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2, 2018 2
EDITORIAL 4
DOSSIÊ “ISLAMISMO”
INSURREIÇÃO, E DEPOIS? 74
Ernst Lohoff
DE MOSCOU A MOSSUL 78
Lothar Galow-Bergemann
DESGRAÇADAMENTE MODERNO 82
Por que o islamismo não pode ser explicado através da religião
Norbert Trenkle
OUTROS ARTIGOS
RESENHAS
CE CAUCHEMAR QUI N’EN FINIT PAS
Editorial
década, para movimentos como o MST que, como o PT, foi uma senhora
experiência (também em vias de extinção) de reação ativa das massas à crise
em curso. O que pretendo com este raciocínio é mostrar que, na dinâmica de
desmoronamento de uma sociedade, as modalidades de reação e resistência se
modificam, assim como sua composição social, apesar de se apresentarem com
definições e autocompreensões antiquadas - como, por exemplo, o conceito de
consciência de classe, que quase nada explica do que há de novo neste processo.
Devo lembrar que uma reação não é, necessariamente, um movimento
consciente. Apesar de PT e MST terem surgido na mesma conjuntura histórica,
ninguém nos anos 1980 poderia imaginar que o MST teria a projeção que teve
desde 1997, assim como, ninguém teria imaginado a retração que a CUT vive hoje.
O que explicaria tal fenômeno, no meu entendimento, são os diferentes
momentos do colapso do capitalismo e as formas 'reativas' organizadas que por
acaso podem se produzir. Enquanto uma revolução era, em muitos sentidos, um
processo reflexivo - como pode ser demonstrado, por exemplo, pela relação entre
o Iluminismo e a Revolução de 1789 -, estas reações de massa de hoje constituem
um frágil fio de negatividade, por serem essencialmente movimentos de
sobrevivência que respondem inconscientemente a uma mudança brusca das
suas condições de vida, que passam a ser inviabilizadas pelo agravamento da
crise. Quando finalmente Lula venceu as eleições presidenciais em 2002, não
havia nenhum acenso do movimento de massas, apenas o desastre de uma
década de contínuas e absurdas regressões produzidas por políticas neoliberais -
que, aliás, também são uma mera reação à crise, esta, da parte do capital. Pelo
visto, não há necessidade de insistir muito que nestes tempos andamos às cegas
entre uma reação e outra, apenas com sinais trocados, mesmo porque, esta
insistência não seria nada original e o leitor faria melhor ao recorrer à impactante
imagem que Saramago produziu num de seus romances na metade dos anos
1990. Da minha parte restaria perguntar: o que esperar de Lula e do PT no
governo, ao terem esta história e ao terem chegado ao poder numa conjuntura
com estas tonalidades catastróficas? Talvez nada além de um governo de salvação
nacional. E mesmo esta intenção somente foi salva, literalmente, por causa de
uma dessas reações do capital, que Kurz chamava de fugas para frente, que são as
bolhas especulativas. Entre 2003 e 2008 a economia brasileira - profundamente
arruinada depois de duas décadas de crise sem saída - viveu um estranho
processo de reanimação (artificial) que coincidiu com o primeiro 'trabalhador na
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Esta análise parte de algumas proposições que alguns autores da - esta também,
agora, extinta - tradição crítica brasileira elaboraram para entender o país pós-
1964. Roberto Schwarz, por exemplo, pensou o golpe militar como parte da
dinâmica - obviamente contraditória - do capital e suas determinações impostas
via mercado mundial, às quais estamos umbilicalmente ligados. Num livro de
ensaios dos anos 1980 (Que horas são?) ele já se perguntava se fazia algum
sentido pensarmos a dinâmica mundial e local do capital como um movimento
ainda dotado de força progressista - aquela mesma que um marxista tradicional
conceberia como etapa necessária para se chegar ao socialismo. Quando Schwarz
se deparou com O colapso da modernização de Robert Kurz, penso que o tema,
tão caro às nossas ilusões objetivadas, do desenvolvimento da periferia do
capitalismo, que deveria um dia nos impulsionar ao emparelhamento com os
países avançados, ganhou a confirmação do que ele já andava escrevendo e
intuindo. Em termos mais claros, poderia se dizer que a dialética do
desenvolvimento desigual e combinado que, como dizia Trotsky, funcionava
como 'um acoite para as nações atrasadas', empurrando-as para frente, estava -
como dinâmica do capital mundializado - encerrada. Veja, isto não significa
nenhuma abolição das desigualdades entre nações, antes o contrário. Com isso,
digo apenas que a força viva que se produzia como um bloco histórico do
progresso, dos direitos assegurados e da formação de uma nação com critérios
básicos de civilidade - mesmo que medida pelos padrões da sociedade burguesa -
se esgotou como 'horizonte de expectativas' (Paulo Arantes), perdendo sua
capacidade de atração e organização de, para falar em termos do passado, um
projeto nacional. Esta mudança está relacionada com o conceito de crise que Kurz
(e os grupos Exit e Krisis) elaborou. Para ficar numa expressão sintética, podemos
tomar a definição desta crise como o resultado do limite absoluto da lógica
interna do capital. Este limite já estava em curso nos anos 1960 e tornou-se
incontornável nos anos 1970 - por isso, este tempo da história do capitalismo tem
sido o de uma crise sem fim. Não será difícil perceber que como um todo, a
modernização está fracassada no mundo inteiro. Ela não é um background da
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A PEC 241 é a regulamentação do acesso aos botes salva vidas. Como não há botes
para todos, ela pretende definir quem se salva e quem morre afogado - algo
semelhante ao que ocorre com os navios precários de imigrantes africanos que
naufragam semana sim semana não no Mediterrâneo. Isso será o que você
chamou de 'novas formas de gestão da barbárie'. O que vale a pena perceber é a
ideia geral da lei proposta - lembrando que lei é uma medida, um metrum
regulador das práticas sociais. Nas atuais condições da crise do capitalismo,
prever gastos por 20 anos é um monumento à imbecilidade - seus propositores
fazem de tudo para o merecer. Este nível de previsibilidade é impossível, muito
provavelmente os valores absolutos das verbas agora congeladas serão
insustentáveis daqui há poucos anos, pela razão inversa do que se imagina, ou
seja, simplesmente porque a crise terá quebrado o governo federal. Nem estes
valores ele será capaz de honrar. Desse modo, poderíamos fazer uma pergunta:
se isso que digo é um segredo de Polichinelo, pois qualquer operador bisonho de
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corretora de bolsa de valores o sabe, por que insistir numa lei tão absurda - com
todo o confronto social e desgaste que ela produz? A questão talvez esteja no que
anda oculto na sua pretensão. Ela deve induzir uma ampla regressão como nova
base do que alguns teóricos clássicos um dia chamaram de contrato social. Nas
justificativas da lei se pode ler que seu objetivo é daqui a 20 anos (2036)
voltarmos à situação fiscal de 2004. Não será difícil conseguir bronze para a forja
do monumento. Qualquer um pode entender que se trata de grandezas
absolutamente antagônicas: a população do país em 2036 será maior, e não igual
a de 2004. Mesmo hoje o país já não caberia neste orçamento - metrum. Mais
pessoas, menos dinheiro... Há, no entanto, uma premonição nisso tudo. Ela é o
sentimento inverso do que um dia foi produzido pelo 'desenvolvimento desigual
e combinado'. Este, como sabemos, era uma ilusão objetivada em torno da qual
se formavam blocos históricos progressista que formulavam medidas de nação
em que todos indivíduos deveriam caber. Agora, o bloco histórico da crueldade
(Paulo Arantes) se forma em cima do mais deslavado darwinismo social - a lei da
selva legitimando a seleção dos mais fortes economicamente diante do
extermínio dos mais fracos. Em outras palavras, a frieza de como se pisa sobre
cadáveres para entrar num bote salva vidas em pleno naufrágio - e esta é apenas
a medida da desumanalidade que 'cimenta' as práticas competitivas que são
necessárias para se levar adiante o capitalismo. Barbárie. E isto não é um adjetivo
ou recurso retórico, mas o conceito apropriado para explicar a tentativa de
estabilização desta sociedade (em desmoronamento) num tempo em que o
conteúdo social já não pode mais se realizar por meio desta forma social. É o
extermínio em massa de seres humanos que sobram segundo a lógica de uma
sociedade produtora de mercadorias em crise estrutural - e, desde a experiência
dos campos de concentração e das bombas atômicas, para esta sociedade
governada por uma espécie de 'sujeito automático' (cego), não há limites
destrutivos, mas apenas novas modalidades de destruição.
Não sei. Por certo você concorda com Postone quando este chama o marxismo
'que temos hoje' de marxismo tradicional. A capacidade crítica que dele um dia
irradiou se extinguiu. A razão de tal feito, como já comentei acima, era o limite da
própria crítica. Ela não se opunha ao modo de produção e ao 'meio cego da forma
valor', mas apenas à injustiça da distribuição. Claro, num tempo em que o
desemprego é estrutural, e a maioria da humanidade vive em cidades cuja única
política consistente de produção de moradias é a favelização (Davis), reclamar
por um pedaço de pão e um buraco para morar, sem se esquecer do direito a um
sacrifício diário assalariado, tem a força de nos deixar diante da soleira do
impossível. Mas pão e manteiga para todos é um acontecimento impossível no
capitalismo, por isso, não há impulso capaz do salto que você sugere. A própria
realização da ideia da troca justa é logicamente incompatível com um regime
fundado na concorrência. Uma ilusão, mesmo que generosa. Tem sido muito
difícil explicar isto, mas não existe outro caminho senão explicar. Em algum
momento, práticas que não sejam parte do problema, como o são estas que
comumente a esquerda tradicional propõe diante do aprofundamento da crise (a
gestão da barbárie, por exemplo), talvez se tornem viáveis - e isso pode
representar que para muitos ficou possível decifrar o monstro: ou produzimos
outras formas de sociabilidade, não mediadas pela mercadoria e o dinheiro ou...
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A que temas específicos você tem se dedicado nos últimos anos em sua
pesquisa e que campos novos de crítica se abrirão para quem quiser
contribuir para a crítica social responsável?
Anda muito difícil a produção de uma teoria crítica hoje. Em geral, a teoria foi
capturada pela indústria cultural, com seus eventos, instituições (como
universidades, revistas) e personalidades narcísicas que pouco agregam etc. Além
disso, a crítica não goza de muito respeito entre nossos pares teóricos. Uma
hipótese para isso pode ser que, pelo fato de na atual situação histórica a
produção do negativo precisar ser radical e sem tréguas, isso possa parecer algo
irresponsável. Contudo, a crítica que não abala certezas e não tem a contundência
de um martelo demolidor não faz sequer cócegas ao estado de coisas calamitoso
em que ingressamos. Ela não pode ter qualquer responsabilidade com a
sustentação desta ordem se quiser ajudar a mantermos alguma esperança de que
haverá futuro.
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Marcos Barreira
Esse modo de ver as coisas faz parte de uma visão enganosa e cheia de
simplificações que a esquerda construiu a respeito de si mesma e do seu papel
histórico. Tal ideia é facilmente desmentida em dois aspectos: primeiro, o
conservadorismo da sociedade brasileira não é uma “onda”, pelo menos não no
sentido de uma simples agitação momentânea, e sim um dado estrutural da nossa
ordem social; em segundo lugar, a “Era Lula” foi um fenômeno “pós-ideológico”
(i.e., uma forma pragmática de gestão que pretendia ultrapassar os conflitos do
período de consolidação da modernidade) de adequação cada vez maior de
partidos e movimentos de esquerda ao sistema político vigente. Para funcionar, o
modelo de crescimento com inclusão adotado pelos governos de Lula e Dilma
dependia da ampliação da ordem conservadora, especialmente da sua estrutura
social e econômica, não de uma transformação em larga escala; eram
transformações na ordem, não dá ordem conservadora.1 Se a década de 1990
ainda foi marcada por processos de mobilização popular – luta pela terra, pela
moradia, contra as privatizações etc., os anos de hegemonia “lulista”, nos quais a
política continuou a ser tutelada pelo poder econômico, os movimentos de
2 Com instituições de ensino privadas usando dinheiro público para fomentar a retórica
empresarial.
