o aperto das guerras do tempo prezente o permitem.”(Silva 2000)
O conhecimento teórico que Frei Turriano adquiriu e aplicou na arquitectura deste
cenóbio pode-se vislumbrar através dos livros e tratados que lhe pertenceram. Ao falecer,
a 9 de Fevereiro de 1679, a sua biblioteca ficou na posse do Colégio de São Bento de
Coimbra, sendo composta por diversos exemplares que adquiriu em vida, para além de
outros que herdou do pai.
Tratados de arquitectura militar como o Due Dialoghi di M.Iacomo de’ Lanterni da
Paratico, bresciano (à ragionare del modo disegnare le piante delle fortezze secundo Eulide,
Venezia 1557) ou a Nuova inventione de fabricar fortezze (Giovanni Battista Belici, 1598),
estão repletos de notas marginais suas, as quais se estendem para fora dos limites dos fo-
lios. No seu catálogo destacam-se igualmente dois conhecidos tratados arquitectónicos,
o Quattro Libri dell’Architettura de Andrea Palladio (Marco Antonio Brogiollo, Veneza,
1642), e o Tercero y quarto libro de architettura de Sebastiano Serlio (Francisco Villalpando,
tradução castelhana, 1573), os quais estudou com minúcia (Abreu 2003).
No Quattro Libri de Andrea Palladio, cuja edição é contemporânea à data de constru-
ção do Mosteiro de Santa Clara, verifica-se um estudo mais aprofundado, sugerindo por
vezes uma correlação entre as partes que anota e o Mosteiro. Preocupações presentes no
projecto, como a orientação solar da livraria, a disposição e proporção das salas nobres, a
52 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Figura 3 – Tercero y quarto libro de architettura, Sebastiano Serlio, tradução castelhana Francisco Villalpando,
1573.(fonte: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra,cota R-61-1)
A solução que mais tarde seria adoptada no esquema compositivo do claustro (Fig.4)
53 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
encontra-se espelhada nessas recomendações serlianas, sobretudo no que concerne às estru-
turas porticadas, das quais salientamos: ”se os arcos queremos hazer, há de ser sobre Pilastrones
quadrados. Y demas de esto sobreponer o arrimar a ellos las columnas redondas para mas
ornato.” (Abreu 2003). Considerações técnicas presentes na obra de Serlio, tais como o
dimensionamento de um sistema de arcaria em pontes ou o cravar de gatos metálicos na
pedra dos suportes de um claustro e o seu tratamento (de forma a que não se crie ferrugem
nas paredes), poderão ter sido tecidas por Fr. Turriano no projecto de claustro.
Pode-se concluir que a importância do estudo da robustez dos elementos portantes de Serlio
por Fr. João Torriano “ (…) torna-se num axioma, que bem poderia ser ilustrado pela construção do
claustro de Coimbra, de solidez filiada no exercício da arquitectura militar.” (Abreu 2003)
Figura 4. Modelo 3d do Claustro Serliano do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova,
antes da reforma barroca. Proposta do autor, (2017).
Conclusão
do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova. É sobre a sua tutela que duas famílias de engenheiros
militares e arquitectos são recrutados para trabalhar neste mosteiro, os Turriano e mais
tarde os Couto, já conhecidos na corte por descenderem e terem acompanhado os autores
dos projectos de defesa da Barra do Tejo.
Frei João Turriano, após treze anos de serviços prestados à coroa, troca a arquitectura
pela docência da Cadeira de Matemática na Universidade de Coimbra. Quando falece
(com 70 anos) há muito que Mateus Couto (sobrinho) superintendia a obra do Mosteiro
de Santa Clara-a-Nova. Apesar de ser o autor da Planta Universal, a documentação que se
conhece da obra não refere que Turriano alguma vez a tenha dirigido ou visitado, muito
menos a do claustro que se inicia 20 anos depois da sua morte.
Após Turriano abandonar o projecto, Mateus do couto (que recebia mercês de D. João
IV para estudar arquitectura com o tio, Mateus do Couto o Velho), é chamado para dirigir
a obra no Mosteiro. Após a morte do tio sucedeu-o no ofício de Arquitecto das Obras das
Ordens Militares, sendo promovido ao ofício de Arquitecto e Mestre das Obras dos Paços
de Salvaterra e Almeirim e Real Mosteiro da Batalha. Durante a substituição do Marquês
de Marialva pelo Marquês do Alegrete, na superintendência da obra de Santa Clara, conti-
nuará a trabalhar nas medições dos trabalhos efectuados no Mosteiro, sendo sucedido nos
seus diversos cargos, pelo seu protegido, Manuel do Couto.
Esta inter-relação entre arquitectos e engenheiros-militar no projecto do Mosteiro irá
reflectir-se na obra que hoje podemos observar erguida. Apesar de se apresentar com uma fei-
ção resultante das reformas Joanina e Pombalina, muito ao estilo de Custodio Vieira e Carlos
Mardel, pode-se verificar que os elementos estruturais são mais próximos da cultura arquitec-
tónica militar de feição maneirista. As tipologias que observamos surgiram com as diversas
reformas barrocas, resultantes da inadequação do modelo original, tendo parte da estrutura
original sido alterada de forma a adaptar melhor o Mosteiro às necessidades das Clarissas.
Podemos apenas supor que as proporções e a cenografia do projecto do Mosteiro de
Santa Clara-a-Nova, que muitas vezes se aproximam das empregues num Palácio da Fé,
poderão estar relacionadas com a necessidade que os Bragança tinham de projectar uma
imagem forte de patrocínio Régio.
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Turriano.
Introdução
da Europa. Nesse sentido, estudos têm vindo a apontar para a existência de uma coinci-
dência entre cada inscrição na LPM – devido ao mediatismo que era gerado à sua volta – e
o aumento do número de visitantes desse sítio2. Consequentemente seria expectável que
qualquer inscrição na LPM se traduzisse numa dinâmica geradora de desenvolvimento,
não só ao nível do bem classificado e dos seus perímetros definidos como zona de proteção,
mas também, naquela que poderia ser considerada a sua área de influência territorial, onde
diversas atividades económicas poderiam ser potenciadas. Quando os bens classificados
1
Cf. Capela de Campos, J e Murtinho, V. «Paisagem Urbana Histórica, a Lusa Atenas como matriz cultural
de Coimbra», no presente número da publicação do Centro de Estudos Ibéricos.
2
Cf. (Rebanks Consulting Ltd & Trends Business Research Ltd, 2009; Salazar, 2010).
se localizassem num contexto urbano, então o desenvolvimento potenciado também se
assumiria como tal. Dentro do contexto urbano material ou físico – na área do património
classificado, sua zona de proteção e área de influência urbana – seria verificado um desen-
volvimento baseado, sobretudo, na proteção e salvaguarda do património e na reabilitação
urbana, tanto ao nível do parque edificado como dos espaços públicos; dentro do contexto
urbano imaterial – nas dinâmicas quotidianas da vida e dos usos espaciais (que se manifes-
tam na vertente material do contexto urbano) – o desenvolvimento urbano seria verificado
nas atividades turístico-culturais e novas formas de consumo da sociedade contemporânea
(Capela de Campos & Murtinho, 2017a).
Este trabalho pretende refletir sobre o contributo que uma candidatura patrimonial
em contexto urbano pode acrescentar para o desenvolvimento e para a gestão de uma
cidade, através das sinergias geradas pela sua circunstância e que vão influenciando, poten-
ciando, estabelecendo e transformando algumas dinâmicas socioeconómicas, no seu terri-
tório de influência. A abordagem metodológica será qualitativa e realizada com recurso a
uma analogia entre dois estudos de casos localizados em diferentes contextos territoriais,
nomeadamente, os casos ibéricos inscritos especificamente na categoria das Universidades
Património Mundial (UPM), da LPM: a Universidade e Recinto Histórico de Alcalá de
Henares (URHAH) e a Universidade de Coimbra – Alta e Sofia (UC-AS).
Embora as datas de inscrição dos dois casos possam ter alguma influência nos resulta-
dos – pela evolução que o próprio discurso filosófico-concetual no âmbito do PM sofreu
entre as datas de inscrição de uma e outra na LPM, 1998 e 20133 –, as práticas processuais
e a linguagem padronizada e promovidas pela inscrição dos bens na LPM são as mesmas,
ou seja, os dois casos foram inscritos na mesma categoria patrimonial e foram atribuídos
os mesmos critérios de justificação de Valor Universal Excecional (VUE) do bem, pela
UNESCO. Sobre esta particularidade da candidatura dos dois casos de estudo, num pri-
meiro momento, é feito um esclarecimento sumário desta condição, com o objetivo de
melhor explicitar e enquadrar os dois casos de estudo.
59 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Todavia, cada um dos casos tem o seu contexto geográfico, histórico, político, social,
económico e cultural, acrescentando ainda as suas próprias trajetórias evolutivas antes e
depois da inscrição na LPM. Desta forma, considera-se pertinente enunciar os parâmetros
e justificações que foram estabelecidos como responsabilidade e compromisso de futuro,
nas respetivas candidaturas a PM de Espanha e de Portugal. Com este tópico pretende-
-se aferir de que modo é que tais enunciados se traduziram em contributos ativos para a
promoção da coesão do território de influência de cada caso de estudo, tendo em conta os
aspetos evolutivos de contextualização para cada uma das universidades em estudo.
1998 Universidade e Recinto Histórico de Alcalá de Henares Alcalá de Henares, Espanha ii, iv, vi
2000 Cidade Universitária de Caracas Caracas, Venezuela i, iv
2007 Campus Central da Cidade Universitária da Universidade Cidade do México, México i, ii, vi
Nacional Autónoma do México
2013 Universidade de Coimbra – Alta e Sofia Coimbra, Portugal ii, iv, vi
4
A CPM1972 considera dez critérios justificativos do VUE, sendo que, os primeiros seis (i, ii, iii, iv, v e vi)
correspondem à justificação de bens culturais e os últimos quatro (vii, viii, ix e x) correspondem à justificação
de bens naturais.
5
Uma das propostas equacionadas passava pelo incentivo de se inscreverem bens em novas categorias patri-
moniais ou em categorias sub-representadas, para além daquelas que seriam recorrentemente abrangidas,
como Cidades/Centros Históricos ou Monumentos (Capela de Campos & Murtinho, 2017c).
Dos 1073 bens inscritos na LPM até 2017 e distribuídos por 167 países, só cinco seriam
inscritos sob a categoria Universidades, sendo este detalhe, a causa de distinção que permitia
diferenciar estes casos. Todos os outros exemplos de universidades presentes na LPM esta-
vam dissimulados em contextos urbanos mais vastos e inscritos sob outras categorias6, sendo
essas categorias designadas como Cidades históricas ou Centros históricos, entre outras. Desta
forma, todas as outras instituições de ensino superior faziam parte integrante de um valor
diferenciável do valor específico atribuído às universidades por si só. Esta variação na com-
preensão das várias categorias patrimoniais, se por um lado potenciava uma maior capacidade
de abranger uma maior diversidade de bens culturais, naturais e mistos, conforme estipulado
pela CPM1972, por outro, estimulava uma maior exigência na justificação do VUE, preci-
samente, pela maior especificidade atribuída pela diferenciação de categoria. Por esta formu-
lação, considerava-se pertinente fazer a analogia dos dois casos específicos das universidades
europeias e ibéricas inscritas sob a categoria UPM – a URHAH e a UC-AS – às quais havia
reconhecido um VUE, justificado segundo os mesmos critérios ii, iv e vi (Quadro 1), tanto
pelos contributos e influências que tiveram ao longo dos séculos como também, por aqueles
que continuam a ter, tanto numa escala local, como numa escala global.
O critério ii justificava o VUE pelo facto de as universidades testemunharem uma troca
de influências considerável, durante um determinado período ou numa área cultural espe-
cífica do mundo, no desenvolvimento da arquitetura ou da tecnologia ou das artes monu-
mentais, da planificação das cidades ou da criação de paisagens (UNESCO WHC, 2016,
p. 41). Este critério assumia que o bem podia ser, não só, um gerador urbano fundamental
para a evolução morfológica da cidade e do seu território, através do plano da cidade e da
sua paisagem urbana histórica, mas também, da sua área cultural: Alcalá de Henares foi a
primeira cidade planificada da idade moderna para albergar uma universidade, cujo dese-
nho servira de modelo para outros centros universitários, e Coimbra foi durante séculos
a única universidade portuguesa e do mundo lusófono. A temática cultural, nestes casos
ibéricos, abrangia uma área global, sendo que no caso espanhol, tal era mais evidente e
61 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
concentrado nas américas e, no caso português, mais diversificado e pontuado pelo mundo,
decorrente dos seus períodos históricos referentes aos descobrimentos marítimos. Terá sido
nestes períodos que as suas influências mais se fizeram sentir sob diversas geografias pelas
De vinte e seis universidades identificadas na LPM, em atividade ou não, vinte e uma fazem parte de bens
6
mais vastos e inscritos sob as categorias: Centro histórico (8), Cidade histórica (6), Cidade colonial (1),
Conjunto histórico (1), Conjunto religioso (1), Conjunto monumental de época (1), Sítio arqueológico
(1), Monumento (1) e Jardim botânico (1). Para o caso ibérico, para além da URHAH e da UC-AS, foram
inscritas: em 1985, a Universidade de Santiago de Compostela inserida na área PM denominada Cidade
Histórica de Santiago de Compostela (Espanha); em 1986, a Universidade do Espírito Santo inserida na
área Centro Histórico de Évora (Portugal); em 1988, a Universidade de Salamanca inserida na área Cidade
Histórica de Salamanca (Espanha); e, em 2003, a Universidade Internacional da Andaluzia inserida na área
Conjunto Monumental Renascentista de Úbeda e Baeza (Espanha).
suas práticas de expansão e de urbanização, que eram contemporâneas à implantação e
estabelecimento definitivo das duas universidades ibéricas, no seu espaço atual.
Em simultâneo, o critério iv avaliava um exemplo excecional de um tipo de constru-
ção ou de um conjunto arquitetónico ou tecnológico ou de uma paisagem, ilustrando um
ou vários períodos da história humana (UNESCO WHC, 2016, p. 41). Este critério era
suportado, no caso de Alcalá, pelo campo concetual do desenho da cidade ideal, sendo a
imagem da Cidade de Deus a sua inspiração para a criação de um modelo urbano, que
depois seria disseminado pelo mundo. No caso português, o critério iv era suportado pela
miscigenação urbana entre a universidade e a cidade, durante sete séculos, onde a evolução
de uma seria o reflexo da outra e, por conseguinte, o reflexo da história da arquitetura,
da universidade, da cidade, do país, da europa e do mundo.
Por fim, o critério vi implicava estar, direta ou materialmente, associado a aconteci-
mentos ou a tradições vivas, a ideias, a crenças, ou a obras artísticas e literárias, com signi-
ficado universal excecional (UNESCO WHC, 2016, p. 41). O caso de Alcalá representava
a cidade do saber e das artes como centro de influência na língua espanhola e berço de
Miguel de Cervantes e da sua obra-prima D. Quixote. No caso de Coimbra, a sua univer-
sidade contribuía para formar elites de todo o mundo lusófono, das artes às humanidades e
às ciências, tendo várias das suas tradições seculares sido adotadas por outras universidades,
para além do espólio académico e universitário único.
Nesta enunciação sumária dos critérios justificativos do VUE de cada um dos bens, se
depreendia que, apesar de serem os mesmos para os dois casos, cada critério era lato o sufi-
ciente para poder ser adaptável a cada caso. Nesse sentido, a capacidade de demonstração e de
justificação do VUE do bem era, assumidamente, uma responsabilidade do Estado-membro
proponente da candidatura e decorria da própria circunstância e condição do bem em causa7.
7
Quanto à especificidade apresentada nos documentos de candidatura à UNESCO referentes aos bens
URHAH e UC-AS, cf. (Lopes, 2012a; Vallhonrat, 1997).
Research Ltd, 2009; Salazar, 2010). Tal realidade transformava os processos de submis-
são de candidaturas para inscrição de bens na LPM numa competição global (Askew,
2010), explicitando o volume desproporcionado de submissões de candidaturas de bens
em contexto urbano, para atribuição do título da UNESCO8.
Nas respetivas candidaturas de Espanha (URHAH) (Fig. 1) e de Portugal (UC-AS) (Fig. 2)
à UNESCO, para a aferição do VUE, da autenticidade e da integridade que tornam cada
caso único e distintivo, seriam assumidos compromissos e responsabilidades sobre a proteção
e salvaguarda do bem e a sua gestão de futuro, suportados pelas circunstâncias e condicio-
nantes da evolução dos próprios bens e da sua ligação com os seus contextos urbanos.
Figura 1. Planta de inscrição dos limites da área URHAH PM e da sua zona de proteção.
Imagem: WHC-UNESCO, candidatura 876-Espanha, 1998.
10
Em 14 de Abril de 1499, Cisneros lançava a primeira pedra do Colégio Maior de Santo Ildefonso, dando
início simbólico e formal à nova Universidade Complutensis, cuja Constituição era promulgada em 1510.
Cf. (Rivera Blanco, 2014, p. 22).
11
Metade da cidade estava sem uso e abandonada devido à expulsão dos judeus de Espanha, realizada a partir
64 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
de 1496, sendo que, por esse motivo, a atividade comercial tenha conhecido um declínio. A nova realidade
permitia que Cisneros utilizasse a área urbana abandonada para instalar uma verdadeira cidade universitária.
Cf. (Rivera Blanco, 2014; Vallhonrat, 1997).
12
Com a construção de um Colégio Mayor, dedicado a Santo Ildefonso patrono de Toledo, era feita a repre-
sentação da Casa do Saber e do Templo da Sabedoria pela imagem de Jesus, de doze Colégios Menores, cada
um dedicado aos apóstolos e de mais seis Colégios Menores dedicados aos discípulos.
13
A abertura de imprensas permitira a impressão da Bíblia Poliglota Complutense, em 1514-17, considera-
da como um monumento da tipografia moderna, tendo como suporte a obra-prima de Elio Antonio de
Nebrija, a Gramática de la Lengua Castellana, publicada em 1492 (Contreras, 2014), bem como outros
textos do professor das Universidades de Alcalá e Salamanca. Além disso, Alcalá era o berço de nomes maio-
res das letras e das artes, destacando-se Miguel de Cervantes Saavedra com a sua obra-prima El ingenioso
Hidalgo Dom Quijote de La Mancha, de 1605.
14
Em 1770, era instituída a supressão dos Colégios Menores, levando à ruína e abandono muitos dos edifícios
associados a usos e funções complementares aos académicos.
Universidade Central em Madrid, antecipando o fecho da universidade cisneriana, que
apesar do seu prestígio e da sua importância para as artes, a língua e a cultura espanholas,
seria encerrada em 183615.
Em 1851, acontecia o caso que a candidatura da URHAH à UNESCO classificava
como único na história das cidades (Vallhonrat, 1997, p. 19): um grupo de cidadãos de
Alcalá juntava-se e formava a Sociedad de Condueños de los Edifícios que fueron Universidad16,
que iria adquirir o conjunto de edifícios na expectativa do futuro retorno da universida-
de. Este episódio da história de Alcalá revelava-se único e sem paralelo, na forma como
os seus cidadãos reconheciam o valor do seu património arquitetónico universitário e lhe
atribuíam uma conotação de guardião da sua memória cultural coletiva e da sua identidade
como comunidade de Alcalá17 (Vallhonrat, 1997, p. 19). Todavia, só em 1975, Alcalá vol-
taria a sentir o pulsar universitário na cidade, com um polo de ampliação da Universidade
Complutense18 de Madrid, sendo a UA refundada por decreto real, dois anos depois.
A partir de 1985, sob o lema «Al futuro con el passado», a UA ganhava autonomia
académica e promovia um investimento na requalificação do património universitário,
para uma área total de 185 hectares. O lema pretendia representar o projeto de recupera-
ção do passado, através da recuperação e reabilitação do património universitário, para ir
construindo um projeto de futuro nesta nova etapa da universidade cisneriana. Tal esforço
seria merecedor de vários prémios e distinções nacionais e internacionais e no seguimento
de uma colaboração estreita entre cidade e universidade seria desenvolvido o processo de
candidatura à UNESCO, para inscrição do bem URHAH na LPM, o que se verificara,
com efeito, em 5 de dezembro de 199819.
15
Todos os serviços da UA (recursos humanos, universitários e pedagógicos) eram transferidos para Madrid
e a maior parte dos edifícios e bens eram vendidos para pagar dívidas do Estado, outros seriam pilhados e
outros seriam demolidos.
16
A partir desse momento, cabia à Sociedade de Condóminos gerir os bens constituintes da propriedade,
alugando ou cedendo os edifícios a instituições e a privados na condição da sua conservação e manutenção,
65 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
para salvá-los da ruína, já que, a falta de uso tornaria a sua manutenção insustentável. Desta forma, os
edifícios sofreriam transformações para responder a novas funções, convertendo-se em residências, colé-
gios públicos e religiosos, quartéis, grupos desportivos e culturais. Cf. (Clemente San Román & Quintana
Gordon, 2014; Echeverría Valiente, 2005; Vallhonrat, 1997).
17
O início do século xx trazia a Espanha, a necessidade de se proceder à declaração formal do estatuto patrimonial
dos bens e de se continuar a catalogar os bens, que já estava a ser feita desde o século anterior (Martín Jiménez,
2016). Nesse âmbito, o Colégio Maior de Santo Ildefonso era classificado Monumento Nacional, em 1914.
18
A partir da década de 70 do século xx, havia uma significativa expansão universitária em Espanha, abrindo
caminho à expansão da Universidade Central de Madrid, que havia substituído por completo a UA, assumindo
a denominação Universidade Complutense de Madrid como reconhecimento, por um lado, da sua alma mater
cisneriana, mas por outro, como homenagem àquela que tivera um papel tão importante e influente para a
cultura e artes espanholas, europeias e americanas (Clemente San Román & Quintana Gordon, 2014, p. 78).
19
Na 22ª sessão do Comité do PM, realizada em Quioto entre 30 de novembro e 5 de dezembro de 1998,
a URHAH era inscrita na LPM, sob os critérios ii, iv e vi (World Heritage Committee, 1999, p. 31).
Seria com o regresso da universidade à cidade de Alcalá, que se começava a inverter o
ciclo de decadência urbana. A UA não acabara porque a comunidade local se havia identifi-
cado com o seu valor patrimonial, que também era o seu valor urbano. O projeto cisneriano
era, neste sentido, uma matriz cultural do território de Alcalá. E era na sua integridade,
como um todo coerente, que permitia conhecer, reconhecer e compreender o território, toda
a sua evolução e o seu desenvolvimento. Deste modo, era sob a perspetiva da continuidade
que o processo PM era assumido, num percurso pedagógico de negociações entre a cidade e
o governo, que tiveram a proteção e a salvaguarda de património como ação principal, para
alavancar o desenvolvimento local, com base no regresso da universidade à cidade.
66 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Figura 2. Planta de inscrição dos limites da área UC-AS PM e da sua zona de proteção.
Imagem: WHC-UNESCO, candidatura 1387-Portugal, 2013.
No caso português, as circunstâncias e condicionantes da evolução da universidade
com o seu contexto urbano eram semelhantes com o desenvolvimento da sua congénere
castelhana20, a partir do momento em que D. João III decidira sedear a universidade
portuguesa, definitivamente, em Coimbra21.
De um modo resumido, e como referia Dias, podia ser verificado que a influência que a
universidade incutira ao nível do desenvolvimento da cidade, se projetava de modo eviden-
te em três momentos fundamentais, com reflexo direto no desenho urbano (Dias, 1994):
1537 – a transformação de Coimbra em cidade universitária; 1772 – a reforma pombalina;
e, 1941 – a construção da Cidade Universitária do Estado Novo.
Se o primeiro momento contribuía para a estabilização do ensino superior em Portugal,
conseguia-o através dos planos urbanos que eram delineados e construídos para albergar a
comunidade universitária, na Baixa e na Alta de Coimbra, não deixando de ter em conta,
outros parâmetros de substancial relevância urbana e urbanística, nomeadamente, o au-
mento da população que tal decisão implicaria22: a abertura da Rua de Santa Sofia23, na
Baixa de Coimbra, que era equacionada a partir do processo24 da reforma do Mosteiro de
Santa Cruz, abrindo uma rua nova para norte do «tabuleiro da praça»25; e a reforma do
20
Com exceção da fase que promulgara o encerramento da universidade alcalaína, em 1836, e que, como já
se referiu, arrastaria a cidade de Alcalá por um período de decadência urbana até ao período pós-Segunda
Grande Guerra Mundial.
21
Era assumido que o marco fundacional da universidade portuguesa tinha sido a carta régia assinada em 1 de
março de 1290 por D. Dinis – o «documento precioso», segundo António de Vasconcelos (Pimentel, 2005, p.
40) –, criando os Estudos Gerais, na cidade de Lisboa. Não obstante, a universidade era transferida várias vezes
alternando entre Lisboa (1290-1308; 1338-1354; 1377-1537) e Coimbra (1308-1338; 1354-1377; a partir de
1537, o estabelecimento definitivo da UC). Cf. (Lobo, 2010; Lopes, 2012b; Pimentel, 2005; Rossa, 2001).
22
Num quarto de século, a população de Coimbra que rondava os cinco mil habitantes passava a doze mil,
ultrapassando todas as expectativas iniciais de D. João III que, consecutivamente, teria que gizar soluções
e respostas ao sucessivo aumento das necessidades residenciais e logísticas disponíveis, bem como, dotar a
universidade de mais espaços para estudantes e mestres. Cf. (Rossa, 2006).
23
Designação da rua nova, clarificando o carácter e a identidade programática daquela que iria receber as
construções dos colégios para o ensino preparatório e superior (Lobo, 2006). No entanto, apesar deste seu
67 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
carácter ideológico e funcional atribuído ao plano inicial, a sua materialização não se concretizara, por ini-
ciativa régia, ficando, de resto, a qualidade da «sua materialidade arquitectónica e urbanística, pelo seu papel
de ensanche de uma cidade atrofiada» (Rossa, 2006, p. 19).
24
Este processo era iniciado com alguns episódios de impulso urbanístico, com a passagem de D. Manuel pela
cidade em 1502, na viagem de peregrinação a Santiago de Compostela, tendo dado grande destaque tanto à
reforma de Santa Cruz como à reforma do Paço Real, entre outros (Rossa, 2001, pp. 531–611). No entanto,
era já sob o signo régio de D. João III que a reforma do Mosteiro de Santa Cruz era realizada, a partir de
1527, sob a alçada do monge jerónimo frei Brás de Barros, através de uma ensanche quinhentista para norte
do mosteiro (Lobo, 2006). Este empreendimento, onde seriam construídos colégios, teria como propósito
reintroduzir «os estudos no mosteiro crúzio (…) e com a eventual mudança da Universidade para Coimbra»
(Buescu, 2005, p. 199), o que acabaria por se efetivar a 1 de março de 1537.
25
Referência ao «pavimento lajeado, sobrelevado em relação à Praça de Sanção (actual 8 de Maio), que se esta-
beleceu efectivamente defronte dos dois primeiros colégios» (Lobo, 2006, p. 24), o Colégio de São Miguel
e o de Todos-os-Santos.
Paço Real e da Alta, no geral, que evidenciava dificuldades em fixar habitantes e, portanto,
dispunha de espaço ou abandonado ou por edificar (a nascente).
O segundo momento de refundação da universidade decorrera em 1772 com a Reforma
Pombalina do ensino e beneficiando de algumas implementações prévias levadas a termo
por D. João V – alimentadas pelo fluxo de ouro e de pedras preciosas vindas do Brasil –,
nomeadamente, aquela que Germain Bazin consideraria como «a biblioteca mais faustosa
que jamais viu»26, a Biblioteca Joanina construída entre 1717 e 1728. A nova reforma,
assente na extinção do ensino da Companhia de Jesus em Portugal, baseava-se em ações
de renovação estrutural das dimensões pedagógica e científica, tendo como consequência a
valorização das ciências exatas e naturais e dos métodos de observação e de experimentação
(Carvalho, 1996).
Mantendo a leitura sobre o papel da universidade para formar elites, como um ins-
trumento de Estado, o ministro Sebastião José Carvalho e Melo, mais conhecido por
Marquês de Pombal, aprovaria a reformulação de espaços e a construção de novos equipa-
mentos27 para uso escolar. Pese embora a criação de novas relações urbanas pela construção
dos novos equipamentos universitários, sendo a mais evidente (e prejudicial) consequente
da localização do Observatório Astronómico no topo sul do Pátio das Escolas, seria a reforma
ao nível do ensino que mais contribuiria para a evolução da UC.
O terceiro momento de grande impacte na universidade e na cidade, com evidente
transformação urbana e urbanística, prendia-se com as intervenções do Estado Novo de
1941 a 1975 (Capela & Murtinho, 2015). Apesar de Portugal se ter mantido distante das
consequências da Segunda Grande Guerra, a cidade sentira um duro golpe, com a cons-
trução da Cidade Universitária de Coimbra, na Alta. Recorrendo à tábula rasa, o projeto
impunha-se sobre o existente, sem equacionar a relação de escala tanto construtiva como
urbana, que alterava o contexto urbano sócio morfológico e, prejudicava continuidades
espaciais, ainda sentidas naquela que seria, desde 2013, parte da área PM.
No entanto em 1995, por necessidade de expansão para acomodar as engenharias e a
68 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
saúde, a UC avançava com um concurso de ideias para a requalificação dos seus espaços na
Alta, onde um dos seus principais objetivos era reestabelecer as conexões e os laços com a
cidade antiga e existente, procurando minimizar as fronteiras impostas.
26
Germain Bazin foi conservador chefe do Museu do Louvre e um importante historiador de arte, com espe-
cial destaque no estudo do período barroco. A frase referida correspondia ao título de artigo publicado por
Bazin após a sua visita à biblioteca da Universidade de Coimbra (Bazin, 1960).
27
A título de exemplo, enumera-se, o Laboratório Químico, o Observatório Astronómico, o Jardim Botânico
e o Museu de História Natural. Cf. (Dias & Gonçalves, sem data, pp. 97–114).
Seria, contudo, em 200328, que a Universidade assumiria o seu papel de liderança, na
responsabilidade e compromisso com a cidade e, depois com o mundo, pelo seu prota-
gonismo no processo de candidatura a PM, que ia acontecendo em Coimbra desde 1982
(Capela & Murtinho, 2014). O enquadramento estratégico da candidatura assumia um
dever e um compromisso geracional, que segundo as palavras de Seabra Santos se justifica-
vam num «fortíssimo sentido de futuro: o de prevenir a agressão patrimonial e a dispersão
da memória colectiva» (Santos in Universidade de Coimbra, 2005, p. 5).
De certa forma, a Universidade que havia sido responsável pelas intervenções do
Estado Novo, fazia um mea culpa, e devolvia à cidade um estatuto de reconhecimento no
seu valor material e imaterial, promovendo intervenções de requalificação e reabilitação
do seu património físico e contaminando processos de reabilitação urbana pela sua área
de influência urbana. Neste caso, ao contrário da candidatura da URHAH, a perspetiva
da candidatura à UNESCO era assumida, sobretudo, como um eixo estratégico de desen-
volvimento, assente na proteção e salvaguarda do património e, portanto, propulsora de
dinâmicas de desenvolvimento urbano (Capela de Campos & Murtinho, 2017a).
Com efeito, era com Fernando Seabra Santos eleito Reitor da UC em 20/01/2003 e reeleito em 15/01/2007
28
que, por sua iniciativa, era oficializada a intenção para que fosse a UC o bem candidato à UNESCO, pedido
que seria realizado em julho de 2003 ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Em 14/05/2004, a UC era
inscrita na Lista Indicativa de Bens, pela Comissão Nacional da UNESCO, dando início à última fase do
processo de Coimbra a PM e deixando para trás os sucessivos e falhados projetos de candidatura de outras
áreas da cidade. Cf. (Capela & Murtinho, 2014).
do património universitário como da necessidade de inter-relação univer(sc)idade, por um
«regresso em simultâneo da cidade à Alta e da Universidade à Sofia e à cidade» (Lopes,
2012b, p. 9). Desta forma, seria pertinente ilustrar como é que estas perspetivas assumidas
pelas duas candidaturas, eram equacionadas e traduzidas para a realidade urbana dos dois
casos ibéricos e também para o seu contexto territorial.
No caso de Alcalá, não se podia deixar de referir algumas particularidades derivadas
de outros acontecimentos, para além daqueles já equacionados e que também contribuíram
para a realidade urbana contemporânea.
A predominância e a disponibilidade da tipologia de colégio29 aliadas ao facto da proximi-
dade de Alcalá com Madrid (uma distância de 30 Km) permitiram que as operações urbanas
mais relevantes, depois do encerramento da UA, tivessem acontecido com recurso a altera-
ções e transformações dos edifícios universitários em quartéis, prisões, hospitais e armazéns,
durante o século xix. Ou seja, a Alcalá universitária tinha-se transformado, sobretudo, numa
cidade militar. Também a construção da estação de caminho-de-ferro levaria algum crescimen-
to urbano, a norte e este da cidade, que reinvestira na direção tradicionalmente privilegiada
com Guadalajara. Todavia estes episódios não impediram o escalar de decadência urbana, que
se acentuava com as destruições dos bombardeamentos da Guerra Civil de Espanha (1936-
-1939) e que se prolongavam até o período do pós Segunda Grande Guerra (1939-1945).
A partir de 1960, a legislação municipal sofria alterações, no sentido de potenciar o cres-
cimento urbano, usufruindo da proximidade com Madrid, alavancando uma desordem urba-
nística que se começava a impor e a ameaçar o casco urbano antigo. Essa crescente especulação
imobiliária era travada com o plano de 1968, que declarava o Centro Histórico de Alcalá
como Conjunto Histórico, permitindo afastar ou, pelo menos, minimizar os efeitos que ame-
açavam a área do centro urbano medieval e cisneriano, mais sensível e já bastante sofrida com
as destruições das guerras. Quando a universidade voltava à cidade e ao seu espaço fundacional
encontrava uma área de 185 hectares bastante danificada e destruída ou em ruína.
Em 1979, a Direção Geral de Arquitetura do Ministério de Obras Públicas e Urbanismo
70 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
dava início ao processo, onde era promovida a catalogação e estudo planimétrico do conjun-
to de edifícios históricos de Alcalá dirigido pelo arquiteto José Maria Pérez González Peridis
(Rivera Blanco, 2014, p. 32). Este ato dava origem àquela que dava a base de intervenção
sobre o património universitário cisneriano, entre 1982 e 1984, sob a direção do arquiteto
Carlos Clemente, numa atuação interdisciplinar30 entre entidade e comissões técnicas locais
29
A propósito da distinção, arquitetonicamente falando, entre colégio e sede universitária, ver (Lobo, 2010).
30
Numa primeira fase era feito o reconhecimento, o levantamento e a análise do património, para depois se
avaliarem e se definirem os possíveis usos contemporâneos compatíveis com a organização e a tipologia do
edifício. Deste modo, era possível proceder à integração de novas funções académicas e administrativas nos
diversos espaços, sem que para tal fosse necessário recorrer a transformações e alterações que pusessem em
causa a identidade do próprio edifício.
e regionais de coordenação de aspetos arquitetónicos, artísticos, construtivos, científicos e
académicos, depois de se recuperar a propriedade ou o usufruto dos edifícios históricos no
ato do Convénio Alcalá de 1985.
Era pelo grande investimento na requalificação do património universitário, que a UA
vinha a ser merecedora de vários prémios e distinções nacionais e internacionais31, desde
1983, e local do Prémio Cervantes, que a partir do Paraninfo, atribuía anualmente o
galardão maior da literatura de língua espanhola.
Todavia, estas ações não ficavam centradas no casco antigo de Alcalá de Henares
(Comunidade Autónoma de Madrid). Com efeito, nesta nova etapa de recuperação do patri-
mónio da cidade e da universidade, a UA também estendia o seu espectro de recuperação de
património à província de Guadalajara32 (Comunidade Autónoma de Castilla-La Mancha).
Além disso, a UA apostava na construção de um Campus Científico-Tecnológico como uma
lógica de expansão universitária dentro da cidade de Alcalá, tirando partido do terreno ocu-
pado pelas instalações do campo de aviação e paraquedismo de uso militar, localizado a norte
da cidade e adjacente ao «S» histórico da Via Complutense (Chías Navarro, 2014).
A reabilitação do parque edificado também ia acompanhando a consolidação do patri-
mónio universitário que, com o crescimento e expansão da universidade, criava dinâmicas
socioeconómicas, assentes no seu paradigma de Univer(sc)idade do saber da cultura, das
artes e das letras, permitindo estabilizar uma população de 200 mil habitantes, decuplicando-
-a desde o final da Segunda Grande Guerra.
No caso de Coimbra, a universidade desenvolvia ações e práticas de intervenção sobre
o património, promovendo a sua proteção e salvaguarda através de operações de interven-
ção para uma integridade dinâmica33 (Zancheti & Loretto, 2015), que tinham vindo a ser
desenvolvidas desde a fase de candidatura. A pertinência desta especificidade, no caso de
Coimbra, assentava no estatuto paradigmático que alguns dos espaços inseridos na UC-AS
PM (22/06/2013) assumiam, independentemente da sua realidade – em ruína, em projeto
e em fase de obras de requalificação. Com efeito, algumas intervenções em espaços PM,
71 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
só seriam terminadas depois da data de inscrição do bem na LPM, criando uma lógica
de continuidade – acrescentando valor ao existente – e assente no processo evolutivo e
transformativo do espaço que antes de ser, já era património.
31
Dos prémios e distinções obtidos, pela intervenção no património universitário cisneriano e na cidade de Alcalá
de Henares, sublinham-se em 1994, o Prémio Europa Nostra; em 1996, o Prémio do Ano do Meio Ambiente
(União Europeia); em 1998, inscrição na LPM (UNESCO) da URHAH; e em 2005, a Distinção de Honra do
Colégio Oficial de Arquitetos de Castela-La Mancha. Cf. (Rivera Blanco, 2014; Vallhonrat, 1997).
32
A partir de 1979, a UA ia adquirindo edifícios com valor histórico em Pastrana e em Sigüenza, de modo a
potenciar e a alargar a oferta académica e cultural. Esta condição tornava este caso particular na realidade
espanhola, em que uma universidade se estendia geograficamente por duas Comunidades Autónomas (Casa
Martín & Garcia Bodega, 2014).
33
Sobre esta abordagem, ver Capela de Campos, J e Murtinho, V. «Paisagem Urbana Histórica, a Lusa Atenas
como matriz cultural de Coimbra», no presente número da publicação do Centro de Estudos Ibéricos.
Em algumas dessas e de outras intervenções, a transformação do espaço ia sendo assumida
para a sua adaptação às exigências dos novos modos de ensino e de usos académicos contem-
porâneos, permitindo que a continuidade no uso pudesse ser enfatizada como recurso eficaz
de manutenção34. Cumulativamente, era necessário garantir a conservação e manutenção dos
espaços académicos para o normal funcionamento das suas atividades e, ainda, considerar a
afluência dos visitantes, que segundo os dados disponíveis, tinham vindo a aumentar35.
Figura 3. Vista sobre Coimbra para sul do complexo do Paço das Escolas.
Fotografia: Joana Capela de Campos, 2017.
72 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
34
Eram disso exemplos, as intervenções realizadas no complexo do Paço das Escolas, no Laboratório Químico
(Museu da Ciência), no Colégio da Santíssima Trindade (Casa da Jurisprudência da Faculdade de Direito)
ou nas Estufas do Jardim Botânico, na Alta e no Colégio da Graça (Centro de Documentação 25 de Abril e
Centro de Estudos Sociais), na Baixa, entre outros.
35
A título de exemplo, os dados até 31/12/2016 informam que havia 442 510 visitantes aos vários espaços
turístico da UC, com maior incidência, sobretudo, na Biblioteca Joanina no complexo do Paço das Escolas.
Cf. (Capela de Campos & Murtinho, 2017a; Moreira, 2017). Esta realidade, acrescida de publicidades
mediáticas e cinematográficas (nomeadamente, pela utilização do modelo da Biblioteca Joanina no filme
A Bela e o Monstro (2017), do realizador Bill Condon e produção da Disney), deveria ser considerada para
uma gestão equilibrada destes números sobre estes espaços, tendo em conta o seu impacte sobre o patrimó-
nio, nomeadamente, aquele que continua a ser mais suscetível de perdas irreparáveis, pela sua especificidade
e pelas suas condicionantes e circunstâncias, como no caso da Biblioteca Joanina.
Em estudos já realizados para a UC-AS, onde se procurava fazer «um balanço sobre o
processo transformativo visível e consequente da candidatura e título PM» (Capela de Campos
& Murtinho, 2017a, 2017b), seriam verificadas algumas considerações, nomeadamente, o pa-
ralelismo e a complementaridade entre os processos de proteção e salvaguarda do património
com o desenvolvimento urbano na área urbana de influência do bem. A oportunidade gerada
a partir de uma candidatura patrimonial era assumida como um propulsor de algumas ativida-
des económicas, como o turismo ou a construção, sendo que, seja expectável por contamina-
ção, um investimento na reabilitação e requalificação urbana geradas por novas vivências (Fig. 3),
usos e comportamentos socioculturais urbanos, tanto pelo setor público como pelo privado.
Esta realidade traduzia-se no investimento verificado na área urbana considerada, ao nível do
setor público, pela requalificação dos espaços públicos, de infraestruturas e de equipamentos
socioculturais, fortemente impulsionados pela municipalidade. Adicionalmente, também o
setor privado vinha a acompanhar esta evolução no investimento dos recursos, sobretudo
pelas dinâmicas da requalificação urbana que se verificavam sobre a reabilitação do parque
habitacional e sobre o desenvolvimento de serviços, sobretudo, direcionados ao setor turístico.
Além disso, verificava-se que a oportunidade gerada pela inscrição da UC-AS na LPM,
ou seja, pela valorização de um VUE com um mediatismo internacional próprio nestas
dinâmicas e que potenciavam um aumento do número de visitantes nesses lugares PM
(Salazar, 2010), tinha sido aproveitada e gerida, também por uma perspetiva regional e ter-
ritorial, como eram evidência alguns projetos do Turismo do Centro, que estava a apostar
nos quatro Lugares Património Mundial do Centro de Portugal36.
Considerações finais
Pensar o património, não como uma memória do passado, mas antes um ativo da
contemporaneidade para o futuro, permite estabilizar uma plataforma de diálogo entre
gerações, que vão recebendo, usando, e acrescentando valor ao existente. Desta forma, 73 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Património da Humanidade da Região Centro, aprovado no âmbito do eixo estratégico da valorização do es-
paço regional do Programa Operacional Regional do Centro – MaisCentro, dentro do Quadro de Referência
Estratégico Nacional (QREN) de 2007 a 2013, onde estruturava apoios de intervenção sobre os então três
casos PM do Centro: o Mosteiro da Batalha e o Convento de Cristo em Tomar (1983) e o Mosteiro de
Alcobaça (1989). Cf. (Martins & Franca, 2017).
Por outro lado, o conhecimento produzido sobre cada caso, inerente a um processo
de candidatura, permite equacionar as várias prioridades numa gestão integrada, sobre o
património, como também, sobre o seu contexto urbano, numa ideia de continuidade da
fruição do património inserido em contexto urbano. Deste modo, é possível deduzir que o
reconhecimento de um VUE no âmbito da UNESCO, tanto pela comunidade como pelas
entidades locais, nacionais e internacionais, deve ser considerado um ativo, quer para uma
gestão sustentável de um sítio PM, quer pelo seu contributo na participação em protocolos
de planeamento e gestão integrada para uma maior coesão territorial.
