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Crianças com mais acesso a linguagem chegam a ouvir 30 milhões de palavras a mais até os 4 anos
do que crianças em situação desfavorável
Ela percebeu que, entre os bebês que recebiam implantes cocleares (implantes para casos de surdez
profunda), os que melhor desenvolviam a habilidade de se comunicar eram os que moravam em lares
onde havia mais diálogo, mais interação e mais variedade de vocabulário.
Suas percepções foram reforçadas por um estudo de 1995 que havia identificado que crianças com
menos acesso à linguagem (muitas delas em situações de pobreza) chegavam a ouvir 30 milhões a
menos de palavras acumuladas até os quatro anos de idade em comparação a outras em situação mais
favorável - e essas últimas se mostravam mais preparadas ao entrar na escola, tinham vocabulário
mais rico, mais fluência na leitura e, por consequência, conseguiam notas mais altas.
Como uma grande parte do crescimento do cérebro é concluída justamente aos quatro anos, "as
crianças que largavam na frente (em termos de linguagem) continuavam à frente; as que começavam
com defasagens ficavam para trás", apontou o estudo.
Para diminuir essas disparidades de linguagem em crianças de famílias carentes, Suskind criou em
Chicago, nos Estados Unidos, a Iniciativa Trinta Milhões de Palavras, programa que, desde a
maternidade e nas visitas pediátricas, ensina pais e mães a respeito da importância de conversar e
interagir com os bebês desde seu primeiro dia de vida, para estimular a construção de novas
conexões neurais no pequeno cérebro que se forma.
"Temos aprendido que os cérebros podem ser construídos - ele se alimenta de linguagem e de um
ambiente enriquecedor provido pelos adultos nos primeiros anos de vida", explica Suskind à BBC
Brasil.
"Mesmo que o bebê não entenda o que está sendo falado, a linguagem estará formando a arquitetura
do cérebro para o pensamento e a aprendizagem. Pais e cuidadores são a força mais poderosa em
construir o cérebro das crianças e prepará-las para a escola", acrescenta.
O programa agora tem sido expandido para outras áreas dos Estados Unidos, e Suskind - que
também é professora da Universidade de Chicago - escreveu um livro com base na experiência:
Thirty Million Words - Building a Child's Brain (Trinta milhões de palavras - construindo o cérebro
infantil, em tradução livre).
Em entrevista à BBC Brasil, ela ensina ideias sobre como usar a linguagem de forma produtiva para
estimular o cérebro infantil.
"Se você estiver trocando a fralda dele ou pegando um ônibus, explique isso ao bebê. É uma
oportunidade de enriquecer o vocabulário dele e de mostrar a relação entre um determinado som e o
ato a que ele pertence."
Suskind cita pesquisas que mostram que ir além da conversa básica - "vem cá", "coloque seus
sapatos", "coma sua comida" - é um ponto crucial para desenvolver a linguagem das crianças.
É o que ela chama de "conversa extra", ou seja, dialogar com a criança e o ambiente ao seu redor e
estimular as conversas: "que árvore grande!"; "quem é o menino que está com a fralda suja?"; "qual
é o gosto dessa comida?"; "o que você acha que aconteceu com o personagem daquele livro?"
"A quantidade (de palavras) é apenas uma parte da equação. A qualidade da conversa é tão ou mais
importante - a riqueza do vocabulário, as idas e vindas da conversa, a forma como você fala",
enumera ela à BBC Brasil.
"É importante enxergar o seu bebê como um parceiro de conversas desde seu primeiro dia de vida",
completa.
Um estudo da Universidade de Chicago pediu a crianças de quatro anos que pegassem cartões com
pontos desenhados neles de forma a corresponder a um número (por exemplo: ao ouvir o número
cinco, pegar o cartão com cinco pontos desenhados). E descobriu que as crianças que haviam sido
expostas a mais vocabulário matemático e a noções espaciais conseguiram fazer mais
correspondências corretas.
Além disso, argumenta Suskind, é justamente nas "conversas matemáticas" que uma importante
disparidade de gênero ocorre.
"Um estudo com mães de classe média e alta mostrou que filhas de até dois anos ouviam a metade
das conversas matemáticas do que os filhos", escreve a cirurgiã. "Isso pode afastar as meninas de
campos que podem interessá-las. (...) Meninas que escutam que a matemática 'não é seu forte' muitas
vezes não vão bem em matemática."
