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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO


E SEMIÓTICA

HIRAN DE MOURA POSSAS

O Jogral é Jornal: devorações nas “acontecências” de Antonio Juraci


Siqueira

Doutorado em Comunicação e Semiótica

São Paulo

2015
ii

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

HIRAN DE MOURA POSSAS

O Jogral é Jornal: devorações nas “acontecências” de Antonio Juraci


Siqueira

Doutorado em Comunicação e Semiótica

Tese apresentada à Banca Examinadora como


exigência parcial para o título de Doutor em
Comunicação e Semiótica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Linha de
Pesquisa: Cultura e Ambientes Midiáticos, sob a
orientação do Prof. Dr. José Amálio de Branco
Pinheiro.

São Paulo

2015
iii

BANCA EXAMINADORA

___________________________________

____________________________________

____________________________________

____________________________________

____________________________________
iv

Para Pimpa, Tita, Mell e Mille...


v

Agradecimentos

Não se nutre rizomas sozinho...


Aos Deuses ... Esse concílio conspirou favoravelmente ...
Obrigado, Juraci, “Irmão de Devaneios”, por permitir que “flanasse” por teus livros, por tua
casa e nas reuniões poéticas...
Agradeço ao Amálio e à Jerusa – A Letra e a Voz – não necessariamente nessa ordem, pelas
orientações para toda vida, especialmente pelo exemplo de humildade acompanhado de tanta
erudição...
À Amiga Micheliny por nossos diálogos e por suas “santinhas milagreiras”, principalmente a
minha-sua Nazinha de Nazaré das ruas...
À UNIFESSPA (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará), personificada pela
professora Glaucia, diretora da FECAMPO, por compreender a “sofreguidão prazerosa” da
escrita.
À CAPES possibilitando a continuidade desse sonho.
Ao meu pai, Orlando, por superar as “quatro pontes” ...
Ao amigo, desde 2010, Agenor, um exemplo de Melgaço para o mundo.
A um pequenino Anjo Barroco: Destemido .... Meu eterno e mais fiel escudeiro...
Ao “remédio” chamado Mille. Suas sessões de “acupuntura” são um bem enorme para minha
família...
À dona Ruth por suas palavras de incentivo e pelo seu exemplo de Mãe-Vó.
Especialmente, agradeço a minha querida filha, Maria Cecília, a Tita, pela compreensão as
minhas ausências; pelo amadurecimento e pelos gestos carinhosos de amor e dedicação a
nossa família. Sou seu fã ...

E ... a minha Esposa ... Amiga ... Mulher ... VERA LUCIA CINTRA POSSAS, a Pimpa, por
TUDO ... Sem “TU”, nada disso teria qualquer sentido ...
vi

Sempre que somos rejeitados, em qualquer nível, pensamos em ficar na oposição.


Esta deve ser uma posição tática e provisória: o que interessa são as novas
articulações na direção dos outros, incluindo aquele outro que nos rejeitou. Daí a
crise difícil e saudável: temos de aprender a conviver em regimes de tensão,
suspensão e movimento com inúmeras alteridades conflituosas e inacabadas em
vaivém, sempre dentro-fora e fora-dentro...

José Amálio Pinheiro


vii

POSSAS, Hiran de Moura. O Jogral é Jornal: devorações nas “acontecências” de Antonio


Juraci Siqueira. 2015. 122f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica, 2015.

A pesquisa examinou, em algumas experimentações artísticas e jornalísticas de Antonio


Juraci Siqueira - artista “marginal” paraense com mais de oitenta publicações - a trajetória do
verbo criativo do “flâneur paraense” em direção ao meio extra verbal e à palavra de outros. O
corpus empírico considerou os cordéis: “Irmã Serafina Cinque: O Anjo da Transamazônica”;
“Os Novos Versos Sacânicos” e “O chapéu do Boto”, bem como contos, crônicas e poemas
em memórias de jornais, de revistas e de antologias poéticas. Em sua delimitação temporal, a
pesquisa seguiu a linha histórica do artista narrada pelas mídias impressas, pelo próprio poeta
e por vozes testemunhando essa trajetória. A partir dessas ponderações, em que medida os
rearranjos culturais nas Amazônias Juraci são “geometrizáveis” e/ou de feições neobarrocas?
Na busca de respostas à problemática, a hipótese principal supõe que, ao suturar múltiplas
vozes mundanas às suas Artes, Juraci ora fia tecidos narrativos interculturais, ora borda
escrituras “necrosadas” pelos folclorismos centrípetos. Pela necessidade de se testar,
questionar e investigar o(s) objeto(s) proposto(s), foram escolhidas as seguintes premissas
metodológicas, considerando a realização de um fazer etnográfico e cartográfico:
levantamento, no arquivo público municipal de Belém, de jornais, revistas e antologias
acolhendo informações sobre o artista e suas obras; consulta do arquivo pessoal do poeta;
realização de entrevistas com Juraci, pesquisadores e artífices paraenses; observação
participante em eventos culturais nas ruas, praças, feiras, cemitérios e teatros, e
“garimpagem” de pesquisas sob a luz da Teoria da Comunicação na América Latina (Martín-
Barbero), da Semiótica Cultural Russa (Lótman, Bakhtin), do barroco e da mestiçagem
(Severo Sarduy, Haroldo de Campos, Lezama Lima, Alejo Carpentier, Jerusa Pires Ferreira e
Amálio Pinheiro). Posteriormente, na exploração dessas informações, foram extraídas as
seguintes categorias analítico-empíricas: miopias acadêmicas às marchetarias de Antonio
Juraci; os engastes micro-macro nos tempos-espaços amazônicos dessas texturas; suas
rearticulações de séries culturais usando representações “satânicas”, e a tradução de devires
recorrentes do convívio simbiótico amazônico entre homens, animais, natureza e cultura. Ao
decantar as indagações levantadas, tencionamos, a partir das vozes de transcriadores de um
cotidiano insólito, reinscrever, de forma múltipla, provisória e aberta a contribuições, esses
mapas sociais historicamente ignorados, mas “recheados” de sentidos.

Palavras-chave: mestiçagem; barroco; cordel; jornal; Amazônia.


viii

ABSTRACT

The research want to examine some artistic and journalistic trials of Antonio Juraci Smith,
artist "marginal" Para over eighty publications. His empirical corpus shall emphasize twine,
"Irmã Serafina Cinque: O Anjo da Transamazônica"; "Os Novos Versos Sacânicos" and "O
Chapéu do Boto" as well as some short stories, essays and poems in newspapers memories,
magazines and poetic anthologies. In his time delimitation, the research will follow the
storyline of the artist narrated by print, by the poet himself and voices witnessing this
trajectory. From these considerations, the extent to which cultural shifts in Amazons Juraci
would "geometricable" and / or neo-baroque features? In the search for answers to the
problems, the main hypothesis assumes that, when suturing multiple worldly voices to their
Arts, Juraci now relies intercultural narrative tissues, sometimes edge scriptures "necrotic" by
centripetal folklore. By the need to test, question and investigate (s) object (s) proposed (s),
the following methodological assumptions considering conducting an ethnographic and
cartographic were chosen: survey, the municipal public file of Bethlehem, newspapers,
magazines and anthologies accepting information about the artist and his works; consulting
the staff of the poet file; interviews with Juraci, researchers, craftsmen Pará; participant
observation in cultural events in the streets, squares, markets, cemeteries and theaters, and
"mining" of research in the light of Communication Theory in Latin America (Martin-
Barbero), the Russian Cultural Semiotics (Lótman, Bakhtin), Baroque and miscegenation
(Severo Sarduy, Haroldo de Campos, Lezama Lima, Alejo Carpentier, Jerusa Pires Ferreira
and Amalio Pinheiro). Subsequently, the holdings of such information, the following
analytical and empirical categories were extracted: the academic myopia marquetries Antonio
Juraci; the joints micro-macro in Amazonian spacetimes these textures; rearticulations its
cultural series using "satanic" representations, and the applicants becomings translation of the
symbiotic interaction between Amazon men, animals, nature and culture. To settle the
questions raised, it is expected, as of “transcriadores” voices of an unusual daily life, restore,
in multiple forms, provisional and open to contributions, these social maps historically
ignored, but full directions

Keywords: Miscegenation; Baroque; “cordel”; newspaper; Amazon.


ix

Sumário

ENTRELAÇANDO RIZOMAS EM CATOGRAFIAS DE DEVANEIOS.......................11

RIZOMA 1: DE TOTÓ DO CAJARY A ANTONIO JURACI ......................................... 23


1.1 O JOGRAL NOS JORNAIS...........................................................................................23
1.2 EMBARAÇADO NOS REDUCIONISMOS ACADÊMICOS......................................47
1.2.1 Nas Malhas da “Tradição”.........................................................................................47
1.2.2 Nas redes redutoras das dicotomias..........................................................................52
1.2.3 Engessado por armaduras semióticas.......................................................................54

RIZOMA 2: BRICOLAGENS AO DEVIR ......................................................................... 56


2.1 JURAS AO BOTO..............................................................................................................56
2.2 BADERNAS ESPAÇO-TEMPORAIS...............................................................................58
2.2.1 Trapaceando as “ampulhetas”
ocidentais..................................................................................................................................58
2.2.2 Amazônias: soleiras de passagens.................................................................................62
2.3 RIZOMAS
SAT(C)ÂNICOS.......................................................................................................................71

RIZOMA 3: POR BAIXO DO “CHAPÉU” DO “FINGIDOR” ........................................ 81


3.1 ENTRE MALTAS, CIRANDEIROS E SALTEADORES.................................................81
3.2 MALDITOS DECOLONIAIS? .........................................................................................89
3.3 DO CHAPÉU, UM TRICKSTER?.....................................................................................97
3.4 AQUI, O INSÓLITO É AMAZÔNIA(S).........................................................................102

IRRIGANDO MAIS RIZOMAS.........................................................................................106

REFERÊNCIAS....................................................................................................................112
x

Lista de Figuras

Figura 1: O leitor poeta.............................................................................................................24


Figura 2: Totó, as imagens e as questões sociais......................................................................26
Figura 3: O bacharel em filosofia.............................................................................................27
Figura 4: Totó, o simbolista-modernista...................................................................................28
Figura 5: Entre a filosofia, a poesia e o açougue......................................................................30
Figura 6: 1ª Edição do PQP......................................................................................................32
Figura 7: Charge “pornográfica”..............................................................................................36
Figura 8: “Garotas da Capa”.....................................................................................................38
Figura 9: Capa dos Versos Sacânicos.......................................................................................39
Figura 10: Performance: O filho do boto..................................................................................40
Figura 11: Sob o signo da merda..............................................................................................41
Figura 12: Crítica de Alfredo Garcia........................................................................................42
Figura 12: Ossos do ofício........................................................................................................43
Figura 13: O performer.............................................................................................................44
Figura 14: Juraboto e uma “moradora de rua”..........................................................................45
Figura 15: Memórias de Daudibon...........................................................................................47
Figura 16: Le chapeau de boto de Ana Daudibon.....................................................................50
Figura 17: Momentos marginais: Instituto Cultural do Extremo Norte; Sociedade dos Poetas
Vivos e Cirandeiros das Palavras..............................................................................................82
Figura 18: A Malta de Poetas Folhas & Ervas..........................................................................83
Figura 19: Cemirério da Soledad..............................................................................................85
Figura 20: Um Trickster?.........................................................................................................99
Figura 21: Academia das ruas: Sarau da lua cheia.................................................................108
11

Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se


goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio
de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é
preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos
esportes — a arte de flanar [...] Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser
basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem [...] É
vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência.
Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na
mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente
adiadas...
João do Rio

ENTRELAÇANDO RIZOMAS: CARTOGRAFIA DE DEVANEIOS


1
Cartografar afetos foi uma das expressões delineadas para minhas flanadas
dialogantes com os outros. Em Belém, encontrei um sujeito sorridente e atencioso
distribuindo trovas em folhas de cartolina sob a forma de coração. Não lembro o ano, mas foi
na Praça da República2 lotada, quente e repleta de artistas inventados e inventores nas “ruas”.
Antonio Juraci Siqueira, o Juraboto, iniciou sua jornada como flâneur3 devorador em Cajary,
localidade do município de Afuá, no estado do Pará. Ainda menino, descobriu a literatura
pelos folhetos de cordel chegados à cidade pelas mãos de migrantes nortenordestinos. Aos 16
anos, cursando o ensino médio, experimentou ires e vires por Macapá (AP). Em 1976 mudou-
se para Belém. Provou, traduzindo em versos, as ruas da capital, assim como os saberes
rotarianos4 do curso de Filosofia, na Universidade Federal do Pará. Vem participando, desde
então, de eventos estimulados por diversas entidades lítero-culturais, dentre elas a União
Brasileira de Trovadores; o Extremo Norte; a Malta de Poetas Folhas & Ervas; a Academia

1
Olhar sensível do pesquisador, sua integridade intelectual, e uma extraordinária percepção e abertura para o
outro (POSSAS, 2014).
2
Qualquer pena seria insuficiente para descrever a referida praça, uma das maiores da capital paraense. Uso a de
João do Rio (1997, p. 102): “A musa das ruas é a musa que viceja nos becos e rebenta nas praças, entre o barulho
da populaça e a ânsia de todas as nevroses, é a musa igualitária, a musa-povo, que desfaz os fatos mais graves
em lundus e cançonetas, é a única sem pretensões porque se renova como a própria Vida”.
33
Fico com a imagem de flâneur refletida por João do Rio (1997, p. 03): “O flâneur é ingênuo quase sempre.
Para diante dos rolos, é o eterno “convidado do sereno” de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros,
admira-se simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história,
como se sabe a história dos amigos (quase sempre mal), acaba com a vaga ideia de que todo o espetáculo da
cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio. O balão que sobe ao meio-dia no Castelo, sobe para seu
prazer; as bandas de música tocam nas praças para alegrá-lo; se num beco perdido há uma serenata com violões
chorosos, a serenata e os violões estão ali para diverti-lo. E de tanto ver que os outros quase não podem entrever,
o flâneur reflete. As observações foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas
vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso
exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis
de pasmar da utilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação...”
4
Pequeno empréstimo da palavra usada por Gilberto Freyre, em “Bahia e Baianos”. Segundo Freyre e meu
orientador Amálio Pinheiro, em devir, elementos rotarianos parecem sobreviver na cultura brasileira. O civilismo
bem comportado aderido às formas de atualidade neoliberal desenham uma tela tosca e violenta de que dita
normas ou mata pessoas e pensamentos em nome de uma suposta democracia, resquícios estruturantes, porque
não, de práticas ditadoriais.
12

Brasileira da Trova e os Cirandeiros das Palavras. Metatexto de experiências, aparentemente


inconciliáveis aos olhos das razões indolentes 5 , Juraci atua como oficineiro, apologista-
performista e “escrevedor” com mais de 80 títulos individuais entre folhetos de cordel, livros
de poesias, “cronicontos” e histórias humorísticas por ele chamadas de “picantes”.
No dia 13 de Fevereiro de 1980, iniciou suas incursões pela imprensa no “Jornaleco”,
espaço editorial-paródico, do jornal “A Província do Pará”. Anos mais tarde, no PQP – Um
Jornal Pra Quem Pode e nas revistas de “Consultório Médico” Chá de Cadeira, Carona e
Morena, por mais de duas décadas, refinou sua veia humorística, parodiando escrituras,
sujeitos públicos e o país. Ultimamente, atento à existência de uma sociedade sendo
redesenhada pelos valores tecnocratas e dando têmpera ao seu processo criador, vem
construindo vínculos com as mídias digitais, transcodificando para seu blog “O blog do boto”6
e para sua página do facebook7, sua oralidade à procura de outras territorialidades.
Algemado pelas armadilhas dicotômicas, Juraci vem sendo considerado por
instituições contaminadas por esse vício científico um poeta “da rua”, exemplar vivo de uma
poética recarregada de folclorismos e isso, de certa maneira, estimulou minha indignação e
receio de que o coral de vozes teóricas 8 anunciando uma suposta morte para as narrativas da
voz e da escrita, mais tarde entendidos como provocação teórica, além de participação em
pesquisas, buscando trazer para os espaços canônicos os chamados “espoliados”, matrizes
subjetivas sufocadas por sujeitos soberanos persistindo em sobreviver também nos espaços
acadêmicos.
Nesse processo arqueológico de fenômenos culturais da “periferia”, as experiências
artísticas de Antonio Juraci Siqueira dialogantes com o cotidiano, tentando decompô-las em
categorias empírico-analíticas, dão aparência ao meu complexo e errático objeto de estudo: as
fricções9 culturais em alguns cordéis, crônicas, contos e poemas do seu manancial artístico.
O corpus empírico da pesquisa compreenderá os cordéis: “Irmã Serafina: O Anjo da
Transamazônica”; “Os novos versos sacânicos”; “O chapéu do boto”; “O balaio de gatos”;
Acontecências: crônicas da vida simples”; “O menino que ouvia estrelas e se sonhava

5
Para o pesquisador português Boaventura Santos (2002), seriam pensamentos, como sociedade patriarcal:
produção capitalista; consumismo individualista e mercadorizado; identidades-fortaleza; democracia autoritária;
desenvolvimento global desigual e excludente.
6
http://blogdobotojuraci.blogspot.com.br/
7
www.facebook.com.br/juraboto
8
Refiro-me a Walter Benjamin (1989), Todorov (1970) e Adorno (1983), quando em vozes uníssonas, anunciam
a “morte” das narrativas ancestrais, além de Vilém Flusser (2010), em seus ensaios provocativos, quanto à ida da
escrita para o túmulo.
9
Utilizarei a palavra, a partir dos estudos de Bakhtin (1999). Fricção como a trajetória da palavra em direção ao
meio extra verbal e contra a palavra do outro. Um encontro de muitos “eus” com os outros “culturais”.
13

canoeiro”, bem como publicações em periódicos e antologias de poetas “marginais”, em sua


maioria, cordéis:
A literatura de cordel, na sua expressão genuinamente ibérica e hoje tipicamente
brasileira e nordestina, é a herdeira destes poetas vigorosos e suaves que esculpiam
versos em chamas de fogo. A expansão portuguesa pelo mundo e as grandes vagas
migratórias fizeram com que a arte do verso popular encontrasse em novos climas
do novo mundo um ambiente propício para a sua sublimação. A língua portuguesa
viajou e montou arraiais em quatro continentes, levando com ela muitos valores
ocidentais, ideias novas sobre a religião, a vida social, a organização política, as
técnicas e as artes, enfim ela contribuiu generosamente para a expansão da cultura
ocidental pelo mundo; mas a mais poderosa de todas as formas culturais que se
perpetua e marca a diferença pela sua originalidade é a arte única e inconfundível do
verso popular. (FREIRE, 2014, p. 13)

A delimitação temporal, entendida também como um problema, não pretende


escravizar, ainda mais, a produção artística de Juraci aos tempos institucionais. Desse modo,
resolvi circunscrever um campo de observação para sua Arte Mestiça, a partir de linhas
temporais estabelecidas por denominações atribuídas às personalidades proliferantes de
Juraci; Totó do Cajary; Juraci Siqueira e Juraboto.
Não há centro e o tempo perdeu sua antiga coerência: leste e oeste, amanhã e ontem
se confundem em cada um de nós. Os distintos tempos e os distintos espaços se
combinam em um agora e um aqui que está em todas as partes e sucede a qualquer
hora (PAZ, 2009, p. 137).

As experimentações de Juraci e seus consortes representam um número imensurável


de experiências sociais ignoradas pela arrogância e pela indolência de boa parte dos
pensamentos ocidentais impondo uma cultura como arquétipo normativo. Juraci e os artistas
das bordas 10 , quando mencionados nas universidades e nos eventos em circuitos culturais
mais restritos, ganham de modo significativo abordagens depreciativas associando-os ao
exótico, ao primário e ao popular.
Esses obstáculos epistemológicos impedem o reconhecimento das Amazônias
recontadas por fingidores 11 como Juraci, espaço movediço talhado à moda das “velhas”
práticas do mundo árabe:
Homens do deserto, grandes viajantes e homens práticos que prezavam as ideias e as
técnicas que descobriam ao longo das infinitas caminhadas e dos destinos das
caravanas. O intercâmbio com outras culturas era intenso e os califas não hesitavam
em adquirir a peso de ouro os manuscritos antigos das civilizações grega, hebraica,

10
Pensar pelas bordas, categoria analítica tramada por Jerusa Pires Ferreira (2010), exclui a ideia de centro ou de
periferia. Seriam culturas transitando por uma faixa delineada pelos chamados folclore e culturas institucionais.
11
Fernando Pessoa, ao buscar uma metáfora do mundo da construção civil, dá contornos aos poetas que trolha,
imitando com a colher no cimento a escultura em pedra. O fingidor encarna esse trolha, especializado na arte de
decorar fachadas. O trabalho em cimento e gesso imitava na perfeição a escultura em pedra e os especialistas em
acabamentos desses elementos decorativos eram os fingidores, por isso ainda hoje se chama à areia fina com que
se preparam as massas de acabamento, a areia de fingir. O verso popular é trabalho de fingidores: um linguajar
“rústico”, sem ambições metafóricas, de um lirismo recatado, de emoções partilhadas com batidas simples, tais o
ritmo dos passos de um peregrino ou o bater do coração. (FREIRE, 2014)
14

copta, bem como textos orientais logo traduzidos e divulgados em árabe e latim. A
aquisição do conhecimento tornou-se a primeira de todas as virtudes e o Al-Andaluz
foi o foco e a matriz do conhecimento e da ciência europeia. (FREIRE, 2014, p. 05)

Fazer Arte pelas ruas, pelas praças e pelos mercados é tentativa hercúlea de
representação da múltipla convivência de temporalidades-espaços e subjetividades nas
Amazônias. Ignorar tais processos criatórios, tradutórios e relacionais de representações, em
favor de um discurso facistóide de “raça” ou de “identidade”, é tentativa frustrada de
engessar, reduzir e solidificar um “território de interligação oscilante” (PINHEIRO, 2013, p.
49) repleto de paisagens cromáticas, banhadas continuamente de sol “[...] de onde escorre o
suor da experiência de uma comunidade que vive a poesia rústica do cotidiano [...] frêmito da
vida e o dinamismo do barroco.” (TOCANTINS 1987, p. 328).
O devir e a relação prevaleciam sobre o ser e a substância. Para esse tipo de
cosmologia, os outros são uma solução, antes de serem – como foram os invasores
europeus – um problema. A murta tem razões que o mármore desconhece.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 221)

Para continuar transitando pelas memórias de seus leitores, Juraci Siqueira recarrega
suas obras de suplementos advindos de um realismo icônico indo e vindo do local para o
global, espaço de permanentes diálogos, significados “prenhes de saliências ondulantes”
(PINHEIRO, 2013, p.22) e estrutura semiótica em busca de ideogramas.
Ao atrair tantos leitores, esse entrelace de energias sígnicas imana um universo teórico
familiarizado com a efemeridade dessas paisagens simbólicas, encruzilhada de metapontos de
vistas dando luz ou não a esses movimentos “recreativos” pelos imaginários amazônicos.
Para Santos (2010), as signagens, em espaços cambiantes de experimentações
provisórias e facilmente descartáveis, são extremamente consistentes, mesmo as mais
efêmeras. Em “soleiras” latino-americanas12, como Belém do Pará, os “palavrões” de Juraci
parecem roçar com os de Bento Teixeira Pinto e os de Gregório de Matos Guerra
incomodando os monoteísmos acadêmicos, os epistêmicos e os culturais.
Este livro contém palavrão explícito, desaconselhável, portanto, a puritanos babacas,
moralistas fajutos e beatas juramentadas. Também não nos responsabilizamos por
eventuais faniquitos e despentelhamentos de madamas-peido-cheiroso. Somente as
almas puras, despidas de frescuras e preconceitos vãos, poderão captar seu
verdadeiro espírito. Saberão que a imoralidade não está nas coisas nem nas palavras
senão nas mentes mesquinhas e nas ações nefastas dos homens contra seus
semelhantes e o meio em que vivem, compreenderão que a verdade pode ser dita de

12
Talvez a expressão não dê conta do extenso e do complexo lugar da diversidade, mas já aparando as muitas
arestas por vir, América Latina será o espaço da existência, resistência e da criação “bastarda”. Não saber como
nos chamarmos parecer ser algo menor perto do que não saber como se representar e não saber quem se é. O
termo, como demonstra Mignolo (2007) pode perfeitamente se descolonizar de suas semânticas primevas,
representando essa pluralidade indomável e multiplicante.
15

mil maneiras, que a flor-de-lis pode brotar do lodo e que, finalmente, “rindo é que se
castiga os costumes”. 13

Juraci é cria daqueles, desde sempre, profanando as partes “vergonhosas” da Virgem14


e torcendo o rabo 15 das autoridades públicas. Sua Santinha Nazaré, por exemplo, àquela
“adorada” pela fé católica paraense, peregrina por outros rearranjos de sentidos. Sua Nazaré
tem lábios de açaí seduzindo, com “um amor doido e abrasador” o sírio Abdala, o “sírio de
Nazaré”.
Quando o Amor, vaqueiro ardente,
prende almas gêmeas no laço,
dois corações diferentes
palpitam num só compasso
e a Paixão, rosa com espinho,
qual erva de passarinho,
da Razão ocupa o espaço.
A história que vou contar
aconteceu em Belém
entre um sírio e uma cabocla
marajoara. Porém,
outra história parecida
pede estar ganhando vida
neste momento, também.
Sírio, de nome Abdala,
próspero negociante,
vivia triste e sozinho
de sua terra distante.
Vários anos em Belém
não conhecia ninguém
que lhe fosse interessante.
Nazaré, uma cabocla
dos lábios cor de açaí,
bateu na porta do sírio
para vender tucupi
e lhe propor um negócio
e ele quando a viu ali
num impulso abriu-lhe a porta
e a esperança, quase morta,
nesse instante lhe sorri.
Amor à primeira vista!
Amor doido, abrasador,
que deixou seu coração
qual bobina de motor.
Nesse momento o Abdala
e emoção perdeu a fala,
seu rosto perdeu a cor.
Nazaré que só queria
fugir das garras do ócio,
disse ao sírio que queria
abrir seu próprio negócio.

13
Nota de inutilidade pública escrita por Juraci no prefácio dos “Novos versos sacânicos”.
14
A expressão, assim como uma lista de outras “heresias”, custou ao cristão-novo Bento Teixeira Pinto um
longo processo inquisitorial torturando-o, arrancando sua “confissão” e, logo após, acelerando sua morte.
(ALVES, 1983).
15
Expressão comumente usada por uma “Boca do Inferno” ou para os adoradores de certidões de nascimento,
Gregório de Matos, em seus sonetos lírico-profanos.
16

Abdala, de tabela,
gostou do negócio dela
e se fez marido e sócio.
Do negócio do Abdala
Nazaré também gostou.
Da união dos dois negócios
nova empresa se formou.
Mais tarde vieram os filhos
e o trem do amor em seus trilhos
nunca desencarrilhou.
Essa história só comprova
que o amor quando dá pé,
viceja em pleno deserto,
navega contra a maré.
E, assim, os dois algemados
pelo amor e pela fé,
vivem sonho colorido
e ele, agora, é conhecido
por “Sírio da Nazaré”. (SIQUEIRA, 2012a, p. 59)

Essas ramificações multiplicantes de “Bento” e de “Gregório” alcançando muitos


Juracis evocam as pesquisas de Glissant (2005) quando percebemos conglomerados de falas
indomáveis e inclassificáveis aos olhares “mofados” de “processos tardo-inquisicionais”,
insistência viciosa pelas identificações fixas e unitárias e pelo monolinguísmo. Juraboto é cria
parida de uma mescla de simbioses e transmutações, sem precisar ser resolvida.

Eu venho de um mundo
que tu não conheces;
do onde, do quando,
do nunca, talvez...
Eu venho de um rio
perdido em teus sonhos,
um rio insondável
que corre em silêncio
entre o ser e o não ser.
Eu venho de um tempo
que os homens não medem,
nenhum calendário
registra os meus dias.
sou filho das ondas
que gemem na praia,
sou feito de sombras
de luz, de luar
e trago em meu rosto
mandinga e mistério
e guardo em meus olhos
funduras de um rio.