No domínio e âmbito do PM verifica-se que as ações de proteção e salvaguarda, sobre
um património reconhecido pelos diversos agentes, potenciam uma transformação nas
dinâmicas socioeconómicas dentro do seu território de influência. A pertinência no es-
tudo destes exemplos justifica-se na articulação do entendimento e do conhecimento da
conformação espacial com os protocolos de gestão destes bens, dominados pelas relações
espácio-sociais subordinadas às diversas geografias e, por isso, cheias de especificidades
próprias do lugar e de cada território.
Este trabalho pretendeu estabelecer uma reflexão, baseada na analogia entre os
dois exemplos ibéricos inscritos na categoria das Universidades, na LPM – URHAH e
UC-AS –, a partir do delineamento estratégico que orientou as duas candidaturas e as
suas respetivas influências no desenvolvimento de dinâmicas socioculturais e económicas,
nos seus territórios de influência.
Num primeiro momento, contextualizou-se cada um dos bens, no âmbito da
UNESCO, aferindo que Alcalá de Henares e Coimbra assumiram um compromisso e
uma responsabilidade num plano internacional, ao afirmarem a proteção e a salvaguarda
do património como projeto de futuro. Este tópico permitiu aferir as convergências for-
mais entre os dois casos de estudo: os mesmos critérios de justificação do VUE; a mesma
categoria de inscrição; e o mesmo desígnio de proteção e salvaguarda do património.
Todavia, num segundo tópico, verificou-se que os dois casos apresentam divergências
74 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
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76 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Introdução
O objetivo deste texto é apresentar a problemática que subjaz a uma paisagem cultural
de interesse turístico em um espaço específico, portador de significados da herança cultural
na região de Sorocaba, estado de São Paulo – Brasil; trata-se do caso: a) dos remanescentes
de patrimônio arquitetônico-industrial da Real Fábrica de São João do Ipanema, criada
por Carta Régia de D. João VI em 04 de dezembro de 1810, um conjunto de edificações
tombado pelo IPHAN e internacionalmente reconhecido; b) registros documentais e icônicos-
-fotográficos dos processos sócio-econômicos que produziram a chamada “Revolução
Verde”, em meados do séc. xx, neste mesmo espaço da chamada Fazenda Ipanema e c) dos
significados sobrepostos a estas camadas de memória com o advento da unidade de conser-
vação Floresta Nacional de Ipanema no início dos anos 1990 na mesma paisagem cultural.
Assim, pode-se dizer que se este espaço físico-natural originalmente recoberto pela
79 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Mata Atlântica foi habitat de etnias indígenas sucedidas pelos colonizadores portugueses e
espanhóis interessados nas riquezas de seu subsolo, situação que durou de 1597 até 1810,
quando se tornou a Real Fábrica de Ferro, convertendo-se na virada do século xx na
Fazenda Ipanema e chegou às primeiras décadas do século xxi como Floresta Nacional de
Ipanema, estamos diante de uma superposição de camadas históricas de densidade variada
e ao desabrigo de políticas de preservação destes muitos componentes que refletem mais
de 500 anos de história e cultura neste local único.
Pelo que oficialmente se estabeleceu em termos da legislação sobre patrimônio histó-
rico cultural brasileiro, existe proteção por processo de tombamento do IPHAN/Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ao conjunto de remanescentes da Real
Fábrica de Ferro desde 1964; esta proteção diz respeito a uma área delimitada no docu-
mento técnico e que inclui o conjunto de edificações e ruínas que foram posteriormente
objeto de restauros parciais, por diversas vezes; entretanto, nunca se logrou que ao restauro
e limpeza do sítio histórico se estabelecesse um programa de educação patrimonial con-
jugado ao uso turístico e de lazer bem sucedido, mesmo levando-se em conta o potencial
de uma área em que se poderia falar da história do país desde a colônia até o advento da
república (ainda que se deva ressalvar as iniciativas de prover qualificação para que os guias
que atuam nas trilhas naturais da Floresta Nacional informem aos visitantes dados sobre o
passado industrial da unidade de conservação).
Por outro lado, o decreto 530 que criou a unidade de conservação na categoria de
Floresta Nacional em 1992 colocou os termos de uso, preservação e exploração do local
e de seu subsolo, inserindo-a no sistema mais amplo de gestão pelo Ministério do Meio
Ambiente que se denomina SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação; den-
tro da lógica que é vigente neste aparato legal, cada unidade de conservação deve ter um
plano de manejo, documento que rege e orienta todas as ações que são permitidas aos ges-
tores e à comunidade de visitantes, inclusive contemplando objetivos de pesquisa e edu-
cativos, bem como de lazer e turístico, usos econômicos e extrativos, etc. Como a Floresta
Nacional compreende a área maior da Fazenda Ipanema e o sítio dos remanescentes da
Real Fábrica de Ferro está inserto nela, tem-se uma situação em que dois instrumentos de
proteção, oriundos de fontes legais separadas, se sobrepõem.
Ao contrário do que poderia parecer óbvio, não houve uma sinergia imediata entre os ór-
gãos responsáveis pela gestão conjunta da FLONA de Ipanema e sítio histórico da Real Fábrica
que se refletisse em termos de visitação e oferta de produtos turísticos e educativos; o que se
viu ao longo dos últimos vinte e cinco anos, ou seja, desde que houve a criação da unidade de
conservação, foi um suceder de desencontros entre os gestores, pontuado de períodos curtos
em que tentativas de ações conjuntas se perderam ou foram paulatinamente abandonadas.
Esta avaliação se apóia em primeiro lugar no que se encontra nos documentos dos ór-
80 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
ao Sítio Histórico, mas tem sido mais detalhado e cuidadoso com outros dados sobre o
que ocorreu no local durante os anos de gestão do Ministério da Agricultura (praticamente
o século xx todo) e também ao tratar das pretensões de empresas de mineração de forma
mais aberta, balizada e esclarecendo riscos ao ambiente natural que diversas atividades
antrópicas acarretam. Sem dúvida estas alterações representam um sinal de que há uma
intenção de caminhar para um trabalho mais integrado com órgãos como o IPHAN, mas
o equacionamento para que isto venha a ocorrer não parece ser evidente pelo teor dos
documentos e do material em disponibilidade ao público para divulgação.
Tanto é assim que a definição sobre o que seria paisagem cultural (entendida aqui
como uma soma das atividades humanas e do meio natural que vai produzir singularidades
e diversidade ao que o olho captura, proporcionando a emergência de afetividades e assim
possibilitando caminhos para a educação patrimonial e ambiental) não aparece de forma
clara no documento de manejo, mas antes sinaliza visões que ainda carregam preconcei-
tos e estereótipos românticos acerca do que merece ou não ser preservado no âmbito da
FLONA de Ipanema.
A linguagem trai o que há de contradição neste caso: o Sítio Histórico, citado várias
vezes no volume de diagnóstico do plano de manejo como “de rara beleza”, compondo um
todo harmônico com a paisagem do Morro de Araçoiaba é tratado nas instruções aos visi-
tantes com o menoscabo de “não necessita de guia, sendo opcional”; então a história seria
auto-evidente ou algo opcional? Os elementos de sinalização (placas e totens) que estão
disponíveis nos locais que integram o sítio histórico são parcos de informação e muitas
vezes limitam-se a dizer o nome e dar alguma referência vaga sobre que tipo de atividade
ocorria no espaço, faltando dados de que função tinha no todo maior da organização do
ciclo metalúrgico, como as camadas de sentido de outras atividades se sucederam ao longo
dos anos e reaproveitaram determinadas configurações espaciais, até que se tornaram tão
estranhas que o abandono foi completo e muito se perdeu.
Por outro lado, o volume que se destina ao planejamento no documento de manejo
parece indicar até com alguma ênfase um passo na direção da atividade turística (indica-se
o uso de diversos edifícios para concessão de restaurante, cafeteria, infraestrutura hoteleira e
pousada(sic), loja de souvenires e assim por diante; naturalmente isto terá que ser proposto
na área histórica por razões diversas, mas a principal é um reconhecimento implícito que a
sustentabilidade financeira e de interesse pela existência da FLONA passará sem dúvida pela
capacidade de atrair visitantes e gerar aportes financeiros diversificados que permitam frear
a deterioração do patrimônio histórico-cultural. Daí a proposição de que a Casa da Guarda
seja destinada aos serviços de café e restaurante e a antiga sede do CENEA se converta em
pousada, como pode ser visto em um dos programas de manejo contidos no plano geral.
E na página 108, que trata de diretrizes para o programa da área de uso público, i.é.,
85 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
do sítio histórico principalmente, pode-se ler como atividades a serem desenvolvidas:
“– Apresentação de espécies notáveis da fauna, acompanhadas de ilustrações ou fotos, com
destaque para as espécies endêmicas e /ou em extinção;
– Apresentação sucinta dos principais aspectos históricos e culturais da Flona e
região;(...)”(sublinhado meu)
Figura 4. Carta topográfica do Distrito de Ipanema, de Leandro Dupré. Foto da Acervo da Autora
Figura 5. Represa Hedberg. Jornal Cruzeiro do Sul/Foto:Emidio Marques, 2012
Muita coisa se achava guardado na própria FLONA, mas sem acondicionamento ade-
quado e em condições que propiciavam a deterioração acelerada. A parte iconográfica era
uma das mais atingidas, pois o material fotográfico não dispunha sequer de sala para que
fosse pelo menos colocado em separado e pudesse ser higienizado e tratado. Algumas des-
tas imagens podem ser vistas por vezes em reportagens que jornais da região publicam, mas
se encontram ainda dispersas por acervos particulares muitas vezes e com risco de serem
descartadas, como por exemplo o registro da paisagem feito na FIGURA 6:
Figura 6. Vista aérea da Vila de São João do Ipanema. Fonte: Venedável Acosta, 1978
Bibliografia
Introdução
A exploração dos recursos geológicos é praticada desde a Antiguidade, com enfoque para
o período romano, que no território português assentou a partir do século I. É, contudo,
com o advento da centúria de Oitocentos, após a moderna industrialização e o consequente
alargamento da sua influência aos diversos territórios, primeiramente europeus e posterior-
mente ao nível global, que a actividade extractiva adquiriu uma dimensão nunca antes observada
na economia mundial. Embora os tempos sejam outros, o estatuto desta indústria ainda hoje
se mantém, por ser principal responsável pelo abastecimento de matérias-primas cruciais ao
desenvolvimento e continuidade de toda a economia – um papel que, que em meados do
século xix, simbolizou o impulso ao arranque das revoluções industriais.
Em Portugal, a modernização das explorações mineiras enquadrava-se na política de 93 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Período da Monarquia Constitucional estabelecido depois da insurreição militar de 1851, liderada pelo ma-
1
rechal duque de Saldanha, que promoveu a estabilização do sistema liberal monárquico português (1820-
-1910), após anos de conflito desencadeados pela carta constitucional de 1826. Para romper com o pas-
sado, a Regeneração aclamava como palavra de ordem os valores do Progresso, traduzidos no esforço pela
modernização e fomento do desenvolvimento económico. O mentor desta linha de orientação foi Fontes
Pereira de Melo, o primeiro titular da pasta do recém-criado Ministério das Obras Públicas, Comércio
e Indústria, e a figura central do governo de Saldanha. A sua obra ficou conhecida como o Fontismo.
A Regeneração termina em 1890, quando eclode a crise do liberalismo monárquico.
esforço de modernização nacional (Cabral, 1979). Dado que as suas potencialidades eram
consideráveis e os seus focos de exploração tinham de ser legalmente enquadrados para
constituírem fontes de receita, foi lançada a Lei de Minas de 1852, promotora de grandes
investimentos, sobretudo estrangeiros, e que desencadeou a produção nacional em larga
escala, visando alimentar as indústrias transformadoras da Europa central.
É então que se verifica a modernização do Alentejo. Uma região que, pese a sua gé-
nese agrária, demarcada pela paisagem de trigo e montado, e acompanhada pela baixa
densidade populacional, é também uma terra de contrastes, com dinâmicas que reportam
ao século xix. Nesta época, todo o processo de industrialização nacional já apresentado,
vivia em paralelo com o território espanhol, os efeitos da “febre mineira de Oitocentos”,
fenómeno que intersectou todo o sul da Península Ibérica.
Foi, portanto, da conjugação de inúmeros acontecimentos conjunturais, tanto do
panorama interno como externo, e ainda com o surgimento das primeiras notícias em
Espanha que apontavam para a existência de ricos filões de minério naquela zona – já
explorada pelos antigos – que resultou a corrida a essas concessões. A área a explorar
tratava-se da Faixa Piritosa Ibérica2, correspondente ao território compreendido entre o
Baixo Alentejo e a Andaluzia, com 250-300 km comprimento por 30-50 km largura, um
dos maiores chapéus de ferro3 da Europa, e um dos grandes distritos mundiais de metais
básicos, estimando-se que tenha gerado cerca de 1300 milhões de toneladas de minério.
Actualmente, do seu solo conhecem-se aproximadamente 90 jazigos que têm na pirite
a sua principal mineralização. Em quadros económicos distintos, das suas explorações,
extraía-se o cobre e o enxofre, reportando isto aos perfis industriais que historicamente a
caracterizaram4.
Perante este quadro, o Alentejo conheceu focos de desenvolvimento industrial ímpa-
res, transitando da paisagem do trigo e montado para uma industrialização efectiva, com
especial destaque para a exploração dos seus recursos minerais. E em estrita simbiose com
o país vizinho, que prosperava com as minas de pirite em Tharsis e Rio Tinto, Portugal
94 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
2
Zona geológica formada por acção vulcânica há cerca de 359 milhões de anos.
3
Nome atribuído à parte mais superficial e exposta de um filão mineral, que consiste na visualização de uma
rocha intensamente oxidada, erodida ou decomposta.
4
A indústria mineira da Faixa Piritosa Ibérica obedecia a rigorosos ciclos económicos, dependendo directa-
mente do aproveitamento útil da matéria extraída. Numa primeira fase, a extracção realizava-se em exten-
são; posteriormente, a alteração do paradigma obrigou a que a extracção fosse feita em profundidade, numa
lógica de aproveitamento do minério pobre, como o enxofre destinado à produção de ácido sulfúrico.
O legado da indústria e a modificação da paisagem
Ora, a mina de São Domingos foi a mais paradigmática exploração de pirite à es-
cala nacional, ainda que situada em plena linha fronteiriça, na margem esquerda do
Guadiana, concelho de Mértola. Activa entre 1854 e 1866, e tendo materializado a
maior concentração operária da região, em números que alcançaram os quatro milhares
no período de maior produção, constituiu em definitivo a redefinição do concelho, que
foi cenário de uma industrialização absolutamente singular em contexto rural, composto
por especificidades sub-regionais muito contrárias àquele que é o tradicional quadro do
Alentejo profundo.
A prosperidade teve a sua fundação no contexto de origem do empreendimento. Um
investimento metodicamente organizado, congregador de capitais das esferas bancária,
diplomática, industrial e intelectual da Europa, compreensão fundamental para a pre-
missa seguinte. Conhecer a sua instalação industrial com vista à intervenção no presente
é perceber que os laços que ligavam estes homens assentavam numa rede de informação
complexa, um mundo de informação que transcendia a administração mineira e inclusi-
ve as próprias fronteiras geográficas. Um empreendimento que requereu a agilização de
múltiplos critérios, numa obra colectiva de engenharia que para se fazer erguer convocou
os elementos mais avançados da ciência e da técnica, num resultado final representado
perante a modificação definitiva de toda a envolvente. Na sua essência, compreender o
significado daquilo que subsiste hoje é perceber que, para além de uma obra à imagem
do seu próprio tempo, e que nos deixou sinais de um centro de industrialização nacional
equiparado à áurea europeia, também concebeu in loco uma dupla valência: a herança,
tanto na sociedade pós-industrial como na paisagem, enquanto protagonistas directos
do património.
Neste sentido, a mina tornou-se agente activo na criação de um lugar patrimonial
notável, testemunha do nascimento de uma nova comunidade através da sua acção indus-
95 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
trial, originando uma sociedade simultaneamente rural e industrial. Sobrevém, portanto,
um território revestido por contornos urbanos e industriais, numa terra em constante
transformação, que urge de aprofundamento científico rigoroso com recurso à interven-
ção interdisciplinar. Enquanto herdeira de uma forma de exploração, a aldeia da Mina de
São Domingos é um local de identidade num espaço de transição, que padece de diversos
problemas económicos, sociais e ambientais. Como tal, merece receber uma diversificação
na sua actividade, assente sobretudo na valorização cultural das suas potencialidades natu-
rais e patrimoniais, tendo como componente legitimadora o recurso à memória colectiva,
enquanto elemento agregador de toda a comunidade.
Da comunidade mineira à sociedade pós-industrial
Para que esta intervenção resulte, é determinante que seja erguida uma ponte entre
a preservação do passado industrial e identitário da localidade, em articulação com a
recuperação ambiental do território, e acima de tudo, um aproveitamento turístico que
atente nestes factores. Sem a confluência destes pontos, não haverá turismo industrial
que perdure.
Os acontecimentos históricos são a primeira premissa da memória. Isto significa que
presentemente não basta unir a comunidade sob um património comum. Importa consi-
derar que são três as gerações ulteriores ao encerramento da exploração, sendo que algumas
98 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
não têm quaisquer laços com esse mesmo passado industrial. Para existir transferência de
informação, há que estimular a memória. Primeiramente, a identidade da comunidade
tem de ser tratada na fonte, convocando a utilização da história e das suas novas metodo-
logias, como a história oral e a história local. Só fazendo uso correcto da ciência que nos
permite compreender todas as dinâmicas conjunturais estruturantes, é possível intervir
rigorosamente na multidisciplinaridade, fulcral para o tratamento de todas as valências,
avançando-se para o passo seguinte, a educação patrimonial.
Acontece que a realidade de São Domingos contrasta com a conduta praticada nas
minas de Huelva, inscrita numa óptica de educação patrimonial coesa no tocante à uti-
lização das ciências mãe restantes áreas disciplinares, o que se tem demonstrado vital na
valorização e promoção do seu património industrial. O caminho percorrido pelo país
vizinho na implementação do turismo industrial mineiro prossegue com notas de suces-
so, ao socorrer-se dessa educação patrimonial, que é a aplicação directa das intervenções
académicas de excelência. O exemplo de Espanha prima por, na base que sustenta o seu
património, fazer eficientemente a convergência de três vertentes: a da comunidade, o dos
órgãos locais e regionais, e o da academia.
Actualmente, na aldeia muitos dos seus habitantes referem-se ao que resta do gran-
de complexo mineiro como ruínas. Por outro lado, aqueles que visitam a povoação em
lazer, sem vínculo familiares, ignoram a existência do vasto património industrial que se
esconde nas imediações. A existência deste património histórico tem, até então servindo
exclusivamente um propósito: dar a conhecer o nome da terra para o turismo de lazer.
Quando esse objectivo é atingido, o património histórico perde importância, e a sua
critica e conhecimento científicos são abandonados.
Como tal, é extrema a necessidade de um esforço coordenado entre os três vectores
apontados. No entanto, em primeira instância, ele tem de ser encetado pelo poder local
e pelo meio académico, organismos que produzem o estimulo científico e detêm o poder
de decisão, para posteriormente ser possível abraçar a comunidade, integrando-a. É certo
que as transversalidades da temática desta mina criaram uma consciência da sua relevân-
cia, a qual tem sido produtora de estudos que atravessam parte significativa das ciências
sociais e exactas. Contudo, ao invés do modelo espanhol, que opera segundo conteúdos
de rigor, o caso português tem absorvido uma miríade de intervenções muito dispersas na
sua actuação, gerando fracos resultados e até mesmo assumpções erróneas. Não se verifica
uma estratégia delineada, o que tem estado na senda da ausência de multidisciplinaridade
criteriosa. Isto incorre num panorama que não pode ser secundarizado, pois é passível de
ser precursor na construção de quadros mentais falaciosos junto da comunidade; esses
quadros, uma vez incutidos na sociedade pós-industrial, tornam-se reincidentes e derrotam
a educação patrimonial que poderia estar a ser feita.
99 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
No cômputo final, enquanto devida prática para a intervenção territorial à luz de
um turismo industrial sustentável, há que valorizar, promover, defender e enquadrar a
sociedade pós-industrial da Mina de São Domingos, assim como o seu território urbano
e industrial. É conveniente atender que se trata de uma comunidade em plena mudança
de paradigma, sendo por isso, um espaço de transição. Estamos a falar de pessoas que
sentiram o fim da época industrial, transitando quase de imediato para um contexto
de despovoamento, e presenciaram de imediato ao longo das últimas duas décadas um
“repovoamento”, ainda que sazonal, motivado pela procura do turismo de lazer.
Subsiste então um movimento descoordenado entre a existência do patrimó-
nio industrial, inerente à identidade da comunidade e à sua memória colectiva. Das
mutualidades aqui implícitas, poderão surgir uma série de boas práticas para uma in-
tervenção directa nas suas potencialidades, reforçando a sua competitividade face aos
casos emblemáticos mencionados, através do recurso às raízes do seu património. Afinal,
a Mina de São Domingos é a localidade nascida em redor da exploração mineira que a
baptizou, e só o seu estudo sério e aprofundado permitirá compreender tanto a origem
como as permanências do seu território.
Em suma, patrimonializar não passa exclusivamente, nem deve começar pela recupe-
ração ou tratamento de estruturas físicas e ambientais, mas pelo conhecimento da linha
evolutiva das respectivas dinâmicas históricas e territoriais. Uma barreira que, se ultrapas-
sada, deixará aberto o caminho para a colaboração entre as entidades locais, a academia
e a comunidade. Desse modo, poderá catalisar-se o potencial do território por via de um
turismo interventivo, que não se fique apenas pela componente de lazer. Prosseguindo a
lógica de aproveitamento do crescimento da actividade económica do turismo, poderá
até mesmo ser praticada contemplando-se outros elementos, incrementando o turismo
cultural, científico e/ou académico, que premeie não só o património industrial, mas que
englobe a identidade da sua comunidade.
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102 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Figura 1. A Corta (inundada através do rompimento das represas após o esgotamento económico da mina)
104 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Figura 6. A Tapada Grande, antiga represa industrial n.º 4, materialização do turismo de lazer
La memoria del paisaje.
Marcas sagradas en el paisaje simbólico
de la región Duero-Douro
Introducción
Estas marcas, de las que se constatan multitud de tipos, como tendremos oportu-
nidad de analizar más adelante, se encuentran en el paisaje como hitos, como señales,
formando parte de fronteras, pero también como memoria de diferentes prácticas cul-
turales, según se manifiesta en una bien contrastada ritualidad agraria (ARIÑO, 1992).
Se trata de marcas o huellas que dan cuenta, en la mayor parte de los casos, de unos pai-
sajes dotados de sacralidad, territorios en los que la carga simbólica aparece conformada
a través de multitud de elementos reconocibles, materiales pero también inmateriales,
conformando espacios de notable personalidad que cabe diferenciar de aquellos otros
de naturaleza diferente. Tratamos no solo de paisajes físicos, perceptibles, sino también
de lo que se denominan paisajes inconscientes o paisajes entrópicos o lo que es lo mismo,
aquellos espacios que no llegamos a ver, que escapan a nuestra mirada (CARERI, 2016:
137). Y lo hacemos a partir de una interpretación simbólica del territorio, entendido
este como una representación donde los espacios llenos y los espacios vacíos se alternan,
conformando territorios híbridos, es decir, los paisajes sagrados objeto de nuestro análisis
(ibidem, 24-25).
Con la investigación de los paisajes simbólicos de la región Duero-Douro hispano-
-portuguesa que nos encontramos efectuando en la actualidad1, pretendemos dar cuenta
de este tipo de marcas, a través de su estudio tipológico y de los cambiantes significados
que estas tienen en función de los contextos donde las documentamos. Los objetivos son,
como podemos comprobar, bastante ambiciosos; no obstante, con las presentes notas in-
troductorias pretendemos avanzar en el conocimiento de estas huellas, más o menos inde-
lebles, a través del análisis de los tipos que con mayor frecuencia comparecen en el mundo
rural tradicional, en especial de los contextos, de los espacios, donde éstas hacen acto de
presencia, así como de las intenciones para las que se realizaron. Es una empresa compleja
y somos conscientes, no cabe duda. Ello es evidente al advertir la extensa variedad de tipos
y subtipos que se disponen en el contexto urbano y especialmente en el campo.
El interés en recuperar la memoria de las casi indelebles huellas en el paisaje es alto desde
que ciertos autores se han interesado por la región Duero-Douro y se ha mantenido inaltera-
ble hasta la fecha. En este sentido, este interés se acrecienta en la actualidad atendido el hecho
de que este tipo de paisajes culturales no han de entenderse como conjuntos estáticos cerrados
sobre sí mismos, sino que hay que analizarlos y explicarlos en contextos más amplios, no solo
paleo-económicos y científicos, sino también de rentabilidad cultural y turística, tratando de
integrar los elementos objetos de estudio con los de otra naturaleza – accidentes naturales
destacados, construcciones sagradas, fortificaciones, tradiciones, gastronomía, etc., con el fin
de comprender de una manera holística el paisaje o paisajes culturales del territorio Duero-
108 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
1
Proyecto de investigación post-doctoral titulado: “Paisajes sagrados en la región Duero-Douro. Definición,
catalogación, análisis, procesos de patrimonialización y creación de recursos como generador de riqueza
turística”, de la Escola da Ciências Humanas e Sociais de la Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro,
dirigido por la profesora Maria Olinda Rodrigues Santana.
el Sayago zamorano (MOLINERO, BARAJA Y SILVA, 2013 [1]: 19) y, por extensión,
El Abadengo salmantino.
Como se acepta en la actualidad, la tipificación de los paisajes agrarios, como el que es-
tudiamos, se basa en sus elementos constituyentes, concretados en los campos de cultivo y
los espacios incultos, los núcleos de poblamiento y las infraestructuras viarias, incluyendo
todas las combinaciones posibles y las formas complejas derivadas de éstas (ibidem, 8). En
función de las actividades humanas sobre el paisaje, existen tres categorías de aprovecha-
miento agrario: el cultivo de la tierra, el cuidado de los animales y la explotación forestal,
las cuales en combinación han contribuido de manera intensa a la construcción del pai-
saje. Son además la manifestación visual y patente de la acción de la mano del hombre en
la naturaleza, siendo las propias huellas que imprimen la cultura la transformación a lo
largo del tiempo. Se pasaría así, de un paisaje como concepto amplio derivado del término
latino pagus (campo y tierra pero también el pueblo o la aldea), a otro con matices más
culturalistas, a otro de tipo “cultural” (CAPEL, 1983: passim).
Con todo, el Consejo Europeo del Paisaje (CEP) redefine el término, renovándolo y
reorientándolo, para adaptarse a las nuevas concepciones normativas y académicas de los
últimos años. Así, el CEP pasa a definir los paisajes como “cualquier parte del territorio tal
y como lo percibe la población, cuyo carácter sea el resultado de la acción y de la interacción
de factores naturales y/o humanos” (MOLINERO, BARAJA y SILVA, 2013[1]: 9). Esta
definición es de vital importancia si consideramos que abarca todo el territorio, agrupan-
do en una misma definición el patrimonio natural, el arquitectónico o el arqueológico.
Ello permite hablar de paisajes agrarios o paisajes rurales que conforman un “conjunto de
tramas integradas en la configuración, en la imagen y en la gestión del paisaje” (ibidem, 9).
El CEP sincretiza así otras definiciones de paisajes para ofrecer un nuevo enunciado mul-
tifacético del paisaje que prioriza algunos temas como las áreas de consumo y aprovisio-
namiento, sus formas y funciones, los objetos y las miradas, la naturaleza y la cultura, la
herencia histórica, la actualidad del paisaje agrario y las prospectivas de futuro. Atendidas
109 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
estas premisas y atendiendo a que lo rural “(…) está presente en la configuración histórica
y en la interpretación de prácticamente todos los paisajes de territorios de añeja ocupación
agraria de España” (MATA, 2004: 112), este tipo de paisajes pasarán a ser totalizadores
históricos que sincretizan en el presente las huellas del pasado, las metabolizan en la
dinámica del presente y las proyectan hacia el futuro (MOLINERO, BARAJA Y SILVA,
2013[1]: 10).
El proyecto de análisis y puesta en valor de los paisajes sagrados de la región Duero-
-Douro, pretende ser un estudio integrador de su paisaje cultural. Ante todo no persigue,
como apuntaba Antonio Ariño Villarroya (2002), una “fiebre de nostalgia” conserva-
cionista que subyace en las prácticas patrimonializadoras ni tampoco fetichizar este
patrimonio, sino más bien generar conocimiento y conservar sin destruir ni transformar.
Como apunta este mismo autor, nuestro objetivo es mejorar las condiciones de vida de
las personas más frágiles en el tiempo presente, levantar su dignidad y reforzar su calidad
de vida. Por otro lado, intervenir sobre un patrimonio que permita mirar al pasado sin
cultivar la complacencia y la compasión, sino invitar al asombro, al sobrecogimiento,
provocando inquietud y conmoción.
Nuestra intención de estudiar los paisajes sagrados de la región Duero-Douro gira,
grosso modo, en torno al análisis de un paisaje cultural específico. Tal y como lo define la
Convención de la UNESCO los paisajes culturales representan las “(…) obras que combi-
nan el trabajo del hombre y la naturaleza”; incluye este concepto, por tanto, una diversidad
de manifestaciones de la interacción entre el hombre y su ambiente natural. En este sen-
tido, la pregunta, a la hora de plantearse el desarrollo del tema es la siguiente: ¿existe un
paisaje cultural sagrado específico en tierras del Duero-Douro? Nosotros planteamos que
efectivamente se constata, a través de unos caracteres específicos que tienen que ver con el
desarrollo histórico y la localización en un marco de frontera, la hipótesis de que existe una
marcada personalidad cultural en este territorio fronterizo que permite el surgimiento de
un paisaje cultural sagrado el cual percibimos, con especial intensidad, en las marcas físicas
y mentales existentes en el territorio (CRUZ, 2016b).
Tal y como lo define el geógrafo Eduardo Martínez de Pisón, el paisaje “es la proyección
cultural de una sociedad en un espacio determinado desde una dimensión material, espiritual,
ideológica y simbólica”. En consecuencia, por paisaje simbólico hay que entender la com-
binación dinámica de elementos físicos (en este caso, el entorno natural) y los antrópicos
(es decir, la acción humana) los cuales, conjuntados, convierten el territorio en un entra-
mado social y cultural en continua evolución. Como lo entiende el Convenio Europeo del
Paisaje, éste se corresponde con un: “área, tal y cual lo percibe la población, resultado de la
interacción dinámica de factores naturales y humanos”. A través de esta serie de definiciones,
parece quedar claro que el fundamento del paradigma del paisaje distingue entre paisaje
110 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
y medio ambiente, entre los que dan cuerpo a un extenso conjunto de recursos culturales
y son el escenario para todo tipo de actividades de una comunidad de la cual, en cada
generación, se imponen unos mapas cognitivos propios, antropogénicos e interconectados.
El Plan Nacional de Paisajes Culturales los entiende, en este sentido, como “el resultado de la
interacción en el tiempo de las personas y el medio natural, cuya expresión es un territorio perci-
bido y valorado por sus cualidades culturales, producto de un proceso y soporte de la identidad de
una comunidad” (CRUZ PÉREZ, 2015: 13).
Dentro de los mismos se distinguen los denominados “paisajes simbólicos” que se
fundamentan en acontecimientos de carácter social, históricos, artísticos, religiosos o lú-
dicos creadores de nuevos “escenarios” que se suman a otros tipos de paisajes y que suelen
generar uno nuevo (paisajes sagrados)2. Se trata, de “espacios narrativos” entendidos como
“aquellos con capacidad para comunicar, guardar la memoria y transmitir información, desar-
rollado a partir del análisis de las características y condiciones de los espacios singulares y de los
hechos o acontecimientos cuando los resultados son destacables (events places)” (SABATÉ BEL,
2004). Los paisajes simbólicos comparten e intercambian valores con otras categorías de
paisajes –urbanos, agrarios, históricos, religioso, etc.- y con determinadas manifestaciones
como las propias del patrimonio cultural inmaterial, especialmente cuando responden a
un soporte espacial concreto que forma parte de la identidad de un sitio (por ejemplo,
celebraciones religiosas). Además, como apunta Margarita Ortega, suelen estar ritualiza-
dos y marcan escenarios de representación o de recorridos que incorporan experiencias de
carácter sensorial. Sigue detallando esta autora “Los paisajes simbólicos requieren, con mayor
motivo, la explicación y transmisión –la narrativa- de su significado por las diversas activida-
des objeto de apreciación (artística, histórica, religiosa, lúdica…), muchas veces imposibles de
delimitar de manera clara y, por tanto, a integrar o complementar” (ORTEGA, 2015, 384).
Consideraba Durkheim que lo sagrado es aquello superior en dignidad y poder, esto
es, lo sujeto a estar prohibido, pero que se puede acceder a ellos a través de una serie de
rituales propios, así como de la religión misma; concepto de sagrado y manifestación de
lo sagrado que Mircea Eliade denominaba como hierofanía (ELIADE, 1998: 15). Por su
parte, Baez-Jorge apunta como la noción de lo sagrado de una comunidad determinada
tiene una explicación particular, no necesariamente igual a la comunidad vecina. Otros
autores, como Alicia Barabás, denominan santuarios a los lugares sagrados, si bien dife-
rencia entre aquellos que tienen construcciones y aquellos otros que son sitios naturales;
los segundo carecen de control de la Iglesia sobre el calendario celebrativo, así como de las
devociones efectuadas en ellos. Esta misma autora, finalmente, apunta como el territorio
en si mismo también tiene carácter sagrado para las sociedades tradicionales, debido a su
evidente vinculación con los ancestros, al tiempo que está dotado de lugares sagrados y
simbólicos, construidos diacrónicamente a partir de los derechos adquiridos de acceso,
111 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
control y uso a lo largo de los tiempos (BARABAR, 2003: 112, citado en MADRIGAL
et alii, 2016: 3).
En otra ocasión, tratamos el tema de los paisajes sagrados al hilo del análisis de dos
modelos que establecimos para la comarca salmantina de El Abadengo (CRUZ, 2016a: 35-
-56). Apuntábamos como el desarrollo de los distintos conceptos de paisaje ha ido variando
a lo largo de los años, en función de los especialistas que se han adentrado en el tema,
En los últimos años, la literatura sobre los espacios simbólicos o paisajes sagrados ha crecido notablemente.
2
Destacamos las aportaciones, para el caso de la prehistoria, de Richard Bradley (1993, 1998 y 2000), la
recopilación de estudios sobre los espacios sagrados medievales (SABATÉ y BRUFAL, 2015) o el libro sobre
los espacios sagrados toledanos (VIZUETE y MARTÍN, 2008).
tal y como han puesto de manifiesto algunos autores (ANSCHUETZ, WILSHUSEN Y
SCHIECK, 2001: 164-168), destacando los denominados “paisajes rituales”, como pro-
ducto de acciones estereotipadas que representan órdenes socialmente preceptuadas, me-
diante las que las comunidades definen, legitiman y mantienen la ocupación de las tierras
que los acoge (ibidem, 178). Los estudios de los paisajes rituales en la literatura científica
anglosajona, examinan las pautas de distribución espacial de rasgos rituales tales como
los edificios religiosos, los monumentos, las plazas o los petroglifos, combinando así la
potencialidad de los espacios y las representaciones sociales de todos ellos (HIRSCH y
O’HANLON, 1995: passim). Con ello se mejora el potencial para evaluar de forma crítica
la incorporación ritualizada de lugares especiales (periferia) a los paisajes segregados de los
espacios de población y actividad (centro), dentro del entorno construido por un grupo
(ANSCHUETZ, WILSHUSEN Y SCHIECK, 2001: 178-179). Con todo, el paisaje es
un producto socio-cultural creado por la objetivación de la acción social y del imaginario
que modela una realidad multidimensional: ambiental, social, simbólica, cultural y per-
ceptiva. El paisaje según autores es, en definitiva, una realidad eminentemente social que
se fundamenta culturalmente (AYÁN VILA, 2005: 120). En consecuencia, el espacio se
erige en una construcción social, imaginaria, en movimiento continuo arraigada en la cul-
tura, a causa de lo cual se establece una estrecha relación estructural entre las estrategias de
apropiación del espacio y la organización social y simbólica del mismo (ibidem, 120-121).
Por su parte, la antropología anglosajona y especialmente la alemana –M. Eliade,
R. Otto, Dhile, etc.- ha tratado con cierto detenimiento la cuestión conceptual de la sacra-
lización del espacio, al menos en su acepción espacio-temporal (HERBERS, 2009: 568),
no llegando a definir convincentemente el concepto de lugar o espacio sagrado. En fecha
reciente, se ha establecido la definición de Sitio Sagrado como un “área de especial significa-
do espiritual por los pueblos y comunidades”, en tanto que los Sitios Naturales Sagrados son
“áreas de agua o tierra que tienen especial significado espiritual para los pueblos y comunidades”
(WILD y McLEOD, 2008: 21), si bien estas definiciones, asentadas en una observación de
112 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
los pueblos indígenas de Sudamérica, apenas si son aplicables a nuestro ámbito de estudio.
Se destaca así como las pautas de actuación de la denominada “geografía religiosa”, nos
puede permitir determinar los modelos de ocupación de una comarca determinada a través
del análisis de las señales más evidentes en el paisaje, como son las ermitas y los santuarios.
A partir del estudio de la composición de las advocaciones titulares, la ubicación de ermitas
en antiguos despoblados o en sitios arqueológicos, la localización en tierras de propiedad
comunal, al pie de vía de comunicación y de la ubicación de los templos en los límites ter-
ritoriales, se pueden estudiar los desniveles creados por la existencia de lugares cargados de
sacralidad y desvelar el afloramiento de hitos o marcadores netamente insertados de forma dia-
crónica por los grupos que ocupan un territorio determinado (SALLNOW, 1987: 12-13).
La geografía religiosa queda definida entonces, por las relaciones mantenidas entre las
imágenes y sus fieles, las formas ritualizadas, los tiempos para el culto y la atracción devo-
cional periódica, activada y deseada (FERNÁNDEZ SUÁREZ, 1999: 42). En este tipo de
paisajes sacros confluyen vectores, en definitiva, de muy diversa índole cuya conjunción
contribuye a reforzar, como ocurre en el caso de algunos santuarios andaluces, su valor pa-
trimonial y simbólico (NARANJO RAMÍREZ, 2010: 48). Siguiendo el modelo cordobés
es preciso basarse en vectores históricos, entendidos como lugar mágico y mítico, vectores
religiosos que comprenden la devoción mariana, cristológica o de determinados tipos de
santos, vectores sociológicos a través de los cuales se puede identificar la esencia del pueblo,
en nuestro caso del occidente salmantino y finalmente vectores geográficos en cuanto que
la selección territorial, en el campo antropológico, constituye una de las mejores atalayas
para analizar el tema de los espacios sagrados y simbólicos (CRUZ, 2016a: 35-56).
Destacamos, por su interés, la definición que de paisaje sagrado hacen constar Madrigal,
Escalona y Vivar (2016: 3); apuntan estos autores como el “Paisaje sagrado de una comu-
nidad es una porción de territorio modelado y transformado por ella a lo largo del tiempo en
función de la relación con sus deidades o con su sobrenaturaleza” (2016: 4). El territorio se
puede sacralizar a través de la marcación y transformación de ciertos lugares por parte de
la deidad o de lo sobrenatural, los cuales pueden cambiar la percepción y la valoración de
ciertos lugares a través de su manifestación que puede ser, a su vez, casual o estratégica. En
este orden de cosas, el paisaje sagrado suele ser transformado a partir de ciertos cambios de
posesión del territorio o a través de determinados mecanismos geopolíticos o económicos-
-administrativos, los cuales suelen acontecer a lo largo del tiempo (ibidem, 4).
En el territorio la noción de lo sagrado y la forma en que se plasma en este, siguen
apuntando estos autores, va a dar lugar a un paisaje aparentemente físico dentro del que
se forma una suerte de meta-paisaje o paisaje espiritual, al que solo suelen acceder ciertos
especialistas rituales que, en comunión con toda una serie de seres físicos pero también
imaginarios, dan lugar a una sobrenaturaleza: “La forma de redefinir y darle legitimidad
113 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
como sagrados a estos paisajes es a nivel de las prácticas rituales, su señalización por medio de
cruces, objetos simbólicos, piedras y ofrendas, y la realización de otras actividades que demues-
tren el respeto y mantengan la relación con la sobrenaturaleza manifestada” (MADRIGAL,
ESCALONA y VIVAR, 2016: 4); paisaje que se ha de estudiar, como cabe esperar, desde
una óptica de la construcción social del territorio (BERGER, 1969).
Como vemos, la conceptualización de los paisajes sagrados o simbólicos y subsidia-
riamente, las marcas que los dan cuerpo, es compleja y varía en función de las ópticas que
apliquemos, bien sean antropológicas, históricas o incluso ecológicas. Para una correcta
interpretación de paisaje sagrado que contemple la multitud de elementos que lo conforman,
se puede resumir a través del siguiente esquema:
1. Paulatina conquista simbólica del territorio a través de:
· Evolución histórica
· Usos económicos, políticos, sociales y culturales del territorio
2. Evolución de los rituales. Transformación del paisaje en clave ritual
· Espacios agrarios. Ritualidad específica agraria:
· Rituales agrícolas: rituales estáticos
·Bendición de campos
· Rogativas
· Rituales ganaderos: rituales en tránsito
· Espacios simbólicos naturales
· Rocas, bosques, agua
· Espacios políticos
· Fronteras: límites y periferia
· Espacios de ritualidad específica
· Ermitas y santuarios
· Espacios de paso
· Caminos, cañadas
· Mojones, amilladoiros, cantos de los responsos
dando lugar a ciertos patrimonios comunes que conforman la denominada “memoria del
paisaje” (ABELLA, 2016).
6. Los paisajes sagrados se suelen formar a partir de cierta acumulación de marcas o
hitos cargados de ritualidad, tanto tangibles como intangibles.
7. Finalmente, dan lugar a “espacios narrativos” o event places generadores de “lugares
de memoria” (NORA, 1989).
Marcas y paisaje están íntimamente unidos. Aunque, como lo hace Francesco Careri,
podemos entender el concepto de marca –marche-, como denominación tradicional que
solía darse a los lugares situados en los confines mismos de un territorio, a los bordes
de sus fronteras (CARERI, 2017:11), somos partidarios de ampliar a una idea de mayor
alcance, como lo hacen Jelin y Langland, como escenarios donde se despliegan, a lo largo
de la historia, las más variadas demandas y conflictos, siendo además puntos de identifi-
cación de los pueblos. Las marcas territoriales se encuentran justificadas en términos de
derechos de propiedad anclados en la memoria de los antepasados, a través de los esfuerzos
por “(…) recrear y traer al presente memorias e identidades referidas a un pasado colectivo, sea
histórico o mítico” (JELIN y LANGLAND, 2003: 1-2).
Los paisajes, del tipo que sean, cuentan con una serie de elementos que los individuali-
zan de los demás. Así, mientras que en los agrarios son las actividades agrícolas y ganaderas
y todas las prácticas asociadas a estas actividades las que lo modelan y lo dotan de unos
caracteres propios, en los sagrados es la presencia de unas determinadas construcciones y
prácticas sociales, cargadas de ritualidad, las que otorgan carta de naturaleza. Con todo, la
sacralidad se manifiesta en la mayor parte de los paisajes culturales, incluso los naturales, a
través de una serie de prácticas rituales y de una serie de marcas u objetos simbólicos que
permiten realizar una diferenciación respecto al entorno que los rodea. En cierto sentido,
las huellas de lo sagrado, material e inmaterial, se manifiesta de manera constante en
diferente escala, una veces de forma intencionada y otras de manera accidental.
