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INTRODUÇÃO

A nossa luta é para derrubar três cercas: a do latifúndio, a


da ignorância e a do capital.
(João Pedro STÉDILE)

O MST é o mais importante movimento social e político do


Brasil atual, fazendo renascer e ressurgir a luta dos
trabalhadores do campo e convertendo-a no centro da luta
política brasileira e da luta de classes.
(Ricardo ANTUNES).

Ao observarmos mais de perto a proposta de educação do Movimento dos


Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, através de uma visita 1 ao Instituto de Educação
Josué de Castro em Veranópolis – RS, conhecido como a Escola Nacional de Formação
de Professores do MST, além do exame dos documentos que tratam da problemática
educacional, verificamos que o engajamento dos educadores do MST, oriundos dos
próprios acampamentos, ocupações de terra, assentamentos e da luta pela reforma
agrária em geral, atrelada aos desafios do cotidiano da sala de aula e às dificuldades
próprias do processo de sua formação, é o que mais inquieta o quadro de intelectuais e
militantes envolvidos no Setor de Educação desse Movimento. Nesse sentido,
engajamento militante e prática educativa fazem parte de uma espécie de todo
articulado, indivisível.

Nesses contatos, deparamo-nos concretamente com as formulações do


Movimento sobre um projeto de formação de seus professores, presente em todos os
seus documentos, depoimentos e na prática efetiva de seus militantes, principais líderes,
intelectuais e educadores.

Esse quadro vem se aprofundado e tornando-se mais complexo na medida em


que os trabalhadores rurais mantêm em seus assentamentos escolas e projetos
alternativos de educação que, de certo modo, exigem a formação de seus professores
articulada às atividades de luta e organização política dos Sem Terra.

1
Visita realizada em dezembro de 2003.
2

O Movimento considera que a formação continuada e em serviço dos


professores se constitui em um dos mais sérios desafios para o projeto de educação
desenvolvida no contexto dos acampamentos e assentamentos rurais do MST.

Historicamente, a educação no campo, ou seja, aquela destinada a atender à


população da área rural, tem contado com professores que sequer possuem o ensino
fundamental e/ou a qualificação profissional adequada. Nesse quadro, situam-se tanto
professores de educação infantil e do ensino fundamental, como os de educação de
jovens e adultos.

Muitos destes professores, comumente denominados “leigos” por não terem uma
formação específica para as atividades de ensino, viam-se diante da possibilidade de
freqüentar os cursos destinados a superar essa lacuna de escolarização aliada à formação
pedagógica. Programas governamentais do tipo “Logos I e II” e, mais recentemente,
“Agora Eu Sei”, ao lado das denominadas licenciaturas breves, foram criados para, pelo
menos formalmente, suprir as carências existentes na formação de professores do País,
especialmente em áreas rurais.

Os professores leigos, vinculados ao MST, apresentam, todavia, uma


singularidade que os diferencia dos demais existentes no triste cenário educacional
brasileiro: são professores-militantes de um movimento que luta pela reforma agrária
articulada, até certo ponto, conforme pressupomos, a uma crítica radical ao sistema
capitalista.

Nesse sentido, a discussão sobre a formação de seu quadro de professores se


intensificou a partir de 1987, aliada à procura de parcerias para viabilização da
certificação dos professores que já atuavam como militantes na luta pela reforma
agrária, mas que eram considerados leigos. O Movimento entendia que esse processo de
titulação-formação2 dos professores da zona rural era importante para que os mesmos
pudessem concorrer aos concursos públicos estaduais e municipais, assumindo cargos
nas escolas conquistadas pelo Movimento na sua luta pela escolarização.

2
Um exemplo disso foi o Projeto Interdepartamental: Curso de Graduação em Pedagogia para Formação
de Professores do Ensino Fundamental e Coordenadores de Escolarização dos Assentamentos de Reforma
Agrária (1998-2001) da Universidade Regional do Noroeste do Estado-UNIJUÍ do RS. Este curso surgiu
em função de uma demanda do Setor de Educação do Movimento Sem-Terra (MST), encaminhada à
UNIJUÍ, inicialmente para curso de formação de professores em nível médio.
3

Para o MST, o desafio é uma formação ampla, crítica e aberta, que contribua
efetivamente no engajamento de educadores e educandos nos processos de construção
de um novo tipo de desenvolvimento rural, objeto dos projetos de assentamentos rurais.

Neste sentido, surge a experiência da Escola Nacional de Formação de


Professores, iniciada em Veranópolis-RS em 1997, com o objetivo de garantir
complementação de estudos e atuação como docentes nas áreas não atingidas pela ação
do Estado.

Em todas as proposições do MST em relação à formação de professores, consta


uma reivindicação pela adoção de uma nova forma de ensinar, que considere as
especificidades do setor rural, a relação entre comunidade-escola, conjugadas a uma
formação adequada dos trabalhadores da educação engajados na luta diária dos
acampamentos e assentamentos do Movimento.

A luta pela escolarização é tratada como fundamental e prioritária pelos


principais dirigentes, militantes e intelectuais ligados ao MST, assumindo um grau de
importância gigantesco, visto que se defende claramente a articulação dessa luta com a
luta pela conquista da terra, definindo o papel da educação como o acesso a
determinados tipos de saberes, incidindo no processo de transformação social e de
conquista da dignidade humana.

Referindo-se ao Encontro Nacional dos Educadores da Reforma Agrária –


ENERA - marco histórico no âmbito da formação docente do MST- que reuniu mais de
700 educadores, em sua maioria professores do Ensino Fundamental I das escolas de
assentamentos, realizado em julho de 1997, na Universidade de Brasília (UNB) e
organizado pelo Setor de Educação, em parceria com a Unesco e Unicef, João Pedro
Stédile3, um dos principais dirigentes do Movimento, afirma que o Encontro
representara um salto de qualidade, no sentido de passar para a sociedade a importância
da educação para o Movimento, além de contribuir diretamente na organização desse
Setor, na estrutura do Movimento. Segundo STÉDILE, tal Encontro cumpriu um papel
importante em relação aos militantes do MST: convencê-los de que a guerra pela
educação é tão importante quanto a luta pela terra.

Nesse contexto, o líder em foco, apresenta a clássica formulação que pretende


traduzir a orientação distintiva desse Movimento em relação ao conjunto de
3
STÉDILE, João Pedro, FERNANDES, Bernardo Mançano. Brava Gente: a trajetória do MST e a luta
pela terra no Brasil. São Paulo:Fundação Perseu Abramo, 1999.
4

movimentos que participam da luta no campo:A frente da batalha da educação é tão


importante quanto a da ocupação de um latifúndio ou de massas. A Nossa luta é para derrubar
três cercas: a do latifúndio, a da ignorância e a do capital... (STÉDILE, 2000:74) 4

Em sintonia com a tese do reconhecimento da importância da educação no


processo de derrubada do capital e do latifúndio, Stédile, nos informa, outrossim, que,
no programa agrário, construído a partir de um debate ideológico entre os anos de 1993
a 1995, aprovado no III Congresso Nacional5, expressa uma proposta de reorganizar o
meio rural, aliando à questão das formas de luta e de organização da produção no campo
a do conhecimento (educação).

Nosso programa agrário/..../representa uma proposta de como reorganizar o


meio rural no Brasil, para democratizar a terra e o conhecimento. Pela
primeira vez aparece o acesso à educação e à organização das escolas como
uma meta necessária, como parte de um programa agrário, de uma reforma
agrária... Para nós tão importante quanto distribuir terra é distribuir
conhecimento... (id. p. 76).6

Ainda sobre o projeto de educação do MST e de formação de seus professores,


Bernardo Mançano Fernandes, outro importante intelectual do Movimento, afirma,

O Setor da Educação passa a ter uma grande responsabilidade, porque o


professor daquela escola rural é um trabalhador rural. Os pesquisadores que
vão trabalhar em determinado assentamento também são trabalhadores rurais.
Essa escola rural desenvolve conhecimentos voltados para o benefício e o
bem-estar dos trabalhadores a partir de uma nova concepção de vida rural.
Em decorrência disso, o MST enfrenta uma luta difícil, que é a de tentar
explicar aos educadores, aos governos, enfim, às pessoas que desenvolvem
políticas públicas, que a escola não pode ser na cidade, que a escola tem que
4
STÉDILE, ainda no mesmo momento, continua seu raciocínio afirmando que: Por outro lado, (O
ENERA) teve também um papel importante para a sociedade como um todo. De certa forma, já tínhamos
reconhecimento da sociedade quando conquistamos o Prêmio Unicef/Itaú, pelo trabalho de educação
que desenvolvemos nas áreas da reforma agrária[...]Ajudou a propangadear que o MST não se preocupa
só com terra, se preocupa também com escola, com educação... A sociedade vê que o MST está com o
Unicef, com a Universidade de Brasília (UNB), com a CPT, e tem uma proposta de educação para o
meio rural. E as elites? Com quem estão os latifundiários? Qual a proposta que eles têm a oferecer?
(idem). Nessa declaração, percebemos a preocupação da educação como fator de reconhecimento social.
O Movimento parece tentar consolidar uma base social de apoio às suas lutas, atestando o
reconhecimento já obtido da parte de importantes agentes da sociedade e, para tanto, destaca o
engajamento com a atividade educacional.
5
Este encontro foi realizado em Brasília, no período de 24 a 27 de julho de 1995, reuniu 5.226 delegados
dos estados do Brasil onde o MST estava então organizado. Estiverem presentes também 22 delegados de
entidades amigas da América Latina, dos Estados Unidos e da Europa e que tinha entre os seus cinco
objetivos: o de ser um espaço de formação política massiva e de confraternização da militância do MST
de todo o Brasil. In: MITSUE, op. cit, p. 151,
6
Em relação à questão do desenvolvimento do meio rural, STÉDILE advoga que, “Não podemos
produzir apenas matéria prima e deixar os capitalistas enriquecerem às nossas custas. Temos que dar um
passo a mais: transformarmos a matéria-prima produzida pela terra, para não sermos explorados pelas
multinacionais da agroindústria, para podermos agregar valor e vender o produto mais barato, com maior
acesso ao mercado de massas da cidade” (op. cit. p. 77),
5

ser no assentamento... Podemos dizer, por exemplo, que o MST ao


desenvolver a luta pela terra, vai construindo conhecimento, experiência. Em
relação à ocupação da terra, criou uma forma de luta popular que mudou a
história da reforma agrária no Brasil. (1999:77-78.).

Em suma, o MST atualmente é entendido como um movimento rural e de massas


que não se restringe apenas à luta pela reforma agrária, extrapolando o seu campo de
atuação para as esferas da alimentação, da educação e da saúde. Desta forma, segundo
Stédile e Fernandes (1997), o Movimento se transforma em uma organização política e
social de massas, trazendo, inclusive, novas referências que podem levar a um repensar
sobre o conceito de movimento de massas.

Quanto à problemática de formação dos professores do MST, vale atentarmos


para os estudos e posições desenvolvidos por Roseli Caldart, uma das mais
reconhecidas e influentes teóricas da área de educação no campo. Segundo a autora,

Tratar de formação de educadoras e educadores [...] que atuam em atividades


educacionais nos assentamentos e acampamentos de agricultores sem terra
[...] significa compreender os processos através dos quais estes mesmos
passam a se constituir em sujeitos sociais da construção de uma proposta de
educação vinculada com as necessidades e os desafios da luta pela reforma
agrária e pelas transformações sociais mais amplas em nosso País. Significa
também pensar sobre as práticas formativas que podem levar à transformação
da ação política e pedagógica destas pessoas, de modo que cheguem a esta
condição de sujeitos 1997:15).

No seio da particular e complexa situação do MST, torna-se oportuno assinalar a


política nacional de formação docente, abrindo um parêntese para uma breve análise
conjuntural acerca dessa problemática.

Nesse sentido, interpretamos que o conjunto eclético de paradigmas vem


invadindo o campo da formação e da prática docente, promovendo um distanciamento
de um número considerável de teóricos da educação da perspectiva crítica e
contextualizada, fato que denuncia e revela o ajustamento e o envolvimento
manipulatório da educação às demandas (im)postas pela crise estrutural do capital.

Um marco decisivo da articulação desses novos paradigmas foi o relatório da


Conferência de Jomtien (1990), que introduziu o lema do aprender a aprender, o qual,
afirmando o modelo da pedagogia das competências, assume proposições educacionais
afinadas com o projeto neoliberal, legitimando, por sua vez, as concepções
6

ideologicamente articuladas à sociedade capitalista, ou seja, à ideologia da sociedade


regida pela lógica da mercadoria.

Conforme Duarte, as pedagogias centradas no lema “aprender a aprender” são,


antes de qualquer coisa, pedagogias que retiram da escola a tarefa de transmissão do
conhecimento e a alternativa de possibilitar aos educandos o acesso à verdade. Em suas
palavras:

[...]À escola não caberia a tarefa de transmitir o saber objetivo, mas sim a de
preparar os indivíduos para aprenderem aquilo que deles for exigido pelo
processo de sua adaptação às alienadas e alienantes relações sociais que
presidem o capitalismo contemporâneo (2000:09).

Os novos paradigmas tomam como eixo definidor das ações educativas a


competência, entendida como um conjunto de aptidões, habilidades e conhecimentos
que orientam a resolução de problemas e a tomada de determinadas decisões. Assim,
as competências teriam três dimensões básicas,

Quando a realização de uma tarefa envolve fundamentalmente destreza


técnica ou mecânica, fala-se em competência técnico-operacional. Quando o
desempenho profissional exige um conjunto de conhecimentos, conceitos e
princípios técnicos-científicos articulados a habilidades de caráter genérico
necessárias, tais como capacidade de abstração, de análise e de síntese, é
porque está fundamentado em competências cognitivas. Já se a ênfase está em
valores e atitudes que interferem no relacionamento do indivíduo em seu
ambiente de trabalho, a competência sociocomunicativa está em primeiro
plano. (SENAC, 1997:22-23).

Esses paradigmas, que dominam hoje o campo da formação docente, se fundam


numa concepção que leva a sujeição das ações materiais à dimensão da linguagem, da
cultura, das atitudes e valores, recebendo forte influência do idealismo mais tacanho,
que advoga como centralidade das suas formulações o resgate da individualidade,
voltando as costas a uma análise do real a partir do campo do materialismo histórico
dialético que, com Marx e Engels, como bem sabemos, encontra as principais lições de
que as desigualdades sociais são frutos das relações de produção do sistema capitalista,
as quais dividem os homens em proprietários e não-proprietários dos meios de produção
e que constituem o fundamento da formação das classes sociais, de interesses
antagônicos e que resultam das relações de oposição entre capital e trabalho.

Assumindo como referencial teórico-metodológico de nosso trabalho a crítica


marxista, abriremos um breve parêntese para analisar o ideário educacional presente na
7

Pedagogia do Capital (competências) que vem se constituindo no carro-chefe da


campanha ideológica atual tecida pelo capital frente à administração de sua crise
estrutural e que propõe como função social da educação a formação para a cidadania
que, em seus termos, contribuiria com a solidificação das relações democráticas nos
moldes da sociedade atual.

Como contraponto a esse ideário que camufla e nega a luta de classes, é justo
lembrar Marx, quando assinala que as diferenças entre as classes sociais não se reduzem
a uma diferença quantitativa de riqueza, mas a uma diferença de existência. Os
indivíduos de uma mesma classe partilham de uma mesma situação de classe, que inclui
seus valores, regras e interesses. Percebe-se, no entanto, que a classe trabalhadora, em
geral, acaba por aceitar os valores e regras da cultura dominante, apesar de não usufruir
dos “benefícios materiais” que, de fato, são frutos da exploração a que é subjugada
cotidianamente pelos detentores dos meios de produção.

Essa subordinação da classe não proprietária aos valores da classe proprietária


operada no sistema capitalista é bem trabalhada por Rubin, quando este reconhece que o
fenômeno da alienação é fundado na dimensão da existência, ou seja, é ontológico e que
pode ser entendido através do que ele denomina de “a teoria marxista da alienação”.
Para Rubin, a teoria da alienação é fundamental para análise da teoria do valor
formulada por Marx, visto que “a teoria do fetichismo é, per se, a base de todo o sistema
econômico de Marx, particularmente de sua teoria de valor” (1980 p.20).

O fetichismo das relações que os não-proprietários vivenciam não é,


prioritariamente, um fenômeno da consciência, mas da existência social. Dessa forma, é
possível entender como uma classe proprietária se impõe enquanto identidade
majoritária sobre a outra, mesmo que, na essência, seus interesses se contraponham aos
daqueles. Na aparência, deturpa-se a percepção da ordem capitalista. O que tem um
caráter social aparece como natural. Uma relação de exploração aparece como uma
relação natural e justa...

Isto não significa negar o papel da subjetividade na implementação dessas


relações sociais de produção e cair no materialismo mecanicista, determinista,
economicista. Ao contrário disso, é necessário compreender as relações entre
subjetividade e objetividade. A objetividade sempre é construída em inter-relação com a
subjetividade humana. É necessário o distanciamento das análises equivocadas das
8

formulações marxianas que se baseiam no economicismo e determinismo grotesco que


matam a subjetividade, categoria tão cara ao campo do marxismo.

Com efeito, no marxismo rigoroso, a subjetividade humana tem papel


preponderante na construção da própria objetividade material. Subjetividade que tem
como eixo central o trabalho, protoforma do ser, contando com mediações importantes e
imprescindíveis da subjetividade, tais como a linguagem e a educação, que configuram
dialeticamente a totalidade desse ser. Trabalho útil, concreto que põe finalidades
humanas ao processo de construção do ser social. Trabalho que resulta de um processo
teleológico, no qual se configura um ato consciente.

Na Ontologia do Ser Social,7 de Lúkács, por exemplo, encontramos expressa a


relação entre subjetividade e objetividade de forma rigorosa, dialética e, principalmente,
coerente com as formulações marxianas. Segundo ANTUNES (1996, p. 97), “depois de
Marx, o esforço intelectual de Luckács é um dos mais férteis no interior do marxismo a
buscar a verdadeira apreensão das complexas relações e determinações existentes entre
objetividade e subjetividade, entre materialidade e consciência de classe”.

Referindo-se à Ontologia do Ser Social de Lúkács, ANTUNES conclui, ademais:

Quero ressaltar [...] que a tematização luckacsiana da categoria trabalho,


presente na Ontologia, recupera e, com isso, opera um salto qualitativo: a
dimensão dada pela vida cotidiana, como ponto de partida para a
genericidade para-si dos homens. Ou seja, é central partir do universo da
vida cotidiana quando se quer avançar do âmbito e das ações próprias da
consciência espontânea, imediata, contingente, para as formas de consciência
emancipada, autêntica, livre e universal. (idem, p. 100).
Em Marx, na obra Ideologia Alemã8, temos a afirmação de que o mundo
material dos homens é a base de todo o mundo sensível e, conseqüentemente, a forma
como os homens se organizam para a produção determina o seu modo de vida. Marx, no
entanto, não sufoca a subjetividade humana na formação do ser social. Ele assegura essa
presença quando afirma que as relações de produção pressupõem um intercâmbio dos
indivíduos uns com os outros... Diz MARX,

A forma como os indivíduos manifestam a sua vida reflete muito exatamente


aquilo que são. O que são coincide portanto com a sua produção, isto é, tanto
com aquilo que produzem como a forma como produzem. Aquilo que os
homens são depende portanto das condições materiais da sua produção...Essa
produção pressupõe um intercâmbio dos indivíduos uns com os outros e a
forma desse intercâmbio é, por sua vez, condicionada pela produção. (1986,
p. 27 e 28)
7
Ver Luckács G. Ontologia dellÉssere Sociale. Milão:Trad. Alberto Scarponi, 1981.
8
Marx e Engels, A Ideologia Alemã, (Feuerbach). São Paulo. Hucitec. 1986.
9

Com arrimo no próprio Marx, podemos questionar até que ponto uma mudança
apenas de caráter valorativo e subjetivista, alicerce dos novos paradigmas do campo
educacional, pode levar a humanidade a uma condição de liberdade plena. A citação a
seguir, uma das pedras de toque das formulações marxianas, convida-nos a refletir sobre
a necessidade de considerar a relação dialética entre o contexto de produção das idéias
de uma época e o contexto da produção material:

As idéias da classe dominante são em cada época, as idéias dominantes; isto


é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo,
sua força espiritual dominante. Os pensamentos dominantes são apenas a
expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas sob a forma de
idéias e, portanto, a expressão das relações que fazem parte de uma classe, a
classe dominante. (1985:72).

A discussão do ideário pedagógico predominante atualmente no campo


educacional nos leva, conseqüentemente, à análise da crise estrutural do capital. Esse
ideário é uma combinação de diversas linhas de pensamento, destoando-se da
perspectiva de classe, pois propõe uma formação eclética, de base não radical, do ponto
de vista da construção de um projeto socialista de mundo e de educação.

Para melhor situar a análise dos pressupostos desse ideário, que toma como
central a questão do resgate da subjetividade, articulada às dimensões da cultura e da
ética (valores), recorremos à análise de Lukács, apresentada de forma magnífica por
Antunes, que, ao contrário, toma como base a centralidade do trabalho na constituição
da vida social e que, depois de Marx, foi o intelectual que “buscou a verdadeira
apreensão das complexas relações e determinações existentes entre objetividade e
subjetividade, entre materialidade e consciência de classe”. (ANTUNES, 1996- 97).

De acordo com Antunes, na sua obra Ontologia do Ser Social, Lukács


compreende a gênese histórico-social a partir da dimensão do ser social dada pela vida
cotidiana. Nesse sentido, a forma imediata do ser aparece como a base de todas as ações
e reações dos homens em relação ao seu ambiente social, pois, para Lukács, “[...] A vida
cotidiana possui uma universalidade extensiva”.9

Nas próprias palavras de Lukács, conforme é apresentado por Antunes, temos a


expressão da vida cotidiana, imediata como ponto de partida para a genericidade para-si
9
Retirado de LUCKÁCS, Per uma Ontologia dell’Essere Sociale, p. 13, Citado por ANTUNES, 1996,
p. 101.
10

dos homens, o que garantiria a sua emancipação, fundada no trabalho e na contínua


realização de posições teleológicas:

A sociedade só pode ser compreendida em sua totalidade, em sua dinâmica


evolutiva, quando se está em condições de entender a vida cotidiana em sua
heterogeneidade universal. A vida cotidiana constitui a mediação objetivo-
ontológica entre a simples reprodução espontânea da existência física e as
formas mais altas de generecidade agora conscientes, precisamente porque
nela, de forma ininterrupta, as constelações mais heterogêneas fazem com que
os dois pólos humanos apropriados da realidade social, a particularidade e a
generericidade, atuem em sua inter-relação imediatamente dinâmica.
Conseqüentemente, um estudo apropriado desta esfera da vida pode lançar
luzes sobre a dinâmica interna de desenvolvimento da generecidade do
homem, precisamente por tornar compreensíveis aqueles processos
heterogêneos que, na realidade social, dão vida às realizações da
genericidade.10

Como vemos, as críticas que o marxismo recebe, no sentido de desconsiderar a


dimensão da vida cotidiana e da subjetividade, são, em Lukács, rebatidas com
propriedade, haja vista que esse teórico parte da cotidianeidade dessa esfera do ser,
tomada como fundamento ontológico das relações entre o mundo da materialidade e a
vida humana e, para ele, “[...] É nesta “zona de mediação” que se pode superar o abismo
entre genericidade em-si, marcada pela relativa mudez ( genericididade biológica 11) e a
genericidade para-si , espaço da vida autêntica e livre” (ANTUNES, op. cit. p. 101).

Em conformidade com os ideais de resgate da subjetividade, da construção de


uma identidade no seio da diversidade cultural e de uma ética centrada em valores
humanistas, que fazem parte das concepções dos autores e interlocutores do modelo
“aprender a aprender” consignados na pedagogia das competências (do capital), o
objetivo principal que a educação assume no contexto atual de avanço tecnológico e da
proclamada e ilusória sociedade do conhecimento, é a formação para a cidadania.

Essa forma de recorrer à cidadania como objetivo maior da educação é fruto de


uma concepção da chamada esquerda democrática brasileira que, após o golpe militar,
inicia um divórcio com a proposta do chamado socialismo real. O resultado é que hoje
a esquerda denominada moderada ou reformista vem defendendo o projeto do
socialismo democrático - surgido em oposição ao chamado socialismo autoritário do

10
IN: ANTUNES: 1996, p. 100, citação retirada do Prefácio de Luckács à Sociologia de la Vida
Cotidiana, de Agnes Heller. Espanha. Ed, peninsula, 1987, pags. 11 e 12.
11
Parêntese nosso
11

leste-europeu - o qual casa com a noção de cidadania como o norte e objetivo principal
da educação.12

Essa concepção da esquerda democrática elege a cidadania como resultado da


luta de classes, enviesando a discussão pela perspectiva política, ética e moral, na qual
fica subsumida a auto-construção humana cujo ato fundante é o trabalho.

Percebemos, ao contrário, que, para entender a relação entre educação e


cidadania, é necessário articulá-la com a discussão do projeto histórico da classe
trabalhadora e, necessariamente, analisar as concepções de democracia e de socialismo,
situando a discussão em torno da educação, cidadania e emancipação como afirmação
e/ou negação destes projetos antagônicos de sociabilidade humana.

Observamos uma duplicidade de propostas conflituosas na essência. A educação


humanista, a rigor, toma o princípio da formação de homem, baseada numa ética e
moral burguesa que efetivamente não contempla o caráter de classe presente na
experiência social. A mudança na concepção humanista passa pela subjetividade e pelos
valores que, de certa forma, contribuem para a formação de homens aprisionados às
formulações do tipo: sociedade da livre concorrência; igualdade natural entre os homens
e defesa da propriedade privada.

Por sua vez, a concepção socialista tem como fundamento a ruptura radical com
o modo de produção capitalista. Traça como objetivo maior a libertação da humanidade
do jugo do capital e toma como horizonte a emancipação plena.

Como forma de demonstrar de onde vem nossa crítica sobre a contradição,


presente nessas duas propostas, recorremos a duas importantes afirmações de Mészáros,
200213. Primeiramente, a que analisa a produção de riqueza para o capital e em seguida,
a que apresenta a formulação de uma sociedade conscientemente controlada pelos
produtores associados:

O modo capitalista de reprodução social não poderia estar mais distante desta
determinação original de produção e propriedade. Sob o comando do capital,
o sujeito que trabalha não mais pode considerar as condições de sua produção
e reprodução como sua própria propriedade. Elas não mais são os
pressupostos auto-evidentes e socialmente salvaguardados do seu ser, nem os
pressupostos naturais do seu eu como constitutivos da “extensão externa de
seu corpo”. Ao contrário, elas agora pertencem a um “ser estranho” reificado
12
Sobre essa relação entre democracia, cidadania e educação, conferir TONET, Ivo. Socialismo e
democracia. In: Práxis, nº 9. Belo Horizonte: Projeto Joaquim de Oliveira Editora, mar./jun. 1997.
13
Cf. MÉSZÁROS, István. Para além do capital. . São Paulo: Tradução Paulo César Castanheira e
Sérgio Lessa, Editora Unicamp e Boitempo Editorial., 2002. p. 611 e 613.
12

que confronta os produtores com suas próprias demandas e os subjuga aos


imperativos materiais de sua própria constituição. Assim, a relação original
entre sujeito e o objeto da atividade produtiva é completamente subvertida,
reduzindo o ser humano ao status desumanizado de uma mera “condição
material de produção”. O “ter” domina o “ser” em todas as esferas da vida.
(MÉSZÁROS, 2002, P. 611)

Vê-se na análise de Mészáros a impossibilidade real e concreta de se trabalhar a


formação do homem na perspectiva da omnilateralidade a partir de uma proposta de
conciliação entre a democracia (cidadania) e o socialismo.

Dentro da lógica do capital, as necessidades de existência da humanidade são


postas em último (inatingível) plano. O que interessa são as necessidades de reprodução
e acumulação do capital. Articular socialismo com uma proposta de humanismo de viés
liberal, em vez de esclarecer os trabalhadores quanto as complexas e contraditórias
determinações do real, pode gerar uma confusão ainda maior nas suas mentes e
concepções. Ao contrário, é mister se trabalhar a omnilateralidade na perspectiva da
emancipação humana, articulada essencialmente com o socialismo, em que o sujeito
será reconhecido em sua totalidade e a riqueza da produção é realizada em função das
necessidades dos produtores associados livremente.

A produção ou é conscientemente controlada pelos produtores associados a


serviço de suas necessidades, ou os controla impondo a eles seus próprios
imperativos estruturais como premissas da prática social das quais não se
pode escapar. Portanto, apenas a auto-realização por meio da riqueza da
produção (e não pela produção da riqueza alienante e reificada), como a
finalidade da atividade-vital dos indivíduos sociais, pode oferecer uma
alternativa viável à cega espontaneidade auto-reprodutiva do capital e suas
conseqüências destrutivas. Isto significa a produção e a realização de todas as
potencialidades criativas humanas, assim como a reprodução continuada das
condições intelectuais e materiais de intercâmbio social. (MÉSZÁROS, op.
cit. p. 613)

Nesse sentido, a educação emancipatória é articulada a um projeto histórico


revolucionário que deve se pautar pelo estabelecimento de determinados requisitos
fundamentais que desenvolvam uma prática educativa que contribua para a construção
de uma sociedade plenamente livre, plenamente justa e plenamente igualitária.

Na verdade, estamos nos referindo a uma forma concreta de sociabilidade que


atingiria o patamar mais elevado para a humanidade. Essa sociedade é algo que é
possível de ser realizada e não se constitui apenas numa idéia reguladora. Não seria o
fim da história, mas o começo da verdadeira história humana.
13

Para isso, não basta nutrir um sentimento contra as injustiças, contra a


perversidade do mundo contemporâneo, porque, até mesmo os capitalistas nutrem, à sua
maneira, tal sentimento. É preciso fundamentar-se nas questões estruturais que
permitem compreender o funcionamento da sociedade capitalista. É essa fundamentação
que nos mostra que não existiria um terceiro caminho, baseado na defesa da democracia
social. O que existe de fato é a regência do capital com todas as suas formas históricas
concretas e a regência do trabalho. São essas duas formas que devem ser discutidas.

É o trabalho enquanto ato fundante da sociabilidade humana - em seu sentido


ontológico - que estará sempre presente, não importando em qual forma social e
histórica estamos: comunidade primitiva, escravismo, feudalismo, capitalismo,
socialismo...O trabalho é a matriz de qualquer forma de sociabilidade.

O capital deve ser entendido como uma relação contraditória entre capital-
trabalho. Não existe capital sem trabalho. Essa relação funda ontologicamente classes
sociais com interesses antagônicos. A classe burguesa se põe plenamente como o
fundamento de uma concepção de mundo, de uma forma de sociabilidade econômica,
política, social, ideológica, cultural e jurídica. É a fundação de uma perspectiva de
mundo e de uma forma de sociabilidade datada historicamente.

As formas concretas dessas classes mudam continuamente, mas a relação


fundante é a compra e venda da força de trabalho. É essa geração de valor, essa extração
da mais-valia, esse ato de compra e venda da força de trabalho, que põe duas classes
sociais fundamentais em luta e que dá origem a duas concepções de mundo, dois
entendimentos a respeito da sociabilidade humana, dois projetos de sociedade
inconciliáveis...

A respeito dessa relação de classe antagônica, própria da regência do capital,


MÉSZÁROS analisa o caráter desumanizador do sistema do capital, que prioriza a
produção e acumulação de riquezas em detrimento das reais necessidades humanas:

Naturalmente, em tais circunstâncias e determinações, os seres humanos


produtivamente ativos não podem ocupar, como seres humanos, seu lugar
legítimo nas equações do capital, e muito menos ser considerados, nos
parâmetros do sistema do capital, como a verdadeira finalidade da produção.
A relação social mercantilizada e reificada entre os sujeitos produtivos e seu
controlador agora independente - que, como questão de direitos
materialmente constituídos e legalmente imposto, age como o único
proprietário das condições de produção e auto-reprodução dos trabalhadores -
apresenta-se de maneira mistificada e impenetrável. Igualmente, a tarefa da
reprodução social e do intercâmbio metabólico com a natureza é definida de
14

modo fetichizado como a reprodução das condições objetivadas/alienadas de


produção, das quais o ser humano que sente e padece nada mais é senão uma
parte estritamente subordinada, enquanto um "fator material de produção". E
já que o sistema produtivo estabelecido, sob a regência do capital, não pode
reproduzir a si próprio, a menos que possa fazê-lo em uma escala sempre
crescente, a produção deve apenas ser considerada a finalidade da
humanidade, mas - enquanto um modo de produção ao qual não pode haver
alternativa - deve ser tomada como premissa que a finalidade da produção é a
multiplicação sem fim da riqueza. ( 2002:611-612)

Na verdade, o socialismo é, em sua essência, um projeto humanista quando toma


como finalidade primeira a emancipação do homem. Dessa forma, recorrer a um
humanismo de cunho idealista e subjetivista é desconhecer que no marxismo a
dimensão da subjetividade é considerada na sua relação com a objetividade, através do
trabalho, ato fundante da sociabilidade humana.

Baseados em Lukács, na obra Ontologia do Ser Social, entendemos que o


homem não é homem só porque pensa. Não é só a razão que faz o homem. O que dá
origem ao homem, o que determinou o salto ontológico do ser natural para o ser social é
o ato do trabalho composto de duas dimensões: consciência e realidade objetiva, ou, nos
termos de Lukács, teleologia e causalidade. Subjetividade e objetividade têm, nesse
sentido, o mesmo estatuto ontológico.

No trabalho, enquanto ato fundante da sociabilidade humana, temos essa


articulação essencial entre subjetividade e objetividade, entre espírito e matéria. São
essas duas dimensões que concorrem para a formação do ser social. Foi o encontro da
subjetividade com a objetividade através do trabalho, que propiciou à humanidade o
salto ontológico e o afastamento das barreiras naturais.

ANTUNES sintetiza de forma apropriada a conceituação de trabalho


desenvolvida por Lukács a partir do referencial marxista:

1.Enquanto fonte originária, primária de realização do ser social,


protoforma da atividade humana, fundamento ontológico básico da
ominilateralidade humana. Nesse plano mais simples e abstrato, para lembrar
a caracterização de Marx, presente no capítulo V de O Capital, parece
desnecessário dizer que Luckács não está se referindo ao trabalho
assalariado (labour), mas ao trabalho como criador de valores de uso, o
trabalho na sua dimensão concreta, enquanto atividade vital (work), como
"necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio entre o homem e a
natureza"., ainda nas conhecidas palavras de Marx... 2. O trabalho é um
momento efetivo de colocação de finalidades humanas dotado, portanto, de
intrínseca dimensão teleológica. No sentido dado por Luckács: "o simples
fato de que no trabalho se efetiva uma posição teleológica é uma experiência
elementar da vida cotidiana de todos os homens...". Disso resulta que todo
15

processo teleológico implica uma finalidade, um ato consciente que põe um


fim. (1996:99-100)

No marxismo, a subjetividade tem papel preponderante na construção da própria


objetividade material. Marx não dissolve a categoria da essência da natureza humana.
Pelo contrário, observa determinados elementos que vão se pondo como resultado da
própria atividade humana e que têm um grau de continuidade muito maior do que
apenas a análise dos fenômenos. O processo social é tomado em sua contraditoriedade,
complexidade e totalidade. Processo social que é articulado pelas dimensões da essência
e do fenômeno, ambas resultantes da prática consciente dos homens.

O homem, na acepção marxista, é sempre resultado da teoria e da prática que


leva ao surgimento de uma natureza humana que vai se modificando ao longo da
história e tem um caráter de continuidade. Na interpretação de Duarte (1993), o homem
é um ser que se faz através da apropriação e da objetivação. Apropriação do patrimônio
genérico da humanidade que permite ao homem ser membro do gênero humano, que, ao
se apropriar desse patrimônio, se objetiva, e ao se objetivar, se apropria.

Essa dupla articulação é fundamental para o entendimento da constituição do ser


social ou, como diz Mészáros (2002), do indivíduo social. Esse ser social é
ontologicamente ativo, pois se faz homem na dialética de, ao transformar a natureza,
transformar a si mesmo, articulação que tem como núcleo fundamental o trabalho, que
norteia, assim, o processo de autoconstrução humana.

Com base nesse referencial teórico, acreditamos que estamos vivendo


atualmente uma miopia no campo da educação, mais especificamente, da formação
docente, quando se reserva para a educação a preparação dos indivíduos para
acompanharem a sociedade em acelerado processo de mudança. Esse modelo de
pedagogia é funcional à acumulação capitalista, pois tem como núcleo fundamental a
formação de indivíduos predispostos à adaptação e ao ajustamento à sociedade regida
pela lógica do capital, como bem assinala Duarte:

O caráter adaptativo dessa pedagogia está bem evidente. Trata-se de preparar


os indivíduos, formando neles as competências necessárias à condição de
desemprego, deficiente, mãe solteira etc. Aos educadores caberia conhecer a
realidade social não para fazer a crítica a essa realidade e construir uma
educação comprometida com as lutas por uma transformação social radical,
mais sim para saber melhor quais competências a realidade social está
exigindo dos indivíduos. (2003: 12)
16

Diante desse quadro, assumimos como objetivo do presente estudo analisar


criticamente a proposta de formação do professor do MST no contexto dos paradigmas
hoje dominantes no campo da formação docente, mais especificamente, na pedagogia
das competências, no sentido de examinar até que ponto tal proposta supera o referido
paradigma, reafirmando a centralidade do trabalho e da luta de classes; apontando para a
formação omnilateral; e indicando o socialismo como condição de plena articulação
entre teoria e prática.

Para o alcance desse objetivo de natureza mais ampla, torna-se imperativo, no


percorrer de nosso trabalho, atentar para os objetivos específicos abaixo relacionados:

- pontuar os princípios norteadores da educação do MST, consignados na


chamada Pedagogia do Movimento Sem Terra;

- analisar as concepções em torno das relações entre educação, escola e sociedade


embutidas na proposta de formação do professor do MST;

- situar os pontos fundamentais do debate em torno dos paradigmas dominantes


no campo da formação docente;
- avaliar os pontos de encontro e desencontro entre a proposta de formação do
professor do MST e os pilares da educação consignados no modelo das
competências; firmados pela Unesco–ONU.

Ainda que, reconhecidamente, nos encontremos hoje, imersos num tempo de


superficialidade, quando tudo pode ser dito e aceito, sem que se questionem seus
fundamentos, estamos ao contrário, tentando fundamentar nossa análise em
pressupostos téorico-metodológicos que nos permitam construir determinadas
concepções. Para tanto, optamos pela pesquisa materialista e histórico-dialética, no
plano da ontologia marxista, que compreende o movimento da realidade social em
questão, articulando-o às suas especificidades e singularidades, reconhecendo,
outrossim, a relação entre subjetividade e objetividade como constituidora do ser social
e afirmando o trabalho enquanto ato fundante da sociabilidade humana em seu sentido
ontológico.

Esta perspectiva teórico-metodológica nos permite buscar as categorias mais


gerais e abstratas que respondem pela determinação do objeto para progressivamente
17

mapear, passo a passo, suas manifestações mais concretas e reais. Nesse sentido, as
categorias que guiaram nosso trabalho são aquelas que nos permite desvendar as
determinações da crise estrutural do capital: trabalho e luta de classes são assim,
categorias particularmente centrais nessa pesquisa.

Em suma, o processo de análise tomou como indicação teórico-metodológica a


perspectiva do materialismo histórico-dialético, tecendo reflexões à luz da categoria
trabalho enquanto central para uma atividade humana verdadeiramente emancipatória.
Sobre esse referencial teórico-metodológico, é mister recorrer, por exemplo, ao que
lembra Mészáros sobre as noções de determinações sociais:

Aqui chegamos a uma questão crucial: a complexidade na metodologia


dialética de Marx. Em uma concepção mecanicista, há uma linha de
demarcação definida entre o “determinado” e seus “determinantes”, mas não
é o que ocorre no quadro de uma metodologia dialética. Nos termos dessa
metodologia, embora os fundamentos econômicos da sociedade capitalista
constituam os “determinantes fundamentais” do ser social de suas classes,
eles são também, ao mesmo tempo, “determinantes determinados”. Em outras
palavras, as afirmações de Marx sobre o significado ontológico da economia
só fazem sentido se formos capazes de apreender sua idéia de “interações
complexas”, nos mais variados campos da atividade humana. Desse modo, as
várias manifestações intelectuais da vida humana não são simplesmente
“construídos sobre” uma base econômica, através de uma estrutura própria,
imensamente intricada e relativamente autônoma. (1993:77)

Para tanto, procuramos relacionar as peculiaridades da situação com a proposta


mais ampla de educação consignadas na teoria das competências, relacionando ainda
esse objeto com a totalidade, na pretensão de que a análise mais aprofundada dessa
singularidade contribua, por sua vez, para melhor compreensão do todo e ainda
investigar como e por quais caminhos se manifestam os pilares e as concepções do
projeto de formação de professores do MST.

Coerentemente com essa perspectiva, buscamos revelar as manifestações


qualitativas, situando-as historicamente, a partir da análise de um conjunto de elementos
e dimensões que compõe o nosso campo de investigação. Assim, no percurso dessa
investigação, realizamos uma pesquisa de campo que foi enriquecida com as
significativas contribuições dos depoimentos e do acesso aos documentos do MST, o
que contribuiu para o desvelamento dos pressupostos da proposta do educador do MST
que se insere na chamada Pedagogia do Movimento.
18

No desenvolver dessa pesquisa de campo, que se iniciou com a análise


documental, a pesquisa bibliográfica e a observação contextualizada, despertamos para
a necessidade de entrevistar os próprios militantes e dirigentes do MST que se
encontram à frente do Setor de Educação, no sentido de conhecermos mais de perto suas
concepções, sem a interferência mais elaborada dos textos produzidos por seus teóricos
mais importantes. É claro que referidos militantes trazem, sem dúvida, uma bagagem de
discussão acumulada com esses intelectuais e com os demais militantes, mas certamente
valeu o esforço de tentarmos apurar o que é mais original de suas concepções.

As entrevistas foram realizadas com o apoio de um roteiro aberto e semi-


estruturado, previamente elaborado, que abordava as concepções desses educadores em
relação aos seguintes aspectos: história pessoal do envolvimento com o MST e
especificamente, com o Setor de Educação; as concepções de sociedade, escola e
educação; a relação entre socialismo, cidadania e democracia; o horizonte político-
ideológico da proposta de educação; a orientação teórico-metodológica e os princípios
norteadores da proposta de formação de professores; os principais teóricos inspiradores
do MST, dentre outros aspectos.

Dentre os documentos analisados, ressaltamos o exame dos projetos do Curso


de Magistério de Nível Médio e do Curso de Pedagogia desenvolvidos pelo Instituto
Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária - ITERRA-MST em
Veranopólis – RS. Nossa escolha é justificada pelo fato de que esse Instituto abriga
atualmente o Instituto de Educação Josué de Castro, onde se desenvolvem o Curso de
Magistério do MST e o Curso Superior em Pedagogia, este último em parceria com
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS. Essa peculiaridade nos levou à
visita e à observação dessa atmosfera privilegiada de complexas e ricas experiências no
campo de formação de professores vinculadas ao MST.

Não pretendemos analisar o MST como um todo, nem poderíamos,


considerando sua extensão e complexidade. Focalizamos a sua expressão/dimensão
educativa, ressaltando os aspectos reveladores das questões mais universais referentes à
sua proposta de formação de professores.

Esta foi a nossa trajetória: investigar a obra educativa do MST, relacionando-a


com a especificidade da formação de seus professores, elegendo como eixo de
19

investigação o questionamento sobre até que ponto essa proposta sofre influências dos
novos paradigmas educacionais.

Em suma, procuramos identificar as especificidades da proposta de formação


de professores do MST, através da análise dos documentos, da pesquisa bibliográfica e
da realização de entrevistas com os diversos educadores envolvidos na proposta, além
da observação de campo implementada no Instituto de Educação Josué de Castro –
IEJC/ITERRA.

Assim, no capítulo 1, iniciamos nosso trabalho com uma breve


contextualização sobre a gênese e a evolução histórica do MST, e sua
relação/aproximação com os chamados “novos movimentos sociais”, situando esta
última discussão no contexto da crise estrutural do capital, que apresenta enormes
conseqüências para o mundo do trabalho, para a organização social e para a formação
do trabalhador.

No capítulo 2, tecemos uma discussão mais ampla em que abordamos


criticamente os chamados “novos paradigmas educacionais”, que apresentam uma
proposta de educação do século XXI, implementada através das ações ideológicas e
manipulatórias dos consultores da Unesco-ONU, que se utilizam da tese da chamada
Sociedade do Conhecimento para justificar e fundamentar seus discursos. Nesse
contexto, discutimos os alcances e limites da teoria das competências que se pauta e se
justifica nesses novos paradigmas.

Em seguida, com base na crítica marxista, examinamos as relações desses


novos paradigmas com a defesa da cidadania planetária e a construção da escola cidadã,
focalizando nessa discussão, a relação entre socialismo, democracia e cidadania.

Nos capítulos 3 e 4, nos aproximamos do nosso objeto de estudo, ou seja, da


problemática específica que trata do projeto de formação de professores do MST,
quando visualizamos a realidade concreta da Pedagogia do Movimento. Assim, no
capítulo 3, expomos os princípios da educação do MST, que caracterizam a proposta
ampla de formação humana em movimento, apresentados nos principais documentos e
na fala dos educadores envolvidos no trabalho do Setor de Educação do MST.

No capítulo 4, registramos os elementos fundamentais de compreensão da


gênese e trajetória do projeto de formação do educador militante do MST, focalizando a
20

própria história de ocupação da escola pelo Movimento e a contribuição da professora


Roseli Caldart nesse processo.

Como desdobramento, abordamos a estrutura e os princípios organizativos dos


cursos desenvolvidos pelo Instituto de Educação Josué de Castro, situado em
Veranópolis – RS, destacando suas propostas curriculares e as falas dos educadores
envolvidos diretamente nesses programas de formação.

Por fim, encerramos o trabalho com as considerações finais, em que resgatamos


questões direta ou indiretamente ligadas às expostas no corpo do trabalho no intuito de
fazermos um exame crítico sobre a Pedagogia do Movimento, abordando seus pontos e
contrapontos.
21

CAPÍTULO 1

GÊNESE E EVOLUÇÃO DO MST: FRAGMENTOS DE UMA HISTÓRIA DE


LUTA PELA TERRA

...Quando chegar na terra. Lembre que tem outros


passos pra dar. Mire o olhar na frente.
Porque atrás vem gente querendo lutar
Neste caminho obscuro.
Está o futuro para preparar.
Caminhe, não desanime.
Trabalhe, se alinhe no passo de andar.
Quando chegar na terra.
Não está completa tua liberdade.
Este é o primeiro passo.
Que damos na busca de outra sociedade...
(ADEMAR BOGO, MST)14

Para entendermos a proposta de educação do MST, é necessário situarmos,


ainda que de forma sintética, a história desse Movimento, enfocando seus princípios de
luta e sua forma de organização.

Nesse sentido, vamos nos apoiar em alguns trabalhos que tomam como objeto
de estudo o MST e, mais especificamente, a sua história de luta, apresentando os
principais marcos do seu processo de gênese e formação.

O MST nasceu a partir das lutas pela terra iniciadas no final dos anos 1970,
numa conjuntura de organização e luta pela redemocratização do País, que se travava
contra a ditadura militar. O marco de sua fundação só se deu em janeiro de 1984, no
primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Rurais Sem-Terra, realizado em
Cascavel-PR, que teve como lema: "Terra para quem nela trabalha".

14
Trecho da música “Quando chegar na terra”.
22

A partir desse Encontro, que contou com a participação de 150 delegados, os


trabalhadores rurais resolveram se organizar nacionalmente para lutarem conjuntamente
em defesa da conquista da terra.

Organizaram-se diversas ocupações e acampamentos em todo o Território


nacional, principalmente nos estados de RS, SC, PR e MS, o que resultou no surgimento
do MST como um movimento social de grande visibilidade nacional tendo como marca
fundamental o enfrentamento e a resistência contra a política agrária brasileira em que
as terras ficam concentradas nas mãos de uma minoria de fazendeiros, industriais e
empresas multinacionais, enquanto a maioria dos trabalhadores rurais fica excluída de
seu acesso.

Essa é, em síntese, um ponto central no surgimento do MST, sendo, no entanto,


importante articular sua história, que é recente, à própria história de luta, organização e
resistência dos camponeses brasileiros. Nesse sentido, iniciamos este esforço de
articulação de forma abreviada, pois o desenvolvimento mais detalhado e preciso de tais
elementos seria aqui impossível, dadas a amplitude e a complexidade dessas questões
além da própria natureza do trabalho, cujo recorte está centrado na proposta de
formação de professores.

Nosso trabalho de composição sobre a natureza, as raízes históricas e a gênese


do MST, é respaldado na análise de Fernandes, contando, nessa exposição, com a
colaboração de outros autores. Esse autor apresenta como preocupação fundamental de
seu trabalho registrar a gênese do MST em cada unidade da Federação e as principais
lutas construídas no seu processo de formação, envolvendo todo essa trajetória rica e
complexa.

Nos últimos 20 anos, as ocupações de terra tornaram-se uma das principais


formas de acesso à terra[...]Esta forma de luta pela terra tem se intensificado,
resultando em milhares de assentamentos rurais por todo o Brasil e
determinando essa realidade que chamamos hoje, incorretamente, de reforma
agrária.. (2000:19).

O autor relaciona a gênese do MST com essa forma de organização e luta pelo
acesso à terra. A apreensão de sua formação só é possível articulada ao entendimento da
ocupação da terra no Brasil. A ocupação para o Movimento representa um espaço de
luta e resistência em que se torna possível a realização de um sonho, mediante o
enfrentamento com os latifundiários e o Estado. Nas palavras do autor:
23

O MST nasceu da ocupação da terra e a reproduz nos processos de


espacialização e territorialização da luta pela terra. Em cada estado onde
iniciou a sua organização, o fato que registrou o seu princípio foi a ocupação.
Essa ação e sua reprodução materializam a existência do Movimento,
iniciando a construção de sua forma de organização, dimensionado-a.
(2000:19)

Nesse sentido, a ocupação de terra é uma realidade determinadora,


estabelecendo uma cisão entre o latifúndio e o assentamento, dando significado especial
à resistência do MST por meio do seu permanente processo de recriação.

Segundo Stédile, no processo de organização do MST, a ocupação é um ponto


chave fundamental. Consiste na essência do Movimento, porque aglutina as pessoas em
um acampamento sem que seja necessário recorrer a um cadastro.

Nenhuma reforma agrária do mundo foi feita com cadastro. Nem as


capitalistas nem as socialistas[...]Foram feitas com o ato prático das
pessoas[...]A ocupação dá esse sentido de unidade às pessoas, para lutarem
por um mesmo objetivo[...]Passar pelo calvário de um acampamento cria um
sentido de comunidade, de aliança. (2000:114-115)
Esse processo contínuo de resistência e ocupação incide sobre a própria
estrutura organizativa do MST, que vem ampliando os espaços territoriais e os espaços
de luta pela conquista de outros direitos, mantendo, no centro da pauta política, a
questão agrária. Como explicita o autor:

Nessas duas décadas, [últimos vinte anos] no desenvolvimento desses


processos, os sem-terra se organizaram em vinte e duas unidades da federação
e construíram uma estrutura organizativa multidimensionada em suas
instâncias representativas e nas formas de organização das atividades. Dessa
forma, ampliaram a luta pela terra em luta por outros direitos: educação,
política agrícola, saúde etc., construindo condições para conquistá-los.
(2000:19)

A respeito do desenvolvimento de outras dimensões presentes na luta dos sem-


terra, que procuram expandir as possibilidades de suas lutas e conquistas, Fernandes
recorre a José de Sousa Martins para subsidiar a tese de que o MST não deseja só a
reforma agrária, intenta, outrossim, o atendimento de suas necessidades sociais.

Querem mais que a reforma agrária encabrestada pelos agentes de mediação.


Querem uma reforma social para as novas gerações, uma reforma que
reconheça a ampliação histórica de suas necessidade sociais, que os
reconheça não apenas como trabalhadores, mas como pessoas com direito à
contrapartida de seu trabalho, aos frutos do trabalho.Querem, portanto,
mudanças sociais que os reconheçam como membros integrantes da
sociedade. Anunciam, em suma, que seus problemas são problemas da
24

sociedade inteira. Que a derrota política de seus agentes de mediação não os


suprime historicamente. A falta da reforma agrária não acaba com o
camponês, com o pequeno agricultor, com o trabalhador rural. Ao contrário,
multiplica as responsabilidades das elites políticas porque suprime uma
alternativa de integração política social e econômica de milhões de brasileiros
que vivem no campo, em condições cada vez mais difíceis. (MARTINS,
1994:56, apud FERNANDES, op. cit. p.21)

As experiências do MST, de acordo com seus principais analistas, vêm sendo


construídas na persistência da autonomia política dos sem-terra, transformando-se numa
organização ampla e atuante em diversas dimensões da vida, lutando em todas as
regiões brasileiras contra a exclusão e a exploração. Esta forma de organização
reproduz, assim, não só a lógica do desenvolvimento das relações econômicas, mas
também a construção de relações políticas, envolvendo várias instituições, entre elas o
Estado, por meio da ocupação de terras, agências bancárias e prédios públicos,
considerada a sua principal estratégia.

Analisando o MST enquanto um movimento popular e de massa que busca


trabalhar as questões econômicas articuladas a uma prática política consistente e crítica,
Vendramini (2000:50), acredita que este já brotou com a premissa de que a luta pela
terra tem de ser de massa, o que o torna um dos “mais inovadores fenômenos políticos
da América Latina, à medida que busca enfrentar os problemas do campo atacando as
causas estruturais. Nesse sentido, a reivindicação da terra é importante e válida”.

Olhando para as raízes históricas mais antigas, a origem dos sem-terra ocorreu
com fim do trabalho escravo, no final do século XIX, com a chegada do imigrante
europeu e em pleno desenvolvimento do capitalismo, estabelecendo-se uma outra
relação social baseada na venda da força de trabalho. Nos períodos de escravidão, o
negro era vendido como mercadoria e como produtor de mercadoria. Com a instituição
do trabalhador livre, representado agora pelos sitiantes (pequenos proprietários ou
posseiros), os agregados e os negros, conservaram-se a separação entre o trabalhador e
os meios de produção, por meio da subordinação da venda da força de trabalho ao
fazendeiro, ao capitalista. Dessa forma, ao imigrante europeu, banido de sua terra, livre
por possuir a sua força de trabalho, restara-lhe a luta pela terra.
25

A gênese dos trabalhadores sem-terra se encontraria nessa nova composição do


trabalhador camponês, que confrontava seus interesses com os dos fazendeiros que
grilavam15 a terra.

Ao mesmo tempo, enquanto os trabalhadores fizeram a luta pela terra, os ex-


senhores de escravos e fazendeiros grilaram a terra. E para realizarem seus
interesses por meio da trama que construiu o domínio das terras, exploraram
os camponeses. Estes trabalharam a terra, produziram novos espaços sociais e
foram expropriados, expulsos, tornando-se sem-terra. Nessa realidade, surgiu
o posseiro, aquele que possuindo a terra não tinha o seu domínio. A posse era
conseguida pelo trabalho e domínio pelas armas e poder econômico. Desse
modo, o poder do domínio prevaleceu sobre a posse. Evidente que esse
processo de apropriação das terras gerou conflitos fundiários, de modo que a
resistência e a ocupação eram perenes[...]A maioria dos trabalhadores, ex-
escravos e imigrantes começaram a formação da categoria, que na segunda
metade do século XX seria conhecida como sem-terra. Lutaram pela terra,
pelo desentranhamento da terra, numa luta que vem sendo realizada até hoje.
(FERNANDES, idem, p.27-28).

Desde o final do século XIX e todo o século XX, registraram-se diversas formas
de resistência do campesinato brasileiro ocorridas por meio da organização de
movimentos messiânicos e de grupos de cangaceiros, que lutavam contra o cerco à terra.

Nessa história de cerco à terra, temos no Brasil uma história de resistências de


movimentos de camponeses, constituídos de trabalhadores imigrantes e ex-escravos,
que se organizaram no sentido de lutarem pela terra. Temos, assim, a história de luta e
resistência dos seguintes movimentos: a guerra de Canudos, de Antônio Conselheiro
(Bahia, 1893-1897); a guerra de Contestado (no sul do Brasil, Paraná e Santa Catarina,
1908-1914); O cangaço (região Nordeste, nas primeiras décadas do século XX); e as
Ligas Camponesas (criadas em quase em todos os Estados do Brasil, 1945-1964).

A propriedade privada da terra no Brasil, fundamental para o desenvolvimento


do modo capitalista de produção, foi uma condição para a existência do trabalho livre,
que, conseqüentemente, muniu essas formas de luta e organização dos agora
trabalhadores livres.

A lei de terras, elaborada em 1850 pela monarquia brasileira, promoveu o cerco


à terra, intensificado por mecanismos de grilagem e expropriação de posseiros. O
15
Segundo Stédile, “[...] A origem da grilagem remonta à década de 1950, mas teve maior proeminência –
e certeza de impunidade – durante a ditadura militar. Em função das pressões do MST, o estado de São
Paulo passou a mover ações de reintegração de posse contra os fazendeiros-grileiros e a realizar
assentamentos nas fazendas recuperadas”. Conferir STÉDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo
Mançano. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2000. p. 25, nota 25.
26

latifúndio característico do Brasil-colônia monárquico se estabelece também com força


no Brasil republicano. Esta lei privatizou a terra, cercada e apropriada pelos grandes
latifundiários. As terras que não foram cercadas deveriam ser devolvidas ao Governo,
daí o termo terras devolutas.

No processo de elaboração da lei de terras no Brasil, foram apresentados dois


projetos (o de José Bonifácio de Andrada e Silva e o do Padre Diogo Antônio Feijó) que
de certa forma limitavam o tamanho da propriedade e possibilitavam aos camponeses o
acesso à terra por meio de mediações. Esses projetos, no entanto, jamais saíram do
papel porque arranhavam os interesses dos grandes proprietários.

Este fato intensificou a construção do Brasil do latifúndio, propiciando a


grilagem da terra pelos coronéis, o trabalho nas fazendas, a matança de posseiros e o
extermínio de povos indígenas. Registra-se, pois, na história do Brasil-colônia e agora,
no Brasil República, o cativeiro da terra. (FERNANDES, op. cit. 2000).

No final dos anos 1970, mais precisamente em 1979, o nascimento do MST,


fruto do processo histórico de resistência do campesinato brasileiro, é a extensão da
história de luta dos movimentos dos camponeses brasileiros, citados nos parágrafos
anteriores principalmente, do movimento das Ligas Camponesas, reprimidas
violentamente com o golpe militar de 1964.

Nesse contexto de aliança política de que participaram diferentes setores da


burguesia: latifundiários, empresários, banqueiros, etc, os movimentos camponeses
foram aniquilados, através da perseguição, humilhação, assassinato e exílio dos
trabalhadores rurais.

Dessa forma, todo o processo de organização dos trabalhadores foi


desestruturado, impossibilitando os camponeses de ocuparem espaços políticos de luta
por seus direitos. Como efeito, registra-se a elaboração de políticas que

Aumentaram a concentração de renda, conduzindo a imensa maioria da


população à miséria, intensificando a concentração fundiária e promovendo o
maior êxodo rural da história do Brasil.[...] Em seu pacto tácito, os militares e
a burguesia pretendiam controlar a questão agrária, por meio da violência e
com a implantação de seu modelo de desenvolvimento econômico para o
campo, que priorizou a agricultura capitalista em detrimento da agricultura
camponesa. Ainda, o governo da ditadura ofereceu aos empresários subsídios,
incentivos e isenções fiscais, impulsionando o crescimento econômico da
agricultura e da indústria, enquanto arrochava os salários, estimulava a
expropriação e a expulsão, multiplicando os despejos das famílias
camponesas.(FERNANDES, 2000: 41).
27

Todas essas ações políticas tiveram conseqüência na questão agrária,


registrando-se uma alteração na estrutura fundiária brasileira, com uma intensificação
do modelo concentracionista, ampliando os conflitos e as lutas no campo. Nessa
conjuntura, a questão agrária tornou-se um dos principais problemas do governo militar.

Esse modelo de desenvolvimento econômico para o campo priorizou a


agricultura capitalista e fez aumentar a miséria, a acumulação e a concentração de
riquezas, transformando o meio rural com a intensificação da mecanização e a
industrialização, aliados à modernização tecnológica de alguns setores da agricultura,
expropriando e expulsando da terra trabalhadores rurais, causando o crescimento do
trabalho assalariado e fazendo surgir a categoria de bóia-fria.

No intuito de superar os problemas dos conflitos fundiários para desmobilizar os


camponeses e evitar que a questão agrária se transformasse num problema nacional, os
militares criaram no início da ditadura, o Estatuto da Terra. Pretendiam ter o controle
sobre a questão agrária, utilizando-o conforme a sua concepção de reforma agrária, em
que constavam a utilização de tributação e os projetos de colonização e em que a
desapropriação era uma exceção. "A colonização foi imposta como forma de controlar
a questão agrária sem fazer a reforma agrária”.(FERNANDES, op. cit. 2000:45).

No entanto, devido ao aumento dos conflitos no campo, no final da década de


1970, o governo militar foi obrigado a usar a estratégia de desapropriação de terras,
como forma de evitar a expansão dos conflitos fundiários, que se multiplicaram por todo
o território nacional. Para exercer o controle da organização dos camponeses os
militares determinaram a militarização do problema da terra. Criou-se o Grupo
Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT) e o Grupo do Baixo Amazonas
(GEBAM), que tinham como função fundamental a administração dos conflitos, aliada
à prisão dos camponeses “subversivos” e “revoltosos”...

A militarização proporcionou diferentes e combinadas formas de violência


contra os trabalhadores. A violência do peão, que é o jagunço da força
privada, muitas vezes com o amparo da força pública. A violência da polícia,
escorada na justiça desmoralizada, que decretou ações contra os
trabalhadores, utilizando recursos dos grileiros e grandes empresários,
defendendo claramente e tão-somente os interesses dos latifundiários.
Aumentaram os números de violência e colidiram com a relutância
camponesa, que não se entregou e a cada dia realizava novas lutas. No ano
derradeiro do governo militar, 1985, os jagunços dos latifundiários e a polícia
assassinavam um trabalhador rural a cada dois dias. (idem, p. 44)
28

Alguns movimentos se rebelaram contra esse explícito e violento processo de


militarização da questão agrária. Temos inicialmente a Comissão Pastoral da Terra -
CPT, atrelada à Igreja Católica, que trabalhava junto às paróquias nas periferias das
cidades e nas comunidades rurais, sendo a articuladora dos novos movimentos de
camponeses no período da ditadura militar, reiniciando um novo período da história da
formação camponesa. A estratégia de luta consistia em evidenciar as artimanhas dos
militares camufladas pelo discurso oficial e organizando frentes de luta pela terra e pela
reforma agrária.

Segundo Fernandes, essa luta no campo foi se desenhando em três frentes:

A luta dos assalariados por melhores condições de trabalho e reivindicações


salariais. As lutas de resistência dos posseiros contra a grilagem e rapinagem
dos latifundiários e das grandes empresas capitalistas, e as lutas crescentes
dos sem-terra, no final da década de 70, na realização das ocupações,
acampamentos, caminhadas e conquista da terra. (idem, p.45-46).

Encontramos na leitura de Fernandes um conceito de sem-terra, amparado em


Martins, que constitui uma articulação da luta entre os assalariados (bóias-frias) e os
posseiros, que contribui para o entendimento da origem do MST.

Os sem-terra são camponeses expropriados da terra, ou com pouca terra, os


assalariados e os desempregados. São trabalhadores na luta pela reinserção
nas condições de trabalho e de reprodução social, das quais foram excluídos,
no processo desigual de desenvolvimento do capitalismo. Suas lutas são pela
conquista da terra, pela reforma agrária e pela transformação da sociedade.
Questionam o modelo de desenvolvimento e o sistema de propriedade, lutam
contra o modo de produção capitalista e desafiam a legalidade burguesa, em
nome da justiça (MARTINS, apud FERNANDES, 2000:45)16.

Durante o período da ditadura, os trabalhadores resistiram à repressão dos


governos militares que objetivavam restringir o avanço do movimento camponês,
construindo a alternativa da ocupação da terra. A origem do MST é fruto dessa luta
contra o processo de militarização da questão agrária.

Com a implantação do atual modelo de desenvolvimento econômico da


agropecuária, apostou-se no fim do campesinato. No entanto, por causa da
repressão política e da expropriação resultantes do modelo econômico, nasceu
um novo movimento camponês na história da formação camponesa do Brasil.
Aos que acreditaram no fim do camponês, não atentaram para o fato que o
16
Conferir: MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária. Petrópolis, RJ: Vozes,
1984. p. 88.
29

capital não comporta somente uma forma de relação social, ou seja: o


assalariamento. Ainda, a propósito, o próprio capital, em seu
desenvolvimento desigual e contraditório, cria, destrói e recria o campesinato.
É por essa lógica que podemos compreender a gênese do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra. (FERNANDES, op. cit. p. 46-47)

Esse processo, denominado de modernização conservadora, combinou


desenvolvimento e modernização da agricultura com aumento de concentração da
propriedade da terra, expropriando e expulsando do campo mais de 30 milhões de
pessoas que migraram para as cidades.

O MST é fruto de um processo histórico de resistência do campesinato


brasileiro. É, portanto, parte e continuação da história da luta pela terra[...]
Nesse processo, os fatores econômicos e políticos são fundamentais para a
compreensão da natureza do MST. Na década de 1970, os governos militares
implantaram um modelo econômico de desenvolvimento agropecuário que
visava acelerar a modernização da agricultura com base na grande
propriedade, principalmente pela criação de um sistema de créditos e
subsídios. [...]De um lado, aumentou as áreas de cultivo da monocultura da
soja, da cana-de-açúcar, da laranja entre outras; intensificou a mecanização da
agricultura e aumentou o número de trabalhadores assalariados. De outro
lado, agravou ainda mais a situação de toda a agricultura familiar: pequenos
proprietários, meeiros, rendeiros, parceiros etc., que continuaram excluídos
da política agrícola. (idem, p.49)

A gênese do MST aconteceu no interior dessas lutas de resistência dos


trabalhadores contra a expropriação, a expulsão e o trabalho assalariado. Segundo o
relato de Fernandes,

O Movimento começou a ser formado no Centro-Sul, desde 7 de setembro de


1979, quando aconteceu a ocupação da gleba 17 Macali, em Ronda Alta no
Rio Grande do Sul. Essa foi uma das ações dos trabalhadores sem-terra, que
aconteceram nos Estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso
do Sul, fazem parte da gênese e contribuíram para a formação do
Movimento[...] De 1979 a 1984 aconteceu o processo de gestação do
MST[...] Em 198418, [temos] o nascimento do MST ao ser fundado
oficialmente pelos trabalhadores em seu Primeiro Encontro Nacional,
realizado nos dias 21 a 24 de janeiro, os sem-terra realizaram o Primeiro
Congresso, principiando o processo de territorialização do MST pelo Brasil.
(2000:50).