Também ouvem menos elogios. E, como essas crianças já tendem a escutar menos palavras em
geral, essas expressões negativas acabam tendo um peso maior no desenvolvimento cognitivo delas.
"Como será escutar, repetidamente, que você nunca faz nada certo? É um ambiente infantil difícil de
ser superado", diz Suskind.
"É grande a diferença entre palavras de proibição ('não faça isso', 'pare') e de encorajamento ("muito
bem'). Causa estresse no cérebro ouvi-las repetidamente. É importante tentar mudar ordens para uma
conversa mais produtiva."
Em seu livro, a médica cita pesquisas mostrando que esse tipo de elogio pode, em vez de fortalecer
futuros adultos, apenas deixá-los passivos e dependentes da opinião alheia.
"O que buscamos não são os olhos (das crianças) voltados para si, felizes de autossatisfação, mas
sim crianças que vejam uma tarefa e, independentemente de quão desafiadora ela seja, consigam
quase imediatamente pensar em como ela pode ser cumprida", diz a autora.
O caminho para isso, segundo os estudos analisados por Suskind, é reconhecer e elogiar não só a
criança, mas o esforço e o empenho dela em suas atividades diárias.
Ou seja, em vez de apenas dizer "você é muito esperta" a uma menina que completou um quebra-
cabeça difícil, vá além: "vi que você se esforçou para terminar, e conseguiu. Muito bem!"
Suskind sugere buscar no dia a dia momentos em que a criança tenha se destacado.
"A criança ainda está aprendendo o que é se comportar bem. Apontar esses momentos a ela reforça a
ideia de o que isso significa", explica.
"O que devemos fazer com os brinquedos depois que terminamos de brincar?"
"A primeira frase é uma ordem que deve ser cumprida, sem ser questionada. A segunda frase, no
entanto, apoia a autonomia da criança. (...) Bebês de um ano cujas mães calmamente sugerem, em
vez de ordenarem, regras de comportamento ganharam, aos quatro anos, mais funções executivas e
autorregulação" - que são nossa capacidade de nos mantermos centrados diante de um problema, em
vez de reagir de forma explosiva e violenta.
"Pais que usam a pressão e a autoridade para restringir o comportamento do filho podem obter a
obediência no curto prazo, mas, no longo, estão criando condições para baixa autorregulação (da
criança), produzindo adultos que podem ter sérios problemas de autocontrole", diz a médica.
Além disso, ordens diretas e curtas como "sente", "fique quieto" e "não faça isso" são, segundo
Suskind, "o método menos eficiente de construir conexões cerebrais, porque exigem nenhuma ou
pouca resposta de linguagem".
Talvez seja mais eficiente, em vez de dizer apenas "coloque seus sapatos", explicar o que está por
trás do pedido e a relação entre causa e efeito das coisas: "É hora de ir à escola, então é bom colocar
os sapatos para manter os pés secos e quentinhos. Por favor, vá buscá-los".
Mais um exemplo: O pai ou a mãe, com as melhores das intenções, senta no chão ao lado da criança
com um livro infantil nas mãos. Mas a criança não presta atenção e continua a brincar com seu
brinquedo, esnobando o adulto.
Que tal então, em vez de impor a leitura do livro, entrar na brincadeira da criança e conversar a
respeito dela?
"Os pais aprendem a tomar consciência do que o que os filhos estão fazendo e se tornam parte disso,
ajudando a desenvolver a habilidade praticada na brincadeira e, por meio da interação verbal, o
cérebro infantil", escreve a médica.
Entrar em sintonia também envolve, segundo ela, aproveitar todas as oportunidades para ler e cantar
com a criança - ou mesmo falar com aquela voz infantilizada que muitos de nós usamos com bebês.
"Aquela voz em tom cantado é um rico nutriente para o cérebro do bebê, porque ajuda-o a entender
os sons das palavras", explica Suskind.
Aqui, mais um alerta: um jeito fácil de perder essa sintonia com crianças e bebês é deixar-se distrair
pelo celular durante a brincadeira.
"Smartphones estão tomando o lugar da interação pessoal com os bebês e as crianças", critica a
médica.
"Só quando a criança é o foco principal dos pais que ocorrerá a atenção necessária para o
desenvolvimento cerebral ideal", conclui