Nos interesa destacar, en este orden de cosas, la presencia de marcas en el paisaje, que
pueden ser de naturaleza material cuando se trata de elementos visibles, pero también inma-
terial las cuales suelen llevar implícitas, por su parte, una serie de “acciones rituales”, que se
pueden originar en prácticas religiosas pero también profanas. En función de esta primera
diferenciación se pueden dividir, a su vez, en marcas de sacralidad y, por otro lado, marcas de 115 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
demarcación. Esta doble distinción nos permite analizar la extensa variedad de tipos de marcas
que encontramos en los paisajes tradicionales. A través de algunos ejemplos que se documen-
tan a ambos lados del Duero, especialmente en la parte salmantina, tratamos de dar cuenta
de algunos de los principales tipos de marcas que hipercaracterizan este territorio de frontera.
Lo que hemos dado en llamar marcas de sacralidad acoge, en realidad, un sinfín de
situaciones en las que lo sagrado se manifiesta en el territorio, de manera física, a través de
monumentos naturales y realizados por el hombre y a través de un amplio abanico de huellas
entre las que destacan las cruces, pero también de acciones rituales3 de los individuos sobre
Al respecto resulta de obligada consulta los trabajos de Cruces Villalobos (2010) y de Vallverdú Vallverdú
3
(2010). El primero de ellos realiza un interesante análisis crítico del concepto de ritual y ritualidad.
el territorio a través de unos “principios de congregación” (VV.AA., 1991: 263), que otorgan
un carácter performativo a dichas acciones. Para el caso de las marcas físicas éstas son, como
apuntamos, de muy variada naturaleza, de ahí la lógica dificultad de resumir en unos pocos
tipos, la extensa variedad de marcas que podemos documentar en el paisaje.
Una de las marcas más evidentes son los monumentos, bien los naturales como los
levantados por el hombre. En el caso de los segundos, la erección de las construcciones
sagradas, especialmente las ermitas y los santuarios campestres se erigen en las principales
marcas sobre el paisaje, al erigirse en hitos referenciales del territorio4. La erección de estos
monumentos responde a numerosas causas, tal y como ha puesto de manifiesto Henares
(HENARES DÍAZ, 2004: 115-126):
– Nacimiento del espacio sagrado por medio de una leyenda que da origen al culto de
la Virgen, de Cristo o de algún santo, especialmente la primera, que lo hace por hallazgo
o aparición (VELASCO MAÍLLO, 1996: 87).
– Selección de un entorno privilegiado para situar la aparición, entorno que en el
que suelen concitarse determinadas características topográficas, naturales o con especial
significado histórico (castro prerromano o ocupación anterior, etc.).
– Ha de existir una apropiación de la imagen (y del lugar) por parte de la comunidad,
con el fin de crear vínculos no solo físicos, sino también afectivos.
– La creencia y, por ende, la imagen y su espacio físico, ha de institucionalizarse a
través del control por parte de la autoridad eclesiástica.
– Finalmente, los posibles conflictos por la propiedad del santuario o ermita, muy comu-
nes en los lugares liminales se han de resolver por medio de determinados rituales y prácticas
como pueden ser las romerías, las rogativas u otro tipo de manifestaciones, como pueden ser
los traslados temporales de las imágenes a las parroquias de las poblaciones en conflicto.
Señora del Castillo en Pereña de la Ribera o ermita de San Cristóbal en Villarino de los
Aires –, las cuales se levantan en sitios en altura, destacados en su entorno, habitualmente
sobre montes santos o tenidos por sagrados en virtud de sus particularidades orográficas o
por la existencia de leyendas sobre los mismos. En este sentido, una de las marcas sagradas
más habituales son las relativas a lugares naturales, habitualmente montes o rocas, árboles
singulares – no pocas veces bosques – o lugares con presencia de agua (fuentes sacras),
4
Existe una abundantísima bibliografía sobre este tema. Al respecto, es de obligada consulta los trabajos de
William Christian (1976, 1978, 1990 y 1991), de Díez Taboada (1989 y 1995), de Velasco (1996), de
Garganté y Solá (2017) y de Muñoz Jiménez (2010), entre otros muchos. Para el caso portugués, no pode-
mos dejar de consultar el trabajo de Resende (2011) o el estudio que de la Capela de Nossa Senhora do Fojo
realiza Olinda Santana (2017).
entre los más comunes, muchos de los cuales son recursos estratégicos que es necesario
singularizar por medio de una sacralización física – habitualmente presencia de cruces o
de otro tipo de marcas – a través del componente mítico o legendario. En territorio de
la raya hispano-portuguesa constatamos numerosos ejemplos de esta naturaleza, caso de
La Peña Gorda en la localidad homónima, un imponente domo granítico que la leyenda
justifica como la china que la Virgen se sacó del zapato, en el conocido episodio bíblico de
la Huída a Egipto, por no decir los abundantísimos casos de rochas sacras, fragas de abalar
o penedos de mouros conocidas en buena parte del territorio portugués (ROLINHO, 2000;
RODRÍGUEZ CRUZ, 2008: 115-116).
No vamos a analizar de forma detenida los cruceros, por cuanto ya lo hemos realizado
en otras ocasiones (CRUZ, 2016b)5, uno de los elementos que mejor definen la propia
naturaleza de los paisajes sagrados. Los cruceros no se levantan al azar, sino que responden
a una lógica de ocupación del territorio muy determinada, unas veces establecida por la
autoridad eclesiástica –como los viacrucis, los cruceros de atrio o las cruces que se erigen en
el lugar donde se levantó una vieja ermita–, y en otras ocasiones erigidos por el poder local
como auténticos mojones o hitos viarios, como ocurre con lo que hemos dado en llamar
cruces de dirección, de las que contamos con magníficos ejemplos en la comarca zamorana
de Sayago (CRUZ, 2018). Los cruceros no dejan de ser, en definitiva, elementos referencia-
les en el territorio (CRUZ, 2012: 315-352), de ahí que, frente a otras marcas, se le otorgue
carta de naturaleza tanto religiosa –cruces de asilo– como jurídica o administrativa –cruces
de villa, cruces juraderas–, de ahí su reconocimiento en fueros y ordenanzas municipales.
Encontramos en estos mismos territorios un particular tipo de marcas que tienen
relación directa con las rocas sagradas o sacra saxa (ALMAGRO, 2015; ALMAGRO y
GARI, 2016), habitualmente localizadas al pie de los caminos, denominados amilladoiros
o cantos de las Ánimas, de los que conocemos abundantes ejemplos en tierras del occi-
dente castellano y leonés. De entre ellos, destacamos la Peña del Perdón de La Redonda6,
en la provincia de Salamanca y varios en la comarca vecina de Sayago. En territorio de 117 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Este y otros hallazgos fueron dados a conocer en su día por Benito y Grande (1992: 91), otorgando una serie
6
de interpretaciones erróneas que no vienen al caso comentar. En fecha más reciente, Almagro en varios traba-
jos que listamos en el apartado bibliográfico, se ha preocupado de efectuar una efectuar su análisis científico.
viaje (ibidem, 135). Este ritual nos remite, en todo caso, al de la presencia de amilladoiros,
tan populares en tierras gallegas, uno de cuyos ejemplos más conocido es la Cruz de Ferro
de la localidad leonesa de Foncebadón, protectora para el peregrino, conocidos en otras
regiones castellano y leonesas como cantos de los responsos, ya mencionados, carneiros en
Galicia o fieis de Deus (ALMAGRO GORBEA, 2006: 14) o pedras do namorados o de ca-
samento (ALMAGRO Y TORRES, 2015: 7-22), en tierras portuguesas. Estos amilladoi-
ros, muchas veces camino de santuarios principales (Nuestra Señora de Gracia en Sayago;
Nª Sª de Majadas Viejas en La Alberca o camino de San Andrés de Teixido en A Coruña),
siguen una vieja tradición pagana, al decir de Taboada (TABOADA CHIVITE, 1975:
101-112), que asociaba los cantos con las almas de los difuntos (ALMAGRO, 2006: 14).
En este sentido, existe una relación directa de este tipo de manifestaciones culturales con
las viejas prácticas medievales llevadas a cabo en torno a los túmulos prehistóricos7, los
cuales vienen a ser interpretadas como la afirmación de las élites locales en la tierra por
medio de una continuidad con el pasado (BRADLEY, 1993: 113-129).
En cierto sentido, las cruces de dirección guardan grandes similitudes con las almi-
nhas del territorio portugués8; La función principal de las alminhas portuguesas es la
conmemorativa, al erigirse en monumentos que apelaban a la realización de una oración,
un responso, para la salvación de los fieles; en determinados casos sirven de señal de una
muerte y como los cruceros de la Raya, se localizan al pie de los caminos, en zonas de paso
y encrucijadas, siguiendo similares patrones de situación geográfica.
Tampoco vamos a adentrarnos en el tema de las cruces y frases alegóricas que se plasman
en la arquitectura, debido a que en otras ocasiones nos hemos centrado en ellas de manera
extensa (CRUZ, 2014, 2016b, 2017 y e.p). La cruz emite una serie de mensajes, a veces
cifrados, que permiten un diálogo entre emisor y receptor. La cruz se erige en un símbolo
de significado polisémico que, en función de su cronología y de su ubicación, significa unas
Para esta cuestión remitimos a los trabajos de Blas Cortina (1997: 84-87) y, sobre todo, de Álvarez Vidaurre (2011).
7
118 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
La literatura sobre las alminhas portugueses es extensa y desde que se publicara el clásico trabajo de F.
8
BABO titulado Alminhas. Padrões de Portugal cristão, encontramos una veintena de trabajos sobre este
particular elemento simbólico del paisaje. Destacamos de entre ellos, el de M. C. CHIEIRA PREGO
(1997): Roteiro das alminhas do Concelho de Sever de Vouga. Cámara Municipal de Sever de Vouga; el
de AFONSO RODRIGUES, J. A. (2003): Marcos de santidade nos caminos do Rochoso. O silêncio dos
costumes, Guarda analiza, por su parte, las alminhas desde una óptica antropológica. También son inte-
resantes el trabajo de BROCHADO DE ALMEIDA, C.; SOUSA GONÇALVES, M. C. Y RAMOS B.
DE ALMEIDA, J. (2013): Fé e Religiosidade Popular en Ponte de Lima. Cruzeiros, Vías-Sacras, Nichos e
Alminhas. Municipio de Ponte da Lima; el de F. ABREU y R. MIRANDA (2001): Alminhas do Concelho
de Condeixa-a-Nova. Cámara Municipal de Condeixa-a-Nova; el de P. C. LOPES DE MIRANDA y O. J.
CARRASQUEIRA MARTINS (2003): As alminhas do Concelho de Tábua. Parroquia de Midoes; el de
R. PEREIRA, J. ARAUJO y M. COSTA (2007): Alminhas, Cruzeiros e Vias-Sacras do Concelho de Paços
de Ferreira. Religiosidade e Cultura Popular. Cámara Municipal de Paço de Ferreira y el de J. TORRES
(2011): “Alminhas de ontem o de hoje”, Sabucale, 3: 83-90. Revista do Museu de Sabugal, quien además se
encuentra en la actualidad realizando el catálogo de las alminhas del Concelho de Sabugal (com. personal).
cosas u otras. No solo es señal de la presencia de ciertos contingentes poblacionales –con-
versos o cripto-judíos–, sino que también es marca indicadora de la pertenencia a una orden
religiosa, en conjunción con una larga serie de emblemas o frases religiosas, y es, a la vez,
detente contra la entrada del mal –espantabrujas o espantademonios–, donde configura una
suerte de barrera mental, de marca que permite definir lo interior/exterior, lo de afuera y
lo adentro. Como apuntaba Campbell, las cruces en la arquitectura son los “guardianes del
umbral” (CAMPBELL, 2015:109)9, dando cuenta de una interesante dialéctica ya tratada
por Gastón Bachelard (1992: 250-270). Se trata, en todo caso, de las marcas que mejor
identifican los paisajes sagrados gracias a que la cruz es el símbolo religioso por antonomasia.
Dentro de la familia de las marcas de sacralidad, debemos de mencionar, finalmente, otro
tipo que se emparenta con las sacra sax o piedras sagradas, cuales son las huellas tenidas por
sagradas, de entre las que podemos mencionar las pisadas de la Virgen, herraduras, cazoletas,
huellas de pies, la Pata de la Mula, la huella del caballo de Santiago, etc. Se trata de elementos
que habitualmente se encuentran en plein champ, en espacios agrestes, en lugares rocosos,
singularizados gracias a los extraordinarios testimonios orales y legendarios de estos lugares
que ilustran, como apunta Jesús Suárez, la asimilación de estas huellas por parte de las clases
populares y su inmediata conversión en iconos religiosos, específicamente cristianos para la
mayor parte de ellos, capaces de generar determinadas acciones rituales como arrodillarse o
elevar una plegaria al cielo. Dan pie, a su vez, a la generación de leyendas o motivos legenda-
rios basados en su potencial como desencadenantes de fenómenos meteorológicos adversos
que se suceden ante ciertos actos contrarios a la creencia popular (SUÁREZ, 2016: 281-282).
En nuestra zona de estudio debemos mencionar la roca de La Patá (o La Patica) en Pereña
de la Ribera (Salamanca), que la creencia popular interpreta como la huella de la mula de la
Virgen en el pasaje bíblico de la Huída a Egipto; se trata de una “marca” que ya tratamos en
su momento (CRUZ, 2016a: 52), por lo que no vamos a volver sobre ella.
Hay que apuntar como las marcas de demarcación tienen un origen antiguo que podemos
retrotraer, al menos, a la época romana, en la que documentamos una de las primeras ope-
119 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
raciones emprendidas por el poder para ordenar los espacios. En el Noroeste de la Península
Ibérica encontramos una serie de documentos que permiten precisar la forma en que se
plasmaba la ordenación de las provincias romanas, modelo que se perpetuó en el tiempo. Por
un lado, encontramos los mojones o termini que marcaba los límites de las comunidades;
por otro lado, se solía recurrir a otros sistemas para definir los territorios tales como la propia
orografía del terreno, los cruces de caminos, las fuentes, los ríos, etc. (VV.AA., 2002: 83-85).
Dentro de esta familia hemos de destacar, pues, los hitos y mojones como una de las
marcas que mejor definen la personalidad del territorio. En fecha reciente, Concepción
Son interesantes las aportaciones que, en este sentido, realiza Manuel Delgado sobre lo que denomina “los
9
Bibliografía citada
ABELLA MINA, I. (2016): La memoria del paisaje. Pasado y futuro de un patrimonio común. Libros
122 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
habla bien a las claras de la configuración semántica del territorio a través de las acciones que puntualmente se
realizan en el espacio (SÁNCHEZ PÉREZ, 1990: 146-147).
ALMAGRO GORBEA, M. y GARI LACRUZ, A. (2016): Sacra Saxa. Creencias y ritos en peñas
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PATRIMÓNIOS IMATERIAIS
E TURISMO
A Flauta de Tamborileiro na raia portuguesa:
meio e estratégia de desenvolvimento social
e cultural
Helena Santana
DeCA, Universidade de Aveiro
Rosário Santana
UDI, Instituto Politécnico da Guarda
Introdução
nos encontremos em Portugal, Espanha, França ou além-mar, bem como mais a Norte ou
a Sul dos países e regiões referenciadas.
1
A sua disseminação pela Europa terá acontecido ainda nesse século, século xiii.
2
Mesmo que durante o século xvii a sua representação iconográfica surja mais enfática na Europa, percebe-
mos, no entanto, que é pouco frequente a sua presença em iconografias no decorrer do século xviii. Este
facto surge fruto de uma não aceitação pelas classes ditas mais cultas e eruditas deste tipo de prática musical.
3
Neste sentido, a Flauta de Tamborileiro, e as práticas musicais a ela associadas, surgem diversas em distintas
regiões de Portugal, da Europa e do mundo, revelando um modo de ser e estar único e que revelamos ao
longo deste trabalho.
Presente ainda hoje em diversas regiões do nosso país, nomeadamente na região de
Miranda do Douro, a Flauta de Tamborileiro surge identicamente na sua congénere es-
panhola Zamora. Diz-se ainda no interior Alentejano, encontrando, neste caso, paralelo
com a região de Huelva na província de Andaluzia, assim como com o sul de Badajoz na
Estremadura, na vizinha Espanha. Na região da Beira Alta e Beira Baixa, encontra paralelo
com a região fronteiriça de Castela e Leão. De referir também a presença do Tamborileiro,
e da sua maneira tão particular de executar duplamente a Flauta e o Tamboril, na região
Provençal de Fontvieille Alpilles em França, e na região de Vera Cruz no México4. Sendo
em Portugal conhecida como Flauta de Tamborileiro, sobrevém na vizinha província
de Andaluzia sob a designação de Pito Rociero. Em França, nomeadamente na região de
Provence, a Flauta é denominada de Galoubet e na região de Gascogne de Flabuta. Nas duas
regiões o Tamboril é denominado de Tambourine e o instrumentista de Tambourinaire.
Apuramos assim que o conjunto instrumental denominado de Flauta de Tamborileiro
é constituído por uma Flauta e um Tamboril. Os Tamboris admitem modificações es-
truturais e sonoras de relevo conforme as regiões e os países referenciados, sendo que os
Tamboris portugueses são, no nosso entender, de natureza mais arcaica que os congéneres
de Espanha. De grande dimensão, o Tamboril alentejano é semelhante ao seu congénere
espanhol, sendo a sua decoração idêntica nos dois lados da fronteira. Já em França, e no
México, encontramos diferenças significativas neste instrumento5.
Sendo nosso intento mostrar a forma como um caso tão particular de prática musical
do Tamborileiro se exprime ao longo dos tempos, e em contextos territoriais e civilizacio-
nais tão diversos como os apresentados, buscaremos as especificidades que adquire nos
diversos países, procurando delinear ainda, a particularidade dos contextos onde emerge e
se define ferramenta de desenvolvimento e animação social e culturais. Analisaremos tam-
bém a forma como o Tamborileiro surge em ambos os lados da região da raia, buscando
a forma como este se torna reflexo da cultura e símbolo de um povo que, pelo seu caráter
forte e empreendedor, se lançou na conquista de outros mundos, denunciando além-mar
131 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
a presença de símbolos que definem estruturas culturais e sociais próprias. Neste sentido,
intentamos a valorização de um património histórico e cultural, material e imaterial, que
se mostra, no nosso país, infelizmente quase extinto. Contrariamente, surge valorizado
além-fronteiras.
4
Esta presença dá-se, no nosso entender, fruto da influência portuguesa e castelhana que decorre aquando do
processo de colonização iniciado em por volta de1500.
5
No que concerne a região francesa, o tamboril é em madeira, ornamentado no corpo da caixa-de-ressonância e
de formato alongado. Já no que ao México diz respeito, o tambor é igualmente em madeira mas de pequenas
dimensões. O seu formato remete para as representações da Idade Média na Europa, nomeadamente aquelas
das cantigas de Santa Maria de Afonso X Rei de Castela. O seu formato contribui de forma única e indelével
para o bom desempenho nas interpretações musicais e cénicas dos tamborileiros no México.
1.1. A Flauta – Definição geral e descrição
Como mencionado, o conjunto instrumental interpretado pela figura do Tamborileiro
é constituído por dois instrumentos: a Flauta e o Tamboril. É do conhecimento geral que
a Flauta define um tipo de instrumento musical da família dos aerofones (instrumentos
de sopro), consistindo, e no caso da Flauta interpretada pelo Tamborileiro, numa flauta
de bisel com três orifícios. Estes orifícios situam-se no extremo oposto ao bisel, dois na
parte superior e um na parte inferior do instrumento. Dado a rusticidade e simplicidade
do instrumento, este toca-se utilizando várias intensidades de sopro. Esta ação visa a ob-
tenção dos diferentes harmónicos de uma fundamental, conseguindo-se assim, produzir
uma escala diatónica. O instrumento toca-se, recorrendo sempre à mão menos expedita
do instrumentista, para que a mão mais ágil atue no manejo da baqueta que se destina a
percutir o Tambor. Este instrumento, que normalmente é de duas membranas, é nele que
se realiza o acompanhamento da melodia que se faz ouvir na Flauta. Quanto à forma de a
suster, esta é presa entre a boca onde se situa o bocal, e o dedo anelar e o mindinho da mão
que o sustenta, no extremo oposto do instrumento.
A Flauta de Tamborileiro toma diversas designações, conforme já referido, nos diver-
sos países e regiões em análise. Especificamente em Portugal, e no Alentejo, a Flauta de
Tamborileiro toma a designação de Pífaro, Pífano, Flaita6 ou Gaita, sendo este último o
termo mais usado nesta região de Portugal. As Flautas, construídas geralmente pelo pró-
prio tocador, seguem modelos pré-existentes, com medidas pré-estabelecidas e formatos
bem simples. Os modelos e práticas de construção seguidos pelos seus construtores, são
transmitidos de geração em geração, e surgem como conhecimento que convém preservar
e valorar. Os materiais empregues na sua construção, nomeadamente as madeiras, provêm
da flora local, utilizando-se preferencialmente a madeira do sabugueiro7. Como elemen-
tos decorativos vislumbramos o uso do corno na zona da boquilha e do bisel, assim como
de molduras esculpidas na zona do pé do instrumento, no extremo oposto ao bisel, para
que o tocador coloque o dedo anelar e mindinho, ajudando assim a segurar o instrumento.
132 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
No que à decoração diz respeito, as Flautas podem ainda conter gravações e incisões
feitas no seu corpo, representando formas geométricas e figurativas várias. Em alguns casos
as incisões são também pintadas utilizando-se preferencialmente as cores vermelha, verde e
amarela8. No que concerne a sua dimensão, não se conhece um tamanho ou formato único,
podendo ser encontrados exemplares com comprimentos e formatos diversos, pois a sua di-
mensão pode oscilar entre os 34 e os 46 cm. Este facto contribui de forma muito marcada
6
Termo usado igualmente para designar a gaita de beiços.
7
É esta a madeira que encontramos nos exemplares mais antigos, exemplares esses que servem de modelos aos
instrumentos construídos mais recentemente.
8
Pontualmente, encontramos os instrumentos pintados na totalidade do seu corpo.
para a variabilidade do sonoro e do campo de frequências do instrumento. Esta variabilidade
age sobre o espectro do som e, consequentemente, sobre o seu timbre. A furação interior é,
nestes casos e na maior parte das vezes ligeiramente cónica, com a zona mais larga no extremo
da boquilha, o que concorre identicamente para a determinação da sua afinação e sonoridade.
Segundo a organologia e a acústica musical, a Flauta de Tamborileiro assemelha-se a
alguns instrumentos que encontramos na Idade Média na Europa. Os sons fundamentais
não são muito empregues nas diversas peças que constituem o seu repertório, sendo que a
escala começa, usualmente, na oitava superior ao som fundamental, recorrendo ao 2.º har-
mónico. Em seguida, torna-se contínua ao ser executada, por intensidade de sopro, através
da realização dos 3.º, 4.º e 5.º harmónicos9. Esta escala pode chegar a ter um âmbito supe-
rior a uma oitava no caso do Galoubet Ocitano. As afinações, diferindo em cada tetracorde,
permitem, como estruturas de afinação, modelos que podem ser de dois tetracordes iguais.
Neste caso, estes instrumentos consentem a composição de melodias em apenas quatro
modos base, segundo a estrutura do primeiro tetracorde, a que corresponde o modo de Dó,
Ré, Mi e Fá, respectivamente10. No caso do Galoubet, a Flauta da região de Provence, o ins-
trumento inicia normalmente a sua escala em Dó, sendo a sua estrutura intervalar definida
por tons inteiros. Este facto permite tocar, se iniciarmos a escala na 2ª e na 3ª nota acima
da fundamental, em Ré Maior e em Mi Menor, respetivamente11. No caso da Península
Ibérica, os dois sistemas de organização sonora em uso mais frequente, são os que corres-
pondem os modos de Ré e de Mi, frequentes na música popular da raia portuguesa. Tendo
a extensão de uma oitava, o instrumentista amplia esta extensão no âmbito de uma quinta,
unicamente variando a intensidade do seu sopro. Através de uma eficaz combinatória da
posição dos dedos, o Tamborileiro pode tocar um total de doze sons diferentes, incluindo,
ainda, todos os graus cromáticos. Deste facto sobressai a possibilidade de uma combinatória
melódica bastante rica, e potenciadora de diversas organizações melódicas.
superior do instrumento, pondo assim em oscilação o ar dentro da caixa. Esta ação coloca se-
guidamente em vibração a pele inferior que, dadas as suas características, reenvia o ar em ba-
lanceamento para a pele superior. Esta ação permite a este instrumento o desenvolvimento
de características sonoras e timbricas peculiares, outorgando um acompanhamento do tipo
bordão/baixo continuo à flauta – o Galoubet. A baqueta usada é constituída por três partes
bem distintas, o punho que serve de contrapeso, o corpo fino de madeira dura e, a ponta em
osso, que percute a pele do Tamboril. Estas características permitem uma subtileza de toque
e um gestualidade interpretativa muito precisa, da qual resulta o som único do Tamboril.
12
No que toca à decoração, os Tamboris alentejanos são, na sua maioria, pintados de forma monocromática,
usando as cores azul ou verde. O mesmo proceder se verifica do outro lado da fronteira, em Huelva.
2. A presença da Flauta de Tamborileiro na Europa
sentações essas que se mostrariam reveladoras de uma prática musical consentânea com o
analisado, a sua presença revela igualmente um decréscimo significativo atestando o desme-
recimento que o mesmo toma por parte das classes sociais mais representativas da sociedade.
Este facto dá-se a partir da segunda metade do século xvii. A representação da Flauta e do
Tamboril torna-se, consequentemente, pouco frequente no decorrer do séc. xviii.
13
Ao longo do século xx, percebemos estas representações em algumas partes da vizinha Espanha, nomeada-
mente na região de Aragão e do sudoeste de França, junto aos Pirenéus. O facto, permite-nos afirmar que
esta prática transcorre todo um tempo que se mostra bastante longo e, por isso, difícil de desmerecer.
14
No entanto, mesmo que este apareça somente na segunda metade do séc. xiii, a sua disseminação por toda
a Europa aconteceu de uma forma tão rápida, que surgem menções e representações da sua existência em
muitos países europeus já ao longo deste século.
Se nas classes mais abastadas, se junto dos nobres e dos mais eruditos, a sua prática
tende a ser desmerecida, se não abolida, junto do povo e das classes mais desfavorecidas, a
sua prática e mérito desenvolveu-se, progredindo e existindo até hoje. Este facto, este júbi-
lo, deu-se por via popular, sendo disso exemplo não só Portugal, como a Espanha e França,
países onde a Flauta e o Tamboril detém ainda hoje um grande poder de enraizamento,
enraizamento esse que se faz não só a nível local, como regional15. Num contexto mundial
mais alargado, e como já referido, a figura do Tamborileiro encontra-se presente em vários
países da América Latina, o que nos leva a colocar a hipótese que esta presença se dá fruto
da ação direta dos povos europeus e do processo de colonização, ação que se mostra a vá-
rios níveis e com diversos graus de atuação. No entanto, percebemos as diferenças culturais
que lhe são próprias, inerentes a um dizer e fazer de além-mar.
15
No entanto, e no que diz respeito a Portugal, a sua presença é bem menos significativa que noutros países da
Europa. Em todos estes casos, a Flauta e o Tamboril surgem com especificidades e características próprias,
numa grande variedade de modelos que resultam, em parte, da sua grande dispersão geográfica. Este facto é
bastante importante para a caracterização e especificação de uma prática interpretativa e musical que ainda
hoje impera em algumas regiões do mundo.
16
Esta iluminura encontra-se na Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa.
17
A maneira como o Tamborileiro prende o Tamboril parece-nos idêntica à presente nos Tamborileiros retra-
tados nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X, e naquela que emerge dos eventos protagonizados por “Los
voladores de Papantla”, no México, uma tradição Totonaca. No entanto, a natureza melódica e rítmica das
canções interpretadas, bem como o contexto social, cultural e, muitas vezes religioso, em que se insere, é outro.
18
Esta pintura está datada dos séc. xvii-xviii.
É ainda possível encontrar a Flauta tocada em simultâneo com o Tambor de Cordas
em duas pinturas do retábulo da Igreja de Madre Deus, monumento do séc. xvi, assim
como a figura de um rapaz a tocar Flauta e Tamboril, conjuntamente com um velho tocador
de Sanfona, num painel do Mosteiro de S. Vicente de Fora, em Lisboa19.
Atualmente, e em Portugal, encontramos a figura do Tamborileiro em duas zonas bem
distintas do território nacional. A primeira, em Trás-os-Montes em Terras de Miranda do
Douro, estando a sua prática associada às festividades que aí têm lugar, tais como as Danças
dos Pauliteiros e dos Velhos, as Festas dos Rapazes, o Presépio de Natal, além dos diferentes
Ofícios e outras Solenidades Religiosas. Apesar da sua presença ser mais forte no Nordeste
Transmontano, não deixa de ter alguma expressividade de atuação mais a Sul, no Alentejo.
Notamos uma forte influência e paralelismo com Espanha, nas duas zonas de atuação do
Tamborileiro. Os conjuntos instrumentais denotam semelhanças nos dois lados da fron-
teira. Verificamos essas semelhanças não só entre Miranda do Douro e Zamora (Castela
e Leão), como no Alentejo no que concerne a margem esquerda do Guadiana, compre-
endendo os concelhos de Serpa, Moura, Barrancos e Mourão, com Huelva (Andaluzia) e
com o sul de Badajoz (Estremadura).
Da análise documental, percebemos ainda que no Alentejo, a Flauta e o Tamboril são
tocados em simultâneo pela mesma pessoa. O Tamborileiro surge como presença regular
nas festas patronais e romarias de cada povoação, sendo uma figura indispensável nos
momentos mais importantes das festividades, nomeadamente o peditório, a alvorada ou
ainda nos bailes. Contudo, notamos que ao longo do século xx, a prática deste conjunto
instrumental e a presença do Tamborileiro no Alentejo sofre um decréscimo significativo
em termos qualitativos e quantitativos dos seus tocadores. No entanto, este decréscimo
não é recente, ele já se vem a efetivar, desde o final do século xix. Este decréscimo de efe-
tivos, e consequente desaparecimento dos seus agentes está, de acordo com alguns autores,
relacionado com o advento das bandas filarmónicas que se tornaram uma ameaça à figura
do Tamborileiro, não só na região do Alentejo, como um pouco por todo o país. Contudo,
137 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
e citando Breyner (1900: 71-72), no concelho de Serpa “(...) ainda mesmo com as filar-
mónicas, o tamborileiro faz-se ouvir em todos os círios, ou festas d›arraial, e romarias aos
santos (...), [para as quais era] (...) indispensável o tamborileiro(...)”.
Toda esta informação nos atesta da importância da figura do Tamborileiro, tanto a nível social como cultu-
19
ral, em ambientes de natureza não só religiosa como pagã. Concomitante, o Tamborileiro surge, ao longo
dos séculos, como figura maior de uma cultura, de uma prática musical, de uma região, de um país, de um
povo, estando representado em diversos contextos, tanto ao nível da nobreza como do clero e daqueles que
possuíam os meios de fazer arte.
Paralelamente, Oliveira (2000: 128) explica que no início dos anos 60 do século passado,
o Tamborileiro teria já
(...) desaparecido há aproximadamente 50 anos da maioria das localidades onde
era tradição – de Serpa, nas festas de S. Pedro; de Moura; de Aldeia Nova de S. Bento,
no círio do Espírito Santo e nas festas de Junho, onde também acompanhava as
Danças dos Coices; de Brinches e das Pias, na Santa Luzia; de Santo Amador; de
Safara, na festa das Endoenças, que era muito concorrida; da Póvoa, no S. Miguel;
da Granja, no S. Sebastião; etc., – o tamborileiro pode contudo ver-se ainda em
Barrancos, nas Festas de Santa Maria, em Santo Aleixo, nas de Santo António e da
Tomina, e em Vila Verde de Ficalho, nas da Senhora da Pazes. [acrescenta ainda que
a flauta e o tamboril são aqui utilizados com] (...) funções nitidamente cerimoniais,
e o seu repertório reduz-se a uma breve fórmula de feição tradicional20.
No século passado, e noutras regiões de Portugal, existe referência, por parte de Michel
Giacometti, à presença de Flautas de Tamborileiro na Beira Alta e na Beira Baixa, zonas
fronteiriças com a região de Salamanca na província espanhola de Castela e Leão, onde o
instrumento mantém, ainda hoje, um grande enraizamento (Correia, 2004).
Como podemos observar, são numerosos os testemunhos que nos relatam a presença
e a prática da Flauta e do Tamboril em Portugal em diversas regiões do país, testemunhos
esses que se dão em torno das várias práticas que se desenvolvem aquando das romarias e
das festas patronais, nas quais a figura do Tamborileiro desempenharia um papel influente.
Neste sentido, seria figura de destaque no peditório, no qual percorria as ruas da povoação
anunciando a presença do Santo, dos festeiros e do fogueteiro, para que todas as casas da
povoação estivessem receptivas à sua passagem. Noutros momentos, surge aquando da
alvorada que se inicia na madrugada dos dias de festa, anunciando as cerimónias religiosas
e litúrgicas que se seguiam em honra do patrono21. A sua presença manifestar-se-ia tam-
bém aquando da procissão, neste caso tocando à frente do cortejo. No caso dos bailes, dos
138 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
quais ainda possuímos alguns registos, a figura do Tamborileiro fazia face às necessidades
musicais de uma ação dançante, ação essa na qual os moços e as moças da região poderiam
encetar conversa e um contacto mais próximo se assim o desejassem.
No que concerne os bailes, Nunes (1899: 20-21), refere as danças “religiosas” bailadas
ao som do Tamborileiro, nomeadamente,
(...) na Festa do Espírito Santo, Aldeia Nova de S. Bento; nas festas das Pazes,
em Vila Verde de Ficalho; na Festa da Tomina, em Santo Aleixo; na Festa de Santa
20
No entanto, nestas mesmas povoações ainda hoje encontramos a figura do Tamborileiro aquando das festas
e romarias da região.
21
Aqui existem vários relatos da Flauta e do Tamboril tocados dentro do templo, da Igreja.
Luzia, em Pias; entre outras, [as quais estariam já em decadência. No entanto, temos
que referenciar as danças “populares e amorosas”, presentes na margem esquerda do
rio Guadiana, nomeadamente, [(...) os bailes de roda, o maquinéu, os pinhões, o seu
pésinho, o fandango, os escalhavardos, o sarilho, e o fogo del fuzil.
A proximidade entre povoações dos dois lados da fronteira evidencia-se nesta afir-
mação, pelo que, e no caso da povoação de Vila Verde de Ficalho (Serpa), e a povoa-
ção espanhola de Rosal de la Frontera (Huelva), se mantém ainda hoje laços estreitos de
colaboração23. Musicalmente sobressaem as suas semelhanças, mas, sobretudo, as suas
dissemelhanças, pois que o Tamborileiro alentejano usa um Tamboril de dimensões consi-
deráveis, cujo som é grave, acarretando, na sua forma de tocar, a exigência de ritmos lentos
e simples, característica que encontramos também nos Tamborileiros das terras vizinhas
de Huelva. Já os Tamborileiros das regiões mais a Norte, utilizam Tamboris de menores
dimensões, instrumentos que permitem a execução de ritmos mais complexos e rápidos,
139 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
próprios a um repertório mais expedito.
Na Península Ibérica, e no que ao traje diz respeito, não nos deparamos com qualquer
particularidade, pelo que aduzimos que não existe nada de relevante a mencionar. Já no que
concerne a sua ocupação profissional, podemos atestar que os tamborileiros se encontravam
ligados a atividades de pastorícia e criação de animais, o que lhes permitiu aceder à Flauta
22
Neste sentido, era muitas vezes o Tamborileiro que, tendo conhecimento de todas as especificidades do ofício,
indicava o caminho a seguir no peditório, e demais ações a cumprir nas festas. Fruto dos vários anos de ex-
periência no ofício, a sua figura surge assim, como a presença e saber de uma cultura e tradição externa à sua
própria prática. A sua ação não é, neste sentido, pura e unicamente musical, mas também social e ritualista.
23
Ainda hoje são conhecidas as visitas de Rosal de la Frontera à Festa de Nossa Senhora das Pazes em Vila
Verde de Ficalho, acompanhadas do Guião de Santo Isidro e do Tamborileiro.
de três furos e ao uso de peles de cabra nos Tambores24. Breyner (1900: 72) afirma a este
respeito que “(...) o ser tamborileiro foi sempre de exclusiva competência dos cabreiros”.
Este oficio é aquele ao qual estavam (e ainda estão ligados) alguns antigos Tamborileiros,
como é o caso do Tamborileiro de Santo Aleixo que detinha a ocupação de pastor (Oliveira
2000: 132), ou do Tamborileiro de Aldeia Nova de S. Bento, que Michel Giacometti foi
encontrar no Monte de Belmeque. Este encontro deu-se na década de sessenta do século xx,
trabalhando o mesmo como “vaqueiro” e “porqueiro” simultaneamente.
De carácter artesanal, e muitas vezes feitos pelo próprio tocador, ou por algum artesão
local, a aprendizagem da feitura e da maneira de tocar os instrumentos era feita tanto em
contexto familiar, como pela observação de outros Tamborileiros. Estes podiam pertencer,
não só a regiões mais próximas da sua área de influência, como a povoações vizinhas. No caso
de povoações da raia, esta observação poderia, inclusive, ser feita do outro lado da fronteira,
o que lograria conduzir à apropriação de outras formas de tocar os instrumentos, outros
ritmos e melodias25. Verificamos identicamente uma evolução na sua prática interpretativa
e musical, assim como na maneira como o conjunto instrumental se apresenta. Neste fazer,
o juntar de outros instrumentos ao conjunto primeiro, leva a uma alteração desse mesmo
conjunto instrumental e, consequente, da sua natureza timbrica e instrumental. O alarga-
mento e desenvolvimento da natureza melódica, rítmica, harmónica e timbrica do conjunto,
assim como da densidade e natureza do discurso musical construído, dimensiona uma ação
interpretativa outra, que se mostra mais densa e transmissora de um outro fazer artístico,
musical e cultural. Podemos ainda afirmar, e especificamente em relação à região sul do
nosso país que, e sem qualquer hesitação, a prática da Flauta e do Tamboril a acompanhar
o canto, ou outros instrumentos, embora não conhecidos enquanto registos no território
português, se encontram presentes numa prática instrumental em que a Flauta e o Tamboril
estão acompanhados pela Viola Campaniça, instrumento popular nesta região, e que poderá
ter partilhado o seu repertório com a referida formação. Este facto surge como elemento
potenciador de um desenvolvimento musical, cultural e social diferenciado26.
140 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
A prática da Viola Campaniça surge hoje mais viva em Portugal. Sabemos que ressur-
giu o interesse por este instrumento, o que levou a um reaparecimento dos seus tocadores
24
Neste sentido, podemos aferir que a Flauta de Tamborileiro, também conhecida por Flauta de três furos, é
particularmente conhecida não só em Portugal como em Espanha, estando muito divulgada ao nível dos
instrumentos tradicionais. De fabrico artesanal, este instrumento alargou o seu perímetro de influência a
outros continentes que não o Europeu, sempre com a função de animar festividades. Recorrendo a um só
músico, o facto permite uma maior versatilidade de ação e um menor custo para os romeiros.
25
Esta apropriação de elementos de um e outro lado da fronteira encontra-se descrita e considerada na
observação e análise dos documentos que nos foram disponibilizados.
26
Neste sentido, é possível encontrar na Biblioteca-Museu da povoação de Vila Verde de Ficalho um
velho exemplar de Viola Campaniça, que nos pode remeter para o uso deste instrumento na formação
instrumental em análise.
na região do Alentejo, para nós um sinal de que se poderá recuperar a tradição não só da
prática deste instrumento a solo, como da tradição Tamborileira na região. Revela-se então
fundamental, e necessário, proteger e estudar o pouco repertório ainda existente sobre
a forma de tocar deste instrumento, bem como a dos Tamborileiros alentejanos, pois o
património é rico e passível de se perpetuar no futuro. A riqueza deste património poderá
constituir-se factor de progresso económico destas regiões, revelando-se o capital necessá-
rio para a criação e o desenvolvimento de uma diferente atratividade dos territórios e, con-
sequente, das regiões e do país a que pertencem. Apesar de ainda raro e difícil, cremos crer
que, fruto do interesse das novas gerações pelo que é da terra, pelo que é autêntico, pelo
que é natural e tradicional, os fará, a médio e longo prazo, procurar as raízes e tradições de
um povo que é o seu, tornando-os motores de desenvolvimento e renascimento dos terri-
tórios. Neste sentido, a prática Flauta e do Tamboril, não só no Alentejo, mas progressiva-
mente em outras regiões do país, poderá vir a ser, dadas as peculiaridades e especificidades
dos instrumentos, um fator de desenvolvimento regional que levará inevitavelmente a uma
revitalização da figura do Tamborileiro como forma de dinamizar os territórios, revitalizar
tradições e recuperar a memória musical das gentes pela preservação e recuperação dos ri-
tuais e ritos ao seu uso inerentes, bem como dos instrumentos musicais, elementos de um
património material e imaterial que devemos preservar27.
De referir que o interesse crescente pela área da etnomusicologia e da organologia ao nível das ciências musi-
27
Apesar das transformações que inevitavelmente ocorrem nos territórios, a carga sim-
bólica e o espaço das vivências que revelam, constituem a identidade que se mostra na
forma de ser e estar de um povo, e na sua relação com o meio. De acordo com diversos
autores, é na alternância entre o tempo de trabalho e o tempo de ócio, que o tempo se
revela e demarca, em tempos de fainas e de romarias,
em que moços e moças, velhos e velhas, escorreitos e aleijadinhos, se enca-
minham, por montes e vales, às vezes durante léguas e léguas, ao Santuário da
sua devoção, em grande concurso do povo, que, feitas as preces, cumpridas as
promessas ou dados os louvores ao orago, se liberta, numa alegria rútila e saudá-
vel, de cuidados e canseiras, folgazando, mercadejando, comento e amando em
142 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
toda a simplicidade de espírito e sem qualquer ideia de ofensa aos lugares sagrados
(Lopes- Graça s.d.: 35).
28
De notar, que esta Gaita, a norte, possui dimensões menores, pelo que produz sons mais agudos por oposi-
ção às suas congéneres de Huelva e Badajoz, cujas dimensões maiores nos presenteiam com sons mais graves.
29
Esta diferença em relação ao território português surge como uma mais valia para este estudo, dado que nos
revela, a riqueza e a evolução dos grupos instrumentais nos diferentes países e regiões, evolução essa que se
mostra fruto de uma cultura, de uma sociedade, e de uma economia bem diversa, que se desenvolve nos dois
lados da fronteira.
Nestas romarias, a música e a dança possuem um papel de relevo, dando ordem e mes-
tria ao que de mais inato e percebido o homem detém. Assim, é necessário perceber que a
música não está dissociada do homem enquanto ser pensante, e que tem, no momento da
festa e da romaria, a oportunidade de mostrar um pouco mais livre. Estas vivências são, no
nosso entender, especialmente importantes no decorrer de práticas sociais e culturais que
padronizam comportamentos e relações sociais.
Na província de Andaluzia assistimos a uma mescla de práticas cujos repertórios mu-
sicais, seja dos grupos de tamborileiros ou dos grupos de flamenco, seguem modelos bem
definidos e institucionalizados, referentes ao património social e cultural da Romería de
El Rocío30. Sabemos que as romarias estão sempre ligadas às manifestações populares pagãs
que secundam a festa religiosa. Neste sentido, devem ser vistas como demonstrações cultu-
rais e rituais de quem o homem se apropria enquanto crente e temente a um Deus maior.