17
As glebas eram terras públicas que estavam arrendadas para empresas.
18
Nesse Encontro, foram definidos os objetivos e os princípios que consolidariam o MST, como um novo
movimento camponês que recolocaria a pauta da reforma agrária no campo político. Tornava-se
necessário a intensificação da luta pela terra, por meio da ocupação. Era necessário ainda articular o
Movimento nacionalmente, ficando os estados com a tarefa de contribuir na organização e formação do
MST por todo o Brasil.
30

A respeito da gênese e natureza do MST, Stédile compartilha da tese, exposta há


pouco, afirmando que o surgimento do Movimento Sem Terra foi determinado por
vários fatores:

O principal deles foi o aspecto sócioeconômico das transformações que a


agricultura brasileira sofreu na década de 1970[...] os camponeses expulsos
pela modernização da agricultura tiveram fechadas essas duas portas de saída
– o êxodo para as cidades e para as fronteiras agrícolas. Isso obrigou-os a
tomar duas decisões: tentar resistir no campo e buscar outras formas de luta
pela terra nas próprias regiões onde viviam. É essa base social que gerou o
MST. Uma base social disposta a lutar, que não aceita nem a colonização nem
a ida para a cidade como solução para os seus problemas. O segundo [fator] é
o ideológico. Quero ressaltá-lo porque é importante na formação do
movimento. É o trabalho pastoral, principalmente da Igreja Católica e da
Igreja Luterana. (STÉDILE, 2000, p. 15,17 e 19).

Nesse sentido, o processo de formação contou com a interação dessas


instituições que tinham como pauta de luta a questão da reforma agrária, especialmente
da Igreja Católica, por meio da Comissão da Pastoral da Terra (CPT), uma das
principais articuladoras das diversas experiências que construíram uma nova realidade
do campo, através da organização de espaços de socialização política, como por
exemplo, as Comunidades Eclesiais de Base – CEB’ s - uma organização impulsionada
pelo movimento de renovação da Igreja: a Teologia da Libertação.

Nos registros do próprio MST, encontra-se a informação de que a primeira


ocupação que marcou a resistência dos camponeses, e que deu origem ao processo de
formação do MST, foi a que ocorreu no dia 7 de setembro de 1979, quando 110 famílias
ocuparam a gleba Macali19, no Município de Ronda Alta - Estado do Rio Grande do Sul.

Vendramini, sintetiza desta forma o processo de organização que culminou com


o nascimento do MST:

O MST existe, nos estados do sul do País, desde 1979, quando seu lema era
“Terra para quem nela trabalha”.No 1o Congresso, em 1985, consolidou sua
organização nacional, levantando a bandeira: “Ocupação é a única solução”.
A orientação atual é continuar a ocupar os imóveis em desapropriação, sob o
lema “Ocupar, resistir e produzir”. No congresso de 1995, o MST reforçou
tal lema e conclamou “a união dos trabalhadores do campo e da
cidade:”Reforma agrária: uma luta de todos”. A bandeira de luta atual
consagrada no mais recente congresso, em 2000, é a seguinte: “Reforma
agrária: por um Brasil sem latifúndio”. (2000:50-51)

19
Sobre a importância dessa ocupação como ponto de partida da gênese do MST, Stédile ressalta que “A
Macali foi uma trincheira, mas não foi a guerra... não pelo espaço geográfico, pelo pedaço de terra
conquistado, e sim porque foi uma vitória... A Macali ganhou fama porque teve repercussão e porque foi
vitoriosa”. (2000:24)
31

Desde seu nascimento, o MST fez a opção pela autonomia política do


Movimento, recusando alternativas e projetos que significassem controle e manipulação
das lutas. Houve também a definição de incluir e envolver todos os que querem lutar
pela terra, envolvendo desde as famílias do MST até profissionais e militantes de outras
categorias. A respeito disso, Fernandes nos informa:

Essa experiência foi além da participação da família. Pode entrar todo o


mundo que quiser lutar pela reforma agrária. Pode entrar o professor, o padre,
o engenheiro agrônomo, o advogado, o técnico, o administrador etc. Essa
condição deu consistência ao MST, que ao se abrir para a participação
superou as características típicas do movimento camponês, quando
participavam predominantemente os homens que trabalhavam na terra.
Procurando ampliar a luta, o MST criara diversas experiências de
participação, sem perder sua identidade camponesa. (2000:84-85).

Como um movimento de massa bem organizado local e nacionalmente,


pressupõe o envolvimento de todos os seus integrantes, das crianças, mulheres, jovens e
adultos em todos os diferentes momentos de luta: acampamentos, assentamentos,
marchas nacionais, conseguindo a adesão e simpatia de expressivos setores da sociedade
nas suas mobilizações.

Segundo Vendramini (2000), o MST se diferencia de outros movimentos sociais,


pois se mantém em permanente articulação e organização quando conquista a terra. Isso
ocorre quando os trabalhadores já assentados permanecem em contínua e persistente
luta pela organização da produção agrícola junto aos assentamentos, em função de uma
exigência da própria evolução histórica que pode levar os já assentados a um processo
de exclusão futura.

Trata-se de uma forma de reação frente à perda constante do espaço e meio


fundamental do trabalho das famílias atingidas pela violenta “modernização”
empresarial da agricultura. Dessa forma, o MST apresentaria um duplo caráter que
aponta uma heterogeneidade da base do movimento.

Os assentados têm de concretizar esforços no sentido de consolidar


economicamente a sua permanência na terra, enquanto o movimento, que é
dos sem-terra, tem de operar pressionando pelo atendimento da demanda por
terra. Aqui entre a discussão do peso a atribuir às lutas econômicas (por
créditos, insumos, comercialização etc.) e às lutas políticas. (VENDRAMINI,
2000:55).
32

Segundo Fernandes, o caráter político do MST é compreendido pelo próprio


Movimento, como sentido de pluralidade e da coerência, porque é a política que
sustenta a convivência na diversidade, marca principal do MST, pois envolve pessoas de
todos os credos, culturas e regiões. Os princípios de sua organização foram elaborados à
luz de suas experiências e das leituras da história de luta dos trabalhadores do campo.
Esses princípios passaram a reger o MST, o que o diferencia dos outros movimentos
sociais.

O MST, em seu desenvolvimento, reúne o povo pobre do campo e da cidade


disposto a lutar[...]os camponeses sem-terra foram percebendo que a luta pela
terra e a luta pela reforma agrária só se desenvolvem se forem feitas no
contexto da luta de classes[...] Em seu desenvolvimento, o MST sempre teve
como referências estes princípios: lutar contra o capital na construção de uma
sociedade sem exploração; lutar pela terra e pela reforma agrária, para que a
terra esteja sempre a serviço de toda a sociedade; lutar pela dignidade
humana, por meio da justa distribuição da terra e das riquezas produzidas
pelo trabalho; lutar sempre pela justiça com base nos direitos humanos; lutar
contra todas as formas de dominação e procurar em todo o tempo e lugar a
participação igualitária da mulher. (2000:85-86)

Nesse sentido, O MST é, hoje, um dos mais conhecidos movimentos sociais no


Brasil. Apresenta um alto grau de articulação interna e uma organização em âmbito
nacional. A disciplina entre seus militantes e a homogeneidade nas suas formas de luta
são características dessa organização. Conta com o envolvimento de um número cada
vez maior de trabalhadores Sem Terra e com assalariados que perderam seus empregos
nas grandes indústrias agrícolas. Vendramini nos apresenta alguns índices relativos ao
ano de 2000, que representam esse crescimento na organização do MST.

A importância do MST pode ser ilustrada pelo número de acampamentos no


Brasil. Existem hoje mais de dois mil acampamentos espalhados pelo País,
envolvendo 368.325 famílias. Só em 1999 foram organizados 538
acampamentos, enquanto em 1990 totalizavam 119 (cf. MST, 2000). Percebe-
se o crescimento do movimento na mobilização de famílias sem-terra na luta
pela reforma agrária. Ao mesmo tempo evidencia-se a lenta desapropriação
de terras por parte do governo federal. Há aproximadamente 1.5000 projetos
de assentamentos no País, com 160.000 famílias, porém 39% das famílias
assentadas estão concentradas nos estados do Maranhão, Pará e Mato Grosso,
e apenas 12% no Sul e no Sudeste, o que revela a prioridade do INCRA pela
fronteira agrícola (MST, 2000)20.

20
Citação feita por Vendramini, 2000:52, retirada do documento MST. Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra. MST em dados. Disponível na Internet. http://www.mst.org.br, 8 abril de 2000.
33

Tratando da questão da nomenclatura do Movimento (MST) 21, esta foi aprovada


em 1985 no Primeiro Congresso do Movimento. Incorporaram-se as palavras:
movimento e sem-terra, já bem conhecidas na história de luta dos camponeses.
Procurou-se contextualizar essas expressões no âmbito do caráter de classe,
introduzindo o termo trabalhador rural.

Sintetizando um pouco da história organizacional do MST, considerado como


uma das principais forças propulsoras dos processos sócio-políticos que resultaram nas
experiências de marchas nacionais, acampamentos e assentamentos rurais, ocupação de
prédios públicos, dentre outras ações, encontramos em Navarro, Moraes e Moreira, um
registro da primeira fase da constituição histórica do MST:

Em uma perspectiva geral, pode-se segmentar a história do MST em três


momentos principais. O primeiro refere-se aos anos formativos, do início da
década de 1980, quando os primeiros grupos de sem-terra foram mobilizados,
principalmente no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, passando por sua
estruturação formal, em 1984, e estendendo-se até o emblemático ano de
1986, que concluiu esta primeira fase, quando o movimento era ainda
principalmente sulista. (1999:28)

A origem do MST é fruto da organização histórica dos camponeses em luta


permanente pela conquista da terra e pela reforma agrária. No Brasil, esse Movimento
toma forma e consistência no final da década de 70 do século passado.

Enquanto um movimento social e de massas, é o que apresenta maior grau de


articulação e aparente coesão interna com atividades planejadas e realizadas de forma
articulada em todo o País. A partir dessa organização em âmbito nacional, o Movimento
se faz presente na maioria dos municípios e estados brasileiros.

O MST tem a adesão de diversos segmentos da sociedade, como intelectuais,


professores, representantes da igreja católica e demais igrejas, profissionais liberais dos
mais variados campos. Sua base social abrange as famílias sem terra, os assalariados das
grandes indústrias agrícolas e os desempregados do campo.

A respeito desse movimento, que ganha em relevância nacional, frente aos


outros movimentos, é importante tecer uma análise sobre sua relação, aproximação ou

21
A respeito da nomenclatura trabalhador rural e não camponês, Stédile apresenta a seguinte
justificativa: “Porque a palavra “camponês” é meio elitista. Nunca foi usada pelos próprios camponeses.
Não é, digamos, um vocábulo comum. O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi o único que usou o
termo “camponês”. O homem do campo geralmente se define como agricultor, trabalhador rural ou como
meeiro, arrendatário. É, na verdade, mais um conceito sociológico e acadêmico, que até pode refletir a
realidade em que eles vivem, mas que não foi assimilado”. (2000:31)
34

distanciamento com os paradigmas dos chamados “novos movimentos sociais”, que


tomam como centro de sua organização categorias tais como cultura/diversidade
cultural, subjetividade, conciliação de classes e tolerância, contrapondo-se à perspectiva
marxista que permitiria situar suas lutas nas categorias trabalho e luta de classes.

1.1. O MST e os “novos movimentos sociais” no contexto da crise estrutural do


capital.

Para desenvolvermos a análise sobre as relações do MST com os “novos


movimentos sociais”, torna-se necessário atrelar esse estudo às questões que envolvem a
crise do capital e as principais tendências do mundo do trabalho que incidem na
organização dos trabalhadores em geral.

A análise dessa temática não é o centro do nosso trabalho, o que nos limita no
sentido de desenvolver um estudo mais aprofundado sobre os mecanismos estruturais
que fundam essa problemática. O nosso esforço constitui-se na tentativa de
situar/contextualizar o MST nesse panorama atual de crise do movimento sindical e
social, que não toma mais o conflito de classes como base de seu trabalho
formativo/político.

Para tanto, iremos nos ancorar em análises realizadas por estudiosos que
privilegiam as questões relativas ao sindicalismo (Ricardo ANTUNES e James
PETRAS), ao MST e aos “novos movimentos sociais”. (Célia VENDRAMINI,
Bernardo Mançano FERNANDES, Zander NAVARRO et al, e BEZERRA NETO).

Segundo Vendramini (2000), para compreender a natureza desses “novos


movimentos sociais”, é necessário investigá-los, tomando como referência o
questionamento se os mesmos são opostos aos conflitos de classes; ou se podem ser
definidos como ação de classe, o que os levaria a tomar como central a categoria
trabalho como base de sustentação do conceito de classe.

Analisando o cenário dos movimentos sociais, Vendramini acredita que existe


uma diferenciação entre o MST e os sindicatos operários.

[...]Assistimos a setores excluídos da sociedade da produção organizando-se


em torno de movimentos sociais, como o Movimento dos Sem-Terra, que
questiona as relações de propriedade, enquanto os sindicatos operários são
levados a fazer acordos com as classes proprietárias, em função,
principalmente, das ameaças de desemprego. (2000:47)
35

Com efeito, a crítica marxista vem apontando uma lacuna importante nesses
“novos movimentos sociais” surgidos na década de 1980, os quais se afastariam de uma
crítica radical, estrutural da sociedade capitalista, buscando, ademais, substituir os
conceitos classistas, históricos e totalizantes por categorias que priorizam o caráter
individual e específico de alguns grupos organizados. Representam, assim, um refluxo
do social para o simbólico. No mais, desenvolvem uma análise de cunho conjuntural,
sem adentrar o núcleo central: a crise estrutural do capital.

Nessa perspectiva, encontramos algumas características que comporiam o


quadro desses “novos movimentos sociais”:

- a categoria classe social vem sendo substituída por atores sociais. - a dimensão
da cultura e da subjetividade torna-se o centro da análise, abandonando
categorias explicativas que desvelam a totalidade do real;

- a luta de classe é substituída pela movimento popular/social;

- a motivação, a autonomia e a participação democrática e cidadã substituem a


tese de revolução e tomada de poder;

- as transformações são pensadas dentro de um estreito campo de mudanças


culturais e comportamentais, tendo como pano de fundo a valorização do
cotidiano dos “atores” envolvidos.

Diante desse quadro, temos o surgimento e o avanço desses movimentos que


põem em evidência as questões de gênero, etnia, sexualidade, raça, ecologia, dentre
outras. As análises dessas categorias, são no entanto, desconectadas das questões
econômicas e de classe, no sentido da posição ocupada no processo de produção, o que
permitiria, ao nosso ver, analisar essas questões particulares sem perder de vista a
superação da condição de submissão e exploração que marca o trabalhador da sociedade
capitalista.

É justo, então, apontar-se a necessidade de articulação do enfoque dos problemas


específicos, que são importantes e urgentes, a uma análise mais estrutural, como forma
de superar o aprisionamento aos elementos étnicos e de cultura política às mudanças
setoriais, sem alterar, essencialmente, a ordem econômica e social. Existiria ainda, a
alternativa de ir além da defesa dos interesses particulares através de um processo de
36

formação política fundado numa teoria crítica e revolucionária, articulando-a às lutas


dos trabalhadores em geral organizados em sindicatos e partidos políticos que tomem
como horizonte um projeto de emancipação humana.

As categorias centrais desses movimentos são particularidade, subjetividade,


diversidade cultural, regional e local. Recorrem geralmente às explicações subjetivistas
e idealistas, atribuindo um peso forte aos chamados processos de mudanças de valores e
atitudes e as motivações dos “atores” envolvidos. O espaço para conflito social e
político entre as classes antagônicas, que tomam como centro a discussão em torno da
categoria trabalho e sua relação com a propriedade privada, é desconsiderado ou
deslocado para o campo simbólico da cultura, dos valores, da sensibilidade popular e da
subjetividade. As contradições são analisadas a partir desse eixo, sem tecer vínculo e
relações com a totalidade. O caminho traçado, aparentemente mais cômodo e de
percurso rápido e bem definido, é menos revelador: do particular ao particular.

A ressalva que fazemos às correntes de pensamento de historiadores e


sociólogos atuais – os que tratam dos chamados “novos movimentos sociais”,
os que estudam a memória das pessoas comuns, os que ocupam da história
das mentalidades coletivas ocultando o universo social que está por trás do
universo mental, o refúgio no mundo particular, as análises sobre a clínica, a
loucura, a prisão e a sexualidade, por exemplo – é o abandono dos grandes
espaços econômicos e sociais, o refluxo social para o simbólico, a recusa do
pensamento central e da totalidade racional. Na falta de um projeto coletivo,
as pesquisas fazem-se mais no âmbito do pessoal e do local.
(VENDRAMINI, 2000:48-49).

Vendramini considera que apesar da presença desses movimentos nas últimas


décadas, que, de certa forma, garantiram um espaço relevante, estes “não substituem as
classes e nem ocupam o centro dos embates, à medida que enfocam apenas problemas
setoriais” (2000:50).

Consideramos que esse processo de deslocamento da análise mais crítica e


estrutural em direção ao campo simbólico e subjetivo acentua o perigo da fragmentação
do conhecimento, que traduz a sociedade atual, em que o desengajamento, a
dessindicalização, o individualismo e o consumismo exacerbado imperam plenamente.
Esse universo restrito situa-se a um passo da cultura da violência e de certo desespero
coletivo em que se insere a sociedade atual, apontando para o acirramento de valores
insuficientes como mais competição e individualismo.
37

Segundo Petras, esse processo de deslocamento vem inter-relacionado a uma


mudança no pensamento e nas ações dos intelectuais, que articulam o descontentamento
social com as lutas políticas contra o Estado classista claramente determinado.

O período entre o final dos anos 70 e os anos 80 testemunhou uma


transformação fundamental nos intelectuais latino-americanos: uma mudança
do marxismo para as políticas liberal-democráticas, do apoio aos
movimentos do poder popular às instituições parlamentares burguesas, do
igualitarismo à mobilidade social, do coletivismo a um obscuro “bem-estar
social”, do anti-imperialismo à “interdependência”. (1996:21)

Nesse sentido, é importante interrogarmos até que ponto o MST toma como
centro de sua prática e de seu processo formativo as questões referentes a uma crítica
mais radical à sociedade, tentando desvelar os seus fundamentos, ou se aproxima um
pouco mais das categorias centradas dos “novos movimentos sociais”, ou, ainda, se
tenta conformar essas duas correntes, o que o levaria a uma “subordinação” desavisada
à primeira alternativa.

VENDRAMINI expressa uma formulação em que o MST é apresentado como


um contraponto aos “novos movimentos sociais”.

Em contraposição aos movimentos sociais que enfocam apenas problemas


específicos quando os problemas são globais e acabam reivindicando uma
política setorial que não trará mudanças de fato na sua situação social, o
Movimento dos Sem-Terra constrói, por trás das suas lutas características, um
movimento propriamente político que alcança as raízes do sistema de poder,
ao agrupar populações cujo conflito incide nos alicerces de um sistema – o
direito de propriedade. Suas características[...]possibilitam a construção de
um espaço favorável à formação e autoformação da sua base, que incide na
forma de pensar e agir dos sem-terra, da sua trajetória de vida, do intercâmbio
com outras pessoas e do contexto em que vivem. (2000:51)

Para Antunes (1998:109-110), as ações do MST e sua luta pela reforma agrária
consolidam-se como um exemplo de organização que contesta a lógica do capital e do
mercado, devendo servir como fonte de inspiração para a esquerda sindical no sentido
de atuarem na construção de uma sociedade para além do capital.

Por sua vez, Martins (2000) avalia criticamente a atuação de movimentos que
reivindicam a reforma agrária em permanente confronto com o Governo, como, por
exemplo, as posições do MST e da Comissão da Pastoral da Terra - CPT, definindo a
questão agrária como essencialmente histórica, que tem sua própria temporalidade, ou
seja, um tempo conjuntural histórico, diferente da conjuntura política e eleitoral, ou
38

presa a um determinado governo, sendo permeada de contradições, dilemas e tensões


que mediatizam a dinâmica social e, conseqüentemente, a dinâmica política. No seu
ponto de vista,

MST e CPT querem uma reforma agrária que atinja as causas, que são causas
históricas, que se tornaram causas institucionais e políticas, sem, entretanto,
oferecerem perspectivas de saída política para elas no marco da lei e da
ordem. Pois, para isso é preciso ganhar eleições e não as ganhando é preciso
estar disponível para a negociação política de questões como essa, que são
questões sociais e nacionais, suprapartidárias, como foi a abolição da
escravatura. É aí que a credibilidade e a legitimidade do confronto se perde.
(Martins, 2000: 124.).

Já FURTADO, contrapondo-se às acusações feitas pelo governo de Fernando


Henrique Cardoso (1995-2002) à ação do MST de incentivo aos saques, ocorridos nos
anos de 1998 e 1999, principalmente na região Nordeste, atingida fortemente pelo
problema da seca, observa que,

O MST é um movimento legitimo, que é respeitado e já demonstrou que tem


grande responsabilidade, não improvisa nada. O MST partiu de uma situação
de desleixo do governo... Há pouco tempo, fiz uma declaração pública, na
Europa, dizendo que o MST é o mais importante movimento social já
ocorrido no Brasil, neste século. (1999:27).

BEZERRA NETO, por sua vez, assegura que

O MST difere de todos os movimentos de luta pela terra que existiriam na


história do Brasil por constituir-se num movimento nacionalmente organizado
e por possuir uma proposta socialista de sociedade. Essa nova sociedade se dá
através da formação educacional implementada pelo movimento, nas regiões
de acampamento e assentamentos de trabalhadores rurais sem terra.(1999:18)

Como se vê, encontramos uma certa concordância dos teóricos em relação ao


MST enquanto um Movimento crítico ao sistema capitalista em função da construção e
defesa do socialismo.

Martins é o único que destoa desse quadro, já que questiona o MST no sentido
de que busca atingir as causas da problemática da terra, cobrando, ao Movimento,
contudo que ele busque alternativas dentro da ordem. O ponto de partida de sua análise
é, portanto, diferente daqueles outros autores que buscam investigar no MST o seu
núcleo revolucionário.
39

Sua análise, no entanto, merece atenção, pois expõe uma contradição do MST: a
luta pela reforma agrária, pela propriedade coletiva da terra, dentro dos marcos de uma
sociedade capitalista que tem como fundamento a propriedade privada. Exibe seu
caráter mais político que incide em sua articulação de parcerias com o Governo para se
manter organizado, amortecendo a sua legitimidade de movimento que, em princípio,
luta por uma sociabilidade para além do capital.

Vendramini, porém, assinala que o MST tem um caráter revolucionário e que se


preocupa com as questões do campo político e econômico, envolvendo hoje
trabalhadores rurais das mais variadas situações: parceiros, meeiros, arrendatários,
agregados, assalariados permanentes, temporários, pequenos proprietários e
trabalhadores do campo desempregados.

A autora ressalta que, ao conquistar a terra, a luta do Movimento continua na


perspectiva de garantir uma política que contribua com a permanência do homem do
campo e que não cause uma nova situação de exclusão social, conforme os termos de
sua exposição. Em síntese, acredita que o MST questiona fundamentalmente a ordem,
opondo-se ao direito vigente da terra, criticando explicitamente a estrutura agrária que
traz como conseqüência, a exclusão social.

A idéia de formação de uma personalidade coletiva nos integrantes do MST


contraria o discurso dominante de algumas correntes históricas, pois não se
caracteriza em termos de individualidade, mas de comunidade, num momento
em que as noções de coletividade e de classe estão fora de moda, sendo
colocadas em evidência noções como gênero, “raça”, “etnia” ou “preferências
individuais”, sujeitos racionais”, “autonomia política” etc[...] O MST é um
movimento de luta pela terra que manifesta preocupações com os desafios das
lutas em geral, tem um projeto e uma estratégia política de transformação
radical da sociedade. (2000:58 e 60).

Essa autora conclui sua análise, advogando a idéia de que, diante da natureza e
das características específicas do MST, não se encontra uma identificação automática
desse Movimento com os chamados “novos movimentos sociais”.

Apesar do socialismo ser considerado por muitos como uma utopia do


passado, seu conteúdo continua presente na consciência coletiva das pessoas.
Ao entrevistar os assentados e ouvi-los falar que são a favor da reforma
agrária, de um sistema público de saúde, da educação pública e de qualidade
para todos, que são contra os monopólios privados, constata-se que estão a
favor dos componentes do socialismo. (VENDRAMINI, 2000:64-65).
40

Observa-se nas próprias produções do MST uma certa demarcação que contribui
com a análise sobre a nossa controvérsia inicial que interpela sobre a afinidade ou
distanciamento do MST com o modelo dos chamados “novos movimentos sociais”.

Para Stédile, na própria análise da gênese do MST, encontramos sua


caracterização de movimento social.

Não podemos desvincular o surgimento do MST da situação política do Brasil


naquela época. Ou seja, o MST não surgiu só da vontade do camponês. Ele só
pode se constituir como um movimento social importante porque coincidiu
com um processo mais amplo de luta pela democratização do País. A luta pela
reforma agrária somou-se ao surgimento das greves operárias, em 1978 e
1979, e à luta pela democratização da sociedade. (2000:22).

Interpelado sobre afirmação do professor José de Souza Martins, em entrevista ao


Jornal Sem Terra22, onde o teórico diz ser o MST o maior partido camponês da América
Latina, Stédile afasta essa tese, afirmando que o MST pretende ser uma organização de
natureza popular, sindical e política, mas não partidária.

[...]Na minha opinião, o professor José de Souza Martins é o maior sociólogo


das questões rurais do Brasil. Parece-me que ele, na entrevista citada, procura
contrapor a diferença existente entre um movimento e uma organização. Ali,
diz que a tendência de um movimento social é a de desaparecer uma vez
atingidos seus objetivos ou perdida sua capacidade de pressionar. Ou se
transforma em organização partidária ou de outro tipo. O MST, segundo o
professor, já deixou de ser movimento e se transformou numa organização.
Conseguiu dar estatura política a uma luta popular. Transformou-se num
“partido popular agrário”, nas palavras dele, apesar de não ter programa e
organização propriamente partidários. Quais são os elementos que ele utiliza
para justificar essa afirmação? É a forma como funcionamos. Mas isso não é
necessariamente uma questão partidária[...] Queremos ser organizados com
características populares, sindicais e políticas de outro tipo. Não somos uma
organização partidária, nem queremos ser, nem devemos ser. (2000:37-38)

Na acepção de Navarro, Moraes, Menezes, que analisam a segunda fase da


história de organização dos MST (final de 1986 e 1993), este teria aderido a um ideário
leninista, recusando-se à contribuição da até então mediadoras Igrejas Católicas,
priorizando gradativamente ações de confronto, em virtude de uma nova orientação
interna que privilegiava esta tática de luta. Na avaliação dos autores,

[...]a rápida adesão a um ideário leninista sacrificou até mesmo a orientação


do jornal da organização, transformado em mero instrumento de “agitação e
propaganda”. Neste período, decidiu-se também organizar este movimento
22
Entrevista concedida ao Jornal do MST, em 1996, v. 15, p. 5. Trata-se de uma publicação mensal que
busca retratar a luta pela reforma agrária e a história do movimento camponês no Brasil.
41

social como um “movimento de quadros” (e não de “massa”, como se


pensava no primeiro momento), aos poucos não podendo mais ser
identificado como um “movimento social”, no sentido sociológico da
expressão. Tais mudanças repercutiram diretamente nos processos de
formação de jovens agricultores, nas escolas mantidas pelo Movimento, que,
cada vez mais, destinam-se a manter a disciplina, a motivação e a unidade
política interna entre seus militantes intermediários. (1999:28-29)

Diante da profunda crise atual do capital, torna-se imperioso confrontar essas


questões relativas ao MST e aos "novos movimentos sociais" acopladas às discussões
em torno da crise do sindicalismo brasileiro e da atual configuração do capital. Para
tanto, exporemos a seguir um quadro analítico sobre essa problemática.

Utilizamos, para a elaboração desse quadro, as análises de Antunes (2001), que


procura desvelar essa problemática, relacionando-o com a crise estrutural do capital,
recolocando a tese da centralidade do trabalho na formação societal contemporânea.

Apoiado em Mészáros23, Antunes analisa o capital enquanto um sistema


metabólico de controle social.

A construção do sistema de capital é idêntica à emergência de suas mediações


de segunda ordem. De fato, o capital, como tal, nada mais é do que uma
dinâmica, um modo meio totalizante e dominante de mediação reprodutiva,
articulado com um elenco historicamente específico de estruturas envolvidas
institucionalmente, tanto quanto de práticas sociais salvaguardadas. É um
sistema de mediações claramente identificável, o qual em suas formas
convenientemente desenvolvidas subordina estritamente todas as funções
reprodutivas sociais - das relações de gênero familiares à produção material,
incluindo até mesmo a criação das obras de arte - ao imperativo absoluto da
expansão do capital, ou seja, da sua própria expansão e reprodução como um
sistema de metabolismo social de mediação (MÉSZÁROS 1995:117 apud
ANTUNES, 2000:20-21).

Dessa forma, observa-se uma total subordinação das diversas e complexas


necessidades humanas aos imperativos do capital e à reprodução do valor de troca,
expoente maior do interesse de auto-valorização e expansão do capital.

Compreendemos que os "novos movimentos sociais" estariam assim cumprindo


o papel de legitimar o desenvolvimento das mediações de segunda ordem24 do capital,

23
MÉSZÁROS, István. (1995) Beyond Capital (Towards a Theory of Transittion), Merlin Press,
Londres. Em português, a obra foi traduzida com o título Para além do capital: São Paulo. Boitempo,
2002.
24
Para Antunes, fundamentado em Mészáros, o sistema metabólico do capital nasceu como resultado da
divisão social que operou a subordinação estrutural do trabalho ao capital, que para Mészáros constitui
um período específico da história da humanidade, não sendo conseqüência de nenhuma determinação
ontológica inalterável. Essa subordinação estruturou um sistema de mediações de segunda ordem que
42

indubitavelmente importante para o seu controle social metabólico, apesar de aparecer


como lutas por uma sociedade mais humana, mais justa e solidária,

Assim situamos a natureza desses movimentos e a própria crise do sindicalismo


no Brasil, mais especificamente da Central Única dos Trabalhadores - CUT, como parte
do traço marcante do capital: a produção de riqueza se converte no propósito de toda a
humanidade, criando um hiato, insuperável dentro dos limites dessa lógica, entre valor
de uso e valor de troca, que ergue uma estrutura de mando vertical (determinação
vertical)25, que instaura uma divisão hierárquica do trabalho, viabilizando um novo
sistema de metabolismo social em que as mais específicas e insuperáveis necessidades
humanas (como respirar26) submetem-se às necessidades de ampliação do valor de troca
e, conseqüentemente, de produção de capital.

Dessa forma, qualquer tentativa de crítica ao capital e à sociedade


contemporânea não pode perder de vista a noção de que o que estamos vivendo hoje faz
parte de uma crise estrutural do capital, o qual não põe limite para a sua expansão,
configurando-se como um sistema, em última instância, ontologicamente incontrolável.

sobredetermina suas mediações básicas, suas mediações de primeira ordem. Para efeito de
esclarecimento, sinteticamente, as mediações de primeira ordem, têm como objetivo a preservação das
funções vitais da reprodução individual e societal, fundada pelas determinações ontológicas
fundamentais: o intercâmbio e interação do homem com a natureza, dados pela ontologia singularmente
humana do trabalho. As mediações de segunda ordem atingem de forma profunda essas finalidades de
primeira ordem. Assim, cada uma das formas de mediação de primeira ordem é subordinada aos
imperativos do capital, introduzindo elementos fetichizadores e alienantes em função do controle social e
metabólico do capital, em que prevalece a divisão social hierárquica que subsume o trabalho ao capital, o
valor de uso ao valor de troca, o atendimento das necessidades genuinamente humanas aos interesses de
expansão e autovalorização do capital. As mediações de segunda ordem têm como núcleo constitutivo o
tripé capital, trabalho e Estado, que são dimensões fundamentais do sistema, materialmente inter-
relacionadas, sendo impossível superá-las sem a eliminação completa do conjunto de suas determinações.
(Ver Antunes, 2000: 19-22).
25
Analisando a estrutura de comando do capital sobre o processo de trabalho, Mészáros afirma que “esse
controle é exercido tanto horizontal como verticalmente tal como os imperativos estruturais emergentes
da divisão do trabalho capitalista o prescrevem (sob seus múltiplos aspectos funcionais e
sociais/hierárquicos). [A dimensão vertical] corresponde diretamente à estrutura de comando do capital,
sem paralelo na história, cuja função é salvaguardrar os interesses vitais do sistema dominante. [...]
assegurar a expansão contínua da mais-valia com base na máxima exploração praticável da totalidade do
trabalho.[...]Tais interesses devem ser assegurados graças ao funcionamento adequado da estrutura de
comando do capital, qualquer que seja o escopo e a complexidade da organização horizontal (a
fragmentação/divisão e simultânea reunificação funcional) do total das jornadas de trabalho
capitalisticamente utilizáveis”(2002:622-623).
26
Essa afirmação toma assento numa elaboração que Antunes faz sobre o Toyotismo no Japão, apoiado
em Satoshi Kamata, um estudioso do modelo toyotista que o classifica como a “fábrica do desespero”.
"De modo metafórico: se o trabalhador respirava, e enquanto respirava havia momentos em que não
produzia, urgia produzir respirando e respirar produzindo, e nunca respirar não produzindo. Se pudesse
o trabalhador produzir sem respirar, o capital permitiria, mas respirar sem produzir, não. (ANTUNES,
2000:204)
43

Nesse sentido, essa sua natureza expansionista, que ocasiona a sua


incontrolabilidade, tem como conseqüência o aparecimento dos defeitos estruturais nos
mecanismos de controle do sistema, expressando uma ausência de unidade.

Qualquer tentativa de criação ou sobreposição de unidade às estruturas sociais


reprodutivas internamente fraturadas e fragmentadas é problemática e por
certo temporária. A unidade perdida deve-se ao fato de que a fratura assume
ela mesma a forma de antagonismo social, uma vez que se manifesta por
meio de conflitos e confrontações fundamentais entre forças sociais
hegemônicas alternativas. Tais antagonismos são moldados pelas condições
históricas específicas, dotadas de maior ou menor intensidade, favorecendo,
porém, predominantemente o capital sobre o trabalho...(ANTUNES,
2000:24).

É válido observar que o que falta aos novos movimentos sociais e sindicais da
chamada esquerda democrática, a inter-relação em suas análises entre o particular e o
global, encontramos em abundância nas determinações do capital, que, por meio de seu
mando vertical controla e aprisiona toda a sociabilidade humana, desde a mais
específica, como a respiração, aos mais complexos processos de tomada de decisão do
campo econômico, favorecendo sempre a supremacia dos mais fortes sobre os mais
fracos.

Em relação ao capital, temos nas análises recorrentes de Antunes a Mészáros um


desenho categorial do que seja o capital. Em síntese, apreendemos que o capital
constitui-se num modo de metabolismo social totalizante, com deficiências estruturais
inelimináveis, em razão da sua natureza de busca incessante de expansão tornando-o
incontrolável e com uma lógica essencialmente destrutiva.

Dessa forma, qualquer análise que se pretenda crítica e radical, tem que tomar
como pano de fundo essa definição do que seja o capital em sua contemporaneidade e
sua crise estrutural que remete aos indivíduos e à natureza em geral, a determinação de
ajustamento de suas necessidades e ações a sua viabilidade produtiva, com
conseqüências devastadoras para o planeta.

Segundo Antunes, diante dessa estruturação crítica profunda do capital, uma


crise, por assim dizer, de caráter cumulativo, endêmico e mais ou e menos permanente,
diferentemente dos ciclos com intervalos relativamente longos de expansão alternados
com crise, presencia-se hoje, no interior dos Países capitalistas avançados, o
desenvolvimento de "administração das crises", como estratégia do capital e do Estado
para deslocar as contradições atuais. (idem: 27)
44

Compreendemos que as causas e as pautas de luta específicas que atualmente


caracterizam a atuação dos novos movimentos sociais e do sindicalismo brasileiro
podem ser incluídas nessa busca do capital em superar seus defeitos estruturais,
quando esses movimentos se mobilizam em torno de uma crítica à conjuntura
desumana da chamada globalização e do neoliberalismo.

Na verdade, isso pode contribuir efetivamente para a viabilização ideológica do


capital, dentro de sua busca por superação dos seus defeitos estruturais, mediante a
administração das crises com o apoio do Estado, que tem como estratégia importante a
submissão de todas as dimensões da vida humana (inclusive seu poder contestatório)
aos imperativos de sistema global de capital, desde as mais íntimas relações
interpessoais e familiares até os processos de decisão dentro dos grandes monopólios
industriais.

Nessa perspectiva, é importante conhecer mais profundamente os mecanismos


utilizados pelo capital conjugado às ações do Estado para deslocamento dessas
contradições e defeitos estruturais próprios do modelo vigente. Para tanto, é necessário
situar, ainda que de forma breve, as suas conseqüências para o mundo do trabalho, o
que nos leva, particularmente, para o âmbito do movimento operário e sindical, mas
nos permite, ainda, estabelecer os vínculos com os outros movimentos sociais, já que a
análise desses elementos constitutivos pode contribuir com uma apreensão mais
totalizante dessa crise.

Antunes (2000: 198) inicia essa tematização apresentando uma noção ampliada
da forma de ser da classe operária contemporânea, em bases marxistas, enquanto
alternativa para se incorporar o coletivo dos trabalhadores.

[...]Uma noção contemporânea da classe trabalhadora deve incorporar a


totalidade dos trabalhadores assalariados. A classe trabalhadora hoje é mais
ampla do que o proletariado industrial do século passado, embora o
proletariado industrial moderno se constítua no núcleo fundamental dos
assalariados, desse campo que compõe o mundo do trabalho, uma vez que ele
é centralmente o trabalhador produtivo. Quer ele realize atividades materiais
ou imateriais, quer atuando numa atividade manual direta, quer nos pólo
avançados das fábricas modernas, exercendo atividades mais "intelectualizas"
(por certo em número muito mais reduzido), às quais se referiu Marx ao
caracterizá-lo como "supervisor e vigia do processo de produção”
(Grundrisse).

Nesse sentido, a expressão classe-que-vive-do-trabalho, utilizada por Antunes, é


uma tentativa do autor em foco, de caracterizar a ampliação e de entender o proletariado
45

hoje. Trata-se de uma denominação que tenta dar conta da complexidade e


heterogeneidade em que vive hoje a classe dos que vivem da venda de sua força de
trabalho.

Em suma, nessa nomenclatura se incluiriam todos os trabalhadores produtivos e


improdutivos que vivem da venda de força de trabalho em troca de salário e que não
possuem os meios de produção. São os trabalhadores que incorporam a totalidade do
trabalho social: assalariados produtivos e improdutivos, trabalhado terceirizados 27 do
setor de serviços e os trabalhadores do campo. A exceção seria para os chamados
gestores do capital, que são parte constitutiva da classe dominante, pois têm um papel a
cumprir frente ao controle e gestão do capital.

Quando Antunes trata do proletariado rural, “... que vende sua força de trabalho
para o capital, os chamados bóias-frias das regiões agroindustriais” que vende sua força
de trabalho como parte constitutiva dos trabalhadores hoje, da classe-que-vive-do-
trabalho. (idem: 1995), nos remete ao debate sobre os trabalhadores rurais engajados no
MST.

Nesse caso peculiar, nem todos os trabalhadores rurais são, foram ou pretendem
ser assalariados. O aporte categórico do assalariamento para o MST, talvez não seja
suficiente para incluí-lo na classe-que-vive-do-trabalho. O delimitador poderia ser
aquele trabalhador (operário ou camponês), que depende do seu trabalho, e não
contando com a exploração do trabalho alheio, para viver, e, ainda, os trabalhadores que
não possuem os meios de produção, pois, mesmo com a conquista da terra em seus
assentamentos, os trabalhadores rurais mantêm um árduo processo de luta por condições
que lhes permitam permanecer e sobreviver no campo28, o que significa que são
estruturalmente dependentes da lógica do capital, que subordina tudo em função de sua
expansão e auto-valorização.

Esse recorte sobre a conformação da classe trabalhadora hoje nos leva a pontuar
as características principais da problemática sobre as metamorfoses do mundo do
trabalho em curso nas últimas décadas, particularmente nos países capitalistas
27
Antunes inclui ainda nessa denominação os trabalhadores temporários e terceirizados que compõem o
subproletariado que são "sempre desprovidos completamente de direitos... porque é o proletariado
precarizado no que diz respeito às suas condições de trabalho e desprovido dos direitos mínimos do
trabalho. (idem: 200)
28
Vale lembrar as ocupações dos prédios públicos sob a coordenação do MST em busca de recursos
públicos para projetos que viabilizem a agricultura familiar, além de políticas que atendam suas
necessidades básicas, como educação, saúde, construção de estradas para escoamento de sua produção,
dentre outras.
46

avançados, com conseqüências devastadoras para o terceiro mundo, assinalando, com


ANTUNES, suas tendências, como se expressa o autor:

Começo afirmando que se pode observar um processo múltiplo: de um lado


verificou-se uma desproletarização do trabalho industrial, fabril, manual,
especialmente (mas não só) nos países de capitalismo avançado. Por outro
lado, ocorreu um processo intensificado de subproletarização, presente na
expansão do trabalho parcial, precário, temporário, que marca a sociedade
dual no capitalismo avançado. Efetivou-se também uma expressiva
"terceirização" do trabalho em diversos setores produtivos, bem como uma
enorme ampliação do assalariamento no setor de serviços; verificou-se
igualmente uma significativa heterogeneização do trabalho, expressa pela
crescente incorporação do contingente feminino no mundo operário. Em
síntese: houve desproletarização do trabalho manual, industrial e fabril;
heterogeneização, subproletarização e precarização do trabalho. Diminuição
do operariado industrial tradicional e aumento da classe-que-vive-do-
trabalho. (idem: 211)

Nesse sentido, percebemos que o capital conseguiu de forma global ampliar as


esferas de assalariamento e de exploração do trabalho, através de uma nova
configuração presente na precarização, na subproletarização e na terceirização. Não
assistimos, porém, ao fim do trabalho, e sim à intensificação da exploração do trabalho.
O aumento da exploração da força humana de trabalho, seja ela mais intelectualizada ou
não, já que independente da natureza do trabalho, sempre está em função do processo de
criação de valores, e essa criação é resultante de um trabalho coletivo, socialmente
combinado29.

ANTUNES, tratando de se contrapor à tese do fim do trabalho e retomando a


centralidade do trabalho, afirma:

[...] Ao contrário, penso que há uma nova interação do trabalho vivo com o
trabalho morto, há um processo de tecnologização da ciência que, entretanto
não pode eliminar o trabalho vivo, ainda que possa reduzi-lo, alterá-lo,
fragmentá-lo. Mas a tragédia do capital é que ele não pode suprimir
definitivamente o trabalho vivo, não podendo, portanto, eliminar a classe
trabalhadora. (idem)
O conhecimento das determinações essenciais da crise do capital nos permite
compreender com maior clareza as questões relativas aos “novos movimentos sociais” e
à crise sindical, já que o aparecimento dessas circunstâncias históricas é atado à
complexa crise estrutural do capital. Nesse sentido, a superação das questões de

29
Para maiores detalhes, ver: MARX, Karl, Capítulo Inédito de O Capital, em que o autor conceitua
trabalho produtivo como trabalho socialmente combinado em função da subsunção do trabalho ao capital,
ou seja, como trabalho coletivo que participa direta ou indiretamente do processo de valorização do
capital.
47

exploração e operação de uma fatia do real, como a emancipação das mulheres, deve ser
articulada à luta de classe, já que,

A emancipação frente ao capital e a emancipação do gênero, são momentos


constitutivos do processo de emancipação do gênero humano frente a todas
as formas de opressão e dominação. Assim como a rebeldia dos negros
contra o racismo dos brancos, a luta dos trabalhadores imigrantes contra o
nacionalismo xenófobo, dos homossexuais contra a discriminação sexual,
entre as tantas clivagens que oprimem o ser social hoje. Eu diria que para
pensar a emancipação humana e da luta central contra o capital, esses
elementos que estou expondo são decisivos. São, portanto, múltiplas as lutas
emancipatórias[...]Articular as ações de classe com as ações de gênero torna-
se ainda mais decisivo. (idem, p. 203).

Percebemos, assim, uma necessária articulação entre as lutas específicas,


particulares, com o projeto de sociedade de emancipação humana plena em que a vida
de todos poderá ser provida de sentido. Desse modo, a luta ecológica, o movimento
feminista e os demais movimentos sociais ganharão vitalidade quando articularem suas
autênticas e justas lutas à denúncia da lógica destrutiva do capital.

Nesse sentido, a própria luta pela terra desenvolvida pelo MST, que traz em sua
pauta as suas necessidades particulares tais como: formação de seus professores, uma
educação voltada para a cultura do campo, discussão a respeito das questões de gênero
e etnia, inserção de crianças, jovens e adultos em seu processo de formação política,
deve ser atada à afirmação da luta de classes e da construção do socialismo.

Em relação à nossa inquietação inicial, percebe-se que o MST parece aproximar-


se da perspectiva do modelo dos chamados “novos movimentos sociais”, quando trata
das questões mais singulares, porque recorre às categorias mais subjetivas e simbólicas,
como o resgate da cultura do povo do campo, retratada em vários de seus documentos,
elegendo para isso um momento específico em todas as suas ações diárias: a mística,
sem articular essas problemáticas particulares a uma crítica mais radical ao capital,
desvelando suas reais determinações.

Em outras propostas, quando tratam da reforma agrária como um processo de


derrubada das três cercas, a do capital, da ignorância e do latifúndio, percebe-se um
esforço em articular as dimensões específicas como a educação a uma análise mais
estrutural da sociabilidade capitalista.

Nesse sentindo, no início deste nosso debate apresentamos o pensamento de


alguns autores sobre essa relação entre o MST e os “novos movimentos sociais”. Entre
48

eles, destacamos Antunes, que, como já indicamos aqui, apresenta uma análise positiva
sobre o MST em termos de sua radicalidade. O MST, para ele, se constitui ao lado da
rebelião de Chiapas no México, em importantes exemplos das novas formas de
confrontação social contra o capital. A esse respeito, analisa a emergência do MST
como,

[...]o mais importante movimento social e político do Brasil rural, fazendo


renascer e ressurgir a luta dos trabalhadores do campo e convertendo-a no
centro da luta política brasileira e da nossa luta de classes, é o nosso mais
significativo exemplo da força e da necessidade de retomada, em bases novas,
da centralidade das lutas sociais no Brasil. O MST, em verdade, tem se
constituído no principal catalizador e impulsionador das lutas sociais recentes
e, pelos laços fortes que mantém com setores sociais urbanos, tem
possibilitado visualizar a retomada das ações sociais de massa no Brasil, num
patamar possivelmente superior aquele vivenciado nos últimos anos. (idem:
248).

Esta afirmação de Antunes é baseada no fato de que, para ele, o MST tem,
primeiramente, sua prática voltada para o movimento social do campo e não para a ação
institucional e parlamentar, sendo, esta última, conseqüência da luta social.

Em segundo lugar, por ter uma estruturação nacional, com intensa base social
que lhe dá dinâmica, vitalidade e movimento, possibilitando aos trabalhadores Sem
Terra apostar numa vida dotada de sentido na medida em que,

O MST lhes permite lutar por algo muito concreto, que é ter a posse da
terra por meio da ação e resistência coletivas. Isso dá a esse movimento
muita força e vigor. Na brutal exclusão social do País, há um manacial
de força social a ser organizada pelo MST. E quanto maior for sua
importância, quanto maiores forem seus laços com os trabalhadores
urbanos, mais sua experiência ajudará na retomada das lutas sindicais
de classe no Brasil. E o fato de o MST ter como eixo de sua ação as
lutas sociais concretas tem sido decisivo como fonte de inspiração
também para a esquerda sindical, para que esses setores não se vejam
envolvidos no ideário das parcerias, ideologicamente subordinado ao
capital, mas atuem de modo direto, como um movimento sindical,
social e político capaz de participar da construção de uma sociedade
para além do capital. (idem).

Por último, reconhece que apesar de ser um movimento de trabalhadores rurais,


vem implementando em suas lutas os movimentos dos trabalhadores excluídos da
cidade, os desempregados que retornam ao campo, “resultando numa síntese que
aglutina e articula experiências e formas de sociabilidade oriundas do mundo do
49

trabalho rural e urbano” (idem:249), retomando nesse processo de luta as duas


vertentes mais importantes das lutas sociais mais recentes no Brasil fruto da composição
entre Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Bases da Igreja Católica,
que tem formado ideologicamente seus militantes dentro do ideário e da práxis de
inspiração marxista.
50

CAPÍTULO 2

OS PARADIGMAS DOMINANTES NO CAMPO DA FORMAÇÃO DOCENTE:


DA PEDAGOGIA DAS COMPETÊNCIAS À ESCOLA CIDADÃ

Aprendi com o MST, mesmo diante de todas as


suas contradições e ações de saques,
acampamentos, marchas e assentamentos, que a
vida humana está acima da propriedade
privada.

(Militante do MST)

As concepções que embasam a assim chamada pedagogia das competências,


subsidiária das pedagogias consignadas no modelo “aprender a aprender”, integram
hoje ampla corrente educacional que domina o campo da formação docente.

Nessa direção, o estudo em tela analisa primeiramente os princípios do lema


“aprender a aprender” no âmbito do Relatório da Comissão Internacional da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco),
conhecido como Relatório Jacques Delors, focalizando, em seguida, a análise dos seus
desdobramentos na versão contemporânea da teoria educacional, que marca as
concepções dos autores que advogam os novos paradigmas da educação no campo da
formação docente e sua interlocução com a defesa da cidadania planetária e escola
cidadã, que, sem dúvida, são ideais intimamente associados.

É necessário explicitar que, para procedermos à análise do conjunto dessas


concepções e propostas, reunimos as reflexões em torno das categorias socialismo,
democracia e cidadania, com respaldo nos estudos de Toledo (1994) e Tonet (1997),
Maia e Jimenez (2003), Antunes (1999), Leher (1998), dentre outros autores, que nos
possibilitaram situá-las na perspectiva critico-dialética sobre as questões educacionais
postas à sociedade contemporânea.

O texto Educação: Um tesouro a descobrir é o resultado do trabalho de uma


comissão escolhida pela Unesco com o objetivo de refletir sobre educar e aprender
para o século XXI. Essa Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI,
51

foi organizada após a Conferência Geral da Unesco, em novembro de 1991, onde o


diretor-geral Frederico Mayor convidou Jacques Delors para presidir essa Comissão, a
qual reuniu quatorze personalidades de todas as regiões do mundo, advindas de
horizontes culturais e profissionais diversos.

Como bem sabemos, a preocupação com a educação do século XXI teve sua
origem na Conferência de Jomtien em 1990, na Tailândia, promovida pela ONU, em
parceria com outros organismos internacionais, entre eles a Unesco, sob o patrocínio
do Banco Mundial.

Financiada pela Unesco, a referida Comissão foi criada oficialmente no início de


1993, com um mandato de dois anos (1992-1995) com a tarefa de “... optar e
determinar o que era essencial para o futuro, numa dialética entre as evoluções
geopolíticas, econômicas, sociais e culturais, por um lado, e as possíveis contribuições
das políticas de educação, por outro” (DELORS, 2001:26930).

É preciso registrar que este envolvimento da Unesco com a publicação de


estudos internacionais não consistiu sua primeira experiência. Tem-se, a título de
exemplo, em 1971, o trabalho de uma comissão composta de sete membros, sob a
liderança do antigo presidente do Conselho de Ministros e Ministro da Educação
francês Edgar Faure, que tinha como objetivo “definir as novas finalidades de
educação, diante da rápida transformação do conhecimento e das sociedades, das
aspirações do indivíduo e os imperativos da compreensão internacional e da paz”.
(idem). O trabalho dessa comissão resultou no relatório Aprender a Ser, de 1972,
lançando à época o conceito de educação permanente, problematizando a organização
e as bases do sistema educacional tradicional.

A Comissão presidida por Jacques Delors definiu seis pistas de reflexão sobre
as finalidades individuais e sociais do processo educativo: educação e cultura;
educação e cidadania; educação e coesão social; educação, trabalho e emprego;
educação e desenvolvimento; e educação, investigação e ciência. Essas pistas foram
complementadas pelo estudo de três temas transversais: as tecnologias da
comunicação; os professores e o processo pedagógico; e financiamento e gestão.

30
Utilizamos nesse trabalho a 6ª edição da publicação do Relatório Educação: Um tesouro a descobrir,
da Editora Cortez em 2001. A primeira edição é de 1996. O título original desse documento é
LEARNING: THE TREASURE WITHIN. Report to Unesco of the International Commission on
Education for the Twenty-first Century
52

É importante observar que a Comissão contou com a colaboração de grupos de


trabalho com participantes que representavam uma vasta gama de atividades, profissões
e organizações relacionadas com a educação formal e não formal, permitindo, segundo
o Relatório, uma profunda troca de pontos de vista sobre tudo o que se relaciona com a
educação. Toda a metodologia baseou-se em consultas às organizações governamentais
e não-governamentais, entrevistas por correspondências, envio de questionários a todas
as comissões nacionais da Unesco, realização de audições com intelectuais e
personalidade de renome, dentre outros instrumentos.

Num exame mais minucioso sobre essa metodologia, percebemos que, em


nenhum momento, se presenciou, pelo menos no que está exposto no Relatório, um
trabalho de consulta às organizações sindicais dos profissionais de educação. O
Relatório, porém, trata de toda uma política de formação docente, quando tenta apontar
as competências necessárias do bom professor, versando inclusive sobre as condições de
trabalho docente.

Outro fato, digno de nota, é que, dentre os quatorze membros da Comissão,


somados aos seus quatorze conselheiros extraordinários e 109 pessoas e instituições
consultadas, não se registra qualquer representação direta do Brasil. Por outro lado, tem-
se, nesse quadro, a representação forte do Banco Mundial com quatro indicações de
representantes diretos.

Um exemplo estratégico desse novo papel que a educação passou a desempenhar


sob o patrocínio do Banco Mundial foi a própria promoção da Conferência em Jomtien,
na Tailândia, onde, como já revelamos, foi aprovada uma Declaração em que os
representantes de mais de cem Países se comprometeram a aumentar a oferta da
educação básica para a população mundial, fundamentada na idéia de que este nível é
satisfatório às necessidades básicas de aprendizagem31.

Dentre as personalidades membros do conselho extraordinário que contribuiu


com o Relatório, percebe-se a presença das áreas ligadas à ciência, à tecnologia e ao
meio ambiente. No que se refere às ciências humanas, temos três representações ligadas
à área de cultura e uma à de direito. No quadro dessas personalidades, encontramos o
nome de duas pessoas que tiveram uma relação com o campo empresarial,
respectivamente, do setor metalúrgico (Volkswagen) e do setor petrolífero. Entre os

31
Em 1993, um novo encontro se realizaria para dar continuidade aos debates iniciados em Jomtien.
Desta vez, reuniam-se os nove Países mais populosos do mundo, entre os quais se incluía o Brasil.
53

membros da Comissão principal, constatamos a presença de personalidades mais


próximas das questões educacionais, como antigos ministros da educação e
pesquisadores da área de ciências políticas e sociais, como é o caso do próprio
presidente Jacques Delors, antigo Ministro da Economia e das Finanças da França e
antigo Presidente da Comissão Européia no período de 10 anos (1985-1995).

Como missão, temos a seguinte formulação de natureza ampla e, digamos,


pretensiosa, a saber,

[...]Efetuar um trabalho de estudo e reflexão sobre os desafios a enfrentar pela


educação nos próximos anos e apresentar sugestões e recomendações em
forma de relatório, que poderá servir de programa de renovação e ação para
quem tiver de tomar decisões, e para os responsáveis oficiais no mais alto
nível. Este relatório deverá propor perspectivas, tanto políticas como
relacionadas com a prática da educação, que sejam ao mesmo tempo
inovadoras e realistas, tendo em vista a grande diversidade de situações, de
necessidades, de meios e de aspirações, segundo os Países e as regiões.
Despenar-se-á, principalmente, aos governos, da ajuda internacional em geral
e, mais em particular, do papel que cabe a Unesco, a Comissão deverá
também se esforçar por formular, nesse relatório, recomendações úteis aos
organismos internacionais. (DELORS, 2001:272).

Para cumprir tal missão, a Comissão ressalta que orientará todo esse processo de
reflexão por uma questão central que envolve todas as outras: que tipo de educação
necessitaremos amanhã, e para que gênero de sociedade? (idem). Para tanto,
considerará uma reflexão sobre as grandes linhas do desenvolvimento humano no
século XXI, e sobre os novos imperativos resultantes desse contexto para a educação.

Observemos que em uma época em que os educadores ditos do campo


progressista não se movem mais pela investigação sobre as concepções de homem,
educação e sociedade, prática tão presente nos anos 1980 e hoje considerada
ultrapassada e de legado ortodoxo, paradoxalmente, encontramos como estratégia do
relatório da Unesco, ideais e finalidades que se orientam, à sua maneira, por essas
concepções, com uma fundamentação liberal e conservadora. O embasamento nessas
concepções, ao nosso ver, evidencia o caráter de educação interessada, afirmando o
seu princípio de não neutralidade.

Dessa forma, os representantes da Unesco e de seus parceiros parece que não só


sufocaram nossos ideais de educação revolucionária como também se apropriaram,
em parte e ao seu estilo, de nossa forma de desvelar o real, com intenções e interesses
bem contrários a uma educação de cunho emancipatório e verdadeiramente livre da
54

opressão capitalista, só possível em uma sociedade para além da lógica da acumulação


do capital.

Toda essa ostentação analítica vem permeada pelo grande segredo da Unesco
que consistiu na proposta de que esse Relatório orientasse as ações dos organismos
públicos ou privados em relação à elaboração das políticas de educação com a
motivação de um amplo debate público em torno da reforma da educação nos Países
membros da Unesco.

Nessa reforma, o trabalho do Banco Mundial entrou com toda força,


substituindo a Unesco na coordenação de projetos sociais, imprimindo a sua ideologia
nas políticas educacionais, que se releva na redução dos custos sociais, mas, ao mesmo
tempo, ao priorizar o ensino elementar, introduzindo uma política de ‘alivio da pobreza’
nos Países periféricos com forte recomendação, através de seus “pacotes”, para o
desenvolvimento de uma educação básica com maior eficiência interna e uma efetiva
redução dos custos educacionais.

Para consecução de tal iniciativa, foram estabelecidos, no Relatório em tela, seis


princípios que nortearam o trabalho da comissão, que aqui citamos na íntegra, dada a
importância destes para a nossa posterior apreciação.

- “Em primeiro lugar, a educação é um direito fundamental da pessoa humana e


possui um valor humano universal: a aprendizagem e a educação são fins em si
mesmos; constituem objetivos a alcançar, tanto pelo indivíduo como pela sociedade;
devem ser desenvolvidos e mantidos ao longo de toda a vida.

- Em segundo lugar, a educação, formal e não-formal, deve ser útil à sociedade,


funcionando como instrumento que favoreça a criação, o progresso e a difusão do
saber e da ciência, e colocando o conhecimento e o ensino ao alcance de todos.

- Em terceiro lugar, qualquer política de educação se deve orientar pela tripla


preocupação da eqüidade, da pertinência e da excelência; procurar associar,
harmoniosamente, estes três objetivos é uma tarefa crucial para todos os que
participam do planejamento da educação ou da prática educativa.

- Em quarto lugar, a renovação da educação e qualquer reforma correspondente devem


se basear numa análise refletida e aprofundada das informações de que dispomos a
respeito das idéias e das práticas que deram bons resultados, e na perfeita
compreensão das exigências próprias de cada situação particular; devem ser
55

decididas de comum acordo, mediante pactos apropriados entre a partes interessadas,


num processo de médio prazo.

- Em quinto lugar, se a grande variedade de situações econômicas, sociais e culturais


exige, evidentemente, diversas formas de desenvolvimento da educação, todas
devem levar em conta os valores e preocupações fundamentais sobre os quais já
existe consenso no seio da comunidade internacional e no sistema das Nações
Unidas: direitos humanos, tolerância e compreensão mútua, democracia,
responsabilidade, universalidade, identidade cultural, busca da paz, preservação do
meio ambiente, partilha de conhecimentos, luta contra a pobreza, regulação
demográfica, saúde.

- Em sexto lugar, a responsabilidade pela educação corresponde a toda a sociedade;


todas as pessoas a quem diga respeito e todos os parceiros – além das instituições
que têm essa missão específica – devem encontrar o devido lugar no processo
educativo”. (idem: p. 274-275)

Toda essa parafernália de princípios funda-se na perspectiva liberal de educação


enquanto um instrumento importante para a redução das desigualdades sociais, aliada
ao resgate da identidade cultural dos povos, ocultando a essência dessa proposta que
busca apresentar e orientar uma reforma na educação que atinge de morte a educação
pública e gratuita tão cara às lutas históricas dos movimentos de educadores e aos
movimentos sociais e sindicais em geral.

Não é sem querer que aparecem essas formulações de escola cidadã,


democrática, participativa, tolerante, responsável. A perspectiva da Unesco,
representante bem obediente das demandas do Banco Mundial, que, por sua vez,
corresponde fielmente às ordens do seu mandatário maior, o capital, é trazer a
educação e, conseqüentemente, os educadores, para o seu lado. Trata-se de um severo
processo de envolvimento manipulatório do campo da educação, no sentido de aliviar
os graves problemas sociais causados pela crise estrutural do capital, no sentido de
amenizar os confrontos sociais. Todos agora são chamados a participar nesse processo
de reforma da educação, sem distinção de cor, raça, credo, gênero ou classe social.

No que toca a questão do envolvimento manipulatório da educação em favor do


capital, orquestrado pelo Banco Mundial, Jimenez, recorrendo a Leher, assinala,
56

Confirma Leher (2001) que o capital em crise arquitetou um plano de obra


que combinou tanto medidas de estabilização financeira e de ajustes
estruturais, quanto ações ideológicas, ademais, denunciando que, não obstante
o espaço de proporções jamais vistas dedicado à educação nos documentos do
Banco Mundial - denominado pelo autor como o Ministério Mundial da
Educação - um exame mais criterioso indica que a preocupação principal que
move as ações daquele Banco não se referem propriamente ao
desenvolvimento da educação dos Países periféricos, mas antes e, sobretudo,
à estabilidade política, a ser garantida por um sistema educacional capaz de
produzir as adequadas “disposições ideológicas” nos trabalhadores, diante das
severas condições do mercado de trabalho 32. (LEHER, apud JIMENEZ,
2003:0333)

Para atingir esse objetivo, ora explicitado, sem encontrar resistência forte de
muitos educadores e da sociedade em geral, esse paradigma presente no Relatório
utiliza uma estratégia de esboçar um quadro analítico sobre a sociedade atual,
examinando seus problemas e apontando suas possibilidades, com a perspectiva de
encontrar caminhos de ajustamento da educação às demandas do que denominam a
sociedade do futuro, do conhecimento e ou da informação.

Já no prefácio, apresentam a educação como uma utopia necessária, ante os


múltiplos desafios do futuro. A educação é definida como um trunfo indispensável à
humanidade na sua construção dos ideais de paz, da liberdade e de justiça social. Na
avaliação de Leher (1998), a política de promoção dos direitos humanos alardeada pelo
Banco Mundial está inserida na estratégia de aliviamento da pobreza, considerada um
instrumento indispensável para a superação da crise atual do capital.

Na conclusão dos seus trabalhos, a Comissão fez questão de afirmar a sua fé no


papel essencial da educação no desenvolvimento contínuo, tanto das pessoas como das
sociedades, não como um “remédio milagroso”, não como um “abre-te sésamo” de um
mundo que atingiu a realização de todos os seus ideais, mas, entre outros caminhos e
para além deles, como uma via que conduza a um desenvolvimento humano mais
harmonioso, mais autêntico, de modo a fazer recuar a pobreza, a exclusão social, as
incompreensões, as opressões, as guerras... (DELORS, op. cit. 2001:11)

32
Para melhor dimensionar-se a colossal importância estratégica atribuída ao complexo educacional, pelo
Banco Mundial, deve ser levado em conta, segundo informa o autor, o fato de que é, precisamente, no
campo da educação que aquele organismo mais investe em consultorias, assessorias especializadas em
treinamento, reformas curriculares, gestão, avaliação...
33
Conferir artigo Consciência de classe ou cidadania planetária? Notas críticas sobre os paradigmas
dominantes no campo da formação do educador. Fortaleza: mimeo, 2003.
57

Assume a educação um lugar especial nas formulações da Comissão, papel este


destinado à humanização da sociedade em todos os seus aspectos, inclusive de recuo,
não superação, da pobreza e da exclusão social. Apesar de exporem que a educação não
é milagrosa, a tarefa que se impõe a ela é, no mínimo, mistificadora.

Nesse sentido, a Comissão desenha uma análise conjuntural da sociedade atual,


afirmando que o final do século XX foi marcado pela violência, pelos progressos
econômicos e científicos, que foram desigualmente repartidos, ocasionando o aumento
do desemprego e dos fenômenos de exclusão social, inclusive, nos países ricos, além
dos perigos que ameaçam o ambiente natural. Nesse sentido a Comissão alerta:

Torna-se insustentável considerar o crescimento econômico a todo custo,


como a verdadeira via de conciliação entre progresso material e equidade,
respeito pela condição humana e pelo capital natural que temos obrigação de
transmitir, em bom estado, às gerações vindouras. (idem: p. 13)

Ao longo do Relatório, e na própria composição da Comissão e dos


conselheiros extraordinários, percebemos uma preocupação explícita com a questão
ambiental. É fato que grande parte dos membros da Comissão e das instituições e
personalidades envolvidas nesse Relatório, mantêm vínculos estreitos com organismos
que pesquisam e planejam o impacto das mudanças técnico-científicas no meio-
ambiente.

Desse modo, acreditam que a educação é um instrumento importante no sentido


de avaliar os problemas e afastar os riscos apontados pelo contexto da globalização
crescente e pela interdependência dos povos, que acarreta aumento das tensões entre
nações e entre grupos étnicos, além do plano das injustiças no campo econômico e
social. Torna-se então necessário pensar políticas educativas que contribuam para o
aprendizado de viver juntos nessa “aldeia global” delineada há pouco, na perspectiva
de uma reinvenção da democracia entre nações, regiões, cidades, comunidades...

Caberia então à política educacional a consecução de três nobres desafios:


contribuir para a construção de um mundo melhor, para o desenvolvimento humano
sustentável e para a compreensão mútua entre os povos, mediante a renovação de uma
vivência concreta de democracia. (idem: p.14). Para alcançar essas finalidades, a
Comissão defende a tese da educação permanente: colocar a educação ao longo de
toda a vida no coração da sociedade.
58

As reformas educativas são um destaque no Relatório. Advogam a idéia de que,


para alcançar uma educação democrática e efetivamente participativa, que respeite as
diferenças entre os povos, assim como as diferenças culturais e étnicas, contribuindo
para a convivência de todos na “aldeia global”, é imprescindível reformar a educação
com a participação de todos os envolvidos nos sistemas educativos.

