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Uma contradição chamada Brasil

O sujeito que se esfola no serviço até não aguentar mais, recebe um salário de
fome e depende de programas de renda mínima para comprar o frango do
aniversário do filho, chega em casa esgotado física e mentalmente após ter
ralado o dia inteiro na merda de emprego que corre o risco de deixar de existir
pelos planos de terceirização da empresa graças às reformas ''modernizantes''
do governo federal, senta-se no sofá e ouve o moço de cabelo impecável na
TV dizer que bilhões foram gastos para ''comprar'' votos de deputados a fim de
salvar Michel Temer de ser julgado por corrupção, mas também que bilhões
foram desviados em escândalos de corrupção, bilhões foram garantidos em
subsídios e renúncias fiscais a empresários e bilhões deixaram de ser
recolhidos por conta das isenções de impostos a que os mais ricos têm direito,
para, logo na sequência, ver engravatados senhores explicarem que o rombo
das finanças nunca foi tão grande e que bilhões precisam ser economizados
através do adiamento das aposentadorias para que o país não quebre – e a
cada palavra proferida pelos engravatados senhores, que parecem ter todos os
dentes do mundo, um desespero genuíno vai lhe tomando conta, pois sente
que seu corpo já não é como antes e se tiver que procurar um novo emprego,
naquele momento da vida, estará ferrado, sua companheira estará ferrada,
seus filhos estarão ferrados, seus pais estarão ferrados e, percebendo o
quanto ferrado já está, seu desespero vai se transformando em vontade de
quebrar tudo, não por autopiedade, mas frustração e raiva, e com a garganta
embargada de choro, decide parar de pagar impostos e de seguir leis e regras
injustas feitas pelas mesmas pessoas que estão lhe “ferrando” sem nenhuma
cerimônia e resolve ir para a rua protestar contra um país que,
desgraçadamente, lhe obriga a ter que escolher entre comprar o tal frango do
filho ou trazer sabão e pasta de dentes para casa, enquanto alguns arrotam
caviar com dinheiro de impostos, mas daí se lembra do rapaz carioca, negro e
pobre, que foi preso em uma manifestação por portar Pinho Sol e, depois,
preso novamente por ser acusado de carregar alguns gramas de drogas
enquanto o filho de uma desembargadora foi solto ao ser pego com quase 130
quilos de drogas, e a vontade de sair quebrando tudo dá lugar à lembrança de
que o país não é dele, nunca foi, e que ele é apenas a mão de obra barata que
faz a engrenagem funcionar, nunca ganhará uma mala de R$ 500 mil de um
dono de frigorífico por serviços prestados e mesmo se fizesse uma tatuagem
de hena com o nome do ocupante da Presidência, não levaria milhões em
emendas, pelo contrário, seria apenas mais um bobo pobre que acredita no
governo (igual àqueles colegas do trabalho que botaram fé em tudo o que foi
mandado por listas de WhatsApp e passaram a achar que o principal problema
do país são os comunistas) e, respirando fundo, põe a cabeça no lugar porque
tem que acordar cedo amanhã (o serviço tá atrasado), em seguida abraça forte
sua companheira, que acaba de chegar de uma viagem de mais de duas horas
de ônibus da casa onde é empregada doméstica, e a ouve perguntar – com
aquela voz que traz paz ao mundo – se está tudo bem com ele, no que
responde com um beijo em sua testa, a velha mentira do cisco no olho e um
aviso de que a novela já vai começar.

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