Para Arregi (1993: 532)
a la religiosidad popular pertenecen las ideas de una comunidad sobre los seres
sobrenaturales y su influencia en la vida (creencias), así como las prácticas mediante
las cuales el individuo o la colectividad se pone en relación con estos seres (ritos).
Esta religiosidade, visível nas festas populares entre as quais vimos a destacar as ro-
marias e as peregrinações aos santuários, e nas quais se englobam a prática musical
dos Tamborileiros, mostra-se também nos elementos estudados e característicos das
Festividades de Santo Isidro em Rosal de la Frontera, São Mamede em Aroche e Santo
António em Cortegana. A religiosidade presente nestas festividades em honra das imagens
titulares das festas e irmandades de cada região, constituem-se espaços de determinação
religiosa e cultural que não podemos, nem devemos escamotear, e que podem ser vistos
como ferramentas de desenvolvimento social, económico e territorial de inegável valor e
eficácia. No que concerne as irmandades, estas encontram-se presentes nos dois lados da
fronteira, sendo bastante importantes no desenrolar das festas, das romarias e dos rituais.
143 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
A presença dos seus Mordomos na organização das festividades em honra dos seus Santos
Padroeiros, frequentemente associadas a Ermidas que se situam na periferia das aldeias
e povoações é da sua inteira responsabilidade. Em outro, sabemos que é em volta destas
Ermidas e Santuários que se conservam com maior fervor as crenças populares, e onde têm
lugar as festividades mais importantes para o povo. Organizando-se de forma similar em
todas as regiões, seguem padrões pré-definidos, pois que desempenham um papel e uma
O calendário festivo das gentes de Andaluzia segue as antigas festividades religiosas romanas que organizam os
30
tempos do homem diferenciando-o do tempo de ócio ou do tempo de lazer. As festividades que se celebram têm
por base o calendário pagão, comemorando distintos momentos da vida; as festividades dos santos padroeiros
de cada região, também. Notamos igualmente a apropriação da cultura nas diversas regiões e o enriquecimento
das suas formas musicais pela incorporação de elementos da dança e do folclore de um dado território.
função muito importante para esse mesmo povo, tanto do ponto de vista religioso, como
do ponto de vista profano, no qual se englobam os aspectos político, social, artístico e
cultural aí vigentes31.
Mas não só em Portugal e em Espanha se verifica a existência desta prática musical –
o Tamborileiro. E, mesmo que a presença e a execução conjunta da Flauta associada ao
Tamboril esteja presente em todos os países da Europa, é só a partir do século xvii que
este conjunto instrumental toma a sua forma definitiva, dado que é neste período que as
artes e tradições populares se afirmam. Neste sentido, podemos constatar a presença do
Tamborileiro, da Flauta e do Tamboril, em inúmeras representações de pintores ao longo
dos tempos, tais que Joseph Vernet (1714-1789), Jacques Rigaud (1680-1754), Antoine
Raspal (1738-1811) e Nicolas Lancret (1690-1743). Em França, a presença de músicos
provençais em Paris faz aparecer aí, a figura do Tamborileiro. De referir, neste sentido, as re-
presentações de Joseph-Noël Carbonel (1741-1804) e Jean Joseph Châteauminois (1744-
-1815). No entanto, o início do século xix foi um ponto de viragem para a presença do
Tamborileiro em França, nomeadamente na sua capital, Paris, pois a Revolução Francesa
e a queda da Monarquia põem fim ao uso regular deste conjunto instrumental, dando
lugar às orquestras32. Relegados para segundo plano e obrigados a deslocar-se para ou-
tras regiões do país, encontramos a figura do Tamborileiro na região de Vaucluse e em
Arles. No entanto, e mais recentemente, notamos que a presença do Tamborileiro em
regiões como as de Provence e Gascogne onde o uso destes instrumentos, a Flauta e o
Tamboril, se encontra bem enraizado e conservado. Em Provence, a Flauta é denomi-
nada de Galoubet e em Gascogne, de Flabuta, como referido anteriormente. Nas duas
regiões o Tamboril é denominado de Tambourine e o instrumentista de Tambourinaire.
Relativamente aos instrumentos utilizados, percebemos que os Tambores são bastante
semelhantes, no que ao seu diâmetro diz respeito, e em relação aos usados na Península
Ibérica. Contudo, notamos que são maiores em profundidade e mais ricos em relação à
sua decoração33.
144 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
31
De referir que, a romaria, possui um carácter mais lúdico e festivo que as festividades religiosas em torno do
patrono. Na província de Andaluzia predomina a romaria. Este facto surge como factor diferenciador face a
outras festividades desta região espanhola.
32
Já referimos que, e no caso de Portugal, esta prática se viu constrangida, se não aniquilada e desmerecida,
pelo florescimento das Bandas Filarmónicas.
33
De salientar ainda que este conjunto instrumental assoma também em Inglaterra, Itália e nos Países Baixos,
assim como na Eslováquia, República Checa e Rússia. Nestes países mais a oriente, a Flauta é tocada a solo
não requerendo a presença do Tambor.
decorrem de um saber que se quer continuado, e que, os franceses, relevam aquando das
suas festas e romarias. Ao nível de um ensino formal e institucional, a formação faz-se em
escola contribuindo para o seu desenvolvimento. No entanto, percebemos que somente as
Regiões de Marselha, Aix en Provence e Toulon mantém, ainda hoje, a tradição popular do
Tamborileiro, sendo possível encontrar a disciplina de Flauta de Tamborileiro em diversos
Conservatórios de Música em França34, facto que nos permite aferir da importância do
folclore e das tradições nestes territórios35.
Por outro lado, não só a formação de músicos em contexto formal mas, sobretudo, a
sua formação em contexto informal, permitem a prática sistemática destes instrumentos.
O uso deste conjunto instrumental, em contextos sociais e festivos mais tradicionais e
populares, como são as festividades, as festas e as romarias populares, permitem que os
mesmos não se extingam e, a sua presença, seja de grande valor para o desenvolvimento
e para a continuidade de uma prática em contexto. Os grupos de música tradicional,
os grupos e associações folclóricas, as casas da música, os centros de interpretação, e
demais agentes promocionais de cultura e tradição, possuem aqui um papel fundamen-
tal. Simultaneamente, os grupos folclóricos provençais permitem preservar a cultura e
as tradições locais, dado que os trajes, as danças e as músicas são executadas ao som da
Flauta de três furos (Galoubet) e do Tamboril, pondo em relevo o nome desta região.
Durante as suas representações, estes grupos usam instrumentos tradicionais da região
de Provence. Acompanhando a Farandola, uma dança tradicional, este conjunto instru-
mental está presente nas Festas de São João, Santo Elói, nas cavalgadas, podendo ainda
animar casamentos, aniversários e outras cerimónias a pedido dos seus organizadores. As
festividades de São João em particular, possibilitam a presença dos Tamborileiros num
costume provençal que remonta à região da Catalunha, onde as fogueiras de São João
eram presença habitual nos rituais associados a estas festividades. Estas práticas estendem-
-se desde o Principado do Mónaco até à região dos Alpes, sendo motivo de festejos e
ajuntamentos populares vários. Esta tradição, presente desde o século v, ligada aos cultos
145 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
pagãos dos Solstícios, foi transformada pelos cristãos, consentindo o uso das fogueiras
34
Em 1864 é fundada uma Academia do Tamboril em Aix o que promove a criação de uma classe, mesmo que
efémera, de Tamboril no Conservatório de Aix. Em Marselha surge em 1888 um movimento de conservação
do tamboril e, depois da Primeira Grande Guerra (1914-1918), é revitalizado este conjunto instrumental
pelos grupos folclóricos. René Nazet publica mesmo em 1964 um Método Elementar de Flauta e Tamboril
da autoria de Maurice Guis. Atualmente existem classes de Tamboril em diversas Escolas e Conservatórios
de Música em Aix, Avignon, Arles e Martigues.
35
Neste sentido, e fruto de uma prática informada, a presença de um conjunto tão característico como este
nas festividades populares e regionais, conduz à revitalização não só desta prática, como dos patrimónios
material e imaterial das regiões referidas. Simultaneamente, pode ser um marco diferenciador na cultura e
nas tradições, assim como um fator de desenvolvimento económico, social e cultural.
aquando das referidas Festas36. As Festas em honra de Santo Elói, padroeiro dos ferreiros
e dos animais, eram acontecimentos onde os desfiles realizados em volta destes eventos
eram acompanhados pelas Flautas e Tamboris, tocando árias tipicamente provençais ao
ritmo de danças populares e tradicionais37.
Se a disseminação e importância deste conjunto instrumental, denominado de Flauta
de Tamborileiro, se encontra ligada a diversas formas de culto que se acham já desde a
Idade Média, verificamos que esta disseminação se faz relevante também pela natureza da
sua prática instrumental. A correspondência desta, com as danças e as coreografias que
acompanham a prática musical da Flauta e do Tamboril, práticas essas que se encontram
relacionadas, a nível religioso com as festividades do Corpo de Deus e, a nível pagão, com
as festividades do Solstício e as Recoltas de Verão, é marcante. De notar ainda que os
trajes usados nas festividades pagãs são parecidos: vestes brancas com cinturas e chapéus
engalanados com flores. As coreografias são também elas muito similares, pois são danças
em volta de um mastro, com cintas que se entrelaçam em movimentos circulares bem
ensaiados38. Concomitantemente, não podíamos deixar de referenciar neste trabalho, a
presença deste conjunto instrumental do outro lado do Atlântico, nomeadamente por
Terras de Vera Cruz e no México. No que concerne o uso deste conjunto instrumental
nesta região do globo, podemos afirmar que as culturas Inca e Asteca já usavam este tipo
de instrumentos antes da chegada dos Portugueses e dos Espanhóis, pelo que, não será de
estranhar a presença destas características e modos de dizer o musical nas suas danças. Esta
36
Em 1955, um grupo de escalda, ao chegar ao cimo do Monte Canigou próximo de Perpignan, alumia
todo o vale de luz para relembrar o costume dos povos Celtas que, instalados na província de Roussillon,
acendiam fogueiras para alumiar toda a região aquando do Solstício de Verão. Depois de 1963, esta chama
de São João desce da montanha e chega à localidade de Perpignan afim de permitir a todos os habitantes o
acesso à chama de Canigou. Ao longo do seu caminho, esta chama é transportada por indivíduos vestidos
de branco e transmitida às localidades vizinhas. Atualmente, esta chama está presente em Arles e todas as
localidades de Provence que aí vêm buscar a chama, revitalizando uma série de tradições presentes nas mú-
146 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
sicas, danças, profissões e utensílios usados em épocas anteriores. Num caso como no outro está ligada ao
Solstício de Verão, conservando as suas características pagãs.
37
As Festas em honra de Santo Elói, padroeiro dos ferreiros e dos animais, são celebradas em dois momentos
distintos: a festa religiosa no dia 1 de Dezembro e as festividades pagãs no dia 25 de Junho aquando da
transferência das suas relíquias da Catedral de Noyon para Paris em 1212. Esta festa é um costume Provençal
dos mais coloridos que se realiza ao norte dos Alpes desde Avignon a Toulon. Composta pelas Cavalgadas
dos Carreto Ramados, assim como por charretes engalanadas por ramagens, esta festa é uma homenagem
aos cavalos como ferramenta de trabalho e meio de transporte antes do aparecimento de outros meios de
transporte mais modernos. O desfile de Santo Elói remonta à Idade Média, época em que os aldeões defen-
diam as suas terras e pertences. Esta prática obrigava a que possuíssem uma cavalaria, uma milícia dirigida
por um capitão, e um chefe das cavalarias que portava um estandarte como forma de identificação. Os des-
files são acompanhados pelas Flautas e Tamboris, os Galoubets e os Tambourines, tocando árias tipicamente
provençais ao ritmo de danças populares e tradicionais.
38
De notar que, na sua origem, estas danças com mastros eram danças guerreiras.
presença faz-se notar, nomeadamente na Danza del Venado, uma dança ritual dos índios
Yaquis e Mayos dos estados mexicanos de Sinaloa e Sonora, e dos Voadores de Papantla.
No caso dos Voadores de Papantla, esta tradição, de origem Totonaca, consiste numa
dança em que quatro homens se lançam de uma altura superior a vinte metros de cabeça
para baixo e presos por fitas que se encontram enroladas no seu corpo. À medida que o
ritual prossegue, e a estrutura superior do poste gira, as fitas vão-se desenrolando e os
homens descendo progressivamente até ao solo. A dança dá-se de forma lenta, e o ritual
se faz sacrifício. Pendurados num poste que se encontra encimado pelo Sacerdote – o
Tamborileiro –, que toca de forma contínua os seus instrumentos, a dança prossegue, e
os quatro homens, que simbolizam os quatro pontos cardeais, lançam-se numa descida
extasiada até ao solo. Mostram assim a sua força mas também um sacrifício, um sacrifício
do que é de si para que a comunidade renasça, revitalize e floresça. Do ponto de vista
social, cultural e económico, são, no nosso entender, denunciadores de desenvolvimento.
Não podemos ainda deixar de referir que esta representação da Flauta de Tamborileiro se
encontra presente em quase toda a América Latina, presença essa que se faz sentir desde o
Equador até ao Peru e Venezuela. Não podemos deixar de fazer notar ainda, que a flauta
de três furos também se mostra mais a Oriente, na China, Coreia e Japão. Neste dizer,
permitimo-nos salientar a importância da presença Portuguesa e Espanhola nestes locais,
bem como na disseminação destes instrumentos pelo mundo.
Considerações finais
Referências bibliográficas:
Arregi, Gurutze & Manterola, Ander, (1993) “Religiosidad popular”. In Diccionario temático de
Antropología, Barcelona: Boixareu.
Breyner, Alexandre de Mello, (1900) “O Tamborileiro”, A Tradição, Ano II, nº5, Serpa. (http://
www.archive.org/stream/tradio12lisbuoft#page/n7/mode/2up)
Correia, Conceição e Roquete, Catarina, Michel Giacometti, (2004) Caminho para um Museu,
Câmara Municipal de Cascais.
Jambrina Leal, Alberto e Cid, José Ramón, (1989) La Gaita y el Tamboril, Centro de Cultura
Tradicional, Salamanca.
Lopes-Graça, Fernando (s.d.), A Canção Popular Portuguesa, Lisboa, Colecção Saber, Publicações
148 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Europa-América.
Nunes, M. Dias, (1899), “Danças Populares do Baixo Alentejo” A Tradição, Ano I, nº 1, Serpa.
(http://www.archive.org/stream/tradio12lisbuoft#page/n7/mode/2up)
Oliveira, Ernesto Veiga de, (2000) Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Fundação
Calouste Gulbenkian, Lisboa.
Itinerários literários: Leituras e Leitores
de Camilo Castelo Branco, em particular
Agustina Bessa-Luís
1. Introdução
Sendo a zona da Raia pródiga em autores de renome, quer a ela estejam ligados por
nascimento ou por opção afetiva, conhecer a vida e a obra desses escritores e estabelecer per-
cursos literários será certamente uma mais-valia para a comunidade e para a própria região.
É comum afirmar-se que Camilo Castelo Branco amava o Norte apesar de ter nascido
em Lisboa. De facto, o mestre demostra esse amor na escolha de personagens e locais que
conhece ou lhe são familiares, centrando-se a larga maioria das suas obras de ficção em
Trás-os-Montes ou no Minho onde viveu a maior parte da sua vida e conviveu de perto
com as populações. Contudo, o mais profícuo autor luso e um dos maiores escritores por-
149 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
tugueses do século xix não limita o espaço das suas narrativas a essas duas áreas geográficas,
localizando inclusivamente parte de diversas obras no estrangeiro.
Ainda no respeitante ao território nacional, o autor não foi indiferente às gentes do
Centro. O seu avô paterno, Domingos José Correia Botelho, alcunhado por Bexiga e co-
nhecido pelo Dr. Brocas, formara-se na Universidade de Coimbra em Leis e em Cânones,
tendo exercido funções em Cascais, no Porto, em Vila Real e em Viseu. Assim, a razão para
alguns dos romances de Camilo, ou cenas dos mesmos, se passarem em terras da Beira,
2. Enquadramento Literário
Poderíamos definir Camilo Castelo Branco como um escritor romântico com in-
cursões no Realismo, tendo a maioria dos críticos defendido que foi a figura central do
Ultrarromantismo apesar da sua desafeição a escolas. Tal enquadramento não dispensa um
conhecimento profundo da sua vida já que a existência tipicamente romântica o definiu
enquanto homem e como romancista.
Camilo iniciou os estudos primários em Lisboa, em 1830, mas com a morte do pai, a
22 de Dezembro de 1835, as duas crianças foram viver para Vila Real de Trás-os-Montes.
Os órfãos foram entregues aos cuidados de sua tia paterna, D. Rita Emília da Veiga Castelo
Branco, e do amante desta, João Pinto da Cunha, que fora nomeado tutor dos menores.
Em 1839, Carolina casou-se com Francisco José de Azevedo, estudante de medicina,
integrando Camilo o novo lar em Vilarinho de Samardã, no distrito de Vila Real. Aí, passava
a maior parte do tempo em contacto com a natureza e a vida transmontana, recebendo uma
irregular educação ministrada por padre António José de Azevedo, irmão do seu cunhado.
A vivência de Camilo foi um saltitar de paixão em paixão, de desgosto em desgosto,
de procura constante de um regaço onde se acolher, tendo perseguido, incessantemente,
esse amor, confundindo-o, com frequência, com breves paixonetas. Assim, aos dezasseis
anos casou-se com Joaquina Pereira de França, de quinze, e dois anos depois, após o nas-
cimento da filha, fugiu para o Porto, onde levava uma vida de boémia, iniciando-se então
no jornalismo e na poesia. Em 1845, publicou os seus primeiros poemas: Os Pundonores
Desagravados e O Juízo Final, redigindo também O Sonho do Inferno3. Em 1846, de volta
a Vila Real, apaixonou-se por Patrícia Emília de Barros, fugindo com ela para o Porto.
153 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
João Pinto da Cunha mandou-os prender alegando que lhe haviam roubado dinheiro e,
até se provar a sua inocência, a 23 de outubro, o casal permaneceu na Cadeia da Relação
do Porto, de onde o escritor escreveu a Alexandre Herculano pedindo-lhe proteção. Nessa
data, Camilo passou a colaborar nos periódicos O Nacional e Periódico dos Pobres, estreando-
-se ainda como dramaturgo com a peça Agostinho de Ceuta.
Em 1847 Camilo e Patrícia Emília regressaram a Vila Real tendo nascido, a 25 de
Junho de 1848, Bernardina Amélia Castelo Branco, fruto dessa relação. Contudo, Camilo
Dado o elevadíssimo número de obras do autor, apenas referiremos o nome e a data de publicação de al-
3
gumas que nos pareceram mais importantes por assinalarem uma iniciação de género ou uma inovação de
estilo, ou, ainda, por serem obras mormente conhecidas ou apreciadas.
abandonou mãe e filha pouco depois e voltou para o Porto onde entrava em polémicas
acesas n’ O Nacional.
Na primeira fase do autor está patente a influência de cultores do romance negro como
Ana Radcliffe (1764-1823) e Eugène Sue (1804-1857) tendo Camilo publicado folhetos
de cordel anonimamente. Foi então que fez uso de inúmeros pseudónimos, não conse-
guindo, no entanto, disfarçar a autoria dos mesmos, dado o cunho inconfundível da sua
escrita e o tom jocoso a eles associado. Há a destacar, por ordem cronológica, Arqui-Zero,
Barão Gregório, O Cronista, Fouché, Ninguém, Saragoçano, Anastácio das Lombrigas,
Carolina da Veiga Castelo Branco, Anacleto dos Coentros, AEIOUY, C. da Veiga, A Voz
da Verdade, Visconde de Qualquer Coisa, O Antigo Juiz das Almas de Campanhã, José
Mendes Enxúndia, D. Rosária dos Cogumelos, João Júnior, Manuel Coco, Modesto,
Felizardo, e Egresso Bernardo de Brito Júnior.
De 1848 a 1850, Camilo residiu no Porto onde colaborou no Jornal do Povo e convi-
veu com os “mais notáveis e esperançosos talentos da burguesia portuense”4 pertencendo
ao grupo dos Leões do café Guichard. Frequentava teatros e cafés, envolvia-se em brigas e
duelos, vindo também a cometer uma tentativa de suicídio da qual o salvou José Augusto
Pinto de Magalhães, morgado da Quinta do Lodeiro e mais tarde uma das personagens
principais do romance Fanny Owen de Agustina Bessa-Luís. Apesar da educação marcada-
mente eclesiástica que fez dele um crítico do suicídio, a sua vida trágica levou-o a ponderá-lo
e tentá-lo por diversas vezes.
Foi em 1850 que Camilo redigiu Anátema, o seu primeiro grande romance. Também
participou na polémica “Alexandre Herculano e o clero”, assumindo-se como escritor pú-
blico. De facto, a escrita seria, a partir de então, a sua única profissão e fonte de rendi-
mentos. Consta que foi nesse ano que se cruzou pela primeira vez com Ana Plácido e se
matriculou no Seminário Episcopal. Em 1852 e 1853, fundou, respetivamente, os jornais
religiosos O Cristianismo e Cruz. A sua participação jornalística manteve-se, sendo de
assinalar que Camilo se tornou redator do jornal Porto e Carta. A partir de 4 de Março
154 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
de 1853, o romance Mistérios de Lisboa foi sendo publicado, em folhetins, no diário por-
tuense O Nacional, tendo sido editado em livro em 1854. Em 1855, publicou as obras
Cenas Contemporâneas e O Livro Negro do Padre Dinis, vindo a luz, em 1856, o romance
Onde Está a Felicidade? que foi recebido com agrado pela crítica e a partir do qual se crê
que o autor atingiu a maturidade literária. São desta fase os romances passionais de forte
intensidade dramática em que revisita temas como a bastardia, a orfandade, o abandono
das mulheres, a reclusão em conventos das raparigas apaixonadas e os amores fatais.
4
CASTELO BRANCO, Camilo. Anátema. Lisboa, Círculo de Leitores, 1981, pp. 24.
Em 1857, Camilo e Ana Plácido viviam já uma relação íntima, tendo pouco cuidado
em esconder o adultério que em breve se viria a tornar público. Vãs foram as tentativas
de Manuel Pinheiro Alves, abastado marido de D. Ana, para afastar os apaixonados e
silenciar a sociedade portuense pois, decidida a lutar pela felicidade ao lado do homem
que amava, Ana Plácido abandonou o lar conjugal em 1859, levando o seu filho, Manuel
Plácido, e indo viver com Camilo. Foram presos na Cadeia da Relação do Porto, em 1860,
sob a acusação de adultério. Aí Camilo trabalhava sem cessar e gozava de um tratamento
especial. Para além de ter colaborado na imprensa do Porto e de Lisboa, redigiu diversos
livros. A segunda passagem do mestre pela prisão foi imprescindível para o seu amadure-
cimento enquanto homem e enquanto escritor: “Enfim, a estada na prisão levou Camilo a
concentrar-se, a debater no seu íntimo os grandes problemas morais; mais ainda: apressou
a maturidade do escritor; a sua linguagem tornou-se, dum modo geral, mais reflexiva, mais
densa, com a sóbria contenção do desengano e da sabedoria” (Prado Coelho, 2001: 57).
Após a absolvição, o autor manteve uma intensíssima atividade literária, fruto da ur-
gência catártica e da necessidade económica, o que lhe valeu o reconhecimento por parte da
sociedade cultural de então e uma notoriedade invejável. Em 1861 publicou, para além de
Doze Casamentos Felizes, a obra que mais parecia apreciar: O Romance de Um Homem Rico.
Amor de Perdição, Coisas Espantosas, Estrelas Funestas, Memórias do Cárcere, As Três Irmãs, e
Coração, Cabeça e Estômago foram publicados em 1862. Na última surgem certos toques de
um humorismo discreto que se viria a desenvolver em A Queda dum Anjo e a transformar
na truculenta sátira de costumes de Eusébio Macário e A Corja. Em 1863 publicou, entre
outras, duas obras nas quais faz alusão à Beira: O Bem e o Mal e Noites de Lamego.
Apesar do sucesso do escritor e da absolvição de ambos, a sociedade portuense não per-
doou ao casal que acabou por se exilar, a partir de 1864, na quinta de S. Miguel de Ceide que
fora herdada por Manuel Plácido, filho legítimo de Manuel Pinheiro Alves mas em relação
ao qual havia dúvidas se não seria, na realidade, fruto dos amores entre a sua mãe e Camilo.
A 28 de Junho de 1863, nasceu Jorge, o primeiro filho (legítimo) de Camilo e Ana Plácido,
155 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
tendo Nuno nascido a 15 de Setembro de 1864. Ambos lhes deram muitas preocupações e
desgostos devido aos problemas mentais do primeiro e à vida desregrada do segundo.
Camilo foi publicando, entre 1875 e 1877, as Novelas do Minho, consideradas, a par
com A Brasileira de Prazins (1882), obras de transição do Romantismo para o Naturalismo.
O mestre foi agraciado com o título de Visconde de Correia Botelho, a 18 de Junho de
1885, o que provocou um grande escândalo na sociedade portuense de então, tendo vindo
a casar-se com Ana Plácido, a 9 de Março de 1888, no Porto, pelas dez horas da noite.
Graças à iniciativa de João de Deus, o autor foi homenageado na data do seu 64.º ani-
versário por escritores, artistas e estudantes, mas nada parecia minorar o seu depressivo
estado de espírito dada a iminente cegueira. No dia 1 de Junho de 1890, o conceituado
oftalmologista Edmundo de Magalhães Machado observou o mestre e recomendou-lhe
uma cura de águas no Gerês. Compreendendo o subterfúgio, Camilo desferiu um tiro de
revólver na têmpora direita enquanto Ana Plácido acompanhava o médico à saída.
4. Leituras Camilo
“A sua maneira de escrever é bem reveladora da formação que recebeu, no assíduo con-
tacto com os clássicos portugueses, mas também da natural inclinação para a eloquência,
expressa num estilo simultaneamente vigoroso e coloquial, literário e popular, dramático e
cómico” (Prado Coelho, 2001: 44).
Inúmeros são os leitores de Camilo, divididos em diferentes faixas etárias, extratos so-
ciais e épocas, nos vários suportes que a leitura oferece. Do mais simples lavrador ao mais
conceituado analista literário a todos ele conquista com o tema, o enredo ou a linguagem,
no âmbito do texto literário, da literatura marginal, de folhetos vários, de representações
teatrais ou reflexões filosóficas. “Camilo, escritor de novelas, personagem de novela (…)
Camilo mexe connosco, os seus leitores. Faz-nos participar nas suas novelas, incita-nos a
refletir, obriga-nos a tomar partido como se nos consultasse e lhe fosse indispensável a nossa
opinião de leitor, um diagnóstico médico que ele, impaciente, aguarda” (Ferreira, 1997: 55).
Para além das análises académicas, emergem outras abordagens nomeadamente na
ficção e na arte pictórica, sendo de salientar alguns dos nomes da cultura que, atraídos
pelo estilo, pela obra ou pelo temperamento do mestre, foram leitores de Camilo e vieram
a assumir esse fascínio e a dar as suas leituras a públicos diversificados, num diálogo trans-
versal que pode adotar diversas variantes, como o género literário, o cinema ou a pintura.
Contudo, seria impossível assinalar neste breve artigo os inúmeros leitores de
Camilo5,nomeadamente os camilianistas cujos ensaios vão desde 1888 até aos nossos
dias, pelo que nos cingiremos a alguns dos nomes incontornáveis da cultura portugue-
sa e estrangeira, entre os quais destacamos Agustina Bessa-Luís, Alexandre Herculano,
António Lopes Ribeiro, Aquilino Ribeiro, Carlos Botelho, Eduardo Lourenço, Francisco
José Viegas, Francisco Moita Flores, Francisco Santos, Guerra Junqueiro, Jacinto do
158 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Prado Coelho, José Régio, Júlio Pomar, Luiz Francisco Rebello, Manoel de Oliveira,
Mário Cláudio, Miguel de Unamuno, Paula Rêgo, Ramalho Ortigão, Raúl Ruiz, Teresa
Bernardino, Teixeira de Pascoaes, Teófilo Braga, Vasco Graça Moura, Vasco Pulido Valente,
Vieira de Castro, Vitorino Nemésio.
Agustina tem vindo a evidenciar, não só uma desmesurada atração pelo mestre e um
conhecimento abrangente da sua obra, como também características de escrita comuns
que nos permitem ver nos seus textos um reflexo do primeiro profissional das letras lusas.
A ascendência de Camilo está patente quer ao nível do conteúdo, quer no que respeita aos
5
Vide DANIEL, Daniela Maria Vaz. Leituras e Leitores de Camilo Castelo Branco, em especial, Agustina Bessa-
-Luís. Dissertação de Mestrado, Universidade da Beira Interior, 2010.
temas ou ao tom utilizado pela autora. As semelhanças mais óbvias poderão prender-se
com a localização espacial da ação e as vivências do povo nortenho, uma vez que inúmeras
narrativas da autora e a grande maioria das do mestre decorrem no Norte, particularmente
na zona de Entre Douro e Minho, cujas gentes e suas existências os fascinaram, vindo a
ser o mote de diversas obras. Outras características comuns são a proficuidade de ambos,
a versatilidade de géneros e a inspiração em factos reais já que os dois se apoiam em estó-
rias verídicas para a redação de belos romances ou novelas, e ambos nutrem prazer pelos
romances históricos. Cremos ainda que Agustina, na senda de Camilo, tem a preocupação
de fazer denúncia social e comunga da ironia e do sarcasmo que tanto seduziam o mestre,
sendo esta característica marcante na sua obra. Outra característica destacada em Agustina
que nos faz pensar na influência de Camilo é o prazer que a autora parece sentir ao analisar
os sentimentos e as relações humanas, conforme atesta Bigotte Chorão: “[…] Agustina,
romancista que é sobretudo – romancista de lúdica e, não raro, implacável análise dos
sentimentos e das relações humanas […]” (Chorão, 1987: 156-157).
Agustina Bessa-Luís tem retratado “o tipo-limite do génio português” como ninguém,
pelo que este estudo incide sobre a sua caracterização a partir das obras Fanny Owen e
Camilo: Génio e Figura. Todavia, consideramos importante ressalvar que tanto os nossos
juízos de valor como os da autora poderão não ser fiéis pois Camilo possuía uma personali-
dade obscura que até na vivência do quotidiano era difícil de conhecer, como o salienta em
Camilo – A Obra e o Homem, João Bigotte Chorão: “As contínuas contradições de Camilo
– negando hoje o que afirmava ontem, resignado um dia, revoltado no outro, rezando para
depois blasfemar –, essas contradições tornam problemática, e mesmo abusiva, a tentativa
de catalogá-lo” (Chorão, 1979: 61-62).
Porém, e apesar do risco que corremos, pensamos que tem a maior pertinência refletir
sobre a imagem que de Camilo veio, de geração após geração. Aliás, a romancista teve a
preocupação de nos presentear com uma representação fidedigna, como afirma no prefácio
de Fanny Owen: “Pareceu-me necessário e útil trazer Camilo Castelo Branco à luz da nossa
159 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
experiência humana sem o traduzir na opinião de escritor que é a minha” (Bessa-Luís,
1985: prefácio).
De facto, e contrariamente ao que na autora é habitual, Agustina incluiu um prefácio
à obra Fanny Owen, para explicitar a génese do mesmo, utilizando a ironia que, no nosso
entender, herdou de Camilo: “Não é coisa usual eu incluir prefácios nos meus livros.
Entendo que eles se recomendam como os peregrinos de Santiago, pelas conchas que têm
no chapéu e que simbolizam a viagem no sentido supremo, de descoberta, testemunho
e redenção” (Bessa-Luís, 1985: prefácio). Mas, o encantamento de Agustina pelo nosso
autor vem de longe. O seu primeiro ensaio surge em 1964, na revista O Tempo e o Modo,
num artigo denominado “Camilo Castelo Branco, Um pé dentro do mar, outro na areia”.
Posteriormente, a 26 de Dezembro de 1978, redige o estudo A Enjeitada, que reeditará,
em 2008, integrado na obra Camilo: Génio e Figura. O seu magnetismo fará com que a
autora se venha a debruçar sobre a sua vida e a sua obra transformando-o numa “entida-
de” do romance Fanny Owen ou em personagem nos textos dramáticos “Ana Plácido” e
“O Tempo de Ceide”, textos esses incluídos no livro Camilo: Génio e Figura.
Na nossa opinião, e tal como Eduardo Lourenço afirma, Agustina Bessa-Luís é a her-
deira de Camilo, quer a nível temático, quer no que respeita à narrativa, estando assim a
escritora associada à corrente neorromântica. Algumas das asserções de Agustina, proferi-
das numa entrevista à Sociedade Portuguesa de Autores, revelam essa atração, claramente
assumida, que Camilo exerce sobre si, chegando a escritora a apontar Bernardim Ribeiro e
Camilo Castelo Branco como figuras tutelares do nosso passado literário.
Assim, demonstraremos como a sua mais profícua leitora tem potenciado a obra
do mestre muito para além das letras, nomeadamente nas duas obras sobre as quais nos
debruçaremos de seguida.
aquando das lutas liberais. José Augusto e Camilo Castelo Branco frequentavam o mesmo
círculo literário tendo-se tornado amigos. Aparentemente, estavam ambos apaixonados por
Fanny e José Augusto sentia ciúmes de qualquer tipo de cumplicidade entre a sua amada e o
escritor. José Augusto raptou Fanny com a intenção de se casar com ela. Quando lhe comu-
nicou tal facto Camilo tentou dissuadi-lo e posteriormente enviou-lhe um embrulho com
as cartas que a musa de ambos lhe escrevera, datadas de quando já havia um compromisso
entre Fanny e José Augusto. Este, sentindo-se ferido no seu orgulho e, apesar da aparente
ingenuidade das missivas, acusou Fanny de o ter humilhado e informou-a de que, mesmo
que mantivesse o casamento, nunca a chamaria sua esposa nem viveria com ela. A cerimó-
nia do casamento teve lugar sem a presença de nenhum elemento da família Owen e nunca
se consumou. A infeliz definhava a olhos vistos, devido ao desprezo a que a família a votava
e à injusta rejeição do marido, acabando por morrer a curto trecho. Sentindo-se culpado
pela morte da mulher e atormentado com a hipótese de ela não ser virgem aquando do
casamento, José Augusto quis que fosse autopsiada vindo o resultado confirmar a ino-
cência da jovem esposa. Sem a mulher que amara e a quem destruíra, José Augusto viveu
atormentado, vindo a falecer com uma overdose de ópio pouco tempo depois.
A visão de Camilo encontrada na obra Fanny Owen afigura-se-nos algo contraditória já
que Agustina ora o celebriza e enaltece, ora o critica contundentemente. A justificação de
tal atitude parece-nos ser apenas uma: a extrema complexidade do carácter de Camilo que
seduz a autora, sem, no entanto, lhe toldar o poder de discernir um homem egocêntrico,
invejoso, vingativo, insurreto, colérico, frívolo, manipulador, ambicioso, malevolamente
irónico, libertino e mesmo vil. No entanto, também nos apresenta a outra faceta exaltando
a sua sensibilidade, emotividade, inteligência, argúcia, lealdade e, até, generosidade.
portuguesa para ficarmos informados sobre a sua vontade de poder, de conquistar a atenção, a
fama e alma da Praça. Isso acontece com o espírito que é ávido porque é extremamente sobrecarre-
gado de talentos. Aconteceu com Shakespeare, por exemplo (Bessa-Luís, 1985: 112-113).
Timorato: Tanto temia Camilo o punho da sociedade para quem escrevia e que, afinal,
não era persistente na crueldade nem obstinada na estupidez (Bessa-Luís, 2008: 24).
Mordaz: Camilo é um autor que não compulsa o léxico do coração com muita ousadia. Um
Luciano de Rubempré, que desabrocha com Eça num Charlie Gouvarinho, mal entrevisto de ras-
pão numa vitória, “ao trote estepado de duas éguas inglesas”, parece-nos impossível nos romances
de Camilo. Não lhe pedia a alma sagacidades endémicas, e o livro que depôs no regaço de Ana
Plácido, Eusébio Macário, escrito em quinze dias numa prosa sumptuosa e quase estrídula, como
os cantos campesinos do Minho, não é um romance realista, mas um delírio de desapontamento,
de náusea combatida pelo exorcismo do riso. É por isso que, depois de dar franco exercício à sua
língua viperina, viperina como a de Thackeray e humorista como a dele, estaca o olhar sobre
Vítor Hugo e exclama: “Esse velho não era nada tolo!”. E ri-se. Logo a seguir fica outra vez triste,
cismador de cenas patéticas e dolorosas como a do avô que vê entrar o neto ferido pela porta a den-
tro. Ri-se para que a angústia não lhe petrifique o coração, é apenas isso (Bessa-Luís, 2008: 46).
Apreciado: E, agora, eles sabiam que aquele rapaz de quem todos dependiam um pouco,
tanto para escrever um poema como para escolher a amante, estava a convergir para esse centro
de irrealidade e de terrível destruição, onde a rejeição do amor não era mais possível (Bessa-
-Luís, 1985: 80).
Desencantado e Sarcástico: Camilo, como Flaubert, teve desde cedo essa visão duma bibliote-
ca feita para não ser entendida. Achou o mundo vulnerável, a cultura uma fraude, e o intelectual
um depravado. E riu-se. Este riso, nascido como um escudo, para invalidar a força do seu desen-
canto perante a vulgaridade dos homens, esse riso surtiu efeito enquanto a juventude o justificou.
Depois tornou-se numa má consciência, e a sociedade não lhe perdoou. Faltou-lhe a concisão de um
Swift para fazer verdade um estado de alma e não uma figura retórica (Bessa-Luís, 2008: 72).
Erudito: Camilo conhece o significado gramatical e moral de cada palavra, nunca usa um
termo sem propriedade (Bessa-Luís, 2008: 42).
Símbolo da identidade portuguesa: Camilo, lido ou ignorado, mantém-se como o tipo-
-limite do génio português. A Enjeitada tem muito da sistemática fuga à felicidade que, por
estranho que pareça, é muito da nossa índole. Desfrutamos do presente, mas não desejamos
dele senão um furtivo encontro, pois sabemos que a fortuna é sempre ilegítima para os homens,
errantes neste mundo onde tudo acontece e nada se resolve (Bessa-Luís, 2008: 27).
Genial: Quem quiser ler Camilo em esplendor e glória, leia a Maria da Fonte, um dos
maiores livros de língua e fígados e coração portugueses. Camilo é isso: génio truculento, esti-
lo maduro de risadas entre aventuras truanescas e sentimento sufocado de algumas lágrimas.
Homem da nossa lei, nem bom nem fingido; capaz de matar com os olhos fechados e de renegar
163 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
até a honra, se ela é negócio de ferir os outros. Português, não há outro tão grande nas
letras. (Bessa-Luís, 2008: 26).
6. Considerações Finais
7. Referências
7.1. Bibliográficas
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7.2. Fílmicas
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13 episódios da autoria de Francisco Moitas Flores. Lisboa: Antinomia, Produções Vídeo.
OLIVEIRA, Manoel de & Instituto Português de Cinema/IPC, Centro Português de Cinema/
/CPC, Radiotelevisão Portuguesa/RTP, Cinequipa, Tobis Portuguesa. 1978. Amor de Perdição.
Longa-metragem baseada na obra homónima de Camilo Castelo Branco. Lisboa: V.O. Filmes,
Ver Filmes.
OLIVEIRA, Manoel de & V.O. Filmes. 1981. Francisca. Longa-metragem baseada no romance
Fanny Owen de Agustina Bessa-Luís. Lisboa: Rank Filmes de Portugal.
OLIVEIRA, Manoel de & Madragoa Filmes. 1992. O Dia do Desespero. Longa-metragem baseada
na epistolografia e na história verídica de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Atalanta Filmes.
RUIZ, Raúl & Paulo Branco/Leopardo Filmes/Alfama Films Production/RTP. 2010. Mistérios
de Lisboa. Longa-metragem baseada na obra homónima de Camilo Castelo Branco. Lisboa:
Leopardo Filmes.
RUIZ, Raúl & Paulo Branco/Leopardo Filmes/Alfama Films Production/RTP. 2010. Mistérios de
Lisboa. Série televisiva de 13 episódios baseada na obra homónima de Camilo Castelo Branco.
Lisboa: Leopardo Filmes.
168 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Quatro cartas de Hermès bilíngue
É um prazer ir a essa cidade-fronteira mais uma vez que está se tornando, pouco a
pouco, um porto para os jovens, pesquisadores e curiosos em geral. Desta vez, propomos
a leitura de quatro das noventa cartas que compõem Cartas de Hermès. O propósito desta
apresentação é somente estabelecer um primeiro contato entre o universo de Hermès e o
público do XVII Curso de Verão do Centro de Estudos Ibéricos de Guarda, Portugal.
Meus agradecimentos vão aos amigos Dominique Pomente, Julien Boucly, Maria
Leidiana Mendes, Mark Gamal e Thalita Miranda.
A versão bilingue é para criar outras possibilidades na Guarda.
Grand Paris, 13.05.17
XXIX
“Senhor Pescador de Tartarugas, “Seigneur Pêcheur de Tortues, 169 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
vós não me conheceis mas, vous ne me connaissez pas,
não há problema. Sois um Pescador da Terra, mais ce n’est pas grave. Vous êtes un Pêcheur de
o qual merece uma carta. Ontem, a proa la Terre,
deste barco suportou o peso de dois qui mérite une lettre. Hier, la proue
golfos bravos, correntezas e de mon bateau a subi le poids des tourments de
qualquer coisa mais. Um se chama a Boca, deux
o outro a Rosa. Juntos se chamam na Boca golfes sauvages, des courants en colère
da Rosa. Não sei o porquê. Por quê? Por que et de quelque chose d’autre. L’un se nomme la
Boca e Rosa? E por que não cactos? Por Bouche,
onde passei, senhor Pescador da Terra, não l’autre la Rose. Ensemble ils s’appellent Dans la
havia tartarugas. Vi Bouche
elefantes cobertos de mantos de mitra, de la Rose. Je ne sais pourquoi. Pourquoi
macacos que carregavam ao peito Bouche et Rose ? Et pourquoi pas cactus ? Par où
um pingente de esmeralda, alguns linces je suis passé, seigneur Pêcheur de la Terre, il n’y
de estimação e cobras que embelezavam as avait pas
crianças e os jardins das casas. Que de tortues. J’ai vu
maravilha seria se o deserto, que tanto me des éléphants qui portaient des toges en mitre,
faz falta, fosse todo em pó de ouro. des singes qui portaient sur la poitrine
Compraríamos un pendentif d’émeraude, quelques lynx
todas as florestas, animais e rios do mundo. domestiques et des serpents qui embellissaient à
É tão difícil crer em um elefante la fois
quando sequer tem uma matinha le cou des enfants et les jardins des maisons.
para criar um veado. Ah o deserto... Só Quelle merveille serait notre désert, celui
no deserto para crer na união do pó e da água, qui me manque, s’il était tout en poudre d’or.
o homem, Nous achèterions
e nada mais. Pescador da Terra, retirai tudo toutes les forêts, les animaux et les fleuves du monde.
o que ele disse. Eis o senhor no cais, olhando Il est si difficile de croire en un éléphant
para mim. Não vos assustais, pois isto na proa quand on n’a même pas un bois
foi apenas o rebento do beijo pour élever un cerf. Ah le désert...
da Boca da Rosa.” Il n’y a que le désert pour croire en l’union
de la poudre et de l’eau, l’homme,
et rien de plus. Pêcheur de la Terre, oubliez tout
ce qui vous a été dit. Vous voilà sur le quai à me
regarder.