Segundo o Relatório, são três os atores principais que contribuem para o


sucesso dessas reformas educativas: em primeiro lugar, a comunidade local, em
particular, os pais, os órgãos diretivos das escolas e os professores; em segundo lugar,
as autoridades oficiais; em terceiro lugar, a comunidade internacional,

[...] Quando as comunidades assumem maior responsabilidade no seu próprio


desenvolvimento, aprendem a apreciar o papel da educação, quer como meio
de atingir os objetivos societais, quer como uma desejável melhoria da
qualidade de vida. A este propósito, a Comissão chama a atenção para o
interesse de uma sábia descentralização, que conduza a um aumento da
responsabilidade e da capacidade de inovação de cada estabelecimento de
ensino. (idem: p. 25-26)

Toda análise da Comissão sobre a problemática da sociedade atual, ou seja, o


exame sobre a globalização, é acompanhada do anúncio das distorções, desigualdades
e disparidades sociais com o objetivo de justificar o importante papel da educação no
processo de democratização do conhecimento e, conseqüentemente, da sociedade. O
caminho a ser traçado, em tese, é da coesão social à participação democrática e
cidadã. Do crescimento econômico ao desenvolvimento auto-sustentável da
humanidade.

A educação tem, sem dúvida, um papel importante a desempenhar, se se quiser


dominar o desenvolvimento do entrecruzar de redes de comunicação que, pondo os
homens a escutar uns aos outros, faz deles verdadeiros vizinhos. (idem: p. 40)

A empreitada é de idealizar uma educação à prova da crise das relações


sociais. Esta é a formulação da Comissão. Para nós fica aqui evidente que é preciso
reformar a educação e o processo de ensino-aprendizagem no sentido de camuflar as
verdadeiras determinações das desigualdades sociais: a divisão de classes com
interesses antagônicos, fruto de uma sociabilidade capitalista fundada na propriedade
privada e na exploração do trabalho alheio. Uma sociedade em que todos, sem
distinção de cor, raça, sexo ou etnia, são subjugados à lógica da mercadoria.
Parafraseando os próprios idealizadores do relatório: arquitetar uma educação à
59

prova da crise estrutural do capital. Nesse sentido, contextualizando a questão da


formação docente, JIMENEZ assinala,
Sob o poder metabólico do capital (para fazer uso da precisa formulação de
Mészáros), por conseguinte, a formação e a prática docente são premidas
(COMO TUDO NA VIDA) a subordinar-se aos interesses do capital em crise.
Esse processo alarga, decisivamente, os caminhos para a privatização, o
aligeiramento e a fragmentação da formação docente, chamando para o
campo do idealismo mais tacanho, a direção teórico-prática dessa formação.
Nesse sentido, formulações e receituários da esfera do tecnicismo como do
humanismo – a rigor e historicamente contrapostos - vêm conjugar-se para
expurgar dos programas de formação do educador, quaisquer resquícios de
uma reflexão radicalmente crítica e contextualizada do fenômeno educativo.
As múltiplas teorizações que passam a desenhar o cenário da formação
docente representam, então, a renúncia a uma perspectiva educacional
fundada nas idéias de trabalho e práxis social, abdicando da formação de uma
consciência crítica que aponte para a superação do capital, isso feito pela
introdução ou (principalmente) reedição de categorias não classistas que
atendem, por exemplo, pelas denominações de globalização, holismo,
cidadania, planetariedade, sustentabilidade, dialogicidade,
transdisciplinaridade (op. cit. 2003:05).

Para concretizar essa reforma dos sistemas educativos, idealizados pela Comissão,
foi orquestrado um modelo de educação, centrado em saberes e competências
adaptáveis à chamada civilização cognitiva. No capítulo quarto do texto, encontramos a
definição do chamado Modelo das Competências, ou do que chamamos de Pedagogia
das Competências, que apresentaremos a seguir.

Nesse modelo, compete à educação “fornecer os mapas de um mundo complexo e


constantemente agitado, e ao mesmo tempo, a bússola que permita navegar através
dele”. (DELORS, op. cit. 2001:89). Daí surge a importância de reorganizar a educação
em torno de quatro aprendizagens, que constituem os pilares do conhecimento:
aprender a conhecer (aprender a aprender); aprender a fazer; aprender a viver juntos e
aprender a ser.

Desde o início dos seus trabalhos, os membros da Comissão compreenderam que


seria indispensável, para enfrentar os desafios do próximo século, assinalar novos
objetivos à educação e, portanto, mudar as idéias que se tem da sua utilidade. Uma nova
concepção ampliada de educação devia fazer com que todos pudessem descobrir,
reanimar e fortalecer o seu potencial criativo – revelar o tesouro escondido em cada um
de nós. Isto supõe que se ultrapasse a visão puramente instrumental da educação,
considerada a via obrigatória para obter certos resultados (saber-fazer, aquisição de
capacidades diversas, fins de ordem econômica), e se passe a considerá-la em toda a sua
60

plenitude: realização da pessoa que, na sua totalidade, aprende a ser. (DELORS, op. cit.
2001:90).

Analisando o efeito de tal pedagogia para a educação, e, mais especificamente, as


principais teorizações que têm dominado o campo da formação docente, Jimenez
(2003), avalia que, essa pedagogia das competências transfere o modelo de
competências do campo da sociologia do trabalho, do discurso empresarial para o
projeto educacional vigente.

[...]Assim, a competência, mais que o conhecimento ou a informação, poderá


garantir a sobrevivência num mundo (e num mercado) em constante mutação.
Ao modelo de competências, soma-se a noção de empregabilidade como meta
da formação do trabalhador, promovendo, de quebra, a individualização
acirrada dos saberes. Ou seja, o discurso dominante alimenta a noção de que
cada indivíduo pode e deve aprimorar determinadas competências que o
singularizarão, marcando um diferencial competitivo, traduzindo o
“marketing pessoal” que o distinguirá do conjunto dos demais candidatos às
escassas vagas do mundo do emprego. COMO POR EXEMPLO O
VOLUNTARIADO (op. cit. 2003:04).

Com efeito, Hirata (1994) lembra que tal modelo corresponderia ao chamado
padrão toyotista de produção com a conseqüente fragmentação e precarização do
trabalho, que se fortalece na redução dos empregos estáveis, passando a exigir
qualificações que tendem a ser substituídas por um “saber-ser”...

A adoção do modelo de competência implica um compromisso pós-taylorista, sendo


difícil de pôr em prática se não se verificam soluções (negociadas) a toda uma série
de problemas, sobretudo o de um desenvolvimento não remunerado das
competências dos trabalhadores na base da hierarquia, trabalhadores estes levados
no novo modelo de organização do trabalho a uma participação na gestão da
produção, a um trabalho em equipe e a um envolvimento maior nas estratégias de
competitividade da empresa, sem ter necessariamente uma compensação em termos
salariais. (HIRATA, 1999:132).

Como primeira competência descrita no Relatório, temos a do aprender a


conhecer (aprender a aprender), voltada para o desenvolvimento da aquisição dos
instrumentos de compreensão. Considera-se que esse tipo de aprendizagem pode
servir como meio e finalidade da vida humana, pois articula um elenco de saberes
codificados com o domínio dos próprios instrumentos do conhecimento. Habilita o
homem a compreender o mundo, pelo menos no que se trata das suas necessidades de
viver dignamente, desenvolvendo suas capacidades profissionais.
61

Um certo pragmatismo se apresenta nessa formulação, pois se advoga um saber


útil. Essa utilidade seria estabelecida de acordo com a necessidade de obter
capacidades intelectuais e técnicas, o que aproxima bem mais esse modelo do
aprender a fazer (ou usar) do que conhecer, apesar de apreciarem e apontarem o
despertar da curiosidade intelectual, estimulando sentido crítico e a compreensão do
real, mediante a autonomia do pensamento.

Esse pragmatismo é reforçado, quando adverte para a noção de que o


conhecimento é múltiplo e evolui infinitamente, o que torna “cada vez mais inútil
tentar conhecer tudo e, depois do ensino básico, a omnidisciplinaridade é um engodo”.
(DELORS, op. cit. 2001:91) Defendem, ainda, que é importante no processo de ensino
combinar a cultura geral com especialização em uma área.

Existe ainda, dentro do aprender a conhecer, a preocupação com o processo de


conhecimento que não se esgota e está sempre acontecendo em qualquer ocasião em
que o sujeito esteja inserido, como, por exemplo, na experiência do trabalho, à medida
que este se torna menos repetitivo e rotineiro, ou também fora dele, como bem aponta
Jimenez:

Tal empreendimento, certamente legítimo sob determinada ótica, há que ser


realizado, contudo, sem que se perturbe, por minimamente que seja, a ordem
social, melhor dizendo, a (des)ordem do capital, que, segundo interpretação
oposta, está na base dos gigantescos problemas e dificuldades que demarcam
o cotidiano do nosso planeta, pois será por força tão somente de sua vontade
autonomamente desabrochada numa escola competente e cidadã, que o aluno,
o indivíduo, contribuirá para a criação de um mundo mais justo e
democrático. Ora, essa concepção transmite-nos a falsa e cômoda ilusão de
que a luta pela construção das condições do bem estar social trava-se,
fundamentalmente, na intimidade e no silêncio de cada um de nossos
corações, desconsiderando as eloqüentes lições da história sobre o papel
essencial da luta política, coletiva, no processo de transformação da ordem
social que nega essas mesmas condições. (op. cit. 2003:07).

É válido observar, que ao tratar do trabalho, não se toma em consideração o


fato de que, na sociabilidade capitalista, temos a determinação do trabalho abstrato,
em que o aprender a conhecer deságua no aprender a servir, já que a natureza do
trabalho abstrato é em essência desumana e providencial ao capital.

Nessa perspectiva, o aprender a conhecer ou aprender a aprender,


compreendido pelos seus idealizadores como uma reforma dura de se processar,
62

resvala num pragmatismo disfarçado de ajustamento que desemboca no aprender a


fazer.

Sobre o aprender a fazer, outro pilar proposto pelos idealizadores desse


modelo, este é definido como uma segunda aprendizagem mais ligada diretamente à
questão profissional, mas que é indissociável do aprender a conhecer. Seu significado
não está preso àquele significado simples de preparar alguém para desenvolver uma
determinada atividade material ou como simples transmissão de práticas rotineiras,
embora reconheçam o valor dessas práticas.

Seria uma passagem da noção de qualificação para a de competência, já que se


torna forte as exigências de um profissional com competência pessoal e com domínio
cognitivo e informativo sobre os sistemas de produção.

O progresso técnico modifica, inevitavelmente, as qualificações exigidas pelos


novos processos de produção. As tarefas puramente físicas são substituídas por
tarefas de produção mais intelectuais, mais mentais, como o comando das
máquinas, a sua manutenção e vigilância, ou por tarefas de concepção, de estudo, de
organização à medida que as máquinas se tornam, mais “inteligentes” e que o
trabalho se “desmaterializa”. (DELORS, op. cit. 2001: 94)

Na acepção da Comissão, trata-se de um coquetel individual do trabalhador,


em que, a exemplo do que se faz nas empresas japonesas, desenvolve-se uma
personalização das tarefas. Os empregadores exigiriam agora, nesse contexto de
taylorismo às avessas, de seus “grupos de projeto” ou “coletivos de trabalho”, uma
competência que articule a qualificação em sentido estrito, adquirida pela formação
técnica e profissional, o comportamento social, a aptidão para o trabalho em equipe, a
capacidade de iniciativa, o gosto pelo risco, além da busca de um compromisso pessoal
do trabalhador, agora um agente de mudança, pois suas qualidades subjetivas inatas ou
adquiridas (saber-ser) se juntam ao saber-fazer.

Nesse aspecto, a Comissão sublinha a importância da educação no processo de


formação do trabalhador em função dessas aprendizagens, haja vista um contexto
marcado pelo que denominam “desmaterialização” do trabalho através da forte
evolução qualitativa e quantitativa do setor de serviços entre as atividades assalariadas
e que não produz mais um bem material, o que demandaria qualidades mais amplas e
subjetivas como a capacidade de comunicar, de trabalhar em equipe, de empreender,
63

gerir os conflitos e resolução dos problemas tanto relacionais e comportamentais como


operacionais e técnicos.

Na síntese realizada por Antunes, encontramos um criterioso diagnóstico sobre


os mecanismos utilizados pelo capital em resposta a sua crise estrutural e as
implicações para o movimento operário Em suas palavras:

[...] Particularmente nos últimos anos, como respostas do capital à crise dos
anos 70, intensificaram-se as transformações no próprio processo produtivo,
pelo avanço tecnológico, pela constituição das formas de acumulação flexível
e pelos modelos alternativos ao binômio taylorismo/fordismo entre os quais
se destaca, para o capital, especialmente, o modelo “toyotista” ou “japonês”
[...] Fundamentalmente, essa forma de produção flexibilizada busca a adesão
de fundo por parte dos trabalhadores, que devem assumir o projeto do capital.
Procura-se uma forma daquilo que chamei de envolvimento manipulatório
levado ao limite. (2000:190).

34
Examinando essas formulações, visualizamos a tendência que Frigotto (1995)
apontou como a cooptação do saber do trabalhador. Se antes o capital em seu processo
de acúmulo da mais-valia se contentava com a disponibilidade do saber prático-técnico
do trabalhador, agora exige que suas qualidades subjetivas, o seu saber, seja posto à
disposição dos interesses dos “homens de negócio”.

Analisando o pensamento empresarial nacional, é exigido do trabalhador que


apresente as seguintes competências:

Para se integrar no contexto da época atual e exercer eficazmente um papel na


atividade econômica, o indivíduo tem que, no mínimo, saber ler, interpretar a
realidade, expressar-se adequadamente, lidar com conceitos científicos e
matemáticos abstratos, trabalhar em grupos na resolução de problemas
relativamente complexos, entender e usufruir das potencialidades
tecnológicas do mundo que nos cerca. E, principalmente, precisa aprender,
condição indispensável para poder acompanhar as mudanças e avanços cada
vez mais rápidos que caracterizam o ritmo da sociedade moderna. (SILVA
FILHO, 1994: 87).

O argumento central dos empresários que se colocam a serviço da educação é o


de que uma força de trabalho educada é condição essencial, embora não suficiente, para
viabilizar estratégias produtivas centradas na capacidade de aprendizagem e inovação. A
ação tecnológica e a inovação das empresas são fenômenos dinâmicos e importantes
para uma economia competitiva.

34
FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo:Editora Cortez,
1995.
64

No entanto, a participação direta do empresariado no trato de questões da


educação e da escola é importante, por três razões: porque familiariza os
empresários com essas questões; porque no estado atual da educação
brasileira, é útil completar a ação do governo; e como atesta a própria
vivência dos empresários, é a empresa quem mais ganha quando a
comunidade onde se insere melhora seu padrão educacional.(idem, p. 88)

Sobre as repercussões do projeto do capital na educação do trabalhador,


recorremos a Frigotto:

Não compactuando com a tese do quanto pior melhor e com as perspectivas


apologéticas, parece-nos importante mostrar primeiramente que os novos
conceitos abundantemente utilizados pelos homens de negócio e seus
assessores - globalização, integração, flexibilidade, competitividade,
qualidade total, participação, pedagogia da qualidade e a defesa da educação
geral, formação polivalente e “valorização dos trabalhadores” - são uma
imposição das novas formas da sociabilidade capitalista tanto para estabelecer
um novo padrão de acumulação quanto para definir as formas concretas de
integração dentro da nova reorganização da economia mundial. (1993:150-
151).

Percebemos, assim, que não interessa a esse modelo a educação de natureza


ampla, ominilateral, na acepção de Marx. A finalidade de se sublinhar a importância da
educação vai no sentido de atender as mudanças do setor produtivo e do mercado
capitalista. O SER (do trabalhador) precisa de um complemento: ser para quem? Em
função de quê? “SER para o capital” e não a subjetividade na perspectiva Lukásciana...

[...] aqui, individualidade e totalidade são reeditadas de forma rigorosamente


divorciada da necessária radicalidade ontológica, saltando por cima das
mediações e particularidades concretas atadas ao complexo de determinações
econômico-políticas postas pelas relações capitalistas vigentes. Em
atendimento à ótica idealista, a complexa questão da individualidade humana
é metafísica e categoricamente concebida como uma simples e gratuita
condição de ser. Sem relação com a história de sua espécie. Sem relação com
a origem, contingência ou destino social traçado no jogo das relações de
classe. (JIMENEZ, op. cit. p. 07)

Compreendemos que a subjetividade esboçada no Relatório não parte, nem


poderia, da perspectiva Lukásciana, em que os indivíduos se relacionam, mediante o
trabalho enquanto atividade fundante do ser social, com a natureza e com os seres
sociais dotados de algum grau de auto-determinação, no sentido de construção de sua
omnilateralidade, como bem avalia Jimenez,
65

[...] Quão longe encontramo-nos, então, das formulações de Lukács em torno


das relações entre individuo e gênero, implicando as possibilidades de
desenvolvimento das singularidades particulares rumo ao essencialmente
humano – a condição de partícipe do gênero humano. Em absoluta oposição à
concepção de uma universalidade abstrata [...]o encontro individualidade-
generidade, ou seja, a realização do homem em sua autêntica
omnilateralidade, estaria mediada pelas lutas de classe. (op. cit. 2003:07)

A respeito da análise que fazem do trabalho parecem retirar do real o que se


apresenta como tendência do mercado que vem investindo no setor de serviços que
estariam no ramo, segundo a Comissão, das atividades imateriais o que justificaria, em
tese, a perda da centralidade do trabalho, como forma de mascarar e negar os conflitos
de classe. A redação do texto em foco legitima a tese de que o mundo/a história tem
seu fim nesse modo de produção capitalista, e para tanto a educação tem o papel de
tornar “mais humanas” as relações de trabalho no capitalismo. O que os consultores da
Unesco e da ONU apresentam como dimensão extremamente humana, de fato
representa um crime à humanidade e à educação, pois camuflam o perigo que se
apresenta ao planeta: a destruição de todas as formas de vida.

O que aparece como humano e eticamente correto é, na essência, desumano. A


educação não pode prestar esse (des) serviço: desumanizar ainda mais o tão
desintegrado ser social. O capital tenta formar mesmo é um trabalhador à “sua imagem
e semelhança”, apto a atender os interesses do mercado e nunca lutar a favor de sua
classe.

Analisando as reais determinações do capital, em sua crise inédita e de natureza


estrutural, Mészáros (2002), avalia que em relação ao futuro, o capital a priori rejeita
qualquer possibilidade da efetivação (existência) de um sistema de produção alternativa,
humanizante, gratificante e satisfatório, recorrendo ao argumento do fim da história com
a sociabilidade capitalista, ou seja, o fim da historia é o capitalismo.

Nessa perspectiva, o ter domina o ser em todas as esferas da vida. As


exigências brutalizantes do processo de trabalho capitalista destroem o eu real do sujeito
produtivo. Os sujeitos só são reconhecidos legitimamente na condição de consumidores
manipulados de mercadoria.

No estágio mais avançado do desenvolvimento histórico sob as condições da


produção generalizada de mercadoria, o fetichismo da quantificação domina
completamente a dimensão qualitativa do processo de produção. Mészáros chama esse
66

processo de PERVERSIDADE, ou seja, está relacionado ao modo intrinsecamente


contraditório e necessariamente articulado do próprio sistema produtivo do capital.

Esse modo particular de reprodução é sobrecarregado por uma contradição, por


fim explosivo, que transforma suas potencialidades em realidades destrutivas. Esta
virada da potencialidade positiva em destrutiva se aproxima quando o capital chega aos
seus limites cada vez mais perdulares, quando se chega ao limite da quantificação e
expansão no mundo de recursos finitos.

A terceira dimensão - aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros


(aprender a conviver) - é definida como um dos maiores desafios da educação.
Portanto defende-se a necessidade de se “conceber uma educação capaz de evitar os
conflitos ou de resolver de maneira pacífica, desenvolvendo o conhecimento dos
outros, das suas culturas, da sua espiritualidade”.(DELORS, op. cit. p. 96-97).

Teríamos assim, uma educação que agenciaria a descoberta progressiva do outro


mediante a participação em projetos comuns, que caracterizaria um método eficaz para
evitar conflitos. A descoberta do outro estaria intrinsecamente relacionada com a
descoberta de si e do mundo. Todo esse processo deve se desenvolver num contexto
igualitário, sem preconceitos e competição, patrocinando vivências de cooperações em
projetos coletivos construindo na criança e no adolescente uma visão “ajustada do
mundo”. Nesse sentido, é definido como missão da educação, seja ela oferecida pela
família, pela comunidade ou pela escola,

[...] Transmitir conhecimentos sobre a diversidade da espécie humana e, por


outro, levar as pessoas a tomar consciência das semelhanças e da
interdependência entre todos os seres humanos do planeta. Desde tenra idade
a escola deve, pois aproveitar todas as ocasiões para esta dupla aprendizagem.
Algumas disciplinas estão mais adaptadas a este fim, em particular a
geografia humana a partir do ensino básico e as línguas e literaturas
estrangeiras. (idem: p. 97-98)

Os idealizadores desse modelo propõem um método de ensino que contribua


para o reconhecimento do outro, criticando professores com posturas dogmáticas, que,
segundo eles, matam a curiosidade ou o espírito crítico de seus alunos, acabando por
serem mais prejudiciais do que úteis. É interessante que a crítica ora descrita serve a
estes educadores, que impõe para a educação um papel extremamente condizente com
uma sociedade desigual, determinando o que os alunos podem/devem pensar, como
devem se comunicar, como devem ser e o que devem fazer. A carapuça lhes serve...
67

São reconhecidos nessa proposta como legítimas atividades sociais, projeto de


cooperação no campo desportivo e cultural, além de participação nas ações de
renovação de bairros, de ajuda aos menos desfavorecidos, de ações humanitárias, dentre
outras. Não se percebe ao longo da exposição dos princípios desse modelo qualquer
referência à questão sindical, evidentemente, por não interessar à ordem vigente a
explicitação dos conflitos de classe. O grande lema que move essa proposta é o
ajustamento da educação às exigências da sociedade do conhecimento e ou da
informação, reduzindo e camuflando os conflitos de classe.

No mais ambicioso dos princípios, aprender a ser, que se norteia pelo apego ao
ideário da psicologia comportamental, encontramos a defesa da posição de que a
educação deve contribuir com a sociedade no sentido de melhor desenvolver a
personalidade das crianças e adolescentes, para agirem com maior autonomia,
discernimento e responsabilidade pessoal, além de suas potencialidades como: memória,
raciocínio, sentido estético, capacidades físicas e aptidão para comunicar-se.

Em suma, a educação deve contribuir para o desenvolvimento total da pessoa:


espírito e corpo. É válido reafirmar, conforme indicamos anteriormente, que este
princípio já fora desenvolvido por uma outra comissão, designada pela Unesco no ano
de 1972, que culminou com o relatório intitulado Aprender a ser. Isto revela, segundo os
formuladores desse Relatório mais recente, que já àquela época teria se registrado uma
preocupação com o processo de desumanização do homem relacionada com a evolução
da técnica.

A Comissão diz aderir ao postulado desse relatório, entendendo que o


desenvolvimento do ser humano, com toda sua complexidade e riqueza, “se desenrola
desde o seu nascimento até a morte, num processo dialético que começa pelo
conhecimento de si mesmo para se abrir, em seguida, à relação com o outro”. (idem: p.
101)

Percebemos que o atual relatório amplia os postulados do documento de 1972.


Percebemos ainda, que, mesmo em épocas diferentes, o referencial teórico-
metodológico que fundamenta esses relatórios reeditam antigas propostas de
pensadores importantes que marcaram o campo da educação. É nesse sentido que
Jimenez afirma processar-se mesclagem eclética de várias correntes do pensamento
educacional, sem que se analisem as suas diferenças.
68

De fontes diversas, que pretendem, explicitamente, incluir - deveríamos dizer,


adaptar ideologicamente? - Dewey e Piaget; ou inspirando-se fartamente em
Maturana e Leonardo Boff; passando mesmo, aqui e ali, por Paulo Freire,
além de resgatar dos arquivos da história, a ancestral noção de competência,
os ditos novos pensadores vão compondo o mosaico eclético de suas lições
para a educação e para a vida no século XXI, atestando, que, no plano teórico,
como no prático-político, na chamada era do conhecimento e da
comunicação, tudo há que ser resolvido pela via do acordo, da conciliação, do
somatório consensual de idéias, que justifiquem o projeto de preservação da
sociabilidade do capital, bem entendido. (op. cit. 2003: 06)

As críticas que tecemos, com base na apresentação das lacunas providenciais e


das contradições desse Relatório, têm como pressuposto mostrar seus limites, o que
nos levaria a não legitimar o discurso de que os educadores que não concordam com
eles estão contra a educação e, contra, conseqüentemente, a superação da educação
tradicional e tecnicista.

A atitude crítica frente aos postulados desse modelo não representa a defesa
dessa perspectiva de escola, mas é mister esclarecer que esse paradigma, dominante
hoje no seio acadêmico, na sua essência, representa os mesmos objetivos dessas
tendências da educação: a reforma (o ajustamento/adequação) da escola e da educação
em função dos desejos do capital. “A palavra de ordem é clara: reforma. Reforma da
escola, reforma das mentalidades; reforma do pensamento, como propõe Morin”
(JIMENEZ, op. cit. 2003:06).

Para atender às expectativas do mercado, às novas exigências sociais e


manipular as mentes mais críticas para aceitar o novo - que nada tem de novo e sim
trata-se de um remendo novo em calça velha – apregoa-se um processo de
desintoxicação do pensamento, mergulhando-as numa clínica de recuperação de idéias
mais leves e aparentemente mais cômodas. Numa analogia com a moda atual de
“costumização”, a alternativa é fazer aquilo que não se usou até o momento, ou já se
desgastou com o tempo, e enfeitar com discursos atraentes: um look novo para a
educação!

Assim, a educação é sempre convocada para a frente de batalha contra a mais


remota ameaça que possa assolar a lógica do capital. Na história recente do Brasil,
segundo avaliação de Leher (1998), registra-se que no governo de Fernando Henrique
Cardoso (1994-2002) teve-se a obediência servil a todas as recomendações formuladas
na Conferência de Jomtien. Como exemplo concreto disso, temos a criação do Fundo de
69

Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério


(Fundef), que representaria uma medida determinante no sentido de materializar a
municipalização/descentralização da Educação Básica. Também foram implementados
os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino fundamental, além de um
acervo de diretrizes curriculares desde a Educação Infantil, passando pela Educação de
Jovens e Adultos - EJA, até as diretrizes para os cursos de graduação das instituições de
ensino superior – IES.

No governo Lula, também se registra a subordinação aguda às formulações do


Banco Mundial. No Plano Plurianual do Governo Lula, o Banco Mundial acredita que
suas iniciativas oferecem a oportunidade de o Brasil garantir sua sustentabilidade
competitiva na economia globalizada. As propostas fazem parte do documento
"Políticas para um Brasil Justo, Sustentável e Competitivo" e foram submetidas ao
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), com aval do então
Secretário-Executivo, o Ministro Tarso Genro35, que declarou na ocasião que "o novo
contrato social em debate no governo Lula tende a incorporar parte da visão do Banco
Mundial. A visão do governo é fazer a modernização sem tirar direitos".

Assim sendo, o Banco Mundial retribuirá a exemplar disciplina do atual


Governo, contribuindo não apenas com suporte financeiro, mas, principalmente,
apoiando as reformas institucionais e políticas relacionadas aos aspectos de justiça,
sustentabilidade, competividade e governabilidade.

Nesse contexto de extremo controle sobre os sistemas de ensino, com processos


de avaliação e planejamento das diretrizes para as mais diversas modalidades de ensino,
existe no relatório uma explícita preocupação com a problemática da formação de
professores, retratada num capítulo intitulado Os professores em busca de novas
perspectivas. Nessa perspectiva, assinalam a importância do professor no
desenvolvimento dos indivíduos e da sociedade. A contribuição dos professores é para a
Comissão uma aposta alta. É defendida como crucial para preparar os jovens para
encarar o futuro com a devida confiança desde o ensino primário e secundário,
contribuindo ainda na compreensão e no domínio do fenômeno da globalização, o que
favoreceria a coesão social.

[...] Os professores têm um papel determinante na formação de atitudes –


positivas ou negativas – perante o estudo. Devem despertar a curiosidade,
35
Na atual Reforma Ministerial, promovida pelo governo Lula, em 23 de janeiro de 2004, Tarso Genro
passou a ocupar o Ministério da Educação e Cultura.
70

desenvolver a autonomia, estimular o rigor intelectual e criar condições


necessárias para o sucesso da educação formal e da educação permanente [...]
A importância do papel do professor enquanto agente de mudança,
favorecendo a compreensão mútua e a tolerância, nunca foi tão patente como
hoje em dia. Este papel será ainda mais decisivo no século XXI. Os
nacionalismos mesquinhos deverão dar lugar ao universalismo, os
preconceitos étnicos e culturais à tolerância, à compreensão e ao pluralismo,
o totalitarismo deverá ser substituído pela democracia em suas variadas
manifestações, e um mundo dividido, em que a alta tecnologia é apanágio de
alguns, dará lugar a um mundo tecnologicamente unido.(DELORS, op. cit.
p.152-153).

Essa gama de atribuições do bom professor, no entendimento da Comissão, é que


poderá contribuir com a melhoria da qualidade da educação, na medida em que sejam
melhorados o recrutamento, a formação, o estatuto social e as condições de trabalho dos
professores. Para tanto, existe a exposição de uma série de parâmetros que devem
orientar a formação dos professores. O cerne da relação pedagógica gira em torno da
relação aberta e de diálogo entre professor e aluno

É importante observar que existe por trás dessa apresentação das diretrizes para
a formação dos professores, toda uma perspectiva de controle do trabalho docente,
incluindo desde as exigências que lhe são feitas até “a que contrapartidas podem-os
aspirar – condições de trabalho, direitos, estatuto na sociedade” (idem). Como podemos
ver, até mesmo o direito de reivindicar algo deve ser orientado pela perspectiva desse
relatório que representa de fato os interesses de seu patrocinador maior: o Banco
Mundial. É justo então questionarmos: e como fica o aprender a ser do professor?

A proposta é recheada por um elenco de tarefas: capacidade de enfrentar


problemas e esclarecer os alunos sobre um conjunto de questões sociais, desde o
desenvolvimento da tolerância ao controle da natalidade, mas também que obtenham
sucesso em áreas em que pais, instituições religiosas e poderes públicos falharam.
(idem: 154). Em contrapartida,

Não se alude a qualquer “competência” que aponte para o exercício da


organização e da luta coletiva com vistas a tentar-se, no mínimo, eliminar da
sociedade, suas facetas neonazistas ou pedofílicas. Tampouco a submissão do
desenvolvimento tecnológico aos princípios e às práticas de mercado a
serviço da acumulação do capital, sem qualquer consideração ética, senão a
própria “ética” do mercado, é colocada como algo, para cuja superação valha
a pena lutar-se.(JIMENEZ, op. cit. 2003:7).
71

Nessa perspectiva, os professores são conclamados assim a preencher as lacunas


deixadas pela política pública da educação, agindo com responsabilidade na superação
dos problemas e corrigindo as graves disfunções da sociedade, reconstruindo os
elementos indispensáveis à vida societal e às relações interpessoais. Devem, ainda, ser
cooperativos com as reformas na educação, já que, segundo a Comissão, nenhuma
reforma nesse campo teve êxito contra ou sem os professores.

O professor deve estabelecer uma nova relação com quem está aprendendo,
passar do papel de “solista” ao de “acompanhante”, tornando-se não mais
alguém que transmite conhecimentos, mas aquele que ajuda os seus alunos a
encontrar, organizar e gerir o saber, guiando mas não modelando espíritos, e
demonstrando grande firmeza quanto aos valores fundamentais que devem
orientar toda a vida. (DELORS, op. cit. p.154).

O professor, nessa perspectiva, parece mais um guru intelectual do que um


profissional da educação. Suas tarefas se circunscrevem bem nos receituários de auto-
ajuda, exigindo dele um devotamento extremo e recaindo sobre ele, uma
responsabilidade para além de suas possibilidades, sem que este tenha, no mínimo, o
direito de indignar-se...

Pautam, assim, os membros da Comissão, a negação da possibilidade de ação


e organização sindical do professor não atrelada ao poder público ou privado, quando
afirmam que seria desejável que o diálogo entre as organizações de professores e
autoridades responsáveis pela educação melhorasse e que, ultrapassando as questões
salariais e as condições de trabalho, o debate se estendesse à questão do papel do
professor na consecução de reformas nos sistemas de ensino (idem: p.156).

Sobre como esse professor deve ser formado, aparecem as propostas de


privatização do ensino e da educação à distância. Advogam a idéia de que o saber pode
ser adquirido de diversas maneiras e em vários espaços, dentre estes a educação à
distância que apresentado como um caminho legítimo que vem se mostrando eficaz. O
importante é que não se perca de vista a importância, por parte do poder publico, da
qualificação e motivação dos professores. Aparece nessa formulação uma contradição,
pois, quando tratam da educação à distância no ensino primário e secundário, afirmam
que a escolarização básica é um passaporte para a vida, exprimindo um certo receio
quanto à educação à distância. Já quando tratam dos professores, já aceitam o processo
de formação através de técnicas de ensino a distância como uma fonte de economia e
que permite que os professores continuem a assegurar o seu serviço.
72

Nesse sentido, descrevem detalhadamente algumas estratégias e requisitos


necessários, como: recrutamento e seleção de professores, formação inicial e
continuada, controle do desempenho e da evolução dos saberes, reformas nos sistemas
da gestão, participação de agentes externos à escola, qualidade dos meios de ensino 36
(aposta no potencial da tecnologia) e, por fim, condições de trabalho, no sentido de
manter os professores motivados a enfrentar as situações difíceis, o que, nas palavras de
Jimenez, acarreta sérias conseqüências na organização da classe trabalhadora.

Com efeito, a categoria de trabalhadores, a noção de classe trabalhadora


dissolve-se, aqui, no individualismo exacerbado, na busca frenética,
cotidianamente incentivada, pela aquisição do conjunto de competências (do
qual não está ausente a própria agressividade competitiva, a disponibilidade
absoluta de aceitar passivamente as regras do jogo empresarial e a crença
mística no poder do pensamento positivo...) que possa operar o milagre de
que aquele abençoado indivíduo isolado, contra tantos concorrentes, encontre
seu lugar ao sol no mercado de trabalho. (op. cit. p 4)

Um desses requisitos para uma proposta de formação docente de qualidade é a


aproximação do quadro de professores à área de ciência e tecnologia, no sentido de
desenvolver pesquisas que contribuam com a luta contra o subdesenvolvimento e a
pobreza.

[...] Dada a importância da pesquisa na melhoria do ensino e da pedagogia, a


formação de professores deveria incluir um forte componente de formação
para a pesquisa e deveriam estreitar-se as relações entre os institutos de
formação pedagógica e a universidade. É preciso tentar em especial recrutar e
formar professores de ciência e tecnologia e iniciá-los nas novas tecnologias.
De fato, por todo o lado, mas sobretudo nos países pobres, o ensino científico
deixa a desejar, quando todos sabemos quanto é determinante o papel da
ciência e da tecnologia na luta contra o subdesenvolvimento e a pobreza.
Importa, pois, em particular nos países em desenvolvimento, remediar as
deficiências do ensino das ciências e da tecnologia, nos níveis elementar e
secundário, melhorando a formação de professores destas disciplinas.
(DELORS, op. cit. p. 162)

Sabemos que a educação está dentro do programa de ajustes do Banco Mundial


para os Países em desenvolvimento. Para tanto, Leher (1998), avalia que a partir dos
anos 1990 que marcam um período de crise mundial do capitalismo e de hegemonia dos
Estados Unidos, particularmente, as novas mudanças têm um cunho político que
36
É questionável o fato de que sobre a importância dos Meios de ensino o relatório cita uma passagem de
um documento do Banco Mundial, o que revela a orientação político-ideológica do Banco na elaboração
da política da Educação Mundial A saber: A qualidade da formação pedagógica e do ensino depende em
larga medida da qualidade dos meios de ensino e, em especial, dos manuais.In: Banco Mundial:
Priorities and Strategies for Education Washington. D.C., 1995.
73

aparenta uma preocupação com a pobreza absoluta, passando a conceituar a tarefa de


desenvolvimento com algo relacionado com a pobreza de homens e mulheres
desprovidos de condições mais elementares de vida. Assim, dentro desse ajuste
estrutural, aliviar a pobreza dos Países pobres é de fato imprescindível para os paises
ricos, porque a manutenção da pobreza em níveis sustentáveis é um pré-requisito para o
desejável futuro de crescimento para todos.

Dessa forma, com o agravamento da crise do endividamento nos paises


periféricos, abriu-se um espaço favorável para o Banco Mundial e para o conjunto dos
organismos multilaterais de financiamento, a desempenhar o principal papel de agentes
no gerenciamento das relações de crédito internacional e na definição de políticas de
reestruturação econômica, através de programas de ajuste estrutural, dentre eles, a
reforma da educação.

Nesse mesmo cenário, aparece como o ponto mais intrigante das propostas em
torno da formação docente a recomendação de que a formação contínua se desenvolva
em tempo parcial no sistema educativo e que os professores assumam um período de
trabalho ou de estudo no setor econômico como forma de contribuir para aproximação
do saber e do saber-fazer. Nesse mesmo sentido, recomendam, ainda, que os professores
exerçam outras profissões, fora do contexto escolar, a fim de se familiazarem com
outros aspectos do mundo do trabalho, como a vida das empresas, que não conhecem
bem.

Incentivam igualmente o recrutamento e a inserção de outros profissionais de


áreas distintas por períodos determinados e para tarefas particulares, como solução para
desenvolver competências que o corpo docente não domina, como, por exemplo, ensinar
minorias refugiadas ou estabelecer uma ligação mais estreita entre ensino e o mundo do
trabalho.

Nessas últimas formulações, apreendemos o quanto esse modelo se destina a


atender às demandas do mundo do trabalho, leia-se, do mercado. Consiste, ainda, no
mais declarado ajustamento da educação aos interesses do capital com presença forte
desde a íntima e particular relação professor-aluno à mais ampla proposta da gestão e
avaliação de controle do sistema de ensino.

A colaboração de especialistas exteriores à escola, a ligação com associações


para organizar contatos com o mundo do trabalho ou outras atividades sem ligação
74

direta com o trabalho escolar, são, dentre outras, atividades fortemente recomendadas
como estratégias para encorajar o ensino da qualidade. As parcerias são o ponto forte
para que se conquiste a qualidade do ensino, mediante o incremento de acordos e
contratos de parceria com as famílias, o meio econômico, o mundo associativo, os
atores da vida cultural, dentre outros segmentos sociais. O envolvimento da população,
da comunidade, é aclamado pela Comissão em todos os aspectos e formas de atuação
descrita acima.

Em síntese, a implementação do ajuste estrutural implica consideráveis


transformações políticas e sociais. Para tanto, o Banco Mundial recomenda, por meio de
seus “pacotes”, uma educação básica com maior eficiência interna e uma efetiva
redução dos custos educacionais, sugerindo, portanto, a adoção das seguintes medidas:
treinamento de docentes, revisão dos métodos pedagógicos e utilização de novos
recursos materiais no ensino, como a televisão e a informática, assim como a expansão
do número de matriculados por sala de aula.

Sobre esse tipo de formação, é mister recorrer a Gramsci, no sentido de


encontrar uma análise condizente com o interesse real de formar o trabalhador com base
no princípio da totalidade. Gramsci discorda das escolas que transformam o
industrialismo no seu princípio pedagógico de forma interessada e mesquinha, tornando
o trabalho apenas como objeto material, um utensílio individualizado e uma ocupação
humana a contribuir para a obtenção de mais lucro, fonte agressiva de enriquecimento
da classe burguesa, voltando-se contra o trabalhador e nunca a seu favor, no sentido de
lançar bases do processo de revolução e de libertação do proletariado.37

Gramsci acredita, ao contrário, no trabalho como processo de desenvolvimento


científico, criativo e ético da história da humanidade e como possibilidade concreta de
alcançar a liberdade. O apelo a uma renovação da escola do trabalho, para ele, é mera
retórica, pura falácia e atende os interesses de uma minoria de indivíduos.38

No modelo das competências, avaliamos que a escola é chamada a preparar o


aluno para servir ao capital, tornando-o submisso, passivo, flexível, acomodado às suas
exigências. Um condicionamento no sentido de aceitar a situação que o cerca, sem
desenvolver um pensamento crítico, livre e independente. Percebe-se que os alunos são

37
Cf. NOSELLA, Paolo. A Escola de Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1992.
38
Ibidem
75

treinados a responder questões secundárias que em nada contribuem para a formação de


uma atitude verdadeiramente crítica.

Apresentaremos a seguir um quadro analítico sobre os principais pressupostos e


concepções que fundamentam a denominada Pedagogia das Competências, consignada
nesse Relatório, que, para nós, representa um marco decisivo nas políticas educacionais
dos chamados países em desenvolvimento.

Para desenvolvermos de forma rigorosa nossa análise, elegemos inicialmente


como parceiro desse estudo o trabalho de Maia e Jimenez 39(2003), que trata
especificamente de apontar o contexto político-social do surgimento dessa Pedagogia
das Competências para, em seguida, apresentar seus principais pilares, articulando-os
com um exame crítico de suas contradições.

A gênese da elaboração da Pedagogia das Competências, reconhecem os autores,


pode ser situada no contexto da referida Conferência Mundial ocorrida em Jomtien, em
1990, com o tema Educação para Todos, o que representou um marco no pensamento
educacional contemporâneo.

Como já assinalamos, a Conferência foi promovida pela ONU em parceria com


outros organismos internacionais, como Unesco, Unicef, PNUD e Banco Mundial, e, no
decorrer dos quatro anos após a realização da Conferência, foi desenvolvido um
trabalho de uma Comissão Internacional Sobre a Educação para o Século XXI, em que
encontramos a definição dos princípios e dos pilares da educação do futuro, da educação
na perspectiva do século XXI, já apresentados anteriormente de forma detalhada. Aqui
tentaremos examinar criticamente os seus pressupostos.

Essa Pedagogia apresenta como justificativa de seu nascimento a tentativa de


atender às demandas impostas pelas mudanças políticas, sociais e econômicas da
sociedade atual, superando esse quadro educacional que separa as dimensões
fundamentais do ser humano: aprender a ser; aprender a conhecer, aprender a fazer;
aprender a conviver, partes indissociáveis do que essa Pedagogia chama de a capacidade
de aprender a aprender, síntese das quatro dimensões da aprendizagem, o que levaria a
mudanças no espaço escolar incidindo na relação professor-aluno, como nas reformas
educacionais em geral.

39
MAIA Osterne; JIMENEZ Susana. A CHAVE do saber: um exame crítico do novo paradigma
educacional concebido pela ONU. In: Trabalho, Educação e Luta de Classes: a pesquisa em defesa da
história. Fortaleza: Brasil Tropical, 2003. p. 105-125.
76

O modelo das competências foi eleito pela ONU e seus parceiros como aquele
capaz de habilitar o trabalhador para atuar no atual cenário, em que já se vislumbrava
para o século XXI uma sociedade do conhecimento ou da informação, em que a
articulação entre o saber teórico, saber prático e demais dimensões do ser humano
assume um papel decisivo na proclamada civilização cognitiva.

Os teóricos desse modelo definem assim um quadrante para a educação em que,


conforme destacam MAIA e JIMENEZ,

O processo de aprendizagem passa a ter como objetivo dotar o aluno de


estruturas de pensamento que deverão emergir para substituir o acúmulo
quantitativo de informações. Caberá ao sujeito desenvolver como totalidade
sistêmica e como um leitor crítico do real, única forma de ajustar-se ao
mundo globalizado em que as informações são cada vez mais padronizadas e
efêmeras (idem: 106).

Percebemos, então, que ao sujeito crítico, é atribuído o papel de ajustamento às


demandas da sociedade do conhecimento que, necessariamente, inclui as demandas das
mudanças no mundo do trabalho, entenda-se, as demandas do mercado. A visão de
totalidade é abordada como sistêmica, sem espaços para as diferenças e antagonismos
de classes, mas sim enquanto preocupação com a harmonização do sistema em que os
conflitos sociais e de classe devem ser camuflados.

Nesse sentido, como forma de articular os principais pressupostos desse modelo


das competências, Maia e Jimenez apresentam uma criativa e irreverente síntese que
explica o título do artigo. A saber,

Esse modelo denominado por nós de CHAVE (C de conhecimento, H de


habilidade, A de atitude, V de valores e E de existencial), é base das atuais
reformas educacionais postas em vigor em muitos oaíses, inclusive no Brasil,
pois, em tese, apontaria para a superação dos complexos problemas
educacionais contemporâneos por dois motivos principais: - em primeiro
lugar, por sintonizar-se com as importantes mudanças econômicas, políticas e
sociais ocorridas no mundo; em segundo lugar, por integrar as quatro
dimensões centrais do processo de aprendizagem humana e, assim, superar os
problemas postos pelos paradigmas que focavam o processo em um, ou no
máximo, em duas esferas (e, mais grave, não conectadas) do saber (idem:
107).

Ao lermos esta citação fundada na análise das formulações dos principais


teóricos desse modelo, inicialmente tendemos a concordar com ele, mas, como bem
77

destacado pelos autores que tecem a crítica a essa Pedagogia, em tese, existe uma
preocupação com a problemática da educação que sem dúvida precisa ser superada, mas
a proposta desse paradigma não passa pela ruptura com o modo de produção capitalista,
que é de fato, quem produz essas cisões entre as ricas e complexas dimensões do ser
social.

Quem não concordaria com uma educação que articule as dimensões cognitivas,
afetivas, sociais, políticas, estéticas e instrumentais do ser humano? No entanto, da
forma como aparece, promove uma confusão entre os educadores em geral, que, em
conseqüência, promove a sua retirada40 do campo do materialismo histórico-dialético
em direção a esse pressuposto mais leve e cômodo, pois não aponta para a ruptura,
apenas mudanças cosméticas superficiais por dentro da ordem, que não arranham a
ordem estabelecida, não levando a lugar nenhum, ou seja, não construindo nada de
novo, apenas reeditando antigas propostas em tempos recentes.

Para conhecermos mais a fundo essa pedagogia das competências, torna-se


necessário a retomada da conceituação dos seus quatro pilares, aliada à crítica de suas
principais contradições e lacunas.

- Aprender a conhecer: dimensão centrada nas atividades teórico-cognitivas, o


que resultaria na utilização dos instrumentos de conhecimento de forma mais
fundamentada dinâmica e relacional, beneficiando o processo de inserção do ser
humano nas novas demandas da sociedade do conhecimento.

- Aprender a fazer: dimensão que privilegia as atividades práticas do homem e


que sobrepõe "o homem com habilidade ao homem como cognição" (idem:
109). Em outras palavras, o conhecimento enquanto capacidade cognitiva e
domínio da informação deveria resultar em habilidades, viabilizando ações mais
abrangentes e menos instrumentais.

- Aprender a conviver: dimensão que caracteriza o eixo da cooperação. Trata de


superar as lacunas do campo relacional, intensificando a demanda por
habilidades ligadas às relações interpessoais. Esta dimensão está relacionada ao
desenvolvimento de atitudes, valores e saberes relacionais, que não encontrou
espaço dentro da escola tradicional. Nesse sentido, a ONU estabelece para a
educação do futuro três grandes missões na guerra contra a escola tradicional:

40
Alusão ao título do artigo de James Petras "Os intelectuais em retirada"(1996)
78

"(1) transmitir saberes sobre a diversidade humana, conscientizando os


estudantes quanto à semelhança e à interdependência entre os povos,
construindo, a partir de uma interdependência real, uma solidariedade desejada;
(2) cultivar, através do ensino, o reconhecimento - despreconceituoso - do outro
(baseado no principio liberal do conhecer a si para conhecer o outro); (3)
viabilizar, no âmbito da escola, projetos em comum, fundados na cooperação,
motivadores e não habituais" (idem: 110).

- Aprender a ser: compreendida como a dimensão que representaria o eixo da


integração entendido como central no desenvolvimento de processos educativos.
A educação deve assim contribuir para formar o ser humano como um todo,
preparando a juventude para elaboração de pensamentos autônomos e críticos
elaborando seus próprios juízos de valores (idem). Advoga-se a liberdade do
pensamento como a principal tarefa da educação. A alternativa seria formar seres
humanos inovadores e criativos capazes de se adaptarem a um mundo em
permanente mudança.

Diante desse quadro, percebe-se que à educação é atribuído um papel de


redentora41 dos males da sociedade. A educação seria capaz de formar esse homem, não
mais fragmentado, mas, ao contrário, um homem mais flexível, criativo, solidário, hábil,
eficiente, capaz de se ajustar à velocidade com que avançam a técnica, a ciência e a
comunicação. Um homem autônomo e livre.

À primeira vista, toda essa formulação é justa e verdadeira, já que advoga a


construção um modelo de educação que considere as múltiplas dimensões do ser social,
é necessário e uma bandeira de lutas dos educadores comprometidos com a
transformação social.

No entanto, percebe-se que toda essa proposta não se concretiza dentro dos
marcos do capitalismo, já que a iniciativa de discutir essa temática foi da ONU em
parceria com organismos internacionais, expressando uma direta vinculação do referido
empreendimento com o projeto atual do capital da gestão da crise de seu processo de
reprodução, que vem apelando tanto para o campo da produção, através da
reestruturação produtiva, como para o plano político-ideológico, especialmente nos
41
A esse recorrente apelo à educação, assinala Jimenez, "tudo – do desemprego à destruição ecológica do
planeta - se resolverá na e pela educação, o que, aliás, traduz a antiqüíssima e mistificadora crença na
educação como panacéia de todos os males sociais, sistematicamente trazida à tona, quando as forças
sociais em ebulição tentam colocar em cheque o projeto do capital” (op. cit. 2003: 09).
79

países periféricos, com propostas de reformas educacionais que assegurem um sistema


educacional que arrefeça os conflitos políticos e econômico, legitimando o mercado
como propulsor indiscutível da organização social (MAIA e JIMENEZ, op. cit. p.110).

Apontando as principais contradições dessa iniciativa, patrocinadas pelo Banco


Mundial, encontramos ainda nos autores consultados a crítica a esse modelo que
contribui com o desvelamento de algumas questões a respeito das suas quatro
dimensões.

Uma dessas críticas refere-se à lacuna, proposital, diga-se de passagem, comum


às quatro dimensões, e, portanto, retrata a essência e a natureza dessa proposta que se
apresenta como inovadora.

Assim, abusando casuisticamente do fato meramente circunstancial do


advento de um novo milênio, saca-se da algibeira a sempre oportuna apologia
ao "mundo em constante mutação" e, reeditando noções pinçadas de antigos
receituários pedagógicos, prescreve-se um pomposo ideário educacional que
tem como carro chefe o modelo das competências[...] Ao invés de colocar a
questão em termos macro-econômicos mais gerais, os especialistas da ONU
estabeleceram uma relação entre o que entendem como novas necessidades
educacionais e a dita sociedade do conhecimento ou da informação, no
contexto do presente século. Como é sabido, tal paradigma pretende
desqualificar o trabalho, e por conseguinte, as relações de classe, como
referência central de organização da sociedade contemporânea, cuja
configuração delineada pelo avanço tecnológico comunicacional teria erigido
a ciência - em lugar do trabalho - ao posto de principal força produtiva.
(idem: p. 113-114)

Entendemos que esta crítica desnuda todo o aparato fetichizante presente nessa
proposta que, sem dúvida, representa a gênese de todas essas "belas e admiráveis"
mentiras que arrebanham todo o sistema oficial de ensino, com educadores consagrados
como progressistas, prontamente dispostos a defendê-las como as mais revolucionárias
idéias educacionais. Essa formulação do modelo centrado no quadrante das
competências tem como núcleo a questão ideológica: contribuir no campo político-
ideológico para o alívio dos conflitos sociais através da educação.

Trata-se de um embuste ideológico. Tal paradigma, que se proclama como um


novo modelo educacional, acaba por apelar para a transmissão de conhecimento, numa
retomada da perspectiva da educação tradicional.

Ora, se há uma contribuição fundamental das modernas teorias de


aprendizagem (em especial, das chamadas teorias interacionistas) é,
exatamente, a de contribuir para a superação do modelo tradicional da
educação centrado apenas na transmissão dos saberes já produzidos: a
80

aprendizagem só ocorre de fato quando há produção ou re-produção de


conhecimento enquanto ato autônomo do aprendiz na relação com o professor
e com o mundo, o que não se constitui, em absoluto sinônimo do "aprender a
aprender", esta, uma formulação pesadamente ideológica, avessa à
consideração pela objetividade e que isenta a escola da tarefa de promover a
apreensão do conhecimento tout court (idem: p. 115).

É possível encontrar nesse modelo outras tantas contradições que repercutem de


forma bárbara na política educacional dos chamados países em desenvolvimento, para
quem, de fato, foi pronunciada essa proposta. Nesse sentido, com base ainda nos autores
parceiros desta análise, indicaremos as principais contradições, tentando desmistificar
cada uma das competências desse modelo.

Apesar de se referir a uma sociedade do conhecimento e/ou da informação, de


natureza imaterial, tal modelo elege como base das competências futuras o saber-fazer.

O modelo é apresentado como multidimensional, no sentido de se trabalhar as


diversas e ricas dimensões do ser humano. No entanto, quando o interessa, se confessa
unidimensional, ora inserindo-se numa sociedade do conhecimento, em que a
centralidade é da dimensão conhecimento, ora numa sociedade do saber-fazer, onde se
desloca a centralidadade para as habilidades, os procedimentos e as aptidões (idem: p.
115).

Do ponto de vista epistemológico, a defesa, por parte dos teóricos da ONU, do


aprender a conhecer como eixo da compreensão como sinônimo da cognição, se
aproximaria mais do eixo da explicação, mais compatível com a visão de ciência que
predomina na prática científica atual, a quem caberia "explicar os fatos, descobrir,
descrever e explicitar as causas materiais que determinam as formas pelas quais o real
se manifesta (perspectiva positivista de ciência, em sentido amplo)" (idem).

Em relação à questão epistemológica, que parece não interessar muito aos


especialistas da ONU, a teoria do conhecimento que fundamenta o modelo das
competências fica cercada de questionamentos:

[...] Tal teoria se explicita claramente em dois momentos da análise da


dimensão do aprender a conhecer: quando os especialistas da ONU defendem
um conhecimento puro (aprender por prazer) como o fim da educação e
quando avaliam como ilusório, a omniteralidade do conhecimento (idem: p.
116).
Essas formulações se inserem no positivismo, porque afirmam a neutralidade da
ciência, intocada pelos interesses das classes. Nesse sentido, o uso do objeto do
81

conhecimento não deve ser preocupação da ciência. A própria intenção de negar o


caráter de interesses de classe na ciência já revela a não neutralidade do conhecimento.

Em relação ao aspecto da impossibilidade da omnilateralidade no processo de


produção do conhecimento equivaleria à negação do caráter da unitariedade do
conhecimento científico, levando ao pressuposto equivocado de que a objetividade do
real apenas seria acessível de forma parcial e por especialidade, impondo uma
fragmentação no processo de desvendamento do real.

Na dimensão do aprender a fazer, o modelo apresenta a retórica da superação do


saber instrumental e prático em função de um novo saber -fazer em que as relações de
trabalho serão no futuro dominadas por relações interpessoais, haja vista o considerável
desenvolvimento da área de serviços e da produção imaterial. Compreendemos, ao
contrário, que o saber instrumental é imprescindível à própria racionalidade do modo de
produção do capital, de modo que delegar à escola essa tarefa de superar o saber
instrumental, dentro da lógica do capital, representa, na verdade, uma falácia, pois:

[...] como construir um intercâmbio verdadeiramente humano entre as pessoas


sem conturbar a lógica da atual sociedade produtora de mercadorias,
cuja"racionalidade” mercantiliza, inclusive, as experiências mais
"imateriais"dos seres humanos[...]é possível superar o saber instrumental, sob
qualquer condição e circunstância, sem comprometer a racionalidade
necessária à reprodução segura do capital? (idem: p. 117 e 118).

Na dimensão do aprender a conviver, eixo da cooperação, encontramos a tese da


necessidade de se transformar a dependência entre as nações e, conseqüentemente, entre
as pessoas e organizações, mediante a cooperação e a solidariedade, construindo
relações de igualdade, autonomia, o que viabilizaria uma leitura crítica do real para
além dos dogmas e ortodoxias. À escola caberia desenvolver conhecimento profundo de
cada sujeito como pré-condição para o diálogo com o outro. Essas teses dos educadores
da ONU são, na essência, mistificadoras, pois, na sociedade em que vivemos, as
diferenças de raça, etnia, gênero etc, são de fato resultantes das diferenças econômicas,
sociais e políticas.

Nesse sentido, a superação de tais dependências não se dá via conscientização do


povo para a valorização da diversidade cultural num quadro de desenvolvimento da
tecnologia e da comunicação entre as nações. Envolve as diferenças de classe, marca da
divisão desigual do poderio dos países centrais sob os mais periféricos, característica do
82

imperialismo globalmente dominante. "Tal superação não poderá ser alcançada,


contudo, sob as sombras de barbárie capitalista, mas, ao contrário, deverá equivaler a
uma nova forma de organização da sociedade" (idem: p. 119).

Na dimensão do aprender a ser, eixo da integração, encontramos por parte dos


educadores da ONU a preocupação com o processo de desumanização do homem frente
ao avanço das transformações técnicas da sociedade e da própria subordinação das
diferentes culturas ao poder da mídia e das telecomunicações com linguagens
padronizadas e tecnicamente planejadas. Diante desse quadro, frente ao desafio da
construção da sociedade futura, coloca-se para a escola a difícil e complexa missão de
preparar os jovens para a elaboração do pensamento crítico, autônomo, criativo,
inovador e livre. A escola aparece aqui como a redentora dos problemas sociais,
políticos e culturais e a solução de problemas para o processo de desumanização da
técnica, que aprisiona a ciência à lógica da reprodução ampliada do capital, não depende
da vontade consciente e transformadora da escola e não está no solo da própria ciência e
da comunicação, já que,

[...]as bases do pensamento crítico e inovador só podem se consolidar se a


totalidade social puder também ser questionada: como exigir inovação sem
correr os riscos de desencadear aí transformações mais profundas? Ora, é
sempre na tensão desse limbo que toda organização social se move. No caso
em questão, o ajustamento à ordem impõe-se como o limite intransponível da
crítica, que, desse modo, estará fatalmente confinada a pontualidades
cotidianas, à esfera imediatamente dada da existência social (idem: p. 122).

Como percebemos, todas as competências presentes no modelo aprender a


aprender, elaborado pelos especialistas da ONU, tentam, na verdade, criar estratégias
por dentro do capital que aliviem os graves problemas educacionais, sem tocar nas
causas desses problemas. Trata-se de um tratamento superficial e cosmético, que tem
como objetivo maior desenvolver uma política de educação que consolide as diferenças
entre classes sem atacar o cerne da questão: a lógica perversa e destrutiva do capital.

Essas falsas promessas precisam passar por uma análise mais crítica e radical,
como forma de não perpetuar entre nós educadores as falácias tão presentes na
educação, o que acarreta sérias conseqüências para o campo educativo, pois passam a
pautar as nossas discussões desde a elaboração da política educacional à própria prática
da sala de aula. Nessa perspectiva, MAIA e JIMENEZ indicam,
83

Com efeito, a chave do saber não é uma questão apenas da vontade política
ou de determinação da consciência, mas precisa com todas as tintas o conflito
inerente à atual forma de produzir bens e riquezas, fazer ciência, relacionar-se
com a natureza e com os outros homens. Pois há possibilidade de fazê-lo
diferente, segundo uma história que vem se construindo e poderia ser e ainda
pode ser, igualmente, diferente. (idem: p. 123)

Nesse sentido, entendemos que todo esse modelo das competências, consignado
no aprender a aprender proposto pelos educadores da ONU de fato se insere no
contexto das reformas educacionais do Banco Mundial, que teve como gênese a
Conferência de Jomtien, como forma de montar todo um aparato ideológico em função
da superação da crise estrutural do capital, que, segundo Mészáros (2002) assume uma
proporção inédita, de natureza destrutiva e com conseqüências devastadoras para a
humanidade e para o planeta.

De fato, trata-se de um estratagema do capital diante de sua crise estrutural que


recorre mais uma vez à educação, envolvendo de forma atraente os diversos segmentos
da sociedade para uma proposta que resgataria dentro do fosso da escola tradicional e
instrumental as relações degradantes entre conteúdo e forma, entre o conhecer e o fazer,
entre o ser e o conviver, realçando suas cores com novas habilidades, atitudes
cooperativas e solidárias, desejos, emoções, cultura e valores, com a finalidade de
construir uma escola futura em que o processo ensino-aprendizagem teria como objetivo
preparar o sujeito para a sociedade do conhecimento e da informação.

Diante do quadro atual, em que se apregoa sagazmente uma era de mudanças


rápidas e em um mercado global que impõe uma pressão competitiva, exige-se das
instituições que sejam extremamente flexíveis e adaptáveis, que produzam bens e
serviços de excelente qualidade, assegurando alta produtividade aos investimentos
feitos. Requer instituições que respondam às necessidades dos clientes, oferecendo-lhes
opções de serviços personalizados, e que influenciam pela persuasão e com incentivos,
sem usar comandos; que tenham, para seus empregados, uma significação e um sentido
de controle e responsabilidade, que os façam sentir como se fossem deles.

Instituições que confiram poder aos cidadãos em lugar de simplesmente servi-


los. A esse respeito, confirma JIMENEZ,

Assim, como bem sabemos, o ideário da qualidade total invadiu os meios


educacionais, instituindo, precisamente, o que vem sendo apregoado aos
quatro cantos como a pedagogia da qualidade total. Esta assume a escola
como uma empresa que há que oferecer aos clientes um produto de qualidade:
84

a educação. Pretende formar um novo trabalhador, com competências teórico-


práticas para assumir um posto de trabalho, melhor dizendo, tarefas de
trabalho sempre mais fluidas e mutantes, em consonância com as
necessidades do mercado. Assim, a pedagogia da qualidade total pretende
formar o novo trabalhador que deve, principalmente, saber-ser: polivalente
no trato dos novos instrumentos de trabalho, ágil e flexível no raciocínio e na
tomada de decisões, além de mostrar-se também harmonioso, cooperativo,
emocionalmente equilibrado (inteligência emocional?). (2003:04).

Na acepção desses estrategistas do Banco Mundial, a escola se incluiria nesse


quadro contemporâneo como uma instituição social importante nesse contexto, que
precisa ser repensada sobre essas (novas) bases, já que, em tese, vivemos numa
sociedade do conhecimento em que o povo tem acesso às informações quase tão
depressa quanto seus líderes... No entanto, numa análise mais radical, podemos percebê-
la como mais uma mercadoria (ensino) em função da criação de valor, assimilando
termos freqüentemente usados no espaço produtivo, comercial e empresarial, como
competitividade, otimização de recursos humanos (relações interpessoais) e materiais,
flexibilização, valores cooperativos e solidários, atitudes críticas e criativas frente aos
problemas do cotidiano, dentre outros.

Essa escola desembocaria em vivências práticas direcionadas à formação de


sujeitos habilitados a experimentar a "cidadania ativa e inclusiva" voltada para a
concretização de direitos sociais e para ampliação de espaços de participação e de luta
por novos direitos.

No que se refere às conseqüências do modelo de competências para o campo da


formação de professores, Maia e Jimenez entendem que o conjunto eclético de
paradigmas da formação docente está marcado, fundamentalmente, pela reedição de
“velhas” concepções parcialmente tomadas de correntes pedagógicas como o
tecnicismo, o cognitivismo e o humanismo pedagógico. Isto acarreta o distanciamento
dos chamados novos pensadores da educação da perspectiva crítica e contextualizada
quanto ao atrelamento da educação à lógica da mercadoria, respondendo, desse modo,
às exigências postas pela crise estrutural do capital ao projeto educacional.

É necessário reforçar o discurso atraente e arrebatador da pedagogia das


competências, que, com sua chuva de confetes, acaba por criar uma névoa acerca das
reais necessidades e possibilidades de uma educação verdadeiramente emancipatória. É
imprescindível que os educadores procedam a uma análise mais radical em torno desse
85

modelo, como forma de desvelar os seus equívocos e superficialidade, como


brilhantemente, destaca JIMENEZ,

Ainda sobre o ideário das competências: quem poderia, em sã consciência,


colocar em questão, a necessidade de que o professor aprenda a trabalhar (ou
fazer trabalhar) em equipe, organizar situações de aprendizagem, envolver os
alunos em suas aprendizagens, como postula Perrenoud?! Como se poderia
negar a importância do domínio da leitura, a capacidade de fazer cálculos ou
resolver problemas, como advoga Toro? Não se trata, portanto de julgar como
absolutamente incorreta a listagem de competências arroladas por qualquer
um dos autores. O que nos parece claramente equivocado é o fato de que um
programa de formação de professores obedeça a uma tal lógica tão
escancaradamente conservadora e despolitizadora; debruce-se sobre um tal
conteúdo parcial e descontextualizado, situado na esfera das obviedades mais
banais, dos receituários mais surrados - que nada deixam a desejar, por
exemplo, às antigas e já plenamente questionadas, taxionomias de objetivos
educacionais, de Bloom - em vez de pautar-se por uma outra lógica,
autenticamente formativa, tratar de um outro conteúdo, crítico-analítico,
inteligente, voltado para o reconhecimento das profundas relações entre a
prática educativa e a materialidade histórico-social (op. cit. 2003:8).

Como vimos, o Relatório apresentado nesse estudo nos permite concluir que tal
documento representou, no início da década 90 do século passado, uma proposta de
reformas na educação a serem implementadas em escala mundial, com aval de todos, e,
mais particularmente, nos chamados países em desenvolvimento.

Nessa perspectiva, acompanhamos seus desdobramentos em todos os segmentos


sociais ligados à educação e em todos os espaços educativos. Seu desdobramento, como
política educacional recomendada pelo Banco Mundial, denominado adequadamente
por Leher (1998) como Ministério Mundial da Educação, impôs-se para o restante do
pensamento educacional, orientando a formulação das reformas educacionais desses
Países. No cenário da educação brasileira, esse ideário reformista influenciou e atuou de
forma decisiva e eloqüente em todo o processo de elaboração da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação – LDB nº 9394/96, com uma conseqüente orientação na construção
dos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN, na formulação das diretrizes curriculares
dos cursos superiores, da Educação Infantil e da Educação de Jovens e Adultos - EJA.

Em termos da teoria educacional, assistimos à presença marcante desses


idealizadores nos proclamados novos paradigmas da educação, com formulações dos
autores que advogam o modelo ou a Pedagogia das Competências com diversos
predicativos dentro de um receituário acrítico e ahistórico da educação. O objetivo
maior é de não comprometer a ordem estabelecida pelo capital e promover a restauração
86

das condições necessárias para a acumulação de lucros, reorganizando instituições


fundamentais como, por exemplo, a escola. Nesse sentido, a análise de JIMENEZ é
categórica, ao afirmar que:

De todo modo, desenvolvendo as afamadas dez competências para ensinar,


propostas por Perrenoud e praticando o currículo por projetos (Hernández),
por exemplo, o professor estará apto a desenvolver em seu aluno, os
originalmente, sete e, mais recentemente, oito códigos da modernidade
formulados por Toro42, possibilitando que o mesmo se desenvolva como ser
integral misto de razão, emoção, intuição, corporeidade, capaz de articular
sua condição de indivíduo autônomo e dialógico, àquela de cidadão do
mundo, ecologicamente responsável, fagulha interativa da energia cósmica
universal (op. cit. 2003:08)

Compreendemos que essa redefinição conceitual, especificamente no campo da


educação, consegue dificultar a compreensão da profundidade e perversidade da crise
atual do capitalismo, na medida em que mascara e falseia a relação de dominação entre
as classes sociais, materializada nas relações de produção capitalista. Essa redefinição
conceitual tem um significado muito maior na ofensiva no campo teórico-político para
legitimar o conteúdo ideológico da administração capitalista.