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Até o mais distraído dos observadores é capaz de notar que tais padrões de
comportamento e visões de mundo estimuladas pelo efêmero boom de
crescimento não podiam romper com a ordem conservadora, nem apontavam
qualquer perspectiva de mudança social – a não ser aquela promovida pelo
próprio mercado. Tratava-se não de reforma ou “mudança”, mas de reafirmação
– em parte, uma aceleração - de tendências sociais regressivas que estavam em
curso bem antes de 2002. Não cabe, portanto, apontar uma contradição entre o
crescimento econômico com redução da pobreza e a “vocação conservadora” do
país, como fez, por exemplo, um porta-voz do lulismo.3 Foi por meio da
reprodução do sistema político, da estrutura econômica concentradora e da
ideologia de mercado que se construiu o modelo de crescimento e de integração
das camadas de baixa renda.
5 “Enquanto o PT perdia os eleitores das faixas de renda média, suas bases sociais não se
renovavam. Ao contrário, os segmentos diretamente assistidos pelo Estado ou
assalariados de baixa renda que ampliaram sua capacidade de consumo nunca se
identificaram com o projeto político do PT – ou de qualquer outro partido. No plano
dos valores, a maior parte dessa massa é conservadora e abertamente hostil à agenda
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Consequência, 2017.
8 Não por acaso, o “Bolsa Família” foi definido por dois de seus defensores como um
Ernst Lohoff
É certo que nesse tempo as fortes ondas geradas pela “guerra das
caricaturas”1 se assentaram, e também a discussão sobre a introdução dos testes
de cidadania para islâmicos evanesceu2; tendo em vista a agudização do conflito
entre Israel e o Hizbollah e a miséria sem fim do Iraque em decomposição, a luta
contra as correntes islamistas e antiocidentalistas no momento parece, a
princípio, um problema de "política externa" dos Estados Unidos e de Israel, e a
sua função política identitária mais uma vez recua ao pano de fundo; mas isso
sempre pode mudar abruptamente. A sociedade mundial está no limiar de uma
catástrofe climática global de consequências imprevisíveis, não apenas no sentido
meteorológico, mas também ideológico e de política identitária.
princípio essenciais. Essa fuga ameaça tornar-se uma bola de neve, que pode
influenciar decisivamente o desenvolvimento da crise. No que concerne aos
centros ocidentais, o antagonismo com o “Islã” tem um papel chave. O
enfrentamento da questão islamista atualiza e revive exatamente aquela projeção
no “judaísmo” como objeto do ódio, que se alojou profundamente no
autoentendimento coletivo do inimigo forjado no Ocidente.
3 “Não existe essa coisa chamada ‘sociedade’. Existem homens e mulheres individuais, e
existem famílias”. Em inglês no original. (N. T.)
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Culturalismo antiocidental
A inimizade une
moderna.
A vilanização do Islã ganha contornos internos cada vez mais claros. Isso
se choca contra o grande ceticismo em relação à chamada cruzada democrática
"contra o terror" no Iraque e na "velha Europa". Por um lado, a perspectiva de
uma guerra civil mundial compreensivelmente provoca mais medo do que
entusiasmo por parte daqueles que ainda não perderam o juízo. Por outro, outra
6 Necla Kelek: socióloga alemã nascida na Turquia, conhecida por suas posições críticas
em relação ao Islã. (N. T.)
7 Profecia que se autorrealiza. Em inglês no original. (N. T.)
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Um conflito intracultural
vigor.
A emancipação é anticulturalista
Hoje tem lugar em amplas frentes uma reversão. A visão culturalista está
Mas também a parte majoritária da esquerda, que evita esse tipo horrível
de tomada de partido e pratica a equidistância e a neutralidade, de forma alguma
fica de fora do movimento de culturalização. De um lado, não apenas aqui e
independentemente de uma "guerra contra o terror", o limite entre a esquerda e
o anticapitalismo, de um lado, e uma difundida má vontade antiamericana, de
outro, é bastante permeável. Frente a esse pano de fundo acabou por se
naturalizar o mal-entendido de que os programas de assassinato e suicídio das
elites modernizadoras fanáticas pela morte seriam um suspiro maligno, mas de
qualquer forma compreensível, das massas humilhadas e insultadas do mundo
islâmico. O que se apresenta oficialmente como neutralidade e equidistância
frequentemente tem um programa bastante claro.
Quem pensa que a onda etnicista perderá força e que outros “temas”
voltarão ao centro da conjuntura, pode esperar sentado. Acabou-se o tempo no
qual o culturalismo era um fenômeno mundial localizado na periferia do mercado
global, do qual o centro capitalista não se envolvia. Querendo ou não, a esquerda
europeia se encontra em uma constelação histórica diferente. Uma perspectiva
de esquerda hoje só pode ser formulada em contraposição à visão de uma guerra
civil mundial em constante latência, como um contraprograma político
claramente anti-identitário, em oposição à fabricação de definições culturalistas.
Se a esquerda europeia não tomar essa nova orientação, ela perderá não
apenas a sua legitimidade, mas também o seu fundamento existencial.
http://jungle-world.com/artikel/2006/39/18275.html ]
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Karl-Heinz Lewed
3 É claro que o universalismo da igualdade perante a lei colapsa diante das estruturas
fundamentais de poder patriarcal das relações sociais modernas, que são inerentes à
forma burguesa e se tornam explícitas no fundamentalismo islâmico.
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se, no sentido mais amplo, a “vontade do povo” não é sempre propriamente separada
das formas explícitas do exercício do poder.
10 Karl Marx, Grundrisse, São Paulo, Boitempo, 2011, p. 188-189.
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11 Marx, O Capital, Livro I. São Paulo: Abril/Nova Cultural, Ed. Os economistas, p. 145.
12 Sieyès deixa claro no debate sobre a Declaração que o núcleo da constituição burguesa
reside precisamente nas relações de todos os cidadão dotados de livre arbítrio com a
sua respectiva propriedade privada: “Se fôssemos escrever uma declaração para um
novo povo... quatro palavras seriam suficientes: igualdade de direitos civis, isto é,
proteção equivalente da propriedade e da liberdade de cada cidadão; igualdade de
direitos políticos, isto é, a mesma influência na formulação da lei” (citado em
Menschenrechte iv).
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13 Mais sobre o tema em: Peter Klein, A essência do Direito. Krisis 24, p. 51-64.
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15 Essa ilustração da forma abstrata de Lei na forma feminina da Senhora Justiça é tanto
um eufemismo quanto a expressão da projeção burguesa patriarcal. O Porteiro de Kafka
mostra vividamente essa projeção androcêntrica e como a forma legal moderna
representa uma relação totalmente objetiva e insensível de violência e uma relação
insanamente racional marcada pela compulsão. Para as unidades individuais, a lei
como coesão geral do poder abstrato significa tanta a inclusão sob o encantamento da
forma legal e a impossibilidade e exclusão de ligações sociais diretas e formadas
conscientemente. A neutralidade também pode ser encontrada em Kafka, mas na
exclusão generalizada da autoridade da lei concebida como neutra.
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18Assim, a pátria-mãe dos direitos do homem e dos direitos civis criou uma base legal
especial para os nove milhões de habitantes da Argélia de crença muçulmana, o código
dos nativos. Apenas em 1944 de Gaulle o revogou oficialmente, sem as relações reais
melhorassem consideravelmente. (Ver Bernhard Schmid, Algerien – Frontstaat im
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19 Eckart Wörtz, “Die Krise der Arbeitsgesellschaft als Krise von Gewerkschaften: Die
unabhängige Gewerkschaftsbewegung in Ägypten” (Diss. Friedrich-Alexander-
Universität Erlangen-Nürnberg, 1991, p. 84).
20 Os enormes lucros que ela (referência à “burguesia nacional”; K. L) acumulou com a
exploração da população foram exportados para outros países... Ela se negou a investir
no território nacional, e mostrou notável ingratidão em relação ao Estado que a protegia
e nutria... Uma burguesia, como a que podia se desenvolver na Europa, com o aumento
do seu poder, podia criar uma ideologia. Essa burguesia dinâmica, ilustrada e laica
efetivou plenamente a acululação de capital e contribui minimamente para o bem-estar
da nação. Nos países subdesenvolvidos não havia uma verdadeira burguesia, mas
apenas uma pequena casta de dentes afiados, gananciosa e insaciável, que era
dominada pelo espírito dos pequenos ganhos e se contentava com os dividendos que
asseguravam o seu poder colonial anterior. Essa burguesia de visão curta mostra que
ela é incapaz de ter grandes ideias e de ter espírito inventivo” (Fanon, p. 148-ss.)
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ampliação da dívida pública. Ainda mais grave, no entanto, é que o objetivo geral,
a produção industrial autossuficiente, falhou nos seus próprios termos. Além da
liderança incontestável em produtividade dos centros industriais desempenhar
um papel central, o mais importante foi a contradição entre a tentativa de
construir um sistema de produção complexo e diferenciado sob os princípios do
planejamento burocrático central. A pesada economia de comando era
estruturalmente incapaz de organizar processos de fabricação flexíveis, como os
que são criados quase automaticamente nas condições de concorrência capitalista
sob os ditames do mercado. No geral, portanto, o regime de modernização
enredou-se em contradições estruturais que finalmente derrubaram a política de
industrialização nacional-estatista na crise.
22 Gilles Kepel, Das Schwarzbuch des Dschihad. Aufstieg und Niedergang des
Islamismus (München: Piper, 2002, p. 28 e ss.).
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32 ibid., p. 51.
33 Schmid, 2005, p. 89.
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38 ibid.
39 Bin Laden am 30.10.2004, citado por Kepel/Milelli 2006, p. 129
40 Kepel/Milelli 2006, p. 132
41 Kepel/Milelli 2006, p. 133
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velhas tradições... por exemplo, contra todos os ‘cultos santos’, como o ‘Ziarat’ na
Ásia central ou Moussem no norte da África, uma peregrinação religiosa que atrai
pessoas para orar na tumba dos santos locais.48 As comunidades pré-modernas
eram – também no que se refere à sua práxis religiosa – o oposto de uma
padronização estrita das relações sociais em leis gerais. O islã tradicional integrou
uma variedade de momentos pré-islâmicos, como o antigo culto egípcio dos
mortos. Para o islamismo, tais adaptações da religiosidade pré-islâmica e de
práticas religiosas diversas foram sempre uma monstruosidade. 49 Sua
perspectiva de um reino da lei eterna exige a construção de uma base uniforme
para todos os muçulmanos e, portanto, inclui a tarefa de acabar com a diversidade
da vida religiosa e cultural. Nas condições pré-modernas, era algo impensável
orientar a realidade social a partir de um princípio legal em geral, i.e., político.
Mas a natureza moderna do islamismo aponta justamente para isso. Enquanto os
regimes seculares de modernização deslocavam as relações sociais tradicionais
em favor de um sistema de mediação social abstrato, os islâmicos seguem fazendo
isso sob a bandeira da “lei eterna”. Sua luta não é dirigida apenas contra o regime
nacional e seus “aliados ocidentais”, mas igualmente contra as estruturas sociais
cultural-religiosas tradicionais. De acordo com o islamismo, todos eles são
cúmplices no estado de miséria em que se encontram os países “islâmicos”. A
resistência contra o colonialismo, entendido como a dominação pelo regime
nacional, está ligada à luta contra os remanescentes culturais da tradição
islâmica, na medida em que ambos teriam tido responsabilidade pelo declínio
social da ordem “islâmica”.50 Essa idéia parte principalmente do pensador egípcio
já mencionado, Sayyid Qutb, que faz o empobrecimento e a desintegração social
remontarem ao fato de a sociedade “islâmica” estar abandonando a prática social
e religiosa verdadeira: a referência a um único princípio, dado pela lei divina. As
diversas e heterogêneas heranças religiosas existentes nos países “islâmicos”
aparecem para eles como equivalentes da apostasia da forma individualista de
legalidade, que marca a vida depravada e dissoluta do Ocidente decadente.
A esse respeito, os islâmicos proclamam a identidade, desacreditada no
Ocidente, de religião e política, não para deter o desenvolvimento do islã numa
“Aqui se toca o ponto cego por excelência do imaginário politico revolucionário: pensar
a representação de toda impossibilidade” (Gauchet, op. cit., p. 23). Quando esse
imaginário político não pode ser pensado, essa formulação deve ser combatida, para
que a realidade seja atingida em forma não familiar.
53 Apud Gauchet 1991, p. 26.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 68
1991: lá o então sindicato único havia chamado uma greve geral, em protesto contra a
crescente pobreza e por maiores salários. A reação da direção do FIS – eles possuíam
então a maioria entre as autoridades locais – foi um chamado ao boicote da greve, com
a indicação de que se tratava apenas de uma tática “reformista” e “modernizadora” (ver
Schmid, p. 162).
57 Roy, 2006, p. 84.
58 Schmid 2005, p. 122.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 70
Teoria da conspiração
Conclusão
BIBLIOGRAFIA
Insurreição, e depois?
Aos protestos em todo o mundo falta uma só ideia, onde pode ser procurada
uma alternativa social
Ernst Lohoff
As ruas e praças das grandes cidades desse mundo há dois anos e meio não
pertencem como antes apenas à circulação de mercadorias, ao consumo e ao
turismo. Desde a chamada Revolução de Jasmim, na Tunísia, no final de 2010 e
início de 2011, foram impulsionadas, em um país após o outro, centenas de
milhares de pessoas para os protestos em massa nas ruas.
À primeira vista os movimentos parecem ter pouco em comum. Já nas
ocasiões em que os protestos inflamaram, cada um não podia ser mais diferente.
Os protestos na Tunísia se dirigiram contra o governo autoritário e corrupto que
surgiu do antigo movimento de libertação nacional, e da mesma maneira os
Indignados não vão aceitar que o governo da Espanha, em obediência antecipada
à chamada “Troika”, formada pela Comissão Europeia, Banco Central Europeu e
o Fundo Monetário Internacional, sacrifique as perspectivas de vida de toda uma
geração de sua política de austeridade mortal. No Brasil, por outro lado, uma
Copa do Mundo com custos elevados fez o barril transbordar.
Os países afetados também não poderiam ser mais diferentes. No começo
de 2011, no Egito, a agitação na Praça Tahrir derrubou o governo autocrático de
Mubarak. Meses depois, os protestos de massa contra o aumento dos custos de
vida em Israel abalaram as fundações de uma estabelecida democracia
parlamentarista; e depois de uma queda total e violenta da economia, a Grécia
vivenciou repetidos protestos, e rapidamente na vizinha Turquia, país do boom
econômico, milhões de pessoas foram às ruas contra o governo eleito.
No entanto, há semelhanças marcantes entre esses movimentos. Todos
foram provocados pela subordinação cada vez mais cruel de toda a vida aos
imperativos da valorização do valor, que encontra a sua expressão política em um
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 75
[Original: http://www.krisis.org/2013/empoerung-und-dann/
De Moscou a Mossul
Jihadistas são fascistas. Um Antifa, se não quiser abrir mão de suas exigências,
tem que se opor tanto aos jihadistas quanto aos neonazistas.
Lothar Galow-Bergemann
acontece nas estradas alemãs: “nós os matamos no Iraque, nós os matamos aqui
também!” – vociferava-se abertamente contra os Yazidis em Herford. Nos
comícios de massa dos simpatizantes do Hamas se exige “morte aos judeus!” E a
polícia os libera quando estão sem alto-falantes, como ocorreu em Frankfurt.
Pode um movimento antifascista silenciar diante de tudo isso? O problema não
pode mais ser resolvido apenas com debates teóricos. Antifascismo significa
liberdade e proteção para minorias e indivíduos, seja contra a repressão estatal,
seja contra “o povo”. E turba continua sendo turba, pouco importa se tem avós da
Suábia ou da Anatólia. Um movimento antifascista que leve a sério suas próprias
exigências também deve incluir os jihadistas.
É notável que precisamente as pessoas que inflacionam o uso do conceito
de fascismo e que rapidamente chamam de fascista tudo que não podem tolerar
– às vezes a polícia, às vezes os Estados Unidos e, é claro, sempre Israel –, nem
em sonhos pensam em denominar desse modo os salafistas, o Estados Islâmico
ou o Hamas. Todavia, tanto sua ideologia como sua prática bárbara falam por si.
Liberdade e direitos democráticos, autodeterminação sexual, liberdade das
mulheres, luta contra a homofobia? A esquerda deve estar obrigatoriamente
comprometida com todos esses objetivos. As práticas jihadistas opõe-se
precisamente a elas. É “terrorismo aberto” – para usar as palavras de Dimitrov.
Atribuir um caráter fascista ao “Islã” seria também recair no fascismo: essa
é uma das estúpidas desculpas da esquerda reacionária, que fica assim contra a
parede. Como se o a crítica do fascismo clerical cristão tivesse sido tratada dessa
forma alguma vez. No entanto, quem pensa que fascismo tem a ver com as
intenções dos poderosos super-ricos, deveria, conforme sua própria lógica, lidar
com os dirigentes do Irã ou do “Estado Islâmico” e seus enormes meios
financeiros. Nem uma palavra, porém. A razão de a esquerda reacionária tratar
os jihadistas com tantos cuidados reside no considerável cruzamento de suas
visões de mundo: desprezo pelas liberdades democrático-burguesas,
anticapitalismo personificado, ressentimento antiocidental, ódio ao Estado
judaico, fantasias conspiratórias ao invés de análise crítica. Desde que o
stalinismo perseguiu sionistas reais ou imaginários, a ideia de que antifascistas
não podem ser antissemitas pertence ao reino das lendas com as quais a esquerda
reacionária mistura mentiras com sua visão simplória do mundo. E quem se
mostra hoje contra os nazistas e amanhã contra Israel, se comporta como aquele
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Desgraçadamente moderno
Por que o islamismo não pode ser explicado através da religião
Esse impulso à identificação com um sujeito coletivo não é nada novo. Ele
pertence ao aparato básico do indivíduo moderno, formatado para a sociedade da
mercadoria, e acompanha a história da modernização desde o começo do século
XIX. Isso não pode passar por surpreendente. Pois a imposição de atuar
socialmente como sujeito particular isolado, sempre atento à realização de seus
interesses privados, considerando os demais membros da sociedade, em última
instância, apenas como instrumentos para alcançar esse objetivo, essa imposição
produz a necessidade urgente de uma comunidade imaginária, na qual essa
individualização e instrumentalização mútua é aparentemente superada. Essa
identificação com um “grande sujeito” apazigua, ao mesmo tempo, o sentimento
de impotência diante do próprio contexto social, que confronta o indivíduo como
agregado compulsório coisificado, pois ela oferece a superfície de projeção ideal
para fantasias compensatórias de onipotência. Aqui estão em primeiro lugar, ao
longo da história de desenvolvimento capitalista, os clássicos “grandes sujeitos”
nação, povo e classe, e há bons três séculos, as comunidades religiosas - e de
Daí vem a pergunta que, tendo em vista o terror islâmico, deve ser
colocada. Ou seja, não o que isso tem a ver “o Islã”, mas por que, dentre todos os
“religionismos” que surgiram e cresceram nas últimas décadas, foi o islamismo
que tomou uma forma especialmente agressiva contra os valores ocidentais e
originou uma corrente terrorista tão forte. Mas essa pergunta só pode ser
respondida quando ela é arrancada do céu das especulações teológicas e trazida
a essa corrente: “A juventude admira os pregadores salafistas, pois eles não se deixam
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nenhum tipo de oportunidade, que de qualquer maneira não têm nada a perder.
A exclusão funciona de maneira muito mais sutil e é sentida como especialmente
ofensiva por aqueles que possuem os requisitos pessoais para vencer a
concorrência por uma sempre socialmente definida ascensão, mas sempre se
chocam contra limites não diretamente visíveis erguidos pela maioria social, que
exigem grande incômodo para serem superados. Algo semelhante ocorre nos
países do Oriente Próximo e do Oriente Médio, onde com frequência é
exatamente a classe média frustrada que se volta ao islamismo, porque suas
esperanças de ascensão social foram frustradas. Decisivo, portanto, não é se o
indivíduo se encontra em uma situação de “pobreza objetiva”, mas o sentimento
subjetivo de estar com os perdedores ou de ser ameaçado pelo rebaixamento
social. E esse medo, criado permanentemente pelo capitalismo sob as condições
do processo de crise global, é invocado em grande escala.
intimidar pela rejeição explícita que provocam. Pelo contrário: eles defendem
abertamente o seu ponto de vista e não se deixam calar”. O isolamento da geração
anterior tem um papel importante, pois eles se comportam, segundo a percepção dos
jovens, defensivamente em relação a uma situação de marginalização social e de
ascensão social bloqueada. O salafismo oferece aqui novamente a possibilidade de
passar à ofensiva, de conquistar poder de influência, e com isso superar
regressivamente o sentimento de impotência. Cf. Alevitische Gemeinde (2013).
9 Cf. Bierwirth (2005)
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aponte para a superação da lógica capitalista e da sua subjetividade cada vez mais
enlouquecida.
Bibliografia
1 Bernard Lewis. A crise do Islã: Guerra Santa e Terror Profano. Rio de Janeiro: Zahar,
2004, p. 13.
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2 Jon Lee Anderson, A queda de Bagdá. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 58.
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por ali foram surpreendidas pelo incêndio. Um general iraquiano ainda ordenou
que seus soldados afundassem os cabos dos geradores de uma usina hidrelétrica
da região nas águas do pântano, eletrocutando toda a vida em centenas de
quilômetros quadrados.3
A estratégia iraquiana era a de acumular vitórias por meio de terra arrasada. A
pequena cidade de Howeyzah, na província do Khuzistão iraniano, a cerca de 250
km da fronteira, foi tomada pelos iraquianos logo no início da guerra, em
setembro de 1980. Quando a ofensiva iraniana retomou a cidade, em maio de
1982, descobriu que dos 1900 edifícios que haviam na cidade só restavam dois
em pé, todo o resto estava destruído. Sequer a diferença étnica poderia explicar o
ódio: a destruição teve por alvo uma cidade de maioria árabe, com cerca de 35 mil
habitantes.
A conflagração assumia tons mais dramáticos porque muitos dos soldados
iraquianos eram xiitas lutando contra o exército xiita iraniano. A retomada das
cidades ocupadas pelos iranianos deixou muitas baixas entre iraquianos e o
transporte dos soldados caídos em guerra se tornou um problema para o governo:
em 1985, o governo iraquiano obrigou a todo taxista do país a buscar cadáveres
nas áreas militares e levá-los até Fallujah, onde galpões refrigerados mantinham
os corpos até a entrega aos parentes. Se não fizessem o transporte de um cadáver
pelos menos, os taxistas perdiam a licença.4
A guerra se tornou ainda mais grave quando o Iraque começou a fazer uso
sistemático de armas químicas. Inicialmente lançadas contra os soldados
iranianos na frente de batalha, as bombas logo começaram a ser utilizadas contra
a insurreição curda que se aproveitava da instabilidade provocada pela guerra
para conquistar a independência.5 Também houve relatos de ogivas com armas
químicas que foram lançadas nos centros urbanos iranianos pelos aviões
3 Robert Fisk. A grande guerra pela civilização: a conquista do Oriente Médio. São
Paulo: Editora Planeta, p. 301.
4 Ibidem, p. 396.
5 “Durante a chamada Operação Anfal, na segunda metade da década de 1980, o governo
6 Ibidem, 304.
7 “O relatório do comitê informava o Congresso dos Estados Unidos sobre os envios de
agentes biológicos que companhias norte-americanas faziam ao Iraque desde 1985 ou
antes, aprovados pelo governo. Esses envios incluíam Bacillus antracis – bactéria
causadora do antraz —, Clostridium botulinum, Histoplasma capsulatum, Brucella
melitensis, Clostridium perfringens e Escherichia coli (E. coli). O mesmo relatório
afirmava que ‘os Estados Unidos forneceram ao governo do Iraque material de ‘duplo
uso’ com suas licenças correspondentes, que ajudaram no desenvolvimento dos
programas químicos, biológicos e de sistema de mísseis, inclusive bases de produção
de agentes químicos para a guerra bacteriológica e projetos técnicos (fornecidos sob o
rótulo de projeto para a instalação de uma base de produção de pesticidas),
equipamento para a guerra bacteriológica” (Ibidem, 305).
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1988, os dois assinaram uma resolução da ONU que colocava um fim no conflito:
“Pobre de mim que continuo vivo”, teria dito o aiatolá Khomeini, diante da
pressão econômica para pôr um fim à guerra, “bebi do cálice envenenado da
resolução”.8
A fala de Khomeini foi premonitória, pois pouco menos de um ano depois
sua vida terminava e um imenso funeral tomou conta do país, mostrando a força
do islã fundamentalista e a vitória da revolução iraniana: a guerra serviu ainda
mais para consolidar o regime, pois tinha unificado o país em torno da defesa da
Pátria do Islã.9 A guerra Irã-Iraque seria a primeira demonstração que as táticas
dos países ocidentais contra o islamismo radicalizado acabariam por fortalecê-lo.
O Iraque de Saddam Hussein, com cidades fronteiriças devastadas,
endividado e com o peso de uma guerra que não havia resultado em nada, realizou
pouco tempo depois uma manobra miliar ocupando o Kuwait, tentando com isso
canalizar os problemas internos para um conflito externo. Os motivos variados
para justificar a invasão, desde à íntima ligação histórica entre os dois países
durante o Império Turco-Otomano, passando pela geopolítica (maior área para
acesso ao mar) e pelos conflitos econômicos no interior da OPEP (o Iraque
acusava o Kuwait de ultrapassar as cotas de exportação da organização e assim
afetar o preço do petróleo no mercado mundial) somou-se à dívida contraída com
aquele país, um dos seus principais financiadores durante a guerra Irã-Iraque.
A resposta dos EUA, com apoio inglês e legitimada pelas Nações Unidas, é
imediata: menos de cinco meses depois da anexação do Kuwait pelo governo de
Bagdá, os EUA dão início à operação Tempestade no Deserto (1991): os
bombardeios do território iraquiano com mísseis Tomahawk ganham a imprensa
internacional e uma campanha por terra começa a empurrar a força iraquiana de
volta a seu território. As forças norte-americanas, baseadas na Arábia Saudita,
rapidamente começaram a reverter a ocupação iraquiana, mas o regime de
Saddam respondeu com um tática de tentar estender o conflito, lançando misseis
Scud contra alvos em território saudita e israelense. O discurso do regime de
8 Ibidem, p. 389.
9 Durante o conflito, parte da classe média, que era então o grupo interno mais
ocidentalizado, fugiu do recrutamento e antigas figuras do governo, derrubadas pela
revolução, tinham se posicionado contra. Recaiu sobre esses grupos a pecha de
traidores da Pátria Islâmica, o que fortaleceu ainda mais o projeto revolucionário dos
aiatolás.
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Saddam Hussein apontava para o poder sionista crescente no Oriente Médio, com
apoio dos EUA, apelando então para o argumento antissemita, comum na região
desde a formação do Estado de Israel e a repressão aos palestinos. Também
utilizou pela primeira vez de modo sistemático o discurso islâmico takfirista
contra o poder saudita, argumentando sobre o caráter apóstata do regime naquele
país e o domínio ilegítimo das cidades sagradas dos muçulmanos.
A estratégia de Saddam foi um fracasso e em poucas semanas um cessar
fogo foi anunciado, logo após a expulsão das tropas iraquianas e de destruição de
bases em parte do seu território. Contudo, a denúncia da traição saudita aos
valores islâmicos seria abraçada logo por grupos jihadistas – em particular a Al-
Qaeda, em formação naquele momento depois da guerra contra os soviéticos no
Afeganistão. A utilização de áreas sagradas do Islã na Arábia Saudita por soldados
norte-americanos seria imperdoável, embora o financiamento saudita de grupos
jihadistas nunca tenha sido eliminado.10
A rápida ação de intervenção norte-americana foi discutida e o legado
posterior extremamente questionado. De um lado, as forças lideradas pelos EUA
tinham receio de uma invasão e destituição de Saddam Hussein, ainda um líder
extremamente popular em seu país e no Oriente Médio.11 Havia também o receio
de, em caso de invasão, fossem utilizadas contra as tropas americanas as armas
químicas e bacteriológicas fornecidas ao país. Por fim, a esperança dos governos
ocidentais foi depositada numa insurreição interna por parte de curdos ou xiitas.
Mas essa aposta foi um fiasco: embora fomentada e financiada pelo Ocidente,
assim como pelo Irã, a rebelião xiita varreu o Iraque nos meses seguintes ao
cessar-fogo — 14 das 18 províncias chegaram a ser controladas pelos rebeldes —,
mas a falta de apoio direto externo acabou favorecendo a resposta do governo,
que massacrou a rebelião e impôs um duro controle sobre os bairros da crença
irmão Fahd, se opôs à estreita aliança militar com os Estados Unidos durante a
Primeira Guerra do Golfo e havia indicado que uma negociação do Saddam Hussein
seria melhor para toda a região. Veja sobre isso: Morre Abdullah, o rei que quis
reformar a Arábia Saudita, BBC Brasil, 22 jan. 2015. Disponível em:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150122_rei_arabia_saudita_obit
uario_rb. Acesso abr. 2016.
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12 Rory Stewart, Acidentes de Trabalho: meu governo no Iraque. Rio de Janeiro: Record,
2008, p. 30.
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18“Muitos milhares de prisioneiros iraquianos voltavam a seus lares após dez anos de
fome nos campos de prisioneiros iranianos, e então descobriam que as sanções
apoiadas pelos Estados Unidos depois da guerra de 1991, da qual eles não haviam
“participado”, faziam com que suas famílias morressem de fome. Todo um furioso
exército de antigos prisioneiros cheios de ódio pelo Irã, por Saddam e pelos Estados
Unidos vivia na miséria e na pobreza do Iraque. Entre o barro e a areia, ele e os milhões
de iraquianos que evitavam tanto a prisão quanto a morte haviam aprendido a viver e
a morrer. Haviam aprendido a lutar. Sob a letal imaginação de seu ditador,
continuavam resistindo contra o Irã”. Robert Fisk. A grande guerra pela civilização,
op. cit., p. 393.
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20 Ibidem, p.36.
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Além disso, diante do temor que Saddam possuía de uma possível nova
insurgência xiita – que pudesse repetir de modo mais incisivo a insurreição de
1991 —, inúmeros abrigos subterrâneos foram criados pelo território iraquiano
(num deles Saddam seria descoberto em dezembro de 2003 pelas forças
americanas, meses depois de sua deposição). Também paióis foram espalhados
pelo país, caso fosse necessária uma ofensiva contrainsurgente: nesses depósitos,
armas, munição e material para explosivo serviriam para uma possível luta contra
forças que derrubassem o governo.21 Tudo isso, como se pode imaginar, ficou
disponível depois para os grupos jihadistas que lutaram contra a ocupação norte-
americana.
21 Ibidem, p. 34.
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que cortavam os desertos eram derrubadas para que sua sucata fosse vendida nos
ferros-velhos do Irã.22 Os mercados estavam vazios e as principais atividades
econômicas tentavam se restabelecer depois do cessar-fogo oficial, mas
enfrentavam a incerteza diante de um governo destituído e do desemprego
ampliado pelo conflito.
No centro da capital, a área administrativa que reunia prédios da
administração econômica, repartições governamentais e palácios de Saddam foi
alvo de ataques durante a invasão. Vazios depois da fuga das lideranças do
governo e com a destituição do regime, esses prédios passaram a ser ocupados
por sem-tetos, desempregados e desabrigados pelos bombardeios, assim como
virou local de instalação do governo de ocupação. Isso não deixou de gerar
conflitos, principalmente pela infiltração de criminosos e terroristas. Com a
escalada de violência em Bagdá, em poucos meses a autoridade provisória se viu
obrigada a erguer um imenso muro cercando a área administrativa central. A
chamada Green Zone virou o símbolo de que a administração americana não
tinha interesse em reconstrução do país, pelo contrário, virava as costas às
demandas da sociedade e se preocupava apenas em recuperar as atividades
relacionadas ao petróleo.23
Com o término oficial da guerra, a maior parte do exército iraquiano depôs
armas e ficou no aguardo das medidas anunciadas pelo novo governo. Entretanto,
a falta de decisão política por parte da coalização e o caos econômico provocaram,
durante quase todo o mês que se seguiu ao fim do conflito, uma onda de saques
às instituições públicas, ministérios, escolas, universidades e museus. Sequer
sobraram cadeiras e mesas em prédios públicos para que os membros da
administração de transição iniciassem os seus trabalhos. O Museu de Bagdá, um
dos mais importantes em relíquias pré-cristãs, sofreu um saque que levou quase
todo o seu acervo. O cálculo é que a pilhagem nas repartições representou um
prejuízo de 12 bilhões de dólares, algo comparável ao orçamento público do país
no ano anterior.24
O caos seria ampliado com a nomeação de Paul Bremer para chefe da autoridade
provisória em maio de 2003. Alinhado politicamente com os principais políticos
25“No Ocidente, a opinião dos comentaristas era de que as ações para desmobilizar o
Baath haviam sido excessivas – muito mais, diziam eles, do que na Alemanha ou no
Japão do pós-guerra – e que em decorrência disso havíamos demitido todos os
funcionários eficientes e criado inimizades desnecessárias” (Rory Stewart, Acidentes de
Trabalho, cit., p. 88-89).
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26“... o advento do reino de terror de al-Zarqawi no Iraque notabilizou-se por seu foco
em matar ou atormentar a maioria xiita da população do país; isto, ele acreditava,
criaria um estado de guerra civil que forçaria os sunitas a recuperarem seu poder e
prestígio perdidos em Bagdá e restauraram a glória de Nurar al-Din” (Weiss e Hassan,
Estado Islâmico, cit., 31).
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internacional. Aqui temos uma das diferenças que vão tornar gradativamente
mais autônoma e sem controle a célula de Al-Zarqawi e que culminará com o
rompimento: diferente do radical sectarismo de seus aliados no Iraque, a Al-
Qaeda era mais aberta a alianças temporárias visando o fortalecimento de lutas
futuras e tentando evitar erros de isolamento.27
A guerra civil instaurada levou rapidamente a uma piora ainda maior das
condições de vida iraquianas: uma ano após a ocupação, nas principais cidades
iraquianas a eletricidade só funcionava 2 ou 3 horas por dia. A água tinha
abastecimento regular em menos de metade da semana. O inverno se tornaria
mais frio por causa da falta de combustível para os aquecedores. Uma pesquisa
realizada pelo novo governo iraquiano, constituído em 2005, demonstrava que
mesmo pelos índices oficiais a sociedade iraquiana estava em franco colapso:
Ibidem, p. 64-65.
27
28Desemprego no Iraque chega a 50%, Terra, 12 maio 2005. Disponível em:
http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI531035-EI865,00-
Desemprego+no+Iraque+chega+a.html. Acesso abr. 2016.
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29 Weiss e Hassan, Estado Islâmico, cit., 31. Notícias posteriores, de pouca repercussão
na mídia internacional, apontaram para o uso sistemático de armas químicas por parte
do exército americano em Fallujah, principalmente um sucedâneo do “napalm”, o
fósforo branco, uma substância que queima de tal modo a pele que se utilizado de modo
rigoroso dissolve o corpo humano até atingir os ossos. Veja quanto a isso RAI: Exército
dos EUA usou armas químicas em ofensiva em Faluja, UOL, 08 nov. 2005. Disponível
em: http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2005/11/08/ult1808u52909.jhtm. Acesso
abr. 2016.
30 Documentário No End in Sight, cit..
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Eleito deputado em 2005, Nuri al-Maliki, um líder xiita que fazia oposição
do exterior ao governo de Saddam e havia retornado ao país após a sua deposição,
logo se tornaria um dos principais responsáveis pelo comitê de segurança do país.
Antes ele tinha participado da coalização como cabeça do comitê de
“desbaathificação” e, ao assumir o cargo de primeiro-ministro em abril de 2006,
iniciaria uma campanha de “revanchismo xiita”. Nos próximos anos, expurgos,
conspirações e prisões de lideranças políticas e religiosas sunitas levariam a uma
espécie de oficialização da guerra civil já existente nas ruas entre as variadas
milícias. Além disso, uma série de líderes ligados a grupos milicianos xiitas
patrocinados por Teerã, eleitos para o parlamento iraquiano nas eleições de 2005,
agora se tornavam parte do governo “reconstruído” pelos EUA. Entre eles se
destacava Abu Mahdi al-Muhandis, um antigo líder terrorista iraquiano que
fizeram carreira no Irã, atuando junto a Brigada al-Badr e que agora possuía uma
força independente que promovia combates nas ruas com as tropas de ocupação.
Em 1983, al-Muhandis foi identificado pela inteligência norte-americana como o
responsável por um atentado a bomba contra a embaixada dos EUA no Kuwait.31
A “democratização” promovida pelos Estados Unidos levava aos cargos de
governo e assentos parlamentares seus antigos inimigos.
32 Ibidem, p. 63. Mais significativo ainda para a história do Islã é que o governo xiita de
al-Maliki seria “o primeiro no mundo árabe desde que Saladino derrubou a Dinastia
Fatímida no Egito, em 1171”. (Patrick Cockburn, A Origem do Estado Islâmico: o
Fracasso da “Guerra ao Terror” e a Ascensão Jihadista. São Paulo: Autonomia
Literária, 2015, p. 137).
33 Weiss e Hassan, Estado Islâmico, cit., p. 88.
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34 Ibidem, p. 67.
35 The Fiction of Abu Omar al-Baghdadi, Threats Watch, 5 dez. 2007. Disponível em:
http://threatswatch.org/analysis/2007/12/the-fiction-of-abu-omar-albagh/. Acesso
abr. 2016.
36 Weiss e Hassan, Estado Islâmico, cit., p. 68, 87-88.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 121
O Estado Islâmico
entre sunistas e xiitas, a raiz baathista do ISIS o tornava herdeiro daquela fonte
violenta de rivalidade com os xiitas e ao mesmo tempo uma reposta às
atrocidades cometidas por estes ao assumir o poder com apoio norte-americano.
Cerca de 150 mil xiitas tinham sido mortos durante o governo do Partido Baath
— agora, a resposta desse grupo àqueles que tinham sido seus algozes durante
mais de duas décadas não economizava em violência e destruição. Com o
baathismo presente em suas fileiras — o que não era de modo algum estranho à
sua lógica, pois este tinha sido radicalizado com o wahabismo nos últimos anos
do regime de Saddam —, o Estado Islâmico representava agora uma resistência
simultânea ao revanchismo xiita, à “invasão iraniana” e ao imperialismo norte-
americano.
Essa peculiar linha de continuidade com o baathismo extirpado de seus
caracteres seculares é uma clara diferença do ISIS em relação à Al-Qaeda, pois no
momento em que se reorganizava, sob comando do novo al-Baghdadi, aos olhos
da antiga matriz a sua célula terrorista parecia uma “franquia fora de controle”.43
À medida em que se desligava das lideranças de Bin Laden e al-Zawahiri, o Estado
Islâmico baseava sua ação em conquista e domínio territorial, enraizando sua
estrutura administrativa e construindo uma fonte de financiamento. Além disso,
o Estado Islâmico oferecia uma rede de proteção ao imediatamente impedir
ataques às comunidades sunitas, impunha as leis islâmicas e reconstruía
minimamente as instituições públicas que haviam sido destruídas com o bloqueio
econômico ou com a guerra civil.44
Este último aspecto é significativo frente uma situação de “Estado falhado”
tal como se apresentava o Iraque depois de anos de destruição: o Estado Islâmico
conquistou progressivamente a importância e repercussão que assustou ao
mundo, não da noite para o dia, mas depois de uma década de contínua
preparação junto às comunidades sunitas onde reconstruía a infraestrutura
básica, fornecia serviços públicos de saneamento, distribuía alimentos para os
mais necessitados45 e até mesmo promovia a vacinação em sua base social. 46 Foi
43 Idem.
44 “O EI então se aproveita de temores populares a respeito da ausência da lei e ordem
oferecendo-se como a única alternativa para o colapso da sociedade. Como qualquer
governo, ele busca reter um monopólio da violência” (Ibidem, p. 211).
45 Ibidem, p. 153.
46 Segundo Loreta Napoleoni, entre outras medidas de “bem-estar”, o EI teria construído
contra o próprio Estado que havia constituído no Iraque.50 Com esse domínio de
áreas na Síria, o grupo se denomina agora ad-Dawlat al-Islāmiyah fī al-ʿIrāq wa
sh-Shām (Estado Islâmico no Iraque e no Levante), ou ISIS, como o define a sigla
em inglês (Islamic State of Iraq and Syria).
Em janeiro de 2014, mais uma escalada vitoriosa dos jihadistas do ISIS: a
cidade de Fallujah é tomada depois de uma década da grande batalha que chamou
a atenção do mundo. Nesse momento se reconhece internacionalmente a ameaça
assumida pelo Estado Islâmico. Cinco meses depois, com a ocupação da cidade
de Mossul pelos militantes, um arsenal militar expressivo, assim como as reservas
do Banco Central iraquiano, agora estavam sob controle do grupo terrorista que
há poucos anos parecia fadado à extinção.51 Com isso, uma considerável fração do
Iraque, incluindo as fronteiras com a Síria, assim como uma parte do território
norte deste país, se tornavam área de controle do Estado Islâmico. Nesse mesmo
mês, numa espécie de apresentação ao mundo, al-Baghdadi aparece em público
e se autodeclara o “califa” do Estado Islâmico, perdendo agora a denominação os
acréscimos geográficos (ad-Dawlat al-Islāmiyah), porque, sendo refundado o
Califado, todos os islâmicos a ele deveriam se sujeitar, sem a necessidade de
vínculo “nacional”, como prega a tradição.
Esse passo importante, e que simbolicamente teve uma repercussão
explosiva em todo o mundo, marca mais uma diferença clara com as práticas da
Al-Qaeda: embora suas pretensões finais, como a de todo grupo fundamentalista
islâmico, fosse a refundação do Califado, o grupo de Bin Laden nunca teve como
tática ou mesmo estratégia plasmar uma estrutural estatal. O ISIS não apenas
perseguiu isso desde sua reformulação, em meados da década anterior, como, ao
anunciar a sua concretização em 2014, podia agora elevar-se acima de todas as
outras milícias, células terroristas e grupos jihadistas islâmicos e demonstrar seu
54 Veja sobre isso o documentário ISIS British Women, dir. Poppy Begum (Inglaterra,
2015). Recrutadoras do ISIS trabalhavam em Londres e realizavam constantes
encontros onde discutiam a importância religiosa do Califado. O caso mais famoso das
“noivas do EI” é o de uma cantora britânica de punk rock, Sally Jones, que conheceu
um jihadista on-line e com ele se casou (Junaid Hussain, ISIS Recruiter. Reported
Killed in Airstrike, The New York Times, 27 ago. 2015. Disponível em:
http://www.nytimes.com/2015/08/28/world/middleeast/junaid-hussain-islamic-
state-recruiter-killed.html?_r=0. Acesso abr. 2016).
55 Anna Erelle, Na pele de uma jihadista: a história real de uma jornalista recrutada
combatentes. Além disso, 15 mil estrangeiros foram combater na guerra civil da Síria,
2.000 deles ocidentais. Nem todos, evidentemente, vão se juntar ao Estado Islâmico
(ISIS can 'muster' between 20,000 and 31,500 fighters, CIA says, CNN, 12 set. 2014.
Disponível em: http://edition.cnn.com/2014/09/11/world/meast/isis-syria-iraq/.
Acesso abr. 2016). Com o aparato de propaganda construído pelo grupo, é provável que
a maior parte integre as suas forças de combate: EI chega a divulgar mensagens em
treze línguas diferentes (Eric Fottorino (org.), Quem é o Estado Islâmico?, cit., p. 95).
Um vídeo de 2014 mostrava jihadistas de diversos países queimando seus passaportes,
demonstrando com isso a eliminação de qualquer vínculo com sua vida anterior e
nacionalidade (Patrick Cockburn, A Origem do Estado Islâmico, cit., p. 83).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 129
Prolegômenos metodológicos
3 ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. Rev. Márcio
Bilharinho Naves, Celso Naoto Kashiura Jr. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015,
p. 189.
4 Ibidem, p. 190.
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Mas como o objeto está inserido numa totalidade concreta, uma realidade
complexa que determina a maneira pelo qual o objeto é pensado, ele sofre as
determinações da estrutura que lhe sustém e do momento onde existe. Uma
existência concreta, mas que apenas é percebida pelo sujeito por meio do
pensamento: um concreto pensado. Mas esse concreto pensado apenas pode
surgir no pensamento por meio da abstração do concreto; ele é o resultado dessa
operação dialética. Essa abstração parte inicialmente da captura da aparência
(Scheinen) do objeto, já que ele não emerge, como destacamos com Kashiura Jr.,
como conceito (Begriff) efetivo, mas apenas como um “brilho” do que é, por uma
certeza sensível daquilo que pensamos ser.
10 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora: 2012, p. 59.
11 Ibidem, p. 61.
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13 Ibidem , p. 84.
14 MOTTA, Luiz Eduardo. A favor de Althusser: revolução e ruptura na teoria marxista.
1. ed. Rio de Janeiro: GRAMA; FAPERJ, 2014, p. 52, 53.
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Nesse sentido, o Direito como aquilo que é existe apenas como resultado
de contradições de um dado complexo de determinações onde há uma
sobredeterminação do econômico. E a modernidade é esse todo complexo que
marca suas notas distintivas; um bloco histórico que é inaugurado a partir da
acumulação primitiva do capital – a subsunção do trabalho ao capital.
Ora, no vol. I d’O Capital, Marx já havia mostrado como esse processo de
acumulação primitiva do capital insere a liberdade na sociabilidade humana,
entendida sob uma perspectiva dúplice: por um lado, há uma espoliação do
trabalho e das condições de vida do homem campestre e, por outro, a inserção do
homem enquanto mercadoria implicada na possibilidade de disposição de si
mesmo enquanto força de trabalho.16
A compreensão do fenômeno jurídico, assim entendemos, depende de sua
análise através do materialismo histórico e dialético. Portanto, como já
destacado, o Direito somente pode ser apreendido se também engendrarmos seu
entorno, capturando a totalidade através da dialética e compreendendo o limite
negativo que delimita as determinações e contradições colidentes dentro de um
intervalo espacial finito, isto é, captando a “realidade como um todo estruturado,
dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classe de fatos, conjuntos de fatos)
pode vir a ser racionalmente compreendido”17.Nesse sentido, a totalidade
moderna se mostra uma totalidade eminentemente capitalista,
sobredeterminada pela lógica do Capital, que define, configura e reproduz suas
Mas isso quer dizer que a liberdade e igualdade dos sujeitos de direito –
que aparecem na sociedade capitalista enquanto trocadores de mercadorias –
“garantidas” pelo Direito são apenas imaginárias? São apenas atribuições
institucionais resultantes da forma social? Liberdade e igualdade não existem
realmente, e na verdade nossa existência é tão oca quanto o Vazio de Boötes 19?
Sim, e não. O fato de a liberdade e a igualdade, na sociabilidade capitalista, não
existirem de modo efetivo (Wirklich), mas enquanto atribuição imaginária, não
retira a sua possibilidade de reverberar efeitos sobre o real. Na verdade, o
imaginário pode ser tanto ou até mais real que o concreto. Ora, a modernidade
não é um mundo colonizado por relações imaginárias? Uma caótica inversão
entre real e imaginário que cria uma zona de indeterminação entre o que é um e
o que é outro, o que é imanente e o que é ilusório; não é isso o fetichismo do
fenômeno econômico e jurídico?
20MIALLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. Trad. Ana Prata. 3. ed. Lisboa:
Editorial Estampa, 2005, p. 94, 95.
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efetivação da relação jurídica, assim como a mercadoria não cria valor, mas
apenas o realiza no momento da troca.21
do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 250, 251.
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A forma jurídica e a forma social do Capital são duas faces de uma mesma
moeda que existe em razão de uma lógica simbólica específica e que engendra
uma forma de organização social. Uma sociabilidade que depende do Direito para
que possa ser reproduzida e que então encontra sua realização nuclear em duas
categorias fundamentais: a mercadoria e o sujeito de direito; elementos
Nas relações de troca, cada um dos sujeitos envolvidos cede a sua própria
mercadoria e adquire a mercadoria do outro por meio de um consentimento
recíproco. Cada um dos sujeitos de direito que se contrapõem nesse circuito de
relações mercantis manifesta sua vontade de forma livre – conditio sine qua non
da troca – de adquirir ou alienar as mercadorias que estão circulando no circuito
de trocas. Não há e nem pode haver entre eles qualquer tipo de domínio,
dependência ou hierarquia. Eles se apresentam iguais na forma e, portanto,
devem também apresentar-se como igualmente livres na relação que estabelecem
entre si26.
25 KASHIURA JR., Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. 1. ed. São Paulo: Outras
Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 166-168, 169.
26Ibidem, p. 169.
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27 Ibidem, p. 170.
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Há, portanto, uma relação inexorável entre essas três formas. Uma forma
social – a própria sociabilidade capitalista fundada por e fundante da troca de
mercadorias – a forma jurídica – que tem por objeto o sujeito de direito enquanto
livre e igual (equivalente) – e a forma política – o Estado moderno. Essas três
formas básicas são responsáveis por manter a dinâmica do Capital em
movimento, permitindo sua manutenção, reprodução e desenvolvimento, mesmo
diante de certas fissuras ou descontinuidades. As formas podem sofrer fraturas,
dobraduras, distorções, serem realocadas, transformadas, adaptadas. Podem
sofrer qualquer tipo de alteração. Elas continuarão reproduzindo a lógica da
estrutura simbólica do Capital. É essa lógica que dá a configuração das formas no
devir de seus deslocamentos; é apenas por meio da ruptura com essa lógica que
30 Ibidem, p. 43.
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Isso quer dizer que ambas as formas possuem uma configuração direcionada à
manutenção, em maior ou menor grau, dessa sociabilidade, pela qual estão
sobredeterminadas.
Ora, se ambos estão sobredeterminados pelo regime corrente de
sociabilidade, isto é, por um modo de produção capitalista que se sedimenta como
determinação oposta ao Direito e ao Estado, engendrando-os numa única
totalidade, então é forçoso dizer que a própria democracia, enquanto fundamento
e princípio político legitimador do Estado, está submetida à lógica do valor
imprimida pela estrutura simbólica reproduzida pelo capitalismo. Dessarte,
como podemos entender a democracia então?
A DEMOCRACIA E OS SEM-PARCELA
hoje o termo, assim como a legitimidade do poder, diluída entre os cidadãos, era
de difícil apreensão, já que o próprio exercício do poder ocorria de maneira
difusa, muitas vezes escapando de um controle preciso de seus desdobramentos.
Não à toa a democracia ateniense guarda em si o germe de sua própria
degradação em razão de suas limitações práticas.
A disposição da repartição dos poderes dos cidadãos, aos poucos, vai se
revelando problemática, na medida em que a liberdade e a igualdade distribuídas
aos cidadãos revela as dimensões de homens dominados pelas paixões e pelos
interesses individuais onde a realização da vontade do corpo coletivo torna-se
cada vez mais difícil. Platão, antecipando – como veremos mais a frente – as
críticas modernas à democracia, revela-nos o cerne do problema do ideal
democrático:
32 Ibidem, p. 30.
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34 Ibidem, p. 27-29.
35 Ibidem, p. 28.
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37 Ibidem, p. 42.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. Rev. Márcio
Bilharinho Naves, Celso Naoto Kashiura Jr. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2015.
MIALLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. Trad. Ana Prata.3. ed. Lisboa:
Editorial Estampa, 2005.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral
dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. rev. atual. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora: 2012.
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Thiago Canettieri1
INTRODUÇÃO
Mas é, exatamente, uma luta contra ser classe trabalhadora, contra o trabalho –
o mecanismo de valorização do capital. Assim, a luta de classes se mantém como
a expressão objetiva da contradição do capitalismo entre capital e trabalho que,
em se perpetua a partir de sua tensão da unidade na contradição. É a luta de
classes o momento fundamental dessa contradição que realiza o capitalismo.
Dessa forma, não é possível uma crítica radical do capitalismo sem que leve a
dimensão da superação do capitalismo (BONEFELD, 2012).
A luta de classes ou, mais especificamente, a luta do ‘proletariado’ tem o
sentido crítico e negativo. Por isso é preciso recuperar o proletariado como a
classe que se realiza como não-classe no movimento dialético de sua consciência
(SAFATLE, 2015). Essa perspectiva parece já ter seus germes na obra de Lukács
(2003, p.80): “O proletariado apenas realiza seu projeto a partir de seu próprio
aniquilamento e transcendência, criando uma sociedade sem classes através da
conclusão bem-sucedida de sua própria luta (de classe)”.
O proletariado é, portanto, esse “negativo em marcha nesta sociedade, que
sofre do dano absoluto de estar posto à margem da vida e que, portanto, traz a
revolução” (CUNHA, 2009, p. 86).
A ABOLIÇÃO DO TRABALHO
A partir disso, Fausto (1987) desenvolve seu argumento usando as próprias obras
de Marx e Engels. Para o autor, se o comunismo representa assim o fim da divisão
do trabalho, o fim da divisão do trabalho é ao mesmo tempo a supressão do
trabalho. Esse movimento é importante, tanto no que se refere ao conteúdo, como
no que se refere à forma. Trata-se de abolir o trabalho e não de estabelecer o
"trabalho livre":
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
5 Ou seja, ora a luta de classes como motor histórico é definida por interesses objetivos
refletidos nas entidades de classe, ora subjetivos, não tendo uma mera relação reflexiva
com as determinações objetivas, que determinaria também o próprio interesse da
classe, necessitando apenas de sua concepção consciente.
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na qual condicionantes viram condicionados. Mas esse como se não é mera ilusão,
uma falsa consciência que teria como condição de sua superação o
“esclarecimento” dos sujeitos enganados acerca das normatividades sociais reais.
Há no próprio capitalismo um cinismo que neutraliza toda consciência a respeito
do seu funcionamento porque a inversão é a da própria realidade, da sua
dinâmica, de modo que posso ser consciente de que o valor de um dado produto
não pertence a ele, mas é produzido a partir de relações de produção sociais e
mesmo assim agir de forma reificada, submetido ao movimento das mercadorias
no interior de um processo de valorização.6 Assim, os servos de tal máquina
engatada serão tão mais eficientes para esse processo (o de reprodução do modo
de produção social capitalista) quanto menos perguntarem pelo sentido das suas
atividades funcionais, sejam os capitalistas e os gestores que levam as massas à
miséria no interior da sociedade da abundância, sejam os trabalhadores, que têm
aquilo que produz espoliado e, em decorrência do desenvolvimento das forças
produtivas e do aumento da produtividade, seu trabalho dispensável para a
valorização do valor, que se dá cada vez mais em níveis celestes, sem a mediação
da força viva, que entretanto, é sua substância.
Além disso, ao focar no trabalhador com traços sociológicos distintos
enquanto sujeito da emancipação social (o trabalhador industrial, ou o
trabalhador assalariado de carteira assinada, ou sindicalizado etc.) realiza-se, por
um lado, uma solidariedade com um campo referencial restrito, desconsiderando
outras formas de exploração ou de dominação, como os tipos de dominação que
são historicamente e estruturalmente correlatas ao posto formal de trabalho,
como a atividade feminina reputada ao domínio íntimo da vida doméstica,
integrando-se ainda as duplas ou triplas jornadas marcadas igualmente pela
dissociação hierárquica própria das relações de gênero expressas nos tipos de
postos ocupados e na diferença de salário. Ou ainda aquelas que incidem sobre
as pessoas que sequer conseguem achar trabalho em decorrência do desemprego
estrutural, restando formas ilegais de inserção no mercado; órgãos assistenciais;
entidades filantrópicas e/ou religiosas, que também não deixam de ser situações
marcadas por relações de gênero e raciais.7
Por outro lado, ofusca o caráter generalizado que o trabalho (improdutivo)
vem assumindo e a sua (des)apreensão enquanto tal.8 É o caso da ideologia do
empreendedorismo e da disseminação crescente do trabalho como prestação de
serviço. Nesses regimes de trabalho tenta-se eliminar a separação entre tempo
livre e tempo útil, por um conjunto de mecanismos discursivos e não-discursivos.
A vida toda parece tornar-se uma espécie de trabalho subsumida à racionalidade
contábil. É a mobilidade total de um trabalhar a si mesmo. Essa totalização do
trabalho, que escapa ao posto formal do trabalho assalariado, produz uma
desclassificação, na medida em que os sujeitos não sendo submetidos às ordens
de um patrão na medida em que se subjetivam pelo regime do empreendedorismo
e não contam com o invólucro dos sindicatos e partidos ligados a classe
trabalhadora, não veem a si mesmos como trabalhadores ou classe trabalhadora.9
político decorre da posição estratégica ou funcional que ele ocupa no interior do modo
de produção capitalista, já que apenas ele produziria mais-valia de fato ou excedente a
ser apropriado. Ou há ainda aqueles que para recuperar a centralidade do trabalhador
como sujeito político intentam mostrar como os ditos trabalhadores improdutivos na
verdade produzem mais-valia e, assim, se recupera a negatividade política de tais
sujeitos pela sua simples condição. O problema é que parece existir sempre nessa
valorização do trabalhador um subproletariado, um lumpem marcado pelo déficit
político, residindo no último nível dos pretendentes à participação no atributo
“Político”, cujo outro nome é “trabalhador produtivo”. Assim, há um método de divisão
que, em última instância, faz a separação entre o puro e o impuro, do verdadeiro ator
da emancipação do homem em geral e do falso, daquele que não está à altura de tal
protagonismo histórico. Daí que certas lutas são muitas vezes tomadas como
secundárias frente a luta entre capital-trabalho.
9 A criação de mecanismos a fim de realizar uma desclassificação é de longa data.
12Apartir daqui irei me apoiar em Kurz, 2002, para tentar explicar a predominância do
capital fictício.
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13 Paulani aponta para o fato que no Brasil a capacidade de formar capital fixo diminui
ao passo que se exporta cada vez mais capital na forma de lucro de transnacionais ou
de pagamento de juros da dívida. Assim, parece, se não estiver interpretando de forma
extremamente equivocada, que todo o nosso ajuste do Estado para se legitimar ao
capital internacionalizado e fictício implica, em última instância, o desmantelamento
da própria capacidade de produzir capital – a redução dos custos para realizar as
exigências de valorização por juros do capital, exigência está blindada em Lei em 2000
(Lei de responsabilidade fiscal), mantendo a nossa “credibilidade” frente aos
investidores estrangeiros. O déficit estrutural das transações correntes (fluxo de capital
que entra e sai) e a desindustrialização a ela ligada decorre, então, de toda essa
reformulação política econômica (pagamento da dívida, redução de custos,
privatização, desregulação do fluxo de capital etc) em prol da valorização do Capital em
sua forma fictícia e de curto-prazo (Paulani, 2012). Aliás, o pagamento dos juros, como
a Auditoria Cidadã da Dívida Pública mostra, se dá por “rolagem da dívida”, ou seja,
quando está próximo do vencimento das nossas obrigações com a dívida, o Tesouro
recorre ao mercado financeiro para contrair crédito para pagar a dívida, mas esse
crédito vem com juros mais alto. Assim, a rolagem passa a funcionar não como mera
troca de credor, mas como forma de se aumentar a dívida e o lucro dos bancos, pagando
a dívida por endividamento e pressionando a manutenção das altas taxas de juros.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 180
16Ver Paulani, 2005. Leda mostra como na década de 70 houve não um novo boom de
desenvolvimento, como FHC parecia sugerir, relacionando “economia do setor público,
as empresas monopolistas internacionais e o setor capitalista moderno local”, mas uma
industrialização impulsionada pela necessidade de valorização do capital no centro do
sistema. Assim, na década de 70, o Brasil se tornou uma plataforma de valorização do
capital produtivo externo excedente. Isso explica a atuação massiva de multinacionais
na produção brasileira e na produção de outros países periféricos. Essa industrialização
pouco tinha a contribuir para o “desenvolvimento Nacional”, já que o grosso do lucro
produzido era vertido para as matrizes das multinacionais ou ainda preso ao
pagamento de juros de um capital financeiro em via de se autonomizar. O que o artigo
parece sugerir é que o “desenvolvimentismo” fenomênico do período da ditadura – o
dito milagre econômico - se inseria, na verdade, num movimento de transformação
desses países periféricos em plataformas de valorização do capital financeiro e da
respectiva consumação da “servidão financeira voluntária” a partir da aplicação do
receituário neoliberal – realizando o que ela chama de “sentido da industrialização”. A
ditadura desponta, nesse contexto, como um véu que cobriu esse processo de
reconfiguração do corpo social brasileiro (estrutura administrativa, política, social etc)
de modo a torná-lo adaptado às exigências de valorização fictícia do Capital. A partir da
década de 80, já sobre a dominação direta do capital financeiro – isto é, sem a
simulação no processo produtivo - o Brasil passa, por um lado, a formar cada vez menos
capital (produzir mercadoria), e por outro um crescimento acelerado de capital que é
exportado (dividendo, pagamento de dívida externas etc). Compreender o
“desenvolvimentismo” fenomênico, portanto, requer compreender o processo global do
Capital.
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23 Os
agenciamento encarnam uma mesma dinâmica de relações de forças que fazem com
que eles se assemelhem, assim como no diagrama disciplinar se assemelham a escola,
o quartel, a fábrica e a prisão. O binômio matéria e forma não se identifica com o de
função e matéria. Nesse diagrama descrito tanto a função quanto a matéria adquirem
formas concretas mantendo uma mesma racionalidade que é aquela assistencial-
punitivista.
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25 Podemos dizer que houve duas formas de explicitação do limite da luta bipolar de
classes. A primeira foi com a Revolução Russa, na qual a vanguarda da consciência
(Partido Bolchevique) ao tomar o Estado consolidou um Capitalismo de Estado, no qual
a burocracia valia pela burguesia como “grande-ausente”. O Partido revolucionário foi
incapaz de abolir as categorias bases do capitalismo, mantendo o fetiche do trabalho
abstrato produtor de valor (o que revela o caráter afirmativo da concepção de “classe
trabalhadora” que se tinha, já que antes buscou conservá-la do que aboli-la). A outra
forma foi a assimilação da classe trabalhadora a partir do seu reconhecimento enquanto
sujeito de direito nos Estados capitalistas ocidentais – no nosso caso, começou com o
governo Vargas. Talvez uma primeira implicação a se tirar dessa consideração é que
não basta afirmar no nível da representação ou da “consciência de classe” um interesse
revolucionário ou progressista, pois este pode se realizar de modo reacionário,
conservando todo tipo de estruturas tradicionais de dominação, como o Estado, a
prisão etc. A outra é que a tomada do Estado se apresenta como uma má alternativa. A
simples estatização dos meios de produção não nos emancipa dos fundamentos do
capitalismo, mas transforma, no máximo, o Estado em um grande proprietário,
realizando aquilo que Marx chamou de “comunismo grosseiro” no qual o Estado se
torna o único proprietário enquanto a sociedade civil se transforma em uma massa
despossuída. Além disso, a tomada do Estado proposta pela esquerda marxista-
leninista nada mais é que um desdobramento da própria estrutura organizativa de seus
partidos, no interior da qual se reproduz todo tipo de divisão: entre trabalho intelectual
e material; dirigentes e dirigidos etc. São partidos que já possuem a feição de um
aparelho de Estado e que antecipam a organização social por vir: hierarquizada.
26 Beaud e Pialoux, analisam esse processo de desclassificação na França e a eclosão de
rebeliões urbanas por parte de filhos de imigrantes que sofrem racismo e são relegados,
tanto eles quanto seus pais, à condição de “subclasse” ou “subproletariados”. A
explicação, indo além de um viés puramente econômico, mostra como a reformulação
da relação entre família e educação contribui para esse processo de desclassificação na
medida em que desvalorizou a cultura política operária constituída durante o século
XX.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 193
BIBLIOGRAFIA
Cláudio R. Duarte
“Cruz e Sousa (1896)” apud Andrade MURICI. “A crítica simbolista” in: A literatura
no Brasil – Era realista/Era de transição. (Dir. Afrânio Coutinho). 4ª ed. revista e
ampliada. São Paulo: Global, 1997, p. 523.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 196
O que tal torre broquelada pelos sois ilumina e nos permite ver passar lá
embaixo são as figuras metafóricas de uma guerra social já perdida, ou a
aniquilação iminente dos corpos, a paralisia e a morte coletiva (“As torvas
catapultas do Nirvana!”). É pois essa morte social simbólica que ganha luz no
Farol desta poética da dor – a dor daqueles gritos que sobem,
Como se intui até aqui, Cruz e Sousa cumpre sua poética, delineada desde
seus primeiros livros maduros, torneando versos que geralmente apagam seus
contornos sociais, diluindo suas raízes históricas, abstraindo-as por meio de um
intenso trabalho com a forma. Uma poética da luz – ou antes, de uma contraluz
3 João da CRUZ E SOUSA. “A Dor” in: Broqueis [1893]. Obra Completa, Vol. 1 – Poesia.
(Org. e estudo Lauro Junkes). Jaraguá do Sul: Avenida, 2008, p. 396. Disponível em:
http://fcc.sc.gov.br/cruzesousa/cruzesousa_vol1_poesia.pdf (Acesso em 18.02.2018).
4 Idem, “Torre de Ouro” in: Broqueis, op. cit., p. 395.
5 Idem, “Caminho da Glória” in: Últimos sonetos [1905], op. cit., p. 520.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 197
A PERFEIÇÃO
decadência política nos deixa frios. (...) Nós nos absteremos de política como de
uma coisa idealmente infecta e abjetamente desprezível”. 8 A poesia simbolista
assume-se como “inimiga do ensino, da declamação, da falsa sensibilidade, da
descrição objetiva”, buscando “vestir a Ideia de uma forma sensível”, mas sai
purificada, indefinida, inteiramente abstraída de qualquer referente social: “o
caráter essencial da arte simbólica consiste em não ir jamais até à concepção da
Ideia em si”.9
8 Anatole BAJU, “Aos leitores!” (Le décadent littéraire et artistique, nº1, 10 de abril de
1886) in: Gilberto M. Teles, Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Rio de
Janeiro: Record, 1987, p. 57.
9 Jean MORÉAS, “O Simbolismo” [Le Figaro, nº de 18 de setembro de 1886] in: Teles,
Junkes). Jaraguá do Sul: Avenida, 2008, p. 49, 54, 70, 74, 76, 80. Com a economia e a
precisão que lhes são características, Antonio Candido assim descreve o percurso de
Cruz e Sousa, em traços que agora farão maior sentido para o leitor desavisado: “A
formação de Cruz e Sousa foi naturalista, em ciência e em estética. Já ia pelos trinta
anos quando se voltou para o Simbolismo, de que seria o verdadeiro fundador e um dos
dois principais representantes entre nós. Por isso a sua obra guardou sempre na forma
a impregnação parnasiana e, na ideia, o pessimismo e o materialismo dos realistas. Mas
daí veio talvez a sua originalidade, ao combiná-los com as musicalidades e as
imprecisões vagamente espiritualistas do Simbolismo. Para essa mistura, vinha
predisposto graças às maiores influências que sofreu, e que o marcaram para sempre:
a de Baudelaire e a de Antero de Quental. Ao primeiro, deve não apenas o domínio do
poema em prosa, mas certo satanismo, o senso dos contrastes e as correspondências, o
gosto pela forma lapidar. Ao segundo, deve o pendor pela poesia filosófica, o culto da
noite, a tensão meditativa e a predileção pelo soneto” (CANDIDO e CASTELLO, op. cit.,
p. 297).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 199
À REVOLTA
(A Cassiano César)
11 Para uma boa caracterização da nova geração de 1870, cf. J. M. Machado de ASSIS, “A
nova geração” (in: Obra Completa, v. 3. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959); Antonio
CANDIDO, Formação da literatura brasileira, vol. 2. (Belo Horizonte, Itatiaia: 2000)
e Idem, “Os primeiros baudelairianos” in:__. A educação pela noite e outros ensaios.
São Paulo: Ática, 1989.
12 CRUZ E SOUSA, “À revolta” in: O livro derradeiro – Cambiantes, Obra completa, Vol.
ESCRAVOCRATAS
Não se liberta o escravo por pose, por chiquismo, para que pareça
a gente brasileira elegante e graciosa ante as nações disciplinadas
e cultas. Não se compreendendo, nem se adaptando ao meio
humanista a palavra escravo, não se adapta nem se compreende da
mesma forma a palavra senhor.
15 Idem, “O Abolicionismo” in: Dispersos. Obra completa, Vol. 2 – Prosa, op. cit., p. 276,
grifo nosso. Disponível em:
http://fcc.sc.gov.br/cruzesousa/cruzesousa_vol2_prosa.pdf (Acesso em 18.02.2018).
16 Idem, ibidem.
17 Sobre o período histórico de transição do Império à República, que leva das novas
materialista muito superior à recepção anterior, feita por nomes como Nestor
Vitor, Andrade Muricy e Roger Bastide.18 A decadência de ideais, a exclusão, a
informidade do país, a dor pessoal e coletiva da desintegração e da alienação não
são aqui, de maneira alguma, ideologias esteticistas ou visões individualistas do
mundo. Antes, permitem fazer a passagem sistemática do campo material para a
imanência literária. Vale relembrar, ainda, que é nessa década que Cruz e Sousa
enfrenta pessoalmente as barreiras para sua integração social e profissional no
Rio de Janeiro, terminando a vida como um humilde arquivista, amargando
ultrajes, sofrendo com a miséria, o racismo, a loucura da esposa e a tuberculose
nos últimos meses de vida. Contidos nessa experiência individual há então muitos
índices sociais que apontam para uma República excludente e autoritária que ao
triunfar enterra as antigas promessas do Abolicionismo, embora o processo que
o engendrou – aqui a fonte maior das dualidades “dialéticas” pressupostas em
sua obra – tenha trazido consigo também a possibilidade da razão crítica, do novo
momento artístico após 1870, em que iriam despontar grandes nomes como
Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, Raul Pompeia, Euclides da Cunha e... Cruz
e Sousa.
A maneira que Cruz e Souza lidou esteticamente com esse processo social
sombrio é o segredo da permanência de sua obra. Pura engenhosidade. Tratava-
se de filtrar o conteúdo negativo referido numa poética que não refletisse
diretamente, à maneira altiva e orgulhosa do romantismo condoreiro, o
abandono dos negros e pobres em geral à pobre sorte, no início da República –
criando uma poética que expusesse esse fracasso junto ao triunfo de uma
sociedade do dinheiro, cada vez mais reificada e abstrata (principalmente após os
anos de loucura especulativa do Encilhamento), capaz de tornar invisível, através
de seus processos objetivos e discursos ideológicos, aquela massa amorfa e
excluída, contornando ainda as armadilhas coisificantes do naturalismo e do
cientificismo reinantes. Entre nós, Machado de Assis foi quem chegou numa
CRISTO DE BRONZE
o trauma de Junho de 1848 em Paris. São Paulo: Companhia das Letras, 1999; Idem,
Terrenos vulcânicos. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
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609-632.
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Lírica de combate
Os miseráveis, os rotos
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(...)
Ó pobres! Soluços feitos
Dos pecados imperfeitos!
Arrancadas amarguras
Do fundo das sepulturas.
Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.
(...)
E de tal forma já cresce
O bando, que em vós parece.
E a languidez fugitiva
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CLAMANDO...
25 Idem, “Litania dos pobres” in: Faróis, op. cit., p. 485-8. Para uma análise completa
deste poema, cf. RABELLO, Um canto à margem, op. cit., p. 258 e ss.
26 Idem, “Clamando” in: Broqueis, op. cit., p. 391.
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lo por dentro com conteúdos impuros, como a direção oposta, descendo ao fundo
do abismo dos esquecidos. Ainda mais explícito nesse sentido é o conteúdo
publicado postumamente nestas estrofes selecionadas de um poema que, por seu
teor, faz lembrar muito a sua primeira fase poética:
CANÇÃO NEGRA
Eis a “boca injuriosa” do poeta identificado com sua raça e com os subordinados
em geral; voz mensageira de “universais revoluções” que conclama à
transformação com o “ferro em brasa”, para arrancar “os cravos/ Das cruzes mil
de cada Ser”; os significantes do movimento histórico-ideológico dos excluídos
não poderia ser melhor significada, nesses versos tecnicamente límpidos feito de
rimas alternadas, algo devedores de “Abel e Caïn”, de Baudelaire. Salvo engano,
eles dividem-se alternando-se em estrofes negativas e positivas: a imprecação
contra os donos da vida, seguida pela autoidentidade de quem busca transfigurar
o real pela arte.
ANTÍFONA
27 Idem, “Canção negra” in: Farois, op. cit., p. 494-5, grifos nossos.
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Até aqui a peça parece ressaltar apenas as qualidades positivas de uma “Forma”
pura a ser construída, toda ela feita de vocábulos nobres e musicais, de visões
excelsas e evocações sinestésicas inebriantes – o que não raro foi confundido com
o simples desejo de embranquecer do poeta negro, como que se ele mendigasse
reconhecimento e permissão para entrar no mundo de homens brancos e ricos
através do uso de seus signos de pertença, feito ele próprio de ouro, cristais finos,
virgens angélicas e muito incenso sufocante de uma atmosfera pseudorreligiosa
– e que já vimos ser destroçada nos poemas subsequentes de Broqueis. A
sequência dessa Antífona, contudo, ironiza essa atmosfera, fazendo lembrar-nos
do movimento negativo anteriormente analisado em “Cristo de Bronze” e
“Regenerada”; e assim o poema cujo título parecia querer celebrar uma espécie
de “canção litúrgica”, reverte-se violentamente no seu contrário, parecendo
ensaiar a futura dissolução desse mundo petrificado, em claro confronto com a
face obscena e “medonha” do “tropel cabalístico da Morte”, oculta sob tais signos
de pertencimento de classe:
É como se a contraluz jogada pelo poeta sobre a Fôrma clara que desce
nobremente das primeiras estrofes, como que musicalmente orquestradas para
embaçar, prender e encafuar o conteúdo de todo o livro, iluminasse a verdadeira
face oculta e obscena desse mundo de formas alvas, brancas, claras, de vapor ou
azul celeste etc. – de um mundo simbólico revelado, em suma, como falsamente
harmonioso através do contraste com o que resta no final, literalmente posto no
fundo negativo do poema: aí reluz álacre e opaca a realidade das flores vagas e
incertas, os amores malogrados, jorrando em feridas sangrentas: “as fundas
vermelhidões de velhas chagas/ Em sangue, abertas, escorrendo em rios...”,
enfim, tudo o que finalmente parece “vivo e nervoso e quente e forte”, o
verdadeiro motor de sua lírica, mas que só pode ser expresso no mundo da arte
como visões de um sonho ou de um pesadelo que confina com a Morte social
alegorizada.
Caput mortuum
A guerra é portanto uma guerra de morte. Não, o poeta não acredita que
possa vencer a batalha perdida no curso alienado da História – e o poema de
fechamento de Broqueis faz-nos recordar, ao tratar apenas de si como sujeito
lírico, esta derrota social, transfigurando-a em uma...
TORTURA ETERNA
28Idem, “Antífona” in: Broqueis, op. cit., p. 386-7 (no original, o poema é apresentado
em itálico por ser um poema de abertura).
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Nessa luta secular, insana e dantesca pela forma e pela formação social,
tornadas impossíveis, não se trata de exprimir nenhum conteúdo simbólico
positivo, mas somente de tentar conquistar certa expressão inteligível (feita de ar
e luz, sol, bronze ou mármore) para uma “Alma soberana” “eternizar as dores”
individuais e coletivas, muitas vezes abrigada no fundo ou nos versos mais
herméticos e obscuros de seus poemas. Sua luz é inexoravelmente sombria e
triste, e vem como que de trás, na contraluz, deixando a coisa mais sugerida do
que declarada. É por isso que esse eu-lírico melancólico e autocorrosivo
identifica-se diversas vezes à figura noturna da Lua, cuja luz cai “entre os marfins
e as pratas diluídas /Dos lânguidos clarões tristes e enfermos” 30 sobre corpos
níveos e gelados de “sombras gentis de mortas/ em grandes procissões”31. Ele já
sabe de antemão que só lhe resta cristalizar a “dor profunda mais dilacerada”,
enquanto a própria luz lunar – o ponto de iluminação e visão desse eu poético –
é ela mesma “a suprema Dor cristalizada!...”32.
(...)
Há dor, há luto, há convulsões, venenos...
33 Ibidem, “Luz Dolorosa...”, op. cit., p. 420. Os temas noturnos atravessam toda a obra.
Assim, sobre algumas de suas melhores peças sobre o tema, Ivone Rabello comenta:
“(...) ‘Flores da Lua’ parece prestar-se a uma espécie de glosa poética do movimento da
razão. (...) Esse halo de luz – tão fundamental na obra de Cruz e Sousa e que em ‘Flores
da Lua’ propicia o acesso ao conhecimento visionário, é aqui [em “Luar de lágrimas”]
símbolo do que, simultaneamente, revela o mundo sidéreo e desvenda o que está bem
abaixo dele, inóspito e desértico. Sonho, mas de angústia.” (RABELLO, Entre o inefável
e o infando, op. cit., p. 23 e 58). Tal é o “luar lutuoso”, “luar de mortos e de mortas”
deste último poema.
34 “Mesmo quando a realidade encontra admissão precisamente onde ela parece recalcar
o que outrora o sujeito poético realizava, isso não se coaduna com aquela realidade.
A sua desproporção em relação ao sujeito enfraquecido, que a torna absolutamente
incomensurável à experiência, desrealiza-a com razão. O excesso de realidade é a sua
decadência; ao destruir o sujeito, mata-se a si mesma. Esta transição constitui o
elemento artístico em toda a anti-arte. É levada por Beckett até à aniquilação evidente
da realidade. Quanto mais total é a sociedade, tanto mais ela se reduz a um sistema
unívoco, tanto mais as obras, que armazenam a experiência deste processo, se
transformam no seu Outro. Se um dia se precisar de um conceito de abstração tão vago
como for possível, ele assinalará então a regressão do mundo objetivo justamente onde
nada restará a não ser o seu caput mortuum. A arte nova é tão abstrata como as relações
dos homens se tornaram em verdade” (Theodor W. ADORNO, Teoria estética. Lisboa:
Ed.70, 1993, p. 44).
35 CRUZ E SOUSA, “Fogos-fátuos” in: Últimos sonetos, op. cit., p. 539.
36 Para usar um conceito de José Antonio PASTA JR., “Formação supressiva –
CONDENAÇÃO FATAL
PANDEMONIUM
(A Maurício Jubim)
Em fundo de tristeza e de agonia
O teu perfil passa-me noite e dia.
Como será revelado mais adiante, trata-se do perfil de alguém próximo ao poeta,
D. Carolina, uma ex-escrava alforriada. A figura vermelho-infernal, nascida do
próprio sangue dessa mãe, como resultante do grande Horror do cativeiro, passa
então a persegui-la como uma verdadeira associação pandemoníaca:
A mãe parece abrir as asas para ganhar outro mundo de Luz, de modo utópico e
ambíguo, imanente-transcendente:
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Força que retorna à vida, sem prestação de culto, num mundo humano, ainda
assim ambíguo, aéreo e impalpável:
Nenhum “anjo” ou “luz divina” a guia para o céu burguês, e este seu suspiro é
sinal de respiração ofegante, sinal da perseguição e do trauma inolvidável por que
passou – e que faz lembrar uma verdadeira condição social:
41 Idem, “Marche aux flambeaux” in: Dispersas, Obra completa, vol. 1- Poesia, op. cit.,
297-302.
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Mas a marcha segue sob a luz de “um dia secular, um dia de legenda”:
A poética que aqui se mostra com a fúria possível apenas aos exaltados e
aos excluídos, é a outra face da poesia do sublime e do horror sublime.
1 Dardot, Pierre; Laval, Christian. Ce cauchemar qui n'en finit pas. Comment le
néoliberalisme défait la démocratie. Paris: La Découverte, 2016.
2 Doutorando em Filosofia da Arte em Lille. Agradeço à revisão de texto feita por Patrícia
Ferreira Lemos.
3 Os anteriores são: Sauver Marx? (Empire, multitude, travail immatériel) (com El
Mouhoub Mouhoud), La Découverte, 2007; La nouvelle raison du monde. (Essai sur la
société néoliberale), La Découverte, 2009, (com uma versão em português publicada
em 2016 pela editora Boitempo); Marx, prénom Karl, Gallimard, 2012 e Commun.
(Essai sur la révolution au XXI siècle), La Découverte, 2014.
4 Dardot, Pierre; Laval, Christian, Ce cauchemar qui n'en finit pas, op. cit., p. 7.
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mais forte. Frente a tal situação Laval e Dardot criticam as velhas fórmulas das
esquerdas para a análise desta nova razão sistêmica ao mesmo tempo em que
enxergam nas práticas o que eles chamam de “comum”9.
“A crise alimenta a crise em uma espiral sem fim12”. Desta forma o sistema
se alimenta dessa crise que abrange todas da dimensões da realidade, não apenas
o econômico. Não podemos reduzir o sistema nem à ideologia, nem à econômica,
“é a realidade social, ela mesma que se tornou neoliberal13”. O que antes era uma
“sociedade do risco”, passa a ser “sociedade disciplinada pelo risco14”. Os autores
vão mais além, afirmando que, em última análise, o sistema se autoboicota, pois
o agravamento das desigualdades, aumento da precariedade e acumulação
improdutiva seriam exatamente os obstáculos que bloqueariam qualquer
possibilidade de novo crescimento e absorção do desemprego. Lemas repetidos
quase que como uma oração em um país como a França, onde a repetição
desenfreada dos motes “moins de chômage et plus de croissance 15” por todos os
atores políticos e econômicos parecem ser um sinal de duas profecias impossíveis
de se realizar, um anúncio do fim dos tempos. Em tal sistema, qualquer obstáculo
16 Ibidem, p. 181.
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17 Ibidem, p. 57.
18 Ibidem, p. 170.
19 Ibidem, p. 174.
20 Ibidem, p. 83.
21 Ibidem, p. 101.
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relação de cada cidadão com sua própria vida é análogo à relação de cada
empresário com sua empresa22”. Face a esse imaginário a tarefa das esquerdas é
a de criar um outro imaginário alternativo.
22 Ibidem, p. 96-97.
23 Ibidem, p. 71.
24 Ibidem, p. 72.
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pago sob a forma de imposto. As grandes empresas são atores políticos por
inteiro. Desta forma, o neoliberalismo pode ser entendido como uma economia
política a serviço da dominação da sociedade e da economia pelas grandes
empresas, com destaque para os megabancos. Recentemente, como lembrado
pelos autores, Manuel Valls, primeiro ministro francês, pregou o “amor pelas
empresas”. Temos então uma nova figura subjetiva que passou do amor ao Rei ou
a Deus na Idade Média, para o amor pela Pátria, e agora ao amor pelas Empresas.
Não por acaso a competitividade empresarial é mote para todas as esferas da vida
social.
25 Ibidem, p. 207.
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muito mais que uma questão puramente econômica, passa a ser um modo de
impor do exterior as formas com que governos vão atuar. Travestido de lição de
moral (com acusações escabrosas ao povo grego), a realidade é que a “nova
governança europeia” introduziu um modelo inédito de “soberania” sob
vigilância permanente. Trata-se de punir e disciplinar aqueles que ousarem
imaginar algo fora – evidentemente com ajuda das oligarquias locais. As medidas
tomadas contra a Grécia foram sobretudo políticas. Às autoridades nacionais
restou colocar em marcha as decisões vindas da famosa “Troika”, não estando
descartado o governo direto do país por esta última. Em se tratando de garantir
as “boas direções” a serem tomadas, “todos os meios são bons”, mesmo a parca
democracia liberal deve ser esvaziada no mundo da economia. Por outro lado,
após enumerar as dezenas de iniciativas populares já existentes na Grécia e que o
Syriza poderia ter organizado, eles concluem “que um governo verdadeiramente
comprometido com a soberania popular deveria ousar governar contra o Estado
existente, e mais precisamente contra tudo no qual o Estado participa da
dominação oligárquica26”. Frente aos limites apresentados pelo Syriza (e também
o Podemos espanhol), os autores não hesitam em afirmar que é a forma partido
ela mesmo que está em xeque, pois “esta forma define uma instituição específica
que engaja uma certa ideia de atividade política27”. Forma cujo conteúdo está
estreitamente ligado ao Estado-nação surgido no século XIX. Além disso, por
estar vinculado às eleições, facilita a profissionalização da política e, pela
necessidade da representatividade, cria uma oligarquia partidária.
26 Ibidem, p. 238.
27 Ibidem, p. 232-233.
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Além disso, eles alertam também que as esquerdas devem perceber que a
situação atual não é a do fim do Estado, mas de um reordenamento deste, de um
esvaziamento democrático. Todos os princípios estão sendo contrabalançados
para a competitividade e a segurança. Faz-se necessário a compreensão do papel
28 Ibidem, p. 215-216.
29 Ibidem, p. 217.
30 Ibidem, p. 219.
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ativo do Estado “que se tornou um ator neoliberal por completo31”. Desta forma,
os autores descartam qualquer possibilidade de volta a um velho Estado de bem-
estar restaurado.
31 Ibidem, p. 223.
32 Ibidem, p. 226.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 234
SINAL de MENOS
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