Ne vous effrayez pas, car ce bruit
c’est la proue qui craque,
c’était le fruit du baiser
de la Bouche de la Rose.»
4.2.17
XXX
“Oi senhor Pescador de Caranguejos, “Bonjour seigneur Pêcheur de Crabes,
170 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
sou este rapaz que acaba de vos dar esta c’est moi qui viens de vous offrir cette
carta. Não me conheceis, o que não é um lettre. Vous ne me connaissez pas.
problema. Como ides senhor Pescador da Lama? Comment allez-vous, seigneur Pêcheur de la Boue ?
Oiço dizer por aí que a lama é os restos J’ai entendu dire que la boue n’est que les restes
do mundo das nascentes e de todas as margens. du monde des sources et de toutes les rives.
Para onde vou não há, com certeza, nem Où je vais il n’y a sûrement ni crabes
caranguejos ni boue. Par contre, il y a beaucoup de décombres
nem lama. Há muitos destroços de tempos hérités de temps
passados, velharias de lembranças que passés, des souvenirs antiques qui
serão conservadas no seront conservés sur du
papel. Desculpai-me Pescador da Lama, papier. Excusez-moi Pêcheur de la Boue,
é que contraí a doença de mar. Vejo coisas j’ai attrapé le mal de mer. Je vois des choses là
onde não há. Imagino pássaros, onde où il n’y a rien. J’imagine des oiseaux là où
nem borboletas há. Lembro-me de terras il n’y pas même de papillons. Je me souviens des terres
por onde passei, e que me são caras suas que j’ai connues, et leurs palmiers me sont
palmeiras, e que me vem à boca o gosto chers, et me revient aux lèvres
do beijo velho com sabor de amêndoas brancas. le goût d’un baiser ancien,
Essa vontade de voltar, de amar a mesma celui des amandes blanches.
gazela, de experimentar o mesmo cavalo, Cette envie de rentrer, d’aimer la même
de correr os mesmos caminhos de areia, gazelle, de monter le même cheval,
e de ver o céu avermelhado sobre as de courir les mêmes chemins de sable
dunas. Isso é sintoma da doença et de voir le ciel rougeâtre sur les
de mar. Meu corpo rejeita comida, não dunes, c’est le symptôme du mal
que esta não seja boa, mas porque ele quer de mer. Mon corps refuse la nourriture, cela ne
aquela que outrora comera, daí se veut pas
emagrece quando se está no mar. dire qu’elle n’est pas bonne, mais il veut celle-là
E as cartas também vão ficando penosas, qu’il avait autrefois mangée. C’est ainsi
labirínticas e carnívoras, também que l’on perd du poids quand on est en haute mer.
sintomas dessa doença que dá vontade Et les lettres deviennent pénibles,
de voltar. – Volver!, gritou um homem labyrinthiques et carnivores, ce sont aussi
ontem à noite. Atracávamos em um les symptômes de cette maladie qui donne envie
porto produtor de cobre e bronze. – Volver!; de rentrer. – Volver!, a crié un homme
aquele homem não suportará a navegação, pensei. hier soir. Nous débarquions dans un
Está doente e sente falta de suas pedras port producteur de cuivre et de bronze. – Volver!;
preciosas, ele quer voltar. Quando um il ne survivra pas à la navigation, me suis-je dit.
doente quer morrer, ele se deita, fecha os Il est malade et ses joyaux lui manquent,
olhos e se cobre. Em alguns casos a cura il veut rentrer. Quand une
parece ser o silêncio. Outra vez, chegando ao personne veut mourir, elle se couche, ferme les
porto de Nucam, quatro mulheres e suas yeux et se couvre. Certains pensent que
crianças carregaram três homens, que la seule guérison possible est le silence. Un jour,
sofriam da tal doença, para descansar en arrivant au
aos pés de uma Adansonia digitata, trazida de longe, port de Nucam, j’ai vu quatre femmes et leurs
e os homens foram colocados lá onde já não se podia enfants amener trois hommes qui
mais ouvir as vagas do mar. Que eu souffraient de cette maladie, pour les faire reposer
mesmo me livre desse pesadelo. Não aux pieds d’un Adansonia digitata qui venait de loin.
quero adoecer disso. Os marinheiros Ils furent laissés là où l’on ne peut plus
a chamam saudade. Doença de mar entendre le bruit des vagues de la mer. Loin de moi
que é tratada com o silêncio. Ó senhor, que vós mesmo ce cauchemar. Je ne veux 171 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
vos livreis dessa má sorte. Pescador pas attraper ce mal. Les marins
da Lama, eu sou livre porque nunca l’appellent saudade. Mal de mer
tive vontade de voltar, de reamar, de tudo. qui se guérit par le silence. Ô seigneur, que vous-même
Pescador da Lama, esta é uma carta e soyez libéré de ce malheur. Pêcheur
obrigado por acenar, agradecendo com de Crabes, je suis libre parce que je n’ai jamais eu
a mão, chapéu ao peito e este vosso envie
sorriso de quem não sabe ler. Pescador de rentrer, d’aimer encore, du tout.
da Lama, uma boa viagem.” Pêcheur de la Boue, voici une lettre et je vous remercie
de me saluer, votre chapeau sur la poitrine et votre
sourire de celui qui ne sait pas lire. Pêcheur
de la Boue, bon voyage. »
4.2.17
XXXI
“Senhor Pescador de Garças, “Seigneur Pêcheur d’Aigrettes,
hoje tenho um sono de garça, voo baixo aujourd’hui j’ai un sommeil d’aigrette, mon vol
e se meus olhos tivessem membranas, est bas
seriam olhos com membranas. As et si mes yeux avaient des membranes,
aranhas têm tantos olhos e os ce serait d’yeux avec des membranes. Les
flamingos têm tanto rosa e os araignées ont beaucoup d’yeux,
macacos têm todo o futuro, mas les flamants ont autant de roses et
nenhum deles precisa de um les singes ont tout l’avenir à eux, mais
nome, Hermès. aucun d’eux n’a besoin d’un
Pescador dos Mares, estou dormindo nom, Hermès.
em pé. Desculpai-me, dormirei três Pêcheur des Mers, je m’endors
dias, e na quarta noite terminarei esta debout. Excusez-moi, je dormirai trois
carta. Durmo. jours, et la quatrième nuit je finirai cette
É quarta noite e desembarco em vosso lettre. Je m’endors.
cais, senhor Pescador dos Mares. Não C’est la quatrième nuit et je débarque dans votre
venho vos contar das doenças que vi, não. port, seigneur Pêcheur des Mers. Je ne viens pas
Eu vim dançar ao lado esquerdo das vous raconter les maladies que j’ai vues, non.
garças de vossa Je suis venu danser du côté gauche des
festa. Hoje é dia de festa, retirai aigrettes de votre
de mim o que me ballet. Aujourd’hui est jour festif, enlevez-moi
deram. Retirai de mim meus olhos, ce qu’on m’a donné.
retirai meus olhos do mar. Retirez-moi mes yeux,
Agradeço a todos retirez mes yeux de la mer.
pelos cinco flautistas, três Je vous remercie tous,
harpistas e infinitos músicos. les cinq flûtistes, trois
Nesta noite, eu harpistes et les infinis musiciens.
só quero dançar com as garças Ce soir, je veux
desta cidade danser avec les aigrettes
de colunas de de cette ville
turquesa. Por aqui passaram aux colonnes de
meus amigos. Ai ai senhor Pescador, nem vos turquoise. Par ici mes amis
conto o que sei. Ai ai, nem vos conto que sont passés. Ah seigneur Pêcheur, je ne vous
172 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
XXXII
“Difícil é escrever à luz do dia. “J’ai du mal à écrire sous la lumière du jour.
Eu gostaria que minhas pegadas não me Je voudrais que les empreintes de mes pas ne me
seguissem, mas que fossem por aí procurando o suivent pas, mais qu’elles partent
que fazer. à la recherche d’autre chose.
Senhor Pescador de Olhos, não tenho Seigneur Pêcheur d’Yeux, je n’ai pas 173 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
pratas. Procurei em meus sacos, encontrei folhas d’argent. J’ai beau chercher dans mes sacs,
secas, não tenho pratas. j’ai trouvé des feuilles sèches, je n’ai pas d’argent.
Devo então aguardar a vinda da tripulação. Je dois alors attendre le reste de l’équipage
Navegamos em grupo e meu car nous naviguons en groupe et mon
barco não carrega metais. Ah se eu pudesse vos bateau ne transporte pas de métaux. Ah si je pouvais
pagar com uma carta, isso me arranjaria. Estou vous payer avec une lettre, cela m’arrangerait.
ferido, Pescador dos Céus. Não foi Je suis blessé, Pêcheur des Cieux. Ce n’était pas
lança, até porque não faço guerra. Quando une lance, car je ne fais jamais la guerre. Quand
encontro guerras, cavalarias e lanças je croise les guerres, les cavaleries et les lances,
por aí, eu me sento à beira da je m’asseois au bord des chemins,
estrada e aguardo a tragédia passar. attendant que passe la tragédie.
Estou ferido, foi o vento que me rasgou ontem Je suis blessé, c’est le vent qui m’a déchiré hier
à noite. Passaram três rajadas de vento: soir. Passèrent trois rafales de vent :
uma das velas se partiu e voou une des voiles s’est rompue et s’est envolée
feito morcego cego na solidão do mar, comme une chauve-souris aveugle dans la solitude
um homem que se curava de saudade de la mer,
se cobriu de cetim e pulou ao mar; un homme qui se guérissait de sa saudade
talvez ele tenha morrido, e eu fiquei entre as s’enveloppa de satin et sauta dans la mer ;
cordas e correntes, precisamente fiquei il est peut-être mort, et je suis resté entre
debaixo de uma âncora. Nunca tive âncora como les cordes et les chaînes, précisément je suis resté
escudo, mas foi assim. Perdi pouco sous une ancre. Je n’avais jamais eu d’ancre comme
sangue e no lugar ganhei vento bouclier, mais ce fut ainsi. J’ai perdu peu de
dentro de minhas veias. Passei a respirar sang, et à sa place du vent
melhor. Fora est entré dans mes veines, j’ai pu mieux
o frio e o medo da tripulação, ganhei respirer. En plus
três rasgos de pele. Cada um para du froid et de la peur de l’équipage, je me suis fait
lembrar da existência dos planos trois coupures sur la peau du bras. Chacune d’elles
do tempo. Parece que a escrita é uma maneira pour me rappeler l’existence des plans du
de forçar a passagem entre temps. Il semble que l’écriture soit une manière
esses planos. Pescador de Olhos, por que de forcer le passage entre
pescais olhos e não astros? Sois Pescador ces plans. Pêcheur d’Yeux, pourquoi
dos Céus, mas em vosso anzol só pêchez-vous les yeux et non pas les étoiles ? Vous
vejo olhos de gaivotas. Quereis apenas olhos êtes Pêcheur
e nada mais? Vedes as gaivotas livres, des Cieux, mais à la pointe
elas não podem ver. Elas morrem? de votre hameçon je ne vois que
Pescador de Olhos, cada carta que escrevo é como se des yeux de mouettes. Ne voudriez-vous que des yeux
um dos planos do tempo et rien de plus ? Voyez les mouettes libres,
se abrisse e me dissesse, Retirai-vos elles n’arrivent pas à voir, meurent-elles ?
do mundo!. RETIRAI-VOS DO MUNDO!, Pêcheur d’Yeux, chaque lettre que
repete o vento. RETIRAI-VOS DO MUNDO!, j’écris est comme si l’un des plans du temps
repetem as velas dos barcos que chegam. s’ouvrait et me disait, – Retirez-vous du
RETIRAI-VOS DO MUNDO!, repetem as gaivotas monde ! RETIREZ-VOUS DU MONDE !,
sem olhos que voam baixo. E por que répète le vent qui passe. RETIREZ-VOUS DU
eu escrevo Retirai-vos do mundo! se não MONDE !,
tenho coragem de arriscar a assertiva da répètent les voiles des bateaux qui arrivent.
frase? Quem é que deve ser o objeto RETIREZ-VOUS DU MONDE !, répètent les
174 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
10.2.17
Natureza e patrimônio de valor turístico do
território de Icatu, estado do Maranhão:
possibilidades de uso ambiental sustentável
Introdução
PROVENÇAL, 2011).
Após executar missão que lhe fora atribuída, Diogo de Campos recomendou a urgên-
cia nas ações para a conquista das referidas terras das quais se diziam “tantas grandezas que
parecia fabuloso” (MORENO, 2011, p. 29), e, pelo êxito da missão, logrou ser mandado a
Lisboa e a Madrid para defender suas propostas perante as autoridades das respectivas coroas.
No início do século xvii, duas iniciativas de particulares ganharam a simpatia do
Governador em Pernambuco. Segundo Studart Filho (1959) e Lisboa (2012), em 1603,
Pero Coelho de Sousa tomou a inciativa e recebeu apoio das autoridades de Pernambuco
para organizar uma expedição ao Maranhão, a qual não ultrapassou o rio Parnaíba devi-
do aos improvisos, reduzido apoio oficial e desavenças entres os expedicionários. Sucesso
maior do que a expedição comandada por Pero Coelho não obtiveram os padres Luís
Filgueira e Francisco Pinto, em 1607, que não conseguiram ultrapassar a serra da Ibiapaba
onde fora dizimada pelos índios, e novamente o Maranhão foi relegado ao desamparo das
coroas portuguesa e espanhola.
No alvorecer do século xvii, a costa norte do Brasil movimentou o cenário político
internacional adquirindo visibilidade global pela via da ocupação francesa do Maranhão,
para fundar a França Equinocial, e da consequente circulação das informações relativas a
este episódio no âmbito do império luso-espanhol. Os domínios desse império se esten-
diam desde a Península Ibérica até a África, América e Ásia, e integravam estruturas eco-
nômicas e políticas de alta produtividade e competividade que interessavam diretamente
à Inglaterra, Itália e à República das Sete Províncias dos Países Baixos, atual Holanda
(BETHENCOURT, 1998).
Alguns testemunhos da negligência das autoridades portuguesas, espanholas e de seus
prepostos no governo do Brasil para com a integração da costa norte, compreendendo as
terras entre o Ceará e o Maranhão, são recorrentes na literatura histórica. Dentre os quais
destacamos o de Serrão (1968, p. 152) ao afirmar que somente em face da perspectiva de
invasão francesa e dos riscos que este episódio representaria para a coroa espanhola foi
capaz de reconhecer
que a zona equatorial do Brasil, que fora, até então, mais ou menos ignorada na
sua grandeza geográfica, era, de igual modo, parte integrante do vasto território. [...]
Mas tendo conhecimento da ameaça francesa no Maranhão, os Filipes “acordaram”
para a existência das partes do norte, desde o Rio Grande ao início do Amazonas,
que convinha povoar e defender, pois eram a porta de entrada da América Central
— e com mais rigor — da América espanhola.
No contexto das disputas entre os reinos que competiam por terras e por recursos
em territórios de além-mar, o Maranhão passou a despertar o interesse desses povos por
177 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
integrar uma região muito rica em produtos que tinham ampla aceitação no mercado eu-
ropeu e, no plano geopolítico, por representar uma possibilidade de acesso ao interior da
Amazônia e mesmo às riquezas de ouro do Peru, já conhecidas dos espanhóis e cobiçadas
por muitos aventureiros.
No presente estudo, apresenta-se uma análise da evolução do território do municí-
pio de Icatu, localizado na margem oriental da baía de São José, área que desempenhou
papel destacado por ocasião da campanha dos portugueses para expulsar os franceses do
Maranhão e frustrar a tentativa de implantação da França Equinocial, projeto que inte-
grava os objetivos da coroa francesa desde a derrota na campanha de instalação da França
Antártica, no Rio de Janeiro.
O território de Icatu: da casualidade à condição estratégica
Para superar todas as frustrações das tentativas anteriores, realizadas por iniciativas
particulares e com apoio oficial secundário, o Governador de Pernambuco assumiu a coor-
denação das ações iniciais, escolhendo a equipe e custeando a logística com o melhor que
a situação permitia. Mariz e Provençal (2011, p. 79) afirmam que, se “não fosse o auxílio
de outras capitanias, os luso-espanhóis teriam sido forçados a adiar as operações” contra a
colônia francesa, o que poderia ser desastroso para as duas coroas.
Uma importante missão preparatória para a campanha contra os franceses no Maranhão
foi atribuída a Martim Soares Moreno, em 1611 (ARAÚJO, 2015; PIANZOLA, 2008;
MORENO, 2011), com o propósito de examinar os fatos relacionados com a presença de
franceses na Costa Norte do Brasil, missão cumprida com grande atraso e pouca utilidade
para o planejamento operacional, uma vez que o relatório chegou com grande atraso na
Espanha e em Portugal, mas só foi recebido pelo comandante da Jornada do Maranhão
quando as operações já estavam em curso.
A Chegada da frota comandada por Albuquerque a Graxenduba, às 10 horas do dia
26 de outubro de 1614, ocorreu a salvamento, mas não incógnita, como atesta o sargento-
-mor Diogo de Campos Moreno (2011, p. 60) que “fizeram tal aparato que subitamente
em toda a Ilha Grande, a qual a duas léguas e meia estava defronte, se fizeram fumaça por
toda a costa, dando aviso que durou espaço grande”. Outra evidência da exposição dos
portugueses é referida por Moreno (2011, p. 61) que, ainda durante a descarga dos navios,
viram vir correndo à ribeira uma canoa grande com muitos índios, a qual che-
gada à terra foram recebidos de Jerônimo de Albuquerque e de todos com muita
alegria. Porém ele, mostrando mui pouca, estavam com tanta turbação que ao prin-
cipal lhe tremiam quantos ossos tinha descompostamente, e não de frio [...] Nas
perguntas variavam: houve deles que disseram que na ilha havia muitos franceses;
outros disseram que já eram idos, e que não havia ninguém...
Mariz e Provençal (2011, p. 83) relatam evento semelhante e atestam a artimanha dos
franceses ao registrarem que Du Prat, um dos oficiais de comando da armada de Daniel de
la Touche, enviou um dos chefes indígenas de Upaon-Açu para conversar com Jerônimo
de Albuquerque, fingindo-se decepcionado com os franceses e esperando avaliar as forças
dos portugueses”. Esta estratégia marcava o modus operandi da abordagem dos franceses,
à época, que se passavam por amigos confiáveis para extrair tudo que pudessem em troca
de poucas quinquilharias.
O episódio da visita dos índios demonstra a primeira estratégia dos franceses e a per-
cepção dos portugueses acerca dos acontecimentos vindouros, fartamente descritos por
historiadores, mas ainda sem uma análise acurada sobre o teatro da guerra, que culmina-
179 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
ram com a vitória das tropas de Jerônimo de Albuquerque. Na sequência das artimanhas,
Daniel de la Touche convenceu Albuquerque a enviar comissões às respectivas coroas para
resolver as pendências políticas quanto a quem deveria permanecer no Maranhão. Este
ardil é comprovado mediante o aliciamento de oficiais da tropa de Albuquerque, enquanto
esperava reforços da França, ainda sob o regime anteriormente acordado. A solução defi-
nitiva da guerra foi assumida por Alexandre de Moura com a prisão do comando francês e
sua deportação para Lisboa (MOURA, 1905, p. 61).
A emergência da situação de guerra condicionou a escolha de um sítio para ocupar
apenas enquanto durassem as ações contra os franceses, o mais próximo que se podia al-
cançar incógnito e com segurança. Foi escolhido o topo da colina de Guaxenduba, como
posição estratégica para segurança das operações, mas para o Sargento-mor Diogo de
Campos Moreno, integrante do comando da armada (MORENO, 2011, p. 60), o ponto
escolhido era desfavorável por ser uma costa franca com planície de maré alternando partes
com vasas, pedras e areias, por extensão de mais de meia légua, “de modo que, tirando ser
água para beber, e boas terras, e madeiras ao redor de si, tudo o demais que se busca em
razão de guerra lhe falta; mas já chegados ali, e descobertos, não havia outro remédio”.
Entre outras desvantagens estavam o efetivo e o poder bélico.
As características ambientais encontradas pelos portugueses no Maranhão divergiam, em
grande medida, das reconhecidas nos trechos até então percorridos na costa norte do Brasil,
pela notável magnitude da energia expressa pelas forças da natureza, pois a proximidade da
linha equinocial tudo maximizava. Para a tropa da Jornada incumbida de expulsar os franceses
do Maranhão, o desconhecimento do ambiente e a falta de conhecimento dos índios represen-
taram obstáculos logo suplantados pela emergência da expectativa da defesa em face da missão.
Reconhecendo as potencialidades do ambiente, Jerônimo de Albuquerque mandou que
preparassem o desembarque e a primeira instalação portuguesa no Maranhão, para abrigo
contra os rigores do clima e defesa contra eventuais investidas dos franceses. Foi escolhido
o local denominado Monte de Guaxenduba (CARVALHO, 2014) onde, segundo Moreno
(2011, p. 61), de imediato foi construído o Forte, um hexágono “perfeito, capaz de alojar
em si toda aquela gente e se defender com
mui pouca, acomodando-se com o terre-
no” (Figura 1), batizado com o nome de
Santa Maria, e a Capela para ofício dos
sacerdotes, instalações que obedeciam ao
padrão de todas as infraestruturas iniciais
de ocupação portuguesa, quando se trata-
va de missão oficial. Segundo Johnson e
Silva (1992), a localidade ocupada depois
180 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
tapuias, também remanescentes da batalha, com suas famílias, construíram uma aldeia na
borda do tabuleiro, situada a cerca de 1 km do forte de Santa Maria.
Para facilitar as operações de embarque e desembarque na comunicação com a sede da ca-
pitania e atender as demandas da administração, Alexandre de Moura mandou construir uma
povoação, em local próximo a Guaxenduba, com estrutura capaz de contribuir para a defesa
da Ilha Grande, proteger a foz do rio Munim contra a entrada de aventureiros e recuperar
embarcações. No local parece ter sido edificada a sede da capitania de Icatu, pois, em 1621,
detinha o único porto de entrada para a conquista e o povoamento das terras do Munim.
Os moradores das povoações desenvolviam atividades compatíveis com os recursos
ambientais e a técnicas que dominavam: caça, pesca, cultivo de feijão, milho e fava, com
sementes doadas por Ravardière. Nas famílias indígenas predominava a prática do extrativis-
mo vegetal, constando de palha, frutos e caules, da caça, da pesca e o cultivo da mandioca.
Não há registros de que os índios da região de Icatu cultivassem o algodão, embora algumas
tribos da Região Nordeste do Brasil utilizassem a fibra desse arbusto (COUTO, 2011).
escrava a baixo custo. Em 1749, o governador do estado do Maranhão refere que a povoa-
ção da vila de Santa Maria de Icatu “tem poucos moradores e a maior parte de pequenos
cabedais (BERREDO e CASTRO, 1749, p. 11) e, em 1751, o Governador Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, sobre a situação encontrada no Maranhão, afirma que
Vim parar a uma terra onde não só se não conhece o comércio, mas nem nunca ou-
viram estas gentes falar na mais leve máxima dele; vindo os comissários de Lisboa roubar
estes moradores, eles despicam-se não lhes pagando, ou fazendo-o com gêneros falsifica-
dos e por preços exorbitantes, e com estes estabelecimentos não é muito que tenha che-
gado ao ponto de ser quase impossível o restabelecer-se (MENDONÇA, 2005, p. 86).
O Governador Mendonça Furtado transferiu a sede do Governo para Belém, colo-
cando São Luís e o Maranhão em plano secundário com reflexos em todas as capitanias
subsidiárias. Uma década mais tarde, Moraes (1860, p. 78) trata da vila de Icatu afirmando
ser “tão falta de cabedais, como de moradores [...] a mais pobre de toda a comarca”. A con-
tinuidade da situação motivou reivindicações dos representantes da vila de Santa Maria
de Icatu, rogando ao Rei que autorizasse a transferência da povoação para um local cuja
situação geográfica possibilitasse maiores recursos e lhes facilitasse mais produtividade.
Com a anuência do Rei, foi implantada a nova vila, onde se situa a sede do municí-
pio desde 1759, mantendo-se o topônimo da vila antiga. Almeida (2016, p. 120) relata
a prosperidade inicial da Vila Nova de Icatu, cujo porto “servia de parada obrigatória de
canoas, cúteres e depois de vapores que subiam e desciam o rio Munim, até o afluente
Iguará, transportando passageiros e mercadorias”, além da posição estratégica para a defesa
da capital, pela baía de São José, e de toda a interlândia do rio Munim.
Os sucessos da nova vila de Icatu resultaram no crescimento de alguns núcleos de
povoamento como o de Miritiba e o de Morros, cuja emancipação implicou perdas de
território e de recursos. Para Almeida (2016), a abolição dos escravos e o crescimento da
povoação de Morros, emancipada em 1898, deram inicio à fase de decadência da vila nova
de Icatu, pois em pouco tempo esta povoação se tornou mais importante do que a sede,
concentrando grande parcela da economia do município e oferecendo boas estradas para
a comunicação com São Luís, através do rio Itapecuru, e com Parnaíba, no Piauí. O sítio
de Morros tinha a seu favor a melhor qualidade das águas dos rios, melhores condições de
travessia do rio Munim e de acesso ao rio Itapecuru e à vila de Rosário.
No início do século xx, a construção da estrada de ferro interligando as cidades de São
Luís e Teresina contribuiu para acelerar as relações da vila de Morros com a de Rosário,
resultando no declínio da navegação fluvial e relegando a vila de Icatu ao plano secundário
em que ainda se encontra, apesar dos investimentos em infraestrutura, no início deste
século, como a pavimentação da BR 402 que beneficiou a região com rodovia asfalta-
da ligando a sede do município à capital do estado e ao polo turístico de Barreirinhas. 189 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Atualmente as perspectivas de crescimento econômico de Icatu são renovadas em face do
projeto de implantação de uma linha de Ferry Boat para servir à região, interligando-a à
capital do estado através da cidade de São José de Ribamar.
Considerando a avaliação dos elementos naturais no contexto da patrimonialização, o
território de Icatu possui muitas áreas enquadradas como de proteção legal por serem am-
bientes costeiros, como praias, mangues, falésias, e continentais, como mananciais, bosques
de babaçu e de bacuri, entre outros, todos protegidos pelo Código Florestal Lei 12.727/2012
e pelas resoluções próprias do Conselho Nacional de Meio Ambiente-CONAMA.
As leis federais são objeto de ações de fiscalização no âmbito do governo do Estado que
institui documentos legais com vistas ao melhor cumprimento dos estatutos. O território
de Icatu integra a Área de Proteção Ambiental Upaon-Açu/Miritiba/Alto Preguiças, ins-
tituída pelo governo do estado do Maranhão através do Decreto no 12.428/92, com o
propósito de disciplinar o uso sustentável dos recursos naturais da região abrangida. Em
nível municipal, deve-se atender ao que disciplina a legislação federal e estadual além das
deliberações da competência específica. Neste contexto merece destaque a aprovação da lei
municipal nº 350/2015 que “dispõe sobre a faixa de proteção, recuperação e conservação
ambiental do curso do rio Itatuaba e suas matas ciliares” (PMI, 2015).
Através de estudos de campo, destacamos os pontos de maior relevância por valor pa-
trimonial para o município (Figura 3), para além da proteção legal já instituída e outros de
grande potencial como patrimônio cultural por seu valor histórico, arquitetônico e religio-
so, entre outras manifestações. Dentre os locais de maior potencial natural consideramos
os locais já instituídos pela população, como a praia de Santa Maria com suas respectivas
falésias (Fotos 1 e 3), a falésia e o manguezal próximos ao povoado Salgado (Fotos 2 e
4), os banhos próximos ao povoados Moinho, Ribeira (Foto 6), São Lourenço, Itatuaba,
Salgado (Foto 7), Boa Vista e a cachoeira do Boqueirão (Foto 8).
Figura 3. Locais de maior interesse como patrimônio turístico em Icatu. Fonte: adaptado de IBGE, 2014
Foto 11. Igreja Matriz de Icatu. Acervo do autor. Foto 12. Busto de Jerônimo de
192 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Albuquerque.
Fonte: https://www.google.com.br
Conclusão
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196 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Amazônia Atlântica: Patrimônio Natural
versus Turismo Balnear
Introdução
A Zona Costeira Brasileira possui 8.698 km de extensão voltada para o oceano Atlântico
Sul, abrigando em sua paisagem diversos ecossistemas tropicais e subtropicais, distribuídos
em 17 estados, 13 capitais e 395 municípios, em que as praias correspondem a 2% de todos
os ecossistemas costeiros brasileiros (SCHERER; SANCHES; NEGREIROS, 2009).
No litoral norte, localiza-se a Zona Costeira Amazônica Brasileira (ZCAB), que se divide
geomorfologicamente em: Litoral do Amapá; Golfão Amazônico; Litoral das Reentrâncias
do Pará-Maranhão; na Costa de Reentrâncias do Pará e Maranhão, localiza-se a costa
Atlântica do Salgado paraense, entre as baías de Marajó, a oeste (0°30`S e 48°00`W.), e a
baía de Gurupi, a leste (0°30`S e 46°00`W.), com 598 km de extensão (79.795 km²), cor-
respondendo a 6,5% da superfície do Estado (FURTADO, 2011a; REBELO-MOCHEL,
2011; SOUZA FILHO et al., 2005) (Figura 1).
O processo de ocupação das terras litorâneas da zona costeira do Estado do Pará inicia-se a
partir dos grupos de caçadores-coletores a 5.000 mil anos antes do presente (AP), denominados
no século xvi como povos Tupinambás pelos europeus (SILVEIRA; SCHAAN, 2010). Estes
aproveitaram o conhecimento local dos indígenas para viabilizar a colonização da região costeira
do Estado do Pará, através de povoações à beira-mar, tendo como base econômica o extrativis-
mo marinho, envolvendo uma extensa e diversificada cadeia produtiva (FURTADO, 2011b).
Até à metade do século xx, as cidades litorâneas da Amazônia Atlântica paraense
caracterizavam-se como pequenos povoados de pescadores artesanais (SANTANA, 2011).
Neste período, inicia-se o modelo desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitscheck
(1950), que se consolida na Ditadura Militar (1964-1985), promovendo alterações no uso
e ocupação dos territórios litorâneos paraenses, tendo como vetores a expansão rodoviária,
a urbanização e o turismo balnear (sol e praia) (ALMEIDA, 2017).
Nesta comunicação analisam-se os efeitos do embate entre a paisagem natural do lito-
ral amazônico e o turismo balnear, a partir do modelo governamental de desenvolvimento
socioeconômico, nas praias do Crispim (Marapanim), Atalaia (Salinópolis) e Ajuruteua
(Bragança), no Nordeste do Estado do Pará, Brasil (Figura 2).
198 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
a) manguezal b) restinga
Figura 6. Os efeitos ambientais negativos provocados pelo turismo balnear na Amazônia Atlântica.
Fonte: ALMEIDA, 2017.
O turismo balnear encontrou na costa Atlântica do litoral paraense o produto ideal para
a sua efetivação. No entanto, a deficiência da infraestrutura básica, ausência de planejamento
da atividade turística, somado a grande afluência de veranistas, vem comprometendo a pai-
sagem litorânea nas últimas décadas, gerando poluição e o esgotamento dos recursos naturais
(QUARESMA; CAMPOS, 2006; FURTADO, 2011a; GREGÓRIO; MENDES; BUSMAN, 2011).
Os resíduos sólidos deixados pelos veranistas na faixa praial, e não coletados pelo serviço
de limpeza pública, acabam tornando-se lixo marinho, depositando-se nas praias vizinhas
ao longo da costa paraense. A praia da Marieta (Maracanã) apesar de constituir uma re-
serva extrativista marinha, de baixo fluxo de visitantes, recebe da deriva litorânea uma
grande quantidade de plástico e isopor, que se acumulam nas dunas frontais, provenientes
principalmente das praias balneares de Salinópolis (Figura 7).
Figura 7. Resíduos sólidos nas dunas frontais da praia da Marieta. Fonte: Adrielson F. Almeida
Considerações Finais
Agradecimentos
Referências
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Introdução
teriormente não existiam. Abrem-se as vias de desenvolvimento para que o turismo possa
chegar a pequenas localidades, sempre com a promessa de geração de empregos e renda
para as populações.
Seguindo padrões de hoteleiros e de desenvolvimento turísticos internacionais padro-
nizados (Cruz, 2001), onde as prioridades eram os desejos dos turistas e, obviamente, dos
investidores, não são estabelecidos vínculos entre as comunidades locais e os visitantes. As
trocas culturais restringiam-se aos espaços do empreendimento, assim como aos benefícios
gerados. As pequenas localidades onde a população não dispõe desses serviços, com raras
exceções, tinham as condições para empreender, mão de obra qualificada para atuar ou
mesmo condição de fornecer produtos aos empreendimentos.
Contribuindo com as ideias apresentadas, Coriolano e Vasconcelos (2008) defendem
que nessa fase as comunidades eram ignoradas e excluídas do processo de planeamento e
gestão da atividade. Os autores criaram uma linha de evolução histórica para a atividade
turística no Ceará, dividindo esse processo em três fases distintas.
A primeira etapa começou no final da década de 1960 consolidando-se no ano de 1980.
Esta etapa pode ser caracterizada como a “fase da descoberta” de verdadeiros “paraísos li-
torâneos” pelos veranistas oriundos basicamente das capitais dos estados, das metrópoles e
viajantes do movimento hippie. Consolidava-se nesses espaços o que Diegues denominou
de o mito moderno da natureza intocada, alterando radicalmente a relação homem-natureza.
Em espaços onde existia a pesca tradicional para subsistência, o trabalho das marisqueiras,
as rendeiras e o plantio de alimentos, instala-se uma atividade com características típicas da
pós-modernidade, alterando as dinâmicas e lógicas locais. Ainda na primeira fase, ocorreu a
construção de segundas residências (casas para finais de semana e gozo de férias) ao longo
do litoral e foi uma das primeiras formas de ocupação de áreas litorâneas, por populações
não autóctones. Cria-se ainda o primeiro contraste na paisagem com mansões sendo
construídas ao lado de cabanas ou no lugar de pequenas casas rústicas de pescadores.
A segunda etapa teve início no ano de 1990, consolidando-se nos primórdios dos
anos 2000. A atividade turística gerou alguns empregos diretos, vinculados aos equipa-
mentos turísticos como hotéis, pousadas, agências de viagens (operadoras), etc. Nesta fase.
O poder público passou a atuar de forma direta no turismo e ser tratado de forma diferen-
ciada, foi criada a Secretaria Estadual do Turismo (1995) e muitos municípios montaram
órgãos locais para gerir a atividade. A terceira etapa passou a ter uma forte identificação
com o lugar está na essência do surgimento da etapa turística que é caracterizada pelo forte
interesse desses turistas em adquirir ou construir residência no local e prestar também ser-
viços turísticos. Era bastante incipiente até o final da década de 1990, mas intensificou-se
e tornou-se uma realidade nos últimos 10 anos, podendo ser observada ao longo de todo
o litoral leste e oeste do Ceará.
211 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Neste cenário surge o turismo de base comunitária que apresenta-se como uma alter-
nativa ao modelo tradicional de desenvolvimento da atividade, podendo ser desenvolvido
em áreas pouco exploradas pelo turismo de massas ou mesmo como iniciativas em destinos
já massificados. O interesse por esta temática surgiu ao longo do percurso académico, mas
principalmente no planeamento de aplicação da disciplina de Teoria Geral do Turismo,
ministrada no Instituto Federal de Educação do Ceará – Campus Aracati, entre os anos
de 2010 e 2016. A busca por outros modelos possíveis de desenvolvimento do turismo
para a realidade cearense, para discussão com os alunos do curso tecnológico em hote-
laria e o curso técnico em guia, acabou por trazer exemplos de vivências já praticas em
nosso território. Alguns dos espaços estudados não utilizam a terminologia turismo de
base comunitária (TBC), no entanto seguem os princípios defendidos pelo TBC e forma
encampados esse trabalho.
Na primeira parte deste estudo, realizamos um levantamento do processo de desen-
volvimento do turismo no estado do Ceará e tentamos entender o processo de massifi-
cação desses destinos. Na segunda parte, buscou-se entendimento sobre como o turismo
de base comunitária pode se apresentar como uma alternativa ao modelo massificado.
Na terceira parte, apresentamos as iniciativas vivenciadas pelos alunos no âmbito da dis-
ciplina de Teoria Geral do Turismo e apresentamos uma conclusão preliminar do estudo.
Como um estudo ainda preliminar pretendemos um aprofundamento da pesquisa
para avaliarmos a perceção dos alunos sobre as práticas do turismo comunitário e sua
implicação nas localidades. Espera-se ser oportuno a realização de um levantamento junto
aos turistas que vivenciam o TBC quanto à sua avaliação do destino e das praticas.
O Estado do Ceará1 está situado na Região Nordeste do Brasil, possui uma área
de 148 mil quilómetros quadrados e uma faixa litorânea de 547 km, com clima tropical
e ameno, ventilado, apresenta temperaturas numa amplitude entre 25 e 32ºC, forte
insolação e águas marítimas mornas durante todo o ano. Possui serras de temperatura
úmida, regiões que respiram cultura e um sertão repleto de mistérios. Esse cenário aliado
à hospitalidade própria do povo cearense compõe o destino turístico do Ceará.
Inicialmente o Ceará, assim como os demais destinos nordestinos, investiu no seg-
mento de sol e praia, vinculado ao lazer e entretenimento. O sol e a escassez de chuva que
durante séculos foram os grandes vilões do desenvolvimento cearense passam a ser vistos
em uma outra uma perspectiva, sendo utilizados como estratégia de marketing.
212 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
1
Dados do IPECE referentes ao ano de 2006. Disponível em: <http://www.ipece.ce.gov.br>. Acesso em:
26 nov. 2007.
Figura 1. Localização do Ceará. Fonte: IBGE, 2017
volvidas. A construção dos aeroportos regionais foi a ação mais evidente dessas políticas,
tendo sido construído um no litoral leste, em Aracati (Canoa Quebrada), e um no litoral
oeste, em Cruz (Jijoca de Jericoacoara), ambos em áreas identificadas pelo Ministério do
Turismo como destinos indutores do desenvolvimento regional. O aeroporto regional de
Aracati ainda não entrou em operação. O aeroporto de Jeircoacoara iniciou suas atividades
no dia 24 de junho de 2017, com um voo inaugural da companhia área GOL. A capa-
cidade do terminal é para receber 600 mil turistas e prevê uma ampliação da demanda
turística em 7%. O destino em questão é um Parque Nacional e, segundo o órgão gestor
de turismo, receberá investimentos para o fornecimento de água e esgotamento sanitário
para o controle de entrada de visitantes e para coleta de lixo.
Atualmente, no Brasil, o grande fluxo turístico é doméstico. Fatores como a localização
geográfica do país e a dimensão territorial são citados como justificativa para o pequeno
fluxo internacional. O Ceará, apesar de estar localizado na Região Nordeste, mais próxima
da África, Europa e América Central e do Norte, segue a mesma tendência do restante do
país, sendo dependente do fluxo doméstico, conforme demonstrado na Figura 2.
Figura 2. Fluxo de turistas no Ceará via Fortaleza. Fonte: Secretaria de Turismo do Estado do Ceará, 2015.
Figura 3. Principais mercados emissores de turistas para o Ceará. Fonte: Secretaria de Turismo do Estado do Ceará, 2015.
No mercado internacional ocorreu uma pequena mudança – a Itália superou Portugal e
atualmente é o destino que mais envia turistas para o Ceará. A França manteve-se como terceiro
mercado que mais consome o produto Ceará, seguindo-se a Alemanha, Argentina e Suíça.
A atual condição pós-moderna, apresentada por Harvey (2005: 264) onde “As ima-
gens de lugares e espaços se torna tão aberta à procura e ao uso efémero quanto qualquer
outra coisa”, faz-nos refletir sobre a massificação dos destinos turísticos.
O significativo crescimento do fluxo turístico do Ceará acarreta problemas semelhantes
aos vivenciados em outros destinos. A concertação do fluxo, a fragmentação do espaço
entre espaços do turismo e espaços de vivencias cotidianas das populações residentes, a es-
peculação imobiliária e o aumento de custo de vida em áreas de maior circulação, acabam
por evidenciar os impactos negativos da atividade e chamam atenção para a necessidade de
repensarmos a atividade e o modo como ela se desenvolve.
lores sociais definidos na restruturação do mundo ocidental pós Segunda Grande Guerra,
prologando-se apenas até o final dos anos de 1970. Lipovetsky (2017) acredita que é neste
momento que se chega ao modelo puro da sociedade do consumo de massa ou sociedade
da abundância, onde há um alargamento do poder de compra, cresce o modo de vida que
busca o lazer e as férias como forma de realização. Imperam, nesse momento, os princípios
da sedução efémera, inicia-se a segmentação de mercado e há a criação de necessidades ar-
tificiais. O princípio do trabalho-sacrifício é gradualmente substituído pelo desejo crônico.
As novas tecnologias, o avanço dos meios de comunicação e o encurtamento das distân-
cias, acabam por finalmente popularizar as viagens, fazendo com que um maior número
de viajantes queira ostentar o status social de viajante. Nessa fase, surgem novos destinos
turísticos, fora da centralidade europeia. Os destinos exóticos e ligados ao turismo étnico
ganham força em países periféricos.
A última fase, segundo Lipovetsky (2017) inicia-se a partir do final do ano de 1970
e estende-se até os dias atuais. Nesse momento o consumo deixa de estar relacionado
ao status e passa a ser interpretado como uma lógica de diferenciação social. Existe uma
pressão contínua por reenchimento de valores. As referências de conforto, lazer, modelo
de consumo do tipo individualista, mas mantem o potencial de prestígio passaram. A era
do “hiperconsumo” requer objetos para “viver”, mais do que para exibir, cria-se o valor
experimental e esse é o cenário ideal para o turismo cultural, o turismo criativo e o turismo
de experiências, uma vez que a curiosidade torna-se “uma paixão das massas”. Os artigos
comprados, assim como as viagens realizadas, criam uma identidade individual, revelando
personalidades a partir das compras.
Seria essa nova fase do consumo o cenário ideal para o surgimento de novos modelos para
o desenvolvimento sustentável do turismo? Estaria o consumidor despertando para o con-
ceito de consumo sustentável e para os princípios defendidos pela Conferência das Nações
Unidas sobre o Ambiente Humano, ocorrida em Estocolmo, em 1972? E esse consumidor,
mais consciente e responsável estaria tomando conhecimento de seu poder na sociedade?
Andrade, Tachizawa e Carvalho (2002) afirmam que a Conferência Sobre a Biosfera
(Paris, 1968), mesmo tendo sido uma reunião específica da área de Ciência, marcou o
despertar de uma consciência ecológica mundial, enquanto a Primeira Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente (Estocolmo, 1972) colocou a questão ambiental em
pauta nos eventos oficiais internacionais, tendo sido a primeira vez que o Poder Público
discutiu a necessidade de controlar os fatores que causam a degradação ambiental. Era o
início da preocupação com o consumo massificado e como as gerações futuras.
Seguindo esta tendência, o Brasil, a partir de 1973, iniciou a criação e dissemina-
ção de órgãos ambientais, inicialmente em âmbito federal e posteriormente nos diversos
Estados da Federação e municípios, seguindo a legislação e a regulamentação específicas
de controle. 217 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Dessa forma, os padrões de consumo foram-se modificando e, em países desenvolvi-
dos como Alemanha, Inglaterra e Suíça, segundo Andrade, Tachizawa e Carvalho (2002),
cerca de 50% de sua população já denomina consumidores verdes. O marketing ecológico
tornou-se sinônimo das empresas que pretendem transparecer uma imagem competitiva
e moderna.