A respeito do conteúdo ideológico presente nesses paradigmas, em que valores,


atitudes e competências aparecem como uma ética universal em função do bem-estar
social de todos, é válido recorrer a Freud quando, em sua obra O mal estar na
civilização, conceitua a ideologia na sociedade capitalista. Em suas palavras:

Não é apenas material a expropriação do homem, a sua alma é que é


verdadeiramente perdida, pois o que se manipula na verdade além da estrutura do
poder do capital, é o poder da ideologia que aprisiona consciências chegando à
própria essência subjetiva do homem. A ideologia é como uma câmara escura e
invertida onde os interesses da classe dominante são tratados como se fossem o
interesse geral e necessário da humanidade (1974:107).

Nessa perspectiva, essa pretensa ética universal, de natureza ideológica, vem se


infiltrando de forma competente no seio da sociedade atual, mais especificamente, na
formulação das políticas educacionais em todo o mundo. Os conceitos de valores,

42
“Os sete códigos da modernidade originalmente formulados por Toro são: domínio da leitura e da
escrita; capacidade de fazer cálculos e resolver problemas; capacidade de analisar, sintetizar e interpretar
dados, fatos e situações; capacidade de compreender e atuar em seu entorno social; receber criticamente
os meios de comunicação; capacidade de localizar, acessar e usar melhor a informação acumulada;
capacidade de planejar, trabalhar e decidir em grupo (Revista Nova Escola, Nº 154, Ano XVII: 25). A esse
rol, foi acrescentado o oitavo: criar no estudante uma mentalidade internacional. Revista Nova Escola, Nº
149, Ano XVII: 47)” In: JIMENEZ, op. cit. 2003:08.
87

atitudes, competências impregnam todo o campo de educação, desenvolvendo uma


assepsia nos antigos conceitos verdadeiramente críticos.

Contamina a todos (ou a quase todos), tornando-se o recinto sagrado da


educação. É válido registrar a influência dessa Conferência no pensamento educacional
atual quando temos, por exemplo, numa edição da segunda maior revista brasileira, a
Revista Nova Escola, a apresentação em sua reportagem de capa (agosto de 2002) de
uma lista dos supostos dez maiores educadores do século XX. Dentre esses educadores,
encontramos justamente autores que atualmente representam os paradigmas dominantes
da educação e que são referência obrigatória dos cursos de formação docente. O
ranking dos dez melhores envolve os franceses Phillipe Perrenoud e Edgar Morin; os
espanhóis César Coll43 e Fernando Hernández; o português Antônio Nóvoa e o
colombiano Bernado Toro. (JIMENEZ, op. cit. P.08).

Esses pensadores, tão presentes em nossos cursos de formação de professores


com suas conhecidas listas de pré-requisitos e dispositivos para se ter um bom
professor, subsidiam atualmente o currículo, as reflexões e, principalmente, a política
oficial das instituições de formação docente.

Entre esses autores, destacamos Phillippe Perrenoud, sociólogo e professor da


Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra, que se
constitui na mais presente representação desses paradigmas no campo da formação
docente. Esse autor delimita as dez competências profissionais necessárias ao professor.
Advoga que a ação pedagógica está baseada, não de imediato sobre os conhecimentos,
mas sim sobre o habitus, um conjunto estruturado de esquemas de percepção, avaliação,
decisão e ação.

Sobre a utilização do conceito de habitus na ação pedagógica, PERRENOUD


esclarece:

A noção de Habitus, emprestada de Tomás de Aquino por Bourdieu (1972,


1980), generaliza a noção de esquema (Héran, 1987; Perrenoud, 1976; Rist,
1984). Nosso Habitus é constituído pelo conjunto de nossos esquemas de
percepção e avaliação, de pensamento e de ação. Graças a essa "estrutura
estruturante" a essa "gramática geradora de práticas" (Bourdieu, 1972), somos
capazes de enfrentar, ao preço das acomodações menores, uma grande
diversidade de situações cotidianas. Os esquemas permitem ao sujeito adaptar
apenas marginalmente sua ação às características de cada situação corrente;
ele inova apenas para compreender aquilo que a torna singular. Quando a

43
É valido observar que César Coll foi um dos consultores responsáveis pela elaboração dos Parâmetros
Curriculares Nacionais - PCN para o Ensino Fundamental, divulgados pelo MEC em 1995.
88

adaptação é menor ou excepcional, em geral não há aprendizado, e


permanece-se na zona de flexibilidade da ação. Quando a adaptação é mais
forte ou se reproduz em situações semelhantes a diferenciação e a
coordenação de esquemas existente estabilizam-se, criam novos esquemas. O
Habitus é enriquecido e diversificado (2001:162).

Nessa perspectiva, Perrenoud propõe dez dispositivos de formação capazes de


incentivar esse duplo processo, o que favoreceria, em sua concepção, o
desenvolvimento de competências profissionais, que apresentaremos sinteticamente.
São eles: a prática reflexiva, as trocas entre as representações e a prática, a observação
mútua, a metacognição com os alunos; a escrita clínica, a videoformação, a entrevista de
esclarecimento, a história de vida, a simulação e o jogo de papéis e a experimentação de
métodos não-habituais. O conjunto desses dispositivos contribui, a seu ver, para o
desenvolvimento da lucidez, compreendido como uma das mais importantes
competências do professor profissional. (idem).

Dentro da formulação do professor profissional, numa das concepções mais


recentes do modelo de competência, de Perrenoud et al44, problematiza-se a proposta do
profissional reflexivo, de Schön (1983, 1987), no sentido de temer que as práticas de
formação cedam a uma redução que favoreça a valorização da reflexividade, o que
poderia ocasionar a desvalorização de outras práticas. Dessa forma, acreditam que o
termo competência adquire um sentido amplo, que compreende as aquisições de todas
as ordens de saberes (saber-fazer, saber-ser e saber-tornar-se). Com base nessas
competências, os adeptos da concepção do professor profissional destacam seis
paradigmas relativos à natureza do ensino:

1. Um "professor culto", aquele que domina os saberes.


2. Um "técnico", que adquiriu sistematicamente os saber-fazer técnicos.
3. Um "prático-artesão", que adquiriu no próprio terreno esquemas de ação
contextualizados.
4. Um "prático-reflexivo", que construiu para si um "saber da experiência"
sistemático e comunicável mais ou menos teorizado.
5. Um "ator social", engajado em projetos coletivos e conscientes dos desafios
antropossociais das práticas cotidianas.

44
cf. PAQUAY, Léopold e WAGNER, Marie-Cécile. Competências profissionais privilegiadas nos
estágios e na videoformação. In: PAQUAY, Léopold; PERRENOUD, Philippe; ALTET, Élelyne Charlier
(orgs). Formando professores profissionais: quais estratégias? quais competências?. Porto Alegre:
Artmed, 2001. pp. 135-136.
89

6. Uma "pessoa" em relação a si mesma e em autodesenvolvimento. (PAQUAY


E WAGNER, 2001:136)45

Conforme demonstramos na análise sobre o Relatório da Conferência de


Jomtien, percebe-se que os paradigmas ora apresentados, após quase 11 anos de
distância, encontram-se em concordância com o quadrante das competências afirmado
pelo referido documento.

Esse modelo de professor profissional domina atualmente os meios de formação


de professores. Ao ofício de professor, ao profissional do ensino, caberia a função de ser
um aplicador de princípios e valores de uma ética universal, inserindo-se cada vez mais
em projetos coletivos e comunitários. Seria, assim, um "ator social" engajado em
projetos coletivos, tais como: classe-oficina; classe-empresa; projeto interdisciplinar e
participação construtiva em mecanismos comuns de avaliação, dentre outras atribuições.

De fato, o trabalho da Conferência de 1990 foi um poderoso elixir não


desgastado com o tempo. Após 14 anos de vida, o Relatório está próximo de debutar no
seio da educação mundial. Sua jovialidade não se perdeu... Continua atraente e
envolvente, alcançando uma legião “monocéfala” de adeptos e seguidores.

A opção por trabalharmos com esse Documento é justificada exatamente por este
representar o grande marco na formulação das políticas educacionais, principalmente
dos chamados países em desenvolvimento, orientados pelo Banco Mundial em função
de atender às expectativas do capital que impõe à educação a tarefa de amortecer os
conflitos sociais. Esse Relatório representa a gênese de todo um processo de
envolvimento manipulatório da educação no atual contexto de crise estrutural do capital,
que tem como cerne a questão ideológica.

Tal como pensa Leher (1998), que relaciona o desenvolvimento de uma política
educacional orientada pelo Banco Mundial e sua relação com o contexto da crise do
capital, Frigotto (1995) desenvolve sua análise tomando como eixo central a tese de que
a atual metamorfose conceitual expressa a forma, mediante a qual, ideologicamente,
apreendem-se a crise e as contradições do desenvolvimento capitalista e encobrem-se
os mecanismos efetivos de recomposição dos interesses do capital e de seus
mecanismos de exclusão.

45
Idem
90

Assim, esse autor procura mostrar a materialidade histórica das relações


capitalistas que demandaram a teoria do capital humano nos anos 60/70 e sua
redefinição, ante uma materialidade diversa, com as teses da sociedade do
conhecimento e da qualidade total dos anos 1980/1990, deixando bem clara a estreita
relação entre crise conceitual e crise do capitalismo real (FRIGOTTO, 1995: 77-108).

Como assinala Leher (1998), uma importante estratégia do capital em crise é


conclamar a educação a agir no sentido de construir relações democráticas na sociedade
contemporânea, formando os educandos para a cidadania. Esse envolvimento
manipulatório da educação é indispensável para o desenvolvimento do capital, que
apresenta como conseqüência aproximações problemáticas e pouco rigorosas entre as
concepções de socialismo, democracia e cidadania.

Sobre essa relação tão problemática no contexto atual das discussões


acadêmicas, sindicais, dos movimentos sociais e do campo e da esquerda em geral,
recorreremos às contribuições de Toledo e de Tonet, reproduzindo algumas de suas
principais idéias a respeito desse debate.

Em seu trabalho intitulado A modernidade democrática da esquerda: adeus à


revolução?, Toledo levanta alguns questionamentos a respeito da relação dos
intelectuais e partidos políticos da esquerda com a concepção de democracia.

Nesse sentido, indica que a esquerda se encontra hoje subordinada à questão


democrática. No Brasil, na década de 1960, esta relação tinha uma natureza inversa. A
esquerda marxista tinha como pauta central: as reformas sociais, o nacional-
desenvolvimentismo, o socialismo e a revolução. A compreensão era a de que a
democracia política jamais teria um sentido em si mesma, e só ganharia relevância
quando os direitos básicos fossem conquistados e garantidos.

Para Toledo, após o golpe militar (década de 70), a esquerda brasileira iniciou
seu divórcio com o projeto de “socialismo real” e restabeleceu a questão da democracia
fundada numa visão de cunho mais instrumental e “taticista”, que ainda impera no
interior do pensamento político da esquerda latino-americana. Mas, mesmo essa
concepção “taticista” já é questionada por alguns setores da esquerda que acreditam que
“a defesa da democracia não deve ter mais um valor tático, mas adquirir um valor
estratégico46, um valor em si mesmo”47 (TOLEDO, 1994:28).
46
Grifo do autor
47
idem
91

A esquerda que se alinha ao projeto de modernidade admite como interlocutores


os setores social-democratas, tecendo críticas à esquerda revolucionária adjetivada de
primitiva, anacrônica e não democrática. Nesse contexto, não se poderia falar em
socialismo sem se enfrentar com força decisiva a problemática da criação de
mecanismos de participação e de tomada de decisões.

Ainda de acordo com Toledo, esse setor se afina com a análise de Carlos Nelson
Coutinho, (1992:33), que apresenta a democracia como valor universal, sob o
argumento de que a realização da democracia foi uma busca desde as primeiras
comunidades históricas e em diversas formações econômico-sociais.

Nessa concepção, a democracia seria, assim, uma espécie de valor intrínseco à


história da humanidade, não podendo ser reconhecido apenas em sua vertente liberal,
centrada em direitos individuais. Como valor universal a democracia moderna perde
então sua natureza classista já que não seria mais um princípio apenas da burguesa,
tornando-se um instrumento do operariado e das massas populares contra a burguesia
(TOLEDO, 1994:38).

A luta política travar-se-ia agora no campo da batalha entre hegemonias.


Configura-se a possibilidade de efetivação de uma hegemonia popular e da democracia
de massas dentro da ordem do sistema capitalista. Nessa perspectiva, o Estado se
ampliaria, saindo do exclusivo domínio burguês, tornando-se também um instrumento
de luta da classe trabalhadora.

Toledo critica com veemência tal concepção, afirmando que a negação da


natureza classista do Estado implica na admissão do caráter neutro dos aparelhos
repressivos e ideológicos, o que apontaria para a inexistência de limites concretos para a
luta das massas populares e dos trabalhadores por ampliação e expansão da ordem
democrática. A democratização estatal passaria então tanto pelos aparelhos repressivos
como pelos ideológicos ou de hegemonia. As barreiras seriam derrubadas e se
anteciparia a sociedade socialista radicalmente democrática, concretizada na expansão
da democracia política com amplas reformas sociais e econômicas. Seria a democracia
levada às últimas conseqüências, efetivada pacificamente, por meio de um grande
acordo com a burguesia.

Na análise de Teixeira, (1997), fundamentado em Marx, temos a compreensão de


que, na verdade, o Estado se impõe aos indivíduos para garantir a igualdade, mas esta
92

aparente igualdade se reverte numa desigualdade, pois, para garantir a igualdade dos
contratantes numa sociedade estruturalmente desigual, o Estado assegura a
desigualdade, através da defesa dos direitos dos proprietários privados dos meios de
produção, em oposição aos interesses dos que possuem apenas a força de trabalho.

Assim, para preservar a igualdade dos contratos, o Estado tem que pôr as
desigualdades. A igualdade se transforma em seu contrário: a não-igualdade, sendo
necessário apelar para a opressão do Estado dentro dessa relação.

Aí está a determinação essencial do Estado. Ele é o exercício da violência de


uma classe contra outra, mas, violência que aparece mistificada sob a forma
de contraviolência. Como assim? Ora, o Estado, enquanto guardião da
igualdade dos contratantes, tem como função impedir a violação dos
contratos. Quaisquer danos impostos por uma das partes à outra é uma
transgressão da lei, que precisa ser restabelecida. Para impedir que uma das
partes seja lesada pela outra, o Estado, através de seus tribunais, restabelece a
lei impondo uma pena a seu transgressor. Neste sentido, a violência do Estado
contra o transgressor se dá através de e por meio da lei. Trata-se, portanto, de
uma violência que é violência legalizada e que, por isso, tem como objetivo
corrigir as injustiças cometidas pelos contratantes uns contra os outros. A
violência é, portanto, contraviolência, na medida em esta última se realiza
para anular uma violência cometida contra o direito (TEIXEIRA, 1997:34).

Voltando a Toledo, outra análise desenvolvida pelo autor, e que configura outro
recorte sobre a questão da democracia e sua relação com a esquerda moderna, diz
respeito à hegemonia popular como caminho para essa nova democracia e como
estratégia na luta pelo socialismo. Existiria nessa concepção um pressuposto de que a
luta dos trabalhadores seria centrada na conquista da hegemonia. O locus privilegiado
da luta seria a conquista dos aparelhos de hegemonia no seio da sociedade civil.

Toledo avalia como um equívoco “apostar-se todas as fichas” na luta pela


hegemonia no sistema capitalista, visto que a classe trabalhadora está estruturalmente
expropriada dos meios da produção cultural e ideológica. Dessa forma, mesmo no
processo de transição ao socialismo, a classe culturalmente dominante, durante um certo
tempo, será a burguesia, diferentemente do que aconteceu na Revolução Francesa, onde,
mesmo no Antigo Regime, ou seja, já antes da tomada do poder do Estado, a burguesia
era, de fato, dirigente cultural e ideológica da sociedade.

Não obstante, o autor não despreza totalmente a importância da estratégia da


hegemonia na luta pelo avanço da democracia e na transição ao socialismo. Nesse
sentido, a hegemonia,
93

[...] é condição prévia e necessária, nunca suficiente, na luta pelo socialismo.


Por hegemonia, entendemos a capacidade de articulação – sob a direção das
classes trabalhadoras – do conjunto de interpelações democráticas e populares
existentes no seio da ordem burguesa. Por interpelações democráticas e
populares, concebemos as mais diferentes demandas sociais protagonizadas
por uma pluralidade de sujeitos e movimentos: feministas, ecológicos,
étnicos, homossexuais, etc. Não tendo vinculações necessariamente de classe,
tais demandas e movimentos apenas alcançarão um sentido político
anticapitalista na medida em que sejam articulados por forças políticas
comprometidas com o socialismo (op. cit. 1994:33).

Referindo-se às concepções de H. Weber48, o autor reconhece que o Estado não é


um bloco monolítico, estando o mesmo atravessado por contradições de classe, o que
pode permitir à classe trabalhadora a conquista de importantes espaços dentro dele.

No entanto, isso não significa que as classes ocupem posições semelhantes e


equânimes. Cabe à classe trabalhadora ocupar posições subalternas com poderes
limitados que, de certa forma, tornam visíveis as contradições internas do Estado e que
contribuem com o processo de resistência e luta das camadas populares.

A democracia política não é uma formulação que serve apenas aos interesses da
classe trabalhadora. Ela efetivamente contribui para a legitimação dos interesses
burgueses - difundindo a ideologia do Estado neutro e do Estado representante imparcial
dos interesses da sociedade - através do funcionamento das instituições democráticas e
de suas objetivações mais significativas (divisão de poderes, parlamento, eleições
periódicas livres, alternância de poder, liberdades políticas, pluralismo partidário,
democracia representativa etc.), tudo isso garantido pelo Estado de Direito e pela
convivência dos direitos civis, políticos e sociais, em diferentes graus de articulação.

Quanto ao posicionamento da esquerda marxista, defensora do socialismo,


Toledo advoga que a esta não deve ignorar a democracia política, mas deve
compreender os limites concretos da democracia no interior do capitalismo, além de não
venerá-la ou fetichizá-la.

Quanto à utopia ingênua de que seria possível construir dentro da ordem do


capital uma democratização plena no interior das instituições estatais, Toledo considera
que esta corresponderia à aposta numa alternativa acrítica de que os capitalistas não
apelariam para os aparelhos repressivos e ideológicos do Estado, aceitando
pacificamente as decisões e o comando dos trabalhadores dentro de suas fábricas. Para
48
A respeito ver: WEBER, H. Entrevista com Nicos Poulantzas. Teoria & Política, São Paulo, n. 4,
1980.
94

ele, existiria nesse sentido um silêncio teórico da esquerda democrática quanto ao tema
da ruptura política revolucionária,

O banimento desse tema da reflexão intelectual e da discussão no interior dos


partidos e organizações socialistas pode significar, na prática, uma renúncia à
transformação da institucionalidade burguesa [...] conhecendo o pouco
empenho que as classes dominantes do Brasil têm revelado na defesa da
ordem democrática – ao contrário, nunca têm vacilado em se utilizar da
violência concentrada, pela via institucional e privadamente, contra os
avanços populares - as esquerdas não podem sucumbir às ilusões da social-
democracia e da liberal-democracia. Postular e enfatizar o caminho
democrático na direção ao socialismo não significa necessariamente adotar
uma política “reformista”. No entanto, é inaceitável conceber o processo
político apenas baseado nesta possibilidade estratégica. Quem ainda hoje
afirma a possibilidade histórica do socialismo não pode descartar o direito
legítimo que os trabalhadores têm de responder à violência sistemática dos
dominantes[...] Recusando-se, por princípio, a admitir a utilização da
contraviolência revolucionária – caso as circunstâncias da luta de classes
vierem a lhes impor esta radicalidade – os socialistas estarão, na prática,
abdicando da possibilidade da construção de uma “ordem social em que a
democracia (seja) finalmente liberada das limitações impostas pela
dominação capitalista”(op. cit., 1994:37-38).

Alinhado a essa concepção, Tonet, em seu trabalho intitulado Socialismo e


democracia, 1997, apresenta a problemática relação entre socialismo e democracia que
atualmente aflige o campo da esquerda no Brasil, a partir de dois questionamentos:

É o socialismo compatível com a democracia ou a instauração do primeiro


supõe a superação da segunda? E, na transição do capitalismo ao socialismo,
pode-se considerar, sem problemas, a supressão das liberdades democráticas
ou a sua eliminação inviabilizaria inteiramente a construção do socialismo?
(TONET, 1997:29).

Tonet destaca entre os socialistas duas posições mais significativas diante desse
tema. A primeira reside numa exclusão mútua entre a democracia e o socialismo. A
democracia como conjunto das instituições e direitos representaria apenas os interesses
burgueses e deveria ser destruída com a tomada do poder pela classe trabalhadora. A
segunda posição, amplamente majoritária na esquerda em todo o mundo, é a proposição
de repensar a estratégia de revolução, colocando a democracia como o caminho
revolucionário. Essa formulação produziu-se em conseqüência do reexame dos
conceitos de Estado, sociedade civil e democracia, onde se constatava que após a
segunda metade do século XIX, o Estado tinha se ampliado e, na visão dessa esquerda,
95

não mais corresponderia às concepções de Marx e Engels de “comitê executivo da


burguesia”.

Essa ampliação adviria da complexificação da sociedade através do surgimento


de muitos organismos que supostamente se interpõem na relação entre o Estado e o
sistema produtivo, o que situa a governabilidade em função mais do consenso do que da
coerção.

A reformulação do conceito de Estado traria consigo a revisão do conceito de


sociedade civil que passava a significar “um conjunto dos organismos não estatais
criados pelos indivíduos para lutar por seus direitos”. (id. 1997:31). A partir dessa nova
visão de sociedade civil, a luta fundamental deveria dar-se no sentido de se controlar o
Estado em função dos interesses da sociedade organizada, atuante e consciente49.

Nesse contexto, para Tonet, o próprio conceito de democracia sofre uma


alteração: “se antes a democracia era considerada um valor particular, burguês, agora é
apreciada como um valor universal, ou seja, um instrumento capaz de contribuir para o
enriquecimento do gênero humano” (id., p. 31-32).

Para TONET, a sociedade passou por uma complexificação a partir da segunda


metade do século XIX quando novos organismos sociais, de fato, surgiram na relação
entre Estado e sociedade civil. No entanto, o autor adverte que,

Este fato não altera a natureza essencial do Estado nem desloca a oposição
social decisiva para o terreno do enfrentamento entre o Estado e a sociedade
civil. A oposição fundamental continua a se dar no âmbito das relações de
produção (idem).

Percebemos, assim, que, para o autor, a compromisso do Estado com o capital,


não seria superado por uma correlação de forças entre a sociedade civil organizada e o

49
A respeito dessa interpretação e a título de ilustração, é válido recorrer a uma entrevista de Chico de
Oliveira, quando é interrogado sobre a defesa dos socialistas de que sem socialismo não há democracia e
dos capitalistas que defendem o oposto: não há democracia sem liberdade de mercado. OLIVEIRA,
afirma: Não posso bancar aqui que a ciência mostra que a democracia só se completa com socialismo. É
uma posição nossa, não é uma posição científica. Nós, socialistas, achamos que a democracia só se
completa com o socialismo. Porque aí você junta a liberdade econômica à liberdade política, que no
capitalismo é muito reduzida... Em outro momento da entrevista, questionado a respeito se a desigualdade
de classes seria um obstáculo para a democracia, o mesmo responde: Depende. A desigualdade de classes
não é um obstáculo para a democracia. Digamos que a democracia, tal como a conhecemos, reconhece a
desigualdade de classe e arma um espaço de conflito em que a desigualdade de classe pode ser
contestada, mas ela não é um obstáculo. Sempre pensamos numa democracia ideal, aí a desigualdade se
torna um obstáculo. Agora, uma profunda desigualdade é obstáculo para a democracia.. In: REVISTA
CAROS AMIGOS, Para onde vai a DEMOCRACIA?. Ano VI, nº 15, São Paulo, novembro de 2002. p.
19-20.
96

próprio Estado. A verdadeira alteração resultará de uma ruptura ontológica do Estado


para com os interesses do capital.

Restringir-se à luta por se colocar os organismos do Estado em função dos


interesses da classe trabalhadora traduziria, de fato, uma aposta na via do consenso,
esquecendo-se a essência da relação entre Estado e capital.

Tonet advoga quanto à relação Estado e capital, o argumento de que, somente o


socialismo, enquanto sinônimo de liberdade plena (não absoluta), e não a estratégia
expressa pela democracia, é capaz de emancipar o homem do jugo do capital.

Essa liberdade significa uma forma de sociabilidade na qual é o homem, e


não forças estranhadas, quem dirige – de modo consciente e planejado – o seu
processo de autoconstrução social[...] Liberdade plena é, pois,
autodeterminação. Mas para que esta autodeterminação possa existir, ela tem
como condições necessárias um alto grau de desenvolvimento tecnológico[...]
a diminuição do tempo de trabalho necessário[...] a substituição do trabalho
assalariado pelo trabalho associado (como ato ontológico primário) e a
substituição do valor de troca pelo valor de uso (id. p. 37).

Para o autor, se esse patamar de liberdade for alcançado, categorias como


mercado, capital e Estado e as propostas de democratização do capital e do Estado, além
da defesa dos chamados direitos dos cidadãos, não terão mais sentido e se tornarão
obsoletos, frente a uma sociedade plenamente livre, de horizonte ilimitado.

Ao nosso ver, a correta impostação do problema implicaria em deixar claro que a


emancipação política (democracia/cidadania) constitui uma forma particular de
liberdade – de grande importância na trajetória da humanidade – que tem como ato
fundante a compra e venda da força de trabalho. Por isso mesmo, não obstante o seu
caráter progressista, sua própria natureza lhe impõe uma limitação essencial. Ao
contrário, a emancipação humana (liberdade plena), por ter como fundamento o trabalho
associado, ela sim constitui o patamar mais alto da liberdade humana. Esse patamar,
sim, representa um horizonte infinito, pois só nele o homem é realmente senhor do seu
destino... (id. p.39).

No momento atual, de agudas crises econômicas em vários países, de


implementação de políticas educacionais que tomam como centro a construção da
escola democrática e cidadã, em que a educação cumpre o papel de inserção dos
indivíduos numa teia de relações sociais, especificamente nas relações entre capital e
trabalho, sacrificando uma crítica das profundas contradições da sociedade atual,
97

negando as bases do debate sobre a construção do socialismo enquanto autêntico projeto


de emancipação humana, encontramos a influência de tais formulações no contexto do
paradigma das novas competências necessárias à legitimização das necessidade do
capital.

2.1. Os novos paradigmas da formação docente e o MST: principais controvérsias

Essas influências cintilam fortemente no Relatório da Conferência de Jomtien e


encontram-se presentes no largo espaço da educação, desde o mais tímido e particular
processo pedagógico passando pela elaboração de políticas, parâmetros curriculares e
legislação educacional vigente, inclusive a própria LDB 9394/96, atingindo as atuais
formulações teóricas do campo da educação. Tomando por base esse conjunto de
influências, justificamos a importância de adotarmos a sua análise como fundamental
para a nossa investigação específica sobre o projeto de formação de professores do
MST.

Nesse estudo sobre a proposta de formação de professores do MST, observamos,


mediante análise dos documentos e entrevistas realizadas, somadas a nossa observação
no Instituto de Educação Josué de Castro, em Veranópolis (RS), que o projeto formativo
do Movimento parece não estar imune às influências dos ventos avassaladores do
modelo de competências.

É válido ressaltar que, nos documentos, nos depoimentos colhidos e no


pensamento de seus intelectuais mais engajados, não se menciona explicitamente esse
Relatório. Essa referência só aparece na proposta curricular do Curso de Magistério 50
(nível médio) do Instituto de Educação Josué de Castro, em que encontramos
explicitada uma alusão ao Relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o
Século XXI, da Unesco, presidida por Jacques Delors. Na referida proposta, ao tratar do
perfil profissional esperado ao final do curso, tomam como referência o supracitado
Relatório, assinalando as competências do Curso Normal de Nível Médio: dimensão do
conhecer, dimensão do saber fazer, dimensão do conviver e dimensão do ser.

É justo pressupormos, ainda, que tal influência é exercida indiretamente quando


o Setor de Educação do MST, nas pessoas de suas principais lideranças e militantes em

50
Conferir MST-Instituto de Educação Josué de Castro. Plano de Estudos: Curso Normal de Nível
Médio. 2003:4-5. A apresentação e análise dessa proposta será desenvolvida nos próximos capítulos.
98

processo de formação, destacam, por exemplo, os postulados de Leonardo Boff em


torno do saber-cuidar, e do chamado Ethos Mundial.

Julgamos oportuno, nesse sentido, abrirmos um parêntese para traçar uma breve
contextualização da trajetória desse autor, de reconhecida influência sobre a obra
educativa do MST. Boff trabalhou como professor de teologia, filosofia, espiritualidade
e ecologia. Dessa combinação, nasceu a Teologia da Libertação, que ele, ao lado de
outros, ajudou a formular. Boff foi e continua sendo, uma grande referência para as
Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, um movimento da igreja católica progressista,
tendo já escrito mais de sessenta livros, onde enfoca a relação entre sociedade, ética,
ecologia e religião.

Ao longo de sua trajetória de vida, dois acontecimentos, ao nosso ver, podem


justificar, em alguma medida, a mudança nas concepções de Boff, distanciando-o do
discurso predominantemente crítico ao poder e à sociedade capitalista, presente nas suas
primeiras obras, em que encontrávamos a defesa, enquanto membro da Igreja católica,
da opção preferencial pelos pobres: o primeiro fato foi o “silêncio obsequioso” de um
ano imposto pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé em 1986, em razão das
idéias contidas em seu livro Igreja, Carisma e Poder; o segundo, sua opção pela saída
do sacerdócio católico no início dos anos 1990.

No âmbito histórico, a queda do muro de Berlim e a dissolução da União


Soviética provocaram uma crise no pensamento da esquerda brasileira e nas idéias que
fundamentavam a Teologia da Libertação baseada na “força histórica dos pobres e
oprimidos”. O refluxo dos movimentos sociais urbanos e o avanço dos movimentos
conservadores de massa na igreja católica também podem ter contribuído para a
necessidade de um novo enfoque e um novo discurso no pensamento desse autor. A
temática ambiental e ecológica torna-se o centro do debate, frente à problemática
planetária desde o agravamento do desmatamento, da poluição das cidades, das
transformações climáticas, do crescimento do buraco da camada de ozônio e do efeito
estufa, negando a análise séria e rigorosa dos verdadeiros determinantes que explicariam
esses fenômenos, o que contribui para o desvendamento da lógica mercadológica que
preside todos esse efeitos desastrosos para o planeta e para a humanidade.

Nesse sentido, é inegável a influência desse autor nos movimentos sociais


brasileiros nos últimos quase 30 anos. Isso se comprova no MST, em que a maioria de
99

suas lideranças se origina de movimentos católicos ligados às Comunidades Eclesiais de


Base – CEBs.

Nesse contexto, como teólogo, nos fala de um Ethos mundial51, compreendido


como possibilidade de um consenso mínimo entre os humanos, investindo um olhar
esperançoso sobre o processo de globalização. Acredita que a globalização, apesar de
seus aspectos negativos, poderá levar a humanidade, pela primeira vez na história, a
pensar o mundo como parte integrante do ato de “ser humano”, ou seja, preservar o
mundo é preservar o homem.

Acreditamos que Leonardo Boff em sua discussão sobre a preservação do


planeta, o cuidado com a terra como se fosse nossa própria casa sem considerar as
determinações materiais que configuram a problemática ecológica, passa ao largo das
lutas populares, mais presentes em sua posição anterior de opção pelos pobres. Além
disso, numa omissão flagrante, não há menção mais explícita do modelo econômico
burguês, responsável primeiro pela degradação do planeta, através do consumo dos
ricos, ou melhor dizendo, em consonância com os interesses de acumulação capitalista.

A obra de Paulo Freire também aparece como relevante na proposta educativa do


Movimento. Seus educadores assinalam a importância da Pedagogia do Oprimido,
relacionando suas idéias com o processo de educação promovida nos cursos de
formação de professores através da chamada Pedagogia do Movimento. Suas principais
lideranças afirmam, freqüentemente, que, depois da Pedagogia do Oprimido, de Paulo
Freire, tem-se a Pedagogia do Movimento52, de autoria da Professora Roseli Caldart.
Dessa forma, a importância de Paulo Freire para o MST é tão evidente que a Biblioteca
do Instituto de Educação em Veranópolis – RS recebe o seu nome.

Com efeito esse autor vem sendo trabalhado cotidianamente nas práticas e
elaborações dos documentos do MST. Nesse misto de práticas e documentos do
Movimento, encontramos uma certa aproximação das idéias de Freire ao modelo das
competências, especialmente, quando em seu livro Pedagogia da Autonomia trata de
supostos saberes necessários à prática educativa do professor. É importante assinalar,
contudo, que, ainda que as idéias de Freire mantenham em alguma medida, afinidades
com o que Duarte (2000) denomina Pedagogias do aprender a aprender – o que deve ser

51
BOFF, Leonardo. Ethos mundial – um consenso mínimo entre os humanos. Brasília:Letraviva, 2000.
52
Cf: CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola.
Petrópolis,RJ:Vozes, 2000.
100

considerado um limite importante de sua obra – ousamos defender a concepção de que


Freire53 reafirmou ao longo de sua trajetória um ideário educacional essencialmente
comprometido com a construção de uma sociedade livre da opressão do jugo do capital.

Em face do exposto é válido observar que, na edição da revista da Nova Escola,


que apresentava a relação dos maiores educadores do século XX, não se mencionou o
educador Paulo Freire, o que, de certa forma, já é um indicativo importante para
justificar uma distinção conceitual desse educador em relação aos “consagrados”
mestres do modelo das competências. O próprio Paulo Freire, na apresentação do livro
Pedagogia do Autonomia, que discute como temática central a questão da formação
docente ao lado da reflexão sobre a prática educativo-progressiva em favor da
autonomia dos educandos, indicando os saberes necessários à uma prática educativa
transformadora, destaca:

A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no


mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada
podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar
"quase natural". Frases como "a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?” ou "o
desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século" expressam bem o
fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora. Do ponto de vista
de tal ideologia, só há uma saída para a prática educativa: adaptar o educando a esta
realidade que não pode ser mudada[...]O livro com que volto aos leitores é um
decisivo não a esta ideologia que nos nega e amesquinha como gente (2003:19-20).

O objetivo dessa reflexão é o de tentarmos investigar até que ponto os


postulados do Relatório da Conferência de Jomtien, o qual deu origem aos paradigmas
dominantes da formação docente, invadem a proposta de formação docente do MST.
Assim, torna-se necessário questionarmos até que ponto o MST reafirma ou nega os
princípios estipulados pelo modelo das competências presentes no seu quadrante:
aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver, aprender a ser, somados às
atuais exigências/competências do campo da formação docente.

Nesse sentido, o caminho a ser traçado a seguir é o de tentar avaliar as


interpretações que, ao nosso ver, são adequadas em relação a Leonardo Boff, por
exemplo, como forma de ilustrar a influência de seus postulados em relação à defesa da
53
Nas palavras de Freire, encontramos a representação de sua proposta de educação libertadora, situada
para além da lógica perversa e desumana do capital: “ É neste sentido que jamais abandonei a minha
preocupação primeira, que sempre me acompanhou, desde os começos de minha experiência educativa. A
preocupação com a natureza humana a que devo a minha lealdade sempre proclamada. Antes mesmo de
ler Marx já fazia minhas as suas palavras: já fundava a minha radicalidade na defesa dos legítimos
interesses humanos. Nenhuma teoria de transformação político-social do mundo me comove sequer, se
não parte de um compreensão do homem e da mulher enquanto seres fazedores da História e por ela
feitos, seres da decisão, da ruptura, da opção”. (op. cit. 2003:129)
101

cidadania planetária, que, em larga medida, respinga no projeto formativo do MST.


Dessa forma, poderemos conhecer como estas interpretações perpassam o ideário
educacional desse Movimento, buscando investigar em que medida, se poderia traçar
uma aproximação desse ideário com o modelo das competências.

Dessa forma, a título de ilustração, é importante para alcançarmos o objetivo de


nossa análise, passarmos em revista as concepções de alguns teóricos, particularmente
de Gadotti (2000), com o intuito de melhor compreendermos as interpretações feitas
sobre a obra de Boff, o que contribuirá para a reflexão sobre a relação do MST com os
postulados do modelo das competências.

Nessa perspectiva, registramos o livro Perspectivas atuais da educação54,


organizado por Moacir Gadotti e que conta com artigos de vários intelectuais que
privilegiam como eixo de suas pesquisas e estudos a problemática da formação docente
e da escola pública, tentando recuperar a discussão sobre um projeto de escola cidadã,
aprofundando o debate sobre experiências concretas de sua aplicação coordenadas pelo
Instituto Paulo Freire em parceira com outras instituições e entidades.

É válido registrar a semelhança entre o título do texto da apresentação do livro


Para pensar a educação do futuro e o título do Relatório da Conferência. Nessa mesma
simetria, encontramos, ainda nesse texto introdutório, um elenco de categorias para se
pensar a educação do futuro, que, de acordo com o autor, devem ser articuladas com as
categorias clássicas na explicação dos fenômenos da educação e que são referências da
pedagogia da práxis: contradição, determinação, reprodução, mudança, trabalho e
práxis. A seguir, de forma de sintética, temos a apresentação dessas "novas" categorias:

- Cidadania: discussão sobre o significado da escola-cidadã e de suas diferentes


práticas: autonomia da escola, projeto político-pedagógico e a questão da
participação;

- Planetariedade: o tema da cidadania planetária discutido a partir das categorias


de Boff (a terra é um novo planeta); ecopedagogia de Gutiérrez e de
ecoformação de Perrenoud;

- Sustentabilidade: tema que teve sua origem no campo da economia e da


ecologia e que atualmente se insere na educação. Sintetizada no lema "uma
educação sustentável para a sobrevivência do planeta".

54
GADOTTI, Moacir (Org.). Perspectivas Atuais da Educação. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
102

- Virtualidade. Implica toda a discussão acerca da educação à distância e sobre o


uso dos computadores nas escolas. Apresenta vários questionamentos entre eles:
quais as conseqüências da informática para a educação, para a escola, para a
formação do professor e para a aprendizagem?

- Globalização. parte-se da afirmação de que o processo de globalização está


mudando a política, a economia, a cultura, a história e a educação. A relação
global e local deve ser realizada para se fundirem numa nova realidade: o
“glocal”.

- Transdisciplinareidade. representa o desafio de uma educação sem


descriminação étnica, cultural e de gênero. Relacionada com seus significados
diversos (categorias) que indicam uma nova tendência da educação:
transculturalidade; transversalidade; multiculturalidade; complexidade e
holismo.

- Dialogicidade, dialeticidade. Afirma não negar a atualidade de determinadas


cetegorias freirianas e marxistas e a validade de uma pedagogia da práxis.
Retoma Marx que, segundo Gadotti, em O Capital, privilegiou as categorias
hegelianas determinação, contradição, necessidade e possibilidade. Afirma,
ainda, que a fenomenologia hegeliana continua a exercer forte influência na
educação atual e que deverá atravessar o novo milênio. (idem:xiv e xv)

O exame dessas concepções e propostas educacionais surgidas, principalmente,


nos anos 1990, a partir da Conferência de Jomtien, nos permite afirmar que não se
percebe a concepção de uma política de educação destinada aos interesses reais da
classe trabalhadora no Brasil, apesar de, no discurso, apresentar uma preocupação com a
inclusão de todos na escola pública.

Analisando essas categorias expressas no texto de Gadotti (2000), percebemos


uma certa similaridade entre as categorias para se pensar um programa a ser
desenvolvido em torno das perspectivas atuais da educação do Brasil e o elenco de
desafios e missões apresentados pelo Relatório para repensar educação do século XXI.

Percebemos ainda o forte apelo aos postulados de Leonardo Boff na tentativa de


enfrentamento dos desafios para se construir a escola-cidadã, democrática,
ecologicamente situada, informatizada, plural e diversa, dialógica, transdisciplinar,
103

glocalizada e auto-sustentável... A tentativa é de construir uma escola pública inclusiva


e democrática.

Em contrapartida, existe por parte do autor um certo cuidado em não negar as


categorias que refletem sobre o fenômeno da educação, recorrendo a Marx e Hegel. É
como se essas categorias clássicas somente dessem conta de problematizar as questões
de ordem mais amplas relacionadas às determinações sociais, políticas e econômicas,
necessitando de categorias complementares que discutam as questões da cotidianidade
da educação básica, já que, "o problema mais grave, na teoria da educação brasileira,
não é tanto o seu conteúdo ideológico: é a ausência de vínculos com a prática concreta.
(idem. p. xv).

Nesse sentido, acomoda-se toda a preocupação do texto, aqui analisado, que


busca sair do campo da teoria e ir na direção da consolidação de idéias que possam ser
viabilizadas na prática. Esta postura é claramente veiculada no documento da Comissão
da Conferência de Jomtien, quando se coloca para a educação uma tarefa um tanto
quanto instrumental e pragmática, compreendida como uma bússola que norteará a
inserção do cidadão na sociedade do conhecimento e da informação.

Gadotti retoma em sua exposição um determinado questionamento a respeito do


domínio da esquerda no pensamento pedagógico brasileiro, ao qual rebateu afirmando:

[...] A resposta foi não. Em que pese a dificuldade de estabelecer limites


objetivos entre correntes e tendências do pensamento pedagógico brasileiro, o
que nele predomina é o ecletismo, que significa, ausência de um pensamento
radical. O pensamento radical não se mistura, mas, também, não cria
grupelhos e igrejas. Ele é inclusivo e não, exclusivo. (idem, p. xv).

Percebe-se mais uma vez uma certa semelhança nessa formulação do autor
com o texto da Conferência, haja vista que o objetivo do primeiro é a recuperação da
discussão sobre a concepção teórica e desenvolvimento de um Projeto da Escola
Cidadã. O fato de discutir a problemática da educação contemporânea à luz do conceito
de cidadania, o que implementaria, segundo o autor, uma conversão da escola em novos
espaços de formação como: ecopedagogia, dialogicidade, transdisciplinariedade,
glocalização55, virtualidade, dentre outras categorias apontadas no texto, inscreveria a
compreensão desse autor, sobre o atual fenômeno educativo, no campo do ecletismo,
não o distinguindo do que ele mesmo criticou há pouco.

55
Glocalização nesse contexto significa a articulação do global com o local.
104

A respeito de sua formulação sobre o pensamento radical, já se percebe um


certo tom de desagrado e de ironia em relação a um pensamento radicalmente crítico,
que discute a educação no contexto da possibilidade da superação no âmbito da
existência do fenômeno e não no sentido de trabalhar uma nova formatação da
aparência do real. Este fator é que torna o pensamento radical verdadeiramente crítico e
comprometido com a emancipação da humanidade...

Nesse sentido, a crítica radical nos ensina ser preciso que o movimento
sindical e os movimentos sociais, dentre os quais devemos destacar o MST, reconheçam
a unidade entre as repercussões econômicas e político-sociais da educação,
qualificando, assim, sua intervenção na política educacional. Compreendemos que dessa
forma será possível partilhar da idéia da liberdade gestada pelo trabalho, fazendo com
que esses movimentos voltados para os interesses históricos da classe trabalhadora
avancem para uma concepção de escola unitária, síntese entre formação para o trabalho
manual e formação para o trabalho intelectual.

Na contramão desse caminho, encontramos idéias que se dizem inovadoras,


como as do texto em questão, que fazem um balanço da educação, desconectando a
relação entre as questões imediatas e o projeto histórico da classe trabalhadora. O fato é
ainda mais grave, pois avaliam que na estruturação da proposta da Escola Cidadã se
sobressai a categoria de totalidade, que, segundo esses autores, não pode se confundir
com a pretensão de “tratar de tudo”.

O capítulo 5 que ganha o título de Cidadania Planetária: pontos para a


reflexão apresenta a cidadania planetária como uma utopia socialista. Edificada por uma
visão unificante do planeta terra, esta cidadania se traduziria em diferentes expressões:
uma humanidade comum, unidade da diversidade, um futuro comum e uma prática
comum. (idem, p. 76). Expressaria, assim, uma nova percepção da terra como uma
comunidade única, adotando um conjunto de valores, atitudes e comportamentos
universais.

Esse conceito apresentado no livro está adequadamente baseado nos


postulados de Leonardo Boff, que acredita que esta cidadania trataria de expressar uma
ética universal, acoplada a uma concepção de desenvolvimento auto-sustentável,
indissociável do respeito ao meio-ambiente. Cidadania esta fundada em valores
105

universais, consensuados num mundo justo, produtivo e num ambiente agradável e


saudável a todos (idem. p. 81).

Esta ética universal possibilitaria uma contraposição à ética desumana do


capitalismo e à globalização de natureza econômica que destrói as potencialidades do
planeta e do ser humano. É um conceito de cidadania planetária no sentido de avivar o
pertencimento ao planeta e não ao processo de globalização, priorizando como eixo a
superação da desigualdade e a eliminação das sangrentas diferenças econômicas, a
integração da diversidade cultural da humanidade e a eliminação das diferenças
econômicas (idem, p.79).

Trata-se de uma aposta conjuntural visto que Boff reconhece a


“impossibilidade de uma revolução mundial” no contexto atual. Ele propõe uma nova
hegemonia mundial que se torna possível a partir da existência de uma sociedade
globalizada. Trata-se aqui da construção de um novo poder dominante, qualitativamente
diferente, cuja influência na sociedade política mundial deverá conduzí-la a novos
parâmetros relacionais com o ser humano, com o planeta e com o cosmo. Nesse
sentido, na concepção de Boff, a educação toma um lugar de destaque, bem como os
“novos movimento sociais” tocados e motivados por essa nova perspectiva.

Quando Boff se refere à sociedade burguesa e ao marxismo, ele os apresenta


na mesma perspectiva restritiva da modernidade, que perceberia o mundo numa ótica
apenas parcial, seja de grupos de interesses ou de classes.

Nesse sentido, a aposta na cidadania planetária, é expressa no artigo de


Gadotti como propulsora da relação da educação com essa visão de sociedade,
atribuindo ao professor um papel de sujeição à dimensão ética como uma competência
indissociável da construção dessa proclamada sociedade planetária.

Educar para a cidadania planetária exigiria uma mudança no fazer pedagógico


cotidiano. De acordo com Francisco Gutiérrez citado por Gadotti, demandaria o
desenvolvimento de novas capacidades:

[...] sentir, intuir, vibrar emocionalmente (emocionar);imaginar, inventar, criar


e recriar; relacionar e interconectar-se, auto-organizar-se; informar-se,
comunicar-se, expressar-se; localizar, processar e utilizar a imensa
informação da 'aldeia global'; buscar causas e prever conseqüências;criticar,
avaliar, sistematizar, e tomar decisões; pensar em totalidade (holisticamente)
(GUTIÉRREZ, apud GADOTTI, op. cit. p. 79).
106

Dessa forma, uma educação para a cidadania planetária levaria à construção de


cultura de sustentabilidade, a uma cultura da vida e de convivência harmônica entre
seres humanos e entre estes e o planeta terra. Se compararmos essas novas capacidades
ao quadrante constitutivo do modelo das competências, podemos observar uma
coerência entre elas. O aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e
aprender a ser, estariam bem representados por essas capacidades demandadas pela
escola a favor da cidadania planetária.

Assim, a ecopedagogia, não restrita aos muros da escola e que está para além da
escola, consiste numa estratégia indissociável dessa cidadania, pois trabalharia no
sentido de desenvolver uma consciência ecológica sobre a importância da preservação
do meio ambiente, interferindo na reformulação do movimento pedagógico, no currículo
e na teoria e prática educacional. O desenvolvimento sustentável aparece assim, como
um componente educativo formidável.

Outro conceito citado no referido capítulo, aldeia global, está presente em todo
o texto do Relatório da Conferência, inclusive com um capítulo intitulado “Aldeia
Global”, o que demonstraria um certo comprometimento da análise que os autores do
livro afirmam ser totalizante e estrutural. A aldeia global, fundada em valores,
comportamentos, atitudes e competência, seria, a nosso ver, parente próxima da
cidadania planetária, que tem como limite o controle metabólico do capital, sendo
refém do receituário utópico, sem possibilidades reais de concretização. Essa
formulação nos remete à análise de Mészáros (2002), quando este afirma ser
extremamente equivocada a rotulação de utópicos para os que acreditam numa
sociedade emancipada para além do capital. Para ele, acreditar numa humanização
dentro da ordem do capital é que constitui numa verdadeira utopia. A esse respeito,
Mészáros nos ensina:

A produção ou é conscientemente controlada pelos produtores associados a


serviço de suas necessidades, ou os controla impondo a eles seus próprios
imperativos estruturais com premissas da prática social das quais não se pode
escapar/…/ Nesse sentido o que é “utópico” decididamente não é a
reorientação socialista da produção como alternativa às práticas agora
prevalecentes, independente de suas dificuldades práticas. Ao contrário, uma
forma absolutamente lúgubre de utopismo pessimista caracteriza-se
precisamente pela defesa de soluções “bem testadas” e “ realistas” – apesar
de, na verdade, serem totalmente irreais a longo prazo. Ora, as prescrições
“realistas” advogadas por aqueles que descaram a perspectiva marxista como
nada mais que “utopismo” permanecem prisioneiras dos horizontes da
produção-de-riqueza que se auto-impulsiona, mesmo quando falam de um
107

desejado mecanismo regulador que preserva intacto o quadro geral da


desigualdade estrutural (2002:613-614).

Apesar de demonstrarem o interesse legítimo de se contrapor à ética perversa do


capitalismo e da sociedade globalizada econômica e tecnologicamente, acabam por ficar
em sua sinuosidade, negando os fundamentos ontológicos que explicam as
desigualdades em todas as dimensões do ser social, incluindo o aniqüilamento do
planeta.

Nessa perspectiva, defende-se a educação como locus privilegiado para que se


desenvolva uma concepção de cidadania plena, oposta à concepção de cidadania
consumista, que consistiria na mobilização de toda a sociedade para a conquista dos
direitos civis, políticos, econômicos e sociais e que devem ser respeitados e garantidos
pelo Estado.

A dimensão da ecopedagogia nos remeteria à análise e denúncia do utilitarismo e


do consumismo pós-moderno neoliberal e ao anúncio de uma concepção de civilização
que não repudia a explicação tecnológica atual, mas a submete a novos valores, como os
da cooperação e da solidariedade. Defende-se assim, a subordinação do mercado à
cidadania (Gadotti, op. cit. 2000:110). Essa virada de sentido, onde o mercado se
submeteria à cidadania planetária, ressignificaria a volta ao ser humano completo.
Apregoa-se a defesa da ecopedagogia como constituidora de uma harmonia universal
com todos os seres humanos em compartilho com a terra.

É válido observar que essas categorias da cidadania planetária e da ecopedadogia


se inscreveriam na lista das demandas esboçadas pelo Banco Mundial para a educação,
no sentido de acomodar os conflitos de classes mediante um ajuste e um envolvimento
manipulatório-ideológico por parte da educação.

Nesse sentido, compreendemos que os postulados dessas propostas não rompem


com os paradigmas dominantes do campo da formação docente. Com base em Mészáros
(2002), acreditamos que, nos parâmetros do sistema do capital, os seres humanos
produtivamente ativos não podem ocupar como seres humanos seu lugar legitimo. A
relação social dos produtores, entre sujeito produtivo e seu controlador, é
essencialmente reificada e mercantilizada, não sendo possível torná-la mais humana.
108

Mészáros (2002) interpreta que os seres humanos são postos como peças,
engrenagens do mecanismo geral do sistema produtivo capitalista. Nesse caso, as suas
qualidades humanas devem ser consideradas um empecilho à eficácia ótima de um
sistema que tem sua própria lógica e medida de legitimação.

Não há como, dentro da lógica do capital, estabelecer relações de igualdade,


solidariedade e cooperação, pois essa lógica é regida pela desigualdade e exploração.
Atribuir à educação a tarefa de formar consciências ecológicas e solidárias, baseadas
numa ética universal é, no mínimo, ingênuo e utópico, já que a educação como
mediação ideológica responderia às crises econômicas no momento em que é
responsável por apresentar soluções diretas ou indiretas, como por exemplo, ao
problema da qualificação do trabalhador.

Percebemos assim que no contexto desses novos paradigmas da formação


docente, bem expressos no Relatório da Conferência de Jomtien, o conceito e o tipo de
qualificação, inclusive do docente, assumem uma nova roupagem, de tecido atraente e
flexível, mas que na essência continua atendendo às demandas do capital no campo
político e econômico.

Nessa perspectiva, o trabalho como princípio educativo da formação humana,


que transmite e constrói o conhecimento e a conscientização a serviço da emancipação
humana é negado, ficando restringida essa formação do professor ao desenvolvimento
de competências no espaço circunscrito da escola e da sala de aula.

A luta sindical é desqualificada e tida como corporativa, uma vez que se apregoa
a modernização das relações trabalhistas com a implantação de um contrato coletivo,
uma revisão do papel da Justiça do Trabalho e uma flexibilidade dos encargos sociais
sobre a folha de pagamento. É na verdade a reedição do sindicalismo de Vargas no
sentido de atrelamento do movimento sindical.

A educação para o desenvolvimento, mote do regime autoritário, é defendida


como forma de modernizar as relações entre capital-trabalho. Assiste-se à reedição da
teoria do capital humano, como aponta Frigotto (1995), onde se tenta estabelecer um
vínculo direto entre escolaridade e produção capitalista. É possível dessa forma alcançar
taxas altas de crescimento econômico e distribuição de renda relacionada com o
incremento do nível educacional. Estabelece a relação causa e efeito entre aumento do
nível educacional e ganhos de produtividade.
109

Mesmo em contexto adverso, entretanto, é necessário perceber que o


conhecimento, a ciência não deve servir apenas aos interesses estreitos do capital, mas
deve ter como tarefa principal formar o homem em múltiplas dimensões, intelectual,
física, ética e artística, dentro de uma visão de totalidade.

A educação deve ter como princípio educativo o trabalho, contribuindo para que
o trabalhador tenha uma compreensão das relações sociais e de produção em que está
inserido e fornecendo-lhe os instrumentos técnico-científicos para construir uma contra-
hegemonia e conquistar condições dignas de vida que lhe garantam seu processo de
auto-construção, tendo como horizonte a emancipação do gênero humano.

A atividade humana não se esgota na atividade produtiva. Por outro lado, o


trabalho mantém um lugar central, mesmo na sociedade contemporânea, visto que não
se está, em hipótese alguma, reduzindo o número de trabalhadores que precisam vender
sua força de trabalho. O que está ocorrendo é uma fragmentação, heterogeneização e
complexificação da classe trabalhadora, impondo imensos desafios à organização
sindical.

É preciso uma análise séria e comprometida sobre as mutações por que passa o
capitalismo contemporâneo e suas implicações na organização do mundo do trabalho e
da classe trabalhadora e acerca da relação entre mudança tecnológica e a política de
(des) emprego estrutural permanente, desregulamentação, flexibilização, precarização e
mudanças na legislação sindical - pressupostos básicos da ofensiva do capital no campo
das relações de trabalho. Estes pressupostos destroem a possibilidade de integração do
indivíduo na sociedade.

Não é nossa intenção esgotar aqui essa discussão sobre as influências desses
paradigmas na política educacional, particularmente no projeto de formação de
professores do MST e o que isso representa em termos de aproximação ou
distanciamento com a Pedagogia das Competências.

Devemos retornar mais apropriadamente a essa temática nos próximos


capítulos quando analisaremos as influências do Relatório da Conferência de Jomtien e
do próprio pensamento desses autores na proposta de formação de professores do
Movimento, por meio da análise das entrevistas realizadas, dos documentos do Setor de
Educação e da observação realizada no Instituto de Educação Josué de Castro, em
Veranópolis – RS.
110

CAPÍTULO 3

OS PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO DO MST: FORMAÇÃO HUMANA EM


MOVIMENTO

Nossa proposta de educação está sendo posta em prática


toda vez que nos organizamos para lutar por uma nova escola;
toda vez que reunimos o assentamento para tratar sobre a educação
que interessa desenvolver para nossos filhos e filhas;
toda vez que mais um assentado ou assentada aprendem a ler e a escrever;
toda vez que um jovem descobre o valor de continuar estudando;
toda vez que aumentamos o número de sem terra
que se formam na perspectiva de continuar a luta...
toda vez que tentamos concretizar estes princípios.
(MST, 1999).

A exposição de uma síntese compreensiva dos princípios e valores norteadores


da proposta de educação do MST, batizada de Pedagogia do Movimento, somada ao
levantamento dos principais teóricos inspiradores na formulação dos pressupostos dessa
proposta, resulta nesse texto que ora apresentamos. Tal análise tomará como referência
o exame dos documentos e textos indicados como os mais representativos por seus
integrantes, além do apanhado das entrevistas já realizadas com lideranças e militantes
do Setor de Educação do Movimento.

Após a apresentação desse esforço sintético-analítico em que explicitaremos o


pensamento original do Movimento em termos do seu projeto de formação humana de
natureza mais ampla, tentaremos estabelecer uma relação entre os principais
pressupostos teórico-metodológicos dessa proposta e os princípios defendidos pelo
Relatório final da Conferência de Jomtien, intitulado Educação: um tesouro a descobrir,
que foi objeto de nossa análise no capítulo anterior.

Dessa forma, iniciaremos com o estudo sobre um importante documento citado


na maioria das publicações sobre a educação do MST. Trata-se do Caderno nº 8,
111

intitulado Princípios da Educação no MST56, produzido pelo Setor de Educação do


MST e que contou com a sistematização da professora Roseli Caldart. É válido ressaltar
que o referido documento adverte que todos os princípios da educação do MST tomam
como centro a relação pedagógica que se estabelece entre educadores/educadoras e
educandos/educandas.

3.1. A Pedagogia dos Sem Terra em documentos: problematizando seus princípios

Por apresentar os princípios da educação do MST é que esse documento se


constitui num importante referencial de análise da nossa pesquisa, já que desejamos
compreender a relação entre a proposta de educação do Movimento com os paradigmas
dominantes na educação, mais especificamente, a influência das teses presentes no
relatório final da Conferência de Jomtien na Pedagogia do Movimento.

O documento consolida a sistematização das reflexões do MST sobre educação,


particularmente sobre uma nova proposta pedagógica para as escolas dos acampamentos
e assentamentos. Seu objetivo é o de oferecer subsídios ao estudo sobre a concepção
pedagógica e guiar as ações educativas do MST, trazendo como tarefa principal definir
quais são os princípios educacionais do Movimento e entendê-los como balizadores do
horizonte e do lugar onde se quer chegar enquanto estratégia de transformação da
educação.

Já na Introdução desse documento, são delineadas algumas definições sobre os


princípios (filosóficos e pedagógicos) da educação. Por princípios, entendem-se
algumas idéias, convicções e formulações que compõem o referencial para o trabalho
educativo do MST. São considerados ainda como ponto de partida das ações e, ao
mesmo tempo, como resultados e frutos das práticas realizadas e acumuladas por
experiências anteriores.

56
Título original do Caderno de Educação n. 8, produzido pelo Setor de Educação do MST e que
apresenta na própria capa (roda-pé): Reforma Agrária: semeando educação e cidadania. Esse documento
surgiu da necessidade de reedição do Boletim da Educação n. 1, Como deve ser uma escola de
assentamento, escrito em agosto de 1992, pois o referido Boletim foi o mais citado, num levantamento
realizada junto ao Coletivo Nacional do Setor de Educação, como um dos materiais mais importantes para
o estudo e divulgação da proposta de educação do MST nos estados. (1999: 3)
112

Definem-se no documento os princípios filosóficos e pedagógicos que


embasariam a prática educativa do Movimento, os quais, ainda que intrinsecamente
relacionados, distinguem-se quanto às dimensões indicadas a seguir:

- princípios filosóficos: “dizem respeito a nossa visão de mundo, nossas


concepções mais gerais em relação à pessoa humana, à sociedade, e ao que
entendemos que seja educação. Remetem aos objetivos mais estratégicos do
trabalho educativo do MST” (MST, 1999:04).

- princípios pedagógicos: “referem-se ao jeito de ser e de pensar a educação,


para concretizar os próprios princípios filosóficos. Dizem dos elementos que são
essenciais e gerais na nossa proposta de educação, incluindo especialmente a
reflexão metodológica dos processos educativos, chamando atenção de que pode
haver práticas educativas diferenciadas a partir dos mesmos princípios
pedagógicos e filosóficos” (idem).

Nos termos do documento, a educação consistiria num processo de formação da


pessoa humana, por meio do qual, “as pessoas se inserem numa determinada sociedade,
transformando-se e transformando esta sociedade” (idem, p.5). Nessa perspectiva, esse
processo de formação deve, na percepção do documento, estar concatenado com um
determinado projeto político e com uma concepção de mundo em que a educação seria
uma das dimensões importantes da formação humana, em seu sentido amplo e em seu
sentido mais específico para a organização do Movimento e para o conjunto da luta dos
trabalhadores em geral.(idem)

Na explicitação dos princípios filosóficos, o documento insiste numa visão


classista da educação vinculada à transformação social a partir da velha ordem,
tropeçando, porém, nos elementos referentes às relações entre socialismo e democracia.
Deste modo, o documento deixa claro seus pressupostos, afirmando como primeiro
princípio a educação para a transformação social:

O horizonte que define o caráter de educação do MST: um processo


pedagógico que se assume como político, ou seja, que se vincula
organicamente com os processos sociais que visam a transformação da
sociedade atual, e a construção, desde já, de uma nova ordem social,
cujos pilares principais sejam, a justiça social, a radicalidade
democrática, e os valores humanistas e socialistas (idem, p. 6).
113

A partir da definição desse horizonte, o documento apresenta uma série de


características essenciais para o desenvolvimento de sua proposta de educação:

- Educação de classes: concebida como uma educação que se organiza na


perspectiva de construir a hegemonia do projeto político das classes
trabalhadoras e que tem como objetivo fortalecer o poder popular e a formação
de militantes para as diversas organizações dos trabalhadores, dentre elas, o
MST. Tem como compromisso a formação da consciência de classe e da
consciência revolucionária;

- Educação massiva: compreendida como a defesa do direito de todos à


educação, em suas diversas formas, com especial ênfase para o processo de
escolarização. Entende-se que os saberes apropriados na escola fazem a
diferença na formação dos trabalhadores;

- Educação organicamente vinculada ao movimento social: sinaliza uma defesa


da construção de uma proposta de educação ligada às lutas, aos objetivos e à
organicidade do MST;

- Educação aberta para o mundo: vislumbra-se, nesta proposta de educação,


uma abertura de horizontes dos educandos e educadores do MST, sem se fechar
aos limites da realidade dos demais movimentos, nem de suas reivindicações
específicas;

- Educação para a ação: interpretada como a preparação de sujeitos sociais com


capacidade, como o próprio texto afirma, de “intervenção e de transformação
prática (material) da realidade... Nossa educação deve alimentar o
desenvolvimento da chamada ‘consciência organizativa’, que permite que as
pessoas passem da crítica à ação organizada de intervenção concreta na
realidade” (idem, p. 7).

Nesta última característica, percebe-se a definição de que a transformação


prática é sinônima de material, apesar de acompanhada de parênteses. Até então, vale
notar, tínhamos apenas uma transformação no modo de ser, subjetiva, alicerçada numa
formação de valores humanistas.

O segundo princípio filosófico que deve embasar a proposta de educação do


MST é o da educação para o trabalho e para a cooperação:
114

O que defendemos através deste princípio é a relação necessária que a


educação e a escola devem ter com os desafios do seu tempo histórico[...]esta
relação não pode hoje, desconsiderar a questão da luta pela Reforma Agrária
e os desafios que coloca para a implementação de novas relações de produção
no campo e na cidade. Para o MST, nesta perspectiva, uma educação voltada
para a realidade do meio rural é aquela que ajuda a solucionar os problemas
que vão aparecendo no dia a dia dos assentamentos e dos acampamentos, que
forma os trabalhadores e as trabalhadoras para o trabalho no meio rural,
ajudando a construir reais alternativas de permanência no campo e de melhor
qualidade de vida para esta população (idem p. 7 e 8).

A cooperação é tratada pelo MST como elemento estratégico na construção de


novas relações sociais que devem partir de uma nova mentalidade sobre a organização
no meio rural. Entende-se como necessária à criação de novas formas de cooperação
para superação de velhos problemas.

Trabalho, comercialização, acesso às novas tecnologias, moradia, conquista


de escolas, postos de saúde, construção de uma agroindústria, de uma área de
lazer. São estas questões do dia a dia dos assentamentos que vêm criando as
diversas formas de cooperação que defendemos. Só que muitas vezes elas
barram na herança cultural do individualismo, do isolamento e do
conservadorismo que ainda carregamos. Por isso a necessidade de uma
formação intencionalmente voltada para a cultura da cooperação e para a
incorporação criativa das lições da história organizativa do trabalho. (idem, p.
8)

O terceiro princípio filosófico da educação do Movimento seria a formulação de


uma educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana, que destaca, dentre
outras, as formações: político-ideológica, organizativa; técnico-profissional, do caráter
ou moral (valores, comportamentos em relação às pessoas), cultural e estética, afetiva e
religiosa.

Intenciona-se defender uma educação omnilateral que tem como eixo uma
práxis social que integre as diversas esferas do homem:

A palavra omnilateral vem de Marx, que usava a expressão “desenvolvimento


omnilateral do ser humano”, para chamar a atenção de que uma práxis
educativa deveria dar conta de reintegrar as diversas esferas da vida humana
que o modo de produção capitalista prima por separar... Estamos defendendo
então que a educação no MST assuma este caráter de omnilateralidade,
trabalhando em cada uma de suas práticas, as várias dimensões das pessoas
humanas e de um modo unitário ou associativo, em que cada dimensão tenha
sintonia com a outra, tendo por base a realidade social em que a ação humana
vai acontecer (idem, p. 8).
115

Como quarto princípio filosófico para a educação do MST, encontramos:


educação com/para valores humanistas e socialistas.

A educação do MST quer ajudar na construção do novo homem e da nova


mulher. Para isso é fundamental uma formação que rompa com os valores
dominantes na sociedade atual, centrada no lucro e no individualismo
desenfreados... Estamos chamando de valores humanistas e socialistas
aqueles valores, então, que colocam no centro dos processos de
transformação a pessoa humana e sua liberdade, mas não como indivíduo
isolado e sim como ser de relações sociais que visem a apropriação coletiva
destes bens materiais e espirituais da humanidade (idem, p. 9).

Diante do elenco desses valores para consecução de uma sociedade


humanista/socialista, destacaremos alguns que consideramos mais representativos para
nossa posterior análise sobre as concepções de homem, sociedade e educação do MST.

O sentimento de indignação diante de injustiças[...]; o companheirismo e a


solidariedade nas relações entre as pessoas e os coletivos; a busca da
igualdade combinada com o respeito às diferenças culturais, de raça, de
gênero, de estilos pessoais; o planejamento; o respeito à autoridade que se
constitui através de relações democráticas e de coerência ética; a disciplina no
trabalho, no estudo e na militância; a força/dureza necessária à militância
política mesclada com a ternura e o respeito nas relações interpessoais; a
construção do ser coletivo combinada com a possibilidade da livre
emergência das questões da subjetividade de cada pessoa; a sensibilidade
ecológica e o respeito ao meio ambiente; a criatividade e o espírito de
iniciativa diante dos problemas; o cultivo do afeto entre as pessoas[...] (idem,
p. 09).

O quinto princípio refere-se à educação como um processo permanente de


formação-transformação humana. A crença na capacidade de transformação humana é
enfatizada e é entendida como condição básica para o desenvolvimento da educação. É
preciso então que os educadores acreditem que as pessoas mudam e se educam em
processo e nem sempre da mesma maneira. É necessário, assim, para o MST, que a
existência social de cada pessoa seja a base, o fundamento de seu processo educativo.
Nesse sentido, o documento adverte:

Se o que pretendemos é transformar ou construir comportamentos, atitudes,


valores (consciência) em nossos educandos/nossas educandas, é preciso
organizar as condições objetivas para que vivam durante o processo
pedagógico estas mudanças[...]A educação que pretendemos é cada vez
menos um processo espontâneo e mais um processo intencionalmente
planejado e provocado. A educação não é obra apenas da inteligência, do
pensamento; é também da afetividade, do sentimento... (1999, op. cit, p. 10).
116

Temos ainda no documento a apresentação de 13 princípios pedagógicos da


educação do MST, que sintetizaremos a seguir, acompanhada de comentários em torno
dos trechos que consideramos mais importantes. Esses princípios demonstram ainda
grande capacidade de elaboração educacional para um movimento social tão atuante em
lutas cotidianas de sobrevivência. Eles apontam para uma preocupação com aspectos
sociais muito mais amplos e complexos do que as meras necessidades do dia-a-dia.
Registre-se, assim, a tentativa de se experimentar valores que o Movimento avalia como
indicativos de uma nova sociedade, a saber:

1. Relação entre prática e teoria; 2. Combinação metodológica entre processos de ensino


e capacitação; 3. A realidade como base da produção do conhecimento; 4.Conteúdos
formativos socialmente úteis; 5.Educação para o trabalho e pelo trabalho;6.Vínculo
orgânico entre processos educativos e processos políticos; 7.Vínculo orgânico entre
processos educativos e processos econômicos; 8.Vínculo orgânico entre educação e
cultura; 9.Gestão democrática; 10.Auto-organização dos/das estudantes; 11.Criação de
coletivos pedagógicos; 12.Criação de coletivos pedagógicos e formação permanente dos
educadores/das educadoras; 13.Combinação entre processos pedagógicos coletivos e
individuais.

Em relação ao primeiro princípio, relação entre prática e teoria, o documento


ressalta a importância de formar pessoas capazes de articular, de forma competente,
teoria e prática, dentro de cada processo pedagógico. Esta articulação é tratada como
prioritária para o desenvolvimento de um novo projeto social para o campo.

Queremos que a prática social dos/das estudantes seja a base do seu processo
formativo, seja a matéria-prima e o destino da educação que fazemos...Em
outras palavras, também estamos afirmando o primado da prática sobre a
teoria, ou seja, de que as verdadeiras teorias são aquelas que são frutos de
práticas sociais e que, por sua vez, instrumentalizam práticas sociais[...] O
grande desafio metodológico que este princípio nos traz é o de como aprender
a articular o maior número de saberes diante de situações da realidade.
Aprendizagem que é a garantia, não só para atingirmos os objetivos da nossa
educação, como também para deixar este processo com muito mais sabor,
mais prazer, mais sentido (idem, p. 11).

O segundo princípio resulta da tentativa em combinar, metodologicamente,


processo de ensino e de capacitação:
117

A afirmação é, então, que na educação que fazemos sejam combinados os


processos de ensino com os de capacitação. Ou seja, ambos são importantes,
porque dão conta de dimensões diferenciadas. A questão é priorizar ora um
ora outro, dependendo dos objetivos formativos que estão em jogo (idem, pp.
12 e 13).

Considera-se, assim, as diferentes maneiras de aprender, tomando por base a


distinção entre processos de ensino que têm como principal característica o momento
do conhecimento (teoria) anterior à ação e a capacitação, onde, ao contrário, a ação
antecede o conhecimento sobre ela. Estes processos de produção de conhecimentos
obedeceriam a lógicas distintas e contraditórias.

ENSINO resulta em saberes teóricos ou, poderíamos dizer simplesmente em


saber. A CAPACITAÇÃO resulta em saberes práticos ou, como temos
preferido chamar, em saber-fazer (habilidades, capacidades) e em saber-ser
(comportamentos, atitudes, posicionamentos) (idem, p. 12).

No exame dos princípios expostos nos documentos, um nos chamou particular


atenção: o terceiro princípio, que tomaria a realidade como base da produção do
conhecimento. Ele é situado dentro do movimento “particular ao geral e do geral ao
particular” que seria fruto da relação prática-teoria-prática. Advoga-se partir da
realidade mais próxima do educando para se chegar à produção do conhecimento da
realidade mais ampla. Esta formulação está presente em todas as propostas curriculares
ligadas ao campo de esquerda, e é essencial para uma educação que tome como objetivo
maior a libertação do homem.

Vejamos o texto original:

Partir da realidade mais próxima já é um pouco conhecida pelos educandos,


tem se mostrado um facilitador da aprendizagem. Por exemplo, entender a
situação da agricultura no País hoje, fica mais fácil se começarmos discutindo
como está a situação da produção do nosso assentamento. Porque se consegue
partir dos conhecimentos que os/as estudantes já têm e ir ligando com novas
informações estudos e discussões que, chegando à realidade nacional e até
internacional, vão acabar ajudando a entender melhor a própria situação do
assentamento. Ou seja, se conhece transitando constantemente do particular
ao geral e do geral ao particular... (idem, p. 14).

Existe no quarto princípio - conteúdos formativos socialmente úteis - a


preocupação com a escolha dos conteúdos. Estes devem contribuir para que se atinjam
os objetivos educacionais e sociais mais amplos do MST.
118

Os conteúdos são entendidos como síntese de conhecimentos produzidos


historicamente pela humanidade. Aos educadores é feita a observação essencial de que
os mesmos necessitam de uma sólida formação teórica para que sejam capazes de
realizar uma seleção de conteúdos, bem como das metodologias de ensino.

No fundo podemos afirmar que se trata de utilizar também nesta dimensão


específica, o princípio da justiça social, ou seja, selecionar aqueles conteúdos
que, de um lado, estejam na perspectiva de distribuição igualitária dos
conhecimentos produzidos pela humanidade; e de outro lado, que tenham a
potencialidade pedagógica necessária para educar os cidadãos/as cidadãs da
transformação social. Em outras palavras, devemos analisar cada conteúdo a
ser ensinado, perguntando-nos até que ponto contribui para a concretização
dos demais princípios de que tratamos neste caderno (idem, p. 15).

O quinto princípio trata da relação trabalho-educação: educação para o trabalho


e pelo trabalho:

Na proposta de educação do MST, o trabalho tem um valor fundamental. É o


trabalho que gera a riqueza; que nos identifica como classe; e que é capaz de
construir novas relações sociais e também novas consciências, tanto coletivas
como pessoais. Quando dizemos que a nossa educação pretende criar sujeitos
de ação temos presente que estes sujeitos são, principalmente,
TRABALHADORES. Trabalhadores/trabalhadoras militantes, portadores de
uma cultura da mudança e de um projeto de transformação (idem, pp. 15 e
16).

O sexto princípio trata do vínculo orgânico entre processos educativos e


processos políticos. Indica uma tentativa de superar, por intermédio da educação de
crianças, jovens e adultos, a alienação presente na sociedade, sempre com o objetivo de
articular a educação com a formação política dos militantes, para corroborarem com a
luta pela reforma agrária, colocada como um dos objetivos vinculados a esse princípio:

Chegar a ser militante! Esta é a meta; porque nada mais efetivo no


aprendizado político do que pertencer a uma organização. Pertencer a uma
organização é assumir seu caráter, seus princípios, seus objetivos, e estar
disposto a realizar as tarefas que lhe são confiadas...(1999, op. cit. P. 17)

O sétimo princípio faz referência ao vínculo orgânico entre processos


educativos e processos econômicos. Nele, defende-se que a educação enquanto
processo de transformação de consciências deve trabalhar relações que são a base
material da sociedade e, conseqüentemente, a base do binômio formação/transformação.
119

Durante muito tempo se pensou que a educação não tinha e não deveria ter
nada a ver com economia. Até porque geralmente se pensa na economia
capitalista. Então, se a educação se mistura com a economia, está
reproduzindo a exploração, a dominação e a exclusão, que são as
características básicas do modelo econômico de mercado capitalista. Só que
isto é uma ilusão! Se o que queremos, afinal, é a transformação deste modelo,
não é fugindo das relações econômicas que vamos conseguir isso. Ao
contrário, é experimentando outros tipos de relações que até podemos
descobrir como, de fato, toda a sociedade pode ser diferente (idem, p. 18).

Defende-se, ainda, a idéia de se aproximar os estudantes dos cursos de


capacitação, especificamente, os TAC (Técnico em Administração de Cooperativas) e o
magistério, ao funcionamento do mercado e dos processos produtivos, para que possam
entender as regras desse mercado, através de experiências concretas de produção e
comercialização de bens e serviços materiais ou não.

Ainda sobre a análise desse documento que trata dos Princípios filosóficos e
pedagógicos da educação do MST (1999), que devem orientar e balizar as ações
educacionais do Movimento, é mister reavivar um dos cinco princípios filosóficos da
proposta educacional do MST, dentre eles, educação de classes, que estabelece como
perspectiva uma educação voltada para a construção da hegemonia política das classes
trabalhadoras e para a formação da consciência de classe.

No princípio filosófico educação para o trabalho e para a cooperação,


advoga-se uma relação estreita entre a educação e a escola, que não deve desconsiderar
a questão da luta pela reforma agrária, que deve ser pautada, cotidianamente, na busca
de soluções para os problemas do trabalho no meio rural.

Para isso, apontam como prioridade estratégica para a organização no meio


rural, o investimento na cultura da cooperação que ajuda a construir historicamente
alternativas de permanência no campo e para a implementação criativa das lições da
história organizativa do trabalho (MST, op. cit. 1999:8).

Como terceiro princípio filosófico, é indicada a educação voltada para as


várias dimensões da pessoa humana, onde o Movimento diz recorrer à proposta de
omnilateralidade de Marx, como forma de defender uma práxis educativa que reintegre
as diversas esferas da vida humana que o modo de produção capitalista separa (idem, p.
8).
120

No elenco dos 13 princípios pedagógicos do MST, apresentados anteriormente,


temos a clara definição de uma proposta educacional que tem como prioridade a defesa
de uma formação humana mais ampla, com espaço para conteúdos formativos que
vinculam a prática cotidiana com às dimensões sociais, políticas, econômicas,
organizativas, estéticas, morais e culturais. Toda essa formação só poderá ser
encaminhada se assumir como desafio metodológico e princípio a relação entre teoria e
prática, entendida como prioritária para o desenvolvimento de um novo projeto social
para o campo (idem, p. 11).

Dentro desse elenco, encontramos o princípio da combinação metodológica


entre processos de ensino e capacitação (idem, p. 12). Nele, a concepção de capacitação
ganha uma tarefa até superior ao ensino porque tem como característica o saber-ser, o
que na verdade deve ser fruto da formação como um todo.

Um outro princípio pedagógico firmado no documento trata da relação entre


trabalho e educação, - educação para o trabalho e pelo trabalho. (idem, p. 15). Os
objetivos desse princípio formativo são os de formar trabalhadores militantes,
fundamentados numa cultura de mudança e num projeto de transformação social.

Objetiva, ainda, desenvolver o amor pelo trabalho, especialmente o rural:


entender o valor do trabalho enquanto produtor de riquezas; identificar as diferenças
entre as relações de exploração e relações igualitárias de construção social pelo
trabalho; superar a dicotomia trabalho manual e intelectual; tornar mais educativo o
trabalho desenvolvido no MST e desenvolver habilidades, comportamentos, hábitos e
posturas necessários aos postos de trabalho criados no processo de luta pela reforma
agrária.

A outra dimensão trata da compreensão do trabalho enquanto método


pedagógico. Seria a combinação entre estudo e trabalho como instrumento na proposta
educacional do MST a partir das seguintes articulações:

O trabalho como prática privilegiada capaz de provocar necessidades de


aprendizagem, o que tem a ver com o princípio da relação entre prática e
teoria, com a construção de objetos de capacitação, e com a idéia de produzir
conhecimento sobre a realidade; o trabalho como construtor de relações
sociais e, portanto, espaço também privilegiado de exercício da cooperação e
da democracia; estas mesmas relações sociais como lugar de
desenvolvimento de novas relações entre as pessoas e coletivos em comum,
de cultivo também da mística da participação nas lutas dos trabalhadores, e da
formação da consciência de classe (idem, p. 16).
121

Os conteúdos dos demais princípios pedagógicos da educação do MST são de


certa forma similares aos que vimos aqui tratando, pelo menos em termos de
formulações e definição teórica, tendo presentes as mesmas contradições, incoerências e
riqueza no sentido de desvelar o real no qual o Movimento está inserido.

Todos tratam mais especificamente da relação entre educação e cultura; da


relação entre processos educativos individuais e organização coletiva, a serem
desenvolvidas através de coletivos pedagógicos; da defesa da gestão democrática e da
auto-organização dos estudantes, além de se advogar uma formação permanente de
professores com um espaço relevante para a pesquisa.

O que une todos estes princípios é uma clara defesa da democracia enquanto
princípio pedagógico no contexto da luta pela terra:

Considerar a democracia como um princípio pedagógico significa dizer que,


segundo nossa proposta de educação, não basta os educandos estudarem ou
discutirem sobre ela; precisam também, e principalmente vivenciar um
espaço de participação democrática, educando-se pela e para a democracia
social (idem, p. 20).

Com esse espírito de abertura democrática, encontramos o princípio básico de


que o coletivo educa o coletivo (idem, p. 23), que contemplaria ainda, a identidade
cultural dos trabalhadores em geral e, especialmente, os trabalhadores que pertencem ao
MST. Neste sentido, as escolas e os cursos devem tornar-se espaços privilegiados para a
vivência e a produção de cultura. Trata-se não só do resgate da cultura popular, mas,
principalmente, da produção de uma mentalidade cultural, uma cultura de mudança.

A formação permanente dos educadores é tratada como tarefa de um coletivo de


professores que deve aliar estudo, planejamento, pesquisa e análise da realidade com
práticas coletivas com educadores, educandos e comunidade em geral.

O princípio do trabalho de educação através de coletivos pedagógicos podem


ser o espaço privilegiado de autoformação permanente, através da reflexão
sobre a prática, do estudo, das discussões e da própria preparação para outras
atividades de formação promovidas pelo MST, pelos órgãos públicos, por
outras entidades. Além de qualificar o trabalho, o coletivo tem ainda outra
dimensão formativa: ele mais facilmente alimenta o nosso direito de sonhar,
de criar, de ousar fazer coisas novas. Um direito que, no nosso caso, é
também um dever! (idem, p. 22).

Nesse sentido, iguala a pesquisa à investigação sobre uma realidade,


concebendo-a como um princípio no processo de formação humana, em que se
122

desenvolve a habilidade de desenvolver "um método de analisar a realidade para poder


fazer proposições mais adequadas a uma intervenção nela" (idem).

[...] A pesquisa ou a investigação implicam uma atitude diante do mundo,


diante do conhecimento, e implicam habilidades, ou competências que
precisam ser formadas nas pessoas, aprendidas por elas.[...] E, só para
também exercitarmos o princípio da relação entre uma coisa e outra,
lembramos que aqui se trata de um processo de CAPACITAÇÃO, ou seja, o
saber pesquisar está no âmbito do saber-fazer e do saber-ser, com tudo que
isso implica... (idem, p. 22-23)
A pesquisa consistiria assim num esforço sistemático e rigoroso de entender
cientificamente os problemas que surgem para o Movimento, possibilitando a resolução
destes a partir do conhecimento da situação atual e da história anterior ao surgimento da
problemática. A prática da pesquisa é apresentada como eixo a ser trabalhado no
cotidiano das escolas do Movimento, inserindo-a no princípio de relacionar teoria e
prática, consistindo numa metodologia de educação adequada às exigências específicas
do contexto de todo o processo pedagógico.

O documento não apresenta explicitamente ao longo de seu texto referências a


nenhum teórico que possa ter inspirado essa proposta. No entanto, logo na apresentação
do texto, chama a atenção para a penúltima parte do Caderno, onde se indicará alguns
interlocutores teóricos da pedagogia dos Sem Terra. Ao examinar essa parte do Caderno,
encontramos uma relação de sugestões de leituras para aprofundar o entendimento
teórico sobre os princípios apresentados, subdividida entre documentos do MST e as
obras de alguns autores clássicos reconhecidos como importantes interlocutores do
Movimento.

Entre os documentos do MST, encontramos um que trata das concepções de


Anton Makareno: O Trabalho e a Coletividade na Educação. Anton Makarenko.
(Boletim de Educação n. 05 de 1995).

Na relação dos autores predominantemente vinculados ao campo socialista,


temos as seguintes indicações no referido documento:

- O Capital, de Karl Marx;

- Marx y la Pedagogia Moderna e O Princípio Educativo em Gramsci, de Mário


Alighiero Manacorda;

- Poema Pedagógico e Problemas da Educação Escolar Soviética, de Makarenko;

- Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire;


123

- Sobre a Educação, Lênin;

- Fundamentos da Escola do Trabalho, de Pistrak;

- Ideário Pedagógico, de José Martí;

- O Desenvolvimento do Psiquismo, de Leontiev;

- La Educación Laboral y La Enseñanza, de Krupskaya;

- Racionalidade Pedagógica e legitimidade Política, de Tanguy.

Na leitura de outros documentos e textos indicados pelo próprio MST e nas


entrevistas realizadas com os componentes do seu Coletivo Nacional de Educação,
como veremos posteriormente, despontam outros autores clássicos como Jean Piaget e
Vygostski, e autores contemporâneos, como Leonardo Boff, Paulo Freire, Miguel
Arroyo, Pablo Gentili, Gaudêncio Frigotto, Roseli Caldart, dentre outros.

No documento intitulado Pedagogia do Movimento Sem Terra:


Acampanhamento às Escolas,57 encontramos clara indicação dos teóricos que
influenciam a gama de produções do Setor de Educação do MST, especialmente quando
se refere a uma lição que deve ser perseguida por todos os educadores dos Sem Terra.

O educador educa pela sua conduta...A força do MST não está nos seus
discursos, mas sim nas ações e na postura dos Sem Terra que as reluzam. São
as práticas e a conduta do coletivo que educam as pessoas que fazem parte do
movimento ou com ele convivem. (2001: p 38)

Esse modo de ser educador e educar é, segundo o MST, espelhado nas


referências de Paulo Freire e Che Guevara, que educaram não só pelo que disseram e
escreveram, mas pelo testemunho de coerência como militantes das causas do povo. A
partir desta referência, o documento apresenta alguns traços de conduta para a atuação
do educador: a militância de educadores que precisam assumir a condição de militantes,
politizando cada ação cotidiana, e que fazem da sua militância, no conjunto da
organização, sua principal tarefa educativa.

57
Elaborado a partir de uma coletânea de textos produzidos nos últimos anos (mais precisamente no final
de 1999 e ao longo do ano 2000 e início de 2001), com o intuito de subsidiar e apoiar as discussões sobre
a concepção de educação e de escola, organizados pelo Coletivo Nacional do Setor de Educação, sempre
com a colaboração da Professora Roseli Caldart, que produziu os textos a partir de debates a respeito do
tema, conforme registra o próprio documento. In: MST. Pedagogia do Movimento Sem Terra:
acompanhamento às escolas. Boletim da educação, n. 8. Porto Alegre – RS: Gráfica e Editora Peres, julho
de 2001.
124

A análise desse documento que trata especificamente do acompanhamento às


escolas dos acampamentos e assentamentos apresenta a riqueza de demonstrar como o
Setor de Educação concebe temas complexos, como educação, escola, educando,
educador. No âmbito dessas concepções, desponta a formulação de construção de uma
contra-ideologia e, conseqüentemente, de contra-hegemonia58, tomada como uma das
tarefas principais do projeto educativo do MST.

Um texto específico sobre a Pedagogia do Movimento Sem Terra, presente no


documento em tela, elaborado em setembro de 1999, na verdade, uma síntese da tese de
doutoramento da professora Roseli Caldart59, intitulada Pedagogia do Movimento Sem
Terra: Escola é mais do que Escola... lança inicialmente a seguinte questão “Por que
falar em Pedagogia do Movimento Sem Terra e não mais em proposta de educação ou
proposta pedagógica do MST?” (idem, p. 19).

A respeito dessa questão referida à utilização da nomenclatura Pedagogia do


Movimento, encontramos como resposta a tese de que tal Pedagogia não cabe na escola,
mas a escola cabe na Pedagogia do Movimento, pois toma como princípio educativo
principal o próprio Movimento. Mais do que uma proposta, é uma prática viva que se
preocupa em construir uma escola diferente que visa a um projeto amplo de formação
humana aliada ao próprio movimento da história, o qual forma novos sujeitos sociais e
educa seres humanos. Este projeto, segundo o Movimento, não caberia numa escola
porque envolveria a vida como um todo.

Nessa proposta de formação ampla, denominada Pedagogia do Movimento, o


coletivo passa a ser o fundamento. A escola contribui para que o MST desenvolva um
olhar para a educação e o Movimento ajuda a escola a repensar sua concepção de
educação, extraindo as lições para a reflexão sobre um projeto de educação popular para
o Brasil. A escola seria, assim, um locus privilegiado de formação humana,
reconhecendo o Movimento como um sujeito educativo que necessita dela para cultivar
sua identidade coletiva de Sem Terra e para dar continuidade ao seu projeto histórico.

58
Observa-se, em suas propostas de educação, que O MST recorre ao pensador italiano Antônio Gramsci,
quando expressa a sua preocupação na formulação de uma nova ideologia e de uma nova hegemonia. Em
Gramsci, a hegemonia do proletariado representa a construção de uma nova sociedade como uma nova
estruturação econômica e organização política acompanhada por uma conseqüente orientação ideológica e
cultural. Essa contra-hegemonia do proletariado deve realizar-se no âmbito da sociedade civil, enquanto
que a repressão e a coerção contra os trabalhadores são assumidas pelo Estado burguês. Cf. GRAMSCI,
Concepção dialética da história. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1978.
59
A tese da professora Roseli Caldart será objeto de nossa análise quando formos tratar especificamente
da Proposta de Formação de Professores do MST no capítulo que se segue.
125

O reconhecimento do Movimento enquanto sujeito educativo e sua experiência


de formação humana é considerada como algo concreto quando este cita sua
participação na articulação nacional por uma educação básica do campo. Ele se revela
também no diálogo com as universidades brasileiras que já oferecem cursos de
formação de professores em alguns estados do Brasil.60

Para melhor compreensão a respeito do que seja a sua Pedagogia, recorremos à


definição adotada pelo próprio MST:

Então o MST não tem outro jeito senão radicalizar (ir à raiz) sua pedagogia, para
assumir conscientemente o seu destino. E não fará isso sem refletir mais
profundamente sobre si mesmo, no conjunto de suas ações e das dimensões que
compõem sua organização, desde a perspectiva da formação humana e da produção
dos sujeitos sociais da luta de classes... Em nossa pedagogia, pois, o trabalho, a
divisão de tarefas, a organização de pessoas para garantir determinada ação não
apenas uma necessidade a ser suprida; são uma ferramenta pedagógica no cultivo
de valores, exatamente aqueles que serão capazes de nos fazer continuar em
movimento (idem, p. 22 e 23)

O MST aposta em três grandes desafios para essa tarefa de educar: o primeiro diz
respeito à ajuda que deve ser dada às famílias sem-terra a fim de que rompam com o
processo de desumanização ou degradação humana a que foram submetidas, no sentido
de tentar fazer com que, a partir do assentamento, vislumbrem uma vida mais digna,
apesar de sua história de miséria degradante.

Um segundo desafio é o de garantir que estas famílias assumam a identidade Sem


Terra, o modo de vida e os valores que sustentam o Movimento e seu projeto político.

Em relação ao segundo desafio e à utilização pedagógica da forma de organização


dos assentados, como distribuição de tarefas e divisão de trabalho, presentes na citação
anterior, apanhamos um depoimento de uma professora de EJA do Assentamento Santa
Bárbara – CE, que vale a pena ser aqui reproduzido:

60
A respeito dessas parcerias, é bom situar que algumas universidades públicas e privadas vêm
oferecendo o Curso de Pedagogia em parceria com o MST, para atender a demanda específica de
formação de seu quadro de professores. Um exemplo disso foi o Projeto Interdepartamental: Curso de
Graduação em Pedagogia para Formação de Professores do Ensino Fundamental e Coordenadores de
Escolarização dos Assentamentos de Reforma Agrária (1998-2001) da Universidade Regional do
Noroeste do Estado-UNIJUÍ do RS. Este curso surgiu em função de uma demanda do Setor de Educação
do Movimento Sem-Terra (MST), encaminhada à UNIJUÍ, inicialmente para curso de formação de
professores em nível médio. Temos ainda os cursos da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
(1999); da Universidade do Estado do Mato Grosso – UNEMAT (1999), da Universidade Federal do Pará
– UFP (2001), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN (2002) e da Universidade
Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS (2002). Todas essas propostas são financiadas com recursos do
Governo federal por intermédio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA.
126

Aqui é muito bom e lindo. Não me agrada muito o fato daqui ter sido fácil entre
aspas porque não houve ocupação, porque a ocupação é uma escola, porque faz com
que a pessoa tome gosto pela terra e pela luta e organização. Você não ganha a terra,
você conquista. Pelo fato de não ter sido ocupação, passado por este processo, aqui
tem alguns que viveram no passado sendo definido pelo patrão. Se você não
participa da ocupação continua na sua cabeça a história de ser mandado. Não é fácil
apagar isso que foi vivido nos anos passados até porque é uma coisa que vem de
500 anos passados de exploração (Maio de 2001).

Percebe-se que a professora comunga dos mesmos receios expostos pelo Setor
de Acompanhamento, que, no documento em pauta, adverte que a base social do MST
não tem a consciência do que seja a identidade Sem Terra, surgindo assentados com
jeito de fazendeiros que se autodenominam “com-terra”.

O terceiro desafio faz referência à proposta de que outros setores sociais, que
não os sem-terra, assumam os valores e o modo de vida dos lutadores do povo,
conquistando novos aliados para a defesa de um projeto de reforma agrária no Brasil.

O Movimento precisa continuamente envolver novos adeptos para a luta pela


reforma agrária. Constata-se um enorme interesse em garantir novos simpatizantes, não
importando, de início, a que corrente ideológica se filiem. Aliás, parece ser esta uma
forma de o Movimento se proteger quanto às investidas de criminalização por parte do
Governo, ampliando a sua base social de apoio.

Isto pode gerar uma certa confusão de referenciais na própria organização do


Movimento, pois, ali, parecem mesclar-se muitos ideais e princípios, por vezes
divergentes ou mesmo antagônicos entre si.

Nos três textos, apêndices do documento em questão, temos uma reflexão do


Setor da Educação em relação às Lições de Pedagogia elaboradas a partir das discussões
realizadas em encontros e diálogos com educadores, segundo o próprio documento,
ligados ao campo da Educação de Jovens e Adultos e das séries iniciais do Ensino
Fundamental, que apresentaremos em seguida.

Temos de início a defesa de duas grandes tarefas históricas para o MST:

Ajudar a acabar com o ‘pecado mortal’ do latifúndio, desconcentrando e


tornando socialmente produtivas as terras deste País imenso; ajudar a
humanizar as pessoas, formando seres humanos com dignidade, identidade e
projeto de futuro (idem p. 27).
127

Para o alcance dessas tarefas, o MST postula a necessidade premente de investir


na formação de valores e princípios dos lutadores do povo, que deve ser fruto do
processo de construção da identidade coletiva. Para tanto, é importante que estes
cultivem a memória de luta e conheçam de forma mais articulada a história da
humanidade, o que seria de fato a defesa do que o MST denomina de a pedagogia da
história.

Nessa formação dos lutadores do povo, a mística parece assumir uma dimensão
educativa importante, no sentido de incentivar o cultivo dos valores e da memória
simbólica para os militantes mais antigos. Ela serve também para ajudar os novos
militantes a assumir o compromisso pessoal de entrar no processo de luta e vivenciar as
ações de maneira mais humana e plena, como se estivessem num ritual de acolhida.
Como o documento lembra: “cultivar a mística é parte fundamental do que entendemos
por formação humana” (idem, p.29).

Percebemos que o documento em foco, datado de 1999, em geral, fala sempre


dos lutadores do povo como sinônimo de militantes. Já a coletânea de textos mais
recentes compilados nesse mesmo material, refere-se à formação do novo homem e do
cidadão-militante apontando como tarefa da escola: a formação do cidadão-militante ou
a formação do homem omnilateral.

Já em relação à importância atribuída à mística como propulsora importante do


processo educativo desses lutadores, o Movimento afirma que ela existe desde as
primeiras ocupações dos sem-terra, que vêm criando diversos símbolos de representação
de sua luta. Circunstanciais, como a cruz da Encruzilhada Natalina, ou permanentes,
com a bandeira e o hino do MST, esses são signos da unidade em torno de um ideal. Um
integrante do MST resumiu a idéia de mística da seguinte forma:

Nas lutas sociais existem momentos de repressão que parecem ser o fim de
tudo. Mas, aos poucos, como se uma energia misteriosa tocasse cada um,
lentamente as coisas vão se colocando novamente e a luta recomeça com
maior força. Essa energia é que chamamos de ‘mistérios’ ou de ‘mística’.
Sempre que algo se move em direção a um ser humano aí se manifesta a
mística (In. MTSUE, 2001: 209).

Volta-se, então, a aludida mística para a formação de valores e para a construção


do que o MST chama de identidade coletiva a partir dos valores dos lutadores do povo 61,
61
A centralidade no resgate da memória da luta do MST e de seus lutadores pode, de certa forma, nos
remeter a uma analogia com o 18 Brumário de Luís Bonaparte, escrito por Karl Marx, que nos informa
128

tais como esperança, solidariedade, confiança, sensibilidade, indignação diante das


injustiças, capacidade de sonhar, coerência, comprometimento com a luta do povo,
espírito de sacrifício pelo bem-estar coletivo, disciplina, sobriedade, valorização da
própria identidade Sem Terra, dentre outros.

Tais valores, segundo o documento, definem uma nova postura pedagógica e um


novo jeito de ser educador, que compartilhe com os valores produzidos nesta história de
formação humana, que é a história dos Sem Terra, e que se abra ao Movimento como
princípio educativo, também de si mesmo; que cuide e se deixe cuidar pelo Movimento,
ajudando a fazer da pedagogia de quem ocupa a terra, uma arte de lavrar a vida e
produzir gente. (MST, op. cit.2001:31).

Na discussão específica que o MST traça sobre o Projeto Político Pedagógico


das escolas dos acampamentos e assentamentos, temos a defesa de um projeto formativo
que toma como base valores que articulam a educação com a sensibilidade e que devem
ocupar um considerável espaço da agenda pedagógica das escolas. Assim, a formação
de valores passa a ter um lugar central na escolarização.

Dentre estes valores, destacaremos alguns que tratam da formação mais ampla
do indivíduo e que, até então, não foram tratados neste estudo. Tínhamos anteriormente
a defesa da educação e da formação humana a partir da ênfase em valores tais como
solidariedade, respeito às diferenças, dignidade, cultivo da memória da história e dos
símbolos do MST e dos lutadores do povo, esperança, sobriedade, liberdade, dentre
outros, que devem ser trabalhados, principalmente na mística do Movimento.

sobre o calendário instituído após a revolução francesa. Nessa obra, Marx faz uma analogia ao golpe de
Estado de 10 de novembro de 1799 (18 Brumário do VII da República), - no qual Napoleão Bonaparte
(1769-1821) tornou-se a mais importante figura da vida política francesa - com o de Luís Bonaparte,
chamado o III pretendente – Napoleão III, em 1851. Através da narrativa deste golpe de Estado, Marx
estuda a estrutura de classes da França em meados do século XIX e sua articulação política, em função
das possibilidades históricas do momento. O título 18 Brumário representa um calendário republicano
que vigorou na França, no tempo da revolução, entre 24 de outubro de 1793 e 1 de janeiro de 1806.
Implantado pela Convenção Nacional, no qual o ano tinha 12 meses, a semana foi dividida em 10 dias e
cada mês passou a conter três semanas. Os cinco dias excedentes no final da contagem tornaram-se
feriados patrióticos, que eram consagrados a valores cívicos, tais como: a virtude, o caráter, o trabalho, a
opinião e a recompensa. Ao mesmo tempo, os dias passaram a ser dedicados aos aspectos da vida rural,
em vez de permanecerem vinculados a homenagens feitas aos santos do calendário cristão gregoriano.
Citamos como exemplo: o dia do porco (antes, dia de Santa Catarina); o dia da picareta (anteriormente,
dia de Santo André). Já os meses, por sua vez, foram relacionados às estações do ano: mês da neve
(nivôse), da neblina (brumaire), do frio (frimaire), da chuva (pluviôse), do vento (ventôse). Os
revolucionários desejaram assim, colocar abaixo todas as referências que os ligavam ao Antigo Regime, à
igreja católica, à nobreza feudal e ao Estado Absolutista, transformando o nome dos dias e dos meses em
lembranças de suas próprias lutas. A experiência desse calendário, indica uma mudança no conteúdo
ideológico planejado pelos revolucionários franceses.
129

No mesmo documento, encontramos a exposição de quatro valores que


remontam a uma reflexão sobre dimensões relativas à base material, permitindo, todavia
uma leitura que mescla, como vimos apontando, elementos alusivos a diferentes visões
da realidade.

- Formação para o trabalho: “As pessoas se humanizam ou se desumanizam, se


educam ou se deseducam através do trabalho e das relações sociais que estabelecem
entre si no processo de produção material de sua existência. É a dimensão que nos
identifica como ser humano, como cultura e como classe” (idem, p. 53).

Outro valor apresentado é o da formação organizativa. “A organização é uma


das chaves da existência do MST... é através de sua participação na organização do
MST e da vivência na materialidade das relações sociais que constituem uma
coletividades forte, que os Sem Terra voltam a ter raiz, ou seja, memória e
projeto”(idem, p. 53)

A mística é associada aqui à participação na organização do Movimento, e não


apenas vinculada às questões da linguagem ou de valores humanitários. Esta
organização como função social e política condicionaria, de certa forma, a valorização
de sua cultura e de sua memória. O participar de uma coletividade deve ter uma
intencionalidade pedagógica, o que produziria uma base da formação que o MST
denomina de consciência organizativa.

A formação econômica é o terceiro valor que deve estar presente no processo de


escolarização, compreendido, aqui, nos termos abaixo:

Uma das dimensões da luta do MST é a inserção das famílias dos


trabalhadores sem-terra em novos processos econômicos ou novas relações
sociais de produção, distribuição e apropriação de bens e serviços necessários
ao desenvolvimento humano, sem cair no desvio do economicismo, que é um
subproduto do jeito capitalista de ver a economia... Pelo menos desde Marx
sabemos sobre o peso da vivência das relações econômicas na formação do
ser humano e no seu modo de ver o mundo. O que temos compreendido
melhor através de nossas práticas de formação humana do MST é como
podemos intencionalizar vivências de relações econômicas que acelerem o
desenvolvimento da consciência necessária aos processos mais amplos de
transformação social. E quanto mais complexas as relações vivenciadas pelas
pessoas, mais complexos os aprendizados envolvidos, e o modo de
construção de seu pensamento (idem, p. 54).
130

Com efeito, um quarto valor refere-se à formação política e ideológica:

O MST quer educar seres humanos que também sejam militantes de uma
organização da causa da transformação do mundo. E não se chega a ser, de
fato, militante de uma organização com objetivos de transformação sem
desenvolver consciência política e firmeza ideológica... E com uma atitude
permanente de crítica e auto-crítica, de abertura ao novo, sem sectarismos
nem autoritarismos de nenhuma versão. (MST, op. cit. 2001:55)

A respeito da posição acima sobre sectarismo 62 e autoritarismo, conquanto


devamos concordar com a absoluta justeza dessa negação, faz-se importante questionar
com base no que já investigamos, até que ponto tal postura não revelaria uma
dificuldade, para dizermos o mínimo, de assumir o marxismo como referência central de
suas propostas.

Percebemos, ao longo desse estudo, que o MST se posiciona na perspectiva da


formação para a cidadania, da construção de uma identidade coletiva, do cultivo da
história dos lutadores do povo, investindo na construção de um projeto que combine
escolarização com formação humana e capacitação de militância, como está reafirmado
na citação abaixo:

A obra educativa do MST tem três dimensões principais: 1 ª a recuperação da


dignidade de milhares de famílias que voltam a ter raiz e projeto; dos pobres
de tudo que aos poucos vão se tornando cidadãos... 2 ª a construção de uma
identidade coletiva, que vai além de cada pessoa, família, assentamento. A
identidade de Sem Terra como nome próprio de lutadores do povo, não mais
sujeitos a uma condição de falta: não ter terra, mas sim sujeitos da escolha de
lutar por justiça social e dignidade para todos e que coloca cada Sem
Terra,...em um movimento bem maior de que ele;...3 ª a construção de um
projeto educativo das diferentes gerações da família Sem Terra que combina
escolarização com preocupações mais amplas de formação humana e de
capacitação de militantes (MST, op. cit. 2001: 43).

Nosso trabalho, nesse momento, constitui-se numa análise dos principais


concepções e princípios presentes no projeto educativo do MST. Retornaremos a esse
documento quando da análise das especificidades da proposta de formação de
professores do MST, haja vista, que tal documento é uma coletânea de vários textos
produzidos pelo Setor de Educação, não nos sendo possível esgotar a sua análise nessa
primeira parte, que trata primordialmente dos princípios e valores contidos na proposta
educacional do MST.
62
Como bem sabemos, o sectarismo é um dos rótulos com os quais se tenta desqualificar a postura de
adoção do referencial marxista, o que ocorre cotidianamente nas universidades, nos sindicatos, nos
movimentos sociais, dentre outros segmentos organizados da sociedade.
131

3.2. Os princípios da educação do MST no discurso dos educadores Sem Terra

Passaremos agora à análise das entrevistas realizadas com membros do Coletivo


Nacional do Setor de Educação do MST, destacando, particularmente, duas questões: os
valores e princípios da educação do MST na concepção desses educadores-militantes; e
os principais teóricos que influenciam essa proposta de educação na visão deles.

É digna de nota a acolhida que recebemos de todos os entrevistados para a


realização dessas entrevistas, que foram dirigidas aos envolvidos diretos no Instituto de
Educação Josué de Castro. Para a execução das mesmas, foi necessário nosso
deslocamento até Porto Alegre e Veranópolis – RS, onde o Movimento nos brindou com
uma convivência calorosa, oferecendo-nos abrigo e alimentação por alguns dias,
desdobrando-se em acompanhar a nossa visita a todos os seus espaços e experiências, o
que, sem dúvida, facilitou em muito nossa observação.

É válido observar que parte das falas desses educadores será analisada na
próxima etapa do trabalho, que tratará mais especificamente de um exame sobre os
postulados da proposta de formação de professores do MST. Essas reflexões tomarão
como eixo investigativo a relação educação, escola e sociedade e o perfil do professor
do MST.

As entrevistas foram realizadas junto a três integrantes do Coletivo Nacional do


Setor de Educação do MST e com dois educandos do Curso de Pedagogia da
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS, em parceria com o ITERRA,
onde está situado o Instituto de Educação Josué de Castro, em Veranopólis – RS,
conhecido como a Escola Nacional de Formação de Professores do MST. Assinalamos
assim a lista dos entrevistados:

- professora Roseli Salete Caldart 63, integrante do Coletivo Nacional do Setor de


Educação do MST. Participa ainda de coordenação pedagógica do Instituto de
Educação Josué de Castro na função de coordenadora de uma das turmas do
curso de Pedagogia da Terra da UERGS, em Parceria com o ITERRA;

63
Entrevista realizada em 10/12/2003 na Sede do Setor de Educação em Porto Alegre - RS
132

- Diana64, integrante do Coletivo Nacional do Setor de Educação do MST;


participa da coordenação pedagógica do Instituto de Educação Josué de Castro,
assumindo a função de diretora do referido Instituto. Fez o curso Pedagogia
oferecido pela UNIJUÍ em parceria com o MST;

- Tereza Madalena65, assentada e aluna do Curso de Pedagogia da Terra –


UERGS/ITERRA. Participa da coordenação do Instituto de Educação Josué de
Castro junto ao coletivo de acompanhamento político-pedagógico, sendo
responsável por acompanhar uma turma de magistério desenvolvida no mesmo
instituto;

- Pedro66, assentado e aluno do Curso de Pedagogia da Terra –


UERGS/ITERRA. Participa da coordenação do Instituto de Educação Josué de
Castro com representação no coletivo de acompanhamento político-pedagógico,
sendo responsável por uma turma do curso de Técnicas de Administração de
Cooperativas – TAC do Instituto de Educação Josué de Castro;

- Maria de Jesus67, Coordenadora do Setor de Educação do Ceará 68 e integrante


do Coletivo Nacional de Educação. Sua função atual é acompanhar a proposta
de Educação de Jovens e Adultos do MST. Fez Pedagogia no Convênio com o
MST e a Universidade de Ijuí – UNIJUÍ.

Nessa exposição, pretendemos realçar a fala dos entrevistados a respeito das


concepções e formulações do MST sobre a relação entre educação, democracia e
socialismo e entre educação e consciência de classe, incluindo, nesse contexto, a
questão das principais referências teóricas que subsidiam sua proposta educativa
articulada ao papel dos intelectuais na visão dos educadores do Movimento.

Iniciamos com o depoimento da professora Roseli Caldart, que compreende a


perspectiva da construção do socialismo como a única alternativa de se conquistar uma
sociabilidade humanista. Neste sentido, ela situa o momento atual como o de barbárie e
64
Entrevista realizada em 08/12/2003 no Instituto de Educação Josué de Castro, em Veranópolis - RS
65
Idem.
66
Idem.
67
Entrevista realizada em fevereiro de 2003.
68
O depoimento da professora Roseli Caldart ao falar do processo de formação de professores do MST,
fez referência a militante e educadora cearense Maria de Jesus como exemplo de uma assentada que no
seu envolvimento e participação nos cursos oferecidos pelo Setor de Educação do MST deu um salto
qualitativo em seu processo de formação. Em suas palavras: “Entender Maria de Jesus é entender o
processo de formação de professores do MST”. (Porto Alegre 10/12/2003)
133

destruição, creditando à própria luta pela terra desenvolvida pelo MST um processo rico
de formação e educação dos trabalhadores para a transformação social.

Nesse sentido, quando interrogada sobre a concepção do MST em relação ao


socialismo, Caldart inicia sua reflexão afirmando, que por meio do seu engajamento
com o Movimento, construiu o aprendizado de não valorizar a questão dos rótulos. Ao
contrário disso, a ênfase maior deve ser dada à compreensão das ações desenvolvidas
pelos Sem Terra.

Ser socialista hoje dentro do próprio conceito original é defender o


socialismo como um movimento contra essa sociedade que existe hoje. Ser
socialista hoje é, na verdade, a alternativa que nós temos pra ser humanista
no sentido de dar atenção ao ser humano, porque justamente a sociedade
capitalista chegou num ponto tal que temos a barbárie. É uma tamanha
destruição que o capitalismo atingiu que agora ele só destrói mesmo. Então
você dizer hoje que é socialista, na verdade, essa é a alternativa pra você
poder recompor a própria luta nessa perspectiva socialista.

Na concepção da Professora, a construção da alternativa socialista deve se dar no


próprio movimento histórico de luta pela reforma agrária, articulando-se a luta pela terra
à luta pelo projeto socialista:

Na verdade, compreendemos que o próprio movimento histórico de luta é que


vai mostrando o seguinte: se a gente analisar a própria estrutura da luta
pela reforma agrária, reivindicando a reforma agrária, aos poucos você vai
percebendo que da luta pela terra você vai compreendendo que você não
passa da luta pela terra pra luta pelo socialismo, e que na verdade, pra você
inclusive conseguir interiormente, por exemplo a questão da reforma
agrária, se você não construir outro projeto, você não atinge esse objetivo,
isso a gente pode pensar do ponto de vista da educação também (Roseli
Caldart).

A mesma lógica de articular a luta pela terra à luta pelo socialismo preside a
concepção da autora em relação à educação quando afirma que no próprio processo de
luta pela reforma agrária se constrói a possibilidade de consolidação de uma proposta de
educação diferente, que atenda às necessidades dos trabalhadores rurais Sem Terra.

A realização desse projeto de educação que a gente vai constituindo a partir


da própria participação na luta, aos poucos você vai percebendo que a
realização plena desse projeto de educação não ocorre nesse formato de
sociedade que você tem. Só que hoje a gente já entendeu melhor, que não é
você fazer primeiro todo um processo de transformação mais radical e aí
então você vai começar a pensar no que seria da educação transformadora,
manifestação socialista[...] Hoje a gente já percebeu que não é assim que
funciona, a idéia é contraditória. No processo da luta você vai construindo
essa educação diferente, sabendo que esse projeto de educação não se
134

realiza plenamente se outras mudanças não acontecerem também. (Roseli


Caldart)

Analisando ainda o papel do MST no processo de transformação social, a


professora Roseli Caldart, apresenta a concepção deste em relação aos conceitos de
socialismo, democracia e cidadania, tomando como eixo de sua argumentação a
trajetória formativa/educativa do Movimento, onde a mola mestra seria a participação
de todos.

O Movimento vê essa questão da cidadania, da participação e da


democracia, não só como uma questão de ampliação de espaços.Quanto
mais você participa mais você se dá conta de que tem direitos e, portanto,
mais você vai aprofundando a luta pelos direitos, e aí no caso, a educação
dentro do Movimento isso é algo assim perceptível na nossa trajetória. As
pessoas entram na luta pela escola, dos anos iniciais, às primeiras letras,
etc, e se dão conta que as vezes entram na luta pela escola, até porque essa
é mais uma luta fraterna, não tem assim uma consciência de incentivar a ter
os direitos à educação, entram para mais uma luta e aos poucos as pessoas
vão se dando conta de que a educação é um direito tanto quanto o direito à
terra. Ao entrar no Movimento e ao descobrir que a educação é um direito as
pessoas também vão criando a noção de público porque na verdade os
direitos se realizam na esfera do público, e portanto na relação com o
Estado e aí isso vai ampliando a própria visão do exercer nossa
ação[...]Assim a gente cria uma escola no assentamento ou acampamento,
antes de ensino fundamental, hoje eu estou lutando pelo ensino superior,
pelos cursos na graduação. Os trabalhadores, portanto, têm direito ao
acesso a Universidade, assim como os outros trabalhadores, e na verdade,
essa ampliação da própria noção do direito, do direito à educação, ela se dá
no próprio processo da abertura. Não é assim: de repente as pessoas vão
estar conscientes de uma luta por um projeto de uma nova sociedade. As
coisas não são estáticas, as coisas são processuais, então, quanto mais
espaços de participação se conquistar tanto mais consciência dos direitos as
pessoas vão ter, então mais condições, em tese, digamos assim, para
desenvolver uma luta mais ampla que é da transformação da sociedade.

Nessa perspectiva, Caldart assinala que o princípio da participação de todos


torna-se um exemplo concreto da forma como o Movimento articula a formação da
consciência dos direitos dos Sem Terra. Nessa dinâmica, insere-se a questão relativa à
inclusão das famílias como forma de envolver todos os trabalhadores no processo de
construção de uma nova sociedade.

O princípio de participação de todos é um exemplo, claro com todos os


limites que isso tenha na representação prática, mais por isso a idéia do
Movimento de que a própria dinâmica do Movimento seja o de educação da
participação, dos estudantes, não só no sentido de cobrar a participação,
mas a própria experiência no movimento na luta pela terra, pela reforma
agrária no nosso caso, é necessária essa experiência de participação. Aliás,
135

esse é um dos aprendizados: as lutas não se fazem por representação, as


lutas se fazem pelas próprias pessoas que estão interessadas nisso, que
sempre defenderam e continuam defendendo as questões. As lutas são das
famílias através do movimento das crianças, das mulheres[...]O Movimento
sempre defendeu a luta em família, são as famílias sem terra que lutam. Não
é a idéia de que homem luta até conseguir um lugar aí a família vem. É
lógico que isso pode acontecer eventualmente em alguns lugares, mas essa
não é nossa orientação, é uma luta em família. São as pessoas participando
da construção do seu destino, isso vai aos poucos construindo um outro tipo
de consciência.Isso é muito importante para gente passar, digamos assim, da
luta social pra luta política no sentido da construção da nova sociedade
(Roseli Caldart).

Maria de Jesus compreende que a participação de todos nas ações do MST


representaria a construção da verdadeira democracia. Nesse sentido, apresenta como um
dos princípios fundamentais da educação do MST a formação de um novo sujeito social,
forjado na luta do dia-a-dia e na relação teoria e prática. Ressalta que a ocupação
adquire um papel educativo importante na construção de uma nova consciência (auto-
consciência; consciência de classe), fundada na organização, nas atitudes e nos hábitos
do próprio Movimento.

Nós do movimento, baseados no companheiro do MST, Ademar Bogo 69,


compreendemos que o conhecimento é a auto-consciência, é a imaginação,
são as emoções, são tudo que envolve essa construção da gente no nosso
processo de humanização. Então ele trabalha a consciência/a formação da
consciência como algo permanente nas nossas vidas, não há uma questão de
eu te falar: “agora eu tenho consciência de classe”. Não se trata disso.
Trata-se de no dia a dia, na relação teoria e prática, vai se forjando essa
consciência de classe na organização, nas atitudes. nos hábitos, na forma de
trabalhar[...] Vamos assim, forjando essa consciência, essa clareza e essa
prática. Eu acho muito interessante isso porque é um conceito que vale para
toda a vida[...] até o dia que eu vou morrer vou estar construindo ele[...]
Quando temos, por exemplo, um grito de ordem que dizia assim: “o
Movimento Sem Terra com escola, terra e dignidade”, percebemos que com
escola e com educação a gente vai construindo essa dignidade no conjunto
das outras políticas. Porque a gente não é digna de se alimentar bem se a
gente não tem uma renda que consiga, minimamente, ter o necessário. Se a
gente não tem uma boa escola, um transporte digno, a gente não tem essa
dignidade. Por isso creio que não há democracia se não há dignidade da
população e eu creio que esse exercício nosso de está ocupando a terra e
quebrando as cercas das terras improdutivas, e das cercas da ignorância, é
que iremos forjar esse novo sujeito social. Esse novo sujeito social é uma
revelação e um princípio da educação do MST.

69
Um das principais lideranças nacionais do MST que vem trabalhando com a discussão em torno dos
valores e da mística do MST.
136

Nesse sentido, Maria de Jesus atribui à mística um destaque especial no processo


de formação desse novo sujeito social, alcançando o status de um princípio da educação
do Movimento, articulada aos demais princípios, tais como: humildade, disciplina e
participação de todas as famílias Sem Terra. Todos esses princípios materializam o
conceito do que seja “ser democrático” na visão do Movimento.

Um outro princípio é a mística que trata do nosso jeito da gente trabalhar


essa interação entre o presente, o passado e o futuro. Assim a gente
desenvolve essa ligação entre essas vivências e a democracia. Assim, no
Movimento todo mundo participa das discussões. Então a humildade, a
disciplina e a participação são para nós princípios fundamentais. Diante
desse princípio da participação, a gente não tem uma representação, todos
participam das discussões e das decisões. As nossas instâncias maiores são
os encontros estaduais, os encontros nacionais e o congresso nacional do
MST Para mim, isso é ser democrático...(Maria de Jesus).

A diretora do Instituto de Educação reafirma que a matriz pedagógica que


orienta a escola é o próprio Movimento. Nessa perspectiva, acredita que o papel do
Movimento é formar seres humanos diferentes para uma nova sociedade. Dessa forma,
acredita que a prática educativa dessas escolas vem contribuindo para a formação de
novo sujeito social, que, através desse espaço educativo, chegue a romper com a lógica
do capitalismo.

No MST, existe a contemplação do sonho de uma transformação.


Acreditamos que a gente vai sempre se transformando, não somente a
sociedade, mas a si próprio. (Na escola, no Instituto de Educação Josué de
Castro), nós procuramos nos organizar como o movimento se organiza, por
isso a gente diz que a matriz pedagógica da escola é o Movimento, não
somente o MST, mas o movimento que faz o MST.

Em sua reflexão sobre a compreensão do Movimento a respeito de socialismo,


Diana assegura que a luta não se dá apenas pela ampliação de espaços, afirmando que
existe uma busca incessante do MST pela ruptura com o sistema capitalista.

Sobre essa questão do socialismo, eu vejo que no Movimento não se tem só


uma preocupação com a questão apenas de ampliação de espaços por mais
de que em muitos momentos acaba acontecendo isso porque a gente não
conseguiu avançar na sociedade como um todo, por que o capitalismo tem
muita força, por mais que ele esteja em crise. Nós queremos essa mudança, e
essa mudança é muito difícil de acontece porque não é uma mudança tipo:
vou mudar a sociedade, vou soltar dinamite acabar com tudo e criar coisas
novas. Não, a mudança depende de nós, quer dizer, tem um projeto de
sociedade, mas esse projeto, de sociedade não é nada mais, nada menos, que
137

formar seres humanos, e, a partir do momento que a gente forma esses seres
humanos, dentro de um sistema capitalista, dentro de uma lógica capitalista
essas pessoas vão ser, vão trabalhar para o capitalismo, por isso que nós,
que eu digo sem que haja essa ruptura, não conseguimos chegar ao
socialismo[...] Primeiro porque a gente vive gritando pra frente e pra trás:
viva o socialismo! Queremos mudanças para o socialismo!

Para alcançar essa ruptura, Diana aponta como importante ação o processo de
formação humana (novo sujeito social) articulada e desenvolvida na própria dinâmica
de um Movimento que luta pela conquista da terra.

Existe essa busca pela ruptura com o capitalismo, porque o Movimento


trabalha numa lógica de formação do ser humano diferente, então existe essa
ruptura, esse querer mudar através dessa ruptura, quebrar a lógica da
sociedade existente hoje e construir uma coisa diferente, por mais que hoje
que a gentee trabalhe muito pra conseguir esses espaços, mas é através
dessa conquista de espaço que a gente vai conseguir, porque é nesses
espaços que a gente vai formar os seres humanos para romper com o
capitalismo.

Representando o pensamento da escola, Diana afirma que a preocupação do


Movimento não é apenas pela ampliação de espaços, apontando as dificuldades de
aceitação das escolas do MST na sociedade, entendendo que essa rejeição seria de
natureza ideológica.

Eu acredito que a gente não está querendo conquistar mais espaços, e eu falo
agora pela escola, se nós hoje tivéssemos essa escola somente para
conquistar espaços nós já nem teríamos mais condições de ficar aqui porque
a briga conosco é ideológica [...],No ano passado, nós brigamos muito,
tivemos audiência pública aqui na cidade, e não era porque a escola recebia
financiamento, não recebia valores de projeto de Estado, não era só por isso,
em várias escolas aqui que não são do MST, são escolas particulares que não
nos aceitam, a briga é ideológica pelo jeito que a gente forma as pessoas[...]
Porque aqui a sociedade de Veranópolis não nos aceita 100%. Não aceita a
“cidade de lona preta...” Mas a gente faz o nosso trabalho, a gente trabalha
contra os transgênicos, contra a ALCA, contra o FMI, contra o BUSH...
Porque a gente acredita que essas coisas não podem estar na nossa
sociedade, a gente tem que mudar, viver, sobreviver de uma forma diferente.
Um belo exemplo para nós é o próprio Movimento. Ele com tanta dificuldade
ele dá um exemplo de organização... (Diana)
Para Pedro, um legítimo assentado, a ruptura com o sistema capitalista passaria
necessariamente, pela conquista de espaços dentro do próprio sistema. Presta tributo à
relevância do trabalho desenvolvido no curso de magistério, no sentido de formação da
consciência de classe, que, segundo ele, permite um olhar crítico sobre a sociedade
138

como um todo. A formação da consciência de classe teria, para ele, um papel relevante
na proposta de educação do MST.

Eu acredito que sem mudar o sistema capitalista não se faz a reforma


agrária[...]Pode até fazer uma reforma agrária, mas não nessa questão mais
ampla, porque a reforma agrária não é só pela conquista da terra. Ela vai
muito além do que isso e tem a questão da conquista de espaços que é muito
importante nessa luta[...]E aí eu acredito que deve ser levada em conta
também toda essa questão cultural e a questão religiosa que está por trás de
qualquer mudança. Sobre a questão da consciência de classe o curso de
formação de professores nos proporciona bastante o desenvolvimento dela,
principalmente o magistério. A pedagogia está iniciando também, mas já é
mais orientado pela Universidade. Essa consciência de classe nos permite
entender a questão dos políticos. Abre nossos olhos para enxergar a
sociedade de forma crítica.

Nesse sentido, em seu depoimento, Pedro ressalta a sua caminhada como exemplo
concreto da proposta de formação do Movimento.

Antes de eu entrar no Movimento tinha pouco conhecimento. Foi uma longa


caminhada e hoje eu começo a entender mais as coisas e quero aprofundar
mais ainda esse conhecimento. Então a formação da consciência de classe
tem uma grande relevância dentro da proposta de educação do MST (Pedro).

Tratando ainda da questão da ruptura com o sistema capitalista, Pedro analisa a


problemática dos transgênicos, ressaltando que essa ruptura não se daria de uma hora
para outra, mas em um processo que envolve os trabalhadores do campo e da cidade na
construção de uma sociedade em que todos sejam iguais.

Eu acredito que pra fazer essa ruptura com a produção dos transgênicos é
preciso mudar esse modelo capitalista. Acho que teria que se romper com o
capital. É uma ruptura que não se faz assim de uma hora pra outra. Pra
implantar o modelo é fácil, mas pra se romper é difícil porque teria que ter
toda uma conscientização da sociedade, principalmente de quem consome
esses produtos como os transgênicos. Era preciso um controle mais severo,
mais duro por parte do governo nessas questões dos transgênicos,
incentivando mais a agricultura familiar com políticas pública, mais crédito
para a agricultura familiar. Que rompesse com essa questão só do
capital(lucro) e incentivasse a questão orgânica. Eu acredito que seria mais
uma maneira de romper com essa questão (Pedro).

Em seu depoimento, Pedro aponta alguns outros pontos problemáticos situados


no âmbito da ruptura com o capital e construção do socialismo, assegurando que o
trabalho do MST, em sua luta pelo acesso e divisão igualitária da terra, pressupõe sim, a
139

ruptura com o capital e a construção do socialismo, ou pelo menos, o início desse


processo.

Eu acredito que não tem essa ruptura de chegar lá e dizer: vou romper
agora... Isso se dá no processo. Essa nova sociedade seria uma questão de
que principalmente não exista essa visão eu sou eu e você é você, mas que
todo mundo seja igual. Tenha os direitos iguais, superando as desigualdades
sociais, como por exemplo, a questão da mulher, da valorização maior da
mulher que romperia com o machismo. Seria uma questão de uma sociedade
mais igualitária, onde a terra principalmente fosse dividida igualmente.
Seria uma questão que todo mundo tivesse acesso aos direitos básicos como,
por exemplo, de se alimentar três vezes ao dia, ter uma vida digna, ter saúde
e ter educação[...] Para isso, acredito principalmente que tem que se romper
com o capitalismo se não se chega a essa sociedade. É uma trajetória
grande. Tem que principalmente fazer essa divisão da terra. É claro que o
capital não iria deixar.Eu acredito que pra romper com o capitalismo tem
que começar por aí, onde toda a sociedade não só do campo, mas da
cidade[...] os que estão lá nas favelas se mobilizassem todos. Sobre o
trabalho do MST nessa questão da ruptura, eu acredito que ele trabalha
nesse sentido. Acredito que o socialismo possa acontecer um dia no Brasil.
Talvez não sejamos nós que vamos viver esse socialismo, mas pelo menos foi
iniciada essa caminhada. Não partimos do zero (Pedro).

Madalena, analisando a luta do MST, reafirma que o Movimento trabalha no


sentido de se construir, por dentro da organização, uma lógica diferente do modelo
capitalista. A conquista de mais espaços de participação estaria vinculada à luta contra o
capitalismo. Argumenta que o projeto de educação do MST vislumbra a formação da
consciência da classe trabalhadora com vistas a uma ruptura estrutural.

Sobre a questão da luta do MST, acho que a gente faz as duas coisas, a gente
amplia o espaço de participação dos sem terra e tenta romper com o modelo
capitalista. Na verdade é uma construção.Por exemplo, no meu assentamento
a maioria das famílias depois que entraram para o MST tem todo um
processo de transformação em suas vidas, de oportunidade de estudo, até eu
pessoalmente fui uma dessas, eu quando entrei no MST tinha a 5 a série.
Também é todo um espaço onde a gente cria coisas novas, dentro de outra
lógica. A gente sai de lá, do curso de formação de professores e faz muito
trabalho de conscientização, e esse trabalho constrói outra sociedade, outras
relações, então a gente faz ao mesmo tempo uma luta pra ampliar o espaço
de participação e faz essa luta mais política, mais ideológica[...]Eu acho que
o MST faz as duas coisas, não é fácil, mas tem que fazer[...] Sobre qual
sociedade queremos construir, na verdade assim para nós, que somos
militantes isso está bem claro e o trabalho que a gente faz na base também o
povo percebe que é outra lógica e assim a gente trabalha abertamente que é
outra lógica (Madalena).
Madalena apresenta, em alguma medida, uma espécie de tática adotada pelo
Movimento, alicerçada pelo trabalho de formação humana, que vislumbra atender às
necessidades da classe trabalhadora, apontando para uma mudança de natureza
140

estrutural, em que a construção da identidade de Sem Terra e a educação assumem um


lugar privilegiado.

A gente não chega falando socialismo. A gente constrói uma outra sociedade,
tem todo um conjunto de coisas. O Movimento vai contra essa lógica que
esta aí. Então é um trabalho dedicado a todos os sentidos: e na escola, na
família, no assentamento, no acampamento, no trabalho mais intenso. No
assentamento por ser um espaço mais aberto, a gente vive mais essa
condição. A gente procura trabalhar em todos os espaços, inclusive na
comunidade onde a gente trabalha a religiosidade. Então a gente procura
trabalhar dentro dessa perspectiva socialista. Para isso nós trabalhamos na
perspectiva da classe trabalhadora.[...]Na verdade a gente quer mudança
estrutural. A gente trabalha a questão da identidade, da construção da
identidade, da educação do campo, principalmente, de assumir uma nova
postura de fazer educação (Madalena).

Tratando especificamente da relevância da formação da consciência de classe


nos cursos de formação de professores do MST, Madalena entende que esse processo
formativo não é exclusivo dos cursos de formação de professores, mas vem sendo
trabalhado em todas as ações do Movimento. A construção dessa consciência, segundo
ela, fortalece a perspectiva da luta de classe em função da construção de uma sociedade
socialista.

Quanto ao grau de relevância da consciência de classe em nossos cursos de


formação, entendemos que os nossos militantes que vêm fazer o curso de
magistério, já não são tão iniciantes. Todos eles já passaram por um curso
de formação política no acampamento ou num assentamento. Então a
formação aqui se amplia, dá base, sustentação. Ao mesmo tempo, em várias
disciplinas, em vários momentos que a gente discute, estuda e a gente
realmente fortalece isso durante todo o curso e essa é uma formação
permanente, na perspectiva da luta de classe no sentido de construir uma
sociedade socialista em que se conquistaria basicamente a partir da
mudança, digamos assim da mudança da terra, da descentralização da terra
do capital em si. Porque aí em cima disso viriam as outras coisas que a gente
vai construindo ao longo do tempo[...]O momento que você acreditar vai
investir nessa mudança. Mas eu não acredito que ela vai vir assim de uma
hora para outra, que vai vir de graça. A gente vai construindo e por isso eu
acho importante a gente ir cada vez mais fortalecendo as organizações
populares, os movimentos sociais. (Madalena)

Quanto aos principais teóricos que influenciam as elaborações educacionais do


MST e o papel dos intelectuais, registramos os depoimentos de todos os entrevistados
de forma compilada, sem subdivisões. A análise dessas questões será apresentada
posteriormente, em um exame mais amplo do ideário educativo do MST presente em
seus documentos e nas falas de seus educadores.
141

Vale observar que, em geral, os entrevistados indicam, basicamente, as mesmas


referências teóricas, subdivididas entre autores clássicos e autores contemporâneos, que
se aproximam ou fundam as concepções educacionais do Movimento, especificamente,
no que se refere ao papel dos intelectuais no MST.

Desprende-se um pouco desse quadro o relato da professora Roseli Caldart. Esta,


quando vai tratar do papel dos intelectuais, registra a sua própria experiência de
intelectual engajada no Movimento que empresta o seu nome e seu conhecimento a
favor da elaboração dos documentos e textos do MST.

Acredito que trabalhamos com vários teóricos importantes, como por


exemplo, Marx, Pistrak, Makarenko, José Martí, Gramsci, dentre outros.
Trabalhamos a questão da relação teoria e prática a partir de Paulo Freire e
de sua Pedagogia do Oprimido, pois os professores começam a entender
melhor esse vínculo entre teoria e prática quando eles percebem a sua
experiência de vida e sua experiência de educador. E quando há essa
experiência tão densa aliada a questão teórica, por exemplo, com a
Pedagogia do Oprimido, eles, partindo do seu cotidiano, conseguem fazer o
diálogo com suas experiências. Esse processo é bonito e rico de se ver.
(Roseli Caldart).

Sobre o papel dos intelectuais dentro do MST, acredito que o nosso lado
intelectual é de contribuir no dia a dia do Movimento. É contribuir com suas
formulações. No meu caso, um dos papéis que eu tenho assumido foi essa
tarefa de conseguir elaborar em forma de texto, não aquilo que está na
minha cabeça, na minha produção, mas de justamente fazer a síntese do
debate do momento que está na programação. Aos poucos, temos o desafio
que a gente tem assumido e em alguma medida atingido, de descentralizar a
própria escrita[...] Não esperava ter um patrimônio em relação aos
materiais. Os materiais quando saem para cada setor, eles saem bastante
amadurecidos justamente porque é alguém que escreve, é a gente que escreve
sim, porque o texto precisa sair de alguém, não é do mundo, é de algumas
pessoas, mas, na verdade sai fruto da discussão, da experiência, experiência
que sai amadurecida e a gente, na verdade, empresta apenas o nome. Mas ao
mesmo tempo, isso de emprestar vai aos poucos descentralizando a própria
atividade da escrita, proporcionando que mais pessoas possam fazer essa
passagem. O que está se discutindo são atividades diferenciadas para que o
texto possa ser socializado por mais gente, por isso inclusive, os nossos
cursos pra formação de professores, trabalha com a elaboração de
monografia, com a produção de texto, pra que essa experiência rica possa
ter mais mãos trabalhando (Roseli Caldart).

Diana e Madalena reafirmam que o Movimento busca basear-se em teóricos que


analisam as histórias das lutas dos trabalhadores em geral. Nessa perspectiva justificam
a escolha por teóricos clássicos e contemporâneos que partem da defesa da construção
do socialismo.
142

Nos baseamos em pensadores que defendem uma sociedade socialista, desde


a questão política até a questão da escola. Tomamos com referência Marx,
Pistrak, Gramsci, Paulo Freire e Leonardo Boff. Nessa lógica a gente
estuda uma série de pensadores que têm um olhar sobre essa história do
socialismo (Diana).

Aqui, se formos olhar a questão da escola, como ela está montada,


encontramos a questão da influência de autores como Makarenko que
trabalha a questão do trabalho, Paulo Freire sobre a questão da
organização da escola e dos métodos pedagógicos e Pistrak que é bem
diferenciado e Leonardo Boff sobre a questão do cuidado com o planeta.
Temos Marx e Gramsci que também são muito importantes. São esses a base
de nossa proposta de educação (Madalena).

Analisando o papel dos intelectuais no MST, as entrevistadas apontam


especialmente Roseli Caldart, seguida por Miguel Arroyo, como representantes
autênticos de um verdadeiro trabalho intelectual alicerçado no cotidiano do Movimento.

[...].Sobre qual a importância dos intelectuais hoje, eu acredito que quando


olho assim pro Miguel Arroyo e para Rosely Caldart, fico pensando no que
eles são[...]porque eles falam dessas nossas experiências, falam da nossa
escola. A gente já não consegue estranhar algumas coisas que acontecem no
nosso dia-a-dia e que faz tudo virar rotina, só que não é... Porque, na
verdade, acontecem sempre as mesmas coisas, porém as coisas acontecem de
formas diferentes. Eu peguei esse pequeno exemplo pra dizer, essas pessoas,
esses intelectuais, que se preocupam em estudar essas obras desses clássicos,
com maior facilidade conseguem observar essas diferenças existentes no dia-
a-dia, e aí apontam estudos sobre isso, apontam linhas pra nós[...] Eu
percebo que esses olhares não são de pessoas que estão olhando de fora, mas
sim olhando o movimento aqui dentro da escola e em especial, a Rosely e o
Arroyo, eles não só olham a escola, mas o movimento. Conseguem fazer essa
leitura dos clássicos e das nossas práticas, vivenciando conosco[...] É que
não é uma coisa separada. O papel do intelectual é esse que, ao vivenciar,
descobre em especial grandes matrizes pedagógicas que muitas vezes a gente
não percebe no nosso dia-a-dia (Diana).

Temos atualmente a ajuda de alguns autores como Miguel Arroyo, Roseli


Caldart, que já é nossa, o Paulo Cerioli e o Frei Beto. Todos ajudam na
nossa proposta de formação. O papel deles é mais o que eles escrevem pra
ajudar ir construindo nossa questão educativa.Tem também Leonardo Boff
que trabalha muito essas questões em nossos cursos... Aqui no Instituto nós
estamos num processo contínuo de avaliação, a gente sempre está
retomando, sobretudo o processo de formação, da metodologia (Madalena).

Nesse sentido, segundo Madalena, todo o processo de formação dos educadores


do MST, especificamente no curso de Magistério, é baseado em teóricos críticos e
revolucionários, com um momento destinado especialmente à leitura sobre a vida desses
143

grandes teóricos, através da metodologia da semana dos clássicos. A entrevistada


assegura que o marxismo é a base do trabalho pedagógico dos cursos de formação de
professores e nos demais núcleos de trabalho e formação política.

No magistério a gente tem uma iniciação, um pouco de economia política em


que estudamos Marx, Gramsci e Engels. A gente estuda um pouquinho sobre
a vida deles.Estudamos um pouquinho deles em linhas gerais. Eu durante o
magistério li “Vida e obra de Gramsci” e de todos eles. De um jeito ou de
outro a gente acaba estudando um pouco de todos eles. Quanto a Marx
apesar de que a gente não aprofunda no magistério, até porque não dá
tempo. Mas não passa ninguém pelo magistério do MST que não tenha uma
iniciação em Gramsci e Marx. Para nós o marxismo é a base de tudo, no
MST, nos cursos de formação[...] Em tudo. É claro que a gente estuda todos
os pensadores da linha socialista, até os núcleos de base estudam isso. As
famílias também participam. Então é comum você encontrar pessoas que
praticamente não tem estudo, mas que tem formação nesse sentido. Então
isso é a orientação do projeto pedagógico do curso. Estudamos os
pensadores que mais pensaram a sociedade de uma maneira diferente.O que
eu vejo no MST é que ninguém tem toda a razão, a gente sempre está
tentando construir alguma coisa no momento (Madalena).

Diana, ao falar sobre os intelectuais, mais especificamente acerca de Caldart,


atribui a essa intelectual o fato de esta ser portadora da identidade de classe que a torna
diferente dos demais que vêm até a escola para realizar suas pesquisas com um “olhar
de fora” sem vivenciar a prática diária das experiências educativas do Movimento.

A outra questão é justamente por ser em especial portadora dessa identidade


de classe trabalhadora, a Roseli tem uma identidade da classe trabalhadora,
porque se todos os intelectuais da esquerda, tem a mesma identidade de
classe trabalhadora, não precisa estar no campo pra ser classe
trabalhadora, enfim precisa ter uma consciência disso, mas enfim essa
consciência de classe trabalhadora está ligada a uma vivência de classe
trabalhadora. Assim, estar junto é uma dimensão importante para o
intelectual (Diana).

A concepção de Madalena a respeito dos intelectuais aproxima-se do


entendimento de Diana. Ela afirma que o papel desses teóricos é contribuir na
construção do conhecimento dos Sem Terra, destacando a importante ajuda dos
intelectuais que atuam no Movimento.

Acho que o papel dos intelectuais é fazer a gente entender, interpretar mais
as coisas e ajudar a gente a avançar inclusive uma análise da sociedade e
apontar saídas, porque até pouco tempo, nós não tínhamos ninguém com
curso superior aqui, então nós temos poucas pessoas que já conseguiram
chegar ao nível superior, então eles ajudam a entender, a compreender e
avançar no conhecimento em todos os sentidos. Os intelectuais atuais, que
nos ajudam são pessoas que contribuíram muito conosco, como, Miguel
144

Arroyo que é sempre bastante próximo de nós, tem os menos famosos como
Carlos Brandão. Temos a ajuda na análise da economia do Plínio de Arruda
Sampaio e, na educação, temos a ajuda da Rosely que já é uma militante do
Movimento (Madalena).

A partir dos documentos do Movimento e entrevistas com educadores


envolvidos no Setor de Educação, apresentamos uma súmula dos princípios da educação
do MST, que não se esgotam nesse texto, pois muitas dessas concepções sobre
educação, escola e processo formativo, serão apresentadas no capítulo seguinte, que
aborda, especificamente, a política de formação de professores militantes do MST.
145

CAPÍTULO 4

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES MILITANTES DO MST: PRINCÍPIOS,


PRÁTICAS EDUCATIVAS E COMPROMISSOS POLÍTICOS.

Nova forma de Aprendizado

Ninguém educa ninguém


Ninguém se educa sozinho
As pessoas se educam entre si
Descobrindo este novo caminho

Como pensa o MST


E o setor pensa a educação
Muito além do a, e, i, o, u
Ou o canudo de papel na mão
Professor tem de ser militante
Ensinar dentro da realidade
A importância da Reforma Agrária
E a aliança do campo e cidade
Discutindo as tarefas da escola
Ensinando como o plano quer
Ir gerando sujeitos da história
Novo homem e nova mulher
Combatendo o individualismo
Se educando contra os opressores
Aprendendo a viver coletivo
Construindo assim novos valores

Discutindo cooperativismo
O avanço da organização
É na vida do assentamento
Que a criança aprende a lição
Conhecer a caneta e a enxada
Afinado estudo e trabalho
Aprendendo teoria e prática
Nova forma de aprendizado

Avançar nossa pedagogia


Construir é bem mais querer
Educando pra sociedade
Que implantaremos ao amanhecer
(Zé Pinto)70

70
Canção do músico Zé Pinto, publicada no livro Sem-terra: as músicas do MST. Porto Alegre: Unidade
Editorial, 1996.
146

Após a exposição dos princípios da educação do MST, consignados,


principalmente, nos documentos do Movimento e nos depoimentos de alguns de seus
educadores em que destacamos os pilares que sustentam o projeto de educação do MST,
passaremos ao exame mais específico da proposta de formação de professores, que, na
verdade, já vem sendo executada pelo Movimento em parceria com diferentes
universidades e secretarias de educação estaduais e municipais.

Nesse sentido, procuramos fundamentar nossa pesquisa a partir do mapeamento


dos seguintes materiais: os documentos mais importantes produzidos pelo Setor de
Educação do MST; as contribuições e concepções da professora Roseli Caldart,
presentes em seus livros e artigos, e os emblemáticos depoimentos dos educadores que
atuam no campo da formação docente. Esse material registra os princípios norteadores
das concepções e ações do MST, bem como seu percurso histórico no campo da
educação.

Para melhor encaminhamento de nosso estudo, estruturamos nossa pesquisa em


três eixos, que enfocam articuladamente a proposta de formação de professores do MST,
delimitada em sua Pedagogia do Movimento, buscando identificar, primeiramente, os
elementos significativos da trajetória do processo de formação do educador do MST,
mediados pelo pensamento e as contribuições de Roseli Caldart nesse processo, para,
em seguida, delinear a estrutura e os princípios organizativos dessa proposta, e, por fim,
apresentar um exame detalhado das experiências praticadas pelo Instituto de Educação
Josué de Castro – IEJC, em Veranópolis/RS. Temos, no entanto, a clareza dessas
dimensões ora assinaladas, que não se desvinculam, perpassando todo o nosso trabalho
de investigação.

Compreendemos que essas reflexões são fundamentais para compreender a ação


de um importante Movimento social do campo, que toma a iniciativa e assume o
desafio de elaborar, organizar, estruturar e implementar uma proposta de educação para
as áreas de assentamentos, focalizando, como parte imbricada nesse processo, a
preocupação com a sistematização de um projeto de formação de seus professores.
147

4.1. Elementos fundamentais de compreensão da gênese e trajetória do projeto de


formação do educador militante do MST.

Nossa intenção nesse momento do trabalho é tentarmos resgatar os elementos


fundamentais para a compreensão do processo de gênese e a trajetória constituidoras do
projeto de formação do educador do MST. Para tanto, nos fundamentaremos na
contribuição de Roseli Caldart. Nossa escolha é justificada pelo fato de esta autora ser
uma referência central nas formulações do campo da educação do MST, particularmente
no que diz respeito à formação de professores. É fato que grande parte dos documentos
do MST, após todo o processo de reflexões e debates, é redigido por essa autora 71. Dessa
forma, ao mesmo tempo em que resgatamos a trajetória de formação de professores do
MST, entrelaçaremos as idéias, as concepções e as contribuições de Roseli Caldart para
o projeto de formação humana/educação do Movimento.

Nesse sentido, o resgate da inteireza dessa história será baseada,


prioritariamente, no livro de Roseli Caldart, Pedagogia do Movimento Sem Terra:
escola é mais que escola... 72, resultado de sua tese de doutorado, que nos brinda com
uma rica descrição a respeito dessa trajetória. Vale destacar, que outras fontes serão
utilizadas para complementar essa história da ocupação da escola pelo MST. Assim, nos
apoiaremos ainda, em outros textos da própria Roseli Caldart, como o seu livro
Educação em Movimento: formação de educadoras e educadores no MST, 73 em que a
autora apresenta as reflexões do MST no campo da educação escolar, enfatizando a

71
Para de demonstrar nossa afirmação, temos o exemplo do documento do MST, intitulado Pedagogia do
Movimento Sem Terra: Acompanhamentos às Escolas. In: Boletim da educação. n. 8, Porto Alegre:
Gráfica e Editora Peres, julho de 2001, que apresenta um conjunto de reflexões e debates dos educadores
que fazem o Setor de Educação, responsável maior pelo acompanhamento às escolas, em que Roseli
Caldart assume a redação do texto final desse processo de construção coletiva. Ainda a esse respeito, é
válido registrar que, em seu depoimento concedido a nós (2003), a própria autora afirma que a
construção do texto é um processo coletivo de discussões e reflexões, mas eu empresto a minha mão, o
meu nome e o meu conhecimento para escrever o documento final resultado dessas discussões[...].
Ressalta ainda que, [...] Temos consciência de que é preciso descentralizar a produção dos textos. Temos
que democratizar esse processo de escrita[...]
72
CALDART, Roseli. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola... Petropólis,
RJ: Vozes, 2000.
73
Como forma de reiterar a nossa afirmação sobre as possíveis influências dessa autora no projeto de
formação de professores do MST, recorremos a uma nota presente nesse livro em que Caldart expressa
literalmente sua contribuição nas obras educativas do MST e se assume como uma Sem Terra. Este livro
se integra a outras iniciativas que estão sendo tomadas em vista da nossa memória histórica: "História
do MST", que está desenvolvendo um levantamento documental e a coleta de depoimentos, visando um
registro mais organizado e analítico da participação do movimento na luta pela Reforma Agrária em
nosso País[...] (Grifo Nosso) (1997:20, nota 7).
148

prática de formação de professores, registrando a experiência do Curso de Magistério do


MST.

Além dos textos de autorias da própria Caldart, que são o eixo principal de nosso
texto, iremos nos fundamentar em trechos de documentos do MST, como o que trata da
Pedagogia do Movimento Sem Terra: Acompanhamentos às Escolas e parte dos
depoimentos colhidos em entrevistas com a própria Roseli Caldart e demais educadores
do MST.

O texto conta ainda com as contribuições de parte das reflexões de outros


autores que elegeram como temática central de seus estudos e pesquisas a proposta de
educação/formação de professores do MST, como por exemplo, MORIGI (2003) e
BELTRAME (2000)74.

Todo esse resgate, porém, mais condensado sobre as idéias e as contribuições de


Roseli Caldart à obra educativa do MST, a partir do registro que faz da trajetória da
ocupação da escola pelo MST, não nos eximirá de mencioná-la em outros momentos do
nosso trabalho. Portanto, o exame sobre as concepções dessa autora estará presente
ainda também na segunda parte desse texto, que tratará, especificamente, de uma
reflexão sobre os princípios organizativos da proposta de formação do educador
militante do MST.

4.1.1. O processo de formação de professores no contexto da ocupação da escola pelo


MST: a contribuição de Roseli Caldart.

Antes de expormos as sistematizações de Roseli Caldart, resgataremos um pouco


da história do envolvimento da referida educadora75 com o Setor de Educação do MST.
Esse resgate nos permitirá compreender o seu atual engajamento nesse Setor e seu

74
É interessante destacar que os trabalhos e teses desses autores por nós consultados reconhecem a
contribuição de Roseli Caldart na formulação da proposta de educação do MST. Tal reconhecimento é
notório quando em seus trabalhos citam como referência o livro resultado da tese de doutorado de
Caldart, como uma preciosa contribuição da autora às formulações do MST no campo da educação e,
conseqüentemente, na formação dos professores militantes do Movimento...
75
É válido ressaltar a total disponibilidade dessa professora diante da nossa demanda por entrevistá-la,
oferecendo-nos uma gama de documentos que ela considera relevantes para a compreensão da educação
no MST, além de um artigo de sua autoria que trata de afirmar a tese do Movimento como princípio
educativo, do qual apresentaremos trechos ao longo da exposição de suas concepções.
149

reconhecimento por parte de todos os militantes do MST que a consideram uma Sem
Terra.

Nessa perspectiva, apresentaremos trechos de seu próprio depoimento sobre esse


engajamento, seguido da fala dos outros entrevistados a respeito de seu importante
papel desempenhado na elaboração e execução da proposta de educação do MST. As
longas citações a seguir, se justificam pelo grande valor dado à participação da autora,
considerada por todos, como uma das maiores referências do Movimento.

Caldart nos conta que seu envolvimento com o MST se deu no período em que
estava fazendo Mestrado no Estado do Paraná. Esse momento de sua história pessoal
coincidiu com o próprio surgimento e criação formal do Movimento enquanto entidade
nacional. Em suas palavras,

A minha relação com o movimento surgiu via universidade[...] Fiz a minha


pesquisa de mestrado voltada para o entendimento de um aspecto que na
época foi considerado extremamente inusitado: a questão da produção
poética dos assentados,“sem terra com poesia”[...]Conhecendo o
movimento, participei de alguns assentamentos e manifestações, etc... (Roseli
Caldart).

Nesse contato inicial com o Movimento, a autora registra que a questão da


temática educacional surgiu enquanto uma preocupação forte entre os militantes do
MST. Foi diante desse processo que ela se comprometeu com a elaboração da proposta
educativa destinada aos Sem Terra e com a própria organização do Setor de Educação.

Eu entrei pra pesquisar essa dimensão da poesia e aos poucos fui dando
conta da outra que estava começando a emergir: a finalidade da educação e
da escola no Movimento. E continuei a tentar pesquisar o MST. Enfim
começaram as primeiras reuniões para constituir o Setor de Educação e o
pessoal sabia que eu tinha feito uma dissertação[...] me convidaram para
participar das discussões sobre o que fazer com as escolas dos
assentamentos[...] Isso aconteceu quando eu comecei a participar das
reuniões da criação do Setor de Educação do Movimento no RS nos anos de
1986 a 1988 e eu ainda estava da universidade. Até que em 1989, começou a
criação da FUNDEP/DER76 iniciando a discussão sobre a necessidade de ter
cursos de magistério especificamente voltados para formação de educadores
da reforma agrária, de educadoras dos assentamentos. Eu ajudei na criação
dessa entidade e na hora que ela foi criada o pessoal olhou pra mim e disse:
- bom agora oficialmente ajude a formar a coordenação pedagógica dessa
entidade temos uma mestre aqui[...] Então o pessoal me fez o convite pra
coordenar esses primeiros cursos (Roseli Caldart).

76
Fundação de Desenvolvimento e Pesquisa da Região Celeiro – FUNDEP, em seu Departamento de
Educação Rural - DER
150

A partir desse momento, Caldart informa que realizou trabalhos vinculados


inicialmente ao Setor de Educação do RS, desenvolvendo ações relacionadas à
elaboração de criação de cursos de formação de educadores. Seu envolvimento com o
Coletivo Nacional deu-se posteriormente.

Eu comecei no estadual aqui no RS, mas uma coisa puxa a outra. Esses
cursos serviram de referência para outras discussões e em 90, 91 comecei a
integrar a Coletivo Nacional. Esse setor de educação nacional tem ajudado
na produção de materiais, nessa tentativa de expressar na linguagem escrita
essa construção que é feita no projeto de educação que nasce vinculado a
uma obra social e sempre desde que eu comecei, quer dizer eu entrei assim e
até hoje é um debate muito forte, na formação de educadores. Eu entrei pra
ajudar a formar o educador do magistério no âmbito nacional, e, hoje,
embora eu participe das discussões a nível nacional, tenho tido o cuidado no
sentido de compreender que a coordenação deve estar vinculada a
experiências locais...(Roseli Caldart).

Registramos, assim, parte essencial do envolvimento da professora Rosely


Caldart para justificar o tratamento dispensado a ela pelo Movimento, já que é
considerada como uma das maiores referências atuais do Setor de Educação do MST.
Nessa perspectiva, quando interrogamos os demais entrevistados sobre os teóricos que
mais influenciam as formulações pedagógicas do Movimento, eles apresentaram a lista
de vários autores do campo progressista, mas não se referiram a Rosely Caldart apenas
como uma intelectual. Ela foi tratada como uma Sem Terra que contribui intensamente
com os projetos e as produções do Movimento no campo educativo.

Essa particularidade manifesta-se, especialmente, quando todos os entrevistados


indicaram o livro intitulado Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que
escola..., de autoria de Rosely Caldart, como uma obra que sistematiza a gênese, a
história e os pilares da proposta de formação de professores do MST.

Nesse sentido, vale apresentar a fala do demais entrevistados sobre como vêem a
relação da Rosely Caldart como o MST.

Nós não fazemos muito essa diferenciação porque pra nós a companheira
Roseli é militante do MST. Ela colabora com a nossa educação [...] Eu tenho
assim um grande reconhecimento e admiração com o trabalho que a Roseli
fez e faz, principalmente porque você sabe a história da tese da Roseli como
foi que aconteceu? Nós aqui no Ceará nós tínhamos uma parceria com a
Secretaria de Educação do Estado e com o Unicef e com outros órgãos como
o Conselho da Mulher e algumas ONGs. Estávamos fazendo um trabalho
para o assentamento e a discussão que a gente queria é que de fato se
trabalhasse a proposta da pedagogia do MST. E nenhum desses órgãos
reconheceu a nossa proposta de educação, a nossa pedagogia. Eu ligava pra
151

Roseli pra resolver, investigar, pra questionar: - Roseli, nós não temos uma
pedagogia, porque aqui estão dizendo que nós não temos essa formulação. A
Roseli transformou essa angústia nossa, esse debate nosso em sua tese de
doutorado que foi publicada no “A Pedagogia do Movimento Sem Terra.
Assim o MST tem uma pedagogia e eu creio que a obra da Roseli, expressa
aquilo que o Paulo Cerioli diz: depois de Pedagogia do Oprimido de Paulo
Freire, o livro Pedagogia do Movimento Sem Terra é uma obra que faz a
diferença dentro de todas as discussões pedagógicas, porque ela sistematiza
através da sua tese, a nossa experiência, em que o sujeito educativo é um
movimento social e isso é um novo paradigma para a educação, inclusive
para a educação popular e para todos os outros movimentos sociais que hoje
nos procuram, reivindicando do MST uma participação na construção de
processos pedagógicos diferenciados em relação a implantação de propostas
diferentes, camponesas em vários países. (Maria de Jesus).

A Roseli pra nós é uma grande educadora, não por ela vir aqui dar aula aqui
no Curso de Pedagogia [...] O pessoal gosta muito das aulas dela por ela ser
essa educadora extraordinária, a sua forma ser... Ela não precisa dizer pra
ninguém como se organizar, ela é extremamente organizada, e a gente olha
assim: eu acho que só em a gente ver o dia-a-dia dela a gente aprende. Ela
tem um papel muito importante nessa ligação teoria e prática através de sua
própria vida pessoal e nessa influência conosco aqui internamente. Ela é
uma educadora que vive na prática o compromisso com a transformação
dessa sociedade[...]Ela é uma educadora que milita conosco...(Diana).

A Roseli tem bastante importância para nós do Movimento. Aprendemos com


ela na prática, vendo seu exemplo de educadora que tem compromisso com a
nossa luta que é sua também (Pedro).

A Roseli? a gente considera de dentro do MST, porque ela praticamente


ajudou a iniciar o Setor de Educação, ela pensou a primeira proposta do
curso de magistério em 91[...] Então, a gente já a considera alguém de
dentro do MST, porque ela sempre teve na coordenação nacional dos cursos
do Setor da Educação. [...] A Roseli é uma Sem Terra (Madalena).

Frente a essa gama de depoimentos que afirma e situa Roseli Caldart como uma
educadora militante do MST e que reconhece a sua influência nas formulações das
propostas de formação de professores do Movimento, compreendemos que, para
desvendarmos as concepções do Movimento em relação à educação, é preciso uma
análise atenta e pormenorizada do pensamento dessa professora que registra em seus
escritos o ideário pedagógico do MST.
152

Nesse sentido, apresentaremos parte significativa de seu livro, seguida de outros


materiais já elencados, em que a autora tece uma reflexão sobre a trajetória do processo
de ocupação da escola pelo Movimento.

Caldart inicia seu trabalho, advogando que, para se compreender e elucidar o


processo de formação dos professores do MST, é necessário situá-lo dentro da própria
luta pela escola. Essas duas dimensões estão dialeticamente relacionadas, não podendo
ser desmembradas. Assim, num capítulo intitulado O MST e a ocupação da escola 77,
Caldart apresenta uma reflexão sobre a experiência, de educação no e do MST.
Esclarece que para se compreender essa experiência, é necessário olhar para o conjunto
do Movimento e enxergá-lo em sua dinâmica histórica, considerando-se os vínculos que
constituem sua existência na realidade, o que levaria ao entendimento de que a
educação pode ser mais do que educação, e que escola pode ser mais que escola.

Mantendo-se fiel a essa linha de pensamento, Caldart afirma que o processo


educativo do MST constitui-se num movimento sociocultural, que toma como centro
motriz o processo de formação do sujeito Sem-Terra que “se produz como um sujeito
cultural, à medida em que suas ações e sua forma de atuação na sociedade produz e
reproduz um determinado modo de vida que, ao mesmo tempo, recupera, consolida e
projeta valores, princípios, convicções, e também um determinado jeito de conceber as
relações sociais” (CALDART, 2000:144).

A autora afirma que existe uma trajetória histórica de ocupação da escola pelo
MST, identificada como um processo de construção que decorre da ocupação da terra,
fruto das ações dos mesmos sujeitos. Nesse sentido, apresenta a trajetória da educação
escolar do MST a partir de três momentos significativos:

- o primeiro traduziria a própria gênese do trabalho com a educação escolar no


MST. As famílias sem-terra mobilizaram-se (e mobilizam-se) pelo direito à
escola e pela possibilidade de uma escola que atendesse à realidade dos
assentados e acampados; (idem, p. 145).

- o segundo momento trata da mobilização das famílias e das professoras no


sentido de assumirem a tarefa de organizar e articular por dentro da organicidade
do Movimento esta mobilização. Trata-se de produzir uma proposta pedagógica
77
In: CALDART, Roseli Salete:. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola.
Petropólis: RJ: Vozes, 2000.
153

específica para as escolas conquistadas, e formar educadores e educadoras


capazes de trabalhar nessa perspectiva. Esse momento marca a criação do Setor
de Educação do MST com a intenção de assumir essa tarefa. (idem).

- Como terceiro momento desse processo, Caldart aponta a incorporação da escola


na dinâmica própria do MST, em dois sentidos interligados:

[...] A escola passou a fazer parte do cotidiano e das preocupações das


famílias sem-terra, com maior ou menor intensidade, com significados
diversos dependendo da própria trajetória de cada grupo, mas, inegavelmente,
já se consolida com sua marca cultural: acampamento e assentamento sem-
terra do MST têm que ter escola e, de preferência, que não seja uma escola
qualquer, e a escola passou a ser vista como uma questão também política,
quer dizer, como parte da estratégia de luta pela Reforma Agrária, vinculada
às preocupações gerais do Movimento com a formação de seus sujeitos
(idem, p. 146).

A autora evidencia com suficiente clareza a preocupação de como escola do


MST está diretamente relacionada com a formação de seus militantes, já que se coloca
como objetivo ocupar a escola em função das demandas de organização e luta pela
reforma agrária. A relação escola e sem-terra é tratada por Caldart como geradora e
produto do trabalho desenvolvido pelo MST no próprio processo de gestação do
Movimento. Assim a escola passa a ser vista como uma questão também política, já que
se constitui em uma estratégia de luta pela reforma agrária.

Caldart ressalta que um importante elemento que impulsionou o início do


trabalho do MST com a escola foi a iniciativa de mães e professoras dos acampamentos
que, preocupadas com o atendimento pedagógico às crianças, organizaram atividades
educacionais para os sem-terrinhas dos acampamentos.

Dessa luta por escola para as crianças dos acampamentos e assentamentos,


surgiu a preocupação das professoras com sua própria articulação e formação para
assumirem a tarefa de educar as crianças sem-terra de um jeito diferente.(idem, p.
150), já que se conseguira dobrar o número de escolas nos assentamentos. Essas
professoras, conforme registra Caldart, via de regra eram religiosas, mães ou
professoras que traziam em sua bagagem a experiência de educadoras de crianças dos
seus municípios de origem. Encontravam-se, ainda, ali pessoas que tinham uma
escolaridade um pouco mais elevada do que a média dos acampados e que eram jeitosas
no trato com crianças. A alternativa era construir um projeto formativo distinto da escola
tradicional e relacionado à luta do MST. Nesse sentido, era imprescindível formar um
154

educador que se diferenciasse dos tradicionais, com posturas mais democráticas,


coletivas e críticas. Era necessário um educador-militante da luta pela reforma agrária.

Temos no depoimento da própria Caldart a explicitação da orientação teórico-


metodológica e a identidade e o perfil desse professor apregoado pelo MST, que expõe a
preocupação em formar o educador-militante que contribua conscientemente nas formas
de lutas e na organização do Movimento.

[...] O que a gente vem tentando ao longo desses anos é assumir o vínculo
com a nossa identidade de educador. Não é qualquer educador, mas deve ser
um educador que já fez opção, que já escolheu estar vinculado a uma luta
social. Porque o grande desafio é construir uma coerência entre a atuação
específica na área da educação, na área da formação, com a dinâmica dessa
luta que a gente sabe fazer. Assim formaremos um educador comprometido
com a nossa luta. Um educador numa perspectiva crítica e democrática, que
se preocupe com a luta desencadeada pelo Movimento. Essa compreensão a
gente vem construindo aos poucos[...] (Roseli Caldart).

Essa percepção é reforçada por Morigi, quando, analisando o Curso de


Magistério, de nível médio, desenvolvido no Instituto de Educação Josué de Castro, em
Veranópolis, afirma que,

Nessa escola, as práticas do MST são trabalhadas com os alunos para que eles
levem consigo, ao final do curso, a ideologia do Movimento para ser
divulgada aos jovens e adultos que venham a ser alunos nos acampamentos e
assentamentos. Uma das práticas estimuladas é a autogestão, para que os
alunos aprendam a gerir cooperativas e associações dos assentamentos, como
forma de organização (2003:54).

A respeito da trajetória de construção de uma escola do MST, Caldart destaca


que uma necessidade das famílias transformou-se em uma tarefa da organização. Assim,
nesse processo de discussão sobre a ocupação da escola, o Movimento acaba por vezes
resolvendo primeiro o problema da escola do que o da terra, sendo a educação entendida
como uma das dimensões que deve ser incorporada à luta, sem desconfigurar a
centralidade da luta pela terra. Analisando esse processo, Caldart afirma que

O MST buscou afirmar o seu caráter político, e não apenas corporativo, o que
já naquela época indicava não ser a sua luta apenas pela terra. Foi este caráter
que exigiu uma conformação organizativa aberta a um tipo de demanda como
a educação e a escola. Não fosse assim talvez esta preocupação continuasse a
se desenvolver entre as famílias e professoras, tal como acontece em muitas
comunidades, rurais ou urbanas, mas então estaremos tratando de outra
história, outros vínculos, outros desenlaces (op. cit. 2000:152).
155

Essa dimensão da educação dentro da luta pela reforma agrária é bem analisada
por Morigi, quando afirma que "a importância dada à educação pelo MST é mensurada
pela afirmação de que investir na educação é tão importante quanto o gesto de ocupar a
terra" (op. cit. 2003:56).

No processo de organizar a escola, equipes de educação foram se articulando nos


assentamentos. Essa articulação começou a fazer parte da estrutura organizativa do
próprio Movimento, chegando à constituição dos chamados Coletivos Estaduais de
Educação, que, segundo Caldart, surgiram com mais força no Rio Grande do Sul 78, para
dar conta de duas demandas específicas: a de garantir a mobilização pelo direito à
escola; e a de intercambiar experiências sobre o jeito de fazer a escola diferente que
todos desejavam.

O trabalho dos coletivos foi se ampliando sem perder o princípio organizativo de


que a educação é uma dimensão a ser implementada, estruturada, sistematizada e
acompanhada pelos coletivos de educação, constituídos por educadores do Movimento.
Nesse sentido, partia-se da concepção de que a discussão sobre a escola diferente
interessa a todos os sem-terra, chegando-se ao significado da expressão a luta é nossa
escola. Desses princípios organizativos, surgiram desdobramentos no sentido de garantir
uma escola diferente, que se baseara e se legitimara nas discussões sobre a formação de
professores:

Um desdobramento imediato foi a discussão específica, então, sobre quem


deveria trabalhar nas escolas dos assentamentos. Nos acampamentos, esta era
uma pergunta circunstancialmente respondida. Não haviam professoras de
fora dispostas a trabalhar em uma rotina de conflitos como aquela. Mas
quando começaram os assentamentos, isto se tornou uma questão relevante,
sendo inclusive motivo de alguns desentendimentos entre as famílias. A
maioria das chamadas professoras de dentro, não tinha titulação adequada,
somente permanecendo nas escolas dos assentamentos através da pressão da
comunidade. Acontece que nem sempre a comunidade considerava
importante fazer esta pressão porque temia que o despreparo das professoras
pudesse implicar em uma educação de pior qualidade para seus
filhos[...]Quando então começaram os conflitos com as professoras de fora,
esta posição de somente aceitar professoras de dentro, que em alguns
assentamentos foi princípio desde o início (quem não sabe da nossa luta não
pode educar bem nossos filhos) tornou-se uma nova bandeira de luta. Algo
que somente viria a ser flexibilizado anos mais tarde, depois de algumas
experiências bem-sucedidas de professoras de fora que passaram a realizar
um trabalho considerado até mais militante do que o de dentro (op. cit.
2000:158).
78
Conforme os registros feitos por Caldart, a primeira reunião de uma equipe de educação estadual do Rio
Grande do Sul se deu em 1987 com o pessoal ligado à Faculdade de Erexim,.. Essa reunião aconteceu na
casa paroquial de Ronda Alta. (2000:156).
156

A respeito dessa preocupação com as professoras de fora, Morigi (2003) registra


que o MST vem ampliando a sua oferta desses cursos de formação para os professores
da rede municipais e estaduais de ensino, independentemente de trabalharem ou não nas
áreas de assentamentos.

Nessa mesma perspectiva, Beltrame informa que

Os problemas enfrentados pelos professores nas escolas e na relação com os


órgãos de administração da educação do Estado foram surgindo à medida
que a atuação do Movimento ganhava visibilidade. Por outro lado, apareciam
dificuldades com os professores não militantes, que haviam sido designados
para essas escolas pela rede oficial de ensino e que muitas vezes assumiam o
cargo contrariados e, em alguns casos, com uma visão preconceituosa em
relação ao trabalho do MST. (2000:49).

O desdobramento da luta por uma escola diferente impulsionou a mobilização


em torno da busca de alternativas no sentido de escolarizar, formar e titular os
professores do Movimento, provocando a luta por um curso normal para os professores
de dentro do MST, transformando-se em uma demanda importante, como bem descreve
Caldart:

[...]Esta discussão iniciou no Rio Grande do Sul e deu origem depois à


primeira turma de Magistério do MST79, iniciada em janeiro de 1990, no
município de Braga, em parceria com a Fundação de Desenvolvimento,
Educação e Pesquisa da Região Celeiro – FUNDEP, uma entidade criada
pelos movimentos populares para atender demandas deste tipo. A partir desta
iniciativa, a discussão sobre a escola diferente passaria a ter um espaço
sistemático e necessariamente entrelaçado com o processo de formação de
educadoras e educadores do MST (op. cit. 2000:158).

Esse processo de criação do Curso de Magistério também foi registrado por


Caldart no seu livro Educação em Movimento. Em suas palavras:

A articulação de um curso de Magistério para professoras de assentamentos e


acampamentos começou através do Setor de Educação do MST do Rio
Grande do Sul. Foi a partir da Equipe de Educação que se constituiu no
Acampamento da Fazenda Anoni, especialmente após a legalização de sua
escola em 1987, que começaram as discussões e as tentativas de buscar
parcerias para viabilizar a titulação de pessoas das próprias áreas de Reforma
Agrária, para que pudessem disputar os concursos públicos e trabalhar nestas
79
A respeito da trajetória de criação do primeiro curso de magistério do MST, conferir CALDART,
Roseli. Educação em movimento: formação de educadores e educadoras do MST. Petrópolis, RJ: Vozes,
1997. Este livro trata de um trabalho de sistematização detalhado sobre esse curso que teve início em
janeiro de 1990. A autora faz uma descrição rica do seu método e da própria trajetória das experiências do
MST com esse curso.
157

escolas recém-conquistadas[...] O Curso de Magistério do MST, à medida que


foi um dos motivadores da criação da Fundação [FUNDEP] acabou sendo o
primeiro curso do DER, tendo iniciado a sua primeira turma em janeiro de
1990 (1997:62-63).

Na análise de Caldart, a preocupação com uma escola diferente e,


conseqüentemente, com a formação dos professores do Movimento, trouxe outras
demandas para a organização do Movimento, como a produção de um projeto de
educação próprio do MST, que incluiria a proposta de formação de seus professores. A
busca era de não apenas ocupar a escola, mas de também constituir a escola como parte
de sua identidade. Nesse sentido, a experiência da primeira turma de Magistério foi se
ampliando.

Um importante momento dessa trajetória foi o Primeiro Encontro Nacional de


Professores de Assentamentos80, (1987) que, segundo Caldart, desencadeou uma
articulação nacional do MST, que, pressionado por suas bases, assumiu a organização
do trabalho de educação escolar nos acampamentos e assentamentos conquistados.
Dessa organização dos estados do centro-sul do País, surgiu o Setor de Educação do
MST, que, a partir de 1988, acompanhou a nova estruturação do Movimento em setores,
tirando da família e das professoras a responsabilidade de fazer sozinhas o trabalho
educativo que, a partir de então, fazia parte da organização do MST.

A respeito da criação do Setor de Educação do MST, Morigi (2003) relata que as


primeiras ações no campo da educação realizada pelo MST aconteceram com o
Primeiro Encontro Nacional de Professores de Assentamentos 81, em julho de 1987, em
80
Analisando a participação dos educadores do MST nos eventos políticos/pedagógicos, Beltrame
destaca que, o objetivo [desses eventos] é mobilizar os militantes e simpatizantes, além de ampliar e dar
visibilidade ao Movimento junto à sociedade por meio da ocupação de espaços da mídia. Esses
encontros reforçam a sensação de pertencimento em seus integrantes e adquirem forte sentido na história
política do grupo[...] Destacam-se as longas caminhadas a pé, chamadas de “ marchas”, invasões de
agências bancárias, fechamento de rodovias, entre outros. Na educação, os de maior mobilização são os
encontros estaduais e nacionais de educadores, com expressiva participação de professores. Constituem-
se em oportunidades de reflexão e redefinição das propostas, na opinião de seus organizadores, que
destacam o encontro nacional de 1987 como grande importância. Uma década depois (1997), realizou-se
um evento de igual significado[...](2000:162)
81
De acordo com os registros do MST, esse encontro constituiu-se num marco importante para o trabalho
dos educadores do MST, pois ensejou momentos de reflexão e definição da proposta no campo da
educação. Após uma década, outro importante encontro foi realizado: O Primeiro Encontro Nacional de
Educadores e Educadoras da Reforma Agrária – I ENERA, que ocorreu na Universidade de Brasília,
reunindo aproximadamente 700 participantes, entre professores das escolas de acampamento e
assentamentos do MST, onde foi lançado o Manifesto das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária
ao Povo Brasileiro. Esse Manifesto reuniu as principais discussões e conclusões do evento, reforçando os
pontos principais da proposta de educação do MST. É válido observar que a mesa dos trabalhos desse
encontro contou com a presença dos representantes da UNB, da Unesco, da Unicef, do Governo do
Distrito Federal e das principais lideranças do MST que, na ocasião, eram José Rainha Júnior e João
158

São Mateus, no Espírito Santo. Esse encontro tinha por finalidade desenvolver uma
articulação nacional do trabalho que já vinha sendo desenvolvido em vários estados do
País.

Esse autor registra, ainda, que a criação do Setor de Educação foi resultado desse
Encontro, que teve o objetivo de articular e potencializar as lutas e as experiências
educacionais, desencadeando a organização do trabalho nas regiões onde o Setor ainda
não tinha surgido. Os encontros nacionais dos professores de assentamentos
transformaram-se nas reuniões ordinárias do Coletivo Nacional de Educação do MST,
que se constitui numa instância máxima de decisão do Setor de Educação82.

Conforme relata Caldart, o Setor de Educação começou a exercer a função de


acompanhar todo o processo de articulação e reflexão sobre o projeto de
educação/pedagógico do MST, sem, contudo, descomprometer as famílias com a
construção desse projeto, já que esse Setor busca organizar a participação das famílias
nesse processo, pois a organicidade do Movimento se desenvolve baseada na chamada
democracia ascendente e descendente83, que pode garantir a participação de todos na
condução da luta em suas múltiplas e complexas dimensões.

A primeira função do Setor de Educação seria (como tem sido) a de articular


e potencializar as lutas e as experiências educacionais já existentes, ao mesmo
tempo em que desencadear a organização do trabalho onde ele havia surgido
de forma espontânea, ou nos assentamentos que fossem iniciados a partir
daquele momento. Os encontros nacionais de professores de assentamentos
logo se transformariam nas reuniões ordinárias do Coletivo Nacional de
educação do MST, instância máxima de decisão do Setor de Educação até
hoje (op. cit. 20020:161).

Pedro Stédile (Conferir: BELTRAME, Sônia Aparecida Branco. MST, professores e professoras:
sujeitos em movimento. 2000. Tese (Doutorado) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000, p. 162).
82
De acordo com Caldart, “[...]o Setor de Educação do MST tem sua centralidade de atuação na escola, e
a referência construída na sociedade em relação a este campo também está centrada nela” (2000:140 e
144). A autora registra que no I Encontro Estadual dos Professores de Assentamento do RS, de 9 a 11 de
dezembro de 1988, na Anoni, onde foi discutida a questão da reestruturação do MST em setores, a equipe
que trabalhava com a educação passou a ser denominada de Setor de Educação do MST. Nos estados de
Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Bahia e Piauí, já existia a
articulação deste Setor (idem, p. 150, nota 140).
83
Essa forma de organicidade centrada do movimento ascendente e descendente trata do percurso de
tomadas de decisões dentro do MST. Na democracia ascendente, parte-se dos chamados Núcleos de Base
– NB até se chegar à direção nacional, e na democracia descendente, as decisões tomadas nas instâncias
nacionais devem contar com a participação efetiva de todos os envolvidos no processo. O objetivo é que
se garantam os espaços de participação democrática em todos os níveis. Esta mesma lógica rege o
percurso das decisões do Setor de Educação do MST. A respeito dessa estrutura organizativa, CALDART
ressalta que essa lógica do MST quase sempre é temperada com os seus ingredientes de movimento de
massas, ajustando permanentemente o formato da organização de que, afinal, são os sujeitos (2000:163).
159

Segundo a autora, essa organicidade no âmbito do Setor de Educação permite


que professoras deixem suas salas de aulas para assumir um trabalho de organização e
articulação das equipes de educação e até mesmo de tomarem para si a tarefa de
organizar a participação das famílias sem-terra nas lutas e discussões da escola.

Foi a partir daí que se tornou mais usual a expressão educadores do MST (agora já
com maior presença masculina), porque ela incluía as professoras, mas não deixava
de fora estes outros militantes que, não sendo professores de escola, são também
trabalhadores e trabalhadoras da educação. Isto seria ainda mais reforçado com a
introdução de novas frentes de ação do Setor, com a educação de jovens e adultos,
as mobilizações infantis e outras (idem, p. 164).

O papel do Setor de Educação é bem definido e delineado no documento


Pedagogia do Movimento Sem Terra: Acompanhamento às escolas (2001) 84, que,
conforme informamos anteriormente, contou com redação final da professora Roseli
Caldart. Esse documento visa a contribuir e orientar o trabalho desse Setor, e que, em
certa medida, complementa e representa as concepções anunciadas no decorrer desse
texto sobre a trajetória da ocupação da escola pelo MST e as contribuições e influências
das concepções de Caldart no MST.

O documento apresenta a preocupação com as escolas dos acampamentos e


assentamentos, principalmente no sentido da discussão sobre o que se deseja construir
com elas. Vislumbra-se, como objetivo dessas escolas, a seguinte formulação
significativa:

Queremos que avancem na perspectiva de se tornarem verdadeiros lugares de


formação humana, de educação da personalidade de novos e antigos
militantes das causas do povo. Mas já compreendemos melhor hoje que esta
discussão sobre educação não diz respeito apenas à escola e seus educadores;
a questão da formação humana é uma questão que se coloca em todas as
ações que compõem o cotidiano da família (2001: 3).
Assim, o acompanhamento político e organizativo, bem como o
acompanhamento pedagógico às escolas dos acampamentos e assentamentos do MST,
torna-se uma tarefa do Setor de Educação. Seu objetivo é o de garantir que as escolas
mantenham o vínculo com as lutas e os desafios do próprio Movimento e que realizem
um projeto educativo coerente com a realidade dos trabalhadores rurais Sem Terra e
com os valores presentes em seu processo de organização. Tudo isso sem esquecer o
projeto de desenvolvimento humano e social que se tenta construir através de uma

84
É válido lembrar que parte desse documento já foi analisada no texto que tratou especificamente de
explicitar os princípios que sustentam e orientam o projeto de educação do MST.
160

estratégia que alia o "acompanhamento pedagógico ao acompanhamento político" das


ações e lutas do Movimento.

A metodologia empregada, que visa assessorar o trabalho organizativo e


pedagógico toma uma dimensão importante no sentido de ajudar a organizar os
coletivos de educação, do local ao nacional, levando também a uma reflexão sobre a
prática, chegando tanto às questões do cotidiano da escola quanto ao processo educativo
como um todo.

Nesse sentido, o documento reconhece os limites do trabalho do Setor de


Educação, quando afirma:

Sobre isso temos vivido muitas tensões. Não temos certeza de que é possível
combinar nas mesmas pessoas duas tarefas. E ainda temos alguns mitos sobre
quem pode e quem não pode fazer discussões de pedagogia. Um dos
objetivos de adotar a expressão Pedagogia do Movimento é para que a nova
linguagem nos ajude nesta necessária desmistificação. (op. cit. 2001:15).

O documento define o que seja acompanhamento, conforme registramos abaixo:

Se acompanhar é caminhar juntos, estar em movimento de formação junto


com o outro, há algumas sutilezas e uma complexidade maior nesta tarefa: se
como pessoa tenho a tarefa de acompanhar alguém é porque o coletivo
considera que já fiz uma caminhada, tenho uma experiência a ser partilhada:
sou capaz de pegar o outro pela mão e ajudá-lo a andar. Mas também preciso
saber que o caminho que fiz não é necessariamente o mesmo que deve ser
feito por quem acompanho. Se for assim estarei sendo autoritário e impedindo
que novos caminhos sejam descobertos. Minha postura precisa ser de diálogo
para quem começa a caminhar agora tenha a liberdade de construir um
caminho diferente do meu, e com minha ajuda[....] em educação
acompanhamento tem a ver com uma relação pedagógica entre pessoas, seres
humanos em diferentes momentos de sua formação (idem, p. 6).

Nos termos do documento, a militância é ressaltada como o grande aspecto


diferenciador das demais propostas progressistas e críticas no campo da formação
docente, visto ser definida como um eixo fundamental da Pedagogia do Movimento,
com base nas seguintes condutas:

- Capacidade de trabalhar com as contradições e conflitos. Os educadores


precisam aprender que as pessoas se formam vivendo e refletindo sobre suas
contradições e os embates. Precisam saber que não é possível educar sem
provocar conflitos, e que se faz necessário enfrentar contradições e aprender a
trabalhar com tais situações;
161

- As pessoas se educam nas atividades que realizam. “A vida é atividade, dizia


Marx. O povo se educa nas ações, diz a prática do MST... É assim que o
Movimento avança em suas estratégias de luta: faz a conjuntura e aprende a
analisá-la desde o próprio movimento de suas ações” (idem, p. 39).

Temos assim uma orientação desse Setor para a atuação dos educadores do MST,
que deve estar articulada ao processo de constituição da escola diferente e de uma
formação de professores que atenda às demandas da luta pela terra, que, conforme
Caldart, apontou para outra dimensão importante no processo de ocupação da escola
que trata da elaboração teórica coletiva da proposta pedagógica do MST para suas
escolas. Esta dimensão foi se construindo a partir de dois eixos de reflexão coletiva
presentes em todos os encontros do MST realizados nos estados no final da década de
1980 e início de 1990: o que queremos com as escolas dos assentamentos e como fazer
esta escola que queremos.

Esse processo de elaboração da proposta contou com a participação de


convidados que já vinham acompanhando e assessorando as equipes de educação dos
diversos estados. O Coletivo Nacional de Formação definiu os espaços de interlocução
político-pedagógica com as demais instâncias do MST. Nesse sentido, Caldart apresenta
um duplo desafio presente nesse processo:

[...]Avançar na elaboração e simultaneamente traduzi-la em linguagem capaz


de ser compreendida pelo conjunto do Movimento, em especial pelos
professores e pelos outros militantes que neste momento ajudava na
construção da organicidade do trabalho nos acampamentos e assentamentos.
Talvez por isto, o primeiro texto, O que queremos com as escolas dos
assentamentos, tenha passado por pelo menos cinco ou seis versões antes de
ser editado sob forma de cartilha em meados de 1991 85. Os materiais escritos
que se seguiram a ele tiveram processo bastante semelhante (op. cit.
2000:166).

Por essa trajetória de encontros e reflexões sobre a proposta pedagógica do


MST, chegou-se à indicação de que se deveria recorrer ao método de princípios86 que
ajudaria a orientar e a fazer avançar o trabalho de educação nos acampamentos e

85
A autora refere-se ao Caderno de Formação nº 18 do MST, considerado o primeiro material produzido
de forma coletiva com o objetivo específico de orientar o trabalho educativo do Movimento.
86
Estes princípios estão sistematizados no documento analisado anteriormente: Princípios da Educação
do MST. Caderno de Educação nº 8, São Paulo: MST, 1997.
162

assentamentos. Os então chamados princípios organizativos e pedagógicos beberam, em


seu processo de edificação, em três fontes básicas:

- a primeira constituiu-se na sistematização das experiências e das reflexões


produzidas pelos sujeitos envolvidos diretamente com o trabalho de educação do
Movimento;

- a segunda fonte foi a própria organização do Movimento com seus objetivos,


princípios, valores e aprendizados coletivos acumulados em sua trajetória;

- a terceira fonte constituiu-se na contribuição da teoria pedagógica presente nas


reflexões de algumas professoras que ajudaram a avançar na estruturação da
proposta. As principais referências foram dos pedagogos e pensadores socialistas
e/ou progressistas como Paulo Freire, Krupskaya, Pistrak, Anton Makarenko e
José Martí (idem, p. 167-168).

Assim, de acordo com Caldart, o grande desafio era juntar essas fontes, tendo a
realidade como base e o método proposto como guia da sistematização pretendida. O
eixo da elaboração da proposta pedagógica foi “no início e continua sendo hoje, a
prática dos sujeitos sem-terra, desdobrada em questões do cotidiano pedagógico, da
escola do Movimento como um todo” (idem, p.168).

Segundo Beltrame (2000), a elaboração dessas referências norteadoras das


práticas pedagógicas seguiu um percurso coletivo, contando com o envolvimento direto
de professoras das escolas de assentamentos e acampamentos, coordenados por
educadores engajados nas propostas do Movimento.

Com apoio na sistematização desenvolvida por Caldart, compreendemos que o


processo de formulação da escola diferente do MST teve um vínculo direto com os
programas de formação de professores do MST impulsionando a própria organização do
Setor de Educação do MST. O Curso de Magistério para Educadores da Reforma
Agrária nasceu colado a esse processo. Após sua constituição em 1990, surgiram
demandas quanto à elaboração de um programa de formação contínuo e sistemático, o
que levou o Movimento, a partir de 1998, a buscar parceiras com universidades que
possibilitassem a realização de um Curso Superior de Pedagogia. A primeira experiência
de parceria deu-se com a Universidade de Ijuí em 1998.
163

Em outro trecho do depoimento de Caldart, encontramos a síntese do processo


dessa primeira experiência com um curso superior de Pedagogia.

Em Ijuí tivemos a primeira experiência de parceria para realização de um


curso de graduação. Isso foi em 98. A primeira turma se formou em 2001.
Então desde essa experiência de Ijuí a gente vem procurando desenvolver
parcerias com universidades públicas, universidades federais. Esse era nosso
intento. Mas na época nós começamos aqui no Rio Grande do Sul,
justamente porque já tínhamos vários anos de experiência com o normal. Na
verdade, seria a continuidade, da própria formação dessas pessoas. Na
época nós não conseguimos levar a frente parceria com as Universidades
federais daqui e tivemos naquele momento a acolhida da UNIJUÍ que é uma
universidade de tradição de trabalho na área da educação popular. Ela nos
acolheu e aí realizamos o curso que terminou em 2001. Desde então foram
acontecendo outras coisas como a criação desse Programa Nacional de
Educação na Reforma Agrária o PRONERA, que acabou sendo um
impulsionador nessa questão de como financiar esses cursos, na verdade
devido a situação da universidade pública dificilmente ela consegue acolher
outras iniciativas que fujam do seu precário orçamento. Nesse sentido, o
PRONERA acabou de um lado viabilizando do ponto de vista de
financiamento, mas também acabou um fomentador, socializador da idéia em
relação às universidades, enfim essa discussão passou a ter mais chão
(Roseli Caldart).

A partir dessa experiência de Ijuí87, outros convênios foram estabelecidos, levando o


Movimento a manter cursos de Pedagogia em vários estados brasileiros, ampliando a
atuação do Setor de Educação e impondo novos desafios ao projeto de formação dos
Sem Terra.

Agora, na passagem para este terceiro momento histórico, me parece estar


sendo produzido um novo deslocamento do eixo central da discussão
pedagógica. Quando as reflexões sobre o jeito de ser da escola começam a se
combinar com uma maior preocupação do Movimento em cultivar a
identidade Sem Terra, os valores e a postura dos continuadores da luta, a
ênfase passa da escola para os sujeitos do processo pedagógico: é preciso
saber quem são estes sujeitos e como estão sendo (e podem ser) educados

87
Ainda a respeito dessa experiência, é válido registrar o depoimento de Maria de Jesus, que foi formada
nessa primeira turma de pedagogia: Então eu creio que para nós assim que fizemos o curso no MST
sempre a gente tem essa visão de que a gente é um privilegiado[...] Não no sentido da gente se sentir
mais do que os outros companheiros e companheiros, mas no sentido da gente poder se apropriar
daqueles conhecimentos para contribuir com a nossa organização. Nosso conhecimento tem um sentido
social. A gente não está numa universidade fazendo um curso desse por conta de uma questão pessoal,
mas a gente está por conta de uma causa e por conta de um projeto que a gente acredita. E a gente quer
dar a nossa contribuição para que o Movimento avance, para que ele seja vitorioso nas conjunturas
adversas[...] Na nossa relação com as universidades nossos cursos vivem uma disputa porque as
universidades querem nos tornar acadêmicos. E uma coisa que nós firmamos é que nós dentro da
universidade somos estudantes do MST. Nós estamos aqui é para estudar, para aprofundar nossas
práticas, para aprender a sistematizar, aprender a entender o mundo. Então isso tem sido uma
construção diferente. O que é que é ser um estudante do MST? Esse estudante é um lutador social, um
lutador que tem compromisso, que quer a mudança, que quer construir o Movimento, que quer fazer uma
sociedade diferente[...]
164

para levar adiante o projeto histórico do Movimento[...] Hoje o leque das


dimensões a serem conhecidas ficou mais amplo, as razões para fazer isto
foram politizadas e inseridas em uma dimensão de projeto histórico, e se
descobriu que este conhecimento em relação aos sujeitos não é uma condição
prévia, mas, sim, ma parte do próprio processo pedagógico. (CALDART, op.
Cit. 2000:184-185).

Caldart, no texto Pedagogia da Terra: Formação da identidade e identidade da


formação (2002), contextualiza historicamente o processo de criação de cursos de
formação de professores que partiu da experiência do magistério de nível médio,
chegando aos cursos de Pedagogia da Terra. Ela entende que, a partir das primeiras
turmas de magistério, foi possível transformar a opção circunstancial desse tipo em uma
escolha consciente, sistemática e planejada, levando a descoberta de uma potencialidade
política e pedagógica que culminou com processos de formação mais longo.

[...]Ou seja, logo estes cursos começaram a ser vistos como lugares de
formação de militantes da educação do MST, e não apenas para o trabalho
direto nas escolas [...]. (2002:78)

Nesse sentido, na análise de Caldart, no particular processo de formação dos


sem-terra, se projeta novas formas de relação do MST com a sociedade, incluindo a
reforma agrária como uma luta de todos os sem-terra enquanto lutadores do povo, e que
se sabem sujeitos da história. Nesse processo, a autora identifica algumas tendências e
desafios que, ao seu ver, corresponderia a pressentimentos futuros:

- a primeira tendência é a de transformação na organicidade do trabalho de


educação do Movimento;

- a segunda é a de um progressivo e contínuo deslocamento da escola como


centro da proposta de educação do MST, combinado com sua maior valorização;

- a terceira tendência deste momento é a de busca de novos interlocutores e


participação em discussões sobre educação em geral e

- a quarta aponta para a emergência de novas ênfases na discussão pedagógica


que integra a proposta de educação do MST.

Sintetizando a sua análise sobre o processo e a trajetória de ocupação da escola


pelo MST, CALDART afirma:
165

O sentido fundamental da ocupação da escola, nesta perspectiva de análise,


está em sua participação na trajetória que desenhou a configuração atual dos
sem-terra do MST. E isto através de dois aspectos que me parecem
especialmente importantes. O primeiro diz respeito à emergência de novos
sujeitos (ou de novos estratos) dentro da constituição do sujeito sem-terra. E o
segundo aspecto refere-se a novos elementos ou traços que passam a
constituir o jeito de ser deste sujeito (idem:185).

Nessa perspectiva, a autora assinala que esse processo acabou por transformar as
professoras de ofício em uma identidade coletiva específica, que vai além do ofício, mas
não o supera:

Professora sem-terra é o nome que pode ser dado à personagem do MST que
combina em três componentes identitários diferenciados, cuja síntese é que
acaba sendo a novidade na conformação histórica do sujeito sem-terra. O
primeiro componente é a condição de mulher; o segundo é o ofício de
educadora ou educador; o terceiro componente desta identidade é a sua
participação na luta pela terra e na organicidade do MST (idem, p. 187).

O documento do Setor de Educação (2001), em conformidade com essa


concepção apresenta um decálogo dessa identidade, dessa prática militante e dessa
profissão: educador. Vale apresentarmos, em grandes linhas, esse decálogo, que trata do
que é ser um educador para o MST, que, sem dúvida, vem orientando as propostas de
formação de professores, reflexão que teceremos adiante.

Ser educador do Movimento Sem Terra é ser antes e sempre um Educando...é


reconhecer-se como SEM TERRA... é ter o MOVIMENTO como referência... é
saber-se um EDUCADOR DO POVO...é ver os educandos como SERES
HUMANOS...é ser EXEMPLO da prática dos VALORES que libertam...é
ESTUDAR MUITO... é aprender e educar através de uma COLETIVIDADE...é
saber construir o AMBIENTE EDUCATIVO...é fazer a ESCOLA DO POVO
SEM TERRA. (op. cit. 2001: 61-63).

A problemática anunciada nesse texto, que evidencia a complexidade das


relações históricas em torno da educação e escolarização construídas no Movimento, e
as próprias concepções de educação, escola e formação de professores aqui esboçadas,
serão retomadas no percurso de nossa pesquisa, principalmente quando tratarmos da
análise das experiências de formação de professores militantes do MST.

Observamos que essa formatação de que seja um educador do Movimento, do


que seja um educador da reforma agrária, desvela a base das concepções apresentadas
nesse texto sobre os elementos fundamentais da compreensão da gênese do projeto de
166

formação do educador do MST, alicerçado na contribuição de Roseli Caldart, que, ao


nosso ver, representa uma referência forte no campo do projeto de formação do
educador do MST com presença marcante nas formulações educacionais desse
Movimento. Essa nossa afirmação pôde ser comprovada nos próprios documentos do
MST, textos e depoimentos aqui apresentados.

Parte dessas concepções estará expressa no texto que se segue, que tem como
objetivo apresentar a estrutura e os princípios organizativos da proposta de formação de
professores do MST, tomando como centro de nosso exame as experiências
desenvolvidas pelo Instituto de Educação Josué de Castro, em Veranopólis - RS.

4.2. Estrutura e princípios organizativos da proposta de formação de professores


militantes do MST: democracia em movimento?

No texto que se segue, examinaremos o Projeto do Curso de Magistério e do


Curso de Pedagogia desenvolvidos pelo ITERRA 88-MST. A escolha dessas propostas
incide no fato de a Escola Josué de Castro89 do ITERRA constituir-se num local
histórico privilegiado, já que se registra a continuidade das primeiras turmas do
Magistério do MST, abrigando, simultaneamente, um curso superior em Pedagogia.
Temos assim, em um mesmo espaço, um curso de magistério de nível médio e um curso
superior de Pedagogia do MST. Assim, esse ambiente torna-se um locus privilegiado
para um exame em torno da proposta de formação de professores militantes do MST.

88
O ITERRA, Instituto Técnico de Captação e Pesquisa da Reforma Agrária, criado em 12 de janeiro de
1995, para ser mantenedor do Curso Técnico em Administração de Cooperativas (TAC), tendo como
sócios fundadores a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil Ltda –CONCRAB e a
Associação Nacional de Cooperação Agrícola – ANCA. O ITERRA, é entidade educacional que abriga o
Instituto de Educação Josué de Castro, situado no Município serrano Veranópolis/RS, reconhecida
legalmente como escola de ensino supletivo e de educação profissional, com turmas de Magistério e de
técnico em Administração de cooperativas – TAC, desde 1996. O ITERRA abriga-se numa parte do
Seminário São José, da Congregação dos Freis Capuchinhos, alugada pela CONCRAB. A aprovação legal
da Escola Normal de Nível Médio do ITERRA coincide com o início da sexta turma de Magistério do
MST em parceria com o FUNDEP no Rio Grande do Sul. Existe ainda a Escola Nacional Florestan
Fernandes, em Santa Catarina, que realiza um trabalho de formação básica para os jovens no âmbito da
psicologia, da filosofia, da economia política etc, com o objetivo de desvelar o funcionamento da
sociedade. Em São Paulo, capital, o Movimento conta com um centro de formação Roseli Nunes e, no
interior do Estado, há o centro de Formação Carlos Lamarca. Conferir: MORIGI, Valter. A escola do
MST: uma utopia em construção Porto Alegre: Mediação, 2003. p. 58.
89
Observamos ao longo de nossa pesquisa documental, das entrevistas e observações realizadas, que o
Instituto de Educação Josué de Castro, como formalmente é reconhecido e legalizado, recebe muitas
vezes a denominação de Escola Josué de Castro ou de Escola Nacional de Formação de Professores do
MST.
167

Apresentaremos uma síntese dos principais aspectos pedagógicos presentes nas


prepostas curriculares dos cursos desenvolvidos pelo Instituto de Educação Josué de
Castro. Para tanto, subdividiremos a nossa exposição em sub-itens, retirando desses
documentos os seguintes pontos: caracterização dos programas de formação; o perfil do
professor do MST: posturas, valores e atitudes; e a relação entre educação, escola e
sociedade. É válido lembrar que muitos desses aspectos serão complementados por
trechos dos depoimentos dos entrevistados que enriquecerão nossa análise sobre essas
propostas curriculares.

Trabalharemos, ainda, dois documentos que tratam do próprio projeto


pedagógico do Instituto de Educação Josué de Castro e de um texto que apresenta a
experiência do curso de Pedagogia da Terra90, relatando as reflexões dos professores
que estão fazendo os Cursos de Pedagogia oferecidos pelo MST, em especial, o curso
em parceria com a UERGS.

É importante mais uma vez, recordar que nossa intenção, após a necessária
exposição de todos esses materiais, é conduzir nossa análise tomando como eixo a
investigação sobre até que ponto o programa de formação de professores do MST se
afina com o que está exposto pelo modelo das competências, especialmente no
Relatório da Conferência de Jomtien, ou se mantém a perspectiva da luta de classes e
da construção do socialismo em suas formulações educacionais.

4.2.1 A história, os princípios e a estrutura organizativa do Instituto de Educação Josué


de Castro

Tentaremos nesse texto extrair, fundamentalmente, as orientações teórico-


metodológicas presentes nas propostas educativas do Movimento, identificando as bases
ideológicas que subsidiam o MST e seu Coletivo de Educação. Nesse sentido, o
objetivo quanto à análise da proposta educativa do MST e, mais precisamente, da
proposta de formação de professores, a qual, no nosso entender, representa a base de

90
MST. Pedagogia da Terra. Cadernos do ITERRA, ano II, nº 6, Veranópolis-RS, 2002.
168

divulgação das principais concepções do Movimento, é apreender o projeto educativo,


particularmente seu projeto de formação de professores, que vem se desenhando dentro
da assim chamada Pedagogia do Movimento responsável pelo projeto de formação
humana.

No entanto, para nós, investigadores, que pretendemos conhecer o Movimento


em sua totalidade, em sua singularidade, para além do acesso às posições assumidas
pelos teóricos nele engajados, e para além dos postulados documentais, se assim
podemos nos expressar, faz-se necessário apreender as concepções originais defendidas
pelos militantes assentados e acampados, o que fizemos mediante visita ao Instituto de
Educação Josué de Castro do ITERRA/MST, em Veranópolis – RS.

Inicialmente, apresentaremos a estrutura do projeto pedagógico do Instituto de


Educação Josué de Castro, conhecido também como a escola de formação do MST,
tomando como referência central o documento 91 que apresenta especificamente esse
aspecto, para em seguida enfocar os elementos do projeto pedagógico do Curso Normal
do Ensino Médio e do Curso de Pedagogia. Optamos, ainda, por destacar das entrevistas
o pensamento dos educadores do Movimento que vêm atuando de forma decisiva nos
cursos de formação de professores desenvolvidos no âmbito desse Instituto.

O Instituto de Educação Josué de Castro – IEJC tem sede permanente em


Veranópolis – RS. É uma unidade de atuação do ITERRA, um instituto vinculado ao
MST. Constitui-se assim, numa escola de educação média e profissional, combinando
objetivos de educação geral, escolarização e formação de militantes e técnicos para
atuação no MST, em cursos formais de nível médio, cursos profissionalizantes e cursos
de formação de professores de nível médio e superior.

O nome do Instituto é uma homenagem à memória do médico, geógrafo e


sociólogo pernambucano Josué Apolônio de Castro, defensor da reforma agrária, que
morreu no exílio em Paris, no ano de 1973. É autor de duas importantes obras
Geografia da Fome”e “Geopolítica da Fome reconhecidas no Brasil e no mundo.

O funcionamento desse Instituto teve início em janeiro de 1995, acolhendo à


época as primeiras turmas do Curso de Supletivo de 2º grau, o Curso Técnico em
Administração de Cooperativas – TAC, desenvolvido pelo MST desde 1993. O processo
de legalização como escola específica se deu em junho de 1997 com a designação
91
MST: Instituto de Educação Josué de Castro: Projeto Pedagógico. Cadernos do ITERRA, ano I, nº 2,
Veranópolis – RS, 2001.
169

inicial de Escola de Ensino Supletivo Josué de Castro. Naquele momento, essa escola
abrigou ainda o Curso Experimental de Formação de Professores de 1ª a 4ª série do
Ensino Fundamental, conhecido como Curso de Magistério do MST, que teve sua
experiência iniciada, como já nos informou Caldart, junto ao FUNDEP/DER no ano de
1990 e que em janeiro de 2001 teve sua oferta regulamentada como Curso Normal de
Nível Médio em atendimento às exigências legais.

Nesse sentido, o Instituto desenvolve os seguintes cursos:

- Técnico em Administração de Cooperativas – TAC, com Ensino Médio e


Profissional;

- Magistério – Curso Normal de Nível Médio;

- Técnico em Saúde Comunitária – TSC, com Ensino Médio e Profissional;

- Curso de Ensino Médio com Qualificação Profissional em Comunicação


Social;

- Pedagogia da Terra, a nível superior, uma parceria do ITERRA com a


Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS;

- Curso de Especialização em Administração de Cooperativas – CEACOOP, uma


parceria do ITERRA com a Universidade de Brasília;

- Supletivo do Ensino Fundamental II e Ensino Médio.

De acordo com o documento, os cursos desenvolvidos no Instituto visam a


atender às demandas de formação do MST:

Os cursos formais que se desenvolvem no IEJC são fruto de necessidades do


processo histórico da luta pela Reforma Agrária e dos sujeitos sociais que
vêm se constituindo neste processo. Podem deixar de ser ofertados no
momento em que estas necessidades desaparecerem ou forem transformadas
em novas demandas, dando origem a outros cursos, e a novas adequações em
seu projeto pedagógico. Trata-se de assumir, também do ponto de vista
estrutural e organizativo, a condição de uma escola em movimento e do
Movimento[...]O IEJC também tem presente a importância de cultivar sua
identidade pedagógica específica: trabalhar a educação e a escolarização de
jovens e adultos do campo, vinculados a movimentos e organizações sociais
de trabalhadores[...] Volta-se de maneira especial para a prática e a reflexão
sobre as questões pedagógicas e metodológicas que dizem respeito à
complexa tarefa de formação humana em todos os cursos e atividades
realizadas. (MST, 2001:6).
170

O Instituto atende trabalhadores rurais vinculados aos acampamentos e


assentamentos de reforma agrária, advindos prioritariamente dos estados do centro sul
do País, que são indicados por coletivos e instâncias ligadas à entidade mantenedora,
trazendo para o Instituto necessidades, expectativas e responsabilidades não apenas
pessoais, mas também do grupo ou do coletivo que representam. O que esperam é
encontrar uma escola diferente que os ajude a se capacitarem para atuar no Movimento
(idem, p. 10)

A proposta desse Instituto, que é conhecido como Escola Nacional de Formação


de Professores, apresenta como objetivo principal formar professores para trabalhar nas
escolas dos acampamentos e assentamentos. Busca-se, assim, consolidar um referencial
político-ideológico para a luta diária do Movimento, formando o trabalhador da
educação do Movimento, esclarecendo a militância sobre os graves problemas sociais,
políticos e econômicos que não atingem somente o MST, mas que são inerentes ao
próprio sistema capitalista, o que justificaria um esforço do Movimento em formar seu
quadro de professores que aprende na luta e nela se forma para a atuação política diária.

Nesse mesmo sentido, o MST busca também formar os demais profissionais


necessários à sobrevivência e ao desenvolvimento das áreas de assentamentos,
estabelecendo parcerias com universidades, de acordo com as demandas que vão
surgindo na realidade dos assentamentos e acampamentos, ou seja, demandas que
nascem da própria luta pela reforma agrária. Essa estratégia demonstra a preocupação
do Movimento com a apropriação do conhecimento científico, como aponta Maria de
Jesus:

Nós queremos que no novo assentamento o nível de escolaridade seja no


mínimo a 8a série do Ensino Fundamental e que a nossa juventude tenha
acesso à universidade, a diversos cursos, porque nós necessitamos de
profissionais de diversas áreas. Nós precisamos de jornalistas, de
agrônomos, de veterinários, de pedagogos, médicos e até de psicólogo,
porque hoje o público que está indo para o Movimento Sem Terra é de
pessoas das periferias. São pessoas marcadas por muitos sofrimentos
afetivos, sociais e econômicos. Muita gente sofrida em toda as dimensões.
Assim tem situações[...] em que a gente já percebe a necessidade de
químicos. É preciso ainda que a gente entenda de computação. Então são
várias áreas em que a gente vai tendo demanda[...] (Maria de Jesus).

A concepção de professor que o Instituto defende é a de que, para ser um


educador, é necessário assumir a postura de educando no processo, compreendendo que
171

o educador maior é o Movimento. Assim são considerados educadores do Instituto todas


as pessoas que desenvolvem tarefas de condução e implementação do seu projeto
pedagógico, que apresenta como finalidade principal:
Participar de um projeto de humanização das pessoas que ajude também a
formar os sujeitos sociais da construção de um projeto de desenvolvimento do
campo e do País comprometido com a soberania nacional, com a reforma
agrária e outras formas de desconcentração da renda e da propriedade, com a
solidariedade, com a democracia popular e com o respeito ao meio ambiente
(MST, op. cit. 2000:12)

Essa concepção do que seja um educador da reforma agrária é bem ilustrada pela
seguinte formulação do próprio MST:

[...]Ser apaixonado pela educação; conhecer a realidade do campo e ser


sensível aos seus problemas; ser a favor da Reforma Agrária; ser lutador do
povo e amigo ou militante do MST; compreender a história do MST e
conhecer as marcas desse Movimento; procurar entender os traços do MST
que constrói a identidade do Sem Terra; ter sensibilidade humana e abertura
para reeducar nas relações os seus valores; apresentar disposição de participar
de um processo construído coletivamente pelos educadores nele inseridos
com a participação ativa dos educandos e de toda a comunidade; ser capaz do
trabalho cooperado, de ser um coletivo educador; romper com a visão de
repasse de conteúdos; desafiar-se a trabalhar saberes; tratar pedagogicamente
a luta, o trabalho, a vida como um todo (MST, 1999:1692).

Nesta perspectiva, quando o documento trata da concepção de educação e de


escola, fundamenta-se nos princípios da educação do MST, apresentando os seguintes
postulados:

- Educação de qualidade social para todos;

- Compromisso com a educação básica do campo;

- Educação que ajude a preparar os sujeitos das transformações sociais;

- Educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana;

- Educação que cultiva os valores humanistas;

- Educação para o trabalho e a cooperação e

- Educação como processo permanente de formação e transformação humana.

92
Conferir MST. Como fazemos a escola de educação fundamental. Caderno de Educação, n. 9, Porto
Alegre: 1999.
172

Coerente com os Princípios da Educação do MST, todo o projeto de formação de ser


humano postulado pelo IEJC pode ser representado na seguinte formulação:

Entendemos que a grande finalidade da educação é a humanização das


pessoas, e que a escola precisa ser trabalhada como um lugar de formação
humana, assumindo a complexidade, o movimento e a incompletude inerente
a esta tarefa. Neste sentido um projeto pedagógico é um projeto de ser
humano, ou seja, uma intencionalidade consciente e explícita em relação ao
ser humano que queremos ajudar a formar, com que valores e postura diante
do mundo, através da nossa prática coletiva de educador, e dos inúmeros
detalhes e escolhas que compõem o cotidiano pedagógico da escola (MST,
op. cit. 2001:13)

Dentre as dimensões da formação, aponta a pedagógica, em que o Instituto deve


desenvolver a sensibilidade pedagógica do educador do povo, construindo um método
adequado para o trabalho de base, levando ao aprofundamento das reflexões específicas
sobre a pedagogia escolar, especialmente com seus educadores e com seus educandos
dos cursos de formação de professores.

Para execução de tais propostas de formação, seja de professores, seja de


profissionais de outras áreas, o Instituto de Educação é estruturado considerando a
própria metodologia que faz o Movimento, ou seja, a forma de organização da escola
espelha-se no movimento que faz o Movimento, com um sistema de representação
versado na democracia ascendente e na democracia descendente, em que o eixo
definidor das discussões são os Núcleos de Base – NB, que definem as diretrizes para a
ação dos setores de trabalho, conforme expressam os depoimentos a seguir:

Os nossos cursos são estruturados do mesmo jeito que são estruturados os


assentamentos e os acampamentos. A organicidade deles é a mesma de um
acampamento, de um assentamento. Todos os cursos têm uma coordenação
geral e os núcleos de base – NB. Nos núcleos de base se desenvolvem todas
essas discussões. A nossa referência principal é o MST. O MST é uma
entidade de classe (Madalena).

A matriz pedagógica da escola é o Movimento, não somente o MST, mas o


movimento que constrói o MST. Se o movimento hoje é organizado de uma
determinada forma, a escola procura se organizar também e aí esse
movimento muda a estrutura e a escola também vai mudando. Assim a gente
trabalha muito a democracia ascendente, através dos núcleos de base – NB
da escola. Todas as pessoas que estão envolvidas no Instituto têm um NB que
é o lugar aonde acontece todo o processo de discussão das questões
pedagógicas, das questões políticas, das questões econômicas e de
sobrevivência[...] Depois tem toda uma estrutura, tem a coordenação da
turma, tem a coordenação do NB no instituto e assim temos também a
democracia descendente que trata das decisões que são tomadas e discutidas
173

pelos NB para que possam ser cumpridas pelos setores de trabalho 93. Os
educandos estão distribuídos dentro desses setores, que vão desempenhar e
cumprir as decisões tomadas por eles anteriormente. Os educandos acabam
participando das decisões e no cumprimento de metas da produção e de
outras metas também, como as metas pedagógicas. Então você faz o caminho
de ida e volta. (Diana)

Em outro documento sobre o IEJC, resultado das reflexões de educandos e


professores, encontramos a definição da democracia como um importante princípio
educativo da gestão do Instituto. A democracia nesse contexto é entendida como
vivência de espaço de participação democrática, onde se educa pela e para a democracia
social. Assim, educação e formação de professores não se separam de uma prática
socialmente democrática.

Tal concepção foi trazida para o Instituto de Educação Josué de Castro como
um princípio político pedagógico e vem norteando o seu funcionamento,
levando os membros da organização a uma gestão coletiva dos interesses do
Instituto e suas relações com o conjunto mais amplo do MST. Busca-se o
desenvolvimento de uma consciência para a luta e que sejam sujeitos desse
processo[...] Não entendemos democracia como a possibilidade de voto em
eleições. Entendemos democracia como a participação de todos nos processos
de informação, decisão, planejamento, execução, controle, avaliação e
apropriação dos resultados de um determinado empreendimento social, mas
tudo feito de forma organizada. (TREVISAN, 2002:11).

Como podemos observar, o processo de gestão democrática do Instituto é


garantido por duas dinâmicas denominadas de democracia ascendente e democracia
descendente, que buscam assegurar a eficiência no processo de tomada de decisões e
encaminhamentos práticos das mesmas. É mediante a gestão democrática que os alunos
aprendem a participar de todo o processo contínuo e permanente vivenciado no dia-a-
dia do fazer pedagógico.

Nesse sentido, compreendendo a educação como processo de formação do ser


humano e como desdobramento desse princípio educativo, O IEJC apresenta uma
organização curricular constituída por dois grandes tempos: Tempo Escola e Tempo
Comunidade. Estes tempos educativos devem estar presentes em todos os cursos
93
A respeito da estruturação desses setores dentro do MST, MORIGI nos informa: Devido à situação
política da primeira metade dos anos 80, o MST optou por não ter um estatuto, mas construiu a
Associação Nacional de Cooperação Agrícola (ANCA), que funciona como “guarda-chuva” legal para
suas atividades. O MST desenvolveu várias frentes ou setores articulados que garantem a existência do
movimento, dos quais se destacam: - frente de massas, - setor de produção dos assentamentos; setor de
formação, setor de educação, - setor de comunicação e propaganda, setor de finanças e projetos[...].
(2003:56). Já a entrevistada em foco, destacou cinco setores envolvidos na escola: setor econômico, setor
pedagógico, setor de formação, setor de serviços e setor restaurante.
174

desenvolvidos no Instituto, pois reforçam o princípio de que escola não é só lugar de


estudar e de assistir a aulas, mas um espaço de formação humana que compreende o
desenvolvimento das várias dimensões da vida.

Nessa proposta, o Tempo Escola constitui-se na presença direta dos formandos


no conjunto das atividades dos cursos oferecidos pelo Instituto, incluindo a participação
nas decisões do processo pedagógico geral, mediante a organicidade dos núcleos de
base que devem garantir a democracia ascendente e descendente dentro dessa estrutura.
O Tempo Escola pode variar de acordo com as características e carga horária específica
de cada curso.

No Tempo Comunidade, se estabelece o retorno dos educandos às atividades


coletivas dos assentamentos e acampamentos com tarefas delegadas pelo Instituto e/ou
pelas demais instâncias do MST. Articulam-se, assim, atividades de estudo com a
participação direta nas ações do Movimento. Dessa forma, preserva-se o princípio de
inserção dos educandos e educadores em coletividades que passam à condição de
gestores desse processo, o que resulta na combinação entre dimensão educativa,
participação e gestão democrática da escola, tomando como matriz definidora a própria
construção organizativa do MST, que prima pelos princípios construídos historicamente,
como unidade, disciplina, participação e criatividade; nem individualismo nem
coletivismo, nem democratismo nem autoritarismo; autonomia e liberdade respeitando a
coletividade maior e firmeza nos princípios e flexibilidade de sua implementação (idem,
p. 23).

Como forma de conceber esse jeito próprio de formar seus educadores


militantes, esses tempos educativos94 passam a se constituír numa metodologia de ir
além das atividades da sala de aula, incluindo o pensar crítico, combinando uma certa
prática ao pensamento intelectual. Como vimos, esses tempos educativos acontecem em
dois momentos interligados: Tempo Escola - que contempla aulas, leituras, estudos,
debates, reflexões e trabalho em grupos; e Tempo Comunidade - que se constitui no
momento forte de atuação no assentamento. Combinados, traduzem uma espécie de
relação entre teoria e prática, em um ir-e-vir permanente, como é apresentado pelos
depoimentos a seguir:

Nós queremos formar esses educadores, essas educadoras para que sejam
quadros da educação, da formação do MST. Que sejam pessoas que tenham
94
A metodologia dos tempos educativos não é uma particularidade dos cursos de formação de professores.
Ela é empregada em todos os demais cursos desenvolvidos pelo MST.
175

não só o conhecimento científico, mas principalmente tenha uma visão de


sociedade, uma visão política, uma visão revolucionária. Esse é o sentido da
formação de professores e por esse sentido a gente vem se dedicado muito.
Por exemplo, nos cursos a gente tem trabalhado os tempos educativos. Para
nós o curso não é só as aulas, então nós temos vários outros tempos
educativos. Eles fazem parte dessa nossa formação como a leitura e a
reflexão escrita, aonde a gente desenvolve os trabalhos práticos, os trabalhos
intelectuais. Então nesse sentido, a gente vai organizando o curso para que
eles sejam tempo formação, tempo comunidade. Todos esses tempos são
formação. Tentamos relacionar o que estudamos na universidade com as
demandas dos assentamentos e acampamentos. Quando voltamos para o
assentamento continuamos a desenvolver aquilo que estudamos na
Universidade que chamamos de tempo educativo (tempo escola) na prática
através do tempo comunidade. Assim é que compreendemos a nossa
formação baseada nessa relação teoria e prática.O que aprendemos temos
que socializar em outros momentos de formação da juventude e das famílias
em geral. (Maria de Jesus)

Assim, para a execução de tais propostas de formação, o Instituto de Educação


estrutura-se considerando a própria metodologia que faz o Movimento. A respeito dessa
forma de organicidade, temos outro depoimento que contextualiza e sintetiza a
organização pedagógica e a estruturação metodológica em tempos educativos.

Na escola, os nossos cursos se realizam por etapas com dois tempos: o tempo
escola e o tempo comunidade. O tempo escola é o tempo em que os
educandos estão aqui no Instituto cumprindo a carga horária legal do curso.
No tempo comunidade voltam para suas comunidades de origem e vão
desenvolver atividades melhoradas no sentido de poderem olhar pra essa
realidade com outros olhos, no sentido desse conhecimento que vão
adquirindo aqui nesses dois meses. Também vão desenvolver atividades no
Movimento pela sua própria inserção no Movimento. Vão também
desenvolver atividades que a escola delegue, mas nunca a escola delega
atividades que faça com que os educandos fiquem longe do MST, trancados
dentro de casa, estudando. Assim eu só vou me tornar uma pessoa
consciente da minha classe trabalhadora se eu estiver ligada a algo que me
proporcione analisar esse movimento. Essa mudança de consciência ela se
dá quando eu compreendo que só me conscientizo se participar do MST. Se
eu não vivo o Movimento, daí eu vou entrar muito em conflitos, no sentido
“ah mais tudo isso é verdade ou é mentira?” [...] Para mim existe, precisa
existir essa vinculação entre a teoria e a prática, essa ligação entre escola e
Movimento. Assim a gente trabalha na escola essa realidade do Movimento
que vai formando a consciência de classe (Diana).

Encontramos ainda nesse depoimento, a defesa do vínculo entre teoria e prática


como um importante princípio pedagógico, responsável por construir a identidade Sem
Terra e do educador militante das áreas de assentamento.
176

Os tempos de formação fazem parte da metodologia escolhida pelo MST para


dar conta da complexidade e da dinâmica que caracteriza a vida dos assentamentos e
acampamentos, e para não perder de vista a questão da formação do professor que não
deve se distanciar da luta diária pela conquista da terra e das demais lutas por políticas
públicas. Dessa forma, a formação do professor-militante é o fim maior dos cursos em
desenvolvimento pelo Setor de Educação do Movimento, o que incide diretamente no
perfil dos educandos da Escola. Assim, é enfatizado, mais uma vez, o princípio da
relação entre teoria e prática, apresentando uma finalidade para além da aprendizagem
de conteúdos. A expectativa é de atender a demanda do MST de formar uma consciência
de classe que contribua com a luta do próprio Movimento no sentido de construir uma
sociedade emancipada, como apresenta a diretora da escola:

A escola tem um programa de formação. Precisamos pensar os cursos de


formação que contemplem as pessoas que vem para cá. Nós já tivemos
grupos que eram as pessoas dirigentes do Movimento. Hoje são os filhos
daquelas pessoas que iniciaram os cursos aqui. Temos uma segunda e
terceira geração do movimento que está vindo para cá muito jovem, com a
média de idade de 16 anos. Aí você não pode exigir um grau de consciência
deles até porque não é só a escola que precisa, quem exige um grau de
consciência maior é o Movimento, mas essa exigência não se dá para entrar
no Movimento.O Movimento no seu dia-a-dia vai formar as pessoas... Assim
como a escola no seu dia-a-dia vai também formar as pessoas. A escola não
tem a mesma intensidade do MST. Nós temos uma escola que precisa ter
aquela parte da formação profissional das pessoas, mas a gente procura
trabalhar essa formação profissional numa lógica diferente. Não naquela
lógica do repasse de conteúdos, mas numa lógica daqueles conteúdos servir
para alguma coisa, de aprender a matemática que sirva para a vida... Não
somente aprender para passar no vestibular. A lógica é outra: é justamente
estar vivenciando isso dentro da escola e depois poder aplicar na realidade.
Você não pode exigir um grau de consciência das pessoas que estão em
formação, então para isso o Movimento exige bem uma ação de classe na
formação da consciência na própria escola. A escola tem uma exigência feita
pelo Movimento e a gente procura transmitir isso nessa formação[...]A gente
busca essa formação na relação teoria e prática. Como exemplo dessa
formação de consciência, dessa relação entre teoria e prática, nós estudamos
a história de outros movimentos, de outras lutas que a gente já teve mundo a
fora. A gente estuda isso justamente para não vivenciar as mesmas coisas..
Assim, a nossa referência é a dialética e a história que envolve essa busca
pela formação do ser humano e pela formação de uma sociedade
emancipada. Todo esse processo é garantido pela metodologia de tempos
educativos (Diana).

Para que esse processo de formação aconteça, é ressaltado, ainda, no documento


que a organização da proposta do Instituto deve acompanhar a orientação metodológica
em tempos educativos. Essa estruturação deve ser flexível, podendo desenvolver-se em
177

outros tempos, desde que estejam ligados à concepção de que a escola é um lugar de
formação humana em que as várias dimensões da vida estejam contempladas.

Todo esse processo é orientado e desenvolvido a partir da elaboração do Projeto


Metodológico (PROMET) de cada etapa do curso oferecido pelo Instituto, a ser
implementado pelo Coletivo de Acompanhamento Político e Pedagógico em sintonia
com os demais professores. Ao lado do PROMET, encontra-se o Projeto Pedagógico de
Curso (PROPED), que tece as orientações específicas sobre as escolhas dos conteúdos e
das didáticas, relacionando-os ao processo vivenciado pelos educandos, tanto em seu
Tempo Escola como em seu Tempo Comunidade. Dessa forma, no IEJC não se tem uma
opção específica de método de ensino, mas trabalha-se com algumas orientações
metodológicas principais:

(a)definir metas de capacitação ou aprendizados básicos para cada


componente curricular ou atividades a ele relacionadas; (b) buscar
desenvolver a relação prática-teoria-prática em duas dimensões básicas: que
os educandos consigam vincular os aprendizados com as questões de sua vida
em geral, e do seu trabalho e militância em particular, qualificando sua
leitura da realidade; e, sempre que possível, o componente inclua
aprendizados ligados ao fazer, desenvolvendo habilidades, métodos e
posturas, (c) utilizar didáticas que exijam a participação direta dos educandos:
expressando opiniões, tomando posições, perguntando, realizando obras,
apresentando o produto de suas leituras, pesquisas, ações; também ouvindo e
se concentrando em exposições, leituras e exercícios; nossas salas de aula e
de estudo precisam ser lugares que alternem tempos de silêncio fecundo, para
as leituras, estudos, reflexões, produção de textos, e de discussões, debates,
expressão acalorada de convicções, sentimentos, pontos de vista; (d)
combinar ações ou tarefas feitas em grupos e feitas individualmente, tendo
presente os aprendizados diferenciados que envolvem; (e) garantir a
apropriação das ferramentas e não apenas dos conteúdos em si mesmos:
aprender como se aprende, construir métodos de estudo, de trabalho em
equipe são aprendizados importantes para que os educandos se assumam
como sujeitos de seu próprio processo de formação...(op. cit. 2001:24-25)

De acordo com o documento, o Método Pedagógico está em constante


construção, pois um dos aprendizados fundamentais que se conquistou foi a
compreensão do movimento como princípio educativo. Diante desse pressuposto, o
Instituto constrói algumas concepções básicas, dentre as quais, a compreensão de que o
movimento é a chave da interpretação dialética da história e, conseqüentemente, dos
processos de formação humana. O movimento é pensado ainda enquanto motor
pedagógico do processo educativo, pois desenvolve a consciência do Movimento em
função da construção de um projeto de sociedade e de ser humano, potencializando os
178

educandos e toda a escola em movimento a assumir as transformações no coletivo e em


cada pessoa.

E assim como precisamos compreender a lógica do movimento da história


para poder levar adiante e de forma eficaz nossa luta política, também
precisamos compreender a lógica do movimento da formação ou do
desenvolvimento do ser humano para poder realizar nosso projeto
pedagógico, que é exatamente o de formar sujeitos da transformação do
mundo95 (idem, p. 26).

A esse respeito, é válido apresentar, em grandes linhas, a concepção de Caldart


sobre o movimento como princípio educativo 96, em que ela defende a tese de que os
Sem Terra se educam no movimento da luta social, e, que, conseqüentemente, existe
uma pedagogia que se constitui no movimento de uma luta social. Portanto, uma luta
social é mais educativa e tem um peso formativo maior, à medida que seus sujeitos
conseguem estranhá-la no movimento da história. Assim, a luta social que forma esses
sujeitos sociais, políticos e humanos, produz e reproduz um movimento sócio-cultural
maior do que ela mesma.

Nesse sentido, Caldart parte do princípio que os Sem Terra se educam em sua
relação com a luta pela terra, o trabalho e a produção. Em suas palavras,

Os Sem Terra se educam, quer dizer, se humanizam e se formam como


sujeitos sociais no próprio movimento da luta que diretamente
desencadeiam[...]Os Sem Terra se educam participando diretamente, e como
sujeitos, das ações da luta pela terra e de outras lutas sociais que aos poucos
foram integrando à agenda do MST. É esta participação que humaniza as
pessoas: primeiro no sentido de que devolve à vida social pessoas que
estavam excluídas;[...]segundo, no sentido de que a pedagogia da luta educa
para uma determinada postura diante da vida: nada é impossível de mudar, e
quando mais inconformada com o atual estado de coisas mais humana é a
pessoa;[...] Podemos compreender o processo histórico de formação dos sem-
terra do MST como constituidor de uma determinada matriz pedagógica, ou a
materialização de um modo de produção da formação humana que tem o
movimento como princípio educativo, a luta social como base confomadora
deste movimento educativo, e a pedagogia da história como cimento
principal que vai interligando as diversas dimensões deste movimento .
(2001:213, 214 e 217)

Avaliando a proposta de formação do educador militante do MST, marca


definitiva das concepções aqui apresentadas, compreendemos que a defesa dessa

95
Grifo nosso para destacar o objetivo da proposta de educação do MST, bem explicitada e assumida
nesse trecho do documento.
96
A respeito desse pressuposto é válido conferir artigo de Caldart, O MST e a formação dos sem terra: o
movimento como princípio educativo. Revista Estudos Avançados nº 15, São Paulo: 2001.
179

formação deve se dar no cotidiano de luta dos assentados, com a participação coletiva
no processo de ocupação da terra, na organização para o enfrentamento da repressão
policial e dos fazendeiros, além do confronto constante com o Poder Judiciário. Isso
incluiria a distribuição de tarefas nos acampamentos e assentamentos e o próprio
processo de negociação com as instituições governamentais.

Para trabalhar com esse contexto amplo e adverso, o Movimento apresenta como
um desafio importante a formação de seus professores, que deve ser fundada em um
determinado perfil e numa identidade, definidos em vários documentos e depoimentos
de seus educadores. Assim, encontramos a definição de três pilares do projeto de
formação de professores do MST:

- o primeiro diz respeito à formação de uma auto-consciência, de uma identidade


de educador sem-terra, de uma postura, de um jeito de ser educador que leve esse
professor a considerar as dificuldades e lutas cotidianas do assentamento. Para tanto, um
requisito importante é que esse educador seja do assentamento e/ou de um
acampamento do Movimento, ou que seja comprometido com a luta dos sem-terra;

- o segundo pilar é a defesa da dimensão do coletivo que deve perpassar todos os


cursos de formação desenvolvidos pelo MST, já que esses educadores trabalharão nas
escolas dos assentamentos construídas coletivamente pelos educadores e pelas famílias
assentadas e que se encontram permanentemente em conflito e disputa com o poder
local, seja o Governo municipal ou estadual;

- o terceiro pilar, que parece expressar um avanço nas formulações das propostas
de educação do MST, é a preocupação de articular as lutas locais com as questões
mundiais de ordem política, econômica e social, resgatando, ainda, a história dos
lutadores do povo. A interpretação dessas questões é compreendida como um caminho
para se estabelecer um pensamento dialético e totalizante sobre a realidade da luta
específica pela reforma agrária e por políticas públicas em geral.

O depoimento da professora Caldart situa esses pilares em um contexto mais


amplo, partindo da vinculação entre a prática educativa e projeto político que funda
historicamente determinada sociedade, afirmando, assim, a não neutralidade da
educação.

Hoje em dia, já é praticamente superado embora ainda há quem queira


acreditar, que a educação é neutra. Enfim, a educação sempre desde a sua
origem tem um vínculo com determinado projeto político e social. Em muitos
180

momentos quando se quer vincular educação à conservação do status-quo,


então se tenta negar o vínculo. Na verdade, historicamente, quando se quer
vincular educação com transformação, a luta se dissipa. Há interesses de se
dificultar esse vínculo.Nós tentamos construir um projeto de educação, de
formação do educador, que assume esse vínculo (Roseli Caldart).

A partir dessa associação entre educação e um projeto político que vislumbre a


transformação social, Caldart entende que a experiência dos cursos de formação busca
construir uma postura e um jeito de ser educador que seja capaz de transformar a sua
própria prática pedagógica. Em suas palavras,

O que a gente tenta nessa experiência prática é construir um método


pedagógico, o jeito de fazer a formação, onde a pessoa tenha em mente que
ela está construindo a postura, uma postura de educador capaz de
efetivamente transformar a sua prática pedagógica num trabalho de formar
outros educadores sociais que continuem a luta. E isso passa menos pelos
discursos e mais pela prática. O educador deve ter uma postura, um jeito de
ser do educador. Então é mais importante o jeito de ser de uma pessoa do
que o que ele diz97. (Roseli Caldart)

Maria de Jesus entende que todos os cursos desenvolvidos pelo MST nascem da
necessidade que o Movimento tem de qualificar suas experiências. Nesse sentido, ela
compreende que, “a questão é formar pessoas de dentro dos assentamentos, porque a escola
também está em disputa no assentamento”.

Segundo Maria de Jesus, nesse contexto da disputa pela implementação da


escola dentro dos assentamentos, o Movimento depara-se com a problemática
negociação com as prefeituras das cidades onde se localizam os assentamentos.

Em relação às prefeituras, a maioria dos prefeitos, onde estão os nossos


assentamentos, não são progressistas. São latifundiários contra a reforma
agrária. Então esse enfrentamento se dá muito no cotidiano das nossas
escolas (Maria de Jesus).

A educadora afirma, ainda, que a premissa básica dos cursos oferecidos pelo
Movimento é a de formar uma autoconsciência da identidade Sem Terra. Essa seria a
função social também dos cursos de formação de educadores.

[...]Porque a identidade do educador que está no assentamento é uma


identidade diferenciada. Ele necessita ter uma identidade vinculada às
questões da comunidade, às questões da luta pela reforma agrária, às
questões daquela população que não tem essa sensibilidade e que não tem
essa consciência.

97
Grifo nosso
181

Nesse processo de estruturação dinâmica dos assentamentos, a entrevistada


aponta como um pressuposto básico a dimensão coletiva, que envolve a participação de
todas os educadores e de todas as famílias. Nesse sentido, o Movimento busca um tipo
de escola que seja uma expressão dessas famílias, do projeto das famílias para
determinado assentamento.

Cada assentamento é uma construção com seus recuos e avanços. E uma


outra dimensão da formação é a dimensão do coletivo. Nós acreditamos que
desenvolver uma proposta como essa da pedagogia do MST nas escolas, só é
possível se for uma ação coletiva tanto dos educadores, das educadoras,
como das famílias, como de toda comunidade e esse é um passo que nós
estamos construindo nesse momento dentro do MST. (Maria de Jesus).

Maria de Jesus apresenta preocupação do Movimento com uma proposta de


formação que articule a compreensão das problemáticas mais locais com a discussão e
interpretação das grandes temáticas mundiais.

Precisamos assegurar que o Movimento tenha essa força local, mas também
essa força mundial, no sentido de que nós sempre estamos vivendo na
berlinda. Porque nós estamos também vinculados às questões de hoje como a
da guerra do Iraque. Esse movimento de local ao geral é que vem também
organizando essa educação. Esses cursos de formação (Maria de Jesus).

Para tanto, advoga-se que a formação político-ideológica desses militantes deve


acontecer nos cursos de magistério e nos cursos técnicos de outras áreas, como o de
Técnicas em Cooperativa Agrícola – TAC, também oferecido pelo Instituto de
Veranópolis, e em outras instituições distribuídas pelo Brasil, nos quais se tenta investir
na formação da consciência de militante, alimentando e fortificando o desejo pela
transformação social. Nesse quadro, inserem-se todos os objetivos e pilares da proposta
de formação de professores desenvolvida pelo ITERRA/IEJC.

Esse perfil, essa identidade do educador, perpassa os documentos e textos do


Movimento. Assim procura-se desenvolver uma concepção de homem, educação e
sociedade que esteja vinculada à formação dessa identidade dos sem-terra, que, por sua
vez, é vinculada à identidade da classe trabalhadora em geral. Nessa perspectiva, repõe-
se a discussão da formação da consciência de classe na relação entre teoria e prática,
visando a uma ação transformadora. Nas análises a seguir, percebemos claramente a
presença dessas dimensões nos discursos dos educadores do MST:
182

Sabemos que o MST é formado por uma classe trabalhadora que foi
excluída[...]Nós dos movimentos sociais, que articulam aquelas pessoas que
não tem mais direitos a tantos espaços contribuímos para que essas pessoas
comecem a ver a sociedade de uma outra forma, aprendendo que é possível
construir uma outra forma de se viver. É bem a partir do momento que a
gente passa a vivenciar essa identidade de Sem Terra, que se liga à
identidade de classe trabalhadora que para mim também é uma identidade
muito forte porque é uma classe trabalhadora, que justamente busca o seu
direito de trabalhar, mas não trabalhar por trabalhar, não o trabalho
escravo, mas um trabalho que seja construído por todos. Assim você aprende
a desvendar a sociedade. Nesse sentido a escola precisa trabalhar muito
forte essas duas ligações: entre a classe trabalhadora e a identidade Sem
Terra. Essas duas identidades são muito ligadas à escola. Assim, a
orientação metodológica da escola parte de uma realidade que a gente tem
que entender a história da relação entre teoria e prática. A escola, os cursos
todos, em especial o magistério, têm que trabalhar uma educação voltada à
realidade, mas a realidade em que a escola está inserida, como se dá a vida
no campo, no acampamento, na escola, na família, a luta do MST[...]
Questionamos o que é um Sem Terra, quais são as linhas, qual o projeto de
ser humano dos Sem terra. Nesse sentido, os princípios educativos estão
assim para nós como os 10 mandamentos da Igreja Católica... (Diana).

Aqui na escola temos educandos militantes que vêm fazer magistério ou a


Pedagogia e que já passaram por um curso de formação política oferecido
pelo Movimento, além da própria prática diária da organização e luta dos
acampamentos e assentamento. No Instituto nossa formação amplia nossa
concepção de homem, educação e sociedade e dá sustentação para
continuarmos a luta do Movimento, já que voltamos para as nossas
comunidades para trabalhar o que aprendemos. Assim nossa formação é
permanente, tendo como princípio a relação teoria e prática e a dinâmica do
MST. Nossa formação é fundamentada pela perspectiva da luta de classe 98.
[...] (Madalena).

É possível perceber, a partir dessas formulações presentes nos depoimentos e


documentos, o investimento que o Movimento faz na educação, articulado às propostas
específicas para formação de seus professores. A construção de uma escola diferente,
colada à formação docente, aparece como uma prioridade:

Nos diversos espaços de formação de professores se busca uma escola onde


se educa partindo da realidade; uma escola onde o professor e aluno são
companheiros e trabalham juntos – aprendendo e ensinando; uma escola que
se organiza criando oportunidades para que as crianças se desenvolvam em
todos os sentidos; uma escola que incentiva e fortalece os valores do trabalho,
da solidariedade, do companheirismo, da responsabilidade e do amor à causa
do povo. Uma escola que tem como objetivo um novo homem e uma nova
mulher para uma nova sociedade e um novo mundo. (MST,Cadernos de
formação, nº 18, 1991)

98
Grifo nosso
183

Para que esses projetos de escolarização e formação aconteçam, o Movimento


apresenta como principal interlocutor o Estado. A relação Estado-MST vai desde as
relações com o Judiciário e a repressão policial até os convênios com instituições
educacionais e universidades, passando pelas tensas relações com governos nacional ou
local. O Estado surge como uma espécie de árbitro interessado, radical adversário ou,
paradoxalmente, parceiro no caso das iniciativas como convênios e financiamentos de
projeto educacionais.

O Movimento tem a preocupação de garantir a autonomia na condução dos seus


projetos em parceria com o Estado. Esse parece ser um grande desafio que o MST
enfrenta. Nesse sentido, busca espaço para que a orientação pedagógica de seus projetos
seja garantida e legitimada, como parecem expressar os depoimentos de Madalena e
Pedro:

[...] Sempre procuramos fazer convênios, buscar verbas, inclusive


assessorias. Mas a gente acredita e sabe que esse é um dever do Estado,
então exigimos que se cumpra o dever de educação para todos. Mas, na
verdade, quando fazemos parcerias não permitimos que se desvie, que o
Estado oriente a nossa formação, deixando bem claro o que está
pretendendo fazer. Se há condicionamento da contribuição do Estado, se ele
quer condicionar a nossa idéia de formação, o nosso jeito de fazer formação,
a gente coloca limites. A gente não deixa que o Estado imponha o seu jeito
de fazer, até porque a gente tem o nosso jeito de fazer[...] temos nosso
objetivo bem claro, então sempre que vamos assinar um convênio, colocamos
que a orientação pedagógica é nossa (Madalena).

Eu não sei até que ponto o Estado seria fundamental. De repente, o MST faz
essas parcerias, esse envolvimento com a política com o Estado e eu acho
que é mais difícil conseguir nossos objetivos quando se tem muito essa
parceria, porque o governo vai meio que enrolando, vai fazendo o tempo
passar. Eu acho que não é muito grande a vantagem de ter muita parceria
com o governo. Por outro lado, a questão já muda um pouco quando se trata
da parceria para oferta dos cursos de Pedagogia em parceria com a
universidade. Acho que essas parcerias são importantes. Por mais que se
tenha um conflito para se conseguir as coisas, mas é uma forma de se
conseguir alguma coisa. Até para essa questão desse curso de Pedagogia, se
formos olhar bem, já foi uma luta grande para se conseguir essa parceria
(Pedro).

Nesse sentido, apesar de contraditoriamente, ocuparem em alguns momentos,


mediante parcerias, o papel do Estado, essa prática do MST apresenta, em alguma
medida, uma concepção revolucionária ao defender o controle dos trabalhadores na
condução dos projetos.
184

A esse respeito lembramos do que Marx apresentou como requisito para


superação dessa sociedade de relações sociais fetichizadas e como possibilidade de
construção de uma nova sociabilidade fundada na associação de homens livres:

[...] A figura do processo social da vida, isto é, do processo de produção


material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como
produto de homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle
consciente e planejado. Para tanto, porém, se requer uma base material da
sociedade ou uma série de condições materiais de existência, que, por sua
vez, são o produto natural de uma evolução histórica longa e penosa. (Marx,
1995:76).

Mesmo mantendo parcerias com o Estado, o MST busca não deixar de lado as
reivindicações por políticas públicas. Tem-se a compreensão de que, mesmo
conquistando um projeto em parceria com Estado, tal projeto é de natureza temporária e
emergencial, devendo-se lutar para que ele se torne uma política pública. Nesse sentido,
o MST reconhece a necessidade de realizar convênio com diversas instituições públicas,
privadas ou comunitárias.

Outra preocupação apresentada por uma educadora foi quanto à problemática


relação do MST com a sociedade, e, conseqüentemente, com sua escola do ponto de
vista da aceitação social do Movimento. Percebe-se que, para tanto, tenta adornar sua
linguagem, adotando uma forma mais amena e morna para a elaboração de projetos que
necessitam da aprovação do Estado. Assumem a concepção de que a relação com o
Estado é conflituosa e contraditória e, que, nesse processo, o Movimento tem ganhos e
perdas, como se expressou Diana,

O MST ganha no sentido de conseguir projetos, como de assentar muitas


famílias. Esse assentar famílias permite que se trabalhe uma proposta de que
essas famílias não ganhem só a terra, mas que possam viver nesse espaço,
todas as dimensões e não só a comida, que possam ser felizes, que possam
cultivar a sua identidade, enquanto sem terra, a sua cultura. (Diana).

Nesse sentido, a educadora atribui grande importância na relação do MST com


os outros movimentos sociais, pois, conforme seu entendimento, a luta dos Sem Terra
não deve ser só pela conquista da terra. A luta deve ser também pela conquista por mais
espaços na sociedade, e, para tanto, torna-se necessária a articulação com os outros
trabalhadores. Nessa articulação residiria a identidade Sem Terra.

Eu acredito muito no trabalho com outros movimentos, pois não adianta


ganhar um pedaço de terra e dizer eu vou plantar, eu não sou mais sem terra.
185

Porque a filosofia do Movimento é os sem terra. Sem terra não é só ganhar


um pedaço de terra e aí deixar de ser sem terra, então sem terra é uma
identidade. Mas então ao mesmo tempo em que a gente consegue ganhar
tudo isso nos tiram muitos espaços na sociedade. Sem Terra é uma palavra
muito forte dentro da sociedade como se a gente quisesse tomar o poder,
quisesse governar o mundo, somos chamados de vermelhos. Então essa
relação é muito transmitida pelas formas de luta que a gente tem que fazer
(Diana).

Diante dessa visão que a sociedade assume a respeito do MST, a diretora afirma
que o Movimento enfrenta sérias dificuldades no processo de aprovação dos seus
cursos, uma vez que, segundo ela,

[...] Vem toda uma conceituação no sentido do que realmente essa escola vai
trabalhar, tanto é que alguns projetos e documentos a gente não pode usar
uma linguagem assim muito de esquerda, revolucionária, porque não temos
a aceitação do projeto. (Diana)

Admitindo a necessidade de se fazer parcerias e convênio com o Estado, o MST


afirma buscar uma autonomia na forma de conduzir as suas propostas no campo
educacional. Nessa perspectiva, deseja ser o ponto de referência e de decisões, detendo
a última palavra, o que nem sempre é possível na relação com os representantes do
Estado. São inegáveis o poder de pressão e a força de influência que as ações e a
organização do Movimento tem, reivindicando, inclusive, uma política de formação de
professores para, assim, construír uma escola diferente, que tem como matriz maior a
Pedagogia do Movimento.

Enfim, percebemos que hoje, nas reflexões do MST, a escola é o centro do


processo de formação humana, ao mesmo tempo em que tem um lugar cada vez mais
importante, tornando-se uma prioridade. Nesse sentido, quando os depoentes falam da
Pedagogia do Movimento, expressam uma identidade, um jeito e uma intencionalidade
pedagógica por meio da qual o MST educa as pessoas que dele fazem parte. E isto
parece ser bem maior do que uma escola, mas ela tem um lugar de destaque nesta
pedagogia, desde que sintonizada com a intencionalidade pedagógica do próprio
Movimento, e de seu projeto histórico de conquista da terra.
186

Todo esse processo pode ser bem representado e sintetizado no Manifesto das
educadoras e dos educadores da Reforma Agrária ao povo brasileiro 99, elaborado no I
ENERA de 1997, sendo útil aqui reproduzi-lo.

No Brasil, chegamos a uma encruzilhada histórica. De um lado está o


projeto neoliberal, que destrói a Nação e aumenta a exclusão social. De
outro lado, há a possibilidade de uma rebeldia organizada e da construção
de um novo projeto.Como parte da classe trabalhadora de nosso País,
precisamos tomar uma posição. Por essa razão, nos manifestamos. 1. Somos
educadoras e educadores de crianças, jovens e adultos de Acampamentos e
Assentamentos de todo o Brasil, e colocamos o nosso trabalho a serviço da
luta pela Reforma Agrária e das transformações sociais. .2. Manifestamos
nossa profunda indignação diante da miséria e das injustiças que estão
destruindo nosso País, e compartilhamos do sonho da construção de um
novo projeto de desenvolvimento para o Brasil, um projeto do povo
brasileiro. 3. Compreendemos que a educação sozinha não resolve os
problemas do povo, mas é um elemento fundamental nos processos de
transformação social. 4. Lutamos por justiça social! Na educação isto
significa garantir escola pública, gratuita e de qualidade para todos, desde a
Educação Infantil até a Universidade. .5. Consideramos que acabar com o
analfabetismo, além de um dever do Estado, é uma questão de honra. Por
isso nos comprometemos com esse trabalho. 6. Exigimos, como
trabalhadoras e trabalhadores da educação, respeito, valorização
profissional e condições dignas de trabalho e de formação. Queremos o
direito de pensar e de participar das decisões sobre a política educacional.
7. Queremos uma escola que se deixe ocupar pelas questões de nosso tempo,
que ajude no fortalecimento das lutas sociais e na solução dos problemas
concretos de cada comunidade e do País. 8. Defendemos uma pedagogia que
se preocupe com todas as dimensões da pessoa humana e que crie um
ambiente educativo baseado na ação e na participação democrática, na
dimensão educativa do trabalho, da cultura e da história de nosso povo.
9.Acreditamos numa escola que desperte os sonhos de nossa juventude, que
cultive a solidariedade, a esperança, o desejo de aprender e ensinar sempre e
de transformar o mundo. 10. Entendemos que para participar da construção
desta nova escola, nós, educadoras e educadores, precisamos constituir
coletivos pedagógicos, com clareza política, competência técnica, valores
humanistas e socialistas. 11. Lutamos por escolas públicas em todos os
Acampamentos e Assentamentos de Reforma Agrária do País e defendemos
que a gestão pedagógica destas escolas tenha a participação da comunidade
Sem-Terra e de sua organização. 12. Trabalhamos por uma identidade
própria das escolas do meio rural, com um projeto político-pedagógico que
fortaleça novas formas de desenvolvimento no campo, baseadas na justiça
social, na cooperação agrícola, no respeito ao meio ambiente e na
valorização da cultura camponesa. 13. Renovamos, diante de todos, nosso
compromisso político e pedagógico com as causas do povo, em especial com
a luta pela Reforma Agrária. Continuaremos mantendo viva a esperança e
honrando nossa Pátria, nossos princípios, nosso sonho.14. Conclamamos
todas as pessoas e organizações que têm sonhos e projetos de mudança, para
que juntos possamos fazer uma nova educação em nosso País, a educação da
nova sociedade que já começamos a construir.

99
1.° Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária. Homenagem aos educadores
Paulo Freire e Che Guevara. Brasília, 28 a 31 de julho de 1997.
187

4.2.1.1. O Instituto de Educação Josué de Castro e os cursos de formação de professores


do MST

Apresentamos elementos fundamentais que facilitam a compreensão da estrutura


e dos princípios organizativos da proposta de formação de professores do MST,
referendados no Projeto Pedagógico do Instituto de Educação Josué de Castro e nos
depoimentos dos educadores do Movimento, que, conseqüentemente, mantêm coerência
com os Princípios da Educação do MST. Dentro desse Instituto, como indicamos
anteriormente, acontecem o Curso Normal de Nível Médio e o Curso de Pedagogia em
parceria com a UERGS. As propostas curriculares desse dois cursos serão apresentadas
a seguir, já que a nosso objeto de investigação trata do projeto de formação de
professores militantes do MST.

Nesse sentido, inauguramos nossa apresentação com a Proposta Curricular do


Curso Normal de Nível Médio. O material utilizado constitui-se do Plano de Estudos
(2003) do curso, que trata do Projeto Pedagógico do Curso, a nós oferecido pela
professora Roseli Caldart e pela própria diretora da Escola de Veranópolis, com a
interlocução de parte significativa do livro Educação em Movimento: formação de
educadores e educadores do MST, de autoria de Caldart (1997), que sistematizou as
reflexões sobre essa experiência, realizando uma síntese da proposta do Curso 100.
Lançaremos mão, ainda, de algumas reflexões presentes nos depoimentos dos
educadores do Movimento.

O Curso Normal de Nível Médio

O Curso de Magistério, pois, surgiu num momento fundamental


da história da educação do MST, onde se começava a tentar
formular e registrar uma proposta pedagógica para as escolas
de assentamento. Não foi pensado para “repassar” uma
determinada pedagogia aos participantes, porque de verdade
ela não existia. É provável que esta tenha sido uma razão
histórica importante para o tipo de metodologia de formação
que foi construída através dele, e que hoje, já com um maior

100
Segundo Caldart, a elaboração dessa síntese teve por base o documento “Proposta Pedagógica do
Curso de Magistério” de dezembro de 1996. (1997:109), que parece representar uma das primeiras
sistematizações dessa experiência. Dessa forma, o documento intitulado Plano de Estudos (2003) já
incorpora os ajustes e adequações curriculares realizados ao longo da trajetória desse curso.
188

acúmulo de formulações pedagógicas, acabam se tornando


princípio (Caldart: 1997:65).

No estudo da proposta do Curso Normal de Nível Médio, destacaremos aqueles


aspectos julgados mais relevantes para a nossa pesquisa, como, por exemplo, a
justificativa e os objetivos; o perfil do profissional a ser formado; além de parte da
organização curricular, incluindo a metodologia e os princípios teóricos presentes na
proposta.

Justifica-se a elaboração da proposta a partir de cinco aspectos que se relacionam


com a própria história da formação de professores dos assentamentos e acampamentos
do MST, a saber:

- a experiência da equipe do Instituto Josué da Castro em relação à habilitação


de professores leigos;

- a experiência pedagógica do ITERRA aprovada pelo Conselho de Estadual de


Educação – CEED através do Parecer 215/98;

- a disponibilidade do IEJC em oferecer o espaço para a prática e a reflexão


sobre formação de educadores como profissionais com efetiva consciência de
cidadania, independência e capacidade crítica. (MST/IEJC, 2001:03);

- a necessidade social do curso em vista da demanda crescente de formação de


professores para área de assentamentos; e
- a importância de uma formação especifica para educadores que atuam no
campo e que não têm habilitação.

A respeito do processo de criação e legalização do Curso de Magistério e da


própria luta pela legalização da escola, em seu depoimento, Caldart afirma que,
especificamente falando da área de formação de educadores leigos, o trabalho do MST
começou no Rio Grande do Sul, porque foi, segundo ela, nesse Estado que se iniciou o
trabalho do Setor de Educação, tendo, historicamente, mais condições de organizar as
estratégias para escolarizar os Sem Terra.

Caldart nos informa ainda que as propostas de formação de professores leigos do


MST tiveram início no Rio Grande do Sul, com a implementação do Instituto de
Educação Josué de Castro, no ITERRA, em razão de toda uma experiência acumulada
189

em relação à formulação e implementação dessas propostas, já que a política do RS


possibilitava espaços para titular/formar esses professores e não substituí-los por outros
que tivessem a formação, diferentemente do que acontecia na maioria dos estados.
Nesse sentido, a experiência pioneira desse Instituto constitui-se numa referência
importante para outros estados.
Aos poucos a proposta do Rio Grande do Sul, do Instituto de Veranópolis foi
sendo disseminada em vários estados, mas ele permanece como uma
referência pois tem legalizado de forma permanente uma Escola de
Educação Média Profissional e o Curso Normal de Nível Médio,
diferentemente de outros estados que a gente faz parceria emergenciais com
as Secretaria de Educação, por exemplo (Roseli Caldart).

A professora Roseli Caldart descreve, ainda, o percurso traçado pelo Movimento


para organizar e legalizar o curso de formação de professores, que teve como primeira
experiência o Curso Normal do Nível Médio, reafirmando que a preocupação do
Movimento era de formar professores leigos, que já atuavam nas escolas dos
assentamentos e acampamentos, com um referencial político-ídeológico que subsidiasse
a formação desse professor, militante da luta pela conquista da terra.

Mais adiante, a professora destaca a história da própria formulação do Curso


Normal de Nível Médio, que começou fora da estrutura do ITERRA e aos poucos foi se
consolidando como uma proposta de curso permanente e legalizada de formação de
professores do MST, superando a natureza de curso emergencial e temporário. Em suas
palavras:
[...]O curso é especificamente voltado para a realidade do campo,
justamente para dar o recorte do campo, enfatizando o que significa dar
aulas nas escolas dos assentamentos[...] No começo o magistério era quase
exclusivamente voltado para formar professores, em escolas residenciais e
nas áreas de assentamento e acampamentos. Apareceram as outras frentes
que a gente chama as outras áreas de atuação,tais como da Igreja e
associações. Aos poucos, houve todo um ajuste no projeto pedagógico porque
a idéia não é apenas formar os professores de escola, mas é formar os
trabalhadores da educação no Movimento (Roseli Caldart).

Nessa perspectiva de formar os trabalhadores da educação do Movimento, temos


os objetivos da proposta, que tomam como eixo a necessidade de fornecer uma
formação e uma titulação específica para a atuação nas escolas de assentamentos de
Reforma Agrária. Pretendem, assim, formar professores para os quatro anos iniciais do
ensino fundamental, incluindo uma especialização em Educação de Jovens e Adultos –
190

EJA ou na Educação Infantil. Articulada a essa finalidade de natureza mais ampla, o


documento esboça ainda os seguintes objetivos:

- qualificar o trabalho pedagógico desenvolvido por educadores em exercício nas


escolas de ensino fundamental, nas atividades de educação infantil e de EJA nas
áreas de assentamentos e acampamentos de reforma agrária;

- construir de forma coletiva um método de formação de educadores que


referencie uma prática de um projeto humanista de desenvolvimento e de
educação, e que contribua no processo de formação de cidadãos críticos e
criativos; e

- valorizar e qualificar o trabalho de educação do meio rural, em sintonia com


movimentos, sujeitos e práticas sociais que vêm construindo um novo modelo de
desenvolvimento para o campo dentro da perspectiva de uma educação básica do
campo (idem).

O que se nos apresenta como fator relevante para a nossa investigação


específica, é o fato de que, ao tratar do perfil do profissional que se quer formar, a
proposta diz considerar as orientações da legislação educacional sobre formação de
professores, incluindo as diretrizes curriculares desta formação, a própria experiência
com formação de professores desenvolvida pelo IEJC e a realidade específica da
clientela a quem se destina.

A proposta, diz, explicitamente, fundamentar-se nas “reflexões e o modo de


formulação que aparecem no Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para
o século XXI para a Unesco, editadas pelo MEC em 1998, e que apontam como pilares
fundamentais da educação para o próximo século, o aprender a conhecer, o a aprender
a fazer, o aprender a viver como os outros e o aprender a ser" (idem, p. 4).

Sustentada nesses pilares, a proposta baliza a sua estruturação e o perfil do


profissional a ser formado, ressaltando as "competências que este Curso Normal de
Nível Médio pretende desenvolver, e que também apontam para o perfil profissional
esperado ao seu final..."(idem):

- dimensão do CONHECER, compreendida como o domínio téorico e prático


responsável pelos seguintes campos temáticos: teorias pedagógicas; teorias de
191

interpretação da história e da realidade brasileira; legislação educacional e as


reflexões e experiências que vêm sendo feitas no âmbito dos movimentos sociais
do campo;

- dimensão do SABER FAZER, entendida como o domínio das habilidades


técnico-pedagógicas, que envolve as áreas da didática e pedagogia; organização
e gestão; cultura , comunicação e pesquisa;

- dimensão do CONVIVER, responsável pela capacitação para a realização de


projetos coletivos, capacitação para o trabalho cooperativo e capacitação
organizativa;

- dimensão do SER, tomada como a que trataria especificamente da necessidade


de "ajudar e desenvolver e a cultivar valores, convicções, sentimentos, hábitos e
princípios, traduzidos em uma postura diante do trabalho da vida, da sociedade,
das pessoas, centrados no ser humano e no ser humano educador" (idem, p. 5).

O curso tem uma carga horária de 3.400 horas estruturando-se em três eixos
interligados: o primeiro intitula-se Formação Geral - Base Nacional Comum: que
trabalha com as disciplinas de fundamentação das diversas ciências como: Língua
Portuguesa e Literatura; Noções de Informática; Matemática; Biologia; Química; Física;
História; Geografia; Economia Política; Filosofia; Sociologia; Psicologia; Cultura
Brasileira; Educação Física; e Educação Artística.

O segundo eixo é o da Formação Geral - Parte Diversificada, que trabalha


disciplinas que visam dar conta dos complexos temas da sociedade contemporânea e da
especificidade da educação do campo. É válido salientar, que entre o conjunto das
disciplinas apresentadas nesse eixo não se encontra nenhuma referência à problemática
atual do trabalho e da organização sindical.101Encontramos nesse eixo o elenco das
seguintes disciplinas: Ética e Relações Humanas; Língua Estrangeira; Metodologia da
Pesquisa; Educação Ambiental; Educação Religiosa; Estratégias de Desenvolvimento do
Campo; Educação Básica do Campo; e Educação de Portadores de Necessidades
Educativas Especiais;

101
É justo notar que existe uma referência a essa problemática específica numa disciplina do terceiro eixo
curricular, intitulada Estrutura e Funcionamento da Educação Básica do Brasil, de 112 horas-aula, em que
se tem como um dos conteúdos estudar “a situação dos trabalhadores de EB: formação, carreira, salários,
organização sindical” (idem, p. 15).
192

O terceiro eixo é o da Formação Pedagógica - Teoria e Prática, que trata das


disciplinas que giram em torno do processo educativo em geral, tais como:
Fundamentos da Educação; Didáticas; Estrutura e Funcionamento da Educação Básica
no Brasil; Educação Infantil: Fundamentos; Educação Infantil: Didáticas; e Estágio
Profissional.

É válido observar que essa organização curricular em 3.400 horas é destinada a


formar professores para atuar nas séries iniciais do ensino fundamental e na educação
Infantil. Consta ainda, nessa proposta, um componente curricular de 1.600 horas,
destinado a formar professores que já tenham concluído o ensino médio regular.
Constitui-se numa formação complementar com ênfase na formação de professores para
atuar nos quatro anos iniciais do ensino fundamental. Apesar da carga horária menor,
essa modalidade obedece à mesma organização curricular em termo dos eixos, mas com
uma conseqüente redução na carga horária de cada disciplina.

A metodologia do Curso segue a formatação de Tempo Escola e Tempo


Comunidade, o que demonstra a coerência com o Projeto Político Pedagógico do
Instituto de Educação Josué de Castro, apresentado anteriormente.

É válido registrar que, no documento Plano de Estudos (2003), não encontramos


nenhuma referência à opção metodológica definida como OFOC-Oficina
Organizacional da Capacitação. Já no livro de Caldart, na síntese que faz da proposta,
encontramos a definição da OFOC como um conjunto de estratégias pedagógicas
baseadas na lógica da capacitação, que foi construída inicialmente como método de
formação do Curso Técnico em Administração de Cooperativas – TAC, sendo
incorporada também ao Curso de Magistério. Esse método de ensino apresenta, como
principal objetivo, introduzir no grupo o princípio da consciência organizativa. Nesse
sentido, a OFOC constrói um formato metodológico para o curso, provocando a
necessidade de diferentes aprendizados significativos vinculados à organização e
participação coletiva no processo formativo, independentemente de seu foco102.

De acordo com Caldart, essa combinação entre um Tempo Escola e um Tempo


Comunidade foi uma opção metodológica assumida desde a primeira turma, que
segundo a autora, teve como referência a chamada “pedagogia da alternância”, que tenta

102
Para maiores detalhes sobre a OFOC, ver especialmente: CALDART, Roseli Salete. Educação em
Movimento: formação de educadoras e educadores do MST. Petrópolis: RJ: Vozes, 1997.p. 114-122.
193

desenvolver uma educação voltada às necessidades do trabalho dos jovens no meio


rural. Assim, esse forma de organização atenderia,
[...]As exigências específicas desse processo formativo, tais como: não tira
as/os educadoras/es do seu trabalho nos assentamentos e acampamentos,
apenas implica em ajustes para viabilizar a presença no curso durante três
meses ou um pouco mais durante cada ano; vincula mais diretamente o
currículo do curso com as demandas concretas de formação dos/as
participantes, à medida que implica num ir e vir constante entre diferentes
práticas e estudos teóricos; faz das próprias práticas pedagógicas nas
comunidades parte integrante do currículo e da formação das/os
educadoras/es no curso; permite um processo acelerado de ajustes ou
transformações na Proposta Pedagógica do curso, em função de sua
permanente avaliação pelo conjunto das pessoas envolvidas, direta ou
indiretamente, com os seus resultados (1997:1000).

Conforme registra Caldart, o Tempo Escola é estruturado em três grandes eixos:

- tempos ligados ao desenvolvimento das disciplinas componentes da base


curricular oficial do curso;

- tempos ligados à gestão do curso pelas/os estudantes e à construção de


habilidades específicas103, tais como: o trabalho nos setores e nas comissões
criadas pelo coletivo de estudantes para gerir o Curso, com duração de acordo
com as demandas e necessidades da escola, o envolvimento nas oficinas de
capacitação nas diversas áreas de formação necessárias para a gestão do curso e
para o conjunto das dimensões de formação pretendida; a participação em
reuniões e assembléias das instâncias coletivas criadas, em vista da gestão e do
exercício da participação democrática;
- tempos ligados à formação cultural extraclasse, com espaços para o cultivo da
mística do MST, lazer coletivo e pessoal, noites culturais, passeios diversos e
oficinas de artes, dentre outras atividades (idem, p. 102-103).

103
Em nossa observação feita no Instituto de Educação Josué de Castro, em Veranópolis, verificamos a
execução dessas atividades, quando visitamos as oficinas de artesanato; de recuperação de móveis; da
fábrica de doces e geléias; e a oficina de produção de pães e doces. Observamos, ademais, que parte dos
educandos de todos os cursos oferecidos no ITERRA participam, em forma de rodízio, da Ciranda
Infantil, uma sistemática que permite aos pais-cursistas desenvolverem seu Tempo Escola, já que seus
filhos ficam sob a vigília atenta e cuidadosa desses educadores-cursistas. Encontramos, ainda, esses
educadores que, assim como os que participam da Ciranda Infantil, cumprem seu Tempo Comunidade no
próprio ITERRA, mediante o envolvimento com essas oficinas, ou mesmo com o acompanhamento
pedagógico às diversas turmas do Instituto. Como exemplo concreto desse fato, podemos apontar o caso
dos dois entrevistados Madalena e Pedro, que, ao mesmo tempo em que fazem o Curso de Pedagogia da
Terra, são responsáveis pelo acompanhamento pedagógico de alguma turma do IE JC.
194

O Tempo Comunidade possui cinco eixos que têm como objetivo proporcionar a
interdisciplinaridade, combinando estudo com ações de intervenção social nas
comunidades. Alguns desses eixos têm uma carga horária definida na Proposta
Pedagógica do Curso, e outros, têm duração determinada pelos participantes, num
processo de auto-gestão, sendo alvo de ajustes de acordo com as necessidades de cada
comunidade e da própria escola. São eles,

- tempo de prosseguir com o que já vinha realizando, partindo da realidade do


educando que passa a fazer reflexões e registros sobre sua prática;

- tempo de realizar práticas pedagógicas diferenciadas das tradicionais. Momento


para vivenciar os desafios organizativos e metodológicos de cada uma das frentes
atuais do trabalho educativo do MST, seja nas séries iniciais do ensino fundamental,
na educação infantil ou mesmo da Educação de Jovens e Adultos – EJA (formal e
não formal);

- tempo de iniciar as atividades de pesquisa, que culminarão na elaboração de um


trabalho de Pesquisa-Ação (TPA) a ser redigido em forma de ensaio monográfico,
que é realizado a partir da 4ª etapa;

- tempo de desenvolver outras tarefas de inserção comunitária, delegadas pelo Setor


de Educação ou pelo conjunto do Movimento. O objetivo é aprofundar o
conhecimento da realidade mais ampla e cultivar a ética do engajamento, do
compromisso e da solidariedade;

- tempo de contribuir com a continuidade da organização coletiva definidas nas


instâncias antes do término do Tempo Escola (CALDART, op. cit. 1997:p.103)

A avaliação é compreendida como importante estratégia metodológica, já que


precisa ser um instrumento impulsionador do processo organizativo. Nesse sentido,
apresenta algumas características básicas:
[...] Ter um caráter permanente e sistemático; ter critérios definidos
coletivamente; envolver o conjunto dos tempos (sem no entanto misturá-los)
e ser feita também de modo cooperativo e democrático; considerar tanto o
desempenho coletivo como o pessoal, estimulando a responsabilidade mútua:
cada pessoa é responsável pelo avanço do coletivo/da empresa, e o coletivo é
responsável pelo avanço de cada pessoa; assumir na forma a complexidade da
rede de relações que compõem o processo formativo em curso (idem, p.123-
124).
195

No que diz respeito à integralização curricular desse curso, uma análise


pormenorizada de cada disciplina não é nosso objetivo. Pretendemos sim, a partir do
conjunto da proposta, verificar a questão por nós apresentada que trata da aproximação
ou distanciamento dessa proposta com os chamados novos paradigmas no campo da
formação docente. Apesar de não termos nesse documento (Plano de estudos) uma clara
definição das principais referências teóricas, compreendemos que a proposta guarda
aproximações dignas de notas com as idéias de Leonardo Boff e Paulo Freire 104, com
leves e tímidas pinceladas de Marx e Gramsci. Essa influência é clara quando temos nas
disciplinas de Educação Ambiental uma alusão à ecopedagogia e ao desenvolvimento
sustentável; e, na disciplina Educação Religiosa, a defesa de um ecumenismo e de uma
consciência social religiosa, tema fortemente defendido por Boff.

Já em relação à influência de Paulo Freire, encontramos, no decurso de toda a


proposta, uma aproximação com seu pensamento, quando o documento assinala a
necessidade de se construir uma proposta de formação de professores alternativa, que
considere a realidade específica do campo, num processo que toma com central a
perspectiva da relação dialógica e do respeito ao desenvolvimento de cada educando,
além da ênfase na área da educação popular e EJA.

Percebemos elementos nessa proposta que merecem um destaque especial em


termos de apontarem alguns avanços importantes, em relação à maioria das propostas de
formação de professores, incluindo as propostas curriculares dos cursos de Pedagogia.
Um primeiro aspecto recai sobre a própria organização curricular com uma carga
horária de 3.400 horas para a clientela que não cursou o Ensino Médio e 1.600 horas
para quem concluiu o Ensino Médio, mantendo-se, nas duas modalidades, um estágio
profissional de 400 horas. Essa proposta de estágio é desenvolvida durante o Tempo
Comunidade, mas sob a orientação e acompanhamento dos docentes responsáveis pela
área da Didática. Diz respeito às práticas pedagógicas desenvolvidas pelos educandos na
comunidade, visando a sua qualificação como educador. Sua carga horária é distribuída
em duas etapas, com 200 horas cada uma, sendo 100 horas destinadas à área de
Educação de Jovens e Adultos ou Educação Infantil.

A exemplo do que acontece nos cursos universitários convencionais, exige-se


ainda a elaboração de uma monografia no final do curso. Essa monografia é a meta da
104
É oportuno lembrar que, na análise de outros documentos, já anunciamos essas influências teóricas
presentes na proposta de educação do MST, especialmente, quando examinamos Os Princípios da
Educação do MST.
196

disciplina Metodologia da Pesquisa, de 72 horas-aula, ofertada a partir da segunda etapa


do curso e que perpassa o Tempo Comunidade e o Tempo Escola. O tema da monografia
deverá ser de interesse social para a qualificação profissional das práticas pedagógicas
relacionadas ao Curso e aos seus sujeitos. Assim, a proposta se contrapõe ao
aligeiramento da formação e reafirma a pesquisa como componente curricular no
processo de trabalho docente.

Um segundo aspecto refere-se à organização curricular estruturada ainda em três


eixos como Formação Geral - Base Nacional Comum; Formação Geral - Parte
Diversifica e Formação Pedagógica - Teoria e Prática, que enriquece a proposta,
oferecendo uma processo formativo articulado, teórica e metodologicamente,
trabalhando com as diversas áreas do conhecimento humano.

Outro aspecto digno de nota é que, apesar de a proposta se fundamentar nos


quatro pilares da Educação da Unesco, reforçando os saberes docentes como
competências necessárias a serem trabalhadas ao longo do curso, indica a intenção de
enfocar temas que se vinculam à perspectiva classista de sociedade. Isto é observado
quando, na disciplina de História, encontramos o enfoque no estudo e na interpretação
da história da luta pela terra e dos movimentos sociais camponeses, especialmente na
América Latina e no Brasil, bem como a história das revoluções socialistas e a análise
da situação atual de correlação de forças entre capitalismo e socialismo no mundo.
O fato de se colocar a Economia Política como disciplina nesse Plano de Estudo
é outro aspecto relevante, pois apresenta como meta principal o "domínio de
ferramentas conceituais importantes à compreensão da realidade social, especialmente
de suas questões macro-econômicas. Fazendo relação como os estudos realizados em
História” (idem, p. 09). Nesse sentido, elenca como um dos conteúdos específicos dessa
disciplina:
- História do pensamento econômico e dos processos de desenvolvimento. Ênfase
no estudo da escola clássica e da escola marxista;
- classes sociais e luta de classes na história;
- modo de produção capitalista: teoria do valor, teoria da mais valia, acumulação
do capital;
- imperialismo e globalização.
197

Esses conteúdos são trabalhados quase que exclusivamente nessa disciplina numa
fração de 104 horas/aula se tomarmos como referência o curso que tem 3.400 horas e
48 horas-aula do total carga horária de 1.600 horas distribuídas no curso específico para
complementação da formação destinado aos militantes que já concluíram o ensino
médio regular.

