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A visão de Octavio Paz sobre Sor Juana Inés de la Cruz, Juana

de Asbaje, seu nome laico, nos permite vislumbrar uma fase da


história do México pouco conhecida no Brasil, mas também
pouco estudada pelos mexicanos do nosso tempo. Entre os sé-
culos xvi e xix, no território que vai do sul dos Estados Unidos
até a Mesoamérica (excluindo a capitania geral da Guatemala),
constituiu-se o vice-reinado católico da Nova Espanha que, ao
lado do vice-reinado estabelecido no Peru, atuou como a fonte
primordial de transferência de riquezas para a metrópole espa-
nhola durante quase trezentos anos.
O talento e a maestria de Paz permitem que nos debruce­mos
sobre a realidade da Nova Espanha, já que o autor percebe que,
para compreender e apreciar a grandeza de Sor Juana – uma

Octavio Paz das mais extraordinárias personagens da cultura da América –


é preciso entendê-la em seu contexto e valorizar como, no seio
dessa realidade, ela foi excepcionalmente vanguardista e corajosa.
Em quatro partes, trinta capítulos e um apêndice, a leitura
de Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da Fé nos possibilita
Sor Juana Inés de la Cruz observar simultaneamente seja a própria Sor Juana, a primeira
ou As armadilhas da fé escritora de língua castelhana da América – insuficientemente
conhecida no panorama universal da literatura, onde deveria
se situar, em sua justa dimensão e complexidade –, seja a socie­
dade da Nova Espanha, um mundo encoberto pelo barroco espa­
nhol e pelo sacrifício dos povos indígenas, cheio de dogmas e
tra­dições, sincrético e injusto.
Escrever um livro sobre uma freira poeta do século xvii não
deixa de ser uma homenagem especial às milhares de mulheres
que tiveram que calar sua voz nas sociedades espanhola, portu-
guesa e americana de influência ibérica.

beatriz paredes
Octavio Paz
Sor Juana Inés de la Cruz
ou As armadilhas da fé

tradução wladir dupont


prefácio 9

1. o reino da nova espanha 17


Uma sociedade singular  19
O estrado e o púlpito  36
Sincretismo e Império  47
Uma literatura transplantada  59

2. juana ramírez (1648-68) 77


A família Ramírez  79
Sílabas las estrellas compongan  96
Os empenhos de Juana Inés  111
A profissão  126

3. sor juana inés de la cruz (1669-79) 143


A cela e suas ciladas  145
Ritos políticos  171
O mundo como hieróglifo  188
A madre Juana e a deusa Ísis  203

4. sor juana inés de la cruz (1680-90) 215


Lisonjas e mercês  217
Concílio de estrelas  231
Religiosos incêndios  251
O reflexo, o eco  273
Reino de signos  290
Diversa de si mesma  305
5. décima musa 323 ... al ánimo arrogante
Ouve-me com os olhos  325 que, el vivir despreciando, determina
Tinta em asas de papel  347 su nombre eternizar en su rüina.
Arca de música  369 Primero sueño
O palco e a corte  396
O carro e o Santíssimo  412
Primero sueño  433

6. as armadilhas da fé 467
Carta polêmica  469
A Respuesta 489
E as respostas  504
O assédio  517
A abjuração  530
Ensaio de restituição  553

apêndice 573
a carta 579
agradecimentos 587
índice onomástico 589
prefácio

História, vida, obra

Na época que comecei a escrever, por volta de 1930, a poesia de Sor Juana
Inés de la Cruz deixara de ser relíquia histórica para se transformar em
texto vivo. Foi um poeta quem acendeu a chama desse reconhecimento
no México: Amado Nervo. Seu livro (Juana de Asbaje, 1910) é dedicado
“a todas as mulheres de meu país e de minha raça”. Esse pequeno li-
vro ainda se lê com gosto. Mais tarde, entre 1910 e 1930, apareceram
muitos estudos eruditos: era preciso desenterrar os textos e fixá-los. Aos
trabalhos de Manuel Toussaint sucederam-se os do incansável Ermilo
Abreu Gómez, que colocou diante de nossos olhos, pela primeira vez, em
edições modernas, Primero sueño, a Carta atenagórica e a Respuesta a Sor
Filotea de la Cruz. Os poetas do grupo Contemporáneos1 leram Sor Juana
com simpatia e interesse, sobretudo Jorge Cuesta e Xavier Villaurrutia,
que editou os Sonetos e as Endechas. Naqueles anos, graças ao sábio fer-
vor de Cuesta, li pela primeira vez os poemas de Sor Juana. Os sonetos
me marcaram. Só voltei a lê-la em Paris, em 1950. A revista Sur queria
comemorar o terceiro centenário de seu nascimento, e [o editor] José
Bianco me escreveu, pedindo um artigo. Aceitei a tarefa, fui à Biblioteca
Nacional, consultei velhas edições e escrevi um pequeno ensaio, origem
remota deste livro.