Nesse cenário de mudança de paradigmas, onde os padrões de consumo são questio-
nados e a preocupação com as necessidades atuais e das gerações futuras são evidenciadas,
surge uma forma diferenciada de fazer turismo. Assim como defendido por Zaoual (2003),
tentaremos enxergar o turismo de base comunitária não como um modelo, mas como uma
forma distinta de pratica turística.
Estudiosos do turismo alternativo de base comunitária afirmam que o segmento busca
se contrapor ao turismo massas, requerendo menor densidade de infraestrutura e serviços
e buscando valorizar uma vinculação situada nos ambientes naturais e na cultura de cada
lugar. Essa nova forma desponta como uma possibilidade para turistas que buscam um
contato mais harmónico com as comunidades que os recebem, bem como para as comu-
nidades que se organizam para desenvolvê-lo.
Para Coriolano (2003), o turismo de base comunitária pode ser conceituado como aquele
que é desenvolvido pelos próprios moradores de um determinado lugar, que se tornam os arti-
culadores e os construtores do arranjo produtivo local, ficando a renda e o lucro na própria co-
munidade, contribuindo de forma significativa para melhoria da qualidade de vida da mesma.
O turismo comunitário não se preocupa apenas em percorrer rotas exóticas diferen-
ciadas daquelas do turismo de massas. Trata-se efetivamente de outro modo de visita e
hospitalidade, diferenciado em relação ao turismo massificado, ainda que porventura se
dirija a um mesmo destino (Bursztyn, Bartholo, Delamaro, 2010).
Contrapondo-se as crenças de Molina e do seu pós-turismo que pressupõe o desin-
teresse das culturas locais, a reconstrução de ambientes em sistemas fechados e produtos
turísticos que não utilizam recursos naturais ou culturais, o TBC busca autenticidade,
valorização de atrativos naturais e culturais e um sentido de lugar, de identidade, se distan-
ciando do que o autor define como uma tendência para a atividade turística.
De acordo com Zaoual (2003), o turismo comunitário propõe um diálogo de sentidos
entre os visitantes e os visitados, opondo-se ao modelo convencional adotado.
A Bolívia destaca-se nesse segmento, tendo desenvolvido um Plano Nacional de
Turismo Comunitário dedicado ao seu fomento. Um exemplo dessas praticas em territó-
rio colombiano é o que ocorre em Isla Grande. Uma série de outros destinos se espalham
pela America Latina, no Peru no Lago de Titicana, no Chile, no Deserto do Atacama e a
Reserva Mamirauá na Amazónia brasileira.
Algumas organizações no Brasil assumiram o protagonismo nesse segmento. A Rede
Brasileira de Turismo Solidário e Comunitário (TURISOL) e a Rede Cearense de Turismo
218 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Em paralelo a essas atividades também são realizadas visitas técnicas em complexos hotelei-
ros que seguem a lógica da massificação, como Beach Park, em Aquiraz, e Vila Galé Cumbuco,
no município de Caucaia. A proposta não é idealizar um modelo único de desenvolvimento
para o turismo e muito menos julgar o que seria o bom e o mau turismo. A proposta da ativi-
dade é mostrar alternativas, segmentação de mercado e adequação da demanda a oferta.
O Turismo Comunitário promove o relacionamento direto e constante entre grupos
que também desenvolvem a experiência de um turismo diferente, estabelecendo relações
de cooperação e parceria entre si e essas praticas são vivenciadas pelos alunos como forma
de aguçar o senso crítico dos discentes.
Observadas as praticas locais, passamos a buscar outras experiências, seja em destinos
que trabalham exclusivamente com a pratica do turismo comunitário, seja através de
iniciativas de envolvimento comunitário em destinos massificados.
Foram realizadas visitas e atividades na Fundação Casa Grande, município de Nova
Olinda, no Cariri cearense.
Na Fundação, o turismo comunitário parte da perspectiva de construção de uma
relação entre sociedade, cultura e natureza que busque a justiça ambiental. Tendo como
220 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
4. Conclusões Preliminares
De acordo com a teoria pesquisada o turismo de base comunitária até os anos de 1990
era visto como segmento periférico e marginal. O surgimento de inúmeras iniciativas e a
221 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
formação de redes, mesmo que informais, de pesquisa e fomento da atividade a partir do
Encontro de Turismo de Base Comunitária, conseguiu mudar a forma como o segmento
é percebido pelo poder público.
As pesquisas apontam ainda que existem entraves, tais como: oferta dispersa e frag-
mentada, escassa divulgação, dificuldade de identificação de praticas de TBC em destinos
massificados como apontado na teoria, participação marginal ou subordinada das mulheres
na prestação de serviços.
O turismo comunitário e um arranjo sócio-produtivo de base local onde os elementos
encontram-se imbricados, se desenvolve no contexto territorial, as comunidades se desen-
volvem a partir da atividade e o TBC, se fortalece com o aumento do número de iniciativas.
Nas praticas de TBC visitadas não se observa segregação do espaço dos turistas e
das comunidades. Existe interação e a partilha nas relações constituídas entre visitantes
e visitados.
As iniciativas visitadas, assim como a maioria das iniciativas apontadas na literatura
especializada, ocorrem em áreas próximas ou inseridas nas unidades de conservação. Outra
proximidade com a teoria estudada é que as iniciativas contaram com apoio externo.
Alguns indicativos de possibilidades de melhorias também foram identificados, tais
como a necessidade de envolver outros atores sociais na cadeia produtiva do turismo para
maximizar os resultados da atividade e a necessidade de consumo de produtos locais e da
própria região.
Em avaliações realizadas entre os alunos que participaram das atividades de campo,
existem algumas características que diferenciam o turismo de base comunitária do turismo
de massa, são elas:
222 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Introdução
As procuras turísticas pelos espaços litorâneos ligadas ao contato, primeiro com o vi-
sual e depois como sensorial, com o mar, tem um longo percurso histórico, que remete aos
banhos terapêuticos das elites europeias, a partir de finais do século xviii (Tradução nossa)
(SIMÕES e FERREIRA, 2017).
No pós-Segunda Guerra Mundial, com o aprofundamento da mudança econômica,
cultual e societal, a ida à praia passou a estar associada também a uma maior familiarização
com a água, ao prazer do banho e aos lazeres na água, à aprendizagem da natação, aos
novos, reduzidos e elegantes roupas de praia e às novas sociabilidades à beira-mar (Tradução
nossa) (SIMÕES e FERREIRA, 2017).
Descobertos e apropriados no percurso histórico de construção do turismo contem-
porâneo, os espaços costeiros tem sido protagonistas crescentes na dinâmica da atividade
turística em âmbitos, nacional e internacional. Tal é fruto de uma procura continuada e
cada vez mais intensa pelo litoral, designadamente pelos caminhos costeiros que permitem
uma fruição turístico-recreativa facilitada pelos diversos planos e ações governamentais de
implantação de infraestrutura básica e de acesso, que podem facilitar a chegada do turista,
como por exemplo, o Plano Costeiro e ainda, o próprio PRODETUR (Tradução nossa)
(SIMÕES e FERREIRA, 2017).
O turismo em áreas costeiras – fortemente ligado às práticas balneares – sempre teve,
e ainda tem um peso preponderante na atividade turística, tanto ao nível nacional como
internacional, tanto em Portugal com o fluxo turístico que emana no período de “Férias de
Verão” para a região do Algarve, quanto no Nordeste do Brasil, com águas quentes e uma
infraestrutura diferenciada do que se vê em terras lusitanas, conforme é possível visualizar
nas Figuras 01 e 02.
Figura 01 Litoral Algarvio. Figura 02 Praia do Saco. 227 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Créditos: Lillian Alexandre, 2017. Créditos: Lillian Alexandre, 2016.
Vale ressaltar que em Portugal, segundo Simões e Ferreira (2017), a crescente interna-
cionalização do turismo de sol e mar:
No nordeste do Brasil, segundo Vilar e Santos (2010), o turismo se destaca como uma
forma de:
Assim, essa segmentação toma conotações semelhantes em ambos os países, mas com
as suas devidas peculiaridades advindas do clima, do sol e o tempo em que ele está “dispo-
nível” aos que fazem uso dessa prática. No que em Portugal, no litoral do Algarve se tem
três meses intensos de sol e de férias de verão, aumentando sensivelmente o fluxo de turis-
tas na região; no Nordeste do Brasil, há uma procura durante todo o ano e pontualmente
no litoral sul de Sergipe, essa demanda não sofre muitas alterações, apesar do período
chuvoso, pois há sol por mais dos três meses portugueses (por assim dizer) o que estimula
uma demanda grande para a região.
Conforme a definição trazida pelo documento Segmentação de Mercado, elaborado
pelo Ministério do Turismo (Brasil, 2010), o “Turismo de Sol e Praia constitui-se das
atividades turísticas relacionadas à recreação, entretenimento ou descanso em praias, em
função da presença conjunta de água, sol e calor” e como tal, afirma Vilar e Santos (2010),
em que “a ocupação do litoral nordestino pode ser entendida por três momentos através
dos quais se registram significados variados sobre a concepção de litoraneidade e sobre a
228 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Isso faz com que os litorais em questão, tenham vários símbolos e significados no ima-
ginário do turista, seja nacional ou internacional e nesse momento, as cidades litorâneas
inseridas em roteiros turísticos nos Estados, tendem a receber, de forma planejada ou não,
incentivos para que o “turismo de praia e sol” seja tratado como estratégia de desenvolvimen-
to local, em que, teoricamente, as comunidades, agentes e atores locais, estejam envolvidos.
O turismo balnear, segundo Simões e Ferreira (2017) vem sofrendo declínio em
Portugal em virtude da similaridade de produtos oferecidos pelo turismo de praia e sol e
ainda, pelos preços diferenciados atribuídos ao primeiro em detrimento ao segundo, fazendo
com que os turistas em sua maior parte, escolham a segunda opção, pois:
É o conjunto de atrativos com destacado diferencial turístico, concentrado num espaço geográfico delimi-
1
tado dotado de equipamentos e serviços de qualidade, de eficiência coletiva, de coesão social e política, de
articulação da cadeia produtiva e de cultura associativa.
Figura 03. Região do Algarve. Fonte: Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região do Algarve (CCDRA, 2017).
São quase 200 quilómetros de costa, mais de 100 praias, mais de 50 com ban-
deira azul e, mais do que isso, uma grande diversidade de paisagens. Falésias, areais
intermináveis, rias, ilhas, lagoas, algumas conhecidas e outras ainda secretas e ape-
nas acessíveis a quem conhece bem o caminho. O sol brilha intensamente cerca de
300 dias por ano, mais no verão e na primavera é certo, mas também no outono e
no inverno (TURISMO DE PORTUGAL, 2013).
E esse é o maior diferencial da região Sul de Portugal, uma vez que o fator climático é
um grande segregador dos destinos e tem influenciado na demanda, pois é uma região de
clima ameno durante mais tempo, ou seja, o inverno é menos acentuado, fazendo com que
seja possível “turistar” pela região por mais tempo (Figura 04 e 05).
O Litoral Sul Sergipano está composto pelos municípios de São Cristóvão, Itaporanga
D’Ajuda, Estância, Santa Luzia do Itanhy e Indiaroba, totalizando uma área de 2.480 km²,
apresentando uma elevada fragilidade ambiental, acentuada pela presença de lagoas encaixa-
das entre cordões litorâneos e os atrativos naturais são ampliados pela presença de uma eleva-
da densidade de rede hidrográfica e pela diversidade geomorfológica, que, aliados ao acesso
rodoviário, facilitam a utilização do espaço como área de segunda residência para o veraneio
e o turismo. Do Polo Costa dos Coqueirais é extraída a região objeto deste estudo, litoral
sul de Sergipe, abrangendo os municípios de Estância, Itaporanga D’Ajuda, Santa Luzia do
Itanhy e Indiaroba (Figura 07, 08, 09 e 10) (FONSECA, VILAR e SANTOS, 2010).
Figura 07. Praia da Caueira Figura 08. Praia do Abaís
Créditos: Lillian Alexandre, 2017. Créditos: Lillian Alexandre, 2017.
Figura 09. Praia fluvial povoado Crasto Figura 10. Praia fluvial povoado Pontal
Créditos: Lillian Alexandre, 2017. Créditos: Lillian Alexandre, 2017.
As paisagens registradas nas fotos acima apresentam todo o potencial natural e cultu-
ral que o litoral sul de Sergipe apresenta, tanto nas praias fluviais, como nas praias oceâ-
nicas. A partir desses recursos naturais, a cultura associada e a infraestruturas já existentes,
possibilitam aos visitantes experiências bastantes diferencias das vivenciadas em outras
regiões no litoral brasileiro, em particular no Nordeste, porém é necessário que a articula-
ção do planejamento se faça presente, partindo da lógica percebida no Algarve português,
233 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
principalmente na parceria público privado.
O relevo caracteriza-se por altitudes modestas e se eleva à medida que se caminha
para o interior. Classifica-se em planície litorânea e tabuleiros costeiros. A primeira
estende-se de norte a sul ao longo de toda a faixa costeira e é formada por praias,
manguezais, restingas, campos de dunas, as duas últimas com alturas de até 30 metros.
A segunda, após a planície costeira, em direção ao interior forma morros e colinas com
altura de até 100 metros. Há variedade de solos, dentre eles se destacam: arenoso do
litoral (podzol, areias, quartzosas), “são solos ácidos, profundos, de baixa fertilidade.
Drenam com rapidez toda a água que cai e, devido à salinização, dificultam o uso
agrícola”. No entanto, os coqueiros adaptam-se a esse tipo de solo; arenoso argiloso
dos tabuleiros (podzóicos e latossolos) é de cor avermelhada pela liberação de ferro
existente na rocha, além de pobre em nutrientes; e devido à alta acidez, necessita de
corretivos: adubação orgânica e fertilizante. “A textura arenosa desses solos facilita as
ações erosivas, sobretudo quando o relevo é ondulado. A retirada da Mata Atlântica e
a exposição desse solo às chuvas, somadas aos processos de lixiviação e de escoamento
superficial, facilitam a degradação do mesmo” (BRASIL, 2005, p. 52 apud SANTOS,
2009, p.77).
O planejamento regional do turismo era gerido pela Secretaria Estadual de Turismo
(SETUR) e Empresa Sergipana de Turismo (EMSETUR) com eventual participação do
setor privado e terceiro setor por meio do Fórum Estadual de Turismo (FORTUR), as re-
giões/polos de desenvolvimento turístico são representadas no Fórum que está organizado
num modelo tripartite na expectativa de reunir o poder público, setor privado e terceiro
setor, ligando os municípios ao estado para discutir e deliberar sobre o desenvolvimento
integrado e sustentável da atividade (SERGIPE, 2009).
Este planejamento atendeu as diretrizes do Programa de Regionalização do Turismo
criado pelo Ministério do Turismo (Mtur) em 2004 (BRASIL, 2004), surtindo efeito em
Sergipe no ano de 2005, com uma divisão que contemplou cinco regiões/polos de desen-
volvimento do turismo: Costa dos Coqueirais, Velho Chico, Serras Sergipanas, Tabuleiros
e Sertão das Águas.
O Polo Costa dos Coqueirais nasceu como área de planejamento do PRODETUR-
-NE I, abrangendo tanto os municípios da costa atlântica sergipana mais Laranjeiras,
Santo Amaro e Santa Luzia do Itanhy, aqueles banhados pelo Rio São Francisco, área está
reduzida posteriormente coma retirada dos municípios banhados tão somente pelo São
Francisco. Foram selecionados os municípios por estarem relacionados às ações pontuais
de investimentos em projetos de TBC, em instâncias públicas, privadas ou de instituições
de educação ou outras (SERGIPE, 2009).
O Programa de Desenvolvimento do Turismo (PRODETUR), desde 1994 atua na
234 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
região, com intervenções e investimentos na região que vão desde a recuperação de rodo-
vias até a instalação de atracadouros de usos de pesca e turismo, tendo investido na área
nos últimos 10 anos cerca de R$ 40 milhões e hoje é o principal articulador de recursos e
de ações de políticas públicas do Estado, confundindo-se com a própria política pública
estadual (Figura 11) (SILVA e ALEXANDRE, 2014).
Figura 11. Espacialização dos investimentos do PRODETUR. Fonte: SERGIPE, 2012.
está elencada aos 5 componentes e cada componente tem suas ações específicas pra cada
componente, entendeu?Dentre esses componentes, tem várias ações, e tem naquela re-
gião do litoral sul, hoje, no município de Santa Luzia, nós estamos desenvolvendo lá,
uma ação de infraestrurutra, que é o esgotamento do povoado Crasto e estamos agora,
é prestes a lançar também, a licitação da orla, que vai ser a orla lá de Santa Luzia,
né? Nós vamos ter a orla lá....e em Itaporanga nós também estamos agora, prestes
a lançar a licitação de 2 atracadouros, um na Ilha Mém de Sá e Caibros (...). Tá
previsto também para região do litoral sul, uma orla em Indiaroba, que vai ser em
Pontal, naquela região de lá (...) Na região de Estância tá prevista tb uma orla, mas
no caso de Estância tem uma particularidade (...) nas regiões que estão previstas ações
e que tem ações do ministério público, só depois do entendimento do município com
o ministério público (...) Só depois disso é que o PRODETUR vai poder fazer algum
tipo de intervenção (...)”
Para Rodrigues (2008) “cultura é uma forma particular de ser, de estar, de viver e de
sentir o mundo, onde está inserida uma somatória de costumes, tradições e valores”. Nesta
descrição a autora esclarece que a cultura não é o conhecimento adquirido pelo indivíduo
e sim a vivência dos símbolos representativos da sociedade do indivíduo.
A relação intrínseca entre o turismo e a cultura solidifica a base de sustentação do
turismo cultural, de acordo com Botelho (2007) “o turismo cultural é realizado a partir
do movimento de pessoas impulsionadas por motivos culturais como viagem de estudo,
viagens a festivais ou outros eventos artísticos, visitas a sítios e monumentos, viagens para
estudar a natureza, a arte, o folclore, as peregrinações”. Dias e Aguiar (2002) afirmam
que o turismo cultural é “uma atividade de lazer educacional que contribui para aumen-
tar a consciência do visitante e sua apreciação da cultura local em todos os seus aspectos
– históricos, artísticos, etc.”.
Turismo cultural pode ser definido como um fenômeno social, produto da experiên-
cia humana, cuja prática aproxima e fortalece as relações sociais e o processo de interação
entre indivíduos e seus grupos sociais, ou de culturas diferentes (BRASIL, 2010).
Nesse contexto, é importante reforçar o papel das atividades inerentes a uma comuni-
dade, pois a cultura emana dela e a partir disso, é que surgem as inúmeras possibilidade de
se inovar no campo do produto turístico diferenciado, ou seja, aproveitando muito mais
do que os recursos naturais das localidades como motivadoras, mas a interação comunidades
e turistas/visitantes, favorecendo assim que o turismo criativo venha a tona.
Segundo Molina (2015), “o turismo criativo se propõe como um modelo que promove o
desenvolvimento integral dos indivíduos e das comunidades” e continua afirmando que “está
fundamentado em cinco critérios simples, mas poderosos: a criatividade, a participação, a
inclusão, a excelência e o desenvolvimento integral”.
238 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
O turismo criativo é considerado como uma nova geração de turismo, que implica
na participação de turistas em atividades criativas, com a população local, por exemplo,
manusear uma vara de pescar ou elaborar uma peça artesanal, como uma cesta.
O idealizador do conceito de Turismo Criativo, Richards (2012) afirmou que:
O turista não quer mais ver apenas prédios históricos, ele quer ter o contato
com as pessoas locais. E isso é possível a partir de atividades criativas, nas quais
a comunidade e o visitante criam algo juntos, contribuindo para aumentarem a
qualidade de vida dos locais e enriquece a experiência do turismo (RICHARDS,
2012, p. 34).
Richards (2012) definiu experiências criativas como “aquelas que são distintas, que
mudam as pessoas, as envolvem e fazem com que as pessoas queiram retornar”, destacando
a diferença entre o Turismo Criativo e Turismo de Experiências: o criativo é composto de
experiências criativas, há interatividade, já no de experiências, pode ser passivo. A diferen-
ciação está no tipo de experiência, pois para que um destino seja criativo, precisa oferecer
experiências autênticas, que contribuam para o desenvolvimento pessoal do visitante. É ne-
cessário que haja envolvimento, engajamento para que sejam criadas relações entre a comu-
nidade local e o turista. “O turismo criativo é um lugar para estar, seja para quem vive lá o
tempo inteiro ou para o cidadão que permanece por um tempo”, definiu Richards (2016).
O novo turista procura experiências autênticas, que proporcionem desenvolvimento
pessoal e aprendizagem. A existência de recursos culturais e de patrimônio histórico não são
condições obrigatórias ao desenvolvimento deste tipo de turismo, e estabelecem fronteiras
com o turismo cultural (GONÇALVES, 2008).
Afirma que esse novo turista é percebido pela maior flexibilização e integração mais
diagonal de todo o sistema, a crescente necessidade de segmentação e a valorização do
componente ambiental, conforme é possível visualizar na Figura 12.
Esse novo turista está preocupado não só com as questões locais de sustentabilidade,
mas também em adquirir o máximo de experiências possíveis em sua viagem, podendo
interagir com a comunidade local de várias formas e esperando que tais interações possam
promover nele, mudanças inclusive de olhar, pois as experiências são as mais diversas pos-
síveis e a integração com a produção local, com a mudança de valores e percepção, a forma
com que a gestão lida com a localidade, como a inserção de infraestrutura e ainda, a in-
clusão das novas tecnologias, são aspectos importantes para esse novo modelo de fomento.
Gonçalves (2008) afirma que:
Com isso é necessário reforçar o papel das culturas locais para que esse novo segmento
possa ser, de fato, um elo de fomento local, de integridade das identidades locais e acima
de tudo, que possa contribuir para a sustentabilidade das atividades que já faziam parte do
meio social local e que vieram a fazer parte desse novo “consumo” da atividade.
Assim, a região do Algarve, em Portugal, é uma região de destino turístico de excelência
com mais relevância em Portugal e na Europa, pois já é conhecida como “estância balnear
nacional” e ainda, com a prática do turismo de “praia e sol”, surgem problemas semelhantes
ao do Brasil, na massificação dos destinos com essa característica e isso a transforma em
referência de boas práticas.
Ambas as regiões de estudo aqui apresentadas, tem singularidades a partir da visão do
turismo de Praia de Sol e proporcionando um rico campo de estudo, uma vez que, estão
localizadas em zonas turísticas de intensa mobilidade e fluxos, que acarretam em mudanças
significativas direta e indiretamente, nas comunidades locais.
Todas as ações de políticas públicas de turismo implantadas remetem ao desenvol-
vimento como objetivo fim e nele, as regiões e suas comunidades são observadas como
240 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Referencial
Fontes eletrônicas
Todo agrossistema é um ecossistema exportador, ou seja, a perda de macro e de micro nutrientes é inevitável
1
e, portanto, é imprescindível que se efetuem as reposições dos elementos químicos, objetivando a manutenção
da capacidade produtiva do solo.
Entendemos que as frentes pioneiras e, mesmo, a
“vida rural” nessa parcela do território brasileiro per-
maneceram pouco tempo ligadas à terra, quer como
atividade econômica, quer como local de moradia ou
de afinidade, o que se manifesta no padrão da paisa-
gem edificada, na qual predominam: (1) pastagens
pouco produtivas que dão suporte a uma pecuária
extensiva com manejos atrasados; (2) habitat rural
disperso e baixo Índice de Desenvolvimento Humano
– materializado na ausência de serviços públicos es-
senciais (escolas, postos de saúde...); na inexistência
de culturas alimentares. É comum o morador rural se
abastecer de produtos “banais” (verduras, frutas etc.)
na cidade; (3) o desenho rural foi elaborado a partir
das rupturas entre o campo e a cidade e, assim, o pri-
meiro foi deixado em plano bastante inferiorizado no
que diz respeito à sua construção.
Nós vamos apreender uma parcela do conjunto
territorial mais amplo, denominado de Pontal do
Paranapanema – a bacia hidrográfica do ribeirão
Santo Antônio (Figura 1), a partir de um procedi-
Figura 1. Córrego do Engano mento teórico-metodológico centrado no modelo
ou Santo Antonio GTP (Geossistema – Território – Paisagem).
(Landsat 1999 – CC 453)
A compartimentação geomorfológica
Na análise integrada da paisagem, a sua diversidade apropriada à compartimenta-
ção geomorfológica leva-nos a definir as unidades básicas da Alta, Média e Baixa bacia
hidrográfica (Figura 2).
– a alta bacia, cuja geodiversidade é marcada pela ocorrência da formação Bauru que
define um relevo mais rugoso. Aqui estão as nascentes dos afluentes formadores da bacia
do ribeirão Santo Antonio. Os primeiros pioneiros – menos preparados tecnicamente e
economicamente – ocuparam essas áreas mais elevadas, autênticas “bocas-do-sertão”3,
resultando num caráter muito agressivo de lesionamento da paisagem. A ocupação inicial
se deu numa matriz de pequenas propriedades que abrigavam os pioneiros e plantadores
de algodão. Esse “mundo rural” se encontra, atualmente, envelhecido e empobrecido...
à espera da chegada da cana-de-açúcar;
– a média bacia, cuja geodiversidade se notabiliza pela ocorrência de solos derivados do
arenito Caiuá. A forma desleixada de manejar a média e grande propriedade, regra geral,
com pecuária extensiva, imediatamente após o desestímulo à cultura do algodão (1965),
248 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Foto 1. Ribeirão Santo Antônio ou do Engano (a 500 m a jusante da ponte/SP-613. O leito principal se
encontra totalmente assoreado e a lâmina d´água não atinge usualmente mais de 40 cm de profundidade
na estação chuvosa. A drenagem apresenta-se anastomosada – em vários trechos desse ribeirão –, devido à
incompetência do curso d´água em transportar todo o material sedimentar que vem de montante
O ribeirão Santo Antônio apresenta intenso processo de assoreamento e de despe-
renização, conforme se observa na foto 1. Esta situação é motivada, de um lado pela
suscetibilidade da litologia arenítica da Formação Caiuá e, de outro, pela vulnerabilidade
resultante do processo de desmatamento, inclusive das matas ciliares, conforme mostra
a figura 3.
Figura 3. O registro de 2010 acusa, como fato novo e mais relevante, a redução da mata ciliar na alta bacia do
ribeirão Santo Antônio. Essa realidade foi motivada pelo temor dos proprietários em relação ao Novo Código
Florestal Brasileiro e, então, anteciparam o desmatamento: lamentável!
250 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Figura 4. Pirâmide representativa do levantamento fitossociológico efetuado no lote 01 (Alta Bacia do ribeirão
Santo Antônio). Observa-se, além da inclinação da vertente, a ocorrência do estrato rasteiro (pastagem) que re-
cobre toda a superfície do lote, do estrato arbustivo e, notadamente, o estrato arborescente (como estrato supe-
rior) constituído de espécies vegetais dispersas, conforme pode ser observado na foto tirada do lote (Figura 21).
As unidades básicas de paisagem da bacia do ribeirão Santo Antônio
A combinação dos elementos naturais associada à cultura dos seus agentes e sujeitos de-
finem processos que se prestam para diagnosticar-prognosticar as transformações históricas e
as dinâmicas atuais em cada um dos três segmentos da bacia hidrográfica, objeto desse estudo.
A decomposição do todo espacial em suas partes, ou seja, a subdivisão da área em unida-
des elementares, tem como fim compreender as “descontinuidades objetivas da paisagem”,
segundo propôs Bertrand (1968, p. 251).
Partindo dos elementos fornecidos pela pesquisa, é possível uma classificação das uni-
dades componentes da paisagem, na bacia do ribeirão Santo Antônio, em função de uma ti-
pologia dinâmica e da fragilidade dos equilíbrios morfo-pedogenéticos, nos seguintes tipos:
a) áreas de vegetação residual em biostasia subclimácica e paraclimácica – nessas áreas, o po-
tencial ecológico se mantém praticamente estável e em equilíbrio com a exploração biológica,
embora esta se apresente sensivelmente alterada pela ação antrópica, principalmente de sua
composição florística e da fauna. A título de exemplificar essas unidades, inserimos a figura 5,
onde a vegetação de mata tropical semidecídua eliminada, foi substituída por espécies vegetais
de maior valência ecológica (embaúba, taquaras, sapé e o próprio capim colonião, semeado
pelos posseiros). A madeira de maior valor econômico foi parcialmente retirada de todas as
áreas de matas que restaram por efeito da ação antrópica. Embora o potencial ecológico dessa
unidade não tenha sido alterado, ele não oferece condições muito favoráveis ao ressurgimento
da biota tropical, nos geótopos de onde ela foi eliminada. Certamente, a fase mais favorável –
“otimum climaticum” – para o ressurgimento natural da mata talvez tenha passado.
Nas condições biogeográficas atuais – tanto do potencial ecológico, quanto da explora-
ção biológica – se não ocorrerem novas intervenções antrópicas, é possível que essas biotas
evoluam para uma dinâmica climácica (plenitude da biostasia), mesmo sofrendo alterações
florísticas. O desequilíbrio deu-se no momento em que a ação antrópica se fez presente.
b) os “núcleos de desertificação”/setores em resistasia, retomada por ação antrópica, com potencial
252 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
ecológica degradado –, podendo ser reconhecidos como verdadeiros geótopos áridos, sem que a
pedogênese completasse sua evolução. Em sua gênese, incluem-se fatos ligados a uma predisposi-
ção da estrutura geoecológica, na maior parte das vezes acentuada por ações antrópicas. Figura 6.
Durante a última glaciação quaternária, a vegetação de mata de alguns geótopos foi mais
lesionada e até mesmo eliminada e que, na fase pós-glacial, embora tenham ocorrido inter-
valos de “otimum climaticum” favoráveis à biota tropical úmida, não houve tempo suficiente
para o desenvolvimento da pedogênese. Quando as ações antrópicas destruíram a cobertura
vegetal, o suporte geoecológico revelou sua natureza de sedimentos (sedimentos cenozóicos)
não pedogeneizados. A dinâmica atual observada nesses “núcleos de desertificação” – sob o
clima tropical úmido – revela que a pedogênese é parcialmente anulada pela morfogênese.
Figura 5. áreas de vegetação residual em biostasia Figura 6. “núcleos de desertificação”/setores
subclimácica e paraclimácica que, apesar das alterações em resistasia, retomada por ação antrópica,
florísticas, mantém o estado de equilíbrio biostásico: com potencial ecológica degradado
Alta bacia do ribeirão Santo Antônio.
Os geossistemas estão lá, no seu mosaico funcional com seus componentes à base de ar,
254 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
água, de rocha e de vida. Mas eles não exprimem em si mesmos nenhuma possibilidade ou
impossibilidade social. Eles não têm projeto social. A potencialidade e a limitação não estão
na natureza da natureza. Os determinantes, se existem, estão na sociedade. Eles exprimem ali
a desigualdade das sociedades e dos homens diante da natureza, do território, da paisagem.
A dinâmica territorial
Figura 9. Uso da terra da bacia hidrográfica Figura 10. Uso da terra da bacia hidrográfica
do ribeirão Santo Antônio – 1985. do ribeirão Santo Antônio – 1995.
Figura 11. Uso da terra da bacia hidrográfica Figura 12, Uso da terra da bacia hidrográfica
do ribeirão Santo Antônio – 2005. do ribeirão Santo Antônio – 2010.
Figura 13. Uso da terra da bacia hidrográfica do ribeirão Santo Antônio – 2014.
A paisagem e sua dimensão sócio-cultural
Considerações finais
Agradecimentos
Referências
260 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
BERTRAND, G.; BERTRAND, C.: Uma geografia transversal e de travessias: o meio ambiente
através dos territórios e das temporalidades. Tradução: Messias Modesto dos Passos. Maringá:
Massoni, 2007.
PASSOS, M.M. Relatório Científico FAPESP, nº 2010/51074-6.
Canais de levada e regos d’água:
contribuições portuguesas para
uma outra abordagem brasileira
As origens dos pequenos canais de transposição de água podem ser incluídas no con-
junto de esforços que evocam a busca do homem para superar a dependência de cenários
instáveis, em nome da adaptação dos ambientes às suas necessidades (Sojka, Bjorneberg e
Entry, 2002). Conforme as demandas de consumo agrícola e as adequações dos espaços se
tornaram maiores, as sociedades buscaram superar as sazonalidades climáticas pela irrigação
com canais.
Estas estruturas têm registros em diferentes períodos históricos e regiões do globo,
produtos de inúmeras culturas, acabando por perdurar suas técnicas de modificação dos
regimes fluviais, das áreas de inundação e mesmo das vertentes irrigadas. Compõe este
mosaico as terras das áreas do Crescente Fértil, entre o norte da África e Oriente Médio, a
261 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
agricultura de jardinagem asiática e os canais de irrigação americanos pré-coloniais.
Na Europa, que mais tarde dissemina essa cultura também nas colônias, são observados
esforços de irrigação a partir de canais pré-romanos, sendo difícil, como apontam
Leibundgut e Kohn (2014) rastrear suas origens. Observamos contributos dos povos pré-
-romanos, gregos, romanos, indo-europeus ou árabes, que desenvolveram técnicas, cada
1
Aluno Programa de Pós-graduação em Geografia/Universidade Federal de Uberlândia/Brasil, com mobili-
dade pelo Doutorado Sanduiche (CAPES 88881.135170/2016-01) para Universidade do Minho/Portugal
renato.logan@gmail.com
2
Professor Doutor do Instituto de Geografia/ Universidade Federal de Uberlândia/Brasil, silgel@ufu.br
3
Professor Doutor do Departamento de Geografia/ Universidade do Minho/Portugal, vieira@geografia.uminho.pt
vez mais adaptadas e especificas aos territórios, se destacando também os grupos religio-
sos da idade média. Contudo, para além dos territórios ligados aos monastérios e ordens
religiosas, outras regiões foram objeto de aplicação de diversificadas técnicas de irrigação,
implementadas por diferentes perfis culturais, como apontam Stalder (1994), em áreas
suíças, e Cook (2003 e 2007) com estudos na Grã-Bretanha.
No mundo ibérico ocorreram influências romanas e mouras, no desenvolvimento
dos processos de irrigação (Gerrard, 2011), também os clérigos tiveram sua importân-
cia (Berman, 1986; Evans, 1996 e Lajusticia, 2014). Entre os estados nações europeus,
Portugal se destaca pela antiga origem de sistemas de rega, pré-romanos, e no aspecto da
adaptação dos espaços para as suas demandas produtivas, principalmente agrícolas, em um
território reduzido. Como estes modelos se mostraram bem-sucedidos, acabaram sendo
exportados, no período colonial, para outros territórios, como Guiné Bissau, Cabo Verde,
Angola, Moçambique, Brasil, além dos territórios portugueses como Ilhas da Madeira e
dos Açores.
Em diversas regiões do planeta se pode passar por pequenos canais abertos artificiais
confundindo-os com canais naturais ou simplesmente não percebe-los. Estes elementos,
fundamentais no meio agrícola tradicional, são muitas vezes ignorados por setores cientí-
ficos e civis. Por consequência, se perde a oportunidade de conhecer e refletir como estas
técnicas de apropriação geram impactos sobre natureza e sociedade.
Pensando especificamente nos territórios lusófonos, embora se acredite que tenham
ocorrido distinções e adequações nas gestões destes canais, eles devem partilhar uma
mesma origem histórica. Logo é pertinente considerar como estes canais têm sido tratados
em diferentes regiões, se ainda possuem importância nos contextos socioeconômicos e
quais impactos representam do ponto de vista ambiental. É justamente esta a oportunida-
de apresentada neste estudo ao avaliar estes canais em Portugal Continental (região norte
do País), em um território insular ainda pertencente ao país (região autônoma da Ilha da
Madeira) e em território lusófono independente, o Brasil.
262 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Figura 2. Arquivos do APA com fotografias, mapas, esquemas e outros dados (A)
e Site com informações ligadas a promoção do turismo na ilha da Madeira (B)
A condição dos canais de levada nos territórios portugueses é interessante. Eles ainda
são importantes para a economia rural e têm um papel no fornecimento de água para a
agricultura e em alguns casos são utilizados no controle de cheias. Existem desde pequenos
sulcos de terra, quase despercebidos na paisagem e semelhantes aos encontrados no Brasil,
até levadas mais elaboradas, revestidas, que se estendem por vários quilômetros, chegando
a canais de maior porte com atendimento de grandes faixas agrícolas (Figura 5).
267 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Figura 5. Diversidade das levadas e seus serviços como (A, B, C) atendimento agrícola,
(D) movimentar moinhos, (E) atividades turísticas e (F) industrial
Em Portugal continental foram investigados canais, principalmente no noroeste do
País, desde o rio Minho, na fronteira com a Galiza, passando pelo Lima, Cávado até às re-
giões que drenam para o Douro. Nestas áreas concentra-se um número expressivo de canais
derivados multifuncionais, chamados canais de levada, que atendem regadios, moinhos de
grãos, engenhos de ração, lagares de azeite, atividades turísticas, entre outras possibilidades.
São significativos, para estes cenários, principalmente a partir da renovação e gestão des-
tes canais, as atividades de engenheiros, guarda-rios e técnicos que contribuiram para uma
administração mais eficiente dos recursos hídricos e o atendimento dos cidadãos usuários
(Costa, 2012; Costa e Cordeiro, 2015; Costa et al., 2015).
De fato, na região é conhecida a cultura de irrigação, como no caso das limas, que já
alterava as condições naturais, tendo Pôças (2011) apontado mudanças nas paisagens a
partir de intervenções como canais artificiais e terraços. Wateau (2011) realizou estudo
sobre a irrigação na região do Minho, na fronteira com a Galiza, Espanha, indicando
uma origem pré-romana e suas características, tanto a partir dos elementos de apropriação
quanto da gestão partilhada do recurso pelos usuários.
Se observou, nas atividades de campo e nos registros documentados, vários canais reves-
tidos, alguns dos quais foram reformados nas ultimas décadas, outros apontados e explorados
pelo seu potencial turístico. As reformas ocorreram, principalmente, a partir de meados do
século passado, na esteira de investimentos realizados na aproximação e posterior inclusão de
Portugal no Bloco Europeu, e deram um novo folego às estruturas, tornando-as mais eficien-
tes no fornecimento de água para os agricultores. Este fato foi atestado, principalmente nos
registros das levadas do noroeste de Portugal, apontando a maior preocupação, por parte dos
órgãos gestores, de conhecer, registrar e monitorar estes sistemas de produção.
O sistema de administração destes canais é público, organiza as associações dos usuá-
rios para definir a partilha de água, arbitrar sobre conflitos, as demandas de manutenção
e os custos envolvidos. Se percebe que as relações se tornaram mais artificiais em nome
de uma melhor gestão dos recursos e da redução de possíveis conflitos entre os usuários.
268 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
No Brasil, com território maior e poucos registros de controle sobre estes canais, é
inviável estimar o seu número, distribuição e impactos. No entanto, se sabe que na região
central os regos d’água se popularizaram e são ainda encontrados próximos a cabeceiras
de drenagem. A origem destes canais remonta ao período colonial, empregados em pro-
priedades rurais e também em atividades minerárias, foram se tornando essenciais para o
estabelecimento de sedes rurais em áreas mais afastadas dos fundos de vale.
Atualmente, embora já não sejam tão importantes para grandes empreendimentos,
resistem sobretudo em áreas tradicionais. Estes atestam uma expressiva multifuncionalida-
de que impacta desde a pluriatividade rural até à segurança alimentar dos usuários, sendo
significativas atividades como: abastecimento de sedes rurais, irrigação, abastecimento de
carneiros hidráulicos, piscicultura, dessedentação de animais, valorização de propriedades
rurais, laser e ornamentação (Figura 7).
270 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Figura 7. Multifuncionalidade dos regos d’água no Brasil: (A, B) transposição de água em meio rural,
(C, G) cultivo irrigado, (D) canais para alivio de cheia, (E, H, F) ornamentação
No entanto, é necessário ressaltar que estes canais não são abordados sob o mesmo
grau de administração observada nos casos anteriores. Pelo contrário, prevalece a rus-
ticidade quanto a abertura, manutenção e partilha da água, sendo comuns cenários
conflituosos. Também é sentida a ignorância por parte de órgãos públicos ligados à gestão
das águas, sendo fraca a legislação no que se refere à normatização e regularização dos
regos d’águas. Não há, por exemplo, inventários sobre quantas são e onde se localizam tais
intervenções, nem se conhece o número de usuários beneficiados e de que modo fazem
uso destas águas.
Em campo, se observaram as condições frágeis destes canais que acabam por contribuir
aquém de suas potencialidades, dada a falta de técnicas para manejo. Como não passaram
por um ciclo de renovação, os canais de terra perdem fluxos por vazamento, transborda-
mento e pela infiltração. O comprometimento de sua eficiência diminui o interesse de
alguns usuários, que acabam por utilizar outras formas de abastecimento hídrico. Em
alguns casos se notam problemas com supressão da vazão do curso natural, prejudicando
a conectividade hidrológica, uma questão complexa, pois os mesmos canais artificiais re-
gistraram a formação de alagado com presença de ictio e avifauna. Também se encontrou
canais artificiais abandonados, quase imperceptíveis, de forma que, no contexto vigente,
a tendência é a desvalorização dos que ainda perduram, não sendo comuns projetos de
inovação a exemplo da exploração turística dos percursos portugueses.
7. Considerações finais
Os canais estudados constituem valoroso recurso, na interface homem/natureza, para
apropriação dos espaços em distintos territórios. Pensando em modelos tradicionais de
uso da terra, é possível traçar um significativo paralelo entre as realidades brasileira e por-
tuguesa para os pequenos canais derivados multifuncionais. Contudo, também ocorrem
distinções no modo como têm sido gerido estes sistemas e os impactos que produzem a
partir disso.
272 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Referências
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274 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Um território, uma raça, um património
genético: a “Região” do Jarmelo
e a Vaca Jarmelista
Agostinho da Silva
Professor. Ex-Presidente de Junta;
Defensor da vaca jarmelista
A “Região” do Jarmelo
O enquadramento histórico da região do Jarmelo, não sendo uma tarefa fácil, pela
notória falta de documentação compilada e sistematizada, tem sido feito em trabalhos
como o realizado sobre o seu Foral (Coelho et al., 2010). Embora não seja conhecida
uma eventual primeira carta de foral, o concelho é de “facto” uma realidade que se perde
na noite dos tempos. As atuais freguesias do Jarmelo (S. Pedro e S. Miguel), do concelho
da Guarda, integraram outrora, com alguns outros lugares, a vila e sede de concelho com
aquela designação1. O facto deste concelho medieval se localizar numa região beirã sujei-
ta às incursões muçulmanas e aos possíveis avanços dos reis de Leão e Castela levou os mo-
narcas a conceder-lhes algumas liberdades, que permitissem as populações regerem-se por
normas próprias, além de garantirem proteção com a construção de muralhas e castelos.