Jurar ao boto poderia ser uma colheita diária de fricções dos contrários, massas
oscilantes e coloridas: “[...] o indivíduo se torna, portanto, uma simples sucessão de fases,
determinadas pelos “grupos”, e que ele se vê no dever de atravessar”. (COLOMBO, 1991, p.
17

118) ou gesto xamânico-poético16 fertilizando produções artísticas da mistura de enredos que


atravessam as histórias das Amazônias.
Essa “arribada de confluências” 17
culturais no Juraboto alimenta o debate sobre
tentativas fracassadas de reconhecimento, inclusive àquelas, em nome de um
multiculturalismo “malicioso”, alertadas por Pinar (2009) e por Santos (2010). Certas
pesquisas reproduzem “astuciosamente” um reconhecimento parcial e intencional do outro,
mas acabam prestando serviço a projetos de regulação ou de recolonização.
Dado o horror da história humana, acostumar-se com os outros é, suponho, uma
aspiração nobre o suficiente. Como professor, no entanto, queremos ainda mais: o
estudo do conhecimento que transfigura a si e ao outro. (PINAR, 2009, p. 08)

Ao afirmar que o cosmopolitismo e as inteligibilidades mútuas são um projeto


filosófico, não de reduções ou de totalizações, mas de mediações, Martín-Barbero (2000) traz
como contribuição para as experimentações de Juraci o reconhecimento de espaços
intermediários, permitindo a releitura de crenças, costumes, sonhos e medos abertos à
decifração política, estética e semiótica.
Sendo criatura urdindo e urdida por jogos intersemióticos, em especial os libertinos18,
Juraboto sabe ajustar “sua linguagem" a essa situação “caótica”, construindo um fazer
poético, às vezes rizomático.
No princípio era a ideia [...] Então disse o poeta: - Que haja luz na poesia! E a luz se
fez aurora para vencer os tigres que habitam o não-ser das coisas [...] que a emoção
caminhe descalça sobre as rimas e que o poema, acima de tudo, seja a medida de
todos os sonhos [...] que no futuro todos possam, impunemente, se perder no sudário
luminoso do poema [...] 19

Para essas copulações artísticas, primeiramente polinizadas nos jornais e


“sintaticamente desdobradas pela luz” (PINHEIRO, 2013, p. 130), Lótman (1996) é
participante de um inventário teórico as compreendendo como palimpsestos, processos
permanentes de contaminações entre séries vizinhas, exigindo um público energizado e
disposto a empreender esforços para a leitura dessas mesclas carregadas de complexidade.
Essas sintaxes móveis ganham contornos de maior complexidade quando a questão
da memória é atrelada. Para Lótman (1996), Colombo (1991) e Zumthor (1993), sucessivas

16
Estudos sobre os simbolismos religiosos amazônicos destacam as finalidades terapêuticas do boto. Seria o
cetáceo de água doce um eficiente “afrodisíaco” aos homens, utilizando como amuleto, o olho e o órgão sexual
do “animal”. Juraci, dando novas traduções à narrativa, costuma dizer que, boa parte de sua fertilidade artística e
física, já que atende diariamente a convites de escolas e de entidades culturais para apresentação de suas
performances, deve-se ao fato de ser herdeiro dessa “magia”. (SIQUEIRA, 2012b).
17
Expressão cunhada por Lezama Lima.
18
O libertino, para Duvignaud (1997), questiona o mundo; joga com as simetrias “impostas”; joga com os
costumes e joga com “Deus”.
19
Orelha composta por Antonio Juraci Siqueira para o livro “Aurora que vence os tigres” de Benilton Cruz.
18

lembranças-esquecimentos indicam a impossibilidade de representação de um núcleo estável


para agregados culturais provisórios, boa parte suturados nas Amazônias, com elementos
fitomormorfos, zoomorfos e, aquamorfos.
Espetáculo! É como classifico as lembranças guardadas na memória das antigas
manhãs a bordo da ‘flor do Cajary: canoas freteiras alevantando âncoras para
reiniciar viagem. Velas de todas as cores, tamanhos e formatos. Veros poemas
concretos! Borboletas coloridas voando sobre as águas revoltas do meu sempre
amado Marajó. Hoje, quando navego por essas águas seculares, tais lembranças vêm
à tona em meio ao burburinho dos barcos, canoas, montarias e cascos motorizados
[...] Cadê as canoas freteiras com suas velas coloridas? Cadê caboclo ribeirinho
remando? Navegam nas águas turvas da memória deste velho ribeirinho que ainda
teima em trazer à luz tais lembranças engolidas por essa boiúna faminta chamada
Tempo [...] (SIQUEIRA, 2010a, s/n)

Pensadores de complexidades, apaticamente chamadas de “Contemporaneidade” por


alguns saberes ocidentais, Lótman (1996) e Zumthor (1993) entendem o retorno às matrizes
ou às camadas mais profundas da memória como um gesto que não cessa de se repetir. Força
tectônica de base em “metástase”, quando evocada.
Faustos mestiçados; risos e tempos-espaços barroquizados deixam de ser,
parcialmente, o problema centro-europeu da separação do real com o imaginário nas
Amazônias de Juraci Siqueira: “Os ‘descobertos’ assim respondem ao ‘descobridor’ cerzindo-
o na urdidura nativa. Não há, neste âmbito das permutas desidentitárias e do mútuo
pertencimento signo/paisagem.” (PINHEIRO, 2013, p. 31-32)
Entre as trevas e as luzes ou entre as lembranças e os esquecimentos, transcriadores,
como o Juraboto “transam” discursos, aparentemente díspares, como as falas dos caboclos
ribeirinhos transcodificadas para os seus cordéis. Meschonnic (2010) e Haroldo de Campos
(1989) entendem essa prática como ato de resignar, resignificar e deslocar discursos
criativamente.
Devorador-devorado por um universo simbólico de humanidades: artistas, crianças,
burocratas, “ribeirinhos” e políticos, esse turbilhão de vozes entranhadas em Juraci suscita um
manancial de problemáticas. Dentre tantas, em que medida as copulações sígnicas de Juraci
podem resignificar representações assépticas e geometrizáveis para corpúsculos de feições
barrocas?
Esse sopro híbrido, experimental e ousado de Juraci, uma renúncia parcial do corpo
em busca de outros cantos, hipoteticamente leva Juraci a fiar tecidos múltiplos: desde aqueles
tramados por argúcias interculturais aos “necrosados” pelas simetrias e pelas
homogeneizações.
19

O influxo oralizante e corpóreo adquire já, pelo contato com a modernidade


informacional e com o cruzamento de outras culturas, um sistema de contração e
expansão, onde o que seria meramente folclórico ou popularesco passa a ser, nos
melhores casos, uma nova construção possível, em amálgama, da cultura.
(PINHEIRO, 2013, p.45)

Objetivo, a partir dessas suposições, examinar fricções culturais em algumas


experimentações do manancial artístico de Antonio Juraci Siqueira, como também analisar as
hiperinflações de contágios de séries culturais e semióticas nas Amazônias e seus
desdobramentos para o labor artístico-jornalístico de Antonio Juraci Siqueira, fortalecendo,
talvez, as tímidas redes de discussões sobre a questão das traduções interculturais nos cenários
amazônicos, além de compartilhar o sinal dessas reflexões com grupos de pesquisa.
Pelas Amazônias, as cisões espaço-temporais são “naturais” e inevitáveis. Esse
homem-boto “enrosca-se nos corpos e nas palavras, e os torna variação significante,
arrastando os signos para baixo, para dentro das coisas” (PINHEIRO, 2013, p. 28). Ele é uma
miragem fruto de um conjunto de estigmas oferecidos por seus narradores e ouvintes. Peça
arqueológica garimpada da oralidade nossa de cada dia. Sensibilidade de quem primeiro ouve
para depois se expressar.
Pela necessidade de se testar, questionar e investigar o(s) objeto(s) proposto(s), foram
ponderados, sem a pretensão de “encaixotar” a complexidade das temáticas abordadas, os
encaminhamentos metodológicos: releituras das obras supracitadas do poeta amazônico e
levantamento, no arquivo público municipal de Belém, de tabloides, revistas e antologias
poéticas acolhendo suas práticas artísticas “marginais”; “garimpagem” de referenciais
bibliográficos sob a luz da semiótica cultural russa e latino-americana, do barroquismo
lezâmico, de Carpentier, das pesquisas de Amálio Pinheiro, de Jerusa Pires Ferreira, de
Viveiros de Castro, de Gilles Deleuze, Glissant e de pensadores decoloniais da América
Latina.
Como romper as amarras dos pensamentos ocidentais é um processo lento, difícil e
entranhado em nossas (de)formações, alguns desses autores serão revisitados com cuidado,
receios e olhar crítico: Huizinga (2000), Bachelard (1978), Eliade (1972), Foucault (2000),
Jung (2000), dentre outros.
Além disso, haverá a realização e a transcrição de entrevistas 20 com Juraci e com
“seu” “público”, cuidadosamente tentando evitar separações mais nítidas entre um eu
interpretante e um outro textualizado

20
Para Alessandro Portelli (1997), uma entrevista dificilmente pode criar uma situação de igualdade, mas ela- a
entrevista – pode pedir por isto.
20

[...] baseia-se na consciência de que praticamente todas as pessoas com quem


conversamos enriquecem nossa experiência. Cada um de meus entrevistados –
talvez quinhentos -, e na afirmação que se seque não há nenhum clichê, representou
uma surpresa e uma experiência de aprendizado. Cada entrevista é importante, por
ser diferente de todas as outras. (PORTELLI, 1997, p. 17, grifo do autor)

Barroquizando essas metodologias, poderia dizer que há uma pretensão de se realizar


um fazer cartográfico, redesenhando os mapas costumeiramente traçados para os artistas da
“marginália”, comunidade discursiva, aqui, tentando ser representada, sempre de forma
provisória, aberta a uma constante revisão da multiplicidade de posições e argumentos, sem
estabelecer qual é a perspectiva mais adequada. Fazer que nem mesmo seria arte e muito
menos uma ciência aos moldes ocidentais. Poderia ser, de certo modo, também um fazer
etnográfico, tentando traduzir experiências em um “dar-e-receber intersubjetivo do trabalho
de campo [...] um contraponto de vozes autorais” (CLIFFORD, 2011, p. 44). Uma ficção de
participação ao lado de quem criativamente recria a vida nas tipografias caseiras e nos
espaços públicos.
[...] o enfoque será naquilo que foi ou não falado, pois é isso que é feito numa
transcrição: transcreve-se o que foi falado, mas pode-se perceber o que foi ou não
perguntado, o que foi ou não respondido e no que está inaudível ou incompreensível
(MANZINI, 2010, p. 5)

Bachelard (1978) não parece ser o pensador mais adequado para esse exercício de
desprendimento do conhecimento ocidental, aparentemente, mas se de um sonho se faz um
devaneio, entendido como suspensão desse pensamento desbotado positivista, seria a pesquisa
uma cartografia de devaneios de um sonhador tecendo Amazônias reais-maravilhosas por
crenças, sentimentos e culturas, em constante reconstrução de sentidos:
As palavras, em nossas culturas eruditas, foram tão amiúde definidas e redefinidas,
ordenadas com tamanha precisão em nossos dicionários, que acabaram se tornando
verdadeiros instrumentos do pensamento. Perderam o seu poder de onirismo interno.
Para voltar a esse onirismo implícito nas palavras, seria mister empreender uma
pesquisa sobre os nomes que ainda sonham, os nomes que são "filhos da noite".
(BACHELARD, 1996, p.37)

Não atribuo somente a Juraci o privilégio e o perigo de abrigar em suas produções os


mais diferentes devaneios. Junto-me ao sonhador-fingidor-paraoara, “em cumplicidade”, para
repensar a precariedade de minha atuação e posição de pesquisador. Desejo, apesar de ser
difícil, fiar-imaginar uma pesquisa indócil e travestida 21 de empirias-teorias; “desafiar os
discursos hegemônicos e nossas próprias crenças como leitores e produtores de

21
Recorro a ideia de travestimento, tão bem vivida e descrita por Sarduy (1999). Tento demonstrar algumas
interseções sexuais são análogas às intertextualidades atravessando as artes de Juraci e a escrita dessa cartografia
de devaneios:“Planos que dialogan en un mismo exterior, que se responden y completan, que exaltan y definen
uno al otro: esa interacción de texturas lingüísticas, de discursos, esa danza, esa parodia es la escritura.”
(SARDUY, 1999, p.1151).
21

conhecimento” (SPIVAK, 2010, p. 08); não apenas falar de/pelos “marginais”, mas falar com
eles, sonhando algum dia: “trabalhar “contra” a subalternidade, criando espaços nos quais o
subalterno possa se articular e, em consequência possa também ser ouvido.” (SPIVAK, 2010,
p. 14)
Na exploração desse emaranhado diversificante de leituras e de vozes atravessando a
pesquisa, decidi pô-las em jogo, sem ideias justas e binárias. Preferi os rizomas22: “De Totó
do Cajary a Antonio Juracil” revirei algumas “gavetas memoriais” do Arquivo Público
Municipal de Belém e do arquivo pessoal - “a pasta preta de Juraci”, bem como os arquivos
23
imperfeito-acadêmicos , retratando as práticas recriadoras-cambiantes de Juraci. Em
“Bricolagens ao Devir”, movido pelo léxico-metáfora-devorador-deleuziano, analiso: o bicho-
homem Juraboto, personagem transportado do Cordel “Chapéu do Boto” para o vestuário e

22
Em Zourabichvili (2004, p. 52-53) encontro uma definição de rizoma cunhada por Deleuze, podendo dar
contornos à proposta da pesquisa: “O rizoma diz ao mesmo tempo: nada de ponto de origem ou de princípio
primordial comandando todo o pensamento; portanto, nada de avanço significativo que não se faça por
bifurcação, encontro imprevisível, reavaliação do conjunto a partir de um ângulo inédito (o que distingue o
rizoma de lima simples comunicação em rede - "comunicar" não tem mais o mesmo sentido [...] tampouco
princípio de ordem ou de entrada privilegiada no percurso de uma multiplicidade (para estes dois últimos pontos
[...] Ele não é feito de unidades, mas de dimensões. O rizoma é portanto um antimétodo que parece tudo
autorizar - e de fato o autoriza, pois este é o seu rigor, do qual seus autores, sob o termo "sobriedade", enfatizam
de bom grado, pensando nos alunos apressados, o caráter ascético. Não julgar previamente qual caminho é bom
para o pensamento, recorrer à experimentação, erigir a benevolência como princípio, considerar enfim o método
uma muralha insuficiente contra o preconceito, uma vez que ele conserva pelo menos sua forma (verdades
primeiras): uma nova definição do sério em filosofia, contra o burocratismo puritano do espírito acadêmico e seu
"profissionalismo" frívolo. Essa nova vigilância filosófica é aliás um dos sentidos da fórmula: "condições não
maiores que o condicionado" (o outro sentido é que a condição se diferencia com a experiência). O mínimo que
se pode dizer é que não é fácil manter-se nesse ponto: sob essa relação, o rizoma é o método do antimétodo, e
seus "princípios" constitutivos são regras de prudência a respeito de todo vestígio ou de toda reintrodução da
árvore e do Uno no pensamento. O pensamento remete portanto à experimentação. Essa decisão comporta pelo
menos três corolários: 1) pensar não é representar (não se busca uma adequação a uma suposta realidade
objetiva, mas um efeito real que relance a vida e o pensamento, desloque o que está em jogo para eles, os relance
mais longe e alhures); 2) não há começo real senão no meio, ali onde a palavra "gênese" readquire plenamente
seu valor etimológico de "devir", sem relação com uma origem; 3) se todo encontro é "possível" no sentido em
que não há razão para desqualificar a priori certos caminhos e não outros, todo encontro nem por isso é
selecionado pela experiência (certas montagens, certos acoplamentos não produzem nem mudam nada).
Aprofundemos este último ponto. Não nos iludiremos com o jogo aparentemente gratuito ao qual convida o
método do rizoma, como se se tratasse de praticar cegamente qualquer colagem para obter arte ou filosofia, ou
como se toda diferença fosse a priori fecunda, segundo uma doxa difundida. Decerto quem espera pensar deve
consentir em uma parte de tateamento cego e sem apoio, em uma "aventura do involuntário"; e, apesar da
aparência ou do discurso de nossos mestres, esse tato é a aptidão menos partilhada, pois sofremos de excesso de
consciência e excesso de domínio - não consentimos de forma nenhuma no rizoma. A vigilância do pensamento
nem por isso permanece menos requisitada, mas no próprio cerne da experimentação: além das regras
mencionadas acima, ela consiste no discernimento do estéril (buracos negros, impasses) e do fecundo (linhas de
fuga). É aí que pensar conquista ao mesmo tempo sua necessidade e sua efetividade, reconhecendo os signos que
nos obrigam a pensar porque englobam o que ainda não pensamos. E eis por que Deleuze e Guattari podem dizer
que o rizoma é questão de cartografia, isto é, de clínica ou de avaliação imanente. Acontece, sem dúvida, de o
rizoma ser imitado, representado e não produzido, e servir de álibi a amálgamas sem efeito ou a logorréias
fastidiosas: pois se acredita que basta que coisas não tenham relação entre si para que haja interesse em vinculá-
las. Mas o rizoma é tão benevolente quanto seletivo: ele tem a crueldade do real, e só cresce onde efeitos
determinados têm lugar.
23
Recorro a Colombo (1991), para representar nossas infindáveis práticas arquivistas, inclusive àquelas
desejando aprisionar e redefinir práticas artísticas recriadoras.
22

paras as performances de Juraci; os múltiplos tempos, os infindáveis espaços amazônicos


habitando “Irmã Serafina Cinque: o anjo da Transamazônica”, além das mesclas
“sat(c)ânicas” de “Os Novos Versos Satânicos”. E, em “Por baixo do chapéu do fingidor”,
analiso a participação e a produção de Juraci com a Malta dos Poetas Folhas & Ervas; com a
Sociedade dos Poetas Vivos e com Extremo Norte. Seria essa “corja” de poetas capturada e
domada pelas políticas culturais? Ou essa malta artística constrói um discurso-resposta às
práticas hegemônicas? Sob as literaturas dedicadas aos tricksters e aos discursos decoloniais,
realizo leituras para essas experimentações.
23

De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis
de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as
semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em
nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão
nem capim.
Guimarães Rosa

RIZOMA 1: DE “TOTÓ DO CAJARY” A ANTONIO JURACI

1.1. O JOGRAL NOS JORNAIS

Revirando os baús mnemônicos desse Juraci plural, alguns “hostis” outros nem tanto,
encontrei, no ano de 1980, uma das primeiras referências às suas artes. Tratava-se do jornal,
não mais em circulação, A província do Pará, relatando, “em primeira mão”, Totó do
Cajary 24 , estudante de filosofia, açougueiro e leitor “metido a escrevedor” vindo dos
Marajós25 atrás de estudo, de “auditórios”, e de oportunidades na coluna dedicada à cultura
“Jornaleco”. (SIQUEIRA, 2012b). Totó, nessas primeiras “penas”, transcria o Chupa-chupa26.
O “seu” personifica governantes e seus estratagemas “vampirescos” “chupando” nossos bens
e a nossa paciência.

24
Distrito do município de Afuá/PA situado na extremidade norte-ocidental da Ilha de Marajó.
25
É o maior arquipélago flúvio-marítimo da Terra. Ilha de Marajó, com cerca de 42 mil quilômetros quadrados,
é a maior ilha, ainda existindo cerca de 2.500 ilhas e ilhotas “periféricas” espalhadas por todos os meandros da
região.
26
O chupa-chupa tratava-se de fenômenos relacionados com a suposta presença de objetos voadores não
identificados (OVNI) nas regiões ribeirinhas da Amazônia, aos arredores de Belém, na Ilha do Marajó e no delta
do Rio Amazonas. Tais fenômenos ocorreram na década de 1970 até os primeiros meses de 1981. De acordo
com as narrativas de testemunhas e de suas “vítimas”, o fenômeno ocorria pela noite com criaturas semelhantes
aos seres humanos de estatura média. Os OVNIs tinham formato esférico, aparência cilíndrica e mais raramente
forma de peixe. A maioria das pessoas que observavam fatos ligados à evidência de extraterrestres era atingida
por feixes de luz supostamente disparados. A "luz vampira" tinham ação paralisante e deixava consequências
duradoras: vertigem, dores no corpo, tremores, falta de ânimo, sonolência, fraqueza, rouquidão, queda de pelos,
descamação da pele lesada (queimaduras de 15 cm de primeiro grau no tórax) e dores de cabeça.
24

Figura 1: O leitor poeta


“Quadrinhas Mimosas” 27
comprimidas em um exíguo espaço e imprecisas, como o
corte do açougueiro 28, tematizavam a capital paraense como um “mundongo-de-meu-deus”.
Poderia ser essa expressão uma chave de leitura para perceber em Totó um transeunte-
etnógrafo dando moradia, em suas métricas iniciais, às paisagens sonoro-imagéticas de
Belém.

27
Primeira publicação que se tem notícia de Totó do Cajary.
28
Segundo Antonio Juraci: “À época eu trabalhava no açougue do João Roque, matadouro localizado às
proximidades da Fortaleza de São José (Amapá)”.
25

Outras gavetas memoriais, como a das imagens, registraram pela Folha de Belém 29, as
primeiras aparições visuais do então comerciário Juraci, participando e sendo premiado com o
poema “Poema para Belém”, no II Encontro de Poesias de Belém, em 28 de agosto de 1980.
Era descrita metonimicamente uma Belém morena, faceira e quente, diferente da capital
europeizada traduzida por seus “concorrentes”, trovas, já, carregadas de vozes.
Poema para Belém

Belém moreninha
das lindas mangueiras,
das tardes chuvosas,
das moças faceiras!

Belém das manhãs


de sol radiante,
das praças floridas,
bosques verdejantes!

Portal da Amazônia,
recanto de amor!
Estrela ofuscante
sobre o Equador!

Teu rico passado


alia-se ao presente
e de braços dados
caminham pra frente!

Teu brado de fé
ecoa pelos ares,
nas ruas, nas igrejas,
nas praças, nos lares!

Berço de poetas,
de grandes artistas,
de heróis valorosos
e iguais estadistas! (SIQUEIRA, 2015b)

Buscando outras espacialidades, Totó do Cajary, pelas charges nutridas das oralidades
nossas do dia a dia, demonstrava suas indignações diante de questões sociais não cessando de
se repetirem. Timidamente, representava as relações, às vezes “patológicas” – para não
falarmos de relação alguma – das políticas públicas com povos, costumeiramente chamados
da floresta, padecendo historicamente dos planos lisos e astuciosos do chamado “grande
capital.”

29
Periódico veiculado na cidade de Belém nas décadas de 1960/70 e 1980.
26

Figura 2: Totó, as imagens e as questões sociais.

Em 1981, publicando seu primeiro livro artesanal, “Verde Canto”, há uma sutura de
lembranças de Cajary às experiências da “urbanidade”. Nessa dicotomia, em alguns
momentos, de contornos redutores, Totó lembrava dos “causos” de sua infância, inclusive do
Muiraquitã30, seu amuleto inseparável e indispensável para fertilizar suas produções artísticas
(SIQUEIRA, 2012b), magma subterrânea multivocal reverberando de seu “emaranhado
chavascal”.
Verde Canto
Verde é o meu canto
vivo muiraquitã de amor talhado
na pedra da existência e pendurado

30
Juraci reconta em diálogo a narrativa sobre esse amuleto tão perseguido por Macunaíma de Mario de Andrade
que garante fertilidade, em múltiplos sentidos, a quem se dispõe a usar o pequeno artefato zoomorfo de cor
verde. Seria ela, pelo olhar de vários historiadores, mescla de mitologia grega emaranhada de traduções
ameríndias.
27

no invisível pescoço do amanhã.


Verde é o meu pranto
musgo a crescer nas fendas seculares
abertas pelas mãos da malquerença
na história carcomida deste chão.
Verde é o veneno
que escondo na palavra – jararaca
furtivamente oculta entre a folhagem
no emaranhado chavascal de mim. (SIQUIERA, 2015b)

Se as lembranças podem ser consideradas signo de si mesmas, Juraci, sobre a


entrevista à folha do Povo31 diz: “Eu falava da conclusão de meu curso de filosofia, em 1986,
e do meu desejo de um dia viver da poesia!” (SIQUEIRA, 2012b). Era já um Totó fazendo
dialogar as vozes das ruas com a filosofia clássica.

Figura 3: O bacharel em filosofia

31
Periódico, ainda em circulação, da cidade de Macapá/AP.
28

Em 1987, pela “Resenha Municipal” 32


, encontrei uma das primeiras críticas ao
trabalho de Juraci. Seria ele, para o historiador José Valente 33, um “simbolista de mão cheia.
Modernista autêntico [...] dominando as rimas ricas e dando novas feições ao amor”. Ser
“outro” era a medida para Juraci ser poeta de verdade.
Pensando com Coutinho (1988, p. 11), as críticas ao então jovem poeta “Totó do
Cajary” seriam elas o reflexo de “toda sorte de medidas [...] inventadas - violentas ou sub-
reptícias – para coibir os impulsos de autonomia”.

Figura 4: Totó, o simbolista-modernista.

32
Periódico paraense não mais em circulação.
33
Nasceu em 1927, no município de Barcarena, próximo à Região Metropolitana de Belém. Ao longo de sua
carreira literária e como historiador autodidata, José Valente lançou mais de dez livros nos gêneros de história,
prosa e poesia.
29

Essa “crítica construtiva”, aos olhos de Totó, aos meus, rendição aos processos
recolonizadores34, coincidiu com o lançamento da obra “Piracema de Sonhos”, um “marco”
(SIQUEIRA, 2012b) nas suas relações com os circuitos culturais mais restritos. Tratava-se de
uma publicação financiada por recursos públicos divulgada nas “colunas sociais.”
(SIQUEIRA, 2012b). Totó do Cajary, como piracema, começava a “desovar” seus devaneios
provocando sujeitos de outras territorialidades:
Antonio Juraci Siqueira é um dos mais importantes trovadores do Brasil. É pela
trova que seu talento se expressa de modo peculiar e original. Todavia, o poeta
encontra, em outras formas poéticas, meio e finalidade de sua expressão, sem nunca
no entanto, perder a simplicidade de expressão e clareza na forma. (João de Jesus
Paes Loureiro35).

Recebi o Piracema de Sonhos, apanhados numa rede belamente tecida, malha de fios
de Ariadne, ou melhor, cabelos de Iara... que você canta o que é nosso, nosso chão e
nossas coisas, nossas ânsias e abundâncias. Quisera pegar uma cambada em cada
mão, empunhar pro alto e mostrar pra essa malta de arrivistas semicultos, que
maltratam essa terra, que a peixeira do caboclo é tão firme e tão poderosa como a
lança guerreira de Dom Quixote. E enfrentar numerosíssimos e poderosíssimos
exércitos com uma cambada em cada [...] (Vicente Salles36)

Totó, sob o ritmo de algumas malhas discursivas institucionais, ia aderindo


“estrategicamente” à causa dos discursos mono-identificadores - sempre “defendendo” e
“resgatando” a “cultura popular” - o que o fez ser “promovido” de “açougueiro escrevedor” a
príncipe dos trovadores.
Mignolo (2008, p. 12) desenha essa matriz colonial do poder como “uma estrutura
complexa de níveis entrelaçados”, inclusive nas representações culturais, terrenos de extrema
fertilidade explicativa atualizando e contemporizando processos supostamente superados,
apagados e assimilados pelos “devaneios” de quem costuma chamar o momento de
modernidade.
Apesar das tentativas desse aprisionamento canônico pelas críticas geometrizantes,
Juraci lembra o artigo “Entre a Filosofia e o Açougue”, no jornal O Diário do Pará em 1989,
uma referência a seu açougue como um espaço de convivência alimentando suas produções
artísticas: “lá, eu fazia versos e malabarismos sempre provocado pelos meus fregueses”

34
A colonialidade, pelo olhar de quem sente o peso de sua mão (QUIJANO, 2000), pode ser entendida um dos
elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista. Se funda na imposição de uma
classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do dito padrão de poder e opera em cada
um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e da escala social.
Origina-se e mundializa-se a partir da América.
35
Escritor, poeta e professor universitário paraense. Professor de Estética, História da Arte e Cultura Amazônica,
na Universidade Federal do Pará. Mestre em Teoria da Literatura e Semiótica, PUC/São Paulo e Doutor em
Sociologia da Cultura pela Sorbonne, Paris, França.
36
Historiador, antropólogo e folclorista paraense considerado um dos mais importantes intelectuais do século
XX, da Amazônia e do Brasil. Fez esse comentário na orelha de “Novos Versos Sacânicos”. (SIQUEIRA
(2012a).
30

(SIQUEIRA, 2012b), preocupação de não perder os laços de sua Arte com a vida “de
verdade”.

Figura 5: Entre a filosofia, a poesia e o açougue.


Leio esse malabarismo verbal do açougueiro-poeta demandado por seus fregueses-
leitores, como: “um grande texto verbi-voco-visual, que vai avançando, sem fronteiras [...]
busca de múltiplos instrumentos linguísticos, de vários sistemas de representação [...] uma
procura de integração de vozes”. (PIRES FERREIRA, 2003, p. 186-188)
Já pela década de 1990, com as publicações avulsas dos “Versos Sacânicos”,
caleidoscópios do caos e a desordem às recepções puritanas, vejo um Juraci sem receios de
31

bulir com e no desconhecido, no perigoso e no inusitado. Era uma “pena” compartilhada com
os “escritos de Gregório de Matos, rebelde maldito, “subversivo, anticlerical e pornográfico”,
de um Brasil fudido e mal pago, como ainda hoje.”37
Sacânicas elucidações
Em 1989 publiquei “Os Versos Sacânicos” paródia ao título de “Os Versos
Satânicos”, livro do escritor britânico Salman Rushdie, pelo qual teve a cabeça posta
a prêmio pelo Aiatolá Khomeini, líder espiritual do Irã, na época. Na ocasião
publiquei parte do que havia saído até então no PQP - um jornal pra quem pode,
editado pelo jornalista e incentivador Raymundo Mário Sobral. Aqui reúno parte do
que foi publicado depois no citado jornal e que não se encontra nas edições
anteriores de “Os Versos Sacânicos”, deixando de fora os versos de cunho temporal
reunidos em “Colmeia de Tataíras – versos de circunstância, além de outras
composições já publicadas em outros títulos e outras que não achei relevante”.
Inclui, ainda, “As Aventuras do Anão Labioso” e o “Manifesto Cultural do Xiri
Relampiando”, ambos não publicados no PQP. Diferente das edições anteriores que,
por pura sacanagem, nem sumário tinham, aqui o leitor encontrará um pouco mais
de organização, estando este volume dividido em duas partes: a primeira, “No Reino
da Enrabação”, contendo versos satíricos e a segunda, “No Reino da Sacanagem”
versos sacânicos. E chega de papo-furado, que sacanagem, também, tem hora.
(SIQUEIRA, 2012a, p.01)

Esses versos subversivos foram acolhidos em espaços editoriais mais “despudorados”.


Eram o lugar do empoderamento de práticas marginais, lugares intervalares, zonas com
limites difusos entre o “centro” e a “periferia”, colocando em constante deriva os
pensamentos pautados na unidade e na pureza das representações para as Amazônias.
Nesses espaços de deslizamentos simbólicos, com a ajuda de Sarduy (1988), as
copulações barrocas significariam ameaçar, julgar e parodiar quaisquer normatizações.
Trabalho de marchetaria.
A marchetaria: justaposição de texturas diversas, de veios diferenciados, jogo sobre
contornos precisos, sem relevos: mimésis barroca. O que aparece na marchetaria,
pela adição de segmentos de grão diferente, mais do que a profundidade da
paisagem, ou o volume dos frutos, é o artifício do trompe-l’oeil; fingindo denotar
uma outra figura, a marchetaria expõe a sua própria organização convencional de
representação. Assim a linguagem barroca: regresso a si mesmo, pôr em evidência
do seu próprio reflexo, encenação da sua maquinaria. (SARDUY, 1988, p. 54).

A ampliação de escrituras mefistofélicas 38 , como as de Juraci, em tempos de


“arrefecimento” da ditadura militar 39 , incentivou o surgimento no estado do Pará dos
chamados “filhotes do Pasquim” 40, editoriais dedicados a colocar em crise 41, pelo riso e pela

37
Comentário de Vicente Salles confidenciado, por carta, a Juraci.
38
No próximo capítulo, essa escritura receberá uma abordagem mais detalhada.
39
Segundo Antonio Juraci Siqueira, o seu primeiro verso sacânico foi aceito para publicação em meados de
dezembro/1979 (governo militar de João Baptista Figueiredo).
40
Para o jornalista Raimundo Mario Sobral, em entrevista concedida em 2012, o semanário O Pasquim, fundado
em 1969, foi um fenômeno editorial incentivando a aparição, na região norte, de espaços editorias despudorados:
SOBRAL, Raimundo Mario. Belém: 08 de novembro de 2012. Entrevista concedida a Hiran de Moura Possas.
32

comicidade, as estabilidades e determinismos culturais. Seriam olhares para além dos


“buracos das fechaduras”: “dimensão mórbida e ditadorial de tais organismos, os prazeres da
carne, os atos venéreos e os ditos de poeta de boteco, causadores do humor e do escândalo”
(PIRES FERREIRA, 1985, p. 33).
Um desses espaços de tradução das “bordas” foi o periódico semanal PQP, “Um
Jornal Para Quem Pode”, criado em 1979 com tiragem média semanal de 10.000
exemplares até o final dos anos 1980, quando perdeu fôlego. Na década de 1990, “mudando
de sexo”, passou ao formato de revista, mas sem o sucesso das vendas anteriores,
experimentando, em 2002, sua “morte”. (SOBRAL, 2012)

Figura 6: 1ª Edição do PQP


O PQP, esse espaço acelerando contágios múltiplos, em versão microscópica,
desenhou um painel mestiço e às vezes redutor às culturas amazônicas, envolvendo artistas
advindos do cordel, dos cartuns e das crônicas.
Segundo seu idealizador o “comendador” 42 Raymundo Mario Sobral, sua situação
financeira delicada somada ao “desperdício de experimentações artísticas ligadas ao riso”
(SOBRAL, 2012) foram o mote para empreender “essa aventura editorial”. Esse tabloide
cunhava joalheria de linguagens, acolhendo vasto material em ebulição de microunidades
sociais, uma delas, as ruas. Esse locus paródico imanou experiências sociais “estranhas” e
“marginais”, sempre sob um tom corrosivo, rebelde e devorador, retorcendo imagens
domesticamente veiculadas à cidade de Belém, a maioria europeizantes.

41
O professor Amálio Pinheiro, nas reuniões do Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura: barroco e
mestiçagem, pensa a crise não sendo reduzida a um simples momento de revolução criativa nas cenas da
América Latina.
42
Do imaginário paraense, surgiu a explicação de que para falar de maneira despudorada sobre tudo e sobre
todos “Ridendo Castigat Mores”, fazendo severas observações sobre o grotesco das coisas supostamente solenes
e o ridículo das coisas supostamente respeitáveis. Esse fazer só poderia partir de alguém que tenha recebido a
comenda da coragem para empreender esse ofício. (SOBRAL,1994, p. 24)
33

Alguns monstros do jornalismo, na época, encontraram no PQP espaço para dar viés
às suas produções humorísticas, já que nos seus espaços editoriais oficiais não
encontravam aceitação para essas produções. Dentre muitos perdidos em minha
memória, lembro-me de Pedro Veriano (médico, jornalista e crítico de cinema),
Edyr Proença (advogado, jornalista e narrador esportivo) e Acyr Castro (crítico de
cinema) (SOBRAL, 2012, p.s/n).

Abrigando artes adulterinas ou representações transgressivas, o PQP foi, por cerca de


três décadas, o espaço de “deboche” de transcriadores. Juraci “penetrava” e era “penetrado”
pelo mundo “pornográfico”, o pornoscópio, a experiência da transgressão.
Minha terra tem mangueiras, maniçoba e tacacá, os patos que aqui patetam, não
patetam como lá! E nessa arena de corda todo pato passará, porque, neste mundo
ingrato, quem ainda não foi pato, na certa, um dia será! (SIQUEIRA, 2012a, p. 07)

Tais processos de devorações culturais, como os registrados no PQP, seriam um


Aleph borgiano a meu ver, procurando redobrar um repertório temporário e variável de
culturas sempre em busca da outridade: “um punhado de signos que se desenham, se
desfazem e voltam a se desenhar” (PAZ, 2009, p. 334).
Nessa publicação pícara, percebi, por parte de seus leitores e cronistas, traduções para
a cidade de Belém-PA, como lugar da bastardia fundadora (LIMA, 1988), representações
recebendo fervorosas críticas, sobretudo dos “intelectuais de gabinete.” (PINHEIRO, 2013:
98).
“Desenhar” representações bastardas para a capital paraense é um esforço
vanguardista ou quem sabe subversão estética tentando dar conta das assimetrias-tensões de
“culturas compósitas” (GLISSANT, 2005). Essa marginália paraoara estaria tecendo um
Manifesto Antropófago, ressignificando o bom selvagem rousseauniano para um devorador de
outros corpos culturais. Há, por essa perspectiva, um rompimento com “las conexiones
preexistentes para poder manejarnos desde un estrato amorfo a la búsqueda de nuevas
articulaciones que nos repongan una visión más coherente y a la vez más identificada con la
creación lite”. (RAMA, 1982, p. 43)
Embora as arquiteturas fabulosas
Escondam seu tino traiçoeiro
Nem os negros vedas, o evangelho e o corão
Escondem as manchas difusas
Voláteis como fumaça de fumo
Na construção do grande sanatório
(MALTA DE POETAS FOLHAS & ERVAS, 1999, p. 2126)

Chamar Belém de extraordinária ou de maravilhosa seria reducionismo se levássemos


em conta suas muitas representações barrocas nas Artes dos Juracis das bordas. O cotidiano
34

carnavalesco de Florismunda Tamuatá43, àquela que “todo mundo” deseja “tirar seu couro”,
talvez ilustre metonimicamente “complexidades” substituindo definições para a capital
paraense.
Tirando o couro

Florismunda Tamuatá,
cabocla do cu pela
de trepar na capoeira,
no barranco, no cerrado,
veio cá para a cidade
e voltou no mês passado
com a xana calejada
e o juízo atarantado.

Florismunda que já traz


no nome rima “abundante”,
tem um balaio aloprado,
uma coisa alucinante!
E tanto é assim que em dois meses
ela arranjou mais “fregueses”
que caixeiro viajante.

Porém, da tal “camisinha”


ela não sacava nada,
por isso ficava pasma
ao fim de cada trepada
ao ver os homens jogarem
a tal coisa na privada.

Ao voltar pro interior,


Florismunda, numa roda
de amigas afiançava
que aqui em Belém era moda
os homens tirarem o couro
da pica, depois da foda. (SIQUEIRA, 2012 a, p. 28)

Há outras cidades entranhadas em Belém, pelos devaneios de Juraci e pela ajuda


providencial de Ítalo Calvino (1990, p. 44): “As cidades são como os sonhos, são construídas
por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras
sejam absurdas”. Cada canto, cada beco, cada baixada, avenida, teatro, sem hierarquizações,
compõem os retalhos coloridos de uma colcha indoafroportuguesa.
Belém é “ilha” flutuante repleta de labirintos líquidos alimentando um Mar Dulce 44,
regulando e refletindo a vida de seus protagonistas. Esse sistema arterial e venoso, repleto de

43
“Brincando” com o tupi, o tamuatá, peixe caliquitídeo, era também considerado “peixe do mato, meio anfíbio”
pela sua capacidade de viver no lodo, resistindo à seca dos rios. Dizia-se que era encontrado muitas vezes em
plena floresta, longe de lagos e rios, em migrações de cardumes, por ser seu costume passar de um lago para
outro, ou de um lago para um rio ou vice-versa, aproveitando-se para isso de qualquer banhado ou simples
umidade que apresentasse o caminho a percorrer, sendo que em certas circunstâncias, quando fica empoçado e
pressente uma seca maior, se arrisca migrar até sob uma simples chuva. Meio peixe, meio anfíbio. Híbrido e
cigano como muitas Frorismundas amazônicas.
35

intermináveis teias e de ramificações simbólicas, desemboca nas obras dos artistas


amazônicos. Esse “marzão” hipnotiza; solapa; restaura; faz desaparecerem e reapareceram
ilhas; esconde embarcações; devora cidades e artistas; alimenta populações e transcriadores;
guarda em suas profundezas ricas encantarias como o boto, iaras, anhangás, boiúnas, cobras
grandes. (LOUREIRO, 1995).
Belém é a cidade também dos prédios e das palafitas, dos “puteiros” e das festas de
aparelhagens, cidades invisíveis45 aos olhos padecendo das “miopias culturais.”46:
A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se
dilata [...] escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das
escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento
riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (CALVINO, 1990, p.7)

Forçar-me ou “forçar” a crítica monolíngue a pensar com os pés essa cidade nomádica,
líquida e instável exige um labor hercúleo. Somos, ainda, as mentes e os corpos sedentários
tão bem descritos por Baitello (2005, p. 23): “inflamos os signos, símbolos e as próprias
imagens, para que nos protejam como escudos. E passamos a viver dentro da armadura dos
signos e símbolos, as imagens de corpos”.
O PQP, essa tela de outras Belém, desviou por três décadas os olhares treinados nos
“suntuosos teatros da Belle Époque” para as ruas e para as casas noturnas, paisagens nas quais
os códigos mais sólidos vão perdendo sua rigidez, experimentando a vulnerabilidade e a
reversibilidade.

44
O explorador-etnógrafo espanhol Vicente Yáñez Pinzón chamou o rio Amazonas de Río Santa María del Mar
Dulce, o que posteriormente foi reduzido para Mar Dulce (literalmente "Mar Doce"), devido à quantidade de
água doce impulsionada pela correnteza do rio para dentro do oceano Atlântico.
45
Pequeno empréstimo da obra homônima de Ítalo Calvino.
46
O termo chegou a mim Por Boaventura Sousa Santos (2002)
36

Figura 7: Charge “pornográfica”


Saliba (2002), referindo-se à sobreposição de espaços, sejam eles nas cidades e nos
signos, dialoga com as tramas interativas calcadas das oralidades citadinas migrando para o
37

jornal. Cenas íntimas e cotidianas permanecem em novos corpos, diminuindo as fronteiras do


público com o privado.
A POLÍTICA DA IMPORTÂNCIA (OU O FALO E O FALHO). Uma vez o
homem olhou para o seu centro e viu um pênis. Depois, em tudo que o conquistava
colocava uma réplica do seu pau, principalmente no centro: torres, arranha-céus,
obeliscos, padrões. O falo não é o pau. É arrogância dele. A semelhança entre o
pênis e o falo é que ambos, às vezes, falham. É o caso das maiorias das “obras
públicas”: estradas, hidrelétricas, penitenciárias, habitação, escolas... tudo pela
metade. (PQP, Belém: Raimundo Mario Sobral. 1976/1996. Nº 245, p. 25).

Travestidas por deboches, humor direto, conciso e quase ingênuo, essas oralidades
devoradoras invadem com “delicioso solavanco mental que resulta da passagem de um
sistema de referência para outro” (SALIBA, 2002, p. 98) “fazendo saliência ou saliente com
essa coisa séria e frígida.” (SIQUEIRA, 2012b).
Os “orgasmos criativos” do PQP chegaram ao fim em 2002, em parte, pela perda da
imprevisibilidade dos deboches. Sobral (2012) diz que as contestações e os “ferimentos”
provocados nas autoridades tardo-militares começaram a dar lugar à economia de
obscenidade. Em tempos de “democracia”, artistas mergulhavam na “esterilidade” criativa.
“literatice” [...] verborreia que, quase sempre, em relação à obra pornográfica (que
por isso mesmo não é mais pornográfica), é o elemento desumanização do obsceno,
das personagens da obra obscena e do expectador [...] uma experiência degradada do
obsceno (PIRES FERREIRA, 1985, p. 183).

Servindo a projetos, por mim denominados de barroco-regulatórios47, recolonizadores


do gosto e da singularidade pluralizante de estéticas, o PQP abrigava, em seus momentos
agônicos, escrituras de quem não vivia as experiências das bordas, traduzindo um humor
“correto”, sem a ousadia de outrora. Surgia, dessa forma, um “humor bom” 48 imediatamente
responsável em cobrir a nudez das “garotas da capa”, maior representatividade do jornal
pícaro paraense.

47
Seguindo as impressões de Slavoj Zizek (2002): Ser marginal hoje em dia faz parte da cultura dominante, não
é algo automaticamente subversivo [...] Ser marginal não quer dizer que se é marginal, mas sim uma maneira de
determinar sua posição, que na verdade pode ser bem central. Gosto de citar Chesterton nesse ponto, ele diz que
a regra hoje em dia é ser heterodoxo, quer dizer, a posição verdadeiramente marginal é a ortodoxia. Vivemos
numa época muito estranha.
48
Para Elias Saliba (2002), a partir da terminologia usada por Propp (1992), o humor bom foi uma categoria
surgida no Brasil, início da república, para arrefecer as críticas e a língua ferina de quem transitava pelas vias dos
cantos paralelos.
38

Figura 8: “Garotas da Capa”

Seguindo direções diferentes do PQP, Antonio Juraci Siqueira percebia que já era e
poderia tornar-se sujeito ainda mais múltiplo. Sem deixar para trás suas “alquimias”
hiperbólicas, sem cobranças ou culpas de traduzir uma cena artística menor ou pior,
experimentou o risco de jogar por novas moradias, em princípio, nas edições artesanais
confeccionadas pelo autor.
Não é todo tempo que as pessoas estão dispostas a publicarem seus textos. Percebi
que poderiam divulgar e vender minhas obras, por conta própria. Meu lucro é apenas
o reconhecimento das pessoas. Não quero fazer públicos. Eu escrevo pra todo
mundo. (SIQUEIRA, 2012b)
39

Figura 9: Capa dos Versos Sacânicos

Esse “prazo de validade” alargado para a obscenidade de Juraci, em maior parte,


deveu-se à sua insistência em envolver:
O cotidiano, as pessoas do cotidiano, o que está mais próximo, o realmente próximo
– tão próximo que posso ser eu. Nada mais excitante do que o obsceno com aquela
pessoa ali, aqui, o obsceno em dimensão humana [...] para nele produzir seus
famosos efeitos deletérios (PIRES FERREIRA, 1985, p. 185-186).

Repensando a “morte” do PQP e o fôlego criativo de Juraci: de “açougueiro metido a


escrevedor” à artista multimídia, recorro ao semioticista russo Yuri Lotman (1998, p.186): “El
dinamismo de las componentes semióticos de la cultura, por lo visto, se halla vinculado al
dinamismo de la vida social de la sociedade humana”.
O PQP e Juraci, ao alinhavarem com outros textos, estariam imersos em um largo
caldeirão composto por estruturas heterogêneas. Os dois foram “regurgitados” pela
40

necessidade de auto-renovação constante, mecanismo fundamental do trabalho cultural. Juraci


passou a viver em outras moradas enquanto o PQP ficou nas lembranças dos seus leitores.
Essa tessitura infinita de novas culturas, novas memórias e novos sentidos fizeram do
PQP e de Juraci dobras querendo “trapacear” a “morte”, o esquecimento, busca incessante de
novas fusões ocasionais e infinitas.

Figura 10: Performance: O filho do boto

“Brincando com fogo” e buscando o alcance de seus sinais para as multidões, o


flâneur amazônico, ao assumir novos riscos, vem transcriando o quadro esquálido e incolor de
Belém geralmente desenhado pelas representações institucionais: “A liberdade lúdica das
formas barrocas parece encontrar sua incitação nessa angústia histérica que é o resultado da
ruptura de dois mundos.” Duvignaud (1997, p. 112).
Das reinvenções de Juraci pelos anos 90, percebi seu trânsito pelas crônicas em forma
de festa. Escritura alegórica, hiperbólica e irônica continuando a manipular e atormentar, em
41

outras formas de vida49. Em “Sob o Signo da Merda” toca questões “mal cheirosas”, para não
dar em “merda”. É uma desescritura, supressão, omissão, acréscimos e deslocamentos
devoradores afiando seu ferrão para remexer um cotidiano confuso, desajustado e incerto: “as
convulsões do riso jogam abaixo o edifício de nossos princípios e corremos o risco de perecer
embaixo dos escombros” (PAZ, 1979, p. 15-16).

Figura 11: Sob o signo da merda


Em “Espelhos e Punhais”, uma edição encadernada artesanalmente de tiragem “sob
encomenda”, pela “luta diária com o verbo e a verba” (SIQUEIRA, 2012b), Juraci recebe

49
Tecendo e entrecruzando suportes narrativos.
42

“novas” críticas, como a do professor, poeta e “imortal” João Carlos Pereira 50: “Na poesia de
Antonio Juraci Siqueira, o que fica mesmo é a emoção. Emoção de mundo. Sentimento de
essência e espanto”.
Alfredo Garcia 51 , na mesma época, descreve Juraci com contornos barrocos,
considerando-o um doublé de filósofo, açougueiro, poeta, declamador, agitador cultural,
artesão e cartunista.

Figura 12: Crítica de Alfredo Garcia

50
João Carlos Pereira pertence à Academia Paraense de Letras.
51
Alfredo Garcia é natural de Bragança/PA e reside há dezessete anos em Belém. Jornalista e radialista,
membro-fundador da APE (Associação Paraense de Escritores).
43

Em seis de julho de 1997, no Diário do Pará52, Juraci informa o fim do açougue e do


caderno poético-ensebado das vendas “fiadas” graças ao “suspicaz plano real”. Foi a nocaute
o açougue poético após trinta anos. Juraci, filósofo e poeta, agora experimentava o gosto de
ser ex-açougueiro e desempregado.

Figura 12: Ossos do ofício


Lembrando dos “cortes” dos “ossos de ofício”, Juraci dizia estar atento aos discursos
maliciosos nos mercados, para depois recarregar suas experimentações de um léxico
superabundante: “todo um vocabulário popular de fundo erótico e gírio, cujo referente era
sempre o ato sexual e seus componentes” (PIRES FERREIRA, 1985, p. 01).
Pelo mês de janeiro de 2000, participando do programa Fantástico no quadro “Me
Leva Brasil”, Juraci, agora professor da rede pública municipal, continua contando seus

52
Periódico diário de Belém/PA.
44

“causos”. Fala sobre sua nova faceta: ser filho de boto53. Vestido de branco, com chapéu de
palha na cabeça, agora pretende seduzir transeuntes das praças, crianças nas escolas e o
público nos eventos culturais do Pará.
Nessa fase, sua massa criativa-obscena parece ter sido arrefecida em favor de um
Juraci, aparentemente, mais “sóbrio”. Agora, usava um terno branco e versava para os
“pequenos’.

Figura 13: O performer


“Mexendo” com a curiosidade dos leitores, publicou em três de setembro de 2001 “O
Chapéu do boto”, cordel autobiográfico premiado e editado pelo IAP (Instituto de Artes do
Pará). Seria um ritual iniciático. Totó do Cajary cedia espaço para o Juraboto, àquele
abraçando e distribuindo trovas, em forma de coração, sobretudo às crianças.
Ao povo rogo atenção,
a Deus Pai, sabedoria.
para contar uma história

53
Nas Amazônias, imbricando o real com o imaginário, ribeirinhas grávidas explicam suas astúcias sexuais
resultadas do encantamento do boto. Em forma de “gente”, o homem-bicho as seduz, não assumindo a
paternidade. Juraci afirma ser a consumação da cópula de sua mãe com o encantado.
45

cheia de ação e magia:


a lenda viva do boto,
ser mandingueiro e maroto
da nossa mitologia.

Esse caso aconteceu


muito distante daqui
numa noite enluarada
às margens do Cajary.
Vovó contou-me essa história,
eu a guardei na memória
e hoje, em versos escrevi.

Todo o drama começou


quando, num dado momento,
por lá surgiu um rapaz
de estranho comportamento:
nas festas que ele chegava,
das caboclas malinava
sem dó nem constrangimento.
(SIQUEIRA, 2012a: 78)

Agora, funcionário público estadual a serviço do SIEBE (Sistema Estadual de


Bibliotecas Escolares), o filho do boto diz trabalhar com o que sempre desejou: “Fico a
disposição de escolas, de feiras e de eventos culturais em geral. Meu compromisso é com a
cultura e a leitura”. (SIQUEIRA, 2012a).

Figura 14: Juraboto e uma “moradora de rua”.


46

Garimpado de um número imensurável de artistas da terceira margem54, do caminho


do meio, do desenraizamento e da errância, aqueles se propondo a intermináveis travessias
pelos domínios porosos e permeáveis da vida, Juraci vem experimentando uma metamorfose
contínua por jogos verbo-culturais ininterruptos:
O barroco suprime aquilo que denota, anula-o: o seu sentido é a insistência do seu
jogo [...] um funcionamento semiótico, sem ponto de referência, sem verdade
última, é todo ele relação, grama móvel em tradução constante, dinâmica.
(SARDUY, 1988, p. 149).

Vivendo um tempo de “multiplicação cancerosa do eu” (PAZ, 2009: 102), no qual as


trocas são as únicas regularidades possíveis, aqueles que eu chamo de flâneurs promovem
colisões de grande complexidade, cabendo às escavações arqueológicas das pesquisas,
inclusive a “nossa”, regeneradores da espontaneidade, homo risibilis como Juraci,
reoxigenando matrizes culturais pelo poderoso retorno da oralidade à escrita: “inteligibilidade
ao que se esconde dos sistemas das interpretações comumente utilizados.” (BALANDIER,
1997, p.18-19). Um tema, “inusitado como o obsceno, que em si é a transgressão, propicia
fugas da área da espacialidade” (PIRES FERREIRA, 1985, p. 19), bolinando o desconhecido,
um manancial cultural já muito perdido, mas suplicando exploração.
Não tenho culpa se alguém
não gostou deste livrinho.
Eu não sou um grande cômico,
sou só um comicozinho... (SIQUEIRA, 2012a, p. 83)

54
Empresto o termo que dá título a um dos contos de Guimarães Rosa, tentando desenhar os contornos de
artistas alternativos, mas silenciados das cenas culturais paradigmáticas.
47

A separação é a irmã caçula da morte. Para quem respeita as razões do destino,


existe nas despedidas uma funesta animação matrimonial.

Ossip Mandelstam

1.2 EMBARAÇADO NOS REDUCIONISMOS ACADÊMICOS

1.2.1 Nas Malhas da “Tradição”

Das “confortáveis” poltronas acadêmicas, pesquisadores da oralidade em repouso


dedicam análises aos cordéis de Juraci, confinando o labor criativo desse flanêur midiático em
axiomas como a teoria literária, desconhecimento ou desprezo ao “estranho laço de
Bachelard” 55 , encruzilhada envolvendo múltiplos objetos de diferentes modalidades de
conhecimento.
A pesquisa “Le boto: étude critique d’ um mythe amazonién” de Ana Daudibon 56,
paraense vivendo na França, a partir das memórias de sua infância: “le mythe de l’ “açaí” et
du “guaraná”; au mythe de la métamorphose: voir le “Cobra Norato” et le “Boto”
(DAUDIBON, 2011, p. 3), procura realizar estudos sobre narrativas dedicadas aos seres
antropomórficos como o boto, esse cetáceo de água doce epifanizado em rapaz vestido de
branco “seduzindo” e “copulando” com jovens ribeirinhas pelas Amazônias.

Figura 15: Memórias de Daudibon57

55
Para Bachelard (1978) o empirismo e o racionalismo estão ligados, no pensamento científico, por um estranho
laço, tão forte como quem une o prazer à dor.
56
Pesquisadora paraense radicada por décadas em Paris, atualmente professora de língua portuguesa na capital
francesa.
57
Essa ilustração foi criada por Michel Daudibon, artista plástico, a partir das memórias de infância de Ana, sua
esposa.
48

Os textos de Juraci chamaram a atenção da pesquisadora pelo significativo número de


produções referentes ao “Le mythe du Boto, le “Don Juan” amazonien” (DAUDIBON, 2011,
p. 31) também seduzindo leitores e ouvintes pela vizinhança desterritorializada entre homens
e bichos.
Partindo dos estudos mitológicos 58 de Jacques Bologne59 , Roland Barthes 60 , Mircea
Eliade 61 e Durand 62 , Daudibon (2011) entende o mito como narrativa fundadora de uma
prática social repetida ciclicamente - tradição arcaica63 - algo inerte e intocável em oposição a
um olhar sobre o dinamismo cultural capaz de ser refeito estrategicamente no devir dessa cena
social:
Urge aprofundar a interpretação do mito nos limites dessa interação [...] examinar a
autêntica mitologia à luz das teorias modernas e estudar simultaneamente as atuais
interpretações científicas e artísticas do mito e do problema “mito-literatura” à luz
da interpretação hodierna das formas clássicas do mito. (MIELIETINSKI, 1987, p.
5)

Laboratório vivo de narrativas sobre o boto, esse “anfiteatro de forma excessivamente


alongada” 64, as Amazônias, pelo olhar saudoso, não menos perigoso da pesquisadora, busca
compreender universos simbólicos envolvendo o boto, as ribeirinhas e os filhos dessa
copulação mágica65, arquivados em suas memórias amazônicas.
Para esse empreendimento, Daudibon (2011) escolhe e acessa os cordéis de Juraci66,
um armazém-signo, de recordações e esquecimentos coletivos, acionado pela palavra chave:
popular.
Nutrindo sua pesquisa de um olhar fortemente europeu, por meio de entrevistas com
perguntas prontas e respostas, algumas já previamente aguardadas, Daudibon (2011) descobre
e descreve o surgimento do Juraboto. Juraci relata os tempos de açougueiro e o boato plantado
por ele sobre sua “origem”. Sua mãe, “mesmo sendo uma mulher casada”, não resistiu ao
“charme” do boto. A “brincadeira” aumentou significativamente a curiosidade e o número de
clientes do açougue, mais preocupados com os detalhes da copulação do que propriamente

58
Seriam, usando a opinião de Mielietinski, na sua poética do mito, estudos clássicos restritos à “satisfação” da
curiosidade sobre o homem “primitivo”.
59
Citado em MONNEYRON, Fréderic, THOMAS, Joël. Mythes et Littérature. Ed. Que sais-je? Paris, 2002.
60
BARTHES, Roland. Mythologies.Paris, Éd. du Seuil, 1970.
61
ELIADE, Mircea. Aspects du mythe. Gallimard, Cher, 1963.
62
DURAND, Gilbert. Introduction à la mythodologie: mythes et sociétés. Albin Michel, Paris, 1995.
63
Apropriando-me da metáfora de Paul Zumthor, em Escritura e Nomadismo: um passado limpo de “parasitas”.
64
Empresto a expressão forjada pelo geógrafo paraibano, vivendo grande parte de sua vida pelas Amazônias.
65
Não esqueçamos o imaginário ou simbólico atravessando nossas cenas sociais, uma ponte ininterrupta
edificada com o sobrenatural.
66
Análises assentadas a três cordéis do Juraboto: O chapéu do boto; Eu, o filho do boto; Nós, os filhos do boto.
49

com a qualidade e o preço das carnes. Por mais que tentasse desmentir a “piada”, tempos
depois, Juraci não superou a força e a ressonância alcançada pelo “causo”.
Daudibon (2011) cita os desdobramentos, de contornos metafóricos, dessa história.
Juraci, já bacharel em filosofia e poeta melhor reconhecido em Belém, traduziu a ribeira
“violada” como a Amazônia vítima dos assédios, dos estupros, dos abandonos e dos disfarces
capitalistas. Nós67 seríamos essa criança-bicho-bastarda inconformada com o ato de violência.
A mentira verdadeira amorteceu o decalque cultural geralmente atribuído aos botos-
homens: estupradores sobrenaturais. Juraci, ao contrário do vilanismo atribuído ao boto,
passou a ser considerado, pelos artistas, um crítico dos avanços e ressignificações do
capitalismo:
O Brasil se deslocou para a Amazônia. Tudo acontece lá, os interesses econômicos
estão lá, os grandes capitais estão fluindo para lá [...] o olhar do mundo, a paranoia e
ilusão do paraíso [...] o Lugar dos lugares [...] cozinhando um gigantesco guisado
cultural. (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p.174)

A pesquisadora franco-brasileira ensaia uma interpretação para essa leitura imago-


política de Juraci, assim como a todos aqueles recontando os “causos” sobre o boto-homem.
Eles, assim como a humanidade, cultivam o novo-velho hábito de temporalizar, reatualizando
mitos ao sabor da velocidade e dos avanços 68 provocados pela “modernidade” e pela
“globalização”:
Les mythes et le Boto en particulier faisant partie intégrante de l’identité
amazonienne, la littérature contemporaine met en mots l’exotérisme lié à la necessite
de s’adapter à la rapidité, à la simultanéité et à la globalisation de la société
moderne. (DAUDIBON, 2011, p. 51-52)

Sem colocar “em xeque a supremacia do pensamento ocidental-moderno fazendo-o


experimentar outras ontologias, outras epistemologias e também outras tecnologias.”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 9), Daudibon (2011) percorre o confortável caminho de
compreender questões culturais pelas razões hegemônicas, ignorando a possibilidade de pôr
em relação uma profusão de outras falas explicativas.
Apesar de capturado pelas malhas bem rígidas das ontologias dualizadas, Juraci, em
um insight antropofágico apressado de Daudibon (2011), é tido como resultado de processos
ininterruptos de fusões e rupturas culturais, discurso híbrido, mas sem, no entanto, merecer
análises sobre quem hibrida, quem é hibridado e o porquê de hibridar.

67
Juraci refere-se aqueles que nascem em terras amazônicas.
68
Na busca de uma leitura para o termo, por meio das escolhas mais simplistas, Baudelaire, na poesia-prosa
“Meu coração a nu”, entende essa crença ao progresso como “uma doutrina de preguiçosos”.
50

Forjado e disperso por tantas memórias, tantas culturas e tantas ciências, os botos de
Juraci cabriolam as razões fadadas à exaustão, nos convidando para o exercício de conexões
transversais: “Nativos e antropólogos ressurgem como posições precárias, reversíveis e
intercambiáveis, assim como o são humanos e não humanos para o perspectivismo
ameríndio.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 15)
Daudibon (2011), a partir de sua dissertação de mestrado, desdobrou essa produção
para uma livre tradução do livro “O chapéu do boto”, exercício autômato, sacralizando a
linguagem pela linguagem, mera ação informativa, se analisada pelos estudos de Meschonnic
(2010).
Os “causos” sobre o boto falam de um chapéu escondendo um pequeno orifício,
denunciando a presença do delfim no homem. Ótima oportunidade desperdiçada pela tradução
literal de Daudibon. Foi perdida a chance de uma certa traição a essa cena cultural revestida
excessivamente de densas camadas dos vernizes cristãos.

Ao povo rogo atenção, Au peuple je demande l’attention,


a Deus Pai, sabedoria à dieu Pére, la sagesse
para contar uma história afin de raconter une histoire
cheia de ação e magia: pleine d’action et de magie:
a lenda viva do boto, la legende vivante du boto
ser mandingueiro e maroto être ensorceleur et pofisson
da nossa mitologia. De notre mythologie.
(SIQUEIRA, 2007, p. 03) (DAUDIBON, 2012, p. 06)

Figura 16: Le chapeau du boto, de Ana Daudibon.


51

Traída por seus labirintos memoriais amazônicos, sem a compreensão dos riscos e
perigos desse espaço complexo, a pesquisadora franco-brasileira percorreu os cada vez mais
estreitos corredores das razões clássicas, sem a preocupação de utilizar outros novelos.
O fascínio da construção labiríntica consiste na divergência de conhecimento
existente entre o arquiteto e o viajante [...] oprimido dentro das exíguas medidas dos
corredores, limitado pelas encruzilhadas obrigatórias e pela convencionalidade dos
símbolos-chaves, o usuário experimenta o mundo como uma sucessão de
fragmentos, cujo conjunto jamais é por ele captado. (COLOMBO, 1991, p. 41)
52

A dissimulação da textura pode, em todo o caso, levar séculos para desfazer seu
pano.

Jacques Derrida

1.2.2 Nas redes redutoras das dicotomias

A dissertação de mestrado de Ana Maria de Carvalho 69, junto à Universidade Federal


do Pará, dedica estudos para os cordéis sotádicos 70 de Antonio Juraci Siqueira, em destaque
seus versos sacânicos.
Para a pesquisadora, existem fortes discriminações aos textos “marginais”, desviando
olhares mais atentos à seriedade existente nas entrelinhas da sacanagem. Tais obras seriam
excrementos descartados pelos pensamentos ocidentais, mas reaproveitados para uma
dimensão simbólica repleta de inteligibilidade.
Atenta aos impulsos “anárquicos” e lúdicos de Juraci, a pesquisadora busca, como
“porto seguro” teórico a teoria literária, assim como, a semiótica cultural.
A análise dos esquemas rítmicos, métricos e temáticos é acompanhada de algumas
reflexões, como a produção artesanal dos livros sacânicos de Juraci contendo conexões entre
o oral e o escrito.
A ambiguidade e os trocadilhos dos versos sacânicos de Juraci provocam algumas
conclusões precipitadas da pesquisadora. Seriam os cordéis “formidáveis histórias mentirosas
sotádicas"? (CARVALHO, 2010, p. 10).
A análise semiótica proposta, mas não executada, ignora as camadas sob camadas -
escrituras orais - nos cordéis de Juraci. Esses textos da cultura levam séculos sofrendo fraturas
e regenerações indefinidamente a cada leitura. Cada “novo” acréscimo ou decréscimo de um
novo fio é bordado e desdobrado infinitamente graças às lembranças e esquecimentos de seu
artífice.
De texto pornográfico, nas memórias dos jornais, os versos sacânicos do Juraboto são
estudados pela pesquisadora em outro contexto, agora reunidos em uma publicação artesanal,

69
Pesquisadora e professora da Faculdade Integrada Brasil Amazônia, Belém-PA.
70
Para o pesquisador Vicente Salles, em Literatura sotádica popular, sotádico corresponde a produções
apresentando um conteúdo que foge à regra da moral e dos “bons” costumes.
53

considerada pelo público “fruto da melhor inspiração sotádica” 71


, fazendo cócegas na
inteligência72.
Os versos sacânicos recebem o trato de cultura popular, uma armadilha conceitual
perigosa confinando a atrelando as sacanagens de Juraci à ideia de simplicidade e, até certo
ponto, “ingenuidade folclórica”:

Palavras obscenas [...] ditas por meio de perífrases. O poeta quase não usa termos
técnicos, ele faz uso da linguagem popular, dos apelidos dados ao órgão genital
masculino [...] O apelido visa ressaltar as características de alguém ou de algo.
Nesse caso os apelidos dados ao pênis têm por objetivo suavizar o impacto que o
termo técnico causaria, além de reforçar suas características. (CARVALHO, 2010,
p.22-23)

As leituras semióticas de Carvalho (2010) insistem na velha prática ocidental dos


binarismos: ou é popular ou erudito; ou é sacanagem ou seriedade. Oportunidade perdida de
tentar, sim, perceber as zonas difusas, carregadas de sentidos, dessas temáticas.
A velocidade das experimentações sígnicas de Juraci, sacanagens-sérias, acompanham
o ritmo, às vezes alucinado, de predileção das questões sexuais conectando “ao mesmo tempo
à natureza das coisas ao contexto social, sem contudo reduzir-se nem a uma coisa nem a
outra.” (LATOUR, 1994, p. 12).

71
Comentário atribuído por Vicente Salles, em nota de orelha, aos versos sacânicos de Juraci.
72
O escritor paraense Alfredo Garcia, na orelha dos versos sacânicos, pelo pensamento de Leon Eliachar,
comenta os possíveis efeitos dos versos de Juraci.
54

Se Descartes nos ensinou, a nós modernos, a dizer “eu penso, logo existo” – a
dizer, portanto, que a única vida ou existência que consigo pensar como
indubitável é a minha própria -, o perspectivismo ameríndio começa pela
afirmação duplamente inversa: “o outro existe, logo pensa”.

Eduardo Viveiros de Castro

1.2.3 Engessado por armaduras semióticas

Na esteira das aspirações semióticas de Ana Carvalho, a pesquisadora Maria de Fátima


Barbosa73 propõe um estudo, em forma de ensaio, sobre zonas antrópicas de identidade nos
cordéis de Juraci, “um discurso, lugar de relações intersubjetivas.” (BARBOSA, 2009, p. 248)
Fundamentada na definição cultural de Cuche 74 , a pesquisadora vê as populações
diferenciadas pelas escolhas culturais, cada qual inventando soluções originais para os
problemas que lhes são colocados.
Para a realização de sua leitura semiótica, Maria Barbosa acolhe a semiótica francesa,
pretendendo explicitar as estruturas significantes e modeladoras de discursos, dentre os quais,
o acasalamento do homem com a natureza nas obras do Juraboto: “Um boto deflora o hímen
das águas turvas do rio” (SIQUEIRA, 2005, p. 20).
As limitações impostas pelo percurso gerativo do sentido fazem da leitura da
pesquisadora mera descrição binária daquilo de bom e de mal existentes nas práticas sociais
do boto-homem:
Nesta narrativa, as transformações operadas no casal de amantes figurativizam o
bem, capaz de amansar touros bravios e acolher passarinhos enamorados que
simbolizam paz. Diferentemente, na narrativa do boto, a figura humana de que ele se
reveste e seus pertences figurativizam o mal. (BARBOSA, 2009, p. 251)

Despreza-se o que Viveiros de Castro chama de uma perspectiva relacional, explicada


tão bem pela metáfora do compasso:
Para que uma perna ou haste possa se deslocar, é preciso que a outra esteja fixa. É
como se mantivéssemos fixa a haste correspondente à natureza e fizéssemos a da
cultura descrever o círculo dos pontos de vista sobre esse centro que está aí, móvel,
em torno do qual gira a visão infinitivamente diversificada das culturas [...] Aquele
ponto fora do plano descrito pelo círculo, o ponto em que as duas hastes se
encontram, é o momento "imediativo" da natureza e da cultura. (VIVEIROS DE
CASTRO, 2008, p. 109-110)

Depurar o Juraboto para homem ou para delfim, bom ou mal, é ignorar o


caleidoscópio existente nessas fusões. Essas complexidades poderiam ser repensadas a partir

73
Professora da Universidade Federal da Paraíba.
74
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2ª Ed. Bauru: EDUSC, 2002,
55

de uma antropologia simétrica 75, antropologizando não apenas a periferia de nossas culturas,
como nossos “centros”, em especial o europeu.
Assim como os xamãs espalhados pelas Amazônias, Juraci incorpora elementos
outros, alguns estranhos às análises redutoras. Suas expansões predatórias são complexas para
as leituras duais. Essas incorporações entre homem e boto: “bicho arteiro e brabo. Não se
deixava agarrar, pois tinha a força do mar e a lisura de um quiabo! [...] rosto sério e passos
firmes [...] sapatos pretos de couro, no pulso um relógio de ouro, terno branco e cinturão”
(SIQUEIRA, 2007, p. 1-2) são a múltipla captura de vozes culturais.
Por lo tanto no es nada sorprendente que, em cuanto imágenes definidas por su
disyucion em relacion com um cuerpo humano, los muertos sean atraídos por
cuerpos animales; es por eso que em la Amazônia es transformarse em animal [...]
chamán – capaz de hacer passar um flujo semiótico benéfico entre humanos y no-
humanos. (VIVEIROS DE CASTRO, 2001, p. 159)

Nas Amazônias, a natureza e cultura “transam” sem parar. Esse boto-homem-xamã-


cordel acasala sua humanidade com a animalidade do delfim amazônico ou para não
contrariar essa experiência conjugal, sob o olhar do perspectivismo ameríndio de Viveiros de
Castro, sua animalidade com a humanidade do boto.
“Perspectivismo” foi um rótulo que tomei emprestado ao vocabulário filosófico
moderno para qualificar um aspecto muito característico de várias, senão todas, as
cosmologias ameríndias. Trata-se da noção de que, em primeiro lugar, o mundo é
povoado de muitas espécies de seres (além dos humanos propriamente ditos)
dotados de consciência e de cultura e, em segundo lugar, de que cada uma dessas
espécies vê a si mesma e às demais espécies de modo bastante singular: cada uma se
vê a si mesma como humana, vendo todas as demais como não-humanas, isto é,
como espécies de animais ou de espíritos. (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p.75)

75
Multiplicidade relacional de saberes.
56

O aberto não é outra coisa senão uma imobilização do não aberto animal. O
homem suspende a sua animalidade e, desta maneira, abre uma zona livre e
vazia na qual a vida é capturada e a-bandonada em uma zona de exceção.
Giordio Agamben

RIZOMA 02: BRICOLAGENS AO DEVIR

2.1 JURAS AO BOTO

Nas reentrâncias da natureza com a cultura, Juraci não para de se tornar alguma coisa:
Não se deu ainda a devida atenção para o fato antropológico e geográfico de que
regiões como a América Latina e o Caribe nunca puderam excluir de sua produção
cultural e científica a massa de informações provenientes das forças da natureza,
tratem-se de fenômenos geotectônicos e geobotânicos reabsorvidos pelos materiais
do trabalho humano. (PINHEIRO, 2013, p. 39)

A “junção” de homens aos animais foi e ainda é, em algumas situações, prática


ameríndia reoxigenada nas cenas culturais das Amazônias. Tivemos, por essas intromissões
de séries vizinhas (Pinheiro, 2013), uma animalidade pretérita, assim como, os animais
tiveram um antepassado humano.
Agamben (2013), nessa perspectiva rizomática, crê a “vida orgânica” como uma
sucessão habitual de assimilações e de excreções, permitindo pensar o homem como resultado
de múltiplas desconexões:
Quem pode dizer se esse bípede disforme, que mede não mais que quatro pés, que
nas vizinhanças do Polo ainda se chama de homem e que não tardará a perder este
nome caso se deforme mais um pouco, não é nada além da imagem de uma espécie
que passa? (AGAMBEN, 2013, p. 56)

Desdobrado Juraci do colapso da animalidade com a humanidade, nesse múltiplo


orgânico não existem fronteiras nem superposições. Nas confluências dos sonhos com as
ciências e com as artes, sujeitos sociais espalhados pelo mundo, obedecem com frequência a
motivações de naturezas “obscuras” e “inexplicáveis”, às vezes simploriamente definidas
pelas tecnociências como sobrenatural. As culturas e os cordéis de Juraci não são uma simples
interface entre o real e o imaginário! É o ato constitutivo, radical e simultâneo, dos devires
das culturas com a natureza.
Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de
justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue
ou ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos intercambiantes. A pergunta 'o
que você devém?' é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se
transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os
devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura,
de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos. (DELEUZE, 1997, p.08)
57

Se pensássemos pelas “deglutições cognitivas” de Pinheiro (2013, p.17), poderíamos


ver em Juraci e em suas Amazônias “uma força tectônica de base, nunca um dado anterior,
para a vertiginosa inclusão das microdiversidades da cultura”, reino das variações 76 ; dos
cataclismos e das emoções, tudo muito insuportável para quem costuma, simploriamente,
explicar a cultura subordinando a natureza.
A desvinculação desse olhar tardo-positivistas seria, com o auxílio providencial dos
estudos dos antropólogos Bruno Latour (1994), de Viveiros de Castro (2001) e de Deleuze
(1997), o difícil exercício de uma antropologia simétrica perturbadora de dualismos.
Pelas palavras de Viveiros de Castro (2008) compartilhadas nas pesquisas dedicadas
às cosmologias das bordas, esse fazer inclusivo seria o desafio maior de tratar “nossos
conceitos” com a mesma dureza tratada ao conceito dos outros. E com a ajuda dos outros,
rever os nossos:
Partir. Sair. Deixar-se um dia seduzir. Tornar-se vários, desbravar o exterior,
bifurcar em algum lugar [...] Porque não há aprendizado sem exposição, às vezes
perigosa, ao outro. Nunca mais saberei quem sou, onde estou, de onde venho, aonde
vou, por onde passar. Eu me exponho ao outro, às estranhezas. (SERRES, 1993, p.
15)

Para tanto, esse intrigante e “tenebroso parentesco entre o macrocosmo animal e o


microcosmo humano” (AGAMBEN, 2013, p. 12) merece muitos olhares inclassificáveis, de
modo que os históricos “equívocos acadêmicos” e as tentativas monstruosas de decidir quem
são “homens” e “não homens” não resultem em “ruínas”77.

76
Empresto a expressão dos pesquisadores Amálio Pinheiro e Viveiros de Castro.
77
Agamben (2013) faz referência aos campos de concentração e aos experimentos históricos de separação-
extermínio.
58

Esta cidade
só é possível porque homens vindos
de todas as noites
urinam às cinco
seu fluxo amarelo
[e a germinam]
urinam ao meio-dia
seu fluxo esverdeado
[e a condenam]
urinam às dezoito e quinze
seu fluxo marrom
[esperma de pus e lodo]
seu fluxo escuro
(gozo de lixo e lama)
seu fluxo prateado
(rios e abortos de todas as partes)
e a adormecem.

Micheliny Verunschk

2.2 BADERNAS ESPAÇO-TEMPORAIS

2.2.1 Trapaceando as “ampulhetas” ocidentais

Do número imensurável de textos sobre a vida, que o útero do tempo é capaz de


gestar, aqueles produzidos, artesanalmente, fora dos circuitos culturais oficiais, são sem
dúvida os mais atraentes. São bordas recheadas de significados e, ao mesmo tempo, se
esquivando de todos eles.
Esse fazer libertino transita pelas Amazônias “espoliadas” por práticas promíscuas e
irresponsáveis da “homogeneidade carrancuda, repetitiva e totalitária” (PINHEIRO, 2013, p.
94). Seria, dentre tantas, as vagas e lacunares categorias: modernidade, pós-modernidade e
contemporaneidade. Juraci, em alguns estudos apressados e sustentados pelos modismos, é
considerado poeta pós-moderno e contemporâneo.
Essas opções falaciosas deslocam os olhares mais desatentos para a superação de um
passado “arcaico” graças às rupturas e às “evoluções” temporais. A vida sendo compreendida
por compartimentos e por recortes temporais.
Afirmar, entre nós, que agora todas as informações podem estar em todos os lugares
ao mesmo tempo, é bastante velho: aqui os tempos se hibridizam e o artifício das
citações múltiplas e multilíngues é práxis sanguínea (PINHEIRO, 2013, p. 96).

A tentativa fracassada de todos os “projetos modernos” esbarra nos mais variados


processos de subjetivações, magias e seduções culturais, de um verdadeiro “inferno verde”
59

profanando uma pororoca 78 de experiências temporais, substituindo a regularidade pela


casualidade:
Toda cultura é, primeiramente, uma certa experiência do tempo, e uma nova cultura
não é possível sem uma transformação dessa experiência [...] tarefa original de uma
autêntica revolução não é jamais simplesmente ‘mudar o mundo’, mas também e
antes de mais nada ‘mudar o tempo. (AGAMBEN, 2005, p. 109)

No caso do homem-boto-Juraci e sua ecologia de temporalidades 79, são trapaceadas as


“mais precisas ampulhetas, acasalando, sem a necessidade de uma justaposição precisa,
o antes ao agora e ao depois”. Desse modo, a “América oferece condições problemáticas à
criação de uma possível imagem do tempo [...] é página em branco e também palimpsesto”
(ALMEIDA, 1997, p. 80).
Eu venho de um rio perdido em teus sonhos, um rio insondável que corre em
silêncio entre o ser e o não ser. Eu venho de um tempo que os homens não medem:
nenhum calendário registra meus dias. (SIQUEIRA, 2007, p.96)

O tempo de engaste dessas dobraduras não passa diante de nossos olhos como as
“perdas” e “resgates” da tradição. O tempo amazônico somos nós em direção arbitrária, em
ritmo orbitário à programação dos relógios e dos calendários. Quem sabe, um tempo barroco,
tempo caótico, imprevisível e errático: “Os elementos de uma concepção diferente do tempo
jazem dispersos nas dobras e nas sombras da tradição cultural do ocidente” (AGAMBEN,
2005, p. 120).
Nesse mapa movediço de tempos barrocos, Juraci faz uma aposta alucinante com
Cronos, violando a caixa de tempos impostos pelas elites do pensamento ocidental,
epistemicídio, a ferro e fogo, nas Américas Latinas:
Não se pode, portanto, remeter qualquer meio de comunicação e arte a um quadro
lógico traçado a priori, dito moderno, pós-moderno ou contemporâneo, sem serem
ativadas as referências específicas e peculiares à rede estrutural do entorno da série
estudada (PINHEIRO, 2013, p. 62)

Colocados em relação, Paz (2009) barroquiza os tempos latino-americanos para o


vazio de imagens embasadas à espera de preenchimentos e da chegada de outras
temporalidades:
Talvez se possa dizer que, por ter a América nascido junto com a fragmentação do
tempo e do espaço, assim como os concebia o mundo europeu, seja espontâneo,
quase instintivo, aos latino-americanos transitar pelos fragmentos espaciais e
temporais. Se a imagem do tempo determina uma sociedade, sua formação na
América Latina acaba por ser prejudicada pela ausência de um elemento essencial.
(ALMEIDA, 1997, p. 81).

78
Significa no tupi, estrondo: força ingovernável regida pela confluência das águas (rio e mar) com o ar e a terra.
79
Utilizo a expressão de Boaventura Sousa Santos (2010), para demonstrar Juraci transcriando outras
temporalidades.
60

Octavio Paz (1982), também socorrendo pesquisadores dedicados às análises das


experimentações barroco-artístico-temporais, costuma desenhar o tempo do vazio
confundindo os homens com os tempos. Nas Amazônias, sempre é tempo de fazer algazarras
com os tempos: “em direção ao improvável, à maior das raridades, à espantosa novidade. O
artista e o mecenas se encontram na intersecção” (SERRES, 1993, p. 121).
Juraci, ao servir-se da experiência temporal dos gregos80, imageticamente representada
pelo círculo, faz das narrativas sobre o delfim-rapaz-sedutor um retorno sobre si mesmas: o
boto de Juraci e de outras vozes transforma-se em homem...seduz as caboclas...copula... e
foge de volta aos rios, retornando a forma “animal”.
Já profanando o tempo cristão81, cada assédio e nova estratégia do boto-homem nunca
serão os mesmos: “cada momento que transcorre é diferente do precedente” (ALMEIDA,
1997, p. 28). Os botos-homens experimentam mudanças no vestuário e, acima de tudo, nos
seus dispositivos82 sedutores.
Rosto sério e passos firmes,
penetrou no barracão
com seu chapéu de abas largas
sombreando-lhe a feição,
sapatos pretos de couro,
no pulso um relógio de ouro,
terno branco e cinturão.
As moças, enfeitiçadas
pelo fogo da paixão
que seus corações queimava
sem qualquer explicação,
sonhavam cair nos braços
do moço e seguir seus passos
nas estradas da ilusão. (SIQUEIRA, 2007a, p. 07)

Fraturando esses tempos ocidentais 83, talvez em contra-tempos ou tempos da poesia,


Juraci trama o tempo do “ainda mais”, possibilidade opaca-incerta ou “incapacidade do
homem ocidental de dominar o tempo (e a sua consequente obsessão de ganhá-lo)”
(AGAMBEN, 2005, p. 112).
Esse caso aconteceu
muito distante daqui

80
Já citado anteriormente, Juraci, na sua “formação” filosófica, compreendeu e bricolou para suas
experimentações o tempo clássico, que para Agamben, em Infância e história: destruição da experiência e origem
da história é movimento circular, assegurando a manutenção das mesmas coisas através de sua repetição e do seu
contínuo retorno.
81
Para Octavio Paz, em seu “Fijos Del Limo”, o tempo cristão introduz a ideia de tempo finito e irreversível,
sendo todo evento único e insubstituível.
82
Juraci brinca com a questão, em entrevistas concedidas e conversas informais, dizendo que “brinquedos”
pequeno-burgueses, como o carro e o dinheiro, são cada vez mais necessários para intensificar as seduções do
homem-boto.
83
Quer seja pensado como círculo, quer como linha, o caráter que domina toda a concepção desses tempos, para
Agamben (2005), é a pontualidade.
61

numa noite enluarada


às margens do Cajary.
Vovó contou-me essa história,
eu a guardei na memória
e hoje, em versos escrevi. (SIQUEIRA, 2007a, p. 01)

Delinear uma representação para essas badernas temporais de Juraci nos lembra dos
labirintos de Deleuze (1991) e de suas desdobras. Quem sabe a elipse, curvatura acidental à
deriva das retas, dê contornos aproximados aos tempos elásticos do Juraboto, uma função
operatória ou um traço não parando de fazer dobras: dobras vindas do oriente, dobras gregas,
romanas, românticas, góticas, clássicas. Dobra rumo ao infinito.
Encarcerar os tempos amazônicos em formas lineares é impossível diante de uma
multiplicação “cancerosa” de tantos “eus” e de tantos tempos:
Difícil para esse indivíduo vocal/escritural alistar-se numa linha retilínea do tempo
(a não ser pelos mecanismos facilitadores da ilusão ideológico-institucional), que
dicotomize o mundo em sim ou não, ser ou não ser, essência ou existência, dentro ou
fora (PINHEIRO, 2013, p.84-85).

O tempo amazônico seria o tempo dos artistas? “o tempo vai da direita para a
esquerda, da morte para o nascimento, em direção ao improvável, à maior das raridades, à
espantosa novidade.” (SERRES, 1993, p. 121).
Sobre esses colapsos temporais cambiantes espalhados pelas Amazônias, um fazer
cartográfico seria interminável. Não é à toa que Octavio Paz (1982) vai dizer que o tempo
será, na cena latino-americana, depositário sempre de tantos sentidos!
62

Marquises sujas, vendedores ambulantes,


bordeis, pernas morenas, cicatrizes finas
vestígios nos corpos da poeira de estradas
corpo remexido, cavado, usado, vendido
de passagem, ponto. Ponto de ônibus:
..... Olha a maçããããã........
..... Olha a laranja............
..... a tanja aêêêê..............
......água mineral aêêêê.....
......chop-chop, picoléé.....
Meninos descalços
vida parecendo velhice em rosto de criança
palavras bêbadas soltas no chão
azedando pelos cantos,
vomitando a cada passo, o comércio:
botequins, pingos de pinga, PFs, PMs,
táxi, banana, redes, relógios,
mosquiteiros, restos, restaurantes,
chaveiros, bonés, pôsteres, postes, bancas
de jogo, ferro velho, velhos, meninos, prostitutas,
buchada, carne seca que se compra, come e vende
numa transa-amazônica.
Acolá o quartel e o batalhão
“um-dois, três-quatro, cinco-seis”
seis, Km-seis
daí para Velha-Cidade Nova-Marabá.
A linha do trem vale um riso doce
“café-e-pão quem-não-tem-não,
café-e-pão-eu-não-tem-não...
Só amola é cega mão
que pede esmola pra gente limpa
que passa séria sobre a miséria
... e nega: “pela luz dos teus olhos,
dá uma esmola pra cidade cega” .84

2.2.2 Amazônias: soleiras de passagens

A “transa-amazônica” é uma alegoria da fronteira. Metáfora como recurso


metodológico de aproximação aos processos ambivalentes, aos movimentos, às curvas e aos
deslocamentos da história vivida, porque “metáforas são risos dos conceitos, são dobras,
dissonâncias, rompendo com o conceito como único lugar da verdade” 85. Assim, a “transa-
amazônica” do poema km 6 86 se caracteriza pela combinação de passagem-ponto e pela
justaposição de elementos, como confluência do múltiplo que não se harmoniza numa síntese,
nem toma a ambivalência e o antagonismo como limites, mas aquilo que reúne e separa
84
RIBEIRO, Jorge Luiz. Quilometro 6. In: BRAZ, Ademir (Org.). Antologia Tocantina. Marabá: Grafecort,
1998, p. 89-90.
85
ALBUQUERQUER JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2ª ed. São Paulo: Cortez
Editora; Recife: FJN, Ed. Massangana, 2001, p. 33.
86
Jorge Luiz Ribeiro dos Santos é natural de Inhapim (MG), de pais lavradores, mora no Pará desde 1994.
Quando esse poema foi publicado era estudante de Direito na UFPA/Campus de Marabá.
63

simultaneamente tempos, espaços e práticas de transumanar – de certa forma, outra metáfora


que, como riso do conceito, revela sua insuficiência.
A fronteira como espaço pertinente à experiência da alteridade e à exigência da
tradução cultural 87 reivindica a transversalidade que a caracteriza, a imprevisibilidade e a
variabilidade de seu destino. Nela “os produtos culturais (incluindo a arte) e o mundo natural
não são objetos para uma investigação racional, mas sim vozes dentro da fábrica de uma
conversação interminável” 88 , tornando possível a configuração de epistemes e poéticas
vizinhas e mestiças, com duplos ou mais pertencimentos, borrando os espaços prescritivos das
ciências e de suas relações com outros conhecimentos. Assim, menos afeitas ao “pensamento
de sistema” e confluindo para um “pensamento de arquipélago” ou “pensamento de vestígio”
caracterizado pela imprecisão, pela ambiguidade e pela relatividade. 89
As dimensões de movimento e abertura caracterizam a fronteira como produtora de
“subjetividades em trânsito” 90 e a questão da alteridade é sempre problemática ou mesmo
dramática. Por isso, a fronteira “transa-amazônica” é instituída, constituindo-se, dentre outras
possibilidades, numa tecnologia do poder de produção de alteridades, no limite, concebidas
não-humanas.
Em 1971, quando o primeiro trecho da rodovia era inaugurado, uma matéria publicada
no Itatocan Jornal, em Marabá, trazia o título “Transamazônica humanizando”.
Há poucos anos atrás, era Justo [sic] que se encontrasse, nas margens do Tocantins,
o homem denominado ‘CARAJÁ’. Bastava ser analfabeto e não se vestir bem, para
ser um ‘CARAJÁ’. UM BAIANO SEM SER DA BAHIA ou o caboclo na expressão
mais vulgar. Agora o homem está voltando ao HUMANO 91. (destaque do autor)

É um discurso coerente às pretensões de sentido e consenso público pelo governo


ditatorial que construía a rodovia, bem como participa e reproduz um sentido da fronteira
como limite do humano: “Além dela está o não-humano, o natural, o animal” 92. Assim,
o que poderia ter sido um momento fascinante de descoberta do homem, foi um
momento trágico de destruição e morte. Mas isso não tira a dimensão épica e poética

87
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila; Eliana L. de Lima Reis; Gláucia Renate
Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
88
LAWN, Chrins. Compreender Gadamer. 2ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, p. 14.
89
GLISSANT, Édouard. Poetics of Relation. Translated by Betsy Wing. United States of America: University
of Michigan Press, 1997.
90
CABRERA, Olga. A literatura e a filosofia da contracultura caribenha em Alejo Carpentier. In: ALMEIDA,
Jaime de; CABRERA, Olga; CORTÉS ZAVALA, María Teresa (Orgs.). Cenários Caribenhos. Brasília:
Paralelo 15, 2003, p. 32-48.
91
CANDIDO SÁ. Transamazônica humanizando. Itatocan Jornal. Marabá, Edição do Natal, dez. 1971, p. 2.
92
MARTINS, José de S. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997, p.
162.
64

dos fugidios instantes do encontro de diferentes humanidades como tem ocorrido na


região amazônica93.

O transumanar implica práticas de tornar humano. Inventariar as fronteiras da


alteridade com a intenção de promover o outro como não-humano (alteridade destituída de
reconhecimento) constitui-se numa estratégia de dominação simbólica, podendo ou não ser
acompanhada de subordinação ou eliminação físico-material. Assim foi a “transa-amazônica”
sobre diversos povos indígenas que tinham seus territórios de vida na rota da estrada.
A história dos Arara, embora pouco conhecida, é igualmente trágica (e haverá, para
os índios, história que não seja trágica neste país e em quase todos os demais?). Eles
conseguiram fugir à ofensiva realizada pelo SPI entre 1952 e 1960 para 'pacificar'
diversas tribos indígenas dos vales do Tocantins, Xingu e Tapajós, consideradas
ameaçadoras à economia regional por defenderem suas terras, terras estas que
continham seringais ou castanhais cobiçados pelo 'branco'.

Fugindo dos seringalistas e donos de castanhais – e também do SPI – os Arara


penetraram no interior da floresta arrasados por doenças, falta de alimento e
mudança de ambiente. Fizeram sua aldeia a aproximadamente 100 quilômetros de
Altamira e reiniciaram a vida. Foram surpreendidos pelas pesadas máquinas que
abriam, em 1970, a Transamazônica: suas habitações, roças e pertences foram
abandonados na fuga às pressas. Continuaram os Arara fugindo para o sul.

No início de 1971, um grupo de trabalho formado pela Funai (chefiado pelo falecido
e saudoso antropólogo Eduardo Galvão, com participação de mais três antropólogos
do Museu Goeldi) reconheceu que os grupos ainda não pacificados que se
encontravam na rota da estrada, 'além de constituírem minoria, parecem não possuir
a força agressiva então demonstrada pelos Kayapó.94

Outras contradições vivenciaram os migrantes atraídos para as “margens” da rodovia


pela colonização oficial. Ambiguamente, aquele que fazia existir a Transamazônica era
produzido para o não pertencimento, construído discursivamente como deslocado e
mobilizável. Uma ocorrência de 1970, na região de Altamira, é emblemática dessa construção
exatamente pelo desvio discursivo proporcionado pelo contexto da enunciação. Magno
Michell Braga95 aborda a fala de um migrante escolhido para “receber” o então presidente
Emílio Garrastazu Médici, na Transamazônica em 1970. O migrante, chamado Zé Curioso,
que não teria correspondido ao gesto de mão estendida do presidente ao cumprimentá-lo,
relata, em entrevista oral, dando entender que o presidente agilizou-se em bater em seu ombro
e dizer: “Curioso, vocês são uns bravos, vocês vieram pra cá, pruma guerra”.
Apesar da construção simbólica da Transamazônica ter se tornado um imperativo
naquele período, percebe-se que algo foge ao controle do discurso oficial quando
Médici diz “Curioso, vocês são uns bravos, vocês vieram pra cá, pruma guerra.” Ao
deixar escapar que os nordestinos “vieram pruma guerra” o discurso oficial – aquele

93
MARTINS, José de S. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997, p.
163.
94
PINTO, Lúcio Flávio. História trágica. O Liberal, Belém, s/p, 16 Jun. 1979.
95
BRAGA, Magno M. M. Transamazônica em perspectiva: a experiência dos trabalhadores migrantes do
Nordeste. Marabá, 2014. (Texto inédito, 14f).
65

trabalhado midiaticamente - é contradito pela expressão máxima do próprio Estado


nacional, o presidente da República. Logo, evoca-se a violência física e simbólica
sofrida pelos migrantes durante a guerra que, para ser vencida, convoca os “bravos”.
Conforme Villalva e Silvestre (2011) esse verbete polissêmico, atualmente
associado à coragem e valentia, porém tem sua origem, no Latim Bravus, que remete
a barbarus, selvagem, desumano, rude. [destaque do autor]96

Por isso, a fronteira se engendra como um lugar intersticial onde a diferença, o


antagonismo e as afiliações são expostos, onde cada “objetivo é constituído sobre o traço
daquela perspectiva que ele rasura” 97 . O discurso da integração nacional, da rodovia
“libertando” o caboclo, é a perspectiva da civilização destituindo, rasurando humanidades
outras, a diversidade do mundo.
O amazônida, prisioneiro da Natureza assiste empolgado a penetração das matas
pelas possantes e complexas máquinas que constroem a Transamazônica. [...] o
caboclo começa a sentir-se libertado do meio pelo contato com outras gentes e pelo
viajar sobre rodas, livre de cachoeiras e dos temporais. [...] mineiros, paulistas,
goianos, pernambucanos – gentes de outras terras que para aqui afluem para
conhecer o novo Eldorado. [...] É o Brasil conquistado [sic] a Amazônia para a sua
completa integração. [...] O amazônida, despertado pelas Trombetas da Civilização,
vai desmentir sociólogos e historiadores, unindo suas forças e sua coragem à técnica
e experiência do sulista à bravura e perseverança do nordestino [...]. Já era tempo de
o Sul vir de encontro ao Norte98.

Nesse discurso, a participação do “caboclo” – com sua força – e do nordestino – com


sua bravura e perseverança – deve ser aquela de realizar o trabalho em condições
extremamente adversas – uma guerra – e deixar de existir assim que cumprida sua tarefa pelo
“futuro e grandeza” do Norte, porque deverá estar “apagado”, “rasurado” pela técnica e
experiência dos “civilizados” vindo ao seu “encontro” para pretensamente dirigir os seus
destinos.
Discursos contra-hegemônicos exalando os sentidos da fronteira emergindo de
narrativas outras, desde aqueles, antes produzidos como não-humanos, mobilizáveis, agora
podem evidenciar sua perspectiva agonística, autofágica, transversal e a capacidade de fazer
protagonizar as “transa” Amazônias, como Irmã Sefafina Cinque: “O anjo da
Transamazônica”, título a uma pretensa “homenagem” do boto-poeta às obras assistenciais da
referida religiosa, mas como “tudo o que é macro é micro e tudo o que é externo é interno,
desde que bem tecido no mosaico, através de costuras que mapeiam a cadeia reticulada das
conexões” (PINHEIRO, 2013, p. 37), essa escritura faz protagonizar a rodovia

96
BRAGA, Magno M. M. Transamazônica em perspectiva: a experiência dos trabalhadores migrantes do
Nordeste. Marabá, 2014, p. 9 (Texto inédito, 14f).
97
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila; Eliana L. de Lima Reis; Gláucia R.
Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 53.
98
BARROS, João Maria. Futuro e Grandeza. Revista Itatocan, Marabá, Ano 8, nº 1, s/p, jan. 1971.
66

Transamazônica, espaço de bifurcações e caminhos transversais. Um lugar de muitas


geografias; muitas riquezas minerais; de grande diversidade biológica. Espaço da variação:
Irmã Serafina chega
no momento crucial
da construção de uma imensa
rodovia federal.
Uma obra faraônica
chamada Transamazônicas
qual boiúna colossal!

O progresso propalado
nos ditos da Ditadura
foi, aos poucos, se tornando
semente de desventura.
Comparada à bomba atômica,
a estrada Transamazônica
tornou-se “Transamargura”.
(SIQUEIRA, 2011, p. 19-20)

A Rodovia Transamazônica (BR-230) foi projetada durante o governo militar do


presidente Emílio Garrastazu Médici (1969 a 1974), sendo uma das chamadas "obras
faraônicas" graças às suas proporções gigantescas. É a terceira maior rodovia do Brasil, com 4
223 km de comprimento, ligando a cidade de Cabedelo, na Paraíba à Lábrea, no Amazonas,
cortando sete estados brasileiros: Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão, Tocantins, Pará e
Amazonas. É considerada rodovia transversal e, ainda em grande parte no Pará e no
Amazonas, não pavimentada.
Nessas bordas transamazônicas estão vivas e reluzentes as missões assistenciais de
Irmã Serafina, encontro-trânsito de sujeitos culturais sobrecarregados de bens simbólicos
dialogando/tensionando com projetos de “desenvolvimento megalômano”.
Migrantes de toda parte
por todo canto se via
plantando sonho e esperança
às margens da rodovia
que o governo militar
ia abrindo sem parar
com arrogância e euforia.
(SIQUEIRA, 2011, p. 20)

Essas questões plurais de dispersão e da mesclagem; da ruína e da destruição; da


territorialização e da desterritorialização; do nomadismo e do sedentarismo; do exílio e do
desenraizamento e das causas de tudo isso são abordadas pelo texto colorido de Juraci.
Foi nesse campo minado
por tanta desigualdade
que nossa Irmã Serafina
e a sua comunidade
lutaram tão bravamente
para atender tanta gente
67

que chegava na cidade.

Do malfadado projeto
foi a miséria um produto.
Na cidade de Altamira
esse crescimento bruto
transformou-se num tumor
traduzido em muita dor,
desavença, pranto e luto.
(SIQUEIRA, 2011, p. 20-21)

A rodovia-boiúna 99 , serpenteando por cidades-florestas, é a “Transamargura”, lugar


que não termina e termina. Espaço delineado pelas lembranças-esquecimentos de Serafina e
de seus “pacientes”:
Em toda a Transamazônica
foi ficando conhecida
como o anjo por Deus mandado
para salvar tanta vida.
Esse reconhecimento
do povo, dava-lhe alento
na caminhada sofrida.

E assim Irmã Serafina,


personagem desta crônica,
semente por Deus lançada
na realidade amazônica,
recebe, do povo pobre,
seu cognome mais nobre:
Anjo da Transamazônica!
(SIQUEIRA, 2011, p. 27)

Atravessando a rodovia “sem trégua [...] na oblíqua na diagonal ou na transversal, em


todos os sentidos possíveis do espaço [...] da direita para a esquerda, de frente para trás, de
alto para baixo, por cima, por baixo” (SERRES, 1993, p. 36), Serafina desbrava outros
espaços - micro espaços - visitando-descrevendo hospitais, prostíbulos e os corpos de
tuberculosos e de gestantes.
Um certo dia ela soube
do drama de uma mulher
que estava tuberculosa
num prostíbulo qualquer.
Lá chegou determinada
no amor divino arrimada
dizendo: “– Deus é quem quer!”

Depois de enfrentar a ira


da dona do tal lugar,
dali tirou a infeliz
para então dela tratar.
Desse modo a prostituta

99
Pela sinuosidade, condições precárias de pavimentação, tráfico de drogas, violência e agressões ambientais
enfrentados por quem transita por certos trechos da Transamazônica.
68

sarou, mudou de conduta


e passou a lhe ajudar.
(SIQUEIRA, 2011, p. 27)

Perfurando passagens pelos meandros da rodovia, “num prostíbulo qualquer”, “um tal
lugar”, “a boa Samaritana” cruzou também com:
[...] campo, mata, rio
expondo um câncer latente
no coração do Brasil.
Atender toda essa gente
sem ter um canto decente,
era o grande desafio.

O Bispo Dom Eurico Krautler


ficou muito impressionado
com a luta dessa mulher
pelo povo deserdado.
Ouviu seu clamor profundo
e moveu mundos e fundos
para lutar do seu lado.
(SIQUEIRA, 2011, p. 29)

Os jogos de “proximidade, em vaivém, entre signos e coisas” ou da “boca roçando a


paisagem” entre “sílabas-cipós” (PINHEIRO, 2013, p.79-110) ganham contornos no cordel
“transamazônico”: “palavra em rotação; espaço plural [...] palavra ao ar livre, pelos espaços
exteriores e interiores: nebulosa contida em uma pulsação, pestanejo de um sol” (PAZ, 2009,
p. 119).
Esses lugares de bifurcações mestiças hiperiflacionam o cordel de Juraci: “Ele não
caminha nem viaja seguindo um mapa que repetiria um espaço já explorado” (SERRES, 1993,
p. 117). Durante esses percursos, surgem as “cidades autofágicas”, espaços inclassificáveis,
pelo olhar do pesquisador Amálio Pinheiro:
Um gigantesco subúrbio expandido, um caldeirão barroco-caboclo com múltiplas
interfaces e alguns apliques, já incorporadas e traduzidas, disso que chamam geral e
vagamente, como por preguiça, modernidade (PINHEIRO, 2013, p. 63)

Coari 100 , Manacapuru 101 , Urucurituba 102 . Essas “escrituras em caramanchão”


(PINHEIRO, 2013, p. 113) ajudam a desenhar esse espaço de “arranjo tupinizante”
(PINHEIRO, 2013, p. 88) - barroquismo por fatalidade de idioma (PAZ, 2009, p. 29) -
enroscado nas trajetórias de Serafina por geografias tão diversificadas, mas ao mesmo tempo,

100
Município do Amazonas. O nome Coari provém de matrizes indígenas dos povos Catauixis, Irijus, Jumas,
Jurimauas, dentre outros. "Coaya Cory", ou "Huary-yu" significando respectivamente, "rio do ouro" e "rio dos
deuses".
101
Palavra em Tupi significando “Flor Matizada”. É derivada das expressões Manacá, que significa Flor em tupi,
e Puru, da mesma origem, que quer dizer enfeitado, matizado.
102
Vocábulo significando palmeiral, "lugar onde há muitas palmeiras". Do tupiurucuri: uma das muitas
variedades de palmeiras do Brasil; e tyba: grande quantidade, abundância.
69

tão próximas. Lá residem as cidades dos minérios; os espaços das palmeiras e o lugar dos se
“deuses” banhando.
No dia cinco de março
partiu em nova jornada
no rumo de Coari
pra onde foi enviada.
Lá, além de diretora,
foi, ainda, professora
competente e dedicada.

Diretora do Instituto
Maria de Mattias, fundou
a Escola Normal Rural
em Altamira e ajudou
a implantar, em Santarém,
outro colégio. Porém
a luta continuou.

Para Manacapuru
ela então segue viagem
onde fica por dois anos
de deus pregando a mensagem
entre Irmãs adoradoras,
em cujas mãos promissoras
deixava o grão da coragem

No ano cinquenta e quatro


a Codajás enviada,
incansável e obediente,
não reclamava de nada.
Foi como Superiora
das Irmãs e Diretora
cumprir mais uma jornada.

Regressa a Urucurituba,
as sua terra natal
e de lá, depois de um ano,
retornou à Capital.
Em Manaus, em cada escola
Noeme ensina, consola
e prega o amor divinal.
(SIQUEIRA, 2011, p. 13)

Cartógrafo103devorador-devorado de/por vozes mundanas de tantas “Serafinas”, Juraci


transcria crônicas orais da rodovia para suas quadras, um modo interessante de construir
outros mapas fazendo protagonizar histórias não contadas oficialmente.

103
Essa proposição “teoricometodológica” que, para muitos pesquisadores, pode ser decolonial, interpretativa e
reflexiva quando devorar os outros e, ao mesmo tempo ser devorado, significa, para o pesquisador dos Marajós,
Agenor Sarraf Pacheco (2010), ver, observar, olhar, visitar, trafegar, apalpar, viver o bairro, pensar a cidade,
refletir sobre seus caminhos, debater suas presenças ausentes, mergulhar em sua história, captar usos e sentidos
de seus patrimônios edificados, abandonados, silenciados, restaurados, praticados por aqueles que os constroem,
compartilham e a eles dão existência física e simbólica.
70

Para essa prática rizomática, Boaventura Santos (2010, p. 53) dialoga com sua
ecologia de saberes, “reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos [...] em
interações sustentáveis e dinâmicas entre eles”. Martín-Barbero, na mesma trilha (2004, p.13),
vê o fazer cartográfico, como construção de outros mapas cognitivos traduzindo outras
figuras, o arquipélago, por exemplo. Com isso, o continente se desagrega em ilhas múltiplas e
diversas interconectadas. Glissant (2005, p.54), em devir com a “Transamargura”, imensa
rodovia serpenteando subjetividades, nos faz percebê-la sob a metáfora do rizoma,
“pensamento arquipélago, não sistemático, indutivo, que explora o imprevisto da totalidade-
mundo, e que sintoniza, harmoniza a escrita à oralidade, e a oralidade à escrita”.
Na Literatura, busquei Euclides da Cunha e sua escritura gráfico-geológica-botânica
(PINHEIRO, 2013, p. 110) para refletir sobre a complexidade das Amazônias de Juraci. Achei
adormecido, dentre seus sem número de textos, um diálogo, em tons de igualdade, das
humanidades confundidas com a natureza:
Era inevitável. O forasteiro, ao penetrar o Purus ou o Juruá, não carecia de
excepcionais recursos à empresa. Uma canoa maneira e um varejão, ou um remo,
aparelhavam-no às mais espantosas viagens. O rio carregava-o; guiava-o;
protegendo-o. Restava-lhe o só esforço de colher à ourela das matas marginais as
especiarias valiosas; atestar com elas os seus barcos primitivos e volver águas
abaixo – dormindo em cima da fortuna adquirida sem trabalho. A terra farta, mercê
duma armazenagem milenária de riquezas, excluía a cultura. Abria-se-lhe em
avenidas fluviais maravilhosas. Impôs-lhe a tarefa exclusiva das colheitas. Por fim
tornou- lhe lógico o nomadismo [...] O povoamento não se expandia: estirava-se.
Progredia em longas filas, ou volvia sobre si mesmo sem deixar os sulcos em que se
encaixa – tendendo a imobilizar-se na aparência de um progresso ilusório, de recuos
e avançadas, do aventureiro que parte, penetra fundo a terra, explora-a e volta pelas
mesmas trilhas – ou renova, monotonamente, os mesmos itinerários da sua
inambulação invariável. Ao cabo, a breve, mas agitadíssima história das paragens
novas, à parte ligeiras variantes, ia imprimindo- se toda secamente, naquelas
extensas linhas desatadas para S.O.: três ou quatro riscos, três ou quatro desenhos de
rios, coleando, indefinidos, num deserto... (CUNHA, 2000, p.196-197)
71

A raiz única é aquela que mata à sua volta, enquanto o rizoma é a raiz que vai
ao encontro de outras raízes.
Edouard Glissant

2.3 RIZOMAS SAT(C)ÂNICOS

Os tecidos fáusticos – um contínuo vai e vem da transmissão oral ao universo do livro


(PIRES FERREIRA, 1995, p. 24) ou “rede de outros textos contíguos, que vão passando por
narrativas escritas e orais” em “combinações sinonímicas e metonímicas” (PINHEIRO, 2013,
p. 123) atravessam culturas, aportando no canoeiro 104 Juraci.
Entranhados nas variações paródicas do escritor “paraoara”105, especialmente em seus
versos sacânicos, outros “Mefistos” aguçam curiosidades, despertando reações do vozerio
circundante.
Seus Versos Sacânicos receberiam louvores dos manés Baudelaire, Bocage, Emilio
de Menezes e outros “malditos” do passado. Eu, que também fui excomungado [...]
botei o livro debaixo do braço e saí mostrando aos amigos. Resultado: o livro
desapareceu por uns dias, e mais tarde fiquei sabendo, na empresa que trabalho, que
as donzelas pudibundas o haviam sequestrado e estavam a tirar cópias na máquina
de xerox106 (SIQUEIRA, 2012, p. 82)

Pelos olhos de Pires Ferreira (1995), esse percurso sem fim entre a ancestralidade e o
futuro é marcado por múltiplos movimentos plagiotrópicos 107, inclusive nas Amazônias de
Juraci, um panteão de mesclas afroeuroindígenas.
Caro leitor, nestes versos
eu vou lhe dar uma dica
para você descansar
longe de qualquer pissica.
Essa fórmula porreta,
encontrei numa maleta
que veio da Martinica.
No reino dos vegetais
pegue 7 pés de arruda,
7 folhas de assacu,
7 bananas parrudas,
7 sementes de urtiga,
7 pimentas graúdas.
Coloque tudo num tacho,
acenda fogo debaixo
e aos orixás peça ajuda.
Pegue no reino animal
7 rabos de tatu,
7 pirocas de gato,
7 bicos de jacu,
7 miolos de pomba,

104
Juraci, ultimamente, acha-se um canoeiro. Leva e traz poesia ininterruptamente (SIQUEIRA, 2015)
105
Do tupi para’wara (de para=água, mar e wara=o que veio de, nascido de) que quer dizer: o que veio das
águas, do mar (o rio-mar).
106
Depoimento do leitor Orlando Brito de São Luís/MA transmitido por carta a Antonio Juraci Siqueira.
107
Utilizo termo de Haroldo de Campos (1981).
72

7 penas de urubu
e, nessa mistura fina,
acrescente estricnina
e veneno de urutu.
Terminada a operação,
reze 7 ave-marias
e derrame o conteúdo
do tacho em 7 bacias.
Faça uns rituais estranhos
depois tome 7 banhos
e espere melhores dias.

Se depois dos 7 banhos


nada mudar, companheiro,
é que o feitiço virou
contra o próprio feiticeiro!
Nesse caso irás curtir
7 anos de atoleiro,
vivendo às custas de esmola,
levando pau na cachola
e sarapó no traseiro!
(SIQUEIRA, 2011a, p. 37)

Jogos gráfico-sonoros de palavras como pissica108 e Martinica “são alimentos orais,


antes de atingirem o estado simbólico-convencional do dicionário” (PINHEIRO, 2013, p. 30),
estranhamentos criativos da boca “roçando” com as paisagens culturais. Como exemplo, o
corrosivo pessimismo de Mefisto é colocado em curso criativamente no poema “Receita de
Brasil Novo”, um cenário alegórico imanando “putas”, políticos e militares incrédulos.
“Ano Novo, vida nova”,
diz um ditado imbecil.
Para não perder o mote,
numa atitude infantil,
fiz uma enquete suspeita
a fim de achar a receita
parta salvar o Brasil.
Perguntei a um general
e ele respondeu, possesso,
que depois da ditadura
houve um grande retrocesso
e afirmou, solenemente:
“– O Brasil só vai pra frente
quando fechar o Congresso!”
Um político safado,
num discurso inconsequente,
esmurrando o próprio peito
esbravejou: “– Minha gente,
eu vos posso assegurar
que o Brasil só vai mudar
quando eu for o presidente!”
Me disse um trabalhador
do setor rodoviário
que liderava uma greve
para aumento de salário:
“– O Brasil só terá jeito

108
Do imaginário transeunte: azar, urucubaca.
73

no dia em que for eleito


um presidente operário!”
Enquanto um louco pregava
a volta da Imperatriz,
chega o líder de uma seita
com seu palpite infeliz:
“– Da treva há de vir a luz
quando, em nome de Jesus,
eu governar o país!”
Por não ter osso na língua
nem fecho-ecler na braguilha,
responde dona Cotinha
sem tirar o pé da trilha:
“– O Brasil só ganha a luta
quando tiver uma puta
dando as ordens em Brasília!”
Entrei numa feira-livre
e a voz do povo anotei:
“– Meu voto é do Silvio Santos!”
“– Eu quero a volta do rei!”
“– O remédio é a ditadura
com repressão e censura!”
“– Eu prefiro o Zé Sarney!”
Vendo esse povo apertado
qual pinto dentro do ovo
promovendo bota-fora
na chegada do Ano Novo,
eu encontrei a resposta:
– O Brasil só sai da bosta
no dia que trocar de povo! (SIQUEIRA, 2012, p. 9-10)

A mescla de crenças e de convicções transita pelo linguajar mefistofélico de Antonio


Juraci Siqueira. Personagens bíblicos como Barrabás, Jeremias e Salomão estão
acompanhados pelo andarilho-anão-malandro-mestiço-Manduka, personagem-viajante pelo -
“reino da enrabação”109 - e seus conflitos escatológicos: o bem podendo ser mal e o mal sendo
bem, recompostos pelas “malandragens” do Brasil “torto pra ser direito e que o seu direito é
ser torto”. (SIQUEIRA, 2012, p. 79).
A Deus imploro clemência,
ao leitor rogo atenção
para contar essa história
encontrada no portão
de uma cigana maluca:
“As andanças de Manduka
no reino da enrabação”
No ano mil e uns trocados,
Manduka foi exilado
por ordem de Barrabás
porque falava demais
e não ficava quieto
pois era agente secreto
de Nabucodonosor,
um temido ditador
lá da puta que o pariu

109
Alimentos da criatividade, as metáforas ligadas à copulação ornamentam e nutrem nossos imaginários.
74

que, por isso, decidiu


fazer guerra ao mundo inteiro.
Veio gente do estrangeiro:
das Malvinas, das Bermudas,
veio Sansão, veio Judas,
veio Thiago, o poeta
e Jeremias, o profeta,
montado numa espingarda
pra cobrir a retaguarda
do poeta brigador
que montou num beija-flor
e seguiu pra Pindaíba
onde viu uma guariba
enrabando uma parteira
nas barbas do Zé Limeira,
o poeta do absurdo,
que além de cego era surdo
mas via e escutava bem.
Manduka veio a Belém
prestar contas ao vigário,
dando a ele o seu salário
e cem pai-nossos por dia.
Mas o que ninguém sabia
é que Manduka era um vate
de igual ou maior quilate
das joias de Salomão.
Um dia, coçando o culhão,
teve um lampejo de ouro
e disse: “Alma sem besouro
não escuta zum-zum-zum!”
Nesse momento incomum
um pensamento emergiu
e ele sacou que o Brasil
do anzol carrega o conceito:
é torto pra ser direito
que o seu direito é ser torto.
Foi tão grande o seu conforto
que nunca mais foi o mesmo
e saiu andando a esmo
pelas trilhas do sertão.
Por causa de uma questão
com o Valete de Paus
mudou-se para Manaus
navegando num balaio.
Lá encontrou um papagaio
que cantava a Marselhesa,
tempo em que Dona Tereza,
rainha da Dinamarca,
mandou fazer uma barca
para carregar muamba
que trocava por liamba
nas barbas do próprio rei.
Porém, tudo o que falei,
se é verdade eu não garanto,
porque Dom Fernando Canto,
um juiz de cara feia,
jurou botar na cadeia
quem espalhar tal boato.
Só sei dizer que esse fato
gerou grande arranca-rabo,
75

um bafafá do diabo
que nunca mais teve fim.
E antes que ocorra a mim
o mesmo que aconteceu
ao poeta Zebedeu
que apodreceu na masmorra,
eu mando todos à porra
e, pra sempre, viva eu!110 (SIQUEIRA, 2012, p. 78)

Pelas encruzilhadas da vida, em meio a seus descompromissos libertinos, as ciências


são objetos de derrisão do “Jura”, quando decidem determinar “o fim dos dias”. Em “o fim do
mundo”, um leitor ou quem sabe Juraci “desescreve-profanando” 111 as “profecias de
Nostradamus”, zombando de Deus, do trabalho, do patrão, mandando-os à “casa do
Carvalho”.
Numa sexta feira 13
De um mês de agosto passado
Um leitor de Nostradamus acordou muito exaltado
Achando que, finalmente,
Este mundo decadente
Teria o fim esperado.
Resolveu então fazer
Tudo que tinha vontade:
Zombar de deus e do mundo
Da falsa sociedade,
Mandar patrão e trabalho
Para a casa do carvalho
E cagar pra humanidade... (SIQUEIRA, 2012, p. 74)

Leitor das pajelanças amazônicas, como o ato de rezar, benzer e invocar entidades e
deuses, Juraci agencia elementos do catolicismo popular com as crenças afroindígenas 112 ,
descrevendo mandingas113 e curas para os males da humanidade com o auxílio dos repertórios
culturais-tectônicos da floresta.

No Estado do Grão Pará,


no fim de dois mil e três,
ocorreu um caso estranho
que agora conto a vocês:
A história de um certo anão
presepeiro e garanhão
feito um galinho pedrêz.
Toda a história começou

110
Utilizo o poema, na íntegra, para não abafar quaisquer rastros e resíduos da poética de Juraci.
111
Agamben (2007) esclarece a utilização da expressão, afirmando que a profanação toca o sagrado libertando-o
de seu uso comum. A escrita, em si, é uma proposta profana.
112
O termo foi cunhado pelo professor doutor da Universidade Federal do Pará, Agenor Pacheco Sarraf.
113
Em simbiose com a natureza, agentes da fé e da cura receitam “remédios” para os males físico-espirituais da
humanidade. Novelos de saberes da cura, para o historiador Agenor Sarraf (2013), construído por fios de
lembranças que o tempo não deu conta de esgarçar.
76

quando, num certo momento,


o nanico apareceu.
Com a força do pensamento
as mulheres mundiava
e com elas copulava
sem qualquer constrangimento...
A mulherada afirmava
que o tal era irresistível,
conquistador labioso,
encantador, milagroso
de talento indiscutível.
A verdade é que o baixinho
não dispensava ninguém:
de Mosqueiro a Marituba,
de Castanhal a Belém,
vestiu saia e falou fino
com seu instinto malino
armava e se dava bem.
Não se sabe exatamente
na cama o que se passava
pois, segundo as próprias vítimas,
ele as hipnotizava
e então passava-as no peito
e depois de satisfeito
normalmente as liberava.
Gostava de dar presentes,
tudo coisa de primeira:
pra Lila deu um cordão,
pra Mundica, uma pulseira,
pra Maroca, uma linguiça
comprida, grossa e roliça,
pra Neca uma macaxeira.
Só media um metro e trinta
do dedão do pé à venta
mas botava no chinelo
machão de um metro e noventa
com o simples argumento:
– Tamanho não é documento,
o que vale é a ferramenta!
Se seu corpo era pequeno,
grande era a sua “intenção”:
mais de sete polegadas,
segundo a declaração
de uma vítima inocente
que tropeçou, de repente,
na lábia do gostosão.
Muita gente afiançava
que o misterioso anão
devia ser habitante
da terceira dimensão:
um duende das cavernas
que carregava entre as pernas
uma vara de condão.
Com tal vara ele faria
coisas que o Diabo tem medo!
Para as mulheres, no entanto,
dizia ser um brinquedo...
Uma cigana afirmava
que a tal vara é que guardava
sua mandinga e segredo.
77

Mulher alguma fugia


da vara amaldiçoada:
branca, morena, amarela,
solteira, noiva ou casada
que usasse cruzar seus passos
caia louca em seus braços
totalmente mundiada.
Disse uma velha que o viu
descer de um disco-voador,
que tinha um olho e três pernas,
cada uma de uma cor,
sendo que a do meio tinha
um furo e onde provinha
um gás paralisador.
Mas a vítima, no entanto,
nele não via malícia.
Entrava em transe e gozava
de momentos de delícia.
Após dar com os burros n’água,
contava, cheia de mágoa,
seu triste drama à polícia.
Ele, às vezes, se fazia
de menor abandonado
e a pobre, desavisada,
com peninha do danado,
ao dar-lhe cama e comida
sem sentir era envolvida
na artimanha do malvado.
Segundo uma depoente,
uma amiga lhe falou
do tal anão milagroso
e ela então o procurou.
Mas ao ficarem sozinhos,
conforme afirmam vizinhos,
ele a hipnotizou.
Estando hipnotizada
na hora do “vamos ver”,
diz não se lembrar de nada
e que só veio saber
o que tinha acontecido
em casa, quando o marido
foi cumprir o seu dever.
Chegou montar uma tenda
no centro de Castanhal
onde dava, às mais carentes,
ajuda espiritual.
Quem nele botava fé,
findava qual picolé
que sempre acaba no pau.
Denunciado, foi preso
e levado pra prisão
onde, segundo as más línguas,
cometeu nova infração:
numa baita vacilada
seduziu a delegada
e a soldada de plantão.
Chegou a ser indiciado
por fazer sexo anal
com mulher honesta e séria
fora a conjunção carnal.
78

Ele jurava que não:


- Só faço sexo anão,
declarou para um jornal.
Houve alguém que até pensou
contratar o charlatão
para dar aulas de estupro,
cursos de fornicação...
Tudo legal, tudo lícito,
sessão de sexo explicito
sob a sua direção.
Até hoje ninguém sabe
quem é, de fato, esse anão:
um duende, um alienígena,
um mensageiro do Cão?
seja lá ele o que for,
eu deixo a cada leitor
sua própria conclusão114. (SIQUEIRA, 2012, p. 69-71)

No poema protagonizado por Dico Tralhoto, “um cabra macho de Afuá 115” cedendo
aos assédios sexuais das forças “demoníacas”, “as variáveis se multiplicam [...] a
imprevisibilidade se confirma”. (GLISSANT, 2005, p. 101). Ocorrem da “entrega” mais
“arranjos tupinizantes” (PINHEIRO, 2013, p. 88) friccionando-confundindo homens, deuses e
diabos: “O divino, o humano, o natural, geralmente tão separados, parecem aqui colapsar-se”.
(AGAMBEN, 2007, p. 12)

“Agosto, mês do desgosto”,


afirma um velho ditado.
Mês de tragédias, suicídios,
enrabações, atentados...
Mês em que Deus, Pai-Eterno,
abre a porteira do Inferno
e os demos são libertados.
Em vinte e quatro de Agosto
do ano mil e trá-lá-lá,
ocorreu um caso estranho
para as bandas de Afuá
entre uma estranha mulher
e um cabra macho de lá.
Dico Tralhoto morava
sozinho num barracão
perdido dentro da mata
em completa solidão.
Sem ter um rabo-de-saia
pra aliviar a tesão
ele sofria de insônia
e, de tanto bater bronha,
já tinha calos na mão.
Certa noite, já cansado
de “engasgar a Julieta”,
abriu a boca e gritou
que queria uma buceta
nem que fosse de visagem

114
Insisto no uso integral do texto para não silenciar a proposta fáustica de Juraci.
115
A “Veneza amazônica” localiza-se no arquipélago do Marajó.
79

ou da mulher do Capeta.
Mal acabou de falar,
toda a casa estremeceu
e uma formosa mulher
junto dele apareceu
completamente pelada
que, sacudindo a rabada,
lhe disse: – Aqui estou eu!
Venho do reino das trevas
atender o teu chamado.
Agora, ou trepas comigo
ou estarás condenado
a terminar os teus dias
numa zagaia espetado.
Dico Tralhoto não era
de fugir de assombração.
Saltou nu sobre a capeta
e os dois rolaram no chão.
Quando, enfim, cravou-lhe o ferro,
ela deu tamanho berro
que estremeceu o barracão!
A Diaba começou
a botar fogo do ouvido,
dos olhos, nariz e boca
fazendo um grande alarido
procurando amedrontar
o enrabador atrevido.
O cabra crava-lhe a pomba
sem ligar para a ameaça,
fita os olhos da Tinhosa
e diz, em tom de pirraça:
– Podes virar um vulcão,
sabrecar minha carcaça
que eu garanto, sem lorota:
do buraco da xoxota
não soltarás nem fumaça!
A Diaba deu um berro
e em fumaça se virou,
um forte cheiro de enxofre
pela casa se espalhou
enquanto o pobre caboclo
sozinho outra vez ficou
curtindo um grande desgosto
pois desde esse mês de Agosto
seu pau não mais levantou. (SIQUEIRA, 2012, p. 42-43)

Se as ciências ditas “modernas” desqualificam ou mesmo atribuem explicações


demoníacas às cópulas de pessoas com o sobrenatural, Juraboto indica a inexistência de
fronteiras nas práticas culturais-sexuais de sujeitos sociais obedecendo, com frequência, a
motivações de naturezas “obscuras” e “inexplicáveis”.
Nas cosmologias amazônicas transcriadas por seus cordéis “há um contágio profano,
um tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado”.
(AGAMBEN, 2009, p. 66)
80

Nesse uso incongruente do “sagrado” “há sempre um Fausto vindo à tona,


recuperando ou inaugurando linguagens, na voz, na letra, na imagem” (PIRES FERREIRA,
1995, p. 96). Infla-se o território do pensável sem diminuir o território do impensável: “A
exímia e meticulosa de encaixes e enxertos de ourives, prateiros, trapaceiros” (PINHEIRO,
2013, p. 69). Incluo, nesse metiê, feiticeiros-poetas movidos por reverberações e proliferações
acionadas pela luz solar em culturas do ar aberto. (PINHEIRO, 2013)
Aprisionar, vencer e enganar deuses-homens não garante a certeza de quem é
vencedor ou vencido, até porque não há uma distância hierárquica entre os pactários. A
negociação, sim, seria o importante, revelando prática mestiça de transformação com outros
sujeitos116.
Essa escritura mefistofélica ou essa grande lepra barroca117 acometendo as produções
sac(t)ânicas do Juraboto são invólucros sucessivos de uma escritura por outra, acúmulo
permanente de diferentes nódulos de significação permutáveis transbordando significações.
As superabundâncias e os “desperdícios” das curiosidades fáusticas de Antonio Juraci
Siqueira apontam para uma arte repetitiva e irregular, destituída de uma escritura fundadora,
uma origem jamais podendo ser representada, “reflexo necessariamente pulverizado de um
saber que sabe que já não está ‘aprazivelmente’ fechado sobre si mesmo. Arte do
destronamento e da discussão”. (SARDUY, 1979, p. 178)

116
A partir do pensamento de Viveiros de Castro sobre o perspectivismo ameríndio, as simbioses cosmológicas
nas Amazônias indicam o pacto-devir como um indicador de subjetividades.
117
Metáfora provocativa usada pelo poeta cubano José Lezama Lima, descrevendo os devires latino-americanos.
81

Três travestis
Três colibris de raça
Deixam o país
E enchem Paris de graça

Caetano Veloso – Três travestis

RIZOMA 03: POR BAIXO DO “CHAPÉU” DO “FINGIDOR”

3.1 ENTRE MALTAS, CIRANDEIROS E SALTEADORES

Modelado dos fingidores cujos “barros” são signos em contágios múltiplos, Juraci
procura, quando é possível, driblar as armadilhas da repetição. Deseja girar os significados
despojando o signo dos seus sentidos habituais, uma procura insistente de germinação para
outros campos semânticos:
Essa mão que move as arestas, os espelhos as faces dos verbos movem-se com
cautela, apesar de impor-se inquieta e persistente; incontrolavelmente insatisfeita.
Em sua faina, tudo que ressoe a significado conta. Todas as maneiras de dizer o
verso, qualquer impostação vocabular. Tudo ao derredor participa de sua lavra, de
sua fortuna poética para que se conjugue à colheita a diversidade e o múltiplo.
Forma, disposição da grafia, cor, ritmo, sonoridade, disjunção e conjunção de
elementos significativos, o espacejamento que se dota de valor, a palavra em sua
integridade ou o fragmento, às vezes farrapos de palavras, prefixos que ganham o
mundo sozinhos desmembrados de seus radicais. (TUPIASSÙ, 2000, [ s.n])

Essa argúcia devoradora-discursiva pode ser herdeira de um querer antropofágico


desde sempre latino-americano e tão bem descrito por seus manifestos:
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Philosophicamente [...]
Contra todas as cathecheses. Contra a mãe dos Gracchos. Só me interessa o que não
é meu. Lei do homem. Lei do antropófago [...] Nunca fomos cathechisados.
Vivemos atravez de um direito sonambulo. Fizemos Christo nascer na Bahia. Ou em
Belém do Pará. Contra o mundo reversivel e as idéas objectivadas. Cadaverizadas. O
stop do pensamento que é dynamico. O indivíduo victima do systema. Fonte das
injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas
interiores [...] O espirito recusa-se a conceber o espirito sem corpo. O
antropomorfismo. Necessidade da vaccina antropofagica. Para o equilíbrio contra as
religiões de meridiano. E as inquisições exteriores [...] Contra as sublimações
antagônicas. Trazidas nas caravellas. (REVISTA ANTROPOFAGIA Nº 01, 1928)

Juraci costuma fazer arte acompanhado de “MALditos” 118 em bares, praças e rios-
ruas, rechaçando a ideia de associações, 119 para dar lugar “a aglomerados de párias”
(SIQUEIRA, 2015), como: A Malta de Poetas Folhas & Ervas; Sociedade dos Poetas
Vivos120; Cirandeiros das Palavras121 e o Instituto Cultural do Extremo Norte122.

118
Segundo o poeta e professor Benilton Cruz, um dos integrantes da Malta de Poetas Folhas & Verdes, ser
maldito é “um pária, um marginalizado, um do “contra” [...] “vagabundo” ou “mendigo” nesta “sociedade
82

Figura 17: Momentos “marginais”: Instituto Cultural do Extremo Norte; Sociedade dos Poetas Vivos e
Cirandeiros das Palavras.

Dessas experiências subversivas, recolho vozes recontando uma possível trajetória


para a Malta de Poetas Folhas & Ervas, reunião de entusiastas da palavra com performances,
cursos, apresentações musicais e teatrais, declamações e publicação de livros,
preferencialmente em espaços públicos, como escolas, praças, circos, teatros, feiras de livros,
casas residenciais, comerciais, monumentos, casamentos e cemitérios.

moderna”, nascida da estranha “filosofia” burguesa de incentivar no dinheiro o seu lado corruptível [...]”
(MALTA DE POETAS FOLHAS & ERVAS, 2004, p. 149)
119
Para esses párias dos espaços públicos de Belém, poetas em clubes, associações, sindicados e academias são
ideias burguesas não refletindo, de fato, o verdadeiro artista da vida. (SIQUEIRA, 2015)
120
Juraci diz que esse movimento artístico nasceu, no início da década de noventa, provocado pelo filme
“Sociedade do Poetas Mortos”. Os poetas deveriam sair das cavernas e para povoarem os espaços públicos das
cidades. (SIQUEIRA, 2015).
121
“Cirandeiros da palavra” é um agrupamento de pessoas que têm afinidade com a palavra e que, como
educadores, tentam cumprir seu papel enquanto agentes de leitura e de cultura, pois acreditam que é pela palavra
que se constrói cultura. Fazem parte dos cirandeiros: O escritor, poeta e trovador que encanta rios e mundos com
a magia de suas palavras; membro do movimento de contadores de histórias da Amazônia, o filho do boto:
Antônio Juraci Siqueira; Sônia Santos, contadora de histórias, membro da Rede Internacional de Contadores de
histórias, membro do Movimento de Contadores de histórias da Amazônia, que alinhava e costura os fios do
encanto aumentando ponto a ponto; filha dos retalhos das linhas e dos bordados: Andréa Cozzi; militante da
palavra e amante da Arte, da Literatura e da Poesia sob o embalo cadenciado das vigilengas; membro do
movimento de contadores de histórias da Amazônia, a filha da mãe d’água. (SIQUEIRA, 2015)
122
O Instituto Cultural Extremo Norte criado no dia 25/11/2009, é fruto do Movimento Literário Extremo Norte
que congrega divers@s escritores e escritores paraenses, desenvolvendo atividades diversas no cenário cultural
de Belém desde fevereiro de 2004. (SIQUEIRA, 2015).
83

Figura 18: A Malta de Poetas Folhas & Ervas

Esse “bando armado de palavras” (SIQUEIRA, 2015) lembra do embrião da “Malta”:


Em 1984 na Feira do Açaí 123 , durante o projeto Pôr-do-Som, quando os poetas
Antonio Juraci Siqueira e Onna Alephe Agaia atraíram a mestra agrônoma Heliana
Barriga e o (então) graduando de Letras Benilton Cruz para a causa da poesia. Na
ocasião, nós nos valíamos de um caixote sobre o qual, com um pouco de coragem e
equilíbrio, trepávamos (mesmo) para transformar o mundo com intenções, gestos e
palavras. No mesmo ano, Onna Agaia promoveu um encontro de poetas no Museu
Goeldi124, o qual teve o nome de “Arte Alternativa” e resultou num grande varal
onde muitos poemas ficaram pendurados por falta de pagamento. (MALTA DE
POETAS FOLHAS & ERVAS, 2004, p.59)

As “traduções” para a denominação desse aglomerado de artistas “marginais” são


babélicas, mas sem o efeito “do vinho barato” para liberação da “carne cedida às afiadas
lâminas da existência” (SIQUEIRA, 2015), há um coral de vozes em desacordos:

123
Faz parte do complexo “Ver-o-Peso”, emoldurada pelo Forte do Castelo, a Praça do Relógio e a baía do
Guajará. Lá desembarcam produtos provenientes das regiões insulares adjacentes, com destaque para o açaí,
alimentando o comércio local.
124
O Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi está situado no centro urbano de Belém, com uma
área de 5,2 hectares. Foi fundado em 1895, sendo o mais antigo do Brasil no seu gênero. Além de abrigar uma
significativa mostra da fauna e flora amazônicas, o Parque concentra as atividades educativas do Museu Goeldi,
tal como um laboratório para aulas práticas. Recebe anualmente cerca de 200 mil visitantes. No Parque
Zoobotânico estão instalados a Diretoria do Museu Goeldi, as Coordenações de Pesquisa e Pós-Graduação,
Comunicação e Extensão, Administração, Museologia, Assessoria de Comunicação Social e Editora.
84

Malta significa no português falado no Brasil, corja, o bando de salteadores da beira


da estrada, aqui como a súcia de ladrões da palavra (para lembrar o “ladrão de fogo”
de Rimbaud; Folhas é o ar, o sopro e o segredo que se revela em movimento; Ervas,
porque a terra ainda sonha o invento de criação preso à própria terra, no revelar de
forças que se ocultam e se desnudam com a palavra, os seus delírios e artifícios na
alquimia de velar e desvelar o mundo. (MALTA DE POETAS FOLHAS & ERVAS,
1999, p. 2143)

A Malta participa e recria as acontecências poéticas e culturais da cidade. Reunir


poetas numa praça para engravidar a lua 125 é só uma delas, pois os encontros são
preferencialmente nos espaços públicos, “com o intuito de dessacralizar o poeta (tirando-o do
pedestal e colocando-o no turbilhão do mundo) e, principalmente, de divulgar o poema falado,
sem afetação, mas espetacular.” (SIQUEIRA, 2015).
Pensando com Jerusa Pires Ferreira e Zumthor (2000, p. 15) poderia ser:
ressurgência de energias vocais da humanidade, energias que foram reprimidas
durante séculos no discurso social das sociedades ocidentais pelo curso hegemônico
da escrita. Os signos dessa ressurgência (melhor dizer insurreição?) estão em toda
parte.

A primeira repercussão das “ações” da Malta ocorreu com o encontro da “Sociedade


dos Poetas Vivos”, performances com as luas cheias e nas praças de Belém. Sempre regadas a
vinho e alimentadas com “o pão da palavra” (SIQUEIRA, 2015), “esses bate papos poéticos”
atraem diferentes públicos, inclusive aqueles à margem dos eventos culturais institucionais:
mendigos, prostitutas e menores das ruas.
Investindo nos poemas-show, na última década do milênio, “gênero” “poético”
barroquizado pela dança, pelas bandas de rock e pelo teatro, destacaram-se os eventos:
“Hipnose Poética II” (1990); “(Pâ)nico Poema Show” (outubro/91); “O Banquete”, com a
participação do Balé Vera Torres (abril/92); “Heavy Poema Rock”, com a Banda Zênite
(abril/93); “Do Jeito que o Diabo Gosta e Nosso Senhor Consente” (1994), todos no Teatro
Experimental Waldemar Henrique; “Poesia Pará Todos” (1993), no CENTUR; “Poemas de
Amor e Morte”, na V Semana de Cultura Alemã da Casa de Estudos Germânicos/UFPA
(1994); “Ave Poeta”, no Núcleo de Arte da UFPA (1994); “Atrás da Porta”, no Teatro da Paz
(1996); “Ritual Poemístico”, na Praça do Pescador (agosto/1999), sempre em Belém. O final
do milênio também foi marcado pela gravação do primeiro CD da Malta, em 1999.

125
As reuniões dessa corja de artistas são ditadas pelas noites de lua cheia.
85

Em 2000, foi lançada a primeira coletânea da Malta, “O livro da Malta” e, dentre os


espaços escolhidos para seu lançamento, houve àquele testemunhado por mim, no Cemitério
da Soledad126. O “show” chamado “Uma vela para Orfeu e outra para Eurídice” misturou
rituais de magia às apresentações pirotécnicas, circenses e muita poesia, tendo como cenário o
cemitério-museu da Soledad.
O evento foi surreal. Fechamos o cemitério mais cedo para prepará-lo. No hall de
entrada, em cada lado, fizemos uma trilha de pólvora. Em volta do cruzeiro central,
fizemos um círculo com sal grosso e dentro da circunferência jogamos algumas
pétalas de rosas. O cemitério todo estava sendo iluminado com tochas de bambu.
Quando tudo começou, foi lindo! Ao fundo, a capelinha mortuária assistia ao rastro
e aos cuspidores de fogo, à poesia e aos olhos encantados de uma multidão estão
ainda hoje guardados em minha memória. Depois disso, shows de rock, recitais e
outros eventos redescobriram o cemitério. (SIQUEIRA, 2015)

Figura 19: Cemitério da Soledad


Esses salteadores de olhares e admirações são professores, cientistas, militares,
açougueiro, arte-educadores, animadores de festas infantis, filho de boto, filósofos e
compositores fazendo Arte na rua, e rua na Arte. Para eles, a Arte não poderia ficar somente
confinada entre as paredes de uma galeria ou de um museu; a poesia não poderia ficar
aprisionada exclusivamente nas páginas de um livro. A arte deveria ser o reflexo e uma
interferência na realidade, mesmo que para isso se acenda uma vela para “deus” e outra para o
“diabo”. (MALTA DE POETAS FOLHAS & ERVAS, 1999, p. 2148)

126
Muito próximo daqueles considerados “vivos”, o cemitério de Nossa Senhora da Soledad, localizado no
coração de Santa Maria de Belém do Grão Pará, é um dos museus a céu aberto mais significativos da cidade.
Epitáfios, túmulos em mármore, história de silenciados e crenças em santos populares se misturam nesse espaço
cultural.
86

Para esses malditos, publicar até aqui três livros significou algo semelhante à teimosia
faustiana da humanidade, cedendo aos impulsos, às seduções e aos ultimatos que a vida nos
dá, nem “que para isso se perca a inocência.”127 (SIQUEIRA, 2015)
Leitoras e leitores nossos que estais na Terra
Santificado seja o vosso salário
Venha a nós o vosso interesse
Sejam alimentados os vossos sonhos
Assim na realidade como na ficção
O livro nosso de cada dia comprai hoje
Perdoai as nossas ofensas
Porque nós não perdoamos os editores
Não deixeis cair sobre nós a repressão
E livrai nossos livros das prateleiras
Amém!!! (MALTA DE POETAS FOLHAS & ERVAS, 1999, p. 2145)

A Malta ainda vive, inclusive nas lembranças de seus artífices e de seus públicos. Suas
memórias, além dos livros publicados com a “ajuda” dos poderes públicos, vivem e estão
“abertas” a novas traduções inclusive na arte de fazer “atas”.
ATA DA MALTA
SOBRE A PRIVATIZAÇÃO DA PRAÇA DA REPÚBLICA

No dia 31 de julho de 2998, por volta das 19:00h, reuniram-se como sempre debaixo
da lua cheia, em um dos coretos da Praça da República, a Malta de Poetas Folhas
& Ervas, agregados e simpatizantes da Malta.
O Juraci não chegou à praça, pois já estava lá, plantado no lugar, enfeitando o coreto
de vírgulas e sinais de pontuação, com um poema na mão e uma sacola de couro dos
guerrilheiros da palavra, cheia de estrelas. Por volta das 19:30h chegou o Edvandro,
com a Mariza, depois o Benilton com a Verônica, em seguida a Roseli e o Zé
Severino. Vieram depois o Eduardo Dias, o Walber e o Walcyr Monteiro e suas
assombrações. Pronto. Ah, o Onna Agaia chegava atrasado com um astrolábio na
mão hipnotizando a galera recitando AMA, SIMPLESMENTE CREIA... Mas, que
chegava por último mesmo era a Heliana, parece que havia deixado a barriga em
casa, chegou atrasada e se desculpando dizendo "No caminho, eu conheci a filha do
Jabuti". Todo mundo riu " hi, hi, hi".
Depois das gargalhadas, a discussão preliminar girou em torno da privatização da
praça. Foi levantada a seguinte hipótese: A Praça da República não tem mais
sentido. Nada mais pertence ao povo, nada mais nos pertence. Foi a justificativa. Em
seguida, a poesia foi posta na mesa e repartida com o vinho de Baco e o queijo da
Yamada. A poesia foi discutida (discute-se poesia?, disse um alguém que não deu
pra notar) de onde ela teria vindo, para onde iria, se a poesia é careca e se isso trai a
consciência e onde estaria a banda alfa dos cabelos das ideias. Finalmente a poesia
foi posta à venda. Quanto vale a poesia? Essa foi a questão. Quem compra?
Benilton põe na pauta a concepção do livro da Malta, dizendo que estava quase
pronto, faltando apenas a inclusão de poemas da dupla sertaneja Evandro e
Edvandro; tudo era questão de tempo, talvez mais um milênio e alguns meses. Ele
informa o orçamento, aí todos caíram para trás. Depois do susto a constatação: o
livro vai sair custe o que custar e vai ser independente, porque toda poesia é
independente.
Eduardo Dias propõe a gravação de um trabalho em fita cassete, oferecendo o seu
estúdio para a realização do trabalho, informação esta já antecipada por Roseli.
A discussão se acentua - fita, livro, orçamento, editores, falta de editores, falta de
sensibilidade dos editores, Viagra para os editores, etc. Um lunático sugere a

127
Juraci diz que, às vezes, o poeta precisa sair da “torre de marfim” e estabelecer conexões inclusive com os
“inimigos”. (SIQUEIRA, 2015)
87

gravação de um CD, o CD da Malta. Viche, Maria !!! Égua, mano !!! Vade Retro !!!
Tá ficando doido, doido? Este foi o comentário geral.
Um roteiro, um roteiro! É sugerido um roteiro para gravação da fita. Outros dizem,
roteiro? Que roteiro? A Malta nunca seguiu roteiro.
Enquanto isso, o Eduardo Dias conta "causos" de enterro e outros assuntos de
interesse internacional acontecidos em Abaeté. Onna Gaia disse que foi raptado por
um disco voador, lá em São Domingos do Capim, e assim justifica a estranha queda
repentina de alguns de seus longos cabelos. Walcyr Monteiro conta um fato ocorrido
com poeta Bruno de Menezes quando este era o presidente da sociedade Peixe Frito,
predecessora do PQP. Walber contou a piada do velório, mas ninguém riu, pois
fizeram café com a meia de defunto.
Quem dá mais? Quem dá mais? Começaram os lances de privatização da Praça, da
poesia e da banda alfa dos cabelos das ideias. Tudo se vende. O martelo do
Chapolim foi requisitado. Cada lance era um poema. Algumas declarações e leituras
de poemas são protagonizadas por Juraci, Benilton, Edvandro, Roseli, Eduardo e...
Quem mais, mesmo?
Walber confessa ao ouvido de Edvandro: "Escuta, a privatização é assunto sério,
mesmo? Eu tô sem nenhum puto no bolso e esqueci de vestir minha meia da sorte
que tem um furo no dedão."
A praça não foi vendida. Ainda bem. Os agiotas multinacionais não apareceram e se
essas gangues de especuladores aparecessem nós botávamos eles na cadeia! Foi
decidido que nada era decidido e que a praça ainda é das crianças, dos bêbados e dos
poetas. Depois de uma retomada no assunto do livro, fica acertado um encontro às
11:00h de domingo, 02 de agosto, na Praça da República. (MALTA DE POETAS
FOLHAS & ERVAS, 1999, p. 2041,20142 e 2043)
88

Cada encontro dessa trupe das margens é, de certo modo, uma “orgia” verbal regada
de encenações bufas rompendo, em trinta anos de existência, com a rigidez da vida e das
letras frias.
BANQUETE DE EROS

Na cama posta – mesa dos desejos -


nossos corpos despidos são os pratos
para a ceia do amor
Antropófagos de nós, carnivoramo-nos
fome e sede um do outro saciamos
em delírios carnais. (MALTA DOS POETAS FOLHAS & ERVAS,
1999, p. 2015)
89

3.2 MALDITOS DECOLONIAIS?

Por baixo do chapéu do boto-fingidor-Juraci pode residir uma infinidade de intenções,


inclusive a opção decolonial da desobediência disfarçada pelas “juras” aos dispositivos
enclausuradores das artes e das culturas amazônicas. O chapéu de boto e seu terno branco
fazendo performances nos espaços institucionais, aparentemente, sugere uma rendição às
imagens redutoras comumente associadas ao morador da passagem Felicidade, mas, desde
que observado com o carinho etnográfico necessário, Juraci camufla, quem sabe, o desejo de
legitimar e divulgar um discurso a partir das bordas.
Seria cômodo e confortável afirmar que o Juraboto, ao receber cachês para
performatizar suas artes, estaria sendo recapturado pelas práticas recolonizadoras do gosto,
das imagens e dos símbolos. A criatura, até aqui neobarroca, estaria sendo seduzida pelos
“brilhos” dos processos de reestruturação dos poderes paradigmáticos?
Talvez fosse injusto admitir essa rendição sem resistência. Seria pouco provável
admitir que Juraci depositou nos alçapões do esquecimento um todo massivo e gigantesco
repertório afroindígena, em devires, despojando-o da visibilidade e do reconhecimento.
Juraci e esses grupos significativos de artistas das bordas participam desde 2014 de
eventos custeados pelo governo estadual do Pará, dentre os quais destaco “A Noite é uma
Palavra” 128 , uma ocupação de espaços públicos objetivando reunir “artistas da terra”
dividindo seu verbo.
O jornalista Lúcio Flávio Pinto 129 , em seu blog “A Agenda Amazônica de um
jornalismo de combate” 130 , demonstrou indignação diante da forma como o evento
arbitrariamente conduzia o processo de distribuição dos cachês artísticos:

128
Burilado pela Fundação Tancredo Neves e o governo estadual do Pará, “A Noite é uma Palavra” é o nome de
um projeto cujo objetivo, segundo seus idealizadores, é despertar o interesse da sociedade paraense pela poesia,
além de divulgar nomes e trabalhos de escritores paraenses.
129
É brasileiro, nascido em Santarém (PA). Sociólogo e jornalista profissional desde 1966. Começou a carreira
escrevendo para periódicos de larga circulação em Belém e no Rio de Janeiro, mas em 1988 deixou a grande
imprensa, dedicando-se ao seu Jornal Pessoal, periódico quinzenal entendendo as Amazônias como “Província
energética desenhada pelos avanços e mutações do CAPITAL”. Tem 12 livros individuais publicados, a maioria
retratando o que chama de “Tempos de ditadura piorada”. Sobre esse jornalista de ideias subversivas para
“mentalidades conformadas”, Célia Regina Amorim em sua tese, na PUC/SP, “Jornal Pessoal: Uma
metalinguagem jornalística na Amazônia” destrincha questões amazônicas dialogantes com o mundo.
130
https://lucioflaviopinto.wordpress.com.
90

A direção da Fundação Cultural Tancredo Neves continua ignorando as questões


suscitadas pelo pagamento de altos cachês artísticos sem qualquer critério cultural e
sem a exigência de licitação pública. A atual presidente e o ex-presidente da
Funtelpa, os únicos a reagir, embora não citados na matéria original sobre o assunto,
alegaram que nada podem fazer para impedir esses pagamentos porque eles se
originam de emendas parlamentares. Essas emendadas lhes chegam carimbadas. Isto
é, com destinatário certo da verba pública e pagamento a ser feito sem maiores
formalidades administrativas ou cautelas legais. Por ordem do deputado. Mais
espantoso do que esse lavar de mãos, é a responsabilidade do poder legislativo, que
também se mantém calado, como, aliás, todos os órgãos públicos que podiam tratar
desse caso. É também uma característica do governo Simão Jatene. Não há mais
dúvida que a transferência de vultosos recursos do erário para grupos de rock,
bandas de música do interior e outros agrupamentos ditos musicais é um verdadeiro
escândalo. Pode ter proporcionado desvio de recursos e apropriação ilícita, entre
outras irregularidades e crimes. O dono de uma das bandas de rock, a Itinerário
Boomerang, diz que jamais recebeu dinheiro da fundação e que vai procurar saber a
razão do uso do seu nome. É o primeiro a se manifestar. Sua informação suscita
imediatamente uma dúvida: será que todos os que assinaram contratos com a
fundação receberam o dinheiro apontado ou sua totalidade? Todos os grupos
beneficiados foram devidamente identificados? Foi demonstrada a inexigibilidade de
licitação? Sem falar na razão de fundo dessas iniciativas: o que delas resultou em
benefício da cultura popular? São várias as perguntas que precisam ser respondidas.
Se os deputados não assumirem a responsabilidade que lhes cabe, de definir se
realmente todos os cachês se originaram de emendas parlamentares, se elas foram
cumpridas e etc., o Tribunal de Contas do Estado e o Ministério Público têm que
investigar esses pagamentos, que se transformaram numa ação entre amigos e numa
dilapidação de recursos do tesouro. Ou tudo vai ficar como está para se ver como é
que fica?

Quijano (1992, p.09) ajudando-me ou não a reconstruir um olhar mais otimista sobre a
questão de grupos culturais “marginais” escolhidos “a dedo” pelos eventos institucionais vê
“a ideia de totalidade [...] um produto da Europa, da modernidade”, dispositivo comumente
usado pelos maquinários governamentais dissimulando igualdade ao reconhecer, sob critérios
questionáveis, “artistas populares”. Por baixo desse “véu”, meu olhar diz e vê igualdade
hierárquica reaprisionando a produção do conhecimento, da reflexão, das artes, das culturas e
da comunicação.
Liberto ou bem “amarrado” pelas práticas reinventivas eurocêntricas, Juraci e seus
companheiros das bordas, ao serem ouvidos, refutam a ideia de aprisionamento. Dizem
praticar um ato subversivo, ao levarem das ruas para os teatros e para os “centros” culturais
seus discursos: “Quando sou chamado, digo logo que vou levar meus companheiros de ofício.
O cachê é pequeno. O que vale é a oportunidade de reconhecimento para outros públicos”.
(SIQUEIRA, 2015)
Quijano (1992, p.10) novamente poderia ser acionado para dialogar com esse fazer
chamado subversivo por Juraci: “libertação das relações interculturais da prisão da
colonialidade [...] de optar individualmente ou coletivamente em tais relações [...] liberdade
para produzir, criticar e mudar, intercambiar cultura e sociedade”.
91

Aderência estratégica aos artifícios sedutores da recolonização? Não tenho certeza de


ter testemunhado essa artimanha, mas percebi, em algumas performances, a exposição de
“cicatrizes” ainda abertas, desconforto em estar ali, mesmo depois de “tudo”, inclusive
ouvindo dos organizadores adjetivações barbáries: “não conseguem” se ajustar aos protocolos
institucionais.
“Furtando” um dos olhares de Walter Mignolo (2007), suspeitei da possibilidade
residual de construção do que esse pesquisador chama de pensamento decolonial131, um fazer,
quem sabe, adaptativo ao querer construído a partir dos aprisionamentos culturais. Devaneio
de um pensamento fronteiriço?
Fazer Arte com e na fronteira, consumindo um pouco mais Mignolo (2007), seria
tentativa de ruptura epistêmica estratégica, a partir da inserção de bordas recheadas de
propósitos na colonialidade do poder, do saber e do ser 132.
Desnaturalizar os projetos imperialistas poderia ser chamado de desobediência,
categoria pensada como opção para a prática decolonial nas searas teóricas, políticas e quem
sabe artísticas: “para compreender e atuar no mundo, marcado pela permanência da
colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva” (BALLESTRIN, 2013,
p. 88).
Longe de aderir ou ficar subalterno aos “modismos acadêmicos”, eu e os fingidores
paraenses podemos dizer que infiltramos vozes aparentemente subalternas à voz ocidental.

131
“No pensamento decolonial a noção de colonialidade está diretamente ligada à de modernidade. Com efeito, a
colonialidade seria a face oculta da modernidade, que surge do sentimento de inferioridade imposto nos seres
humanos que não se encaixam no modelo eurocêntrico. A modernidade só pode ser pensada em coexistência e
simultaneidade com a colonialidade, na medida em que a identificaçao como “moderno” e “civilizado” se afirma
a partir da categorização da colônia como “bárbara” e “atrasada”. E nesse sentido a escravidão, o genocídio e a
exploração também são parte da modernidade, estão na face da colonialidade. O projeto decolonial ao adotar
essa noção de colonialidade implica em uma mudança de posicionamento diante da história, deixando de pensar
a modernidade como um objetivo e vendo-a como uma construção europeia da história a favor dos interesses da
Europa.” (MIGNOLO, 2007, p. 01)
132
1. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar
inconscientemente uma posição eurocêntrica). 2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos,
bárbaros, rudes, como exigência moral. 3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser
aquele seguido pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento unilinear e à europeia o que determina, novamente
de modo inconsciente, a “falácia desenvolvimentista”). 4. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a
práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa
modernização (a guerra justa colonial). 5. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras),
violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o herói
civilizador reveste a suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio
colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica etecetera). 6. Para o moderno, o bárbaro tem
uma “culpa” (por opor-se ao processo civilizador) que permite à “Modernidade” apresentar-se não apenas como
inocente mas como “emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias vítimas. 7. Por último, e pelo caráter
“civilizatório” da “Modernidade”, interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da
“modernização” dos outros povos “atrasados” (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser
frágil, etecetera (Dussel, 2000, p. 49).
92

Podemos, nós os subalternos, falarmos? O problema levantando pela pesquisadora


indo-americana Spivak (2010) só torna ainda mais complexo quando começo a pensar se há
algo contra-hegemônico na camuflagem ou por debaixo dos chapéus.
Spivak (2010) não parecer crer nessa estratégia, já no título, em inglês, de sua obra:
Can the subaltern speak? Ficam nas ambiguidades levantadas questões como: O subalterno
tem a permissão de falar? O subalterno é capaz de falar? Como fala o subalterno?
As negociações com os discursos hegemônicos são difíceis para artistas e para
pesquisadores. Spivak (2010) não vê com o otimismo nossas relações promíscuas com o
pensamento ocidental. Ela pensa que os pesquisadores são incapazes de falar pelos
subalternos, mas capazes de desafiar e construir mecanismos para o “subalterno” se articular
e, um dia, ser ouvido.
Esses mecanismos da “resistência” partem de uma escrita “articulada” com os
discursos hegemônicos, mesmo porque “não são os corpos de sentidos que são transferidos
nas traduções, mas sim a linguagem e seu papel para um determinado agente.” (SPIVAK,
2010, p. 16-17)
Essa reflexão parece um desalento para essa pesquisa, para Juraci e para seus
companheiros de bordas. Seríamos nós, fingidores e artífices de discursos vazios e
inorgânicos? “Revela-se, assim, a banalidade das listas produzidas pelos intelectuais de
esquerda nas quais nomeiam subalternos politicamente perspicazes e capazes de auto-
conhecimento” (SPIVAK, 2010, p. 33).
Cutucados ainda mais por Spivak (2010, p. 37), existe a provocação: os discursos
vindos das bordas133 não parecem tecer “um sentimento de comunidade”, uma consciência
coletiva, em especial quando insistem em narrar suas ancestralidades sob uma nostálgica
investigação das raízes perdidas: “seus textos articulam a difícil tarefa de reescrever suas
próprias condições de impossibilidade como as condições de possibilidade” (SPIVAK, 2010,
p. 60)
Tentando não pensar com Spivak (2010) e querendo compreender o fingimento como
prática de resistência, Santos (2007) anima minhas reflexões descrevendo o pensamento
abissal e sua capacidade multiplicante de produzir e radicalizar distinções, definindo o visível,
o verdadeiro e o falso.

133
Amplio o olhar de Spivak (2010) falando de camponeses, indígenas, quilombolas tentando incluir os artistas
marginais de Belém.
93

As bordas do conhecimento geralmente são descritas como “inadequadas” a esse grau


zero da intolerância e da exclusão do pensamento abissal: “a partir do qual são construídas as
concepções modernas de conhecimentos e direito” (SANTOS, 2007, p. 74). Viram o não
conhecimento: “crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos,
que na melhor das hipóteses podem se tornar objeto ou matéria-prima de investigações
científicas” (SANTOS, 2007, p. 79).
Essa condição de invisibilidade imposta pela cartografia abissal, para o pesquisador
português, além de medida sacrificial ou muro segregativo, pode ser entendida como um
fascismo pluralista “em que as sociedades são politicamente democráticas e socialmente
fascistas.” (SANTOS, 2007, p. 81)
Esse não parece um cenário animador, porém, por mais que o pensamento abissal
encontre maneiras de reinvenção, incluindo de artistas das ruas nas programações culturais
“oficiais”, os sinais simbólicos das bordas não apagam, embora dispersos, embrionários e
fragmentados, apontando “para novas constelações de sentidos referentes tanto à compreensão
como à transformação do mundo.” (SANTOS, 2007, p.83)
A sociologia das emergências134 de Boaventura não é nada fácil de ser executada, mas
espelhos ou dispositivos de resistência “do sul” 135 , como a marginalidade “teórica” dessa
pesquisa e daqueles “profanando” por um giro decolonial, desconstroem os critérios
cartesianos “da evidência clara e distinta” (BACHELARD, 1978, p. 47). Talvez, seja possível
um racionalismo flexível e móvel entendido por Maritza Montero (1998) como a busca de
formas alternativas de ver, interpretar e agir na América Latina. Uma concepção de
comunidade e de participação assim como do saber “popular”, como formas de constituição e,
ao mesmo tempo, produto de uma episteme de relação.
Poderia ser uma ideia de libertação através das práxis, pressupondo a mobilização da
consciência e um sentido crítico a conduzir à desnaturalização das formas canônicas de
aprender-construir-ser no mundo. Redefinição de papeis artísticos e de pesquisas.
Para isso, talvez em primeiro lugar, o reconhecimento do Outro como si mesmo e,
portanto, a do sujeito-objeto da investigação como ator social e construtor do conhecimento
quase sempre indeterminado, indefinido, inacabado e relativo.

134
Pensamento pós-abissal tendo como premissa a ideia da inesgotável diversidade epistemológica do mundo, o
reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico.
Isso implica renunciar a qualquer epistemologia geral. Existem em todo o mundo não só diversas formas de
conhecimento da matéria, da sociedade, da vida e do espírito, mas também muitos e diversos conceitos e
critérios sobre o que conta como conhecimento. (SANTOS, 2007, p. 86)
135
Para Boaventura Santos (2007), metáfora para humanidades experimentando sofrimento sistêmico e injusto
provocado pelo capitalismo global e pelo colonialismo.
94

Procurar outros significaria também o reconhecimento da multiplicidade de vozes, de


mundos de vida. Em relação, essas vozes falariam numa perspectiva da dependência, e logo, a
da resistência: tensão entre minorias e maiorias e os modos alternativos de fazer-conhecer.
Experiências, utopias e ideias, nesse sentido, residem nas práticas dos movimentos
sociais talvez podendo dialogar com as bordas artísticas paraenses:
Aquelas emblematizadas na Amazônia brasileira nos anos de 1980 pelo facão de
Tuira kayapó no pescoço do presidente da Eletronorte para impedir kararaô (hoje
Belo Monte), a dos mutirões de seringueiros do Acre armados de cartucheiras para
realizar os “empates” (1970/80) contra a invasão de seus territórios pelos
pecuaristas. No limiar do século XXI as marchas dos povos do TIPNIS na Amazônia
boliviana contra a estrada que devassa seus territórios e a entrincheirada resistência
na Amazônia peruana contra as hidrelétricas, com vitória momentânea contra a
construção da Hidrelétrica de Inambari acalenta nossas esperanças do triunfo da vida
sobre a morte representada pelo “grande projeto”. (TROCATE, 2014, p. 51)

Assistindo e fazendo parte dessa disputa simbólica de dominações e de resistências nas


territorialidades artísticas, políticas e epistêmicas, às vezes ser um fingidor frustrado bebendo,
de certa maneira, das águas ainda do pensamento europeu, indicam aparentemente uma
incapacidade de tecer um pensamento original e autêntico: “a alienação decorrente da
condição histórica de dominação gera um pensamento igualmente alienado, imperfeito e que
não corresponde à realidade” (PINTO, 2012, p. 341). Novamente pedindo socorro aos
pesquisadores mais otimistas ou quem sabe àqueles subvertendo esse complexo eterno de
incapacidade atribuído à América Latina, Zea (2002) costuma ponderar dizendo que se não há
condições de deixar imitar, deveríamos pelo menos assimilar, palavra entendida como a
acomodação do que aparentemente é estranho, não precisando ser inovador ou deixar de beber
das fontes ocidentais, mas readaptá-las às nossas necessidades. A complexidade dos
experimentos de Juraci e dos seus “bandos” evoca essa acomodação assimétrica de
pensamentos europeus em devir, assim espero, com os pensamentos decoloniais latino-
americanos.
O professor Francisco Soares (2009, p. 03), referindo-se aos contextos
plurilinguísticos-interculturais africanos dialoga, de certa maneira, com os discursos
decoloniais na América Latina. Para ele, descolonizar não se resume a simples migração “para
a língua do colonizador a cultura e, pelo menos em parte estruturante, os esquemas principais
da língua do colonizado”. Pelo contrário:
95

é preciso pensarmos que não temos de um lado uma língua e uma cultura (a do
colonizado), do outro lado outra cultura e língua (a do colonizador) [...]temos um
demorado confronto e convívio entre os dois lados. Não há, portanto, dois centros
propulsores de cultura e língua, mas um centro transicional, híbrido, com uma
extrema e rápida mobilidade, que absorve, transforma, rejeita e negocia
constantemente as culturas em convívio ou contradição [...] Por isso é que se dá a
colonização e a descolonização da palavra e pela palavra: porque há um sujeito em
transição que leva e traz, de umas para outras línguas, em sentidos diversos, sintaxes
e lexemas que vão desconstruir-se e reconstruir-se uns nos outros ou com os outros.
Quer isso dizer que a pessoa a que me refiro é uma espécie de língua intermédia, que
não chega a constituir-se como língua, mas opera sintática e imagisticamente
ligando os dois polos anteriores.

Não há, pelas palavras do professor angolano, espaço para leituras singulares e
dicotômicas aos sempre existentes processos de descolonização. É preciso compreender que
não há uma língua do colonizado, mas há várias, um português crioulizado, resultado de
invasões, conquistas, migrações, convívios e confrontos.
Nesse convívio de resistências e reorganização dos discursos hegemônicos, tanto o
colonizado quanto o novo conquistador incidem marcas a instilar, cravando significados,
traços semânticos, sintáticos e rítmicos. Um escritor intra e extraeuropeu, como Juraci,
inscreve em seus experimentos as alteridades coexistentes, coniventes ou paradoxais. Assim
sendo, um crioulês-amazônico eclode de um “Canto de Entrada”:
Aqui a porta
o porto
o parto
a ponte para o sonho sobre o leito
desse rio entulhado de incertezas
que guarda no tijuco da memória
a história do meu povo e do meu chão.

Aqui o homem
o verbo
a pá
a pena
a titânica missão de
erguer os ombros doloridos das manhãs.

Aqui a lavra
a pá lavrando a saga nhengaíba
entre restos e rostos soterrados
em busca de uma luz e de uma voz136. (BARRIGA, 2008, p. 12)

136
Poema de Juraci publicado em uma coletânea de autores “marginais” paraenses: BARRIGA, Heliana. Livro
da Malta-Folhas & Ervas. Belém: Editora Cromos, 2008.
96

Se os sábios narradores costumam dar os melhores conselhos 137 dizendo que “a vida é
madrasta de puta”138, poderiam também afirmar: “a vida é um jogo de cartas marcadas”. O
paradoxo da resistência, em rendição, das bordas artísticas do Pará e de quem pesquisa sobre
elas não perde de vista as “as racionalidades genocidas”. Parece até parte desse jogo! Será que
a velha arte da velhacaria e da falcatrua eclode dessa narrativa de trapaças chamada de vida
ou de academia?

137
Uma referência aos narradores de experiências traduzidos por Benjamin (1989).
138
Essa reflexão partiu de um repentista. No terminal rodoviário da cidade de Marabá/PA, esse personagem-
gente referiu-se a sua fome e ao fato de que ninguém parecia atento ou “comovido” com sua arte fingidora.
97

3.3 DO CHAPÉU, UM TRICKSTER ?

Identificar quem são e como são os fingidores é uma tarefa espinhosa para não dizer
impossível, mas revendo algumas literaturas, de maneira especial as antropológicas
debruçadas sobre personagens polêmicos, ambíguos, contraditórios e heróis trapaceiros
espalhados por uma variedade de culturais, surgiu o chamado trickster ou quem sabe uma
leitura para o quem está debaixo do chapéu do Juraboto.
Sarduy (1999, p. 1298) encontra na figura dos seres que se travestem artifícios,
dissimulações, excessos e mascaramentos, inter ou quem sabe transpessoalidade pulsando
pelos intertextos do poeta nascido em Cajary. Esses excessos de tanta gente dentro de um só
podem ser traduzidos, como:
trabajo corporal de los travestis a la simple manía cosmética, al afeminamiento o a
la homosexualidad es simplemente ingenuo: ésas no son más que las fronteras
aparentes de una metamorfosis sin límites, su pantalla “natural.”

Essa camuflagem ou superfície de tantos mimetismos 139 poderia ser comprendida


como: “El animal-travesti no busca una apariencia amable para atraer (ni una apariencia
desagradable para disuadir), sino una incorporación de la fijeza para desaparecer.”
(SARDUY, 1999, p. 1269), um desejo de:
de lujo peligroso, de fastuosidad cromática, una necesidad de desplegar, aun si no
sirven para nada [...] colores, arabescos, filigranas, transparencias y texturas,
tendremos que aceptar al proyectar este deseo de barroco en la conducta humana,
que el travesti confirma solo. (SARDUY, 1999, p.1269)

O poeta-pensador cubano descrevendo escritas travestidas segue os rastros do ser


ardiloso, personagem-gente complexo:
[e]l travesti remite a la arqueología, a otro mito complementario y reconfortante, el
del andrógino, que se sitúa en un tiempo adánico, en un tiempo antes del tiempo y de
la separación física de los sexos”, porque não pertence a um lado nem ao outro, é
indiferenciável. O transexual por sua vez, “se sitúa al final de la parábola de los
sexos: en su oscilación, en ese punto en que su contradicción es a la vez mantenida,
acentuada y borrada. (SARDUY, 1999, p.1300).

Uma escritura híbrida costuma brotar desses seres ambíguos, mesclando o corpo com
idiomas, culturas, personagens, experiências extra-somáticas invadindo também as palavras:
Planos que dialogan en un mismo exterior, que se responden y completan, que
exaltan y definen uno al otro: esa interacción de texturas lingüísticas, de discursos,
esa danza, esa parodia es la escritura.” (SARDUY, 1999, p. 1151)

139
Busco a problematização do termo com Derrida (2005) em diálogo com Platão, na República: E, de fato, a
técnica da imitação, tanto como a produção do simulacro, sempre foi, aos olhos de Platão, manifestação mágica,
taumatúrgica.
98

Incompreensível é o número insignificante de pesquisas sobre esses pregadores de


tantas peças. Latour (1994, p. 110), ao relatar a existência dos híbridos, parece justificar essa
irrisória coragem de descrever uma categoria empírico-teórica das mais, insisto, complexas:
Os híbridos representam para eles o horror que deve ser evitado a qualquer custo
através de uma purificação incessante e maníaca [...] Estes novos não-humanos
possuem propriedades miraculosas, uma vez que são ao mesmo tempo sociais e nãos
sociais, produtores de natureza e construtores de sujeitos. São os tricksters.

O termo trickster é geralmente utilizado para designar uma pluralidade de sujeitos


fingidores em diversas culturas, alguns ardilosos, antisociais e egoístas, outros confundidos
como heróis, mesmo em situações involuntárias e impensadas. Seria ele, buscando a palavra
francesa, triche, a criatura ligada ao furto, à trapaça, ao engano, à falcatrua e à velhacaria.
Renato da Silva Queiroz (1991, p. 03), mediando a fala de vários pensadores 140 ,
desenha o trickster como “criatura concebida como impura ou anormal”, aventureiro da vida,
geralmente malicioso e desafiando autoridades “por uma série de infrações às normas e aos
costumes [...] ladrão [...] profanador de locais sagrados”.
Amante do viver errante, o trickster Juraboto parece transitar também pelos espaços
entnográficos de Queiroz (1991, p. 04): “o trickster raramente tem morada fixa, perambulando
pelos espaços sociais, naturais e sobrenaturais com notável desenvoltura [...] é espírito sem
lar, errante, frequentador dos mercados, das encruzilhadas, das fronteiras.”
Balandier (1982) “apimenta” as feições barrocas desse ser embusteiro, mostrando que
não existem limites para as “brincadeiras” dos tricksters. As regras e obrigações perdem sua
força, nem há formas modelando seus discursos satíricos e irônicos. Há um desrespeito às
regras sociais e sobrenaturais. O cotidiano e suas supostas ordens sociais não poderiam deixar
de contar com o protagonismo de “bufões, mascarados, bobos da corte.”
Se essas transgressões são concedidas ou não pelas sociedades, os autores debruçados
sobre as “proezas” do velhaco trickster não apresentam consenso. Com Juraboto não poderia
ser diferente, mas é interessante perceber que, ao ser considerado por alguns públicos um
poeta tolo, ingênuo e escritor para crianças, há uma certa permissividade abrindo espaços,
inclusive institucionais, para as barroquices e peraltices-literárias-performáticas de Juraci.
Aproveitando-se desses estereótipos, em causa própria, quem sabe resida um
estratagema do performer em abrir frentes para seus companheiros das bordas: “Seria ele,
portanto, um ator solitário que, em última análise, atua sempre em benefício do grupo como
um todo.” (QUEIROZ, 1991, p. 7-8)

140
Dentre esses pesquisadores, cito Antonio Candido (1970) e Carl Jung (2000).
99

Reside sob a pele dessa paisagem enfeitada, pesarosa, fustigada, lacunar, ocelada,
matizada, dilacerada, feita de nós e laços, com gorros e franjas já puídos, por toda parte,
(SERRES, 1993) um ser atrevido enfrentando as limitações impostas pela idade e pelas
geografias amazônicas, cruzando a cidade de Belém e o estado do Pará em forma de espiral.
Juraci tentando ser onipresente nos bairros mais inacessíveis, nas regiões insulares de Belém e
em outros municípios paraenses.

Figura 20: Um trickster?

Ser filho de boto poderia ser “herdar do pai a lisura e a disposição” (SIQUEIRA,
2015). Esse trickster amazônico tenta suspender as limitações impostas pela vida, inclusive a
gagueira 141 , declamando com veemência trovas cravadas em suas memórias. Gesto de
ventriloquia, até certa medida:

arte de projetar a voz e, assim, dar vida a um boneco [...] fala pelo ventre, sacerdote
em comunhão com a abundância e a degradação da carne [...] profeta da barriga,
que, ao se comunicar desse modo, topograficamente, comunica-se também com o
mundo dos mortos. A voz do ventríloquo surge do subterrâneo. É a voz do morto.
(MACHADO, 2014, p.01)

141
Juraci, nas entrevistas realizadas, não gosta de falar sobre o assunto, mas nas entrelinhas admite conviver,
sem maiores problemas, com o “problema”, desde criança,
100

Sua voz, sem hesitações, performatiza semelhantemente à cena descrita por Pires
Ferreira (2009, p. 05)
O poeta popular (Komoróv) aparece tocando uma espécie de pandeirola, e por sua
voz que desafia os ritmos naturais, acelerado como no caso da embolada brasileira,
temerariamente conquista ouvintes e adeptos que são mostrados sob hierarquização.
A troça ancora no corpo, o artista joga-se, conforme o topos da cara e do culo, o
jogral baixa as calças mostra as nádegas, nas quais está pintada uma fisionomia.
Entre acrobacias e gracejos, pondo-se de ponta à cabeça, o riso é colocado, em cena,
mas a paródia, acompanhada pela censura nos faz ver que o texto oral, a emissão de
um poeta ou jogral pode causar a punição até a morte. No entanto escapará sempre
pela eficácia de sua transmissão a qualquer forma de controle que não se inscreva
nos limites da profunda relação do artista com seu público. Incontrolável e presente,
a voz viva pode receber castigos, mas se pereniza na força destas e de outras
palavras aladas.

A suspensão, a desordem e as inversões tecidas pelos tricksters fazem do mundo, um


circo, espetáculo da vida repleta de possibilidades, sobretudo as apresentadas por bufões
como o “Carlitos” Juraboto, fantasia de um homem que, nessa territorialidade de linhas tênues
entre a o real e a ficção, parece:
Como aqueles bonecos de plástico chamados de ‘João-bobo’, o bufão nunca cai:
ninguém jamais conseguirá culpá-lo ou fazer dele bode expiatório, pois ele é o
princípio vital e corporal por excelência, um animal que se recusa a pagar pela
coletividade, e que nunca tenta se fazer passar por outro (sempre mascarado, é o
revelador dos outros e nunca fala em seu próprio nome, e nunca assume o papel
sério dos outros, sem incorrer em sua perda).” (PAVIS, 1999, p. 34-5)

Ator de si que invertendo os signos e substituindo o elevado pelo vulgar, o respeito


pelo desrespeito e a seriedade pela caçoada (Pavis, 1999), esse Juraci meio bufão faz das
Amazônias cenas valorizando a marginalidade e trazendo à tona, pela verba hiperbólica, o
“proibido” e as “verdades ocultas”. O bufão exprime “em tom grave as coisas anódinas e, em
tom de brincadeira, as coisas mais graves”. (Chevalier & Gheerbrant, 2009, p. 148)

Não valho um tição queimado


mas sou melhor do que tu!

Eu sou boto tucuxi,


malandro e namorador
que engravida, sem pudor,
as caboclinhas daqui.
Esperto feito o Saci,
sou garanhão pra chuchu
e arrebento o babaçu
de qualquer cabra-da-peste.
Não passo de um cafajeste
mas sou melhor do que tu!

Sou mosquito da malária,


cafetão de cabaré,
mordida de jacaré,
sucuriju sanguinária,
o nó da reforma agrária,
101

excremento de urubu;
sou tacacá sem jambu,
prego velho enferrujado,
não valho um tição queimado
mas sou melhor do que tu!

Sou incêndio na floresta,


sou praga na plantação,
dentada de tubarão
e tudo o mais que não presta:
sobejo de fim de festa,
espinho de cuandu,
veneno de baiacu,
ferrugem de prego torto;
não valho um cachorro-morto
mas sou melhor do que tu!

Tenho a inveja de Caim


e a gana de Barrabás,
sou pior que Caifás,
não tenho dó nem de mim.
Sou voraz feito cupim
e feroz qual caitetu.
engano até Belzebu
com meu gênio traiçoeiro
capo e esfolo por dinheiro
mas sou melhor do que tu!

Pense num cabra nojento


pior que Antonio Silvino
mais bruto que Virgulino,
teimoso feito um jumento:
pois eu sou esse elemento
escrito um touro zebu,
não dispenso um sururu
bato em mulher e criança,
infernizo a vizinhança
mas sou melhor do que tu!

Eu sou a gripe suína,


ferroada de lacráia,
caco de vidro na praia,
bala perdida na esquina.
Sou filho de cafetina,
bebo quente e como cru.
Sou um perfeito boboca,
cocô de galinha choca
mas sou melhor do que tu! (SIQUEIRA, 2013, p. 25-27)
102

3.4 AQUI, O INSÓLITO É AMAZÔNIA(S)

Carpentier (2010, p. 344-350), ao referir-se à América Latina, “Aquí lo insólito es


cotidiano [...] continente de simbiosis, de mutaciones, de vibraciones, de mestizajes, fue
barroca desde siempre”, parece desenhar, pelo menos um pouco, essa pesquisa regada por
tantos bufões, faustos, badernas temporais e tricksters. Daí Juraci não ser compreendido ou
não conseguir ser melhor explicado pelos olhares mais convencionais ou quem sabe mais
acomodados.
Ao tentar traduzir esse território de experimentações mestiças, leio e recebo críticas,
como: trata-se de um trabalho diferente; leitura “nova” para as artes “populares”. Tudo muito
“estranho” aos outros, mas ao mesmo tempo, confirmando as minhas escolhas: ser uma
espécie de “arqueólogo” de poéticas com uma “policromía de las imágenes, por los elementos
que intervienen, que se entremezclan, y por la riqueza del linguaje” (IBID, p. 345), até mesmo
àquelas ocupando os “corpos” reservados às crônicas:
Papo chibé com jabá

Ontem eu voltava dum rolé pelo Bengola por volta do meio-dia. Ao passar pelo
Veropa vi, pelo rabo do olho, as canoas encalhadas na lama da doca... Égua não,
mano, bateu uma baita saudade de quando em pirralho eu vinha do Cajari e ficava
dias na canoa só na mutuca, macuricando o furdunço da feira... Desci do ônibus e
fiquei batendo pernas por lá, lembrando como era isso aqui no tempo do ronca. O
pitiú continua o mesmo mas o resto mudou pra chuchu. De primeiro só havia canoa
à vela e não tinha esse haver de carro esculhambando tudo. De tanto ficar zanzando
feito um leso, me deu uma gastura no estômago, uma broca fumada! Me arranquei
com mais de mil pras barracas de comida. Pedi um feijão bem adubado e ainda
arrematei com uma tigela até o talo de açaí do papa, de rocha, moleque. Ralado é
que quando eu estava no bem-bom, encostou na minha ilharga uma moleca
entanguida e perebenta dis que querendo que eu pagasse uma gelada pra ela. Ficou
lá me sujigando, enchendo a perema. Tá, cheirosa! Só o meu fraco pra gastar meus
borós com uma requenguela que nem conheço. Quando já estava bebendo a lavagem
da tigela de açaí pra evitar azia, me aparece um porre muito do seu enjoado que foi
logo empombando comigo. Axi, porcaria! Fiquei invocado com a fuleragem do cara
só falando merda. Fiquei tão encaralhado que por pouco não lhe sapequei uns
cocorotes. Mas aí, já com o estômago forrado, fui dar uma espiada nas barracas de
cheiro-cheiroso e caí na besteira de perguntar pelo preço dum raminho de mucura-
caá. Pra que: a mulher, talvez pensando que eu estivesse estribado, cheio do pacuru,
arrepiou! Eguá! Se calhá ela me achou com cara de pomboca, que cara de gringo eu
não tenho. Aqui, ó! Não dei na minha mãe...Continuei batendo pernas e quando
cheguei na Praça do Relógio foi que lembrei que dentro de dois dias Belém estaria
completando 397 anos! E bastou dar uma abicorada na praça Dom Pedro II pra ver
como a nossa cidade está mal cuidada! Lixo e cocô de urubu por todo canto,
brinquedos escangalhados, tudo levando o farelo! Que cuíra me deu de querer fazer
qualquer coisa ao menos para atamancar. O novo prefeito vai ter que roer uma
pupunha crua, trabalhar de-com-força se não quiser passar vergonha nos quatro-
centos anos da outrora Cidade das Mangueiras. (SIQUEIRA, 2013, p. 6-7)
103

Assimetrias são incomuns ou procurar descrevê-las também? Estilos históricos


ocidentalizantes não dão conta de quem pede licença para a mãe do mato antes de narrar ou
performatizar dizendo ser o filho do boto.
Alargo os olhares de Carpentier (2010) para as cenas amazônicas e acadêmicas. As
Amazônias e seus crioulismos artísticos142 foram e são solos férteis para o barroco, porque
toda mestiçagem e toda simbiose engendram esses barroquismos.
El barroquismo americano se acrece com la criolledad, con el sentido de criollo, con
la conciencia que cobra el hombre americano, sea hijo de blanco venido de Europa,
sea hijo de negro africano, sea hijo de indio nacido em el continente [...] la
conciencia de ser otra cosa, de se uma cosa nueva, de ser una simbiosis, de ser um
criollo; y el espíritu criollo de por sí es um espíritu barroco (CARPENTIER, 2010,
p. 347)

Vivemos, desde sempre, tempos de barroco ou de um realismo maravilhoso


reconstruído e narrado por “um vasto mural, uma imensa cartografia, uma longa e polifônica
narrativa, algo que pode parecer realidade e que pode parecer fabulação” (LOUREIRO, 2001,
p. 11), cena estranha e inimiga “de toda innovación, de todo lo que rompe com las reglas y
normas [...] todo lo académico es conservador, observante, obediente de reglas.”
(CARPENTIER, 2010, p. 337)
Não há espaço para obediência de regras e de harmonias geométricas para as
Amazônias e suas explosões de formas. Juraci, suas Artes em mosaicos e as Amazônias não
cabem em “épocas assentadas, plenas de sí mismas, seguras de sí mismas. El Barroco, em
cambio, se manifiesta donde has transformación, mutación, innovación.” (IBID, p. 344)
Em paráfrase com a questão levantada por Carpentier (2010, p. 347): por que a
América Latina, inclusive as Amazônias, são lugares propícios para o barroco? Essas terras da
mestiçagem são filhas do “espíritu criollo de por sí es um espíritu barroco”, lugares do
“exótico” para os míopes culturais, mas do real maravilhoso de Carpentier (2010, p. 348):
“Todo lo insólito, todo lo assombroso, todo lo que se sale de las normas estabelecidas es
maravilloso.”
Viver o latente e onipresente real maravilhoso amazônico significa tornar o insólito
cotidiano, “siempre fue cotidiano” (IBID, p. 351) o como propõe Loureiro (2005, p. 25) é
preciso ter sensibilidade para “flanar pela cultura amazônica, deter-se aqui e ali, recorrer ao
passado, reenviar-se ao presente, distrair-se minunciosamente num lugar, apressar-se
atentamente noutro”. No convívio entre o homem e a natureza maravilhosa: “É preciso errar

142
O crioulismo de Glissant (2005) definiria-se, como algo novo, totalmente imprevisível, que surge por meio da
combinação de elementos culturais completamente diferentes, distantes um do outro. Esses elementos se
misturam, se confundem, dando origem a uma nova cultura, a cultura crioula.
104

pelos rios, tatear no escuro das noites da floresta, procurar os vestígios e os sinais perdidos
pela várzea, vagar pelas ruas das cidades ribeirinhas.” (Id)
Remar é preciso

...e aqui cheguei. Chegamos. De bubuia por esse rio de muitas águas. Minha canoa
com sua carga de sonhos tem muitos bancos à espera de outros manos e manas que
queiram seguir viagem comigo para os confins do imaginário. Nem carece saber
remar. Basta a vontade de desbravar o insólito, a capacidade de polir pedras, retirar
espinhos, colher girassóis e descobrir o caminho mais curto para o país da fantasia.
Sou irmão do rio. Conheço sua força, sua fúria e, principalmente sua generosidade.
Portanto, chega-te a mim, meu irmão de sonhos, minha companheira de andanças
que ainda temos muitos estirões a vencer. A noite não assusta quem conhece seus
mistérios, quem leva consigo, sempre, a poronga da poesia. Para sermos felizes já
temos o bastante: o afeto, a sinceridade e a coragem de falar de amor. O resto a
gente aprende navegando. Anda, vem logo que o rio tem hora para encher e vazar e
não convém remar contra a maré. Vem! (SIQUEIRA, 2013, p. 03)

Juraci e as pesquisas dedicadas a esse percurso, muitas vezes labiríntico, usam o


devaneio como fator fecundante para suas produções, astúcia ou quem sabe opção
epistemológica, para tentar compreender como nós, amazônicos, temos a necessidade de
entranhar e estranhar o cotidiano com o devaneio.
Neste estudo da cultura amazônica, leva-se em conta uma cultura presente na
atualidade [...] num momento em que os homens ainda não se separam da natureza,
em que perdura ainda uma harmonia, mesmo entrelaçada de perigos, e se vive em
um mundo que ainda não foi dessacralizado; em que o coração vive ardoroso do
espírito no qual brota ainda aquele leite e mel das sagradas origens. Em que os
mistérios da vida se expõem com naturalidade, o numinoso acompanha as
experiências do cotidiano e os homens são eles ainda e ainda não os outros de si
mesmos. (IBID, p. 27)

Em meio ao cenário amazônico não precisando ser mais real maravilhoso do que já é,
encontrei um repertório infindável de artistas dando tons mais acentuados ao insólito. Juraci,
aqui representando essa “corja” multiplicante, encanta públicos, especialmente nas escolas,
porque simplesmente faz mágicas para as crianças; dá corações-trovas de papel; conta
estórias; incentiva jovens e adultos à leitura; “bate seu ponto funcionário público” sejam em
que bairros, cidades ou escola forem. Tudo isso maravilhoso ou fora do comum a quem faz da
educação e da cultura algo catatônico, amorfo e chato.
Se a minha fantasia teórica é o devaneio-sincrético-etnográfico-cartográfico, o real
maravilhoso amazônico repleto de verde, água, tricksters, bufões e uma corja de artistas em
bloco, podendo ser carnavalesco 143 , essa pesquisa é uma alegoria cujos adereços são o
convívio simbiótico, coral de vozes amazônidas, latino-americanas respondendo, desde o

143
Refiro-me a possibilidade, mesmo em um nível simbólico, de parodiar as esferas do poder. No caso da
coroação e do destronamento do rei, podemos tanto relacioná-los aos governos monárquicos da Idade Média,
como também aos governos precários desde sempre. Arte carnavalizada, destronamento e a dessacralização do
conceito platônico de cultura (cultura como sinônimo de obtenção do saber – mundo das ideias).
105

“começo” e mesmo às vezes “baixinho”, àqueles querendo desqualificar, para destruir, nosso
enredo barroco.
Neoindianismos nativistas; discursos efusivos ao “popular”, políticas públicas
duvidosas e folclorismos depreciadores são disfarces das garras e dos dentes afiadíssimos de
uma criatura, desde que chegou, querendo desagregar e destruir as barrocadas, insisto,
recheadíssimas de barricadas.
106

IRRIGANDO MAIS RIZOMAS

Rituais devorativos nunca findam, mesmo essa pesquisa-devaneio chamada de tese


precisando de um “fim”. Fica a digestão desse banquete barroco provado desde o recebimento
da primeira trova-coração de Juraci.
Fertilizando esses ainda prematuros rizomas com Glissant (2005), vi na errância um
modo mais seguro de transitar pelos universos amazônicos recontados pelos artistas das
bordas. Ler Juraci foi um jogo paradoxal de colocar debaixo do tapete todo aquele pó teórico
aspirado na minha clássica e superacadêmica formação eurocentrada, e quase ao mesmo
tempo, nos momentos agônicos nas encruzilhadas da incerteza, a mesma poeira epistêmica foi
aspirada para fiar esse texto.
O desejo de tentar desenhar um mapa mais sensível para algumas cenas amazônicas,
um “Todo-o-Mundo144”, seria, com as palavras de Glissant (2005, p. 154), uma tentativa de
nutrir rizomas culturais, uma proposição suprametodológica menos intolerante e mais
sectária: “que não mata à sua volta, mas que ao contrário estende suas ramificações em
direção aos outros”.
Enquanto essa totalidade mundo não tentar ser descortinada, enquanto certas culturas
do mundo precisarem aniquilar e erradicar a uma outra, para afirmar-se, várias culturas
estarão “violadas”, inclusive, as traduzidas por Juracis e por “maltas” espalhadas por aí.
As pesquisas de Jerusa Pires Ferreira, de certo modo, deram mais equilíbrio aos meus
malabarismos rizomáticos com as astúcias enunciativas de Juraci. As bordas vivem “operando
nos limites dos universos culturais contíguos porém distintos, na corda-bamba para atender
aos apelos desta produção popular, que se faz em resposta direta a um tipo de público.”
(PIRES FERREIRA, 1990, p. 173). Não fui atrás desses sujeitos. Já testemunhava seus
malabarismos culturais. Um mundo de vozes. Pesquisa, diversão e aprendizagem para
“sempre”.
Os rizomas de Jerusa levaram-me a Amálio Pinheiro, o orientador e “bússola barroca”
para esse mapa: “Tudo é texto, já que tudo é linguagem.” (PAZ, 2009, p. 295)
Ter uma experiência barroca com a vida tem sido muito difícil. Perceber as falas
microscópicas por trás das vozes mais ressonantes tem sido exercício para tudo. Igrejas,

144
“Todo-Mundo” (“Tout-Monde”): uma cultura feita, cada vez mais, de muitos mundos, uma cultura
inexoravelmente feita de culturas. (GLISSANT, 1997)
107

chapéus, vozes, cemitérios, formas e cores ganharam a condição de texto e a Amazônia, desde
então, virou Amazônias.
Não adianta fazer parte de um mundo tão sensorial se os nossos sentidos estão estéreis.
A semiótica cultural traçada, pelos tons coloridos do barroco, vem aos poucos, aflorando meu
olhar para o outrora invisível. Juraci deixou de ser “escritor de rua” para receber tratamento
de flâneur, trickster, açougueiro e agitador de cultura. Já para as Amazônias, paisagens sociais
cotidianas começaram a se tornar mais maravilhosas. Agora parece quase “normal” a alegoria
do homem de terno branco caminhando pelo sol escaldante do Ver-o-Peso distribuindo trovas
para feirantes e moradores das ruas e, em outros atos, esse performer debruçado sob um
túmulo qualquer saudando e brindando Eros.
Loureiro (2001, 29-49) chama de sfumato145 essa “interpenetração entre as realidades
do mundo físico as do mundo surreal [...] zona difusa [...] coabitando, convivendo, deparando-
se com o surreal como contíguo à realidade.” Devaneio de imaginários, sem repouso, na
relação sem fim do homem com a natureza: “A natureza havia no princípio. O homem veio
depois. Confrontaram-se, enfrentaram-se, alternaram-se, modificaram-se, transfiguraram-se
[...] dominação submissiva versus submissão dominante.”
Em devir com Amálio cheguei a Gruzinski (2001) e à “mestiçagem”, leitura para as
misturas hiperinflacionando o solo americano de seres humanos, animais, imaginários e
formas de vida, “zonas estranhas” prevalecendo na improvisação no labor diário da vida. As
Américas, por esses olhares mestiços, ganharam o contorno surreal de “uma espécie de latrina
fabulosa, só que aí a operação não consiste na retenção.” (PAZ, 2008, p. 30)
Cartografando esse devaneio de reencaixes mundanos, vi na gambiarra uma expressão
mais próxima para traduzir a Arte de fingidores ou de malabaristas das culturas, àqueles que
administram “três objetos num território para apenas dois” 146 ou invenção de solução
improvisada para um problema. A gambiarra está nos malabares dos sinais de trânsito, nos
poetas que se arriscam, nas pesquisas sem certezas, nas esquinas, nas praças e nas feiras
amazônicas. Esses artistas da vida procuram dilatar territórios da obviedade: onde antes
cabiam dois, caberiam, três, quatro ou mil.
Essas narrativas seriam um trabalho de marchetaria: Arte da improvisação; do
remendo; dos encaixes; dos ajustes; dos inventos; das engenhocas; das geringonças,

145
Segundo Loureiro (2001, p. 49): “palavra italiana que significa esfumado, zona indistinta, vaporosa, difusa ou
esbatida no sombreado dos desenhos [...] fusão dos personagens no quadro com a natureza, resultando em algo
que confere uma unidade profunda ao trabalho e uma relação de empatia entre a natureza humana e a natureza
cósmica.”
146
Frase de Cildo Meireles.
108

(SIQUEIRA, 2015) ou quem sabe “o espírito criativo e dinâmico da cultura popular e seu
poder de reinvenção.” (SOBRAL, 2012)
Das inúmeras cenas vividas com os fingidores paraenses, uma delas, aquela aos pés da
escadinha das docas 147 , o Sarau da Lua cheia, reúne poetas fazendo “gambiarras”: as
declamações e os devaneios-desabafos acontecem em meio a transeuntes curiosos, vendedores
“fingindo” apreciar os poemas, crianças correndo, chuva, monumentos históricos, maré alta,
papéis em voo, e claro, lua cheia. Lá, livros são lançados, bebidas servidas e texturas
múltiplas ganham e cedem espaço.

Figura 21: Academia das ruas: Sarau da lua cheia

Toda sorte de bricolagens com os estilhaços de uma ocidentalização frustrante estão


espalhados nas Artes, nas Religiões, enfim, nas trocas simbólicas culturais das bordas. A
relação está aí presente independente de um querer ou não querer cultural ou epistêmico. A
Totalidade-Terra é uma totalidade aberta, em movimento, relação que, para Glissant (1997),
seria uma trama concreta e, ao mesmo tempo, obscura, agindo silenciosamente ou
escancaradamente sobre quaisquer projetos recolonizadores. Glissant (1997) não se importa
especificamente com os esgotamentos de nossas matérias-primas; com as multinacionais
funcionando em nós de forma crua e dura; com a poluição ainda suportável, e se não

147
Praça referência para a realização de eventos culturais públicos: passagem do círio de Nazaré, concentração
de bois, pássaros e blocos carnavalescos.
109

imaginamos as terríveis técnicas construídas para obtenção do lucro com morte. Eu e Juraci
fingimos também nãos nos importar, mas em devires rizomáticos, procuramos “desbussolar”
as imagens redutoras costumeiramente refletidas “centripetamente” ao mundo amazônico.
Relação é primeiramente consciência dela e do que é capaz de fazer, como pulverizar as
compreensões de “Ser” e de “Essência”. Não há vida cultural regida pelo costumeiramente
chamado de identidades-raízes, porque vida é interação infinita, profusa, acumulativa e
sempre em movimento dentro da roda-viva do nosso espaço-tempo planetário. Só a partir da
“crença” nesse devaneio rizomático seriamos capazes de abandonar as múltiplas fronteiras (do
“eu”, do “outro” da etnia, da religião, da língua, da nação) e seus corolários: a intolerância, o
racismo. (Glissant, 1997)
Alteridade não é valor de mercado. Esse Outro não pode se tornar ainda mais um
espectro pelas lógicas fundamentalistas. Devorar, numa perspectiva “oswaldiana” mais
tolerante, nunca significará absorção predatória-odiosa de um suposto inimigo, seja por que
razões culturais forem.
A predação tem tantos nomes: devastação florestal-cultural, concentração fundiária-
cultural, especulação insaciável, ocupação extensiva e violenta de terras e de culturas.
Imagem próxima de uma “sangria, isto é, de escoamento de riquezas para fora, sem benefícios
que lhes seja proporcionais” (LOUREIRO, 2001, p. 408)
O morticínio provocado por políticas “desenvolvimentistas” é acompanhado de
ressureições surpreendentes: Na companhia de Juraci e de suas “andanças” pelas Amazônias,
“provamos” saberes-sabores culturais inimagináveis para ambos. Experienciamos talvez o
“nomadismo circular” de Glissant (1997), aquele avançando e desbravando no “drama” da
Relação múltipla, infinita e mais tolerante de ouvir alteridades.
Na busca desses “Outros” optamos pela errância por não desejarmos ser mais o
viajante-descobridor-conquistador, mas sim, “canoeiros”, sem comandar nem possuir essas
alteridades. Estivemos juntos nos barcos-escolas, nas escolas, nos teatros, nas praças, nos
bares...
Não creio que essa cartografia de bordas recaia no risco “em mais uma versão do
‘velho processo’ colonial de transformar em recurso a ser explorado” para a “guetização, de
tribalismo e da refeudalização” (SANTOS, 2010, p. 68-302). A proliferação das diferenças
nessas páginas, pelo contrário, tenta, quase a todo custo, impossibilitar que raízes,
predatoriamente, se assentem fortemente sobre quaisquer chãos.
Nenhum pensamento-raiz sobrevive por muito tempo nas fronteiras cujas demarcações
são porosas e os “terrenos” sejam instáveis. Pensar e acreditar nas fronteiras significaria “uma
110

forma de ser e viver permanentemente em trânsito e na transitoriedade [...], criando espaços,


[...] encruzilhada dos saberes e das tecnologias.” (SANTOS, 2010, p. 154-204)
Desejar uma pesquisa fingidora pode ser uma renúncia parcial dos horizontes
ocidentais, para quem sabe, reconfigurá-la a uma constelação mais ampla de saberes
(SANTOS, 2010). Fingir poderia ser: pensar sem rendições completas aos fascismos sociais
infiltrados, ainda em proporções gigantescas, no fazer acadêmico!
Juraci e as bordas do Pará não precisam de pena, mas sim “penas” capazes de
reinscrevê-los. Um fazer diaspórico deslocando para as “margens” os discursos mais
conservadores seria viver e falar das margens, sem opção pelas vias unicamente “marginais”
ou “acadêmicas.” (SANTOS, 2010)
Bachelard (1978, p.29), em devir com essa pesquisa, acalenta minhas incertezas,
frustrações e limitações: o critério cartesiano da evidência clara e distinta é uma tentativa de
desmantelamento: “para acompanhar o pensamento científico, é necessário reformar as
quadras racionais.”
Talvez seja o momento de esclarecer ou mesmo confundir definitivamente o uso da
categoria devaneio nessa pesquisa. Tentar fugir dos pensamentos encaixotados significou
transitar por várias vias, algumas “mais alternativas”, como a observação participante desses
“entrelaces entre elementos invisíveis, marginais e periféricos” (LIMA, 1988, p. 26), opção,
em grande parte, graças à amizade e à admiração junto às Maltas paraenses.
Não houve, a meu ver, “negociações” demoradas para adentrar nesse universo de
subjetividades, mesmo assim, escrever sobre o que fazem e como fazem, significou um
desarranjo de expectativas pessoais e culturais.
Experimentar as vicissitudes, ao traduzir essas bordas, foi, de certa maneira, acreditar
em uma “ficção” participativa desses artistas nessa escrita. Ao contrário dos etnógrafos indo
embora levando consigo a observação para “interpretações”, Juraci sabe que ele e suas vozes
são interlocutores nesse fazer. Guardamos alguns posicionamentos divergentes. Juraci e as
Maltas creem na construção de uma identidade periférica para a Amazônia. Em resposta, sem
certezas, desprezos e diminuições, eu acho que há uma “seiva” ou ancestralidade, a vida,
proliferando e contaminando os espaços desses artistas e de algumas pesquisas.
Nossas experimentações das bordas seriam escavações dessas periferias físicas,
simbólicas, subversivas e, em devires múltiplos, germinadas por um cotidiano difuso e
cambiante. Paz (2009) alimenta minha falta de melhores palavras quando diz que, se
barroquismo é o jogo dinâmico, claro-escuro, a posição violenta entre isto ou aquilo, somos
barrocos por fatalidade de idioma e por destino cultural também.
111

Não há como negar - mesmo alguns pesquisadores defendendo a imparcialidade e o


distanciamento do “objeto” de estudo - que a linguagem e os pensamentos derramados nesse
texto são tomados e atravessados por algumas intenções e sotaques das bordas paraenses. Não
acredito nesse “autismo acadêmico”: “uma ‘cultura’ é, concretamente, um diálogo em aberto,
criativo, de subculturas, de membros e não membros de diversas facções.” (CLIFFORD,
2011, p. 47)
Admitindo essa ocupação parcial da pesquisa, pensei, desse modo, tentar transformá-la
em uma experimentação barroca: “uma grande sala, por onde entra a festa, com todos os
lustres multiplicando os seus fogos-fátuos nos espelhos.” (LIMA, 1988, p. 82)
“Devorando” mais um pouco Lima (1988), “nossa” ideia seria compor, com esses
saltos e sobressaltos, uma espécie de constelação supra-histórica, em que os textos dialogantes
exibiriam o seu devir na mutação de suas partículas. Barroquizar é tentar também
compreender que nenhum método científico é soberano ou instância ética garantindo verdade
(CLIFFORD, 2011), principalmente quando falamos e somos infiltrados por fingidores.
Aceitei, ao perceber que já era assim, uma escrita em vai e vem e dentro e fora entrelaçando
vozes subversivas com as mais conservadoras.
Transar e trançar as Amazônias é vida-escrita-pesquisa “callejera”. As “comidas” vêm
dali, daqui, pulando sem parar. Cabe a quem aceita o desafio de participar desse banquete
cultural, meter o garfo nas alteridades, mastigá-los devagarinho e, mesmo não dando conta do
extenso cardápio, lamber-lembrando os dedos-sabores e esperar, quem sabe, a vinda de
novos-outros “pratos”.
Nutro os rizomas, por aqui! Eles darão conta também sozinhos! Como sempre
dialogando com Juraci, em nossos últimos encontros, falávamos dessa pesquisa. Sua frase
mais marcante foi: - Ninguém se basta! Eu tentei responder à altura: - “Só me interessa o que
não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago...”148

148
Manifesto Antropofágico (Oswald Andrade), maio de 1928, publicado na Revista de Antropofagia n°1.
112

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