1 Grupo de escritores, principalmente poetas, mas também ensaístas e romancis-


tas, reunidos em torno da revista Contemporáneos (1928-31), que impulsionou uma

História, vida, obra


renovação da literatura mexicana, incorporando as tendências estéticas vanguardistas
da época. O grupo incluía sobretudo Jorge Cuesta, Xavier Villaurrutia, Jaime Torres
Bodet, Carlos Pellicer, Gilberto Owen, Salvador Novo e Bernardo Ortiz de Montellano.
[n.t.] [As notas que traduzem os versos são sempre do tradutor; as demais, quando
não indicada a autoria, são de Octavio Paz.]

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Como se fosse uma presença recorrente, cíclica, Sor Juana reapare- havendo conhecido [...] sua erudição singular associada a sua não pouca
ceu em 1971. A Universidade de Harvard me convidou para ministrar formosura, atrativos para a curiosidade de muitos, que desejariam conhe-
alguns cursos, e quando me perguntaram qual seria o tema de um deles, cê-la e ficariam felizes de cortejá-la, costumava dizer que não podia Deus
respondi sem pensar muito: Sor Juana Inés de la Cruz. Foi preciso lê-la enviar calamidade maior a este reino que permitir que Juana Inés se tor-
outra vez, e ler muito o que sobre ela fora escrito até então, e que eu nasse a personalidade do século.
esquecera ou não conhecia. Já naquela época, Alfonso Méndez Plancarte
havia publicado sua notável edição das Obras completas. As bibliotecas de Os temores do padre Núñez se concretizaram, embora de maneira não
Harvard provocaram e também saciaram minha curiosidade. Em seus prevista por ele. Nem a escassez de notícias sobre os principais epi­
corredores, às vezes eu encontrava Raimundo Lida;2 falávamos de Sor sódios da vida de Juana Inés nem o desaparecimento de boa parte de
Juana, da música e da numerologia mística. Ministrei o mesmo curso seus papéis pessoais e de sua intensa correspondência a livraram
em 1973 e, com as anotações feitas durante aquele período, pronunciei, de ser a “personalidade do século”. Há mais de cinquenta anos sua vida
em 1974, no Colegio Nacional, no México, uma série de conferências: e sua obra não param de intrigar e apaixonar eruditos, críticos e leito-
Sor Juana Inés de la Cruz, su vida y su obra. No ano seguinte, ao reler as res comuns: por que escolheu, sendo jovem e bonita, a vida de freira?
anotações e ouvir as gravações, pensei que valeria a pena utilizá-las num Qual a verdadeira índole de suas inclinações afetivas e eróticas? Qual o
texto que fosse, simultaneamente, um estudo do momento em que ela significado e o lugar de seu poema Primero sueño na história da poesia?
viveu e uma reflexão sobre sua vida e obra. História, biografia e crítica Que relações tinha com a hierarquia eclesiástica? Por que renunciou à
literária. Comecei a escrever o livro, mas de forma intermitente, inter- paixão de toda a sua vida: as letras e o saber? Essa renúncia foi o resul-
rompido com frequência por outros afazeres. Concluí, em 1976, as três tado de uma conversão ou de uma abdicação? Este livro é uma tentativa
primeiras partes. Depois, durante vários anos, nada. O projeto dormia de responder a essas perguntas.
e estive a ponto de abandoná-lo. No fim de 1980, movido – ou melhor: São muitos os enigmas de Sor Juana Inés de la Cruz: os da vida e os
sacudido – por uma espécie de remorso, voltei ao manuscrito inconcluso. da obra. É claro que existe uma relação entre a vida e a obra de um escri-
No primeiro semestre de 1981, escrevi as três partes finais. tor, mas essa relação nunca é simples. A vida não explica inteiramente a
Meu livro não é o primeiro sobre Sor Juana, nem será o último. A bi- obra, e a obra tampouco explica a vida. Entre uma e outra há uma zona
bliografia sobre sua pessoa e sua obra abrange três séculos e se estende vazia, uma fenda. Há algo na obra que não está na vida do autor; isso é o
a várias línguas, embora ainda esteja faltando o previsível estudo de que se chama criação ou invenção artística e literária. O poeta, o escritor,
algum erudito japonês. As últimas a chegar foram as mulheres. Contudo, é o olmo que, sim, dá peras.3 Entre os estudos consagrados a Sor Juana,
compensaram o atraso com entusiasmo: Dorothy Schons, Anita Arroyo, há dois que ilustram as limitações do método que pretende explicar a
Eunice Joiner Gates, Clara Campoamor, Elizabeth Wallace, Gabriela obra pela vida. O primeiro é a biografia do padre jesuíta Diego Calleja.
Mistral, Luisa Luisi, Frida Schultz e outras. A esse grupo recentemente Foi seu primeiro biógrafo. Para Calleja, a vida de Sor Juana é uma as-
juntaram-se Georgina Sabat de Rivers e Margarita López Portillo. A esta censão gradual para a santidade; quando percebe alguma contradição
última, a propósito, devemos uma obra que merece reconhecimento: o entre essa vida ideal e o que a obra de fato diz, ele trata de minimizá-la
resgate e a reconstrução do claustro do convento de San Jerónimo. ou dela se esquivar. A obra se transforma numa ilustração da vida, isto
A palavra sedução, que tem ressonâncias ao mesmo tempo intelectuais é, num discurso edificante. No polo oposto, encontra-se o professor ale-
e sensuais, dá uma ideia muito clara do tipo de atração que desperta a fi- mão Ludwig Pfandl. Influenciado pela psicanálise, ele descobre em Sor
gura de Sor Juana Inés de la Cruz. Seu confessor, o jesuíta Antonio Núñez Juana uma fixação pela imagem paterna da qual deriva seu narcisismo:

História, vida, obra


de Miranda, já se deleitava com o fato de que ela fizera os votos, pois
3 Em espanhol, a expressão “pedir peras al olmo”, de uso disseminado, significa exigir
prefácio

2 Filólogo, crítico literário e ensaísta, o argentino Raimundo Lida (1908-79) era de alguma pessoa ou de alguma coisa algo que, por suas características, ela não pode
espe­cialista no Século de Ouro da literatura espanhola. [n.e.] dar. O olmo é um árvore nativa da Europa que dá um fruto seco incomível. [n.e.]

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Sor Juana é uma personalidade neurótica, em quem predominam fortes O espírito e algo mais forte que o espírito: o gosto. Entre a vida e a obra
tendências masculinas. Para o padre Calleja, a obra de Sor Juana não encontramos um terceiro termo: a sociedade, a história. Sor Juana é uma
passa de uma alegoria de sua vida espiritual; para Pfandl, é a máscara individualidade poderosa e sua obra possui inegável singularidade; ao
de sua neurose. De um modo ou de outro, sua obra deixa de ser uma mesmo tempo, a mulher e seus poemas, a freira e a intelectual se inse-
obra literária: o que esses dois críticos leem é a transposição de sua vida. rem numa sociedade: a Nova Espanha do final do século xvii.
Uma vida santa para Calleja, um conflito neurótico para Pfandl. A obra Não pretendo explicar a literatura por meio da história. O valor das
se transforma em hieróglifo da vida; na verdade, como obra, se evapora. interpretações sociológicas e históricas das obras de arte é sem dúvida
Não nego que a interpretação biográfica seja um caminho para che- limitado. Por outro lado, seria absurdo fechar os olhos diante desta ver-
gar à obra. Só que é um caminho que se interrompe às portas dela: dade elementar: a poesia é um produto social, histórico. Ignorar a re-
para compreendê-la realmente, devemos atravessar essa barreira e pe- lação entre sociedade e poesia seria um erro tão grave como ignorar a
netrar seu interior. Nesse momento ela se desvincula de seu autor e se relação entre a vida do escritor e sua obra. Mas Freud já nos preveniu:
transforma numa realidade autônoma. Imersos na leitura, já não nos a psicanálise não pode explicar inteiramente a criação artística; e da
interessam os motivos inconscientes que possam ter levado Cervantes a mesma forma que existem na arte e na poesia elementos irredutíveis à
escrever Dom Quixote. Tampouco nos interessam suas razões; essas razões explicação psicológica e biográfica, existem elementos irredutíveis à ex-
são uma interpretação, e nós, tacitamente, pelo simples fato de ler o livro, plicação histórica e sociológica. Então, em que sentido me parece válida
sobrepomos nossas interpretações às do autor. A obra se fecha para o a tentativa de inserir a dupla singularidade de Sor Juana, a de sua vida
autor e se abre para o leitor. O autor escreve impulsionado por forças e e a de sua obra, na história de seu mundo: a sociedade aristocrática da
intenções conscientes e inconscientes, porém os significados de sua obra – Cidade do México na segunda metade do século xvii? Estamos diante
e não só os significados, mas também os prazeres e as surpresas que de realidades complementares: vida e obra se desenvolvem numa dada
sua leitura nos proporciona – jamais coincidem exatamente com esses sociedade e, assim, são inteligíveis apenas no âmbito da história dessa so-
impulsos e intenções. As obras não respondem às perguntas do autor, e ciedade; por sua vez, essa história não seria a história que é sem a vida e o
sim às do leitor. Entre a obra e o autor se interpõe um elemento que os legado de Sor Juana. Não basta dizer que a obra de Sor Juana é um pro-
separa: o leitor. Uma vez escrita, a obra tem uma vida diferente da do duto da história; é preciso acrescentar que a história também é um
autor: a vida que lhe é outorgada por seus sucessivos leitores. produto dessa obra.
Outros a veem como uma realidade independente, autônoma. Par- As relações entre obra e história tampouco são simples. Já disse que
tem de uma ideia que me parece justa: a obra tem características pró- a obra nunca aparece isolada, mas relacionada a outras, do passado e do
prias, irredutíveis à vida do autor. É lícito ver nos poemas de Sor Juana presente, que são seus modelos e suas rivais. Acrescento que existe outra
Inés de la Cruz certas peculiaridades que, embora sejam até de origem relação não menos determinante: a relação com os leitores. Muito se fala
psicológica, constituem variedades dos estilos predominantes em sua da influência do leitor sobre a obra e sobre o próprio autor. Em toda so-
época. A soma dessas variantes e peculiaridades faz da sua uma obra ciedade, funciona um sistema de proibições e autorizações: o terreno do
única, irrepetível e autossuficiente. Contudo, embora nos pareça única – que se pode ou não fazer. Há outra esfera, em geral mais ampla, dividida
e ainda que de fato o seja –, é evidente que a poesia de Sor Juana está também em duas zonas: o que se pode ou não dizer. As autorizações
relacionada a um grupo de obras, umas contemporâneas e outras vindas e as proibições abrangem uma gama de matizes muito rica e que varia
do passado, da Bíblia e dos Pais da Igreja, até Góngora e Calderón. Elas de sociedade para sociedade. Contudo, umas e outras podem se dividir
constituem uma tradição e por isso surgem aos olhos do escritor como em duas grandes categorias: as expressas e as implícitas. A proibição

História, vida, obra


modelos a serem imitados ou rivais a serem igualados. O estudo da implícita é a mais poderosa; é o que “por sabido se cala”, aquilo a que se
obra de Sor Juana imediatamente nos coloca em relação com outras, e obedece automaticamente e sem refletir. O sistema de repressões vigente
prefácio

estas com o ambiente intelectual e artístico de seu tempo, ou seja, com em cada sociedade repousa sobre esse conjunto de inibições que nem
tudo aquilo que constitui o que se chama “o espírito de uma época”. sequer exige a aprovação de nossa consciência.

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No mundo moderno, o sistema de autorizações e proibições implí- o autor compartilha o sistema de proibições – tácitas mas imperativas –
citas exerce sua influência sobre os autores por meio dos leitores. Um que formam o código do dizível em cada época e em cada sociedade.
autor não lido é vítima da pior censura: a indiferença. É uma censura Contudo, não poucas vezes, e quase sempre a despeito de si próprios, os
mais efetiva que a do Índice Eclesiástico [Congregatio pro Indice Libro- escritores violam esse código e dizem o que não se pode dizer. O que
rum Prohibitorum]. Não é impossível que a impopularidade de certos eles e só eles têm de dizer. Por sua voz fala a outra voz: a voz condenada,
gêneros – a poesia, por exemplo, a partir de Baudelaire e os simbolistas – sua verdadeira voz. Sor Juana não foi exceção. Ao contrário: seus con-
resulte da censura implícita da sociedade democrática e progressista. temporâneos logo perceberam, em sua voz, a irrupção da voz outra. Essa
O racionalismo burguês é, digamos assim, constitucionalmente contrário foi a causa das desgraças que ela sofreu no final da vida. Porque essas
à poesia. Daí que a poesia, desde as origens da era moderna – ou seja, transgressões eram e são castigadas com severidade; mais ainda: não
desde o período final do século xviii – tenha se manifestado como rebe- raro em algumas sociedades – como a da Nova Espanha do século xvii –,
lião. Ela não é um gênero moderno; sua natureza profunda é hostil ou o próprio escritor se torna aliado e mesmo cúmplice de seus censores.
indiferente aos dogmas da modernidade: o progresso e a supervaloriza- No século xx, por uma espécie de regressão histórica, há também muitos
ção do futuro. É verdade que alguns poetas acreditam de forma sincera e exemplos de escritores e ideólogos transformados em acusadores de si
apaixonada nas ideias progressistas, mas o que suas obras de fato dizem próprios. A semelhança entre os anos finais de Sor Juana e esses casos
é muito diferente. A poesia, qualquer que seja o conteúdo manifesto contemporâneos levaram-me a escolher como subtítulo desse livro o da
do poema, é sempre uma transgressão da racionalidade e moralidade da última parte: As armadilhas da fé. Confesso que essa frase não se aplica à
sociedade burguesa. Nossa sociedade acredita na história – jornal, rádio, vida inteira de Sor Juana, nem mesmo define a natureza de sua obra: o
televisão: o agora –, e a poesia é, por natureza, extemporânea. melhor dela mesma e de seus escritos escapa à sedução dessas armadilhas.
Em outras sociedades, acima da confraria anônima dos leitores co- Contudo, parece-me que a expressão alude a um mal comum a sua época
muns, existe um grupo de leitores privilegiados que se chamam arcebispo, e à nossa. Vale a pena destacar isso, e por esta razão a mantive: como
inquisidor, secretário-geral do partido, politburo. Esses leitores terríveis advertência e como lição.
influenciaram Sor Juana Inés de la Cruz tanto quanto seus admiradores. A obra sobrevive a seus leitores; ao final de um ou dois séculos, é lida
Em sua Respuesta a Sor Filotea de la Cruz, ela nos deixou uma confissão: por outros que lhe impõem outros sistemas de leitura e interpretação.
“Não quero problemas com a Inquisição”. Os leitores terríveis são uma Os leitores terríveis desaparecem e em seu lugar surgem outras gerações,
parte – e uma parte decisiva – da obra de Sor Juana. Sua obra nos diz cada uma dona de uma interpretação distinta. A obra sobrevive graças
algo, mas para entender esse algo devemos perceber que se trata de um às interpretações de seus leitores. Interpretações que são, na verdade,
dizer rodeado de silêncio: o que não se pode dizer. A zona do que não se ressurreições: sem elas não haveria obra. A obra ultrapassa sua história
pode dizer está determinada pela presença invisível dos leitores terríveis. só para se inserir em outra história. E aqui acho que posso concluir: a
A leitura de Sor Juana deve ser feita diante do silêncio que rodeia suas compreensão da obra de Sor Juana inclui necessariamente a de sua vida
palavras. Esse silêncio não é uma ausência de sentido; ao contrário: aquilo e seu mundo. Nesse sentido, meu ensaio é uma tentativa de restituição;
que não se pode dizer é o que diz respeito não só à ortodoxia da Igreja pretendo restituir a seu mundo, a Nova Espanha do século xvii, a vida e
católica, mas também às ideias, interesses e paixões de seus príncipes e a obra de Sor Juana. Por sua vez, a vida e a obra de Sor Juana restituem
suas ordens. A palavra de Sor Juana se constrói ante uma proibição; essa a nós, seus leitores do século xx, a sociedade da Nova Espanha no século
proibição se sustenta numa ortodoxia, encarnada numa burocracia de pre- xvii. Restituição: Sor Juana em seu mundo e nós no mundo dela. Ensaio:
lados e juízes. A compreensão de sua obra inclui compreender a proibição essa restituição é histórica, relativa, parcial. Um mexicano do século xx lê

História, vida, obra


que essa obra enfrenta. Seu dizer nos leva ao que não se pode dizer; este, a a obra de uma freira da Nova Espanha do século xvii. Podemos começar.
uma ortodoxia; a ortodoxia, a um tribunal, e o tribunal, a uma sentença.
prefácio

Essa breve descrição das relações entre autor e leitores, entre aquilo
que se pode dizer e o que é indizível, omite algo essencial: com frequência

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1. O reino da Nova Espanha
Uma sociedade singular

Uma sociedade se define não só por sua atitude diante do futuro como
também diante do passado: suas lembranças não são menos reveladoras
que seus projetos. Embora nós, mexicanos, estejamos preocupados – ou
melhor, obcecados – por nosso passado, não temos uma ideia clara do
que fomos. E, o que é mais grave: não queremos tê-la. Vivemos entre o
mito e a negação, idolatramos certos períodos, nos esquecemos de outros.
Esses esquecimentos são significativos; há uma censura histórica, bem
como uma censura psíquica. Nossa história é um texto cheio de trechos
escritos com tinta preta e outros escritos com tinta invisível. Parágrafos re-
pletos de pontos de exclamação seguidos de parágrafos riscados. Um dos
momentos mais riscados, apagados e emendados com maior fúria tem
sido o da Nova Espanha. Existem duas versões populares da história do
México, e nas duas a imagem da Nova Espanha aparece deformada e
reduzida. Naturalmente, essa deformação não passa da projeção de nos-
sas deformações.
A primeira versão pode ser assim reduzida: o México nasce com o
Estado asteca ou até mesmo antes; perde sua independência no século
xvi e a recupera em 1821. De acordo com essa ideia, entre o México as-
teca e o moderno existe não só continuidade como identidade; trata-se
da mesma nação e por isso se costuma dizer que o México recupera sua
independência em 1821. A Nova Espanha é um interregno, um parêntese
histórico, uma zona vazia na qual pouca coisa acontece. É o período do
cativeiro da nação mexicana. O regime de Moctezuma, embora tenha
oprimido todas as nações indígenas, foi um regime nacional, enquanto
o vice-reinado foi um regime estrangeiro; por isso a Independência é
tida como uma restauração. Essa versão tem uma coloração mítica. A ou-
tra é uma metáfora ao mesmo tempo agrícola e biológica: as raízes do
México estão no mundo pré-hispânico; os três séculos da Nova Espanha,
sobretudo o xvii e o xviii, são a época de gestação; a Independência é o
amadurecimento da nação, algo como sua maioridade. A segunda versão

Uma sociedade singular


é mais sensata, mas vê nossa história como uma ininterrupta evolução
progressiva; ao destacar excessivamente a continuidade do processo his-
tórico, acaba omitindo rupturas e diferenças.
A verdade é que a história do México é uma história à imagem e se-
melhança de sua geografia: abrupta, tortuosa. Cada período histórico é
como uma meseta fechada entre altas montanhas e separada das outras

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por precipícios e despenhadeiros. A conquista foi a grande ruptura, a li- dente e a Nova Espanha do que entre ambos e as sociedades pré-his-
nha divisória que quebra nossa história em duas partes: de um lado, o de pânicas. A prova é que nossa reação diante do mundo indígena não é
lá, o mundo pré-colombiano; do outro, o de cá, o vice-reinado católico da muito diferente da dos novo-hispânicos. A Nova Espanha, sobretudo
Nova Espanha e a República laica e independente do México. O segundo nos séculos xvii e xviii, interessou-se pela recuperação do passado pré-
período compreende duas projeções opostas, excêntricas e marginais, -colombiano, não sem antes submetê-lo a uma curiosa idealização; e ao
da civilização ocidental: a primeira, a Nova Espanha, foi uma realidade mesmo tempo continuou, no Norte, a evangelização dos índios, iniciada
histórica que nasceu e viveu contra a corrente geral do Ocidente, quer pelos primeiros franciscanos e dominicanos. O México independente,
dizer, em oposição à modernidade nascente; a segunda, a República em especial o do século xx, surgido da Revolução Mexicana, tem dado
do México, foi e é uma adaptação apressada e irrefletida dessa mesma continuidade a ambas as tarefas: a reconquista do passado indígena, com
modernidade. Uma imitação, diga-se de passagem, que deformou nossa propósitos de autojustificação e idealização, e a integração dos grupos in-
tradição sem nos transformar numa nação de fato moderna. dígenas na sociedade mexicana. Nossos antropólogos e professores rurais
O corte da conquista é de tal maneira nítido e profundo que quase são os descendentes dos missionários dos séculos xvi e xvii. Mudaram a
todos sentimos a tentação de ver o mundo pré-colombiano como um todo retórica e as ideias, não o movimento geral da história. Esse movimento
compacto e sem fissuras. Não é assim. Nesse mundo também houve se abre em duas direções contraditórias e complementares: à medida que
divisões e descontinuidades. Em primeiro lugar, estamos diante de em termos de raça o país se transforma mais e mais numa nação mestiça, em
uma divisão de ordem espacial, constante em toda a história mesoame- termos socioculturais ele se torna mais e mais ocidental.
ricana desde o neolítico: os nômades e os sedentários. Essa divisão é tanto Essa rápida visão sobre a história do México revela não tanto uma
geográfica como cultural: o Norte e o Sul, os bárbaros e os civilizados – continuidade linear como a existência de três sociedades diferentes. Não
ou, como diziam os nauas: os toltecas e os chichimecas. Na área dos sou o único a pensar dessa forma. Edmundo O’Gorman sustenta que
sedentários, sede da civilização mesoamericana, deparamos com uma “nosso passado contém três entidades históricas, ainda que estreitamente
grande diversidade de culturas, línguas e Estados, desde os olmecas até vinculadas. Primeiro: a conhecida com o nome de Império mexica; se-
os teotihuacanos, zapotecas, mixtecas e a plural família maia, também gundo: o vice-reinado da Nova Espanha; e terceiro: a nação mexicana...”.1
dividida em muitas cidades-Estados. Esse mundo, rico em particularida- Há um ponto que me interessa destacar: cada uma dessas sociedades
des, antagonismos e diferenças, está dividido, por sua vez, do ponto de está separada da outra por uma negação. A relação entre elas é, simulta-
vista da história dessas sociedades, em duas grandes eras. A primeira é a neamente, filial e polêmica. A primeira sociedade – o plural seria mais
das “grandes teocracias”, como a chamam os historiadores, isto é, a época exato, pois o mundo indígena foi um conjunto de nações, línguas e
de Teotihuacan, Monte Albán e as cidades-Estados maias. Esse período culturas – foi negada pela Nova Espanha. Apesar disso, a Nova Espanha
dura até o século ix; depois, vem a etapa propriamente histórica, tam- é ininteligível sem a presença do mundo indígena, como antecedente
bém dividida em dois períodos: o de Tula e o do México-Tenochtitlan. e presença secreta nos usos e costumes, nas estruturas familiares e po-
Isso posto, por mais radicais que tenham sido as mudanças da história líticas, nas formas econômicas, nos artesanatos, nas lendas, nos mitos e
mesoamericana e por mais profundas que fossem as diferenças entre o nas crenças. Por sua vez, a República do México nega a Nova Espanha;
México-Tenochtitlan e Palenque ou Tikal, está claro que as mudanças ao negar, ela a prolonga. Cada negação contém a sociedade negada –
1. o reino da nova espanha

ocorreram e se deram dentro de uma civilização. O grande corte, é preciso e a contém, quase sempre, como presença disfarçada, recoberta. Cada

Uma sociedade singular


repetir, foi a conquista, porque foi uma mudança de civilização. uma das três sociedades tem fisionomia própria e se oferece ao olhar
Nós, mexicanos do século xx, sem excluir os índios puros, vemos o do espectador como um sistema econômico, social, político, religioso e
mundo pré-colombiano como um mundo que está do outro lado. Nós
o vemos não só remoto no tempo como na outra vertente. É claro que – 1 Edmundo O’Gorman, La supervivencia política novohispana: Reflexiones sobre el
embora a versão oficial, por uma aberração intelectual e moral, se negue monarquismo mexicano. Cidade do México: Fundación Cultural de Condumex, S.A.,
a aceitar o fato – existem maiores afinidades entre o México indepen- Centro de Estudios de Historia de México, 1969.

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artístico diferente. Por outro lado, muitos dos elementos constitutivos alheio, de um grupo que vem de outro país. Os recém-chegados desalo-
do mundo pré-hispânico reaparecem na Nova Espanha; esses mesmos jam os nativos – às vezes os exterminam –, mas não se constituem em
elementos e outros próprios da Nova Espanha são parte do México mo- uma entidade independente; na verdade, conservam seus laços políticos
derno. Os elementos novo-hispânicos são os mais numerosos e decisivos, e religiosos com a pátria de origem. Os movimentos de independência
pois entre eles se encontram o idioma, a religião e a cultura. Conclusão: surgem depois, quando os descendentes dos primeiros colonos come-
existe continuidade, sim, mas quebrada, interrompida aqui e ali. Mais çam a sentir-se diferentes da metrópole. As colônias gregas no mundo
do que de continuidade, devemos falar de sobreposições. Em vez de antigo, ou as inglesas na Nova Inglaterra, são um exemplo do que nos
conceber a história do México como um processo linear, deveríamos primórdios se entendia por colônia. Nesse sentido, a Nova Espanha não
vê-la como uma justaposição de sociedades diferentes. foi uma colônia, embora é provável que os criollos, sim, tivessem tido
As rupturas não negam uma continuidade secreta, persistente. Teo- uma consciência “colonial” nos séculos xvii e xviii. E no sentido mo-
tihuacan foi o centro religioso, político, militar e econômico do México derno da palavra? Basta pensar um instante no que foram as colônias
antigo, do segundo milênio antes de Cristo até sua destruição no século vii. que, até há pouco, Grã-Bretanha, França, Holanda ou Bélgica tinham,
A ruína da grande metrópole não significou o fim de sua carreira his- para perceber a enorme diferença com a Nova Espanha e os outros do-
tórica. Desaparecida como cidade-Estado, mas transformada em mito e mínios da Coroa espanhola. Hoje se chama “colônia” a todo território
lenda, tem sido o arquétipo de todas as sociedades que a sucederam, dos dependente, semidependente ou, até mesmo, submetido à influência de
toltecas e astecas aos novo-hispânicos e mexicanos modernos. Primeiro uma grande potência. O termo se transformou em um projétil. Com os
inspirou Tula, o Estado militarista que substituiu os teotihuacanos nos projéteis podemos liquidar os adversários, mas não compreender uma
vales do México e Puebla. Por sua vez, Tula foi o modelo do México- situação histórica.
-Tenochtitlan. A imagem do México-Tenochtitlan, significativamente As colônias inglesas na América foram criadas por grupos de colo-
confundida com a de Roma, reaparece nos séculos xvii e xviii na impe- nos inspirados por motivos religiosos, políticos e econômicos. Como os
rial Cidade do México. Embora as derrotas e os descalabros que temos colonos gregos, os ingleses quiseram fundar comunidades à imagem e
sofrido desde a Independência tenham dissipado as quimeras imperiais – semelhança das que existiam na mãe-pátria; diversamente dos gregos,
dupla herança do México-Tenochtitlan e da Nova Espanha –, a república muitos desses colonos eram dissidentes religiosos. Daí a dupla influência
moderna continuou o centralismo asteca e hispânico (a despeito de da religião e da utopia na formação da democracia política dos Esta-
nossa imitação do federalismo norte-americano). Houve continuidade, dos Unidos. O pacto social foi, em sua origem, um pacto religioso. Entre
mas também sobreposições: sobre o mundo pré-colombiano – vencido, os es­panhóis aparecem também os motivos religiosos, mas enquanto os
não morto –, construiu-se uma sociedade diferente, a Nova Espanha, que ingleses fundaram suas comunidades para escapar de uma ortodoxia,
alcançou seu apogeu no século xviii e que, por sua vez, foi derrotada nas os espanhóis as estabeleceram para estendê-la. Num caso, o princípio
guerras civis da primeira metade do século xix. Sobre os restos da Nova fundador foi a liberdade religiosa; no outro, a conversão dos nativos
Espanha ergueu-se um México mais reduzido e pobre: o México repu- submetidos a uma ortodoxia e a uma Igreja. A ideia de evangelização
blicano de Juárez e seus sucessores. Essa terceira sociedade mexicana – não aparece entre os colonos ingleses e holandeses; a de liberdade reli-
a nossa – ainda está em processo de formação. giosa não figura entre as que moveram os conquistadores espanhóis e
1. o reino da nova espanha

portugueses. A conquista foi feita por conta e risco dos conquistadores e,

Uma sociedade singular


A Nova Espanha não se parece nem com o México pré-colombiano nem assim, de certa maneira foi uma iniciativa privada. Já a ação espanhola
com o atual. Tampouco se parece com a Espanha, embora tenha sido foi uma empreitada imperial: a cruz, a espada e a Coroa. Fusão do militar,
um território submetido à Coroa espanhola. Qual era a natureza de suas do religioso e do político. Duas palavras definem a expansão hispânica:
relações com a metrópole? Foi de fato uma colônia? Tudo depende do conquista e evangelização. São palavras imperiais e, também, palavras
que se entende por essa palavra. Em sua acepção original, a palavra co- medievais. A conquista da América pelos espanhóis e portugueses não se
lônia designa o estabelecimento – pacífico ou violento –, num território parece com a colonização grega ou inglesa, e sim com as cruzadas cristãs

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© Ubu Editora, 2017
© Marie-José Paz, heredera de Octavio Paz, 2017
© Fondo de Cultura Económica, 2017
© Embajada de México en Brasil, 2017

Coordenação editorial maria emilia bender


Assistente editorial isabela sanches
Preparação fábio bonillo, livia deorsola
Revisão gênese de andrade, claudia cantarin, cristina yamazaki
Design elaine ramos
Assistente de design livia takemura
Ilustração da capa alejandro magallanes

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

P348s
Paz, Octavio

Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé: Octavio Paz


Título original: Sor Juana Inés de la Cruz o Las trampas de la fé
Tradução: Wladir Dupont
São Paulo: Ubu Editora, 2017
608 pp.

isbn: 978-85-92886-47-9

1. Biografia. 2. Juana Inés de la Cruz, Sor, 1651-1695.


i. Dupont, Wladir. ii. Título.

2017-364 cdd 928.61


cdu 929

Índice para catálogo sistemático:


1. Biografia : personagens históricos espanhóis 928.61
2. Biografia 929

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