Jarmelo terá integrado a rede de ocupação castreja beneficiando da sua localização a cerca 275 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
de 949 metros de altitude. A sua posição estratégica, levou a que fosse calcorreado por roma-
nos como mostra, ainda hoje, a marca visível da sua presença no troço da calçada romana, na
via que ligava a Guarda a Almeida. A ocupação do Jarmelo, embora muito remota, segundo
Jarmelo é uma antiga vila e sede de município português, estatuto que perdeu em 1855, quando foi extinto
1
e o seu território integrado no concelho da Guarda. O concelho era constituído, até ao início do século xix,
por doze freguesias, tinha, em 1801, 99 km² e 3 083 habitantes. Mais tarde foram anexadas as freguesias de
Lamegal e Penha Forte e de Codesseiro, tendo sido extintas algumas das mais pequenas freguesias do con-
celho. Em 1849 tinha 4 918 habitantes e 132 km². Atualmente, o território da antiga vila reparte-se pelas
freguesias de São Miguel do Jarmelo e de São Pedro do Jarmelo.
Reza a lenda que, por causa dos amores e dissabores do infante D. Pedro com Inês de Castro, esta vila sofreu
na pele toda uma atrocidade e brutalidade que ainda hoje, passados sete séculos, estão bem patentes e visíveis
nas terras e almas dessa bendita/amaldiçoada serra (que não fique pedra sobre pedra...).
uma certa tradição oral, só aparece documentada pelos séculos ix e x, conforme refere Tiago
Ramos (2014) no estudo sobre “O castro do Jarmelo em época medieval. O contributo da ar-
queologia para o seu estudo”. Este tipo de ocupação, comum em diversos pontos da Península
Ibérica, privilegiou o povoamento em lugares elevados, a que se atribuía também algum signi-
ficado mítico, como foi o caso do Jarmelo (e sua ocupação) e de outros lugares que se avistam
do alto dos seus mais de 900 metros de altitude. A ocupação de “Penhas”, habitual nesse
período da ocupação do território, aliada a uma topografia peculiar que a destaca da super-
fície aplanada da Meseta Ibérica, acabou por conferir uma dimensão mítica ao lugar, cujas
reminiscências ainda subsistem, hoje, na microtoponímia, onde é possível encontrar lugares
como “Barroco do dinheiro”, “Buraco das feiticeiras”, “Fonte da moira”, “Moinho do vento”.
A toponímia, ao remeter para um imaginário mítico-estórico (de estórias) da tradição
oral, acaba por se transformar, ela própria, num património imaterial das gentes do Jarmelo;
a passagem de vários povos e culturas que antecederam a reconquista e o repovoamento cris-
tão também deixaram marcas na região (Almeida, Almofala, etc.). A partir das Astúrias e da
Cantábria, último reduto que os cristãos mantiveram na Península Ibérica, disseminaram-se
no restante território peninsular, incluindo as terras do Jarmelo, um considerável grupo de
cristãos, senhores (soberanos) com seus pertences e suas tradições. Este processo da recon-
quista cristã acabou por trazer dessas terras montanhosas do Norte um núcleo de ferreiros,
tradição ainda hoje bem presente tanto naquelas terras de origem como no Jarmelo. Com os
ferreiros vieram também os carros das vacas, carregados com seus pesados utensílios de apoio
ao desenvolvimento da sua actividade – que nessa época era referência por questões óbvias de
construção de material de apoio à defesa (portanto utensílios de guerra). Vieram os perten-
ces, forçosamente as próprias vacas, que além de força motriz para a deslocação, serviriam “a
posteriori” para o amanho das terras e sustento dos povos. Aqui pode estar, segundo alguns
autores e que a tradição oral corrobora, a origem da raça autóctone: a Vaca Jarmelista.
276 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
A este propósito refere João Tierno (1904) que “a ganaderia vacum do Jarmello tão
pouco corresponde a qualquer forma intermédia; afigura-se-nos (…) que não é uma sub-
-raça, mas um verdadeiro grupo ethnico independente, em estado de variação desordena-
da”. Adianta, uns passos à frente, que “ no Jarmello as condições de ambiência são análogas
às destas regiões (…) Este conjunto de circunstâncias permitiu que a raça bovina leiteira,
esparsa pelo trato norte-ocidental da península, aqui se fixasse também, mantendo durante
largos séculos as suas qualidades originárias…”
Face ao exposto, cabe explorar a teoria do aparecimento das raças jarmelistas, associada
à vinda de cristãos das Astúrias e da Cantábria, como o trabalho de Manuel Mouta Faria
(2007), que no capítulo dedicado à “Raça ou Gado jarmelista”, aponta a ligação entre as
diferentes raças ibéricas e a possível ligação/ascendência/descendência das raças umas das
outras. Por outro lado, existe desde há séculos a tradição das ferragens no Jarmelo, como
documenta Tiago Ramos (2014), permitindo ligar, portanto, as ferragens e os bovinos do
Jarmelo, atividade que numa primeira e mais longínqua etapa podia estar relacionada com
o fabrico de utensílios de guerra. Como se disse, há e houve nas Astúrias e na Cantábria,
tal como no Jarmelo, uma grande tradição de ferragens e ferreiros, como existe, ainda
hoje, nas Astúrias e na Cantábria, uma raça autóctone de vacas (Asturiana). Lá como cá,
ao longo dos séculos, conseguiram manter-se estes dois patrimónios.
tante o estudo e apoio à raça jarmelista, Mouta Faria, citando Miranda do Vale (técni-
co do ministério da agricultura á época), que apresentou “uma proposta de intervenção
2
Manuel Virgílio Coelho (1954) – Os gados na economia do Jarmelo, 1954, tese de Licenciatura em
Geografia (Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra). Refere este autor: “No arrolamento do gado
de 1870 encontramos largas e abonadas referências a esta raça já então em decadência”. “Esta raça é sem
contestação não só a melhor do distrito, mas talvez a do país, e atrevo-me a dizer que pode rivalizar a vários
respeitos com muitas raças estrangeiras. Ainda hoje existem bastantes indivíduos como sendo reservatórios
de raça, que não lhes acudindo em breve desaparecerá mercê de cruzamentos com raças inferiores. Estes
animais tinham uma estrutura mais que média, pelagem fina, cor amarela clara; anca larga, cauda desem-
penada e preta na extremidade; o úbere bastante desenvolvido era muito largo na base e pendente, tendo a
cor branca, a cabeça apresentava perfil recto, testa larga e focinho comprido com pêlos brancos na ponta;
os chifres brancos de pontas pretas e afiadas eram achatados, com inclinação para trás à raíz e a virar depois
para a frente e um pouco para cima”.
estatal, com o duplo objectivo de seleccionar e fomentar este tipo de vacas e, paralela-
mente, promover a economia da região através da produção de leite e de manteiga”. Entre
finais do século xix e finais do século xx, vários autores divergem sobre a origem e até
sobre a utilidade da preservação da raça jarmelista, estudo comparativo que importava
efetuar (p. ex.: Mário Costa, 1919; Manuel Leitão, 1950; Mouta Faria, de hoje em dia,
cf. ACRIGUARDA). As características que valorizavam a especial capacidade leiteira e,
portanto, de produção de manteiga da vaca jarmelista já eram destacas em finais do sécu-
lo xix. No seguimento das lutas havidas pela produção de manteiga, aparece um elemento
novo a ter que ser tido em conta: a margarina, apresentado por Aires Dinis, que são os
impostos sobre as margarinas, que eram do gosto do “cobrador” uma vez que rendia mais
em impostos que a manteiga nacional.
Com o avançar do século xx, com a cada vez mais influente presença das raças importa-
das, quer leiteiras, quer de produção de carne, veio tornar mais complexa a manutenção das
raças autóctones. Sendo o território continental de Portugal tão diverso, não é de admirar que
pese embora a pequena dimensão (cerca de 92 000 km2), haja neste momento reconhe-
cidas 13 raças autóctones de bovinos, algo inigualável em qualquer outro espaço europeu
279 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
(da mesma dimensão), ou até a nível mundial.
Os textos consultados mostram que desde finais do século xix, mesmo durante todo
o século xx, a recuperação da raça jarmelista nunca teve a tarefa facilitada, encontrando
sempre questões de maior ou menor monta a impedir a sua sobrevivência. Denota ainda
a documentação disponível uma forte falta de compromisso do poder central face a esta e
outras raças de bovinos nacionais. A preservação, a chegada até aos nossos dias foi possível
graças, essencialmente, ao esforço, brio e forte empenho que decorre do sentimento de
pertença a um território; sem a perseverança de uns poucos durante mais de uma centena
de anos seria possível assegurar e trazer até nós os animais que, nos últimos anos, tornaram
possível o reconhecimento oficial.
Este singelo trabalho pretende ser, em boa medida, uma homenagem a essas pessoas
anónimas que, ao seu modo, colaboraram abnegadamente, por vezes de forma inconscien-
te, para que fosse possível preservar a raça bovina jarmelista. A longa apatia dos serviços dos
diferentes ministérios da agricultura não facilitou o querer e a utopia dos que sempre apos-
taram nesta causa. Em 1954, de modo simples, a ousadia Manuel Virgílio Coelho levou-o
a abordar a temática da vaca jarmelista no seu trabalho de fim do Curso de Geografia, na
Universidade de Coimbra. Trata-se de um estudo que o próprio recentemente confessou, lhe
causar nos dias de hoje alguma inibição, pelo modo como na altura o produziu e a disponibi-
lidade de meios e saberes atuais. A leitura desta obra de Virgílio Coelho deve ser enquadrada
e de levar em conta o que representava para um aluno proveniente de uma aldeia do interior
do Portugal profundo, confrontado com as naturais dificuldades da época, arrisca com um
tema desta natureza que acabou por não sair do anonimato. Só foi ressuscitada em 2004 pela
mão do ilustre geografo e professor, António Gama, que numa conversa informal, trouxe
à luz esse documento perdido desde 1954 numa biblioteca da Universidade de Coimbra.
O exemplar policopiado da referida obra de Virgilio Coelho que teve a amabilidade de me
oferecer por ocasião duma visita a Coimbra levou-me, uns anos mais tarde, a contactar o
autor, na Guarda; tivemos uma longa e interessante conversa, onde foi possível perceber o
contexto (da vida pessoal do autor) em que o documento foi produzido.
Desde os longínquos anos 50 até 1999, tirando um ou outro apontamento que sobre-
viveu na memória popular, onde se destacam alguns episódios com veterinários munici-
pais mais ou menos entusiastas, pouco foi feito em prol da salvaguarda do legado genético
que se foi apurando no Jarmelo ao longo dos séculos. Sempre se fizeram na região do
280 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
O facto de já desde várias edições conseguirmos sempre, pelo menos uma TV a fazer
a cobertura à feira do Jarmelo e ainda reportagens pontuais sobre o tema, veio dar uma
visibilidade maior a um evento, que só se tornou referência regional porque a comunicação
social (sempre regional, e depois a nacional) assim o quis. Com eles fizemos reportagens,
com eles fizemos passatempos, fizemos notícia Jarmelo, pelo menos a cada edição que
passava. Em 2004, a TVI, pelo seu, agora ilustre amigo do Jarmelo, Victor bandarra, fez
uma reportagem de cerca de 20 minutos no Jornal Nacional em que deu um forte impulso
à causa. Foi uma reportagem com forte incidência sobre o perigo de extinção da vaca jar-
282 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
melista, fazendo um apanhado geral das lutas que já se tinha travado e ecoando para todo
o país a gravidade da situação.
Um dia conseguimos, nem sabemos muito bem como, que o Director de Serviços da
DG Veterinária, Dr Mário Costa (acompanhado do Dr. Pina Fonseca) achasse interessante
a nossa ideia… e daí para cá tem sido uma luta por manter os criadores “vivos” para evitar
que desaparecesse a vaca. Logo nesta altura, achámos que a ACRIGUARDA poderia ser
o parceiro ideal para desempenhar as funções que, noutras regiões do país, são de associa-
ções de criadores com nome das vacas que representam. Achámos e continuamos a achar,
pois sempre foram parceiros nas diferentes edições da nossa feira concurso. Reconhecendo
aqui que, algumas vezes a Acriguarda era o nossos parceiro, sem nós sabermos, pois nós
de organigramas dos ministérios e serviços desconcentrados do estado, pouco ou nada
sabíamos, a não ser que tínhamos que ir com este papel aqui, com aquele papel ali, para
carimbar e depois entregar mais além… e que o Sr. Doutor ou engenheiro tal é que dizia…
nós pensávamos então que a Acriguarda também “era dessa coisa lá da DRABI” e que não
faziam favor nenhum em vir colaborar com a feira do Jarmelo. Mais tarde lá percebemos o
que significava Acriguarda (Associação de Criadores de Ruminantes da Guarda), e que não
era um serviço desconcentrado de qualquer ministério e que, portanto, estavam ali numa
colaboração, que não numa obrigação.”
Atualmente a carne jarmelista está certificada, com denominação de origem, consome-
-se essencialmente em restaurantes da região da Guarda, em diversos pratos e em diferentes
conceitos, que vão já da chouriça e da farinheira à alheira de jarmelista. Conforme foi am-
plamente divulgado, no carnaval de 2017, cerca de três dezenas de restaurantes do conce-
lho da Guarda, aderiram a uma iniciativa promovida pela Câmara Municipal da Guarda,
um roteiro gastronómico, sendo que de 24 a 28 de fevereiro, se consumiram quase duas
dezenas de animais.
Como será de fácil entendimento, este não pode ser o ritmo de consumo das carnes
jarmelistas, pois tratando-se de uma raça em vias de extinção, e mesmo com os incentivos á
produção, não haveria como alimentar a procura do mercado. Reside aqui a principal difi-
culdade do momento: como tornar viável a “lei da oferta e da procura” de modo sustentável?
Nota final: os textos que se anexam, que poderiam ser outros, com outro critério de
escolha, podem ser complementados com uma consulta na internet para se aferir da parte
recente da luta pela causa das raças/MARCA Jarmelo. Esta abordagem, propositadamente,
coincide com a “saída de cena” do autor deste “humilde trabalho”.
Algumas referências
283 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Agostinho da Silva (2003) – “Vaca jarmelista nas memórias do Silva da Ima”. Produção e edição:
Nucleo de Animação Cultural da Câmara Municipal da Guarda.
Aires Antunes Diniz (1951) – Título: A vaca jarmelista e a agricultura experimental / Aires Antunes
Diniz. In: Praça Velha : revista cultural da cidade da Guarda. – ISSN 0873-8343. – Ano VII,
n.º 16, 1ª série (Novembro 2004), p. 87-102. Assuntos: Jarmelo · Agricultura / Bovinos / Vaca
jarmelista. CDU: 631(469.311). Direcção Geral da Agricultura (1904) - O gado bovino miran-
dês. Boletim da Direcção Geral da Agricultura, oitavo anno, nº1; Lisboa, Imprensa Nacional.
Manuel Mouta Faria (2007) – Textos inéditos a inserir numa actualização de “OS CORNOS
DO AUROQUE – RAÇAS DE BOVINOS NO ENTRE DOURO E MINHO. Direcção”
Regional de Agricultura e Pescas do Norte (Edição on-line – 2007, capítulo sobre a “Raça ou
Gado jarmelista”).
Manuel Virgílio Coelho (1954) – Os gados na economia do Jarmelo. Trabalho de final do Curso de
Geografia, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra.
Maria Helena da Cruz Coelho e Maria do Rosário Barbosa Morujão (2010) – Foral Manuelino de
Jarmelo. Edição IMC.IP – Museu da Guarda, Associação Cultural e Desportiva do Jarmelo.
Tiago Ramos (2014) – O castro do Jarmelo em época medieval. O contributo da arqueologia para
o seu estudo. Tese de Mestrado apresentada à Universidade Nova de Lisboa (Policopiada).
Apontamento noticioso
dencia que as conclusões retiradas desta fase do estudo indiciam «algo interessante», mas frisa
que a população jarmelista identificada é «muito diminuta». Contudo, o estudo indicia uma
«certa diferenciação desta população em relação a populações muito próximas», o que é um
«bom sinal», já que se não fosse assim era «mais complicado» distingui-las. Agora, esta popu-
lação «tanto pode gerar uma raça como fixar-se numa variedade de outras raças ou então não
ser nada, mas não é isso que queremos», assegura. De resto, este é apenas o «primeiro passo»,
havendo que continuar a trabalhar para depois «darmos passos concretos que possam levar à
criação de um registo», adianta. Há que «continuar a avaliar e a estudar com segurança, cri-
tério e rigor, de modo a que a nossa acção não possa ser criticada e possa logicamente chegar a
bom porto», sublinha. (Ricardo Cordeiro – O Interior, 09-06-2005)
Vaca do Jarmelo tem interesse municipal
(23ª Edição da Feira Concurso do Jarmelo, 2006)
O estudo divulgado o ano passado pela Direcção-Geral de Veterinária concluía que existem
24 vacas com diferenças comparativamente às outras raças, mas ainda há um longo caminho
a percorrer até se poder falar em raça jarmelista. Até essa altura, os técnicos tinham apenas
identificada uma pequena população de animais diferentes. (…) O próprio estudo feito pela
DGV às vacas existentes no Jarmelo refere que é perfeitamente visível a diferença entre as vacas
jarmelistas e as mirandesas. Fátima Sobral, uma das técnicas daquele organismo, adiantou na
ocasião ao PÚBLICO que, “utilizando a técnica denominada por taxinomia numérica, base-
ada em características morfológicas, concluiu-se que havia uma separação entre as populações
que foram estudadas”. “As características externas apresentam diferenças comparativamente
às outras raças, sobretudo a mirandesa, que é a mais próxima”, salientou, por seu lado, Lola
Navais, do Instituto Nacional de Investigação Agrária e das Pescas. Agora, vai ser feito um
estudo genético, mas, como admite a própria técnica, “vai ser muito difícil encontrar diferenças
genéticas, porque as nossas raças sempre foram seleccionadas pelo aspecto, pela morfologia”.
Lola Novais disse também que “transformar o pequeno núcleo de 24 vacas numa raça é um
trabalho muito lento, sendo primeiro necessário redefinir as características”. “Por enquanto, só
podemos dizer que há uma população que se difere pelas suas características”, considera a técnica.
Mas admite que, “se se continuar a trabalhar, se se estabelecerem parâmetros produtivos, com
o tempo é possível chegar a dizer que há uma raça jarmelista”. (…) Depois de, no passado dia
27 de Abril, a Assembleia Municipal da Guarda ter aprovado por unanimidade uma proposta,
apresentada pela Junta de São Pedro do Jarmelo, para que a raça bovina jarmelista “fosse classifi-
cada” como tendo interesse municipal, a 23.ª edição da feira-concurso será, salienta Agostinho da
Silva, presidente da junta, “novamente uma boa oportunidade para relançar esta nobre causa”.
“Os criadores do Jarmelo necessitam de continuar a sentir o apoio de todos na sua luta
diária”, salienta, apelando por isso para que “todos os visitantes vistam uma t-shirt da vaca
jarmelista, passando simbolicamente a trazer essa notável raça no seu peito”. “Será uma forma
285 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
de se mostrar o apoio às raças do Jarmelo”, frisa Agostinho da Silva. (Gustavo Brás – Público,
4-06-2006)
Paulo Espínola
CEGOT/Universidade de Coimbra
Vicente Zapata
OBITen/Universidad de La Laguna
Introdução
As ilhas são territórios naturais com fronteiras bem delimitadas pelo contacto imedia-
to entre a sua linha de costa e o mar. Se por um lado, a existência deste elo comum torna-as
unidades geográficas muito especificas, por outro lado, as desigualdades verificadas entre
os espaços insulares, nomeadamente ao nível da dimensão e da posição (relativamente a
outros territórios habitados), tem diretamente consequências no tipo de crescimento so-
cioeconómico, e, por conseguinte, no desenvolvimento humano dos habitantes insulares.
Duas circunstâncias geográficas, como a pequenez e a enorme distância aos grandes
centros socioeconómicos, geralmente acarretam dificuldades acrescidas para os espaços
insulares. Com efeito, uma área demasiado reduzida limita bastante os recursos que esse
território poderá oferecer, pelo que perante elevadas densidades demográficas muitas vezes
287 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
a população procura melhorar o nível de vida através da emigração (King, 1993; King,
1999; McCall, 1994). No entanto, quando o total de habitantes de uma ilha decresce até
determinado limite torna-se complicado obter investimento privado, dado que a dimen-
são do mercado local não possibilita grandes margens de lucro, podendo mesmo originar
prejuízo (trata-se de um mau negócio, portanto!) (Srebrnik, 2000). Por seu lado, estar
distante dos territórios com os quais estão interligados economicamente (exportações vs.
importações) assume-se como uma desvantagem, pois naturalmente a distância promove
o aumento dos custos do transporte de mercadorias e pessoas, o que encarece as desloca-
ções de gente e os bens que chegam às ilhas, bem como aqueles que são exportados (Read,
2004; King, 2010).
John Connell (2007) afirma que as ilhas estão invariavelmente caracterizadas por mi-
gração. Genericamente este geógrafo australiano considera três etapas principais: a uma
longa fase de colonização que contribuiu para o crescimento demográfico insular, seguiu-se
um período de declínio demográfico das ilhas marcado por um processo de intensa emigra-
ção (a partir dos anos 60 do século anterior), mais recentemente destaca o aparecimento de
um novo tipo de imigração de reformados em determinadas ilhas próximas do continente
europeu, originando assim um novo incremento populacional. No entanto, a imigração la-
boral também pode ocorrer em ilhas, caso se verifique uma certa recuperação da vitalidade
económica insular, sendo o turismo, e os seus serviços complementares, uma das atividades
económicas que exige maior recrutamento de mão de obra exterior (Royle, 2001).
O cruzamento de culturas nas ilhas não é algo novo, uma vez que já Vidal de la Blanche
(1926) referia-se às ilhas como centros de encontro e fusão de povos. Porém, Baldacchino
(2010) distingue os visitantes de curta duração (turistas) dos residentes de longa duração
provenientes do exterior. Sugere que a população local insular exibe uma atitude de tole-
rância otimista face ao primeiro grupo (tendo em conta os benefícios económicos que estes
trazem no imediato), mas muitas vezes demonstram desagradado e desconfiança, senão
mesmo hostilidade, para com os elementos do segundo conjunto, excluindo-os da parti-
cipação do modo de vida insular. Será desta forma que todos os imigrantes insulares são
tratados? Este tipo de atitude dos autóctones acontecerá em todas as sociedades das ilhas?
O inglês Russell King (2010), propõe mais duas hipóteses no âmbito das relações sociais
entre os locais e os imigrantes: será que a pequena escala das sociedades insulares constituiu
um ambiente mais acolhedor? Ou será que alguns grupos de imigrantes são bem-vindos,
outros tolerados e outros ainda rejeitados?
Com o propósito de esclarecer este tipo de dúvidas, elaboramos o presente texto. Para
tal, optamos por estudar três ilhas açorianas, Graciosa, Flores e Corvo, as que possuem
menos população das ilhas portuguesas habitadas. Imigrantes nos Açores? A ideia pode
parecer estranha quando se sabe que o arquipélago tem uma longa história de emigração
288 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
(Machado, 2010, p. 19). Mas de facto faz parte da realidade atual do arquipélago e que
atravessa as suas nove ilhas, quando se sabe que a sua mais pequena parcela – o Corvo – foi
a que registou maior acréscimo demográfico relativo ao longo do último período inter-
censitário, alicerçado sobretudo na fixação de imigrantes estrangeiros ao longo dos seus 17
km². O estudo realizado sobre a imigração açoriana por Rocha et al. (2009) enquadra este
fenómeno migratório no plano nacional, embora refira um certo desfasamento temporal,
dado ser mais recente nos Açores relativamente ao território ibérico português. Apesar da
tendência dominante ser para os imigrantes se concentrarem nas principais cidades do
arquipélago, os efeitos da imigração estende-se a todas as ilhas e sente-se com mais inten-
sidade em áreas de baixa densidade demográfica, mais envelhecida e com tendência para o
declínio demográfico (Fonseca, 2007, p. 128). É neste contexto que se justifica um estudo
deste tipo nas ilhas selecionadas.
O principal objetivo deste artigo passa por determinar os tipos de relação entre as várias
comunidades imigrantes e as sociedades (de) autóctones, numa perspetiva que pretende
verificar o padrão de inserção social dos não naturais nas três ilhas dos Açores. Além disso,
será igualmente analisada a relação entre os diferentes grupos de estrangeiros residentes.
O tratamento e interpretação de dados provenientes de dois inquéritos aplicados du-
rante a realização do trabalho de campo da nossa dissertação de doutoramento constituiu
a metodologia principal. No conjunto das três ilhas foram realizados 124 inquéritos aos
imigrantes estrangeiros e 167 à população autóctone, durante o último semestre de 2013.
A distribuição do número de entrevistas foi efetuada tendo em conta o peso dos habitantes
residentes nacionais e nascidos no estrangeiro de cada ilha, utilizando-se como referência
os resultados do último Recenseamento Geral de População de Portugal (2011).
O presente texto encontra-se organizado com a seguinte lógica. Em primeiro lugar,
será realizado um enquadramento natural e demográfico das unidades espaciais em análi-
se. Segue-se uma abordagem às principais diferenças e ao modo de relacionamento entre
as várias comunidades imigrantes, para numa fase posterior determinar-se os tipos de
relação entre os imigrantes a população natural, numa perspetiva dos que migraram. Por
último, será apresentada a perceção e o tipo de interelação dos autóctones com as diversas
comunidades de imigrantes.
O arquipélago dos Açores é composto por nove ilhas cujas superfícies e populações são
muito desiguais entre si e situadas, sem exceção, a mais de 1000 quilómetros do ponto do
continente europeu mais próximo, registando, portanto, um tipo de insularidade natural
289 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
profunda. As ilhas do grupo ocidental – Flores e Corvo – são as que verificam maior grau
de afastamento, quase 2000 quilómetros da Europa, e de uma segunda ilha, depois de
Santa Maria. A Graciosa, por sua vez, está localizada no grupo central, destacando-se neste
subconjunto pela sua área bastante reduzida. As três ilhas estudadas apresentam a curio-
sidade geográfica de serem as que ocupam posição mais a Norte do arquipélago, sendo as
que registam menos habitantes, além disso, Corvo e Graciosa são as que possuem menor
superfície, uma vez que a ilha das Flores apresenta maior área que Santa Maria.
Assim, se os Açores beneficiam do estatuto de região ultraperiférica, aquelas três ilhas
não serão muito mais que ultraperiféricas, tendo em conta a dimensão e a posição que
ocupam no arquipélago?
Figura 1. Localização das ilhas Graciosa, Figura 2. Quadro-resumo das principais características territoriais
Flores e Corvo no arquipélago dos Açores. e demográficas, nas ilhas Graciosa, Flores e Corvo.
(Fonte: Elaboração própria) (Fonte: INE, 2013)
O conjunto de habitantes das três ilhas representa somente 3,5% da população dos Açores,
mas a sua importância sobe para os 5,3% quando consideramos apenas os imigrantes estran-
geiros. A Graciosa é a mais povoada, porém a ilha das Flores destaca-se com o maior valor
absoluto de imigrantes, enquanto o Corvo, por sua vez, surge com a importância de imigrantes
mais elevada entre a sua população, correspondendo a quase 12% do total de habitantes.
Considerando a região de origem do total de imigrantes das três ilhas, verificamos
que são os europeus e os norte-americanos que dominam (Figura 3). Relativamente a este
grupo, Lucinda Fonseca (2007) destaca o contributo particular que a emigração açoria-
na para a América do Norte tem na formação do contingente proveniente dos Estados
Unidos e do Canadá (cônjuges e descendentes). Os africanos também são expressivos,
representando 1/4 do total, enquanto os latino-americanos não vão além dos 13% e os
asiáticos apresentam uma percentagem residual.
Existindo uma significativa variedade nas origens dos imigrantes nas três ilhas estuda-
das, naturalmente que há diferenças entre as comunidades. Desde logo os motivos porque
ao decidirem emigrar do seu país optaram por residir em espaços com uma insularidade
tão profunda (Figura 4).
(pois podem já ser detentores de habitação própria nas freguesias mais rurais ou nas vilas).
Convém referir que o tipo de descrição realizada não se aplica ao Corvo, uma vez que
a imigração de países desenvolvidos é quase inexistente e também porque esta ilha não
possui freguesias, nem qualquer aldeia habitada fora do perímetro da sua única vila.
No que concerne à relação entre as diferentes comunidades são os asiáticos que estão menos
conectados com outros imigrantes, uma vez que quase 80% declarou não ter nenhum amigo
de outro país na ilha em que reside. Para esta circunstância contribui nomeadamente os chi-
neses, claramente a comunidade mais fechada, uma vez que também raramente se relacionam
com outros naturais do mesmo país. Embora os restantes conjuntos estejam mais interligados
com imigrantes de outros países, é possível observar uma maior aproximação social consoante
a região de origem: africanos, latino-americanos, europeus de leste e europeus ocidentais e do
Norte. Os amigos de outros países são maioritariamente oriundos de Estados da mesma região.
De um modo geral, verificam-se casos de inclusão, exclusão e de autoexclusão social
entre as comunidades imigrantes. A comunidade da Europa Ocidental (e do Norte) é das
que mais se fecha sobre si mesma, tendo sido detetado na ilha das Flores um grupo que
classificamos como uma (pequena) sociedade estrangeira organizada. Este conjunto não
interage frequentemente com locais e habitualmente não domina a língua portuguesa.
Nela encontra-se integrada a população norte-americana (sem ascendentes portugueses),
mas não a da Europa de Leste. As outras naturalidades para serem aceites, inclusive a
portuguesa, geralmente têm de casar primeiro com um dos seus membros. Trata-se de um
tipo de sociedade que possui um programa de atividades económicas e sociais planeadas
e fixas, como, por exemplo, a organização do mercado biológico e das classes de Yoga de
periodicidade semanal ou a festa anual dos piratas (Figura 6).
Figura 6. A festa anual dos piratas, na ilha das Flores. (Fotografia cedida por Gabriela Silva)
No entanto, é possível encontrar na ilha elementos com idêntica origem que não se
identificam com o grupo, rejeitando participar nele (autoexclusão, portanto). São elemen-
tos constituídos por famílias que preferem não ter contacto social, indivíduos solitários ou
que estão casados com pessoas de outros países.
A nossa amostra revelou que aquando do momento inicial de chegada à ilha com
objetivo de permanecer a principal dificuldade encontrada pelos imigrantes foi o idioma
(49%), uma vez que a língua oficial portuguesa é sempre necessária nos serviços e espaços
comerciais das ilhas. Na ilha Graciosa, uma das estratégias encontradas por alguma po-
pulação que não domina o português passou por recorrer a alguns elementos autóctones
que dominam o inglês, não sendo complicado encontrá-los, pois naturalmente há entre
os residentes ex-emigrantes regressados da América do Norte que são fluentes na “língua
de Shakespeare”. Com o passar do tempo, estabelece-se uma estreita relação de confiança
entre as duas partes, na qual os naturais passam a ler a correspondência em português e a
redigir os textos na “língua de Camões”, principalmente quando se trata de documentos
oficiais para a administração pública. Não obstante, cerca de 38% declarou não ter encon-
trado qualquer tipo de dificuldade na chegada ao seu destino final, enquanto 11% sentiu
alguma falta de recetividade da população local.
Quando indagados sobre algumas das atitudes da população autóctone insular, os resul-
tados revelam uma opinião bastante favorável, considerando-os principalmente educados e
acolhedores (Figura 7). Mais de 2/3 dos imigrantes entrevistados concordam com as caracte-
rísticas apresentadas dos locais, apenas ao nível da partilha não foi atingindo aquele limite, mas
situando-se muito próximo do mesmo. Em todas as atitudes o Corvo destaca-se por apresentar
a opinião mais favorável, significativamente superior às restantes ilhas. Nenhum imigrante
corvino discordou do facto dos nativos serem acolhedores, educados e tolerantes. Tendo em
conta que a maioria dos imigrantes neste território provém de África, é possível avançar que
se encontram bem integrados na sociedade da ilha mais pequena dos Açores. As percentagens
dos que discordam nunca ultrapassam os 22%, sendo a tolerância e a resposta à questão “se
sentiria falta dos locais se tivesse de partir de modo definitivo?” que se aproxima mais daquela
percentagem. Por região de origem, são os africanos e asiáticos que consideram os locais das
Flores pouco tolerantes, enquanto na Graciosa, são principalmente os latino-americanos (re-
presentando mais de 1/3 de cada conjunto). São novamente os imigrantes de África das Flores,
aos quais se junta outra vez os asiáticos da mesma ilha, que sentiriam menos a falta dos insu-
lares, em caso de partida permanente. Em relação aos europeus, é principalmente na Graciosa
que apresentam respostas mais desfavoráveis relativamente a estas características da população
natural, sem, contudo, ultrapassar os 23,1% do total de imigrantes da Europa.
Somente 8,1% da amostra afirmou não possuir qualquer amigo natural da ilha. São os
africanos (13,3%) que referem em maior proporção não ter amigos insulares, sendo no Corvo
a ilha que apresenta a percentagem mais elevada (16,7%). Todos os imigrantes americanos
revelaram ter pelo menos alguns amigos das ilhas. Apenas na Graciosa há asiáticos sem amigos
294 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
insulares e também é nesta ilha que se verifica maior percentagem de europeus naquela condi-
ção (23,1%). Sabemos de antemão que o conceito de amizade é muito subjetivo, na medida em
que varia bastante de pessoa para pessoa, daí poder condicionar este tipo de análise, porém a
esmagadora maioria dos imigrantes nas três ilhas considera ter amigos locais. Sendo consequên-
cia direta ou não desta circunstância, cerca de 30,6% do total de imigrantes inquiridos revelou
já ter sido alvo de um qualquer ato de discriminação, constituindo o racismo e/ou a xenofobia
a discriminação mais usual (71%). Não foi registado qualquer tipo de problema com os norte-
-americanos, em oposição, são os asiáticos (44,4%) e, principalmente, os latino-americanos
(53,6%) que declaram serem vitimas de discriminação. De salientar o facto de apenas 30% dos
africanos e 18,9% dos europeus terem registado este tipo de problemas. É na Graciosa (36,1%)
que a amostra revelou mais atos de discriminação, pelo contrário, somente 16,7% dos imigran-
tes corvinos sentiu-se discriminado, enquanto a ilha das Flores ficou-se pelos 25%.
Figura 7. Opinião do conjunto de imigrantes Figura 8. A figura social que reflete o grau inserção
das ilhas Graciosa, Flores e Corvo sobre das comunidades imigrantes na sociedade insular,
algumas das atitudes da população local. no conjunto das ilhas Graciosa, Flores e Corvo.
(Fonte: Elaboração própria) (Fonte: Elaboração própria)
Solicitou-se à população local insular que numa escala de 0 a 10, classificassem as ca-
racterísticas dos imigrantes que mais determinam a interação com eles (Figura 9). Nota-se
que de forma bem destacada surge o idioma dos imigrantes (5,48) como o fator que pode
influenciar uma aproximação ou um distanciamento social.
Depois surge a orientação sexual, a nacionalidade e religião, cujos valores se encontram
entre os 2,18 e os 2,70 pontos, respetivamente. É relevante referir que a raça (2,01) possui
pontuação inferior à nacionalidade e à ética, assim pressupõe-se que a existir problemas nes-
tas ilhas será mais de xenofobia de que propriamente de racismo. O resultado da amostra à
população imigrante parece de certa forma corroborar esta ideia, por exemplo, 39,3% dos
latino-americanos declararam ter sido vitimas de atos de racismo ou xenofobia, enquanto nos
africanos essa percentagem não vai além dos 30%. Por outro lado, a classe social, o género e o
nível de instrução são as características que menos importam para o surgimento de contactos
sociais entre os nativos e a população residente nascida no estrangeiro. Numa distribuição por
ilhas são os graciosenses que revelaram de forma significativa os valores mais elevados em todas
as categorias sociais apresentadas, ficando a ideia de se tratar de uma sociedade mais seletiva.
No que concerne ao contacto efetivo com os imigrantes estrangeiros, aproximadamen-
te 81% do total de inquiridos afirmou interagir habitualmente com imigrantes. Enquanto
nas ilhas do grupo ocidental cerca de 89% das amostras contacta geralmente com eles, na
Graciosa 26,7% não o faz, aliás 20% destes graciosenses refere que não tem qualquer in-
teresse, o que não acontece nas outras duas ilhas. Verifica-se assim uma certa rigidez social
para com os que vêm do estrangeiro para uma determinada percentagem de graciosenses.
Apesar disso, o motivo geral mais comum para não haver interação está relacionado com
o facto de os autóctones não conhecerem imigrantes. Não falar a mesma língua é também
uma razão apontada por habitantes da Graciosa.
No que se refere às razões que estão subjacentes à interação usual com imigrantes, a
principal tem a ver com o contacto através das relações comerciais/serviços (46,5%), segue-
-se a vizinhança (21,2%) e motivos laborais (11,8%). Se nas Flores e na Graciosa o principal
motivo são as relações nos estabelecimentos comerciais e de serviços, mais de metade dos cor-
vinos apontaram a vizinhança como o principal fator responsável, o que não surpreende dada
a reduzida dimensão da ilha e pelo facto de toda a população residir numa única povoação.
296 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Figura 9.As características que influenciam a Figura 10. O grau de interação com os imigrantes,
relação da população natural com os imigrantes. segundo a grande região de origem.
(Fonte: Elaboração própria) (Fonte: Elaboração própria)
Tendo em conta o grau de interação com as várias comunidades imigrantes (Figura
10), é com os americanos que a população mais contacta, principalmente com os latino-
-americanos (4,2). Como se demonstrou anteriormente, a principal característica apontada
pelos nativos para se relacionarem com os imigrantes é a língua, ora sendo o conjunto
proveniente da América Latina formado sobretudo por brasileiros é natural que se verifi-
que uma intensificação do contacto com estes. Por outro lado, com uma comunidade de
emigrantes açorianos tão significativa na América do Norte, torna-se fácil a identificação
dos insulares com aquela região do globo, confundindo-se muitas vezes os emigrantes
com os nacionais daqueles dois países. Os Asiáticos surgem em seguida, sendo a últi-
ma comunidade acima dos 3,0 pontos, não surpreende pelo facto de estarem maiori-
tariamente ligados a profissões de atendimento direto ao público (lojas de comércio),
se relembrarmos que a principal razão de contacto com imigrantes apontada ter sido,
precisamente, as relações comerciais/serviços. Os europeus de Leste são os que menos
interagem com a população autóctone, uma das razões tem a ver com o facto de muitos
deles não dominarem a língua portuguesa, o que não acontece com os naturais de África,
pois a maioria é oriunda do espaço lusófono africano. Os europeus ocidentais e do Norte
estão pontuados acima destas duas últimas comunidades imigrantes, mas ficou patente
nas entrevistas que muitos dos insulares preferem alguns (por exemplo, franceses e italianos)
a outros (como os alemães).
Por fim, foi proposto aos naturais das ilhas que efetuassem uma hierarquização dos
diferentes conjuntos regionais de imigrantes, considerando algumas características so-
ciais da população natural do estrangeiro. Esta classificação permitiu-nos elaborar um
quadro-resumo sobre os diferentes rumores e preconceitos afetos a cada comunidade
(Figura 11). Por conseguinte, os chineses surgem como os mais empreendedores e tra-
balhadores, mas também os mais desconfiados! Os brasileiros são sem dúvida os mais
integrados socialmente, o que resulta também do facto de serem os mais simpáticos,
além de serem os menos desconfiados em conjunto com os norte-americanos. Estes, por
outro lado, são considerados os menos trabalhadores a par dos europeus ocidentais (não
surpreende, pois nas ilhas a faixa etária dos imigrantes destes conjuntos é mais elevada
que nos restantes). Para os insulares os mais instruídos vêm da Europa, não importando
ser do Ocidente ou de Leste, enquanto os africanos aparecem destacados como os deten-
tores do menor grau de instrução. Os africanos e os europeus de Leste são em conjunto
os menos empreendedores, os menos simpáticos e cooperantes e os que estão menos
integrados socialmente. Esta é, com efeito, a perceção geral que a população autóctone
tem sobre os vários grupos de imigrantes.
Notas Finais
As ilhas analisadas neste texto possuem um tipo de perfil muito periférico, mesmo
considerando a escala dos Açores, pois como ficou patente, apresentam áreas e populações
com pouco significado no contexto regional. Embora remotas, estas ilhas demonstraram
recentemente capacidade atrativa sobre diversos grupos de imigrantes estrangeiros. A este
respeito o que impressiona não é tanto o volume dos contingentes imigratórios, mas a
diversidade das origens desses imigrantes. Coexiste dois tipos de migrações principais nes-
tas ilhas tão pequenas: uma migração económica-laboral e outra baseada em condições
atrativas de ordem natural (paisagem e clima), frequentemente associada à migração de
reformados. Enquanto a primeira é predominantemente constituída por trabalhadores
de países em desenvolvimento, podendo assumir-se com carácter conjuntural, na medida
em que é formada sobretudo por uma oferta de postos de trabalho nas grandes obras pú-
blicas, a segunda, surge num contexto de opção previamente planeada, frequentemente
associada a uma imigração não ativa (de reformados) proveniente de países (europeus)
desenvolvidos. Com efeito, verifica-se assim o cruzamento de culturas nestes pequenos
298 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
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300 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Perfil dos Alunos que frequentam
o 3º Ciclo do Ensino Básico nas
Escolas do Distrito da Guarda
1. Breve Enquadramento
Esta investigação tem como objetivo responder à questão por nós formulada que foi
a seguinte:
Qual é o perfil dos alunos que frequentam o 3º ciclo do ensino básico nas escolas do distrito
da Guarda?
Para responder a esta pergunta de partida elaborámos recorrendo a métodos valida-
dos e seguindo as melhores práticas recomendadas por investigadores de referência para
a construção de um inquérito por questionário, que foi respondido por uma amostra
representativa da população alvo. A seleção da amostra seguiu o método de amostragem
probabilístico por agrupamento pois os sujeitos da população constituíam grupos naturais,
escolas e turmas do distrito da Guarda.
301 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Em Portugal, distrito, é um território, uma divisão administrativa com um nível au-
tárquico e supramunicipal desde 1835. A Lei de 25 de Abril de 1835 suprimiu o modelo
das províncias até então vigente criando dezassete distritos no continente a que mais tarde
se adicionou mais um, dezoito que ainda hoje permanecem e quatro nas ilhas adjacentes
à plataforma continental. O distrito é constituído por municípios e foi liderado até 2011
por um Governador Civil. O Governo Civil, foi até aí, o órgão da administração pública
que representava administrativamente o Governo da República. O distrito da Guarda é
constituído por catorze municípios, a saber:
Aguiar da Beira; Almeida; Celorico da Beira; Figueira de Castelo Rodrigo; Fornos
de Algodres; Gouveia; Guarda (que é a capital); Manteigas; Mêda; Pinhel; Sabugal; Seia;
Trancoso; Vila Nova de Foz Côa. Foi neste território singular, cheio de potencialidades
mas também com um conjunto de problemas ao nível do seu desenvolvimento económico
e social de que destacamos pela sua acuidade o seu despovoamento, que esta investigação
teve lugar.
Realizado o processo de seleção da amostra é possível observar que a mesma ficou
constituída por 772 adolescentes de ambos os géneros. Destacamos, por que nos parece
lícito, sugerir que os sujeitos da nossa amostra representam o universo de que são prove-
nientes, e é de supor que o sorteio aleatório da escolha seja das escolas, seja das turmas,
tenha facilitado uma distribuição aleatória dos adolescentes que foram entrevistados e
estudados na presente investigação.
Vamos, de seguida, apresentar de forma detalhada como foi realizada a análise descri-
tiva da amostra e apresentar um conjunto de características dos sujeitos que nos permitem
apontar um perfil dos alunos do 3º Ciclo deste território.
2. Análise descritiva
Tendo como referência os objetivos que orientaram esta investigação, neste particular,
implícito à análise dos resultados, procurámos caracterizar não apenas os scores obtidos
pelos sujeitos da nossa amostra para as variáveis dependentes e independentes em estudo,
mas também, analisar como estas variáveis se associam entre si.