Com efeito, o conteúdo que marca a presença mais expressiva em toda a


integralização curricular diz respeito à ênfase na formação pedagógica, na cultura de
valores; na postura cultural; na educação ambiental com enfoque prioritário para a
produção agrícola auto-sustentável; numa educação voltada para a defesa e a
preservação da vida humana e de seu ambiente; na própria religiosidade popular; no
resgate da história da luta do movimento camponês e nas reflexões sobre a educação
que vêm sendo produzidas pelos sujeitos sociais do campo no Brasil.

O Curso Pedagogia da Terra105

Nessa mesma perspectiva, encontramos também o Projeto Político-Pedagógico


do Curso de Pedagogia para Formação de Professores em Anos Iniciais e Educação de
Jovens e Adultos106 da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul-UERGS em
parceria com o MST através do ITERRA e do IEJC.

Nessa proposta, não encontramos uma formulação específica sobre a formação


de professores do MST. Toda a estrutura curricular do curso segue o modelo dos cursos
de pedagogia universitários regulares. Segundo nossos entrevistados, a adequação da
proposta ao contexto de formação de professores para escolas de assentamento e
acampamentos de reforma agrária é processada no dia-a-dia da sala de aula.

105
Em relação à própria nomenclatura dada aos cursos de pedagogia do MST, Caldart observa, [...]De
nome-apelido, a expressão Pedagogia da Terra vai aos poucos identificando a presença de determinados
sujeitos na Universidade, bem como um jeito talvez novo de fazer e de pensar a formação das
educadoras e dos educadores do campo[...]O batismo foi uma espécie de intuição política e pedagógica
da turma sobre uma diferenciação que precisava ser destacada e uma raiz que não deveria ser
abandonada, especialmente diante da insistência com que a Universidade passava a chamá-los de
“acadêmicos” (2002:77 e 83).
106
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS, Pedagogia para Formação de Professores
em Anos Iniciais e Educação de Jovens e Adultos. Rio Grande do Sul, 2002. A respeito da
nomenclatura desse curso, é válido registrar que os educadores do MST utilizam a sigla PEF na
designação oficial do curso na Universidade.
198

Assim sendo, efetuaremos a análise desse Curso através dos depoimentos dos
educadores do Movimento e do relato de educandos presentes no documento
Pedagogia da Terra107 que integra a coleção Cadernos do ITERRA publicado em
dezembro de 2002, o qual tem como objetivo registrar, socializar e refletir sobre as
experiências do Movimento com os Cursos de Pedagogia dentre eles o da UERGS
intitulado Pedagogia da Terra da Via Campesina - Turma José Martí em
Veranópolis108, de autoria das educandas Marilene Hammel e Matilde de Oliveira de
Araújo Lima. Complementaremos esse exame com um artigo de Caldart presente nesse
mesmo documento intitulado Pedagogia da Terra: formação de identidade e
identidade de formação109, em que a autora procura contribuir no processo de registro
e reflexão das práticas de formação de educadores do MST, concorrendo, segundo ela
própria, para contextualizar a trajetória do MST no desenvolvimento dos seus cursos.

Nesse relato de experiências, as autoras resgatam a história do curso,


apresentando de forma rica a adequação que é processada no cotidiano do curso e que
não aparece no documento formal (projeto político-pedagógico) do referido curso.
Temos assim nesse texto o registro dessa experiência que, segundo as autoras, “é fruto
das experiências anteriores de convênio dos movimentos sociais com as universidades,
especialmente a partir de 1998, que também seria fruto da mobilização popular e do
governo democrático e popular do Rio Grande do Sul, que tornaram possível a criação
da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS”.(ITERRA, 2002:59).

É válido observar que, apesar de não se ter, no documento formal do curso,


referências claras ao MST e à Via Campesina, as adequações da proposta geral da
UERGS são realizadas no Projeto Metodológico de cada etapa do curso – PROMET, o
qual, por sua vez, é elaborado a partir do projeto do curso e do projeto pedagógico do
Instituto de Educação Josué de Castro – IEJC. Representa um desafio, para a equipe de
coordenação e acompanhamento, a elaboração do Projeto Pedagógico do Curso,
articulando-se a referência da UERGS enquanto instituição universitária às
experiências do próprio ITERRA e demais organizações envolvidas no curso, como,

107
ITERRA. Pedagogia da Terra. Cadernos do ITERRA. Ano II, nº 6, Veranópolis – RS, 2002.
108
Vale registrar que o nome oficial do curso presente no seu Projeto Político-Pedagógico é Pedagogia
Anos Iniciais do Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos. A denominação Pedagogia da
Terra da Via Campesina - Turma José Martí em Veranópolis, é utilizada internamente pelo ITERRA/MST
dentro do Instituto de Educação Josué de Castro - IEJC.
109
In: MST/ITERRA: Pedagogia da Terra. Cadernos do ITERRA. Ano II - n. 6 - Veranópolis - RS: 2002
199

por exemplo, o MST e a Via Campesina. Esse processo de ajuste curricular às


particularidades dos movimentos pode ser representado no relato de Caldart:

[...] Como a própria Universidade estava discutindo o projeto pedagógico e a


base curricular de seus cursos, aqui foi possível participar da discussão de
formatação geral do currículo, o que não excluiu a necessidade posterior de
adequações das ementas aos objetivos e às características peculiares da turma,
tarefa facilitada pelo fato do ITERRA ter participação direta na coordenação
do curso (2002:82).

Antes de expormos a proposta do curso, é oportuno apresentar o depoimento de


Maria de Jesus, em que encontramos o registro da gênese histórica dos cursos de
Pedagogia da Terra que foram construídos coletivamente a partir da demanda do
Movimento de formar seus educadores militantes. Essa experiência, segundo a
entrevistada, serviu de referência para as outras experiências sistematizadas pelo
Movimento em todo o Brasil, como, por exemplo, o Curso Pedagogia da Terra: Turma
Via Campesina. A entrevistada destaca a primeira turma de Ijuí, ressaltando o
significado dessa experiência para os educadores do MST.

Nossa experiência com o curso de Pedagogia começou em Ijuí. Atualmente


nós temos seis cursos de pedagogia funcionando e temos três turmas de
magistério a nível médio. E nós temos também assim, várias turmas de
magistério que já concluíram. Então esse processo da formação está em
movimento. A meta é que a gente possa estar abrindo novos cursos, inclusive
na Universidade Federal do Ceará110 que está em processo. Para nós é
fundamental termos pessoas formadas com essa vivência, com esse
compromisso, com essa identidade, com essa responsabilidade de trabalhar
nos assentamentos e acampamentos ajudando a qualificar a experiência dos
MST (Maria de Jesus).

Maria de Jesus informa que esses cursos de Pedagogia surgiram da necessidade


do MST em formar seu quadro de professores para atuarem nas escolas das áreas dos
assentamentos. Destaca nesse processo de conquista do acesso à universidade o papel
do trabalho coletivo.

O curso é uma etapa no processo de formação. Ele tem um significado


especial para nós porque com certeza se nós não tivéssemos essa
oportunidade de fazer um curso desses a gente ia ser muito mais sacrificado
e até seria difícil chegarmos a estudar numa universidade./../. Então esses
cursos surgiram como uma demanda porque nós começamos a assumir com
110
É válido informar que o Curso de Pedagogia da Terra, em parceria com a Universidade Federal do
Ceará – UFC, conta com o financiamento do PRONERA-INCRA e já foi aprovado pelo Conselho
Departamental da Faculdade de Educação e pela Pró-Reitoria de Graduação da UFC. No momento, o
processo de criação do Curso está sendo encaminhado ao Conselho Nacional de Educação com previsão
de início para janeiro de 2005.
200

as universidades vários convênios e porque a maioria de nossa militância


não tinha um curso superior e quem queria ter um curso superior fazia esse
curso durante quatro anos e depois volta para dentro do MST. A gente viu
que a saída não era individual, a saída era coletiva. Por isso é que o MST
passou quatro anos pra conseguir o primeiro curso, cobrando de diversas
universidades[...] (Maria de Jesus).

O processo de criação da turma Pedagogia da Terra, de Veranópolis – RS, teve


alguns momentos importantes destacados no documento que relata essa experiência:

- o convite ao MST, no primeiro semestre de 2001 para participar da discussão


sobre a criação da Universidade Estadual, proposta essa que fazia parte do
programa de governo de Olívio Dutra;

- nessa ocasião, o ITERRA enviou à comissão de implantação da UERGS um


ofício solicitando uma turma de Pedagogia para educadores do campo;

- o ITERRA, o MST e outros movimentos sociais do campo foram chamados a


contribuir na formulação do projeto do curso de pedagogia, de desenvolvimento
rural e gestão agroindustrial da nova universidade;

- dessas reflexões, surgiu a idéia de que o curso de Pedagogia solicitado pelo


ITERRA atendesse o conjunto dos educandos dos movimentos da Via
Campesina111. A partir dessa articulação, conquistou-se a parceria com a
UERGS;

- após esse momento de consolidação da parceria, surgiu a discussão sobre o


local de realização do curso. Em virtude da estrutura física do ITERRA, definiu-
se a realização nesse espaço junto ao Instituto de Educação Josué de Castro –
IEJC. A coordenação do curso é partilhada entre o ITERRA e a área de
Educação da UERGS (ITERRA, op. cit. 2002:60).

Esse curso teve inicialmente uma fase preparatória em março de 2002. O


objetivo dessa primeira etapa foi a preparação técnica e política dos educandos. Assim,
em 28 de março de 2002, foi assinado o convênio entre o ITERRA e a UERGS. O

111
A Via Campesina do Rio Grande do Sul reúne o Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, o
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –
MST, o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais – MMTR, a Pastoral da Juventude Rural – PJR, e
o Movimento dos Trabalhadores Desempregados - MTD.
201

parecer de credenciamento da UERGS foi aprovado pelo Conselho Estadual de


Educação, em 09 de outubro do mesmo ano.

No documento original do curso, o Projeto Político-Pedagógico, encontramos


como missão "contribuir com o desenvolvimento local e regional do Estado formando
professores para os anos iniciais e a educação de jovens e adultos, por meio da reflexão
crítica e criativa sobre as relações entre ser humano, sociedade, ciência, trabalho,
cultura, ambiente, educação e desenvolvimento, numa perspectiva de inclusão social,
visão sócio-histórica e da pesquisa como trabalho inerente à atividade da
docência”(UERGS, 2002:02).

Diante dessa missão objetiva-se:

- afirmar a educação enquanto um direito humano;

- democratizar o acesso à informação, ao saber especializado e à cultura


acadêmica, permitindo a compreensão dos processos socioculturais em curso;

- desenvolver qualificações que possibilitem fazer uso e inovar nas tecnologias


relacionadas à educação, numa perspectiva emancipatória e de estreitamento das
relações entre educação e desenvolvimento sócio-cultural regional e global;

- formar um professor em suas dimensões política, epistemológica e estética,


apto a desenvolver estratégias educativas democratizadoras do acesso, do
conhecimento e da gestão educacional. (idem).

Percebemos que os objetivos propostos pelo curso parecem não se diferenciar


das tendências atuais presentes nas reformulações curriculares dos cursos de Pedagogia
em geral. Esse fato pode ser observado quando, como vimos na própria justificativa do
curso, encontramos o registro de que essa proposta está em "consonância com as
orientações básicas para a sistematização das diretrizes curriculares dos cursos de
Graduação, proposta pelo Ministério de Educação e dos Desportos publicadas, por
intermédio da Secretaria de Educação Superior (SESu), em 10 de dezembro de 1997...
(Idem, p. 03)". Como sabemos, atualmente, todo o campo de formação de professores,
incluindo as equipes de especialistas que pensam as diretrizes desses cursos, vêm se
pautando nitidamente pelos novos paradigmas da educação, não ficando um curso
dessa natureza liberto de tais tendências. Existe assim uma ênfase na formação do
202

professor-pesquisador, que com uma gama considerável de conhecimento, pode


contribuir para a democratização da sociedade e do conhecimento.

Mantendo-se, de certa maneira, vinculado ao projeto de formação de professores


de cunho nacional, a organização do ensino desse curso se baseia nos seguintes
referenciais teórico-metodológicos:

a) A formação integral ou ominilateral. [...] na perspectiva emancipatória e de


transformação social, formação omnilateral requer a articulação de saberes
provenientes do conhecimento científico e da formação humana, do conhecimento
técnico e da apropriação das tecnologias e da experiência de trabalho e social. b) A
indissociabilidade do ensino, da pesquisa e do desenvolvimento[...]Este conceito
pedagógico afirma a necessidade de indissociabilidadade entre os três aspectos
como eixo científico da formação humana do educando e como condição para a sua
atuação profissional comprometida com a intervenção ética e solidária e capaz de
aferir, organizar e projetar a demanda por conhecimento e tecnologia, com o
objetivo de atender as estratégias de desenvolvimento compartilhadas pela maioria
da população. c) [...] A relação teoria e prática, como princípio pedagógico e como
metodologia dos processos educativos possibilita a formação científica, pedagógica
e humana, aproximando a possibilidade de realização da formação integral. d) A
flexibilidade curricular, possibilitando, de um lado, a absorção das transformações
que ocorrem cada vez mais rápidas em nível do conhecimento e, de outro, a
absorção, por meio de estudos eletivos, da necessidade de conhecimentos
decorrentes da realidade local e regional.[...] (idem, p.4-5).

No relato das experiências da turma José Martí, as autoras registram que foi
definida, como linha de pesquisa, Movimentos Sociais e Educação do Campo,
estabelecendo, como recorte temático, os processos de formação/educação do campo,
apresentando com o objetivo de exercitar o olhar para os sujeitos dentro do contexto do
campo, a partir de duas questões gerais que orientam a elaboração dos projetos de
monografia do curso: como são e como se formam/se educam os sujeitos do campo, e
como são e como se formam/se educam os educadores dos sujeitos do campo?
(ITERRA, op. cit. 2002:62).

Quando trata da relação entre teoria e prática, menciona-se a questão da práxis


social, responsável pelo rompimento da dicotomia entre o pensar e o fazer, o sentir e o
conhecer, favorecendo a integração do pensamento e da ação no campo da formação
humana omnilateral, que também se constituindo importante referencial propalado na
proposta.

A flexibilidade curricular, nos termos dessa proposta, dá conta justamente da


estrutura dinâmica da própria escola do Movimento, que tem como princípio
203

metodológico o “Movimento que faz o Movimento”. Assim a flexibilidade pode dar


espaço para se trabalhar o Tempo Escola e o Tempo Comunidade.

Assim, o currículo desse curso está organizado no sentido de superar uma


"formação universitária onde os fundamentos, as metodologias, o saber instrumental e
as práticas não se complementam, constituindo-se em fragmentos do saber,
desarticulados não só entre si, mas entre estes e a realidade" (UERGS, op. cit. 2002:05).

O processo de ensino e aprendizagem segue o princípio de alternância e


flexibilidade, organizando-se as etapas do curso em Tempo Escola, que se constitui nas
atividades de estudo presenciais, e Tempo Comunidade apresentado como a etapa de
complementação de estudo e trabalho de campo dos educandos, que devem aproveitar
esse momento para desenvolver sua pesquisa, além de participarem das atividades de
militância e organização do MST, tal como exposto no Projeto Político-Pedagógico do
IEJC.

Essa formatação em Tempos Educativos é ressaltada por uma das entrevistadas,


ao assinalar que o objetivo desse curso é formar educadores para que sejam quadros da
educação do MST. Para tanto, essa metodologia flexível de tempos contribui para a
efetivação da relação entre teoria e prática, considerada um eixo curricular importante
dessa formação que garantiria que os educadores do Movimento tenham, além do
domínio do conhecimento científico, uma visão crítica e revolucionária da sociedade.

Esse é o sentido de curso de pedagogia, a formação política e


revolucionária112. Por esse sentido a gente vem se dedicado muito. Para
desenvolver essa formação o curso tem vários outros tempos educativos. Eles
fazem parte dessa nossa formação como a leitura e a reflexão escrita, aonde
a gente desenvolve os trabalhos práticos, os trabalhos intelectuais. Nesse
sentido, a gente vai organizando o curso pra que eles sejam tempo formação,
tempo comunidade. Através desses tempos relacionamos o que estudamos na
Universidade com as demandas dos assentamentos e acampamentos. Os
tempos educativos subsidiam essa nossa formação baseada na relação teoria
e prática que deve ser um eixo curricular importante.O que aprendemos
temos que socializar em outros momentos de formação da juventude e das
famílias em geral (Diana).

Nesse sentido, a proposta tem uma carga horária mínima de 2880 h/a,
distribuídas em quatro eixos curriculares/temáticos: sociedade e educação;
conhecimento e educação; educação anos iniciais do ensino fundamental e educação de
jovens e adultos; pesquisa em educação.
112
Grifo nosso
204

O primeiro eixo temático, Sociedade e Educação, apresenta o seguinte elenco


de disciplinas: História da Formação Social (60 h/a); História da Formação Social
Brasileira (30 h/a); História da Formação Social do RS (60 h/a); Sociologia da
Educação (60 h/a); Trabalho e Educação (30 h/a); Teoria da Cooperação (30 h/a);
Educação e Desenvolvimento (60 h/a); Organização e Políticas Públicas para a
Educação Básica (60 h/a); Projeto Político- Pedagógico (60 h/a).

O segundo eixo, Conhecimento e Educação, comporta as seguintes disciplinas:


História da Educação e da Pedagogia (60 h/a); História da Educação Brasileira (60 h/a);
Filosofia da Educação (60 h/a); Estudos Culturais (30 h/a); Educação e Multimeios (30
h/a); Teorias do Currículo (60 h/a); Estudo Eletivo (60 h/a); Processo de Avaliação,
Gestão e Coordenação de Processos Educativos (60 h/a);

O terceiro eixo, Educação nos Anos Iniciais e Educação de Jovens e Adultos


é composto pelas seguintes disciplinas: Estudos Histórico-Sócio-Psicoantropológico
sobre a Infância (60 h/a); Estudos Histórico-sócio-psicoantropológico sobre Jovens e
Adultos (60 h/a); Teoria do Conhecimento e da Aprendizagem (60 h/a); Concepções e
Métodos da Educação Popular (60 h/a); Leitura e Escrita nos Anos Iniciais e EJA:
Conteúdo e Método (60 h/a); Estudo Eletivo (60 h/a); Movimento, Arte e Educação
Psicomotora (60 h/a); Movimento Sociais e Educação (60 h/a); Educação Matemática:
Conteúdo e Método (60 h/a); Leitura e Escrita Anos Iniciais e EJA: Conteúdo e Método
(60 h/a); Política Pública para Jovens e Adultos (60 h/a); Ciência Naturais: Conteúdo e
Método (60 h/a); Estudo Eletivo (60 h/a); Estágio com Acompanhamento113 - Anos
Iniciais (210 h/a); Estágio e Acompanhamento - EJA (210 h/a)

O quarto eixo, Pesquisa e Educação, visa a possibilitar ao educando o exercício


da pesquisa em sua realidade de atuação, com a elaboração do trabalho final do curso. A
oferta de disciplinas refere-se ao Tempo Comunidade, com o acompanhamento de um
professor-orientador, comportando as seguintes disciplinas (tempos): Participação e
Integração na Realidade Local e Regional (60 h/a); Investigação da Realidade Local e
Regional (60 h/a); Investigação da Realidade Sócio-educativa ( 60 h/a); Investigação e
Prática em Processos Educativos: Anos Iniciais (60 h/a); Investigação e Prática em
Processos Educativos: EJA; Trabalho de Conclusão (120 h/a).

113
A política de Estágio Supervisionado inclui 400h/a de práticas que perpassam todos os componentes
curriculares, envolvendo diretamente o fazer docente, e 420 h/a que devem ser desenvolvidas ao final do
curso, das quais 210 h/a acontecerão nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e 210 h/a na Educação de
Jovens e Adultos.
205

É válido observar que algumas dessas disciplinas perpassam todos os eixos


temáticos e aparecem distribuídas ao longo do curso: Língua Portuguesa I (60 h/a);
Língua Portuguesa e Literatura (60 h/a); Língua Estrangeira (60h/a); Ética, Estética e
Relações Humanas (60h/a).

Toda a proposta de avaliação do curso deve considerar a concepção de avaliação


assumida pela UERGS, que é a chamada avaliação emancipatória, tendo como
componentes e diretrizes fundamentais do processo avaliativo, a análise do processo
proporcionado pela Universidade/curso/professor e a síntese pessoal do aluno (idem,
p.10).

Tomando como critério de análise o número de indicações de autores mais


conhecidos dentro do campo da educação e das ciências humanas e sociais em geral, o
conjunto dos ementários e da bibliografia básica dos componentes curriculares
(disciplinas), que perfez uma média de 48, nos levou à percepção de que as obras de
Paulo Freire são as mais presentes, somando 9 indicações, seguida por 6 indicações para
Dermeval Savianni, 4 para Karl Marx, Edgard Morin, Pierre Bourdieu, Octávio Ianni,
Moacir Gadotti e Carlos Brandão; 3 para Vygotsky, Mariano Enguita, Roseli Caldart,
Tomáz Tadeu Silva, 2 para Eric Hobsbawm, Florestan Fernandes, Antonio Gramsci,
Anton Makarenko, Ana Teberosky, Emília Ferreiro, Jean Piaget, Henri Wallon, César
Coll, Miguel Arroyo, José Carlos Libânio, Ricardo Antunes, Pablo Gentili e Danilo
Gandin. Com apenas 1 indicação temos autores como Gyorgy Lukács, Mário Alighiero
Manacorda, Jürgen Habermas, Antônio Nóvoa, Leonardo Boff, Ernest Mandel, José de
Souza Martins, Acácia Kuenzer, Viviane Forrester, Luís Carlos de Freitas e Jacques
Delors.

Em suma, na proposta curricular do Curso de Pedagogia, observamos que a


presença do marxismo nesse curso, se resume a uma média de quatro indicações. Se
somarmos as indicações de Marx, estas estão presentes em apenas três disciplinas assim
distribuídas: História da Formação Social e Trabalho Educação com uma indicação e
Sociologia da Educação com duas indicações. Nas outras 45 disciplinas não se observa
a referência desse autor, assim como de outros do campo do materialismo histórico-
dialético, que são fundamentais para o desvendamento do real numa articulação entre as
singularidades do campo da educação e formação do educador com a totalidade social.
206

O quadro apresentado acima, já põe em evidência a presença de pensadores do


campo dos novos paradigmas das ciências sociais e, especificamente, da educação, basta
ver que Morin, por exemplo, conta com o mesmo número de indicações que Marx e que
são superiores às de Gramsci e Lukács.

Esta influência é bem perceptível se observarmos a própria composição da


integralização curricular dividida em eixo temáticos. Tomando como referência o
primeiro eixo Sociedade e Educação, este conta com disciplinas de natureza mais
histórica e sociológica. Nesse eixo, as únicas disciplinas com 30 h/a aulas é Trabalho e
Educação e Teoria da Cooperação. É importante ressaltar que na distribuição dos
semestres essas duas disciplinas são ofertadas na 4ª etapa do curso, ao lado de
disciplinas dos demais eixos temáticos: Estudos Culturais (30 h/a); Educação e
Multimeios (30 h/a); Movimento, Arte e Educação Psicomotora (60 h/a); Movimentos
Sociais e Educação (60 h/a) e Investigação e Prática em processos Educativos nos Anos
Iniciais (60 h/a).

Se tomarmos o critério de análise a distribuição por eixos teremos ao longo de


todo o curso apenas a disciplina Trabalho e Educação de 30 h/a que apresenta como
ementa “Abordagem numa perspectiva sócio-histórica, das relações entre trabalho e
educação” (idem, p 29) e como bibliografia básica as referências de Ricardo Antunes
(1), Mariano Enguita (2), Gaudêncio Frigotto (1), Acácia Kuenzer (1) e Karl Marx (1).
Gyorgy Lukács aparece na bibliografia complementar.

Se tomarmos o critério da composição por semestre, essa disciplina é trabalhada


no conjunto de programas que trabalham a reflexão crítica sobre a construção do
conhecimento a partir da integração de multimeios na educação formal e não formal, a
abordagem e instrumentalização para o trabalho com as dimensões artísticas, corporais,
lúdicas e psicomotoras, e da reflexão crítica da dimensão cultural em diferentes
propostas pedagógicas, sensibilizando o docente em formação para a diversidade de
raça, etnia, gênero, sexualidade, relações intergeracionais e cultura no processo ensino-
aprendizagem, a abordagem teórica sobre o cooperativismo e a organização cooperativa
na dupla dimensão de sociedade de pessoas e de empresa, apresentando a cooperativa
como uma alternativa real de intervenção na sociedade.

A articulação desse eixo temático, para nós é suficiente para representar as


demais linhas. A perspectiva foi de apontar o lugar do conteúdo verdadeiramente crítico
207

dentro da integralização curricular numa proposta de formação de professores ligados a


um importante movimento social, que incansavelmente, vem se debatendo com as
forças dominantes de nossa sociedade. Assim, a perspectiva marxista, pode dar uma
contribuição significativa nesse processo de formação, no sentido de apresentar os
determinantes que levam à própria busca do MST em formar seus professores com uma
proposta curricular própria.

É válido salientar, que autores importantes para a compreensão do fenômeno


sócio-educativo são trabalhados no decorrer do curso, os quais não podemos inserir no
campo dos novos paradigmas da educação e, que, ao contrário destoam do quadro
colorido desses paradigmas, sob pena de cometermos uma grande injustiça aos
excelentes serviços prestados por Gramsci, Anton Makarenko, Mário Alighiero
Manacorda, Vygostsky, Eric Hobsbawm Dermeval Saviani, Paulo Freire, Guadêncio
Frigotto, Acácia Kuenzer, Florestan Fernandes e Luís Carlos de Freitas, dentre outros114.

Retomando, mais uma vez, a exposição da concepção de Caldart sobre os cursos


de formação de professores do MST, a autora assinala três grandes traços que devem
orientar a reflexão desses cursos: o primeiro traço é o da pedagogia da terra como
práxis.

Não se trata de pensar que um curso, por melhor que ele seja, é capaz de dar
conta de um desafio tão grandioso que é o de transformar as pessoas e sua
prática social, e mesmo que ele em si mesmo possa se materializar com
práxis. A questão aqui colocada é a da possibilidade de um curso também
fazer parte deste processo mais amplo de formação requerido pela dinâmica
atual do Movimento. Para que isto aconteça é preciso alterar a visão que
geralmente se tem da relação prática, teoria, prática. No próprio âmbito da
educação popular é comum a idéia de que o curso é, nesta relação, o
momento da teoria: os educandos vêm de uma prática; estudam no curso as
teorias e depois voltam à prática, em tese mais qualificados para transformá-
la. Por que isto não basta? Porque se é como sujeitos sociais que os
educandos são capazes de melhor significar o que estudam, o seu processo de
formação como sujeitos precisa perpassar o curso, e isto só é possível no
movimento permanente (e contraditório) entre teoria e prática (2002:93).

O segundo traço A pedagogia da terra como educação do campo, constitui-se na


defesa de que não se trata apenas de incluir no curso algumas questões da realidade do
campo no currículo do curso. Esse traço é maior do que isso: trata-se da possibilidade de
construção de um projeto de formação de educadores que passam a constituir-se como
parte da luta histórica do povo brasileiro que vive no campo, afirmando a sua educação
114
Em relação aos autores destacados, é válido salientar que existem entre eles diferenças de natureza
teórico-metodológica, mas, que aqui não nos foi possível indicá-las.
208

como direito e como pedagogia própria e assim, propor uma formação de pedagogos da
terra, de educadores do campo.

Como terceiro traço do projeto educativo do MST, temos: a pedagogia da terra


como pedagogia do movimento. Essa dimensão possibilitaria, segundo Caldart, olhar
esse processo de construção da Pedagogia da Terra, na qualidade de práxis de educação
do campo, como uma expressão e uma forma histórica de concretização da Pedagogia
do Movimento. Nesse sentido, essa pedagogia é concebida pelo Movimento como uma
práxis de formação humana que adota o Movimento como sujeito e como princípio
educativo.

O processo de formação da identidade coletiva dos sujeitos da Pedagogia da


Terra tem como pedagogo principal o próprio Movimento Social: estes
educandos não seriam o que são e como são, e nem estariam neste curso, se
não fosse a sua participação no Movimento. É ele que aciona, organiza e dá o
tempero de educação das diferentes matrizes pedagógicas presentes no
processo de educação destas pessoas: a cultura, o trabalho, a situação de
opressão e a resistência a Lei, o próprio estudo...(idem: 97-98).

Nessa perspectiva, o processo de materialização dessa identidade de formação


ajudaria a cultivar uma identidade coletiva dos educandos, procurando formá-los como
sujeitos humanos e como sujeitos sociais, que assumem, trabalham e compreendem a
historicidade e as contradições do próprio Movimento, não tolhendo as transformações
desses sujeitos, mas procurando provocá-las. Essa identidade estaria bem expressa na
súmula dos pilares115 que embasam a formação dos professores que aqui citamos na
íntegra:

[...] Os professores têm que ensinar as crianças a: 1) se organizar para


trabalhar em grupos; 2) tomar decisões por conta própria e assumir as
conseqüências de suas decisões; 3) planejar e avaliar as ações no coletivo dos
alunos e dos professores; 4) controlar o trabalho e a produtividade; 5) superar
os desvios e oportunismos dos colegas.
Em outro trecho desses pilares, encontramos um elenco de dimensões que
conceitua o que seja um educador da reforma agrária:

[...] ser um educador da R.A. é ser fiel à causa do povo; perceber os


problemas, analisar bem e enfrentar a situação. É repudiar as injustiças; ser
apaixonado pela luta do MST; amar ser educador; gostar das crianças sem-
terra; conhecer os assentamentos; saber tudo o que está acontecendo; dizer a
verdade para os alunos; ser um trabalhador. É conhecer e ensinar a história;
fazer a história; tratar das questões da terra; ensinar a não explorar e não ser
115
Esses pilares são organizados a partir dos depoimentos do I Encontro Estadual de Educadoras e
Educadores de Reforma Agrária do Paraná, realizado de 8 a 10 de abril de 1997, no Município de
Cantagalo, e de Santa Catarina, realizado de 14 a 17 de abril de abril em Florianópolis.
209

explorado. É ensinar o amor à terra e à luta; Ter amor pelo MST. É aprender
muito e ensinar todos os sem-terra a ler e a escrever. É ter respeito pelo jeito
que cada pessoa é; não excluir; ensinar coisas novas para os alunos. É ser um
coordenador de buscas; formar pensando no presente e no futuro; ajudar o
assentamento a produzir; ajudar a mudar o País; ser democrático, solidário e
humilde. Ser cidadão e ensinar a ser cidadão. É estar sempre se
transformando e ajudando a transformar.

Por fim, o MST entende, que não terá atingido plenamente seus objetivos mais
amplos em relação à luta pela terra, se esta não vier acompanhada de uma política
educacional comprometida com as necessidades dos trabalhadores rurais sem-terra e
com a classe trabalhadora em geral.
210

CONSIDERAÇÕES FINAIS

[...]Se todas as contradições do sistema capitalista-


imperialista pudessem ser resolvidas mediante a
conscientização, as ações locais, o convencimento pelo
diálogo [...] seria fácil. Mas o capitalismo não deixa
saída. A moderna história da humanidade continua
sendo a história da luta de classes.
(José Welmowiki)

A leitura dos documentos centrais produzidos pelo Setor de Educação do MST, a


saber: Pedagogia do Movimento Sem Terra: Acampanhamento às Escolas116 e Princípios
da Educação do MST117, somados à apreciação das entrevistas com educadores do MST
além das propostas curriculares do Curso Normal Nível Médio e do Curso de Pedagogia
da UERGS-ITERRA, dentre outros importantes documentos complementares, como o
livro Pedagogia do Movimento: escola é mais do que escola..., da Professora Roseli
Caldart, permitiu-nos, mediante uma análise de caráter mais geral, proceder a um
levantamento dos pilares que informam os termos da proposta educacional do MST,
com especial atenção à sua proposta de formação de professores.

Para iniciar nossas considerações conclusivas destacamos o tratamento


problemático conferido às relações entre socialismo e democracia, naquela proposta,
quando se aponta, num primeiro momento, para a necessidade da transformação social,
revolucionária e socialista; para o desenvolvimento da consciência de classe; para a
emancipação humana e para a formação da omnilateralidade - categorias que condizem
com uma perspectiva teórico-prática que tem como pressuposto a superação da ordem
capitalista – e, ao mesmo tempo, contraditoriamente, ressalta-se a importância da
construção de uma democracia social, baseada na justiça social e na formação do novo
homem/cidadão, princípios que, na essência, condizem com uma proposta de mudanças
no âmbito e por dentro da ordem do capital, conforme tentamos demonstrar ao longo de
nossa tese, com o apoio da crítica marxista, particularmente aquela elaborada por Tonet
(1997), apresentada no corpo do trabalho.

116
In: Boletim da Educação, no. 08 – julho de 2001.
117
In: Caderno de Educação no. 8 julho de 1996, 3a. Edição, janeiro de 1999.
211

Com efeito, no conjunto de documentos e depoimentos, percebemos a ausência


de uma distinção clara entre esses dois projetos de sociedade: o aperfeiçoamento da
presente ordem ou a ruptura revolucionária. Em outras palavras, toma-se, em larga
medida, a democracia como caminho inexorável para o socialismo e até mesmo, em
alguns momentos, parecendo dar-se por satisfeito com a construção de uma democracia
social. Projetos históricos que, a rigor, seriam contraditórios são apresentados pelo
Movimento como uma mesclagem possível, em detrimento da firme indicação dos reais
fundamentos de tais projetos.

À luz desse debate sobre socialismo, democracia e cidadania, que nos serviu
para indicar os elementos essenciais da articulação entre cidadania e democracia,
dominante na esquerda denominada democrática, percebemos que as concepções de
sociedade, educação (formação) e homem do MST, a exemplo do que vem ocorrendo,
via de regra, no seio dos outros movimentos sociais e sindicais, conforme atesta a
literatura118, resguardando as devidas proporções - visto que, esse Movimento vem
confrontando-se historicamente com o poder vigente através de ações de contestação e
de desobediência civil - são informadas por uma gama de interpretações que se perdem
na aparência da realidade, deixando de lado a análise ontológica, ou seja, aquela
perspectiva que toma como centro o movimento do real.

Como é sabido, a luta pela participação democrática e pela formação do cidadão


é predominante hoje, no seio destes movimentos, que mantêm a defesa de uma
sociedade justa e livre da opressão capitalista, assumindo a democracia social como
estratégia para o socialismo.

No caso do MST, a julgar por sua proposta educacional, é predominante a defesa


da democracia como caminho para uma sociedade livre, justa e que, em algumas
passagens dos documentos e das entrevistas, aparece como sinônimo de socialismo.

Assim, nos depoimentos de todos os entrevistados, encontramos, outrossim, uma


clara preocupação com a formação da consciência de classe. Todos afirmam ser central
esse processo de formação no sentido de se construir o socialismo. Na verdade, é

118
Conferir a esse respeito, ANTUNES (1998), BOITO JR (1996), COGGIOLA (1995), dentre outros,
além do conjunto de avaliações críticas produzidas pelo Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento
Operário – IMO-Ce, através de investigações diversas sobre a política de ação e formação sindical no
Ceará. De todo modo, vale ressaltar que, em nenhum grau, os ideários e estratégias do MST são colocadas
no mesmo patamar de acomodação à ordem da CUT propositiva, reconhecendo-se, no caso daquele
Movimento, o caráter de insubordinação, desobediência civil e de contestação à política vigente, o que
tem lhes valido repressão e violência sistemática por parte do Estado.
212

unânime entre eles a tese de que a construção do socialismo passaria pela ampliação dos
espaços de participação coletiva.

Nesse sentido, advogam que, para se conquistar a reforma agrária, torna-se


necessário romper com o modelo capitalista. No entanto, essa ruptura não se daria em
um “estralar dos dedos”, o que aponta para a necessidade de ir-se conquistando espaços
efetivos de participação democrática nos limites da ordem do capital, com o intuito de
se chegar a uma ruptura estrutural. A ocupação, nessa perspectiva, é compreendida
como um momento rico de vivência solidária, cooperativa, de aprendizado democrático
e de formação da proclamada consciência de classe.

No Movimento entende-se, outrossim, a luta pela reforma agrária como parte da


luta pela transformação dos Sem Terra em cidadãos. O Movimento acredita que a
prioridade deste processo formativo é a luta por terra, que está diretamente interligada à
sobrevivência e à garantia do trabalho, o que, conseqüentemente, levaria à superação da
exploração dos latifundiários.

Percebemos, ao longo do estudo, que o MST se posiciona na perspectiva da


formação para a cidadania, da construção de uma identidade coletiva, do cultivo da
história dos lutadores do povo, investindo na construção de um projeto que combine
escolarização com formação humana e capacitação de militância.

Nessa perspectiva, surge a idéia de que a cidadania é uma conquista da luta de


classes e que, na medida em que se articularia a luta de classes em função da garantia
dos direitos dos cidadãos, conquista-se a cidadania.

Um outro aspecto, analisado ao longo dos documentos e das entrevistas, diz


respeito à presença de valores que apelam para um humanismo subjetivista e idealista
conjugados a um projeto socialista.

Um ponto que decorre desse aspecto é a relação entre subjetividade e


objetividade traçada nas entrelinhas, por assim dizer, dos documentos analisados, em
que a cultura – não o trabalho – assume o papel central no desenvolvimento da
subjetividade.

Na tentativa de efetivar essa educação, não presa às determinações da classe


dominante, o MST propõe uma educação que promova a identidade Sem Terra, a partir
do resgate dos valores próprios de sua coletividade, da cultura do povo e da sua história
213

de luta. O desafio é o de garantir que as famílias assumam essa identidade, esse modo
de vida e os valores que sustentam o Movimento e seu projeto político.

A defesa de uma educação mais ampla, que supere o conteúdo ideológico da


escola tradicional, baseada em atividades lúdicas, recreativas e artísticas, com espaços
para a formação de novos valores e posturas, está fundamentada numa concepção de
educação e de mundo. Em tal formulação, a linguagem e a subjetividade assumem uma
dimensão importante e significativa no projeto educativo do MST, visto que se trataria
de criar uma nova realidade, novas práticas cotidianas, novos valores, novas
significações, a partir de mudanças nas nomenclaturas, o que parece aproximar os
princípios do MST aos pressupostos fundamentais que embasam a pedagogia das
competências, consignada no modelo aprender a aprender de Jacques Delors. A
materialidade é, assim, quase que subjugada às novas formas de dizer, de contar, de
representar e de apresentar o real...

Percebemos que o projeto de formação humana do MST, principalmente nos


termos de seus documentos, está excessivamente relacionado com a formação de
valores. É como se os ideais humanos, expressos através desses valores, gozassem de
uma autonomia capaz de determinar as relações sociais. Isso é evidente quando apontam
os seguintes valores: Formação para o trabalho, formação organizativa, formação
econômica e formação política e ideológica.

Nessa perspectiva, percebe-se como um importante instrumento na construção


do que o Movimento chama de identidade coletiva do MST e que perpassa toda a sua
proposta de formação humana, a mística, reconhecida como elemento importante no
resgate dos valores da sua história e no encaminhamento de processos educativos que
privilegiem a formação dos lutadores do povo. O cultivo destes valores parece ter
transformado a Pedagogia do Movimento numa “Pedagogia dos Valores”.

Ora, o campo do materialismo histórico-dialético, com o qual mantemos acordo,


devemos mais uma vez enfatizar, advoga que a condição humana e sua forma de ser é
determinada pelas relações sociais de produção, pelos vínculos e intercâmbios que os
indivíduos estabelecem na condução de determinadas atividades e pela situação de
classe dentro de determinado modo de produção, sem que isso signifique a sufocação da
subjetividade, como vimos argumentando.
214

Em contrapartida, observamos uma forte aposta positiva por parte dos


intelectuais marxistas no MST como um movimento de massa com bases radicais. De
certa forma, podemos fundamentar essa justificativa no fato de que, em uma época em
que não se fala mais em luta de classes encontra-se, em algumas formulações e nas
ações do MST uma retomada dessas categorias.

Em sua proposta original, o MST postula que a educação deve ser um


instrumento importante de esclarecimento para o trabalhador rural e urbano,
contribuindo para a descoberta das causas da exploração da maioria da população e do
enriquecimento de poucos, além de poder indicar o caminho da transformação da
sociedade.

Ao longo da exposição dos princípios da educação do MST e da fala dos seus


educadores, observamos, repetidamente, a referência à proposta marxista de
omnilateralidade, advogando um processo de formação integral que se deve dar por
meio da formação do homem omnilateral, compreendido como aquele trabalhador rural
que se envolve no Movimento e que participa de todas as propostas de formação
desenvolvidas a partir da prática cotidiana, contribuindo como um agente de
transformação da sociedade rumo ao socialismo.

O Movimento enfatiza, por meio de seus documentos e depoimentos de seus


militantes, a articulação entre trabalho e educação com o objetivo de garantir uma
formação mais ampla que assegure a organização dos trabalhadores e a formação da
consciência de classe.

O trabalho aparece, assim, como fundamento, princípio educativo da formação


humana. De fato, é o trabalho, juntamente com as relações sociais estabelecidas no
âmbito da produção material, que identifica a classe social à qual o sujeito pertence,
constituindo-se esta última, por sua vez, na visão marxiana, elemento de mediação entre
as esferas da individualidade e da generidade. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o
trabalho ganha um lugar central no projeto de formação humana com intencionalidade
pedagógica, as categorias classe social e cultura são apresentadas em igual patamar. Da
mesma forma, a proposta de formação omnilateral aparece associada à concepção de
cidadania.

Ainda mais, em seus princípios, consignados nos documentos e nas entrevistas


dos educadores, o Movimento afirma que sua educação pretende formar pessoas
215

capazes de articular, de forma competente, teoria e prática. Esse aspecto nos leva, em
alguma medida, ao modelo das competências, sistematizado pelos consultores da
Unesco e da ONU, como o mais dinâmico, abrangente e complexo, sendo capaz de
habilitar o trabalhador para a sociedade globalizada e em constante mudança. Assim,
apreendemos que essa ideologia parece perpassar o ideário da formação do educador do
MST.

Como exemplo dessa aproximação, é válido lembrar que a educação do MST é


orientada, conforme demonstramos, para o trabalho e para a cooperação. Com esse
princípio, o MST assume, de certa forma, em sua proposta pedagógica, a dimensão do
aprender a conviver, presente no modelo do aprender a aprender, que se caracteriza
pelo eixo da cooperação.

Nesse sentido, avaliamos que, mesmo recorrendo à articulação entre teoria e


prática, visando uma ação transformadora, a proposta educacional do MST parece não
fincar o devido distanciamento entre seus postulados e objetivos e as diretrizes da
Unesco - ONU, no campo da educação, fazendo uso das noções de competência,
cooperação, deixando de insistir na crítica radical à lógica capitalista, dificultando,
assim, a tarefa de distinguir o horizonte apontado por um e outro ideário.

Ressalte-se que, no modelo do aprender a aprender, elege-se como centro da


aprendizagem a valorização do cotidiano. Sabemos que, na sociedade capitalista,
vivemos um cotidiano estranhado/alienado. A esse modelo interessa a negação da
totalidade do saber que foi construído historicamente. Em nome da valorização do
cotidiano, é negado o saber à classe trabalhadora, já que, hierarquicamente, é mais
importante que o aluno aprenda sozinho do que mediante o repasse do conteúdo por
parte do professor e da instituição escolar.

Conclui-se que o saber que é permitido ao aluno é o saber cotidiano,


alienado/estranhado, que não lhe dá condições de compreender os verdadeiros
determinantes que compõem esse cotidiano, não permitindo, em conseqüência, a
construção de uma visão de totalidade e o conhecimento das causas de sua
alienação/exploração.

Em relação à sua proposta de educação, o MST a concebe como representação


de um modo de vida próprio que visa se contrapor à escola tradicional em que se efetiva
um ritual que forma a identidade da classe dominante por meio das datas
216

comemorativas tradicionais no calendário escolar oficial, imposta também para a classe


trabalhadora, impedindo-a de construir uma identidade coletiva própria. Sem sombra de
dúvidas, a educação para o capital tem um conteúdo ideológico forte e presente em suas
propostas oficiais de escolarização e formação profissional.

O que distingue o MST desse contexto é que, em sua proposta pedagógica, o


Movimento não apregoa a generalização de seu modo de vida, de suas concepções de
educação - nem disporia de meios para tal - para os outros segmentos sociais e sim
somente (o que já é muito) para seus militantes, sejam eles assentados, acampados, Sem
Terra e Sem Terrinha...

Nesse sentido, a Pedagogia do Movimento extrapola o campo das propostas


pedagógicas e vai ao encontro de um projeto formativo politicamente engajado e crítico.
O professor não pode estar ausente ou omisso das decisões, da organização, da luta...
Deve estar inteiramente vinculado às ações, às concepções, às projeções do MST,
garantindo, dessa forma, o encontro com uma educação “descontaminada” dos vícios da
educação dominante, tradicional e burguesa.

Assim, por exemplo, percebemos, nas falas dos educadores, alguns elementos a
respeito das concepções do Movimento sobre universidade, e da inserção de seus
militantes nesse contexto:

- o acesso à universidade aparece como conseqüência de luta, pressão política e


organização do movimento;

- o educador-militante deve ser formado, não para se afastar das lutas e da


própria origem social e de classe, mas para contribuir efetivamente com novos
conhecimentos na organização e na luta do Movimento. O estudante do MST
deve ser um lutador social;

- o estudante do MST não pode ser um acadêmico, submisso a conteúdos fora do


contexto em que está inserido, fugindo, inclusive, do controle da burocracia da
universidade;

- o estudante do MST deve apoiar as lutas contra os problemas da universidade


ao lado do movimento estudantil.

Percebemos, assim, que a escola é mais do que o conhecimento teórico que ela
proporciona. Ela deve cumprir o mesmo papel da luta social no sentido do que eles
217

chamam de formação da consciência. Assim, os conhecimentos adquiridos nos cursos


de formação de professores devem ser voltados para a prática, aplicados à realidade
dos Sem Terra.

Nesse aspecto, a proposta de vinculação entre teoria e prática se descola do


modelo das competências, proposto pelo Relatório da Conferência de Jomtien, pois se
visualiza a finalidade de superação da lógica da sociedade capitalista. No modelo das
competências esse vínculo entre teoria e prática fica preso ao ambiente escolar e ao
objetivo de aprender para se manter eficiente e produtivo na sociedade complexa,
tecnológica e do conhecimento. O aprender é sinônimo de adequação e ajustamento aos
interesses da grande empresa e do mercado capitalista. É aprender para permanecer vivo
e atuante dentro da ordem do capital. Coerentemente, nas concepções de tal modelo, não
se focaliza, em nenhum momento, a proposta de desenvolvimento de uma consciência
de classe trabalhadora e, nem tampouco, de superação da lógica inumana do capital.

Quando o Movimento elege como exigência para ser um professor da reforma


agrária a dimensão do engajamento na luta pela conquista da terra, ou, em outras
palavras, em todas as ações organizativas que buscam esse objetivo, como, por
exemplo, a ocupação da terra e de prédios públicos, mesmo para professores que não
são assentados, mormente distancia-se dos novos paradigmas da educação, incluindo o
modelo do aprender a aprender, já que estes negam veementemente em seus pilares
qualquer aspecto relativo à organização dos trabalhadores, apontando em contrapartida
para uma visão restrita do auto-conhecimento e da auto-organização.

Esse aspecto destoa, igualmente, na essência, do modelo das competências


presente no Relatório da Conferência de Jomtien, já que a proposta de formação de
professores do MST assume explicitamente o seu vínculo com a dimensão da militância
política que conta atualmente com ações contestatórias fortes, como, por exemplo, a
ocupação da terra.

Assim sendo, a formação desse professor deve ser informada por uma concepção
de educação interessada, a exemplo da acepção gramsciana, no sentido de atender às
necessidades da luta pela reforma agrária e da sobrevivência do próprio Movimento.
Por outro lado, faz-se necessário enfatizarmos, mais uma vez, que nos documentos
analisados e em outros trechos das entrevistas, encontramos um significativo apego às
concepções de natureza mais cultural e subjetivista como a preocupação com a
218

formação de valores. Muitas vezes identidade de classe se confunde com identidade


cultural, tendo na mística a sua principal referência.

Percebemos, assim, que existe uma contradição que move o projeto formativo do
Movimento: os depoimentos e os documentos apresentam um apego a uma concepção
mais idealista, reconhecendo a educação como espaço privilegiado para formação de
valores tais como: respeito às diferenças; construção de uma ética cidadã; resgate da
identidade dos Sem Terra; esforço para afirmar a cooperação e a solidariedade no
processo de formação de um novo homem, dentre outros aspectos que não se afinam, na
essência, com o próprio discurso que fazem sobre a superação do capital e a construção
do socialismo, afirmando a luta de classes.

É oportuno destacarmos, ainda, que, por exemplo, na proposta do Curso Normal


de Nível Médio do MST, mais especificamente, na disciplina de Educação Ambiental,
se advoga o trabalho associado a "valores e princípios das chamadas "educação
ambiental", "ecopedagogia"e "pedagogia da terra". (op. cit. p. 13). Aliás, o próprio
elenco de disciplinas da parte diversificada, que inclui Educação Religiosa, apresenta
como conteúdos principais o fenômeno religioso, a consciência social, a religiosidade
do povo, o ecumenismo e o diálogo, dentre outros aspectos, e exclui a proposta de
estudos sobre trabalho, luta de classes, organização sindical, o que parece guardar, em
algum grau, afinidades com os paradigmas dominantes no campo da formação do
educador.

O apelo a esse modelo de competências, evidentemente, não pode ser creditado


apenas à proposta educativa do MST. Atualmente, os projetos educacionais em geral,
desde a educação infantil até o ensino superior, das instituições privadas e públicas,
fundam as suas reflexões e ações nos seus quatro pilares.

Compreendemos que o MST não poderia estar imune à atmosfera sedutora do


modelo aprender a aprender já que este é um movimento social de alcance
internacional que recebe contribuições e, conseqüentemente, influências de teóricos do
campo da educação. Dessa forma, a organização curricular do Curso Normal de Nível
Médio é toda perpassada por essas dimensões, aproximando-se do contexto mais amplo
de formulação de projetos e ações educativas que tomam, assumidamente, nos termos
do documento, como eixo de sua integralização curricular, os quatro pilares da
219

educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver com os outros e


aprender a ser. (MST. op. cit. 2002:4).

Todavia, ao lado dessas alusões, encontramos pontos ligados às categorias


marxistas, quando, por exemplo, são apontadas, na disciplina de Filosofia, as unidades
denominadas Filosofia da Práxis e Interpretação Dialética da História. Algo semelhante
aparece na disciplina de Sociologia quando são incluídas como conteúdo formas,
características e transformações históricas do trabalho camponês.

Conforme demonstramos anteriormente, mediante a exposição detalhada das


referências teóricas presentes nas propostas curriculares dos cursos de formação de
professores do MST, o quantum de indicações de pensadores ligados ao campo da
formação docente demonstra a forte influência dos ‘novos’ paradigmas que permeiam a
teoria educacional vigente.

Assim, nesse contexto adverso ao conteúdo crítico que discute a ontologia do ser
social em sua estreita relação com o trabalho, temos a prevalência de conteúdos
advindos do campo dos Novos Movimentos Sociais, da crise dos paradigmas das
Ciências Sociais e da centralidade no multiculturalismo ‘crítico’. Essa nossa crítica tem
como fundamento as referências bibliográficas dessas disciplinas que privilegiam
autores que trabalham a questão da problemática educativa nos limites estreitos da
formação de valores e da identidade cultural, à exceção da Teoria da Cooperação que
trouxe, na bibliografia básica, a referência ao teórico marxista Ernest Mandel e de
Movimentos Sociais e Educação, que apresentou um texto de Ricardo Antunes.
Entretanto, ousamos especular até que ponto, diante desse quadro de festividade cultural
e cidadã, a perspectiva crítica desses autores pode ser assemelhada a ‘uma pedra no
meio do caminho’.

Ressaltamos, mais uma vez, que as influências dos novos paradigmas do campo
da formação docente não é uma particularidade das propostas educacionais do MST.
Essa perspectiva é prioritária nos curso de graduação e pós-graduação das universidades
brasileiras. E, como a proposta em tela é uma parceria com uma universidade, não
poderia ser diferente.

No que diz respeito a essas parcerias com o Estado, o Movimento entende que
elas são feitas para garantir um novo projeto de escola dentro dos assentamentos. Nessa
perspectiva, defende uma autonomia na orientação dos projetos que realiza, mesmo
220

quando conveniadas com organismos estaduais ou com o apoio e o financiamento de


ONG’s119. Acredita, assim, ser importante que a direção desses projetos seja do MST.

Não obstante a grandeza e a importância do MST, percebemos que sua proposta


educacional, mais especificamente a sua política de formação de professores-militantes,
sofre influências da ideologia dominante, na forma dos paradigmas dominantes da
Unesco - ONU.

É certo que sua escola é fortemente influenciada pela pedagogia do aprender a


aprender. Nesse aspecto, a Pedagogia do Movimento perde muito do seu potencial
político enquanto parte de um movimento social importante como o MST.

Percebemos que os intelectuais que atuam no universo do MST são


influenciados pela Pedagogia do aprender a aprender, trazida por várias fontes e origens
como a proposta da ecopedagogia e da escola cidadã, do professor crítico-reflexivo, do
construtivismo e da própria Escola Nova, dentre outras.

Essa pedagogia do aprender a aprender, a nosso ver, aponta para uma educação
escolar de baixa qualidade que independe das intenções políticas dos militantes e
dirigentes da Pedagogia do MST, e que se contrapõe, na essência, à proposta de ruptura
com o capital, que verdadeiramente interessa ao Movimento, já que essa pedagogia
responde aos mandos e exigências da acumulação capitalista.

Nesse contexto, ainda analisando as referências apontadas pelos entrevistados e


pelos documentos, que incidem diretamente na metodologia do MST, percebe-se que
essa é baseada numa concepção eclética de ensino, que contempla tudo aquilo que
entende como positivo em uma variada gama de educadores, de diferentes correntes
pedagógicas, combinando sem as devidas demarcações teórico-metodológicas que vão
desde o existencialismo cristão de Paulo Freire, passando pelo construtivismo de Piaget,
no qual inclui indiscriminadamente Vigotski, chegando aos teóricos ligados ao
Marxismo.

119
Atualmente, vale ressaltar, as ONG’s vêm conquistando espaços importantes, representando muitas
vezes a ajuda humanitária do Estado capitalista mundial, como forma de superar a perda de controle da
expansão do exército industrial do crime e, também, contra os movimentos sociais e sindicais de natureza
mais revolucionária e contestatória, Nesse sentido Boito denuncia que, “a participação de ONG’s e
associações filantrópicas na aplicação da política social tem desprofissionalizado e desistintucionalizado
os serviços sociais tornando-os precários e incertos, oferecidos mais como filantropia pública que
estigmatiza a população usuária de que como direitos sociais. É uma espécie de retrocesso à filantropia
capitalista do século XIX, que fora superada pelo Estado de bem-estar” (1996:83-84).
221

Nessa perspectiva, defende-se que, para o desenvolvimento de seu trabalho


educativo, não se deve adotar apenas uma única metodologia, o que seria para o MST
uma visão estreita e limitada do processo educativo. Desta forma, o Movimento
abomina por completo tudo o que possa ter saído da abordagem tradicional, pois esta
não consideraria a escola como parte da própria vida do educando. Entende, ao
contrário, que o educando é que se constitui o centro da escola, sendo o professor um
mediador entre os alunos e os modelos pedagógicos existentes.

Face ao exposto, nossa pesquisa permite concluir que o Movimento não ficou
imune aos ventos dos novos paradigmas que tomam como centro de suas análises a
subjetividade auto-referenciada, ou seja, descolada da relação com a objetividade. O
Movimento tenta, assim, somar uma perspectiva de classe com a perspectiva do
desenvolvimento centrada no indivíduo e na subjetividade, apelando a formulações de
cunho idealista-humanista que priorizam a cultura e os valores de solidariedade, de ética
e de cooperação, tentando articular essa concepção às formulações do campo marxista.

Não obstante, para um movimento social, que vem sendo sistematicamente


criminalizado pela grande imprensa e pelas políticas do Estado, sejam elas de segurança
ou de reforma agrária, é inegável a sua contribuição histórica para o movimento social
mundial. Sua capacidade de organização e articulação política com suas ações
coordenadas em praticamente todo o território nacional, bem como o compromisso de
seus militantes, torna-se exemplo de como é possível resistir, mesmo em tempos de
extrema opressão e dominação.

Um outro aspecto relevante é a dimensão político-educativa, incluindo uma nova


proposta de ação contestatória, aliada a uma concepção de escola e formação de
professores que aponta, em alguma medida, para uma relevância educacional e para a
construção de consciência de classe, tanto nas práticas cotidianas como nas atuações
diante da realidade objetiva.

Em suma, a concordância entre as argumentações das entrevistas e dos


documentos estaria na afirmação de que a proposta educacional do MST revela que esse
Movimento acredita estar construindo um novo jeito de educar e de fazer escola,
negando veementemente a escola tradicional e reivindicando uma educação de classe
pensada, planejada e estruturada a partir dos princípios da luta do MST, resguardada a
participação efetiva de alunos, pais e professores.
222

As críticas desenvolvidas ao longo desse trabalho não pretendem jamais


desqualificar ou desconhecer a força histórica desse movimento de trabalhadores. Nesse
sentido, qualquer crítica apresentada nesta pesquisa visa apenas contribuir com uma
reflexão analítica a respeito de um movimento político que articula sua atuação com
uma prática educacional, até certo ponto, inovadora e relevante, particularmente, no que
se refere à formação de professores.

É fato que atualmente estamos inseridos num contexto em que a força da luta
ideológica avança fortemente por conta das exigências postas pelas condições adversas
da crise estrutural do capital e da própria ameaça da barbárie. Nesse sentido, se fortalece
um subjetivismo, uma subjetividade, no vácuo de suas determinações históricas.
Contexto esse, que inclui o MST e sua proposta educacional. Assim, os homens do
capital recorrem, insistentemente, à ideologia para disseminar e desqualificar qualquer
tentativa de organização da classe trabalhadora. O MST tem sido, nas últimas décadas,
um alvo privilegiado desse ataque, especialmente, pela grande imprensa.

Acerca desse ataque da imprensa ao MST, VOESE analisa que,

O motivo por que a imprensa dá espaço ao tema da reforma agrária de ve ser


creditado, antes de mais nada, à preocupação tanto em relação ao crescimento
e à organização do MST – em função de sua coerência entre dizer e fazer -,
como ameaça que significa o inchamento dos bolsões de miséria e de
violência na cidade, - nunca, porém, ao fato de se buscar uma solução dos
problemas de quem não compra e não lê jornal, não anuncie nele, nem
compra a maioria dos produtos dos classificados, ou seja, o in vestimento que
se faz para publicar o jornal evidentemente não tem retorno financeiro a partir
do segmento social pobre como o dos sem-terras. Presta-se, porém, o texto
escrito à função de formação da opinião pública, especialmente dos que se
opõe aos sem-terra, e, dessa forma, conduz à homogeneização social.
(1998:167-168)

Nos contornos do modelo dominante capitalista, a imprensa tenta controlar o


processo e os espaços de formação da opinião pública, apropriando-se não só dos meios
de produção, mas também das outras mediações sociais como os meios de comunicação
social.

Temos como exemplo disso uma reportagem da Revista Época, publicada em


julho de 2003120, que apresenta como reportagem de capa a seguinte matéria: MST, eles
querem a revolução. O conteúdo apresentado imprime a opinião de que os jovens do
MST, ou os filhos dos trabalhadores que fundaram o MST há pelo menos 20 anos,
120
Cf. Revista Época, n° 268, 07 de julho de 2003. p. 34-42.
223

querem a revolução. Convém, entretanto, observar que a foto apresentada na capa da


revista é, por si só, agressiva, cruel e tacanha. Destaca um jovem militante de 23 anos,
de forma assustadora, com olhos de Bad Boy em um fundo escuro predisposto a
assombrar criancinhas.

Enfocamos, aqui, a capa, pois a imagem é forte demais e diz muito da estratégia
ideológica, comumente, adotada pela imprensa. O objetivo, a nosso ver, foi realmente o
de fazer uma relação com o antigo (pré)conceito de que “comunista come
criancinhas...” Quanto ao conteúdo, apresenta depoimentos de jovens que cresceram na
luta do Movimento e que hoje estão à frente da sua organização e que afirmam, como
lideranças, o desejo e o sonho de construir a revolução socialista: “Quando 169 milhões
de pessoas do País quiserem o socialismo, não vai ter jeito. Nem que seja pela força”.
(Valdir Navroski, professor nos acampamento. In: Revista Época, 2003:40)

Um outro exemplo do recorrente apelo à força ideológica pode ser representado


pela reportagem da Veja121, publicada recentemente, com o título Madraçais do MST.
Essa reportagem é extremamente repulsiva e grotesca, tratando a escola do MST como a
ante-sala do terrorismo: “Assim como os internatos muçulmanos, as escolas dos sem-
terra ensinam o ódio e instigam a revolução. Os infiéis, no caso, somos todos nós”.
(Veja, 2004:47). O texto alicia a mente dos seus leitores com meias-verdades, sem
nenhum compromisso com os fatos, já que, equivocadamente, afirma que as escolas do
Movimento desobedecem às normas do ensino, quando, na verdade, os programas de
formação de professores do MST dizem considerar as orientações da legislação
educacional, incluindo as diretrizes dos cursos de graduação, propostas pelo Ministério
de Educação e dos Desportos – MEC.

Tal artigo é, no mínimo, preconceituoso, pois toma a cultura muçulmana como


menor em relação às outras, sem contextualizar o tipo de ensino oferecido por suas
escolas. A estratégia foi a da falsa analogia da qual o enunciante pode valer-se para dar
uma imagem de verdadeiro ao que está a dizer, desfocalizando a atenção do receptor,
aproximando-o de um enfoque mistificador, menos comprometedor para os interesses
da grande imprensa e de seus “aliados” de classe.

Representa, assim, a tentativa de colocar o MST no então presidente dos


Estados Unidos, George Bush, chama do eixo do mal, fazendo uma analogia das escolas
do MST com os internatos religiosos muçulmanos. Coincidentemente, a reportagem da
121
Cf. Revista Veja, 8 de setembro de 2004, ano 37 – edição 1870. p. 46-49
224

capa traz justamente a matéria sobre os ataques de terroristas chechenos a uma escola
em Beslan, na Rússia em 3 de setembro de 2004. Enfim, trata-se de um artigo
absolutamente indecente, um panfleto de má qualidade que não tem nenhum objetivo
jornalístico. Aponta um preconceito com os muçulmanos que têm ao longo da história
da humanidade, inegavelmente, uma aquisição de um saber erudito e um nível
educacional elevado. Enfim, trata-se de uma matéria obscurantista que diz muito dos
tempos em que vivemos.

Em suma, essa duas matérias são extremamente depreciativas e contundentes.


Os enunciantes (Época e Veja) utilizam-se de procedimentos discursivos de agressão,
ocasionando uma interpretação destrutiva em relação à imagem do MST. Em outras
palavras, o que ocorre é um julgamento condenatório que dificulta – quase impossibilita
– uma réplica, porquanto se constitui em nível do implícito. Esses instrumentos, aceitos
socialmente como democráticos, na verdade remetem à idéia de um processo de
insuflamento discursivo dos Sem Terra, produzindo uma imagem negativa, o que
justificaria, para seus leitores, as violências policial e jurídica, por exemplo, impostas ao
Movimento, desqualificando as ações dos seus dirigentes e militantes.

Apontamos essas duas reportagens, para colocar que as avaliações críticas que
tecemos ao longo do nosso trabalho não se situam em torno do objetivo de desqualificar
a luta do MST por educação e pela formação de seus professores militantes, como bem
faz a imprensa a serviço do capital.

Nossa intenção, ao contrário, é contribuir com o MST no sentido de persistir na


concepção de que os seus militantes, assentados, acampados e professores precisam
dominar os conhecimentos clássicos aliados à organização sócio-política, o que pode
permitir que o Movimento se fortaleça e faça frente à burguesia que a ele se contrapõe.

Acreditamos, outrossim, que os integrantes do MST precisam dominar esses


conhecimentos, pois a educação escolar tem papel decisivo na emancipação,
desenvolvendo um conceito positivo de reprodução no sentido da relação entre
educação e reprodução do conhecimento humano num processo contraditório e
dialético, que no capitalismo envolve conflitos de várias ordens.

Na verdade, o desafio é mais amplo. É o de pensar, numa sociedade para além


do capital, sem perder de vista as repostas imediatas para a situação de barbárie que
atinge o ser social que trabalha. É imprescindível a articulação entre as lutas e as ações
225

imediatas e uma ação estratégia coletiva no sentido de novas confrontações contra a


lógica destrutiva do capital que preside a sociabilidade contemporânea, como alternativa
para pensarmos uma outra sociabilidade fundada no horizonte socialista emancipatório.

Apostamos, ademais, que no seio do MST encontramos um exemplo de uma


verdadeira organização dos trabalhadores do campo com caráter revolucionário, que,
com todo o seu aparato organizativo e de estímulo à participação e à disciplina, próprio
do Movimento, pode conquistar ao longo da história uma formação política condizente
com os pressupostos mais críticos e radicais, que, verdadeiramente, interessam à classe
trabalhadora, situados no campo do materialismo histórico e dialético.

O MST com suas contradições, complexidades e possibilidades, já vem


contribuindo com a classe trabalhadora na medida em que recoloca a discussão
importante e atual sobre a criação de novas formas de organização dos trabalhadores, e
vem desempenhando um papel no plano da lutas anticapitalistas, por meio de sua
principal estratégia: a ocupação122.

Enfim, se nossa análise não conseguiu dar respostas integrais, pelo menos
esperamos ter apontado alguns elementos teóricos e metodológicos sobre essa
particularidade do real, que permitem a outros pesquisadores a realização de novas
pesquisas.

Para concluir, gostaríamos de destacar que o Movimento colocou à nossa


disposição um material rico e atual, permitindo, ainda, o acesso aos seus espaços de
formação e a interação com seus educadores, o que tornou possível a realização desse
trabalho de investigação. A ele, nossa gratidão, respeito e admiração.

BIBLIOGRAFIA

122
É justo ressaltar, que na declaração de Stédile, anunciada na introdução de nosso trabalho, percebe-se o
claro direcionamento para a superação do capital quando insiste na luta do MST para derrubar as três
cercas que oprime os trabalhadores Sem Terra: do latifúndio, do capital e da ignorância.
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