Após a análise descritiva dos dados obtidos, passámos de seguida à análise inferencial dos
mesmos através da estatística analítica. Deflectimos assim, através do estudo das associações
entre as variáveis independentes e as dependentes da nossa investigação, para a verificação
da validade dos objetivos formulados.
Vamos em seguida apresentar os resultados da variável género em função da idade
dos sujeitos.
A tabela 1, que de seguida vamos apresentar, descreve a amostra relativa ao género dos
sujeitos em função da idade:
Pela análise da tabela anterior, podemos constatar que a totalidade da nossa amostra
é constituída por 772 sujeitos. Verificámos ainda que 402 sujeitos são do género femi-
nino a que corresponde um valor percentual de (52,1%) e que do género masculino são
303 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
370 sujeitos a que corresponde um valor percentual de (47,9%).
Poderemos ainda apurar que a oscilação das idades em ambos os géneros se cifra entre o
mínimo 12 anos e o máximo de 17 anos. No que diz respeito ao valor da média das idades, na
totalidade da amostra ela é de (x 13,33) anos e o desvio padrão (Dp=1,04). Tendo por base as me-
didas de assimetria ou enviesamento (Skweness/Std. Error) e de achatamento ou curtose (Kurtosis/
/Std. Error) na totalidade da nossa amostra podemos concluir que a distribuição das idades é as-
simétrica e mesocúrtica e o coeficiente de variação é de (7,81%) o que nos indica a existência de
uma (CV ≤ 15%) pelo que poderemos concluir que há uma dispersão fraca em torno da média.
Analisando a estatística representada na tabela 1 relativa à idade em função do género,
verificamos que a média das idades no género feminino se cifra nos (x = 13,29), apresentando
uma dispersão de (CV=7,80%) considerada fraca – CV ≤ 15%. No género masculino a
média é de (x = 13,36) e, como se pode verificar, é superior à do género feminino. Quanto à
dispersão, esta também é fraca uma vez que o valor se cifra nos (CV=7,85%) – (CV≤ 15%).
Contudo, as diferenças entre médias não são estatisticamente significativas (t= 0,983;
p= 0,326).
Com base nas medidas de assimetria ou enviesamento (Skweness/Std. Error) e de acha-
tamento ou curtose (Kurtosis/Std. Error), podemos concluir que a distribuição das idades
em ambos os géneros é assimétrica e mesocúrtica.
Vamos de seguida apresentar os valores relativos ao local de residência dos sujeitos,
tendo como delimitação se o sujeito vive em zona considerada urbana ou rural em função
do género dos respondentes.
Zona Urbana 197 49,0 180 48,6 377 48.8 0,1 -0,1
de da nossa amostra o grupo com maior representatividade é o que diz residir na zona rural,
perfazendo 395 sujeitos, um valor percentual de (51,2%), enquanto 377 sujeitos a que cor-
responde um valor percentual de (48,8%) respondeu dizendo que reside na zona urbana.
Particularizando esta análise da variável, zona de residência em função do género, ve-
rificamos que os respondentes do género feminino 205 cujo valor percentual corresponde
a (51%) diz residir na zona rural, em contraponto com 197 sujeitos num valor percentual
de (49%) afirma residir na zona urbana.
No que diz respeito ao género masculino poderemos verificar que 190 sujeitos a que
corresponde uma percentagem de (51,4%) reside na zona rural, ao passo que 180 sujeitos
cuja percentagem corresponde a (48,6%) dizem residir em zona urbana.
De seguida vamos apresentar os resultados relativos ao ano de escolaridade que os
sujeitos frequentam em função do género.
A tabela 3, que se apresenta em seguida, descreve a amostra por grupo tendo em conta
o ano de escolaridade que os sujeitos frequentam em função do género.
Analisando com mais profundidade estes dados poderemos referir que são os su-
jeitos do género feminino 318 cujo valor percentual é de (79,1%) que de uma forma
muito expressiva afirmam desejar ir para o ensino superior. Ainda do género feminino,
72 sujeitos a que corresponde uma percentagem de (17,9%) querem ficar pelo 12º ano e
apenas 12 sujeitos do género feminino a que corresponde um valor percentual de (3%)
dizem desejar ficar com o 9º ano de escolaridade.
Em contrapartida, os sujeitos da nossa amostra do género masculino afiguram-se
306 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
muito menos ambiciosos quanto ao nível académico que querem atingir no futuro, pois
228 sujeitos a que corresponde um valor de (61,6%) declaram querer ir para o ensino
superior, 117 a que corresponde um valor de (31,6%) querem ficar com o 12º ano e por
fim são os sujeitos que enunciam querer ficar com o 9º ano de escolaridade, estes, são
25 sujeitos a que corresponde um valor percentual de (6,8%).
É de salientar, por que nos parece preocupante, que (20,9%) dos sujeitos do género
feminino e (29,3%) dos sujeitos do género masculino revelem nas suas respostas que não
querem ir para o ensino superior questão que merece alguma reflexão e estudo.
Poder-se-á constatar ainda ao realizarmos uma análise mais detalhada através dos valores
residuais que estas diferenças são estatisticamente significativas (res.> 1,96).
De seguida vamos apresentar os resultados relativos ao nível socioeconómico dos su-
jeitos estudados através da escala de (GRAFFAR) (Sitkewich & Grunberg) escala validada
para a População Portuguesa e os resultados serão apresentados descriminados considerando
o género do respondente.
Pratica uma Religião 350 87,1 279 75,4 629 81,5 4,2 -4,2
Pretendíamos saber qual o grau de crença dos sujeitos na religião que estes dizem pra-
ticar, grau esse autoatribuído, tendo em conta uma escala tipo Likert de 1 a 7 pontos em
que 1 significava muito pouco crente, e 7 muitíssimo crente na própria Religião.
Assim, poderemos verificar que responderam 629 sujeitos de ambos os géneros e que
as suas respostas variaram entre os limites que haviam sido sugeridos 1 e 7. A média global
das respostas é de (x 4,45), o desvio padrão de (Dp= 1,53) e o coeficiente de variação de
(34,56%) o que nos indica a existência de uma dispersão elevada CV> 30%.
Analisando as estatísticas relativas em função do género dos sujeitos, verificámos que
a média da crença obtida no género masculino é de (x = 4,24) e é, como se pode verificar,
inferior à do género feminino que se cifra nos (x = 4,62) apresentando uma dispersão
elevada para ambos os géneros, no género masculino (CV=35,28%) - (CV > 30%), e no
género feminino (CV=33,59%) - (CV> 30%) ambas elevadas, contudo, as diferenças entre
médias são estatisticamente muito significativas (t= 3,104; p= 0,002).
Com base nas medidas de assimetria ou enviesamento (Skweness/Std. Error) e de achata-
mento ou curtose (Kurtosis/Std. Error), podemos concluir que a distribuição no género mas-
culino é simétrica e mesocúrtica e no género feminino é assimétrica negativa e mesocúrtica.
Em seguida vamos apresentar os resultados relativos ao grau de prática religiosa relativo
à religião praticada pelos sujeitos em função do género dos respondentes.
Assim, numa escala tipo Likert em que 1 significava muito pouco praticante, e 7 mui-
tíssimo praticante, as respostas que obtivemos são as seguintes.
Poderemos verificar na tabela anterior, que responderam 629 sujeitos de ambos os géneros
e que as suas respostas variaram entre os limites que haviam sido sugeridos 1 e 7. A média
global das respostas é de (x 3,77) o desvio padrão de (Dp=1,51) sendo o seu coeficiente de
variação de (CV=40,05%) que nos indica a existência de uma dispersão elevada (CV> 30%).
Analisando as estatísticas relativas em função do género, verificámos que a média da
prática religiosa dos sujeitos do género masculino se situa em (x = 3,57) e é, como se pode
verificar, inferior à do género feminino (x = 3,93) apresentando uma dispersão elevada
em ambos os géneros - masculino (CV=41,28%) - (CV > 30%) e no género femini-
no (CV=38,70%) – (CV> 30%), porém, as diferenças entre médias são estatisticamente
muito significativas (t= 3,026; p= 0,003).
Com base nas medidas de assimetria ou enviesamento (Skweness/Std. Error) e de achata-
mento ou curtose (Kurtosis/Std. Error), podemos concluir que a distribuição no género mas-
culino é simétrica e mesocúrtica e no género feminino é simétrica e ligeiramente leptocúrtica.
Em seguida vamos apresentar os resultados referentes à nossa amostra tendo em conta
a variável que colocámos para sabermos se os sujeitos já tinham alguma reprovação no seu
percurso académico trabalhando os resultados obtidos em função do género dos respondentes.
A tabela 10, que se apresenta de seguida, carateriza a nossa amostra tendo em conta a
sua distribuição por grupos de sujeitos com e sem reprovações na sua vida académica em
função do género:
Tabela 10 – Distribuição da amostra por grupos de
Alunos com ou sem reprovações em função do género
Género Feminino Masculino Total Residuais
Já reprovaste alguma vez? n % n % n % Fem. Masc.
Sim 87 21,6 110 29,7 197 25,5 -2,6 2,6
ções. Assim, depois de termos feito o tratamento estatístico adequado dos resultados obti-
dos poderemos verificar que na totalidade da nossa amostra 197 sujeitos a que corresponde
um valor em percentagem de (25,5%) dizem que sim. Isto é, já têm reprovações no seu
percurso escolar. Em contraponto, 575 o que perfaz (74,5%) dos sujeitos dizem que não.
Isto é, não têm reprovações na sua vida académica.
Assinalando estes resultados de forma mais circunstanciada em função do género dos
respondentes, poderemos verificar que maioritariamente são os sujeitos do género femini-
no aqueles que dizem não ter nenhuma retenção no seu percurso escolar, isto é, 315 sujeitos
a que corresponde (78,4%). Em contrapartida afirmam que já têm algumas retenções
87 sujeitos a que corresponde um valor percentual de (21,6%).
Relativamente ao género masculino poderemos verificar que 260 sujeitos a que correspon-
de um valor percentual de (70,3%), afirmam não ter nenhuma retenção e 110 a que corres-
ponde um valor em percentagem de (29,7%) dizem já ter retenções no seu percurso escolar.
Poderemos verificar ainda ao realizarmos uma análise mais detalhada através dos valo-
res residuais, que se pode inferir que estas diferenças são estatisticamente significativas (res
> 1,96) como se poderá verificar na tabela que acabámos de descrever.
Vamos de seguida apresentar os resultados referentes à nossa amostra tendo em conta
a variável que colocámos para saber quantas reprovações os sujeitos já tinham no seu
percurso escolar em função do género.
A tabela 11, que se apresenta de seguida, carateriza a distribuição da nossa amostra por
grupos de alunos com uma ou mais retenções em função do género.
Uma variável que também nos interessava esclarecer era o número de retenções que os
alunos tinham tido no seu percurso académico.
313 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Assim, depois de termos feito o tratamento estatístico adequado poderemos verificar
que, na totalidade da nossa amostra os alunos que já tinham alguma reprovação eram no
total de 197 sujeitos 110 do género masculino e 87 do género feminino. Destes, 151 a que
corresponde um valor percentual de (76,6%) têm uma retenção, 41 a que corresponde um
valor percentual de (20,8%) têm duas retenções e 5 sujeitos a que corresponde um valor
percentual de (2,5%) têm três ou mais retenções na sua vida escolar.
Caraterizando esta análise de forma mais pormenorizada em função do género do
respondente, poderemos verificar que maioritariamente são os sujeitos do género mas-
culino, aqueles que mais retenções têm no seu percurso escolar uma vez que 80 sujeitos
a que corresponde um valor percentual de (76,6%) manifesta ter uma retenção 26 a que
corresponde um valor em percentagem de (23,6%) dizem ter duas retenções e 4 sujeitos a
que corresponde um valor percentual de (3,6%) dizem ter três retenções ou mais. No que
diz respeito ao género feminino poderemos verificar que 71 sujeitos a que corresponde um
valor de (81,6%) dizem ter uma retenção, 15 a que corresponde (17,2%) dizem ter duas
retenções e 1 a que corresponde um valor percentual de (1,1%) dizem ter três ou mais
retenções. Estes resultados merecem uma reflexão muito bem estruturada, uma vez que os
mesmos nos parecem ser muito preocupantes.
Vamos, em seguida apresentar os resultados referentes à nossa amostra tendo em conta
a variável que lhe colocámos para saber em que anos de escolaridade os sujeitos reprovaram
em função do género.
Das respostas obtidas é possível constatar que na totalidade da amostra 358 sujeitos
a que corresponde uma percentagem de (46,4%) dizem que gostam, seguem-se os que
dizem que gostam mais ou menos com 236 sujeitos a que corresponde (30,6%), de se-
guida os que dizem que gostam muito com 107 sujeitos a que corresponde um valor em
percentagem de (13,9%), e por último os que dizem que não gostam com 71 sujeitos e
uma percentagem de (9,2%).
Pormenorizando esta análise em função do género dos respondentes, poderemos ob-
servar que os sujeitos do género feminino 208 a que corresponde um valor percentual
316 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
de (51,7%), a maioria, dizem que gostam da sua escola, 112 a que corresponde (27,9%)
dizem gostar mais ou menos, 60 sujeitos a que corresponde um valor percentual de
(14,9%) dizem que gostam muito e 22 ao que corresponde um valor em percentagem de
(5,5%) dizem não gostar da sua escola.
Quanto os sujeitos de género masculino, poderemos verificar que 150 a que corres-
ponde (40,7%) dizem gostar da escola, seguem-se os que dizem que gostam mais ou menos
com 124 sujeitos a que corresponde um valor percentual de (33,5%), os que dizem que
não gostam da escola são 49 sujeitos que corresponde a um valor em termos percentuais de
(13,2%), e por último são 47 sujeitos a que corresponde um valor percentual de (12,7%)
que dizem gostar muito da escola.
Porém, ao realizarmos uma análise mais detalhada através dos valores residuais con-
cluímos que são estatisticamente significativas as diferenças referentes aos que dizem gostar
da escola e os que dizem não gostar, como se pode verificar, (res.> 1,96).
De seguida, vamos apresentar os resultados referentes à nossa questão feita aos
sujeitos para sabermos em termos familiares como era a sua família em termos da sua
funcionalidade e para isso utilizámos uma escala validada para a População Portuguesa a
escala (APGAR) tendo esta informação sido posteriormente tratada em função do género
do respondente.
que só têm irmãos mais velhos, 230 sujeitos a que corresponde um valor em percentagem
de (29,8%) enunciam que só têm irmãos mais novos, 144 sujeitos a que corresponde um
valor de (18,7%) afirmam que não têm irmãos, e 100 sujeitos a que corresponde um valor
de (13%) expressam que têm irmãos mais novos e mais velhos.
Analisando os resultados obtidos de forma mais pormenorizada em função do género
dos respondentes, poderemos constatar que no género feminino 158 sujeitos a que corres-
pondem (39,3%) dizem que só têm irmãos mais velhos, 123 sujeitos a que corresponde um
valor percentual de (30,6%) afirmam que só têm irmãos mais novos, 70 sujeitos a que cor-
responde um valor de (17,4%) dizem que não têm irmãos, e 51 sujeitos a que corresponde
um valor de (12,7%) afirmam que têm irmãos mais novos e mais velhos.
Quanto ao género masculino os resultados são similares pois poder-se-á verificar que
140 sujeitos a que corresponde um valor em percentagem de (37,8%) dizem que só têm irmãos
mais velhos, 107 sujeitos a que corresponde um valor de (28,9%) afirmam que só têm irmãos
mais novos, 74 sujeitos a que corresponde um valor de (20%) não têm irmãos, e 49 sujeitos
a que corresponde um valor de (13,2%) enunciam que têm irmãos mais novos e mais velhos.
Vamos em seguida apresentar os resultados tendo em conta a Escala Indisciplina
Escolar Percecionada por Alunos (EIEPA) de que somos autores considerando o género
do respondente.
A escala (EIEPA), de que somos autores, é uma escala que visa avaliar a perceção dos
alunos Portugueses do limite e do seu reconhecimento, relativamente aos atos indisciplinados
praticados na escola. Como está patente, esta questão é uma problemática muito presente na
escola Portuguesa. Nestes termos, apresentamos aqui algumas referências para mais e melhor
entendimento relativo à sua construção e validação que nos parecem ser oportunas.
Depois de um conjunto de procedimentos complexos, seguiu-se tratamento estatís-
tico uma vez que era necessário encontrar graus diversificados – recordo que estávamos
a querer delimitar a perceção dos alunos acerca dos comportamentos indisciplinados na
escola. Por conseguinte, foi necessário encontrar grupos diferenciados considerando as
pontuações obtidas pelos sujeitos que responderam à escala.
Lembramos que, como é uma escala cujas possibilidades de resposta colocadas ao dis-
por dos sujeitos é do tipo Likert de quatro pontos, em que, 1 é considerado muito grave,
2 grave, 3 pouco grave, e 4 sem gravidade, aportámos, tendo em conta as boas práticas
estatísticas aludidas em (Pestana & Gageiro, 2008), a metodologia que vamos explicitar.
319 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Por conseguinte, poderemos dizer que as pontuações obtidas poderiam variar entre um
mínimo de 37 e o máximo de 148, pelo que, a sua classificação tendo por base as respostas
obtidas, havia que tomar algumas decisões para assim podermos estratificar os sujeitos de
forma a formar grupos de pertença. Assim, decidimos optar pelos grupos de corte para a
nota global da escala preconizados por Pestana & Gageiro (2008 p. 114) e, depois de apli-
carmos a fórmula (Média ± 0,25 desvio padrão) foram formados três grupos de corte, gru-
pos de respondentes que ficaram assim delimitados, no que diz respeito à pontuação obtida:
– Forte perceção: 37 - 55;
– Média perceção: 56 - 93;
– Fraca perceção: 94 - 148.
A tabela 15, que se apresenta de seguida, descreve a distribuição da nossa amostra
tendo em conta as respostas obtidas à Escala Indisciplina Escolar Percecionada por Alunos
(EIEPA) em função do género dos respondentes.
ponde um valor de (18,4%) têm uma fraca perceção da indisciplina, e por fim, 51 sujeitos
ao que corresponde um valor de (13,8%) têm uma forte perceção da indisciplina.
Poderemos verificar ainda ao realizarmos uma análise mais detalhada através dos valores
residuais, que estas diferenças, umas não são estatisticamente significativas (res <1,96), e
outra são nomeadamente, as que dizem respeito às respostas que referem que os sujeitos têm
uma fraca perceção dos comportamentos descritos pela escala construída e validada por nós.
Vamos de seguida fazer uma breve síntese do que aqui foi descrito uma vez que com
a informação e tratamento estatístico que acabámos de descrever é possível traçar o perfil
dos alunos do 3º Ciclo do Ensino Básico que frequentam as escolas públicas no Distrito
da Guarda.
20. Breve Síntese
Se com o contorno do rosto de uma pessoa, vista de lado, se o aspecto nos dá, ou
pode dar uma certa representação de uma pessoa ou objecto visto de um dos seus lados,
então, sempre poderemos dizer que essa é uma representação parcial uma vez que há
certamente um conjunto de características a vários níveis que nos fazem falta para po-
dermos afirmar que conhecemos uma pessoa ou um conjunto de pessoas. A verdade é
que não será possível a qualquer um de nós ser perentórios ao dizer que a conhecemos
verdadeiramente uma pessoa ou um grupo. Há, por certo, aspetos, algumas característi-
cas de qualquer um de nós que não são visíveis assim de forma tão simplista. Portanto, é
tão necessário investigar, questionar, tanto mais quanto maior é o grupo de pessoas que
queremos conhecer ainda que seja de forma parcial e tentar entender qual é o seu perfil,
sociodemográfico, saber em que zona vivem, quais são os seu anseios académicos para o
futuro, como é que é a sua família do ponto de vista socioeconómico, quanto ao seu fun-
cionamento… um conjunto de questões que nos poderão, como é o caso, definir qual
é o seu perfil, uma questão importante para uma escola que ensina e aprende de forma
cada vez mais no respeito pelo aluno que a ela chega. Este ano (2017) muito se falou do
perfil do aluno na perspetiva da sua saída da escolaridade obrigatória. Mas como se pode
avançar com um perfil de saída quando se não conhece o perfil à entrada da escola, se se
quer apostar cada vez mais num ensino para todos no respeito pela individualidade que
é cada um dos alunos?
Foi nesta perspetiva que este trabalho de investigação foi elaborado, para tentar res-
ponder a algumas questões que devem merecer a preocupação das escolas de hoje para
formar cidadãos para o amanhã com competências, saberes…, capazes de responder a
problemas novos e complexos mais conscientes do seu papel numa cidadania global para
um mundo global em que o digital, a inteligência artificial vai por certo marcar o seu
tempo, um tempo à velocidade da luz em que a perenidade da Ciência e da Técnica estará
321 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
por certo em causa.
Assim, é com estes dados concretos que recolhemos e que trabalhámos numa análise
estatística cuidada bem representativa da população alvo, uma vez que, entendemos que a
amostra dela extraída é suficientemente ampla e por isso, poderemos ter nos valores dela
extraídos a confiança suficiente para lograrmos sobrepor os mesmos à população. Isto
é, aos alunos que frequentam o 3º ciclo do ensino básico das escolas do ensino público
Português no distrito da Guarda.
Apresentaremos os resultados em função das variáveis sociodemográficas, dos con-
textos familiar, psicossocial e de contexto escolar e terminamos este trabalho com uma
breve síntese.
Portanto, considerando a literatura revista e os objetivos do nosso estudo, optámos
por explorar um conjunto de questões que depois de termos ponderado em articulação
com a literatura revista considerámos como variáveis a explorar, nomeadamente, de caráter
sociodemográfico, de contexto religioso, sociofamiliar, psicossocial e de contexto escolar.
Por conseguinte, constatámos que os sujeitos da nossa amostra têm uma idade com-
preendida entre os 12 e os 17 anos. Deixamos aqui um conjunto de dados objetivos que
nos podem permitir retirar um vasto leque de conclusões e por isso nos dão um conjunto
de informação pertinente para nos ajudar a traçar o perfil dos alunos do 3º ciclo do Ensino
Básico que frequentam as escolas públicas do Distrito de Guarda. O aqui descrito é uma
breve parte de um trabalho muito mais vasto que neste tipo de publicações não nos permite
ir mais longe em termos de abordagem.
Apresentámos de forma detalhada esses resultados considerando os sujeitos em função
do género do respondente uma vez que esta forma de apresentação dos resultados nos
permite ter uma visão mais particularizada.
Portanto, com este conjunto de informação que julgamos ser pertinente ficámos com
um conhecimento muito mais minucioso do conjunto dos grupos que se formaram na
nossa amostra em função das suas reais caraterísticas e motivações, indo assim, ao encontro
de alguns objetivos que nos propusemos atingir quando iniciámos esta investigação.
21. Bibliografia
Alonso, B. (2007). La disciplina Escolar en los distintos modelos pedagógicos. Revista de Ciências
de la Educación, nº 131, pp. 289-315.
Amado, J., & Freire, I. (2005). A Gestão da sala de aula. Psicologia da educação, temas de desen-
volvimento, aprendizagem e ensino, 311-331.
Amaro, F. (1996). Escala de Graffar adaptada. AM B. Costa, FR Leitão, J. Santos, JV Pinto, & MN
322 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
I. Preâmbulo
A revisitação do conceito de interior é, aos dias que correm, mais do que uma necessi-
dade, uma oportunidade que deve ser aproveitada por todos. O debate, que extravasou em
muito o círculo da Academia, transportou para a sociedade e para os decisores públicos a
tarefa difícil de delimitação e operacionalização do conceito de interior e, paralelamente
a este, também o sentimento de interioridade. Neste percurso existe sempre a questão da
propriedade, conhecimento e legitimidade com que cada um, ou cada estrutura, fala
das questões da interioridade, dado que muitas vezes estamos apenas confrontados com
mudanças de opinião com fins políticos e cálculos eleitorais.
Com este propósito escrevi na publicação online, Tribuna Alentejo, um texto que sin-
325 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
tetizava as lutas e constantes buscas de legitimação recentes sobre o tema da interioridade
– “O interior: entre o estatuto e a unidade de missão”. Este enquadramento resume bem
o tipo de debate superficial e descentrado que muitas vezes acaba por ocorrer, onde são
férteis os argumentos de tática política ao invés de opiniões fundamentadas, conhecedoras,
competentes e acima de tudo inovadoras sobre a matéria em causa.
Nesse texto, fiz uma constatação evidente – “nos últimos tempos, o Interior, esse
conceito lato, está na ordem do dia porque, de forma surpreendente, todos quiseram
começar a tirar benefícios políticos à custa dos anos de abandono a que estamos vo-
tados há largos anos” (TEOTÓNIO PEREIRA, 2016). Estes argumentos passaram a
ser esgrimidos, no plano político-partidário, aquando da apresentação da Unidade de
Missão para a Valorização do Interior, em que muitas vozes defenderam que este era
o veículo certo para a promoção do interior e outro bloco, como é costume, defendeu
outras iniciativas.
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 3/2016, de 14 de janeiro, criou a
Unidade de Missão para a Valorização do Interior (UMVI) e incumbiu esta de elabo-
rar e implementar um programa nacional para a coesão territorial. Este programa foi
levado a efeito com “mais de cento e sessenta Medidas, maioritariamente de iniciativa
governamental, e uma Agenda para o Interior que integra oito Iniciativas de caráter
temático” (PNCT, 2016).
Em oposição à criação da Unidade de Missão e do referido Programa, estava a ser
discutido o projeto de lei n.º 292/XIII que pretendia criar o Estatuto dos Territórios
de Baixa Densidade. Neste debate, concordei que a tentativa de “catalogação” da faixa
de interior, por si só, nada resolveria, sem ser o de promover o desalento aumentado à
população daqueles 165 concelhos. A esta intenção teria de se juntar sempre um mix
de políticas públicas, transversais e com governação multinível, em áreas tão essenciais
como a mobilidade, fiscalidade, edução e emprego, para que o estatuto tivesse conse-
quências visíveis. Noutro plano, as principais críticas que eram apontadas ao Programa
Nacional para a Coesão Territorial era o facto de não ter metas bem definidas e objeti-
vos mensuráveis.
Ainda neste sentido importa referir a necessida-
de da promoção de medidas multinível, o que, no
contexto atual, está vedado pelos mecanismos de go-
vernação intermédios entre o estado centralista e os
municípios, que detêm pouco poder e recursos em
matéria de política pública. Também aqui há imen-
so a fazer com a democratização das Comissões de
Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR)
326 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Aquilo que se pretende realizar é uma abordagem ponderada que, com base no conheci-
mento do território, possa contribuir para uma síntese crítica das políticas de desenvolvimen-
to regional no século xxi, no novo paradigma do programa nacional para a coesão territorial.
Falar de Desenvolvimento regional no Século xxi é indissociável dos fundos comuni-
tários e estruturais. Sem que o balanço que se propõe seja uma memória retrospetiva dos
primeiros programas de desenvolvimento regional, porque o que se pretende é a reflexão
no estádio atual e no contexto do chapéu do Programa Nacional para a Coesão Territorial,
importa rever a lógica de funcionamento destes fundos e o seu “imperativo comunitário”.
Revisitando a lógica dos primeiros QCA’s (Quadros Comunitários de Apoio), podem
estes ser caracterizados por “um conjunto de documentos elaborados pelos Estados
Membros estruturados por Eixos (estratégicos) correspondentes aos objetivos gerais, que,
por sua vez, integram vários Programas Operacionais (sectoriais ou regionais), com obje-
tivos específicos, desagregados em subprogramas, com várias medidas e em que cada uma
integra um conjunto de ações” (CCDRC, 2017).
O centro do debate aqui acaba por estar cativo de uma lógica burocrata, rígida e impos-
ta por Bruxelas. Este que tem sido uma das principais críticas apontadas aos programas de
desenvolvimento, têm nos últimos ciclos de programação sofrido algumas alterações. Neste
período os programas foram alterando e reforçando a componente da sustentabilidade para
o desenvolvimento.
A estratégia Europa 2020 estabelecia três prioridades que se reforçam mutuamente:
“Crescimento inteligente: desenvolver uma economia baseada no conhecimento e na
inovação. Crescimento sustentável: promover uma economia mais eficiente em termos de
utilização dos recursos, mais ecológica e mais competitiva. Crescimento inclusivo: fomen-
tar uma economia com níveis elevados de emprego que assegura a coesão social e territorial
(COMISSÃO EUROPEIA, 2010)”
327 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
É sobre o último que devemos centrar a nossa atenção, crescimento inclusivo, isto porque
temos de aliar o desenvolvimento à participação. Diria que este será o maior dos desafios que
temos pela frente: na transformação, não só, dos programas comunitários, mas bem como na
mudança de atitude das políticas públicas de desenvolvimento regional no nosso país.
A arquitetura dos programas de desenvolvimento regional, com o recurso a financia-
mento comunitário, estão essencialmente assentes em dois pilares: os ITI – Investimentos
Territoriais Integrados, geradores dos Pactos de Desenvolvimento e Coesão Territorial,
com base nas NUT III e por isso com uma base de programação muito assente nas
Comunidades Intermunicipais e o DLBC – Desenvolvimento Local de Base Comunitária,
com a gestão feita pelos GAL – Grupos de Ação Local.
No capítulo da coesão territorial há, por isso, uma novidade com a introdução de uma
Unidade de Missão para questões do interior. Introduzindo uma abordagem pragmática,
por seu turno, o Programa Nacional para a Coesão Territorial, fixa-se em torno de 160 me-
didas de caracter intergovernamental. No entanto destacava a importância de o documen-
to ser aberto e flexível, “pressupõe uma atitude permanente de cocriação, experimentação,
teste e revisão que se prolongará no futuro próximo” (PNCT, 2016).
Esta leitura indica-nos um caminho novo, o da procura de soluções ajustadas e de
novos desafios nas políticas públicas de coesão. A assunção de novas plataformas colabora-
tivas, que consiga congregar vários participantes do processo de desenvolvimento, parece
ser um caminho importante a seguir.
Pela participação que tive neste Programa, tenho de destacar o facto de “voltar” a colo-
car todos à mesma mesa a discutir os problemas do interior. A descrença generalizada, em
torno deste tipo de discussões, só pode ter uma resposta positiva se der, efetivamente, corpo
às propostas enunciadas pelos participantes – agentes do território. Tive esta participação,
no apoio à coordenação do distrito de Portalegre, através do Fórum Cidadania & Território.
Neste debate regional, no Alto Alentejo, no qual participei e auxiliei a organizar, foi
acompanhado de bastantes propostas concretas apesar do discurso de forte desconfiança.
O ceticismo em relação à Unidade de Missão de Valorização do Interior era uma realidade
bem presente, apesar de estarem nessa discussão vários membros com responsabilidades
institucionais. O desgaste em torno do tema e a falta de vontade política foram os principais
fatores para a desconfiança no seio da discussão.
Dos vários encontros regionais foi criado o documento “Valorizar o Interior: um con-
tributo da sociedade civil para o Programa Nacional para a Coesão Territorial” (FC&T,
2016) que contém mais de uma centena de propostas para o desenvolvimento do Interior
e que nasceu da ampla consulta pública realizada durante mais de cinco meses em todo o
território nacional.
Este modelo de participação, que veio referenciado no Plano final, teve bastante mé-
328 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
rito pela Abordagem bottom-up, colocando nos vários níveis de participação bastante
informação qualificada. A própria metodologia foi bastante feliz pelo foco entre as Medidas
e os instrumentos já existentes versus Medidas inovadoras. Reconhecer assim o que está
bem feito e o que há por fazer, é uma atitude que cada vez mais deveria ser procurada pelos
decisores púbicos.
Este é o caminho para discussões como esta: olhar para o território como um todo,
juntar o máximo de agentes de base local profundos conhecedores do território, refletir
sobre as ferramentas atuais de política pública, ter a coragem para se adotarem medidas
inovadoras e decidir o caminho em conjunto, reforçar a base de trabalho no caminho a
percorrer e a sua qualificação.
III. Cooperação
a) capacitação de agentes
Este é um ponto absolutamente fundamental para o sucesso de qualquer Programa,
seja no plano do Desenvolvimento regional ou em qualquer outra área. Neste quadran-
te assume uma importância adicional porque estamos a falar de territórios com muitas
carências e por isso mesmo existe necessidade de ser continuarem a canalizar alguns fundos
para a capacitação de agentes no território.
A este respeito, fiz uma questão a mim próprio: Quanto se gasta em “Assistência técnica”
nos Programas comunitários?
d) avaliação de políticas
Tudo começa com a avaliação. Neste contexto a perspetiva de permanente revisão
aqui trazida pelo Programa Nacional para a Coesão Territorial parece ser um excelente
caminho. Sem uma avaliação constante dos nossos programas todos os outros esforços de
envolvimento e participação caem por terra, porque muitas vezes pensamos que estamos a
“abrir” os processos quando na prática estamos a fazer exatamente o oposto.
Por fim, e como remate final, faço minhas as palavras do Professor Doutor José Reis,
temos de, definitivamente, olhar para o Território como Urgência Nacional, isto porque
está a acontecer um processo de “«deslaçamento» original dos nossos espaços regionais (es-
paços de vida; espaços produtivos; estruturas urbanas; recursos materiais e naturais), com a
maioria deles a ficar para trás e abaixo de limiares mínimos de capacidade” (REIS, 2017).
A conclusão deste texto e as pistas de reflexão futuras são simples, existe um longo cami-
nho a percorrer. Temos de qualificar o caminho para desenvolvimento, reforçando os progra-
mas de capacitação e de criação coletiva. Se o fizermos bem vai “ficar” a experiência adquirida
e as metodologias de trabalho. Vamos colocar o foco no caminho e menos nas metas. Se
apostarmos em qualificar o caminho, no fim vai ficar qualquer coisa de útil e positiva.
Referências
Introdução
A incompatibilidade de situações é uma das definições mais usuais quando nos re-
ferimos a um conflito, seja ele entre indivíduos ou pessoal (intrapsíquico), em ambas
as situações, o conflito é um desequilíbrio com possibilidades de resolução por meio de
mecanismos específicos. Logo, os conflitos por terra pronunciam-se como uma assimetria
intrínseca a um sistema (a questão agrária).
Antes de investigarmos as causas e efeitos do conflito por terra, consideramos impor-
tante desprende-lo de algumas definições usuais que aparentam se tratar da mesma coisa.
Não há discordâncias de que um conflito de terra é um conflito social por uma porção do
território, o que torna o conflito por terra também um conflito socioterritorial, mas nem
todo conflito social é pôr e/ou a partir do território.
Uma situação de conflito social é resultado de um exercício de poder, embora nem
toda relação de poder tenha como efeito o conflito. O conflito é produto de toda estrutura
social e está envolvido em um processo dialético, em que sendo solucionado, ocasionará
mudanças. Para Pasquino (1998, p.225) o “conflito é uma forma de interação entre indi-
víduos, grupos, organizações e coletividades que implicam em choques para o acesso e a
distribuição de recursos escassos”.
Cada situação de conflito terá seus recursos particulares, podendo eles assumirem uma
ou mais causas, o território por exemplo, – instituído a partir da afirmação de um indiví-
duo ou grupo de indivíduos em um espaço apropriado – pode ser um recurso de conflitos
sociais, políticos, econômicos etc. (SODRÉ e MATTOS JÚNIOR, 2016).
A terra como elemento analítico do conflito socioterritorial, por excelência é um re-
curso em disputa. Diversos instrumentos são utilizados nas situações conflituosas que a
envolvem. As sociedades que não conseguem diluir ou diminuir essas disputas, tendem a
criar um campo de barbárie, que não necessariamente ocorre segundo a contraposição de
classes ou grupos opostos.
O processo de acumulação sem enfrentamento aos obstáculos que se manifestam ao
longo do tempo em uma sociedade, promove um tipo de desenvolvimento social e eco-
nômico marcadamente desigual e conservador. A questão agrária brasileira e suas formas
arcaicas destacam-se como impedimento a superação das desigualdades. Entre essas formas
estão os conflitos por terra, intrínsecos à questão agrária.
Os conflitos por terra, assim como todo conflito agrário mostram a incapacidade ins-
titucional do Estado na resolução da questão agrária e fundiária, ao tempo que mostram
334 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
também a resistência dos camponeses para continuar tendo seus direitos respeitados.
Quando se rebelam contra os seus opostos, os camponeses demonstram suas vontades
políticas, ainda que sejam conscientes das possibilidades de sofrer violências e de perder
a própria vida na luta pela cidadania.
Ao tempo que um conflito possa levar a violência e/ou a morte dos trabalhadores
rurais, nascem também a vida e a esperança. Esse paradoxo se concretiza nas ações dos
camponesas, que negam as forças do capital e se recriam por meio da luta pela terra e na
terra, contrariando um tipo de desenvolvimento que não lhes envolve.
Existem lógicas distintas no que concerne ao desenvolvimento rural para grandes pro-
prietários de terras e camponeses, onde um, depende do infortúnio do outro para sua
realização. Por não levar em consideração essa dualidade, muitos estudiosos costumam
separar o conflito agrário do desenvolvimento rural, entendendo, inclusive, que um con-
flito prejudica o desenvolvimento. Fernandes (2008) entende que o conflito agrário e o
desenvolvimento rural são processos inerentes da contradição estrutural do capitalismo e
paradoxalmente acontecem simultaneamente.
Pensemos nos quilombos distribuídos por todo o país, lugares que mantém vivas as
histórias dos povos negros por meio de uma organização social própria e das relações de tra-
balho, das lutas, das religiões, tradições e da vida. O lugar de refúgio dos escravos contra as
forças do capitalismo, deu vez a um lugar de manifestação cultural e da existência humana.
Um assentamento rural também nos dar suporte para entender essa relação, pois ele
se constitui num território em que as famílias buscam desenvolver-se nas suas dimen-
sões sociais, econômicas, políticas e culturais, mas, que se originou de um conflito – não
necessariamente de um confronto – com a lógica capitalista.
A essência do sistema capitalista converge ao mesmo tempo no desenvolvimento e
no conflito. Fernandes (2008, 2013) alerta para que o conflito não seja tratado como um
processo externo ao desenvolvimento, isto é, desenvolvimento rural e conflito não são
externos um ao outro.
Apesar das transformações sociais e econômicas, a questão agrária e os conflitos agrá-
rios, continuam sob a vigência do padrão da propriedade da terra. A modernização das
estruturas agrícolas e a participação substantiva do agronegócio no superávit da balança
comercial, relegam e negam os problemas da concentração fundiária e a concentração de
renda. A modernização conservadora do latifúndio reforçou a propriedade da terra e o seu
caráter excludente (BUAINAIN, 2008).
Os conflitos agrários nesse início de século persistem como resultado da implanta-
ção de um modelo agropecuário “moderno” de uma sociedade profundamente desigual e
excludente, tanto em termos econômicos como sociais, políticos e culturais. A expansão
do agronegócio no Brasil contraria as afirmações dos seus defensores, que veem nele uma
335 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
revolução pacífica, quando na realidade se observa o agravamento do problema agrário e a
manutenção da violência no meio rural (SAUER, 2008, P.239).
O aumento dos conflitos no campo está atribuído a uma série de fatores, que pesem
o modelo de desenvolvimento com base na modernização conservadora, da ineficácia das
políticas de acesso de acesso à terra e o fracasso da reforma agrária. Segundo Buainain
(2008, p.46) decorrem ainda, da crise da agricultura familiar, restruturação dos sistemas
produtivos e sua absorção de mão-de-obra, desemprego e falta de alternativas para as famílias
rurais que perdem suas terras ou ocupações no trabalho.
Além dessas razões mais estruturais somam-se ainda causas mais específicas como:
construção de grandes obras públicas ou privadas, que provocam o deslocamento de
populações residentes (Mesmo que algumas obras tenham projetos que incluam reassen-
tamentos, dificilmente eles englobam a todos); geração súbita de superpopulação relativa
ao fim de grandes projetos; degradação ambiental por meio de derrubadas e queimadas
de árvores ou mesmo por desastres ecológicos; regulamentação de terras indígenas já ocu-
padas; conflitos em torno da definição do domínio, posse ou uso da terra; conflitos entre
beneficiários de assentamentos e o governo; entre outros (BUAINAIN, 2008, p.47).
Observamos que muitos conflitos são resultantes da implementação de projetos de-
senvolvimentistas e seus processos severamente excludentes, modelo assumido desde o
processo de ocupação do território brasileiro e ainda hoje mantido.
Em contraposição existem forças que buscam esterilizar as desigualdades através do
questionamento da lógica capitalista. Enquanto a problemática das questões relacionadas a
estrutura fundiária persistirem, os conflitos perduram, temporalmente passam por peque-
nos refluxos e se inflam. Seus sujeitos também mudam de acordo com as novas estruturas
capitalistas que levam a uma nova organização social.
Nos últimos 20 anos, a criação de uma ingente quantidade de movimentos sociais
rurais, que lutam por terra, revelam a vigência dos conflitos no campo. Conflitos que per-
passam as relações de propriedade, o domínio político, o controle econômico, o reparto
dos lucros etc. Conflitos que definem a dinâmica do meio rural muito mais que a busca
conjunta pelo desenvolvimento por meio de uma participação esvaziada de sentido e de
objetivo (GOMEZ, 2006, p.105).
336 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
O Maranhão em conflito
Prancha 1
338 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial
Prancha 2
Nesse recorte temporal foram contabilizados 1042 conflitos envolvendo 44.495 famílias,
dessas, 17.325 eram posseiras, 12.782 quilombolas e 5.589 assentadas. Respectivamente esses
números correspondem a 38,5%, 28,4% e 12,4% das famílias maranhenses em situação de
conflito pela terra. Esses números indicam que a conflituosidade no campo é nutrida pelas
intencionalidades concebidas no sistema capitalista. No jogo de forças, dois elos disputam
entre si territórios para suas realizações, de um lado o capital e suas formas exploratórias, do
outro, os camponeses que buscam autonomia e a manutenção de seus territórios.
Considerações finais
O campo maranhense chega ao século xxi com um acentuado grau de desigualdades so-
ciais impulsionadas pelo avanço do capital. No contexto das novas territorialidades do capi-
tal, os conflitos levam alterações sociais, econômicas, culturais e naturais no espaço por meio
de diferentes formas de territorialização, desterritorialização e reterritorialização. As articula-
ções e intermediações dos arranjos espaciais interagem no contexto espacial e temporal em
que estão inseridas e criam novas territorialidades, modificando as configurações espaciais.
O Estado como instituição importante na resolução e mediação dos conflitos que deveria
levar em conta o reconhecimento dos direito dos territórios dos povos e comunidades tradicio-
nais, apresenta morosidade nas suas ações de intervenção, levando a desencontros na articulação
de políticas públicas que por vezes acabam promovendo ainda mais tensões por meio de um
modelo de desenvolvimento de reprimarização econômica, que não prioriza a função social da
terra e estabelece um padrão de concentração de capital, tecnificação e mecanização do campo.
Referências
BUAINAIN, Antônio Márcio. Reforma agrária por conflitos. In BUAINAIN, Antônio Márcio. (Org).
Luta pela terra, reforma agrária e gestão de conflitos no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
p.17 – 128.
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão Agrária: Conflitualidade e Desenvolvimento
Territorial. In BUAINAIN, Antônio Márcio. (Org). Luta pela terra, reforma agrária e gestão de
conflitos no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2008B. P. 173 – 230.
GÓMEZ, Jorge Ramon Montenegro. Desenvolvimento em (des)construção: narrativas escalares
sobre desenvolvimento territorial rural. 438 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade
Estadual Paulista, Presidente Prudente – SP, 2006.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo 2010.
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 27 de janeiro de 2016.
340 // Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial