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RESENHAS /BOOK REVIEWS

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tado por Rudolf Otto, mas pode ser visto
A técnica e os riscos da como um prolongamento da apreciação
modernidade. da obra de Heidegger. Assim também
Franz Josef Brüseke. Anthony Giddens e sua noção de
Florianópolis, Ed. UFSC, 2001. desencaixe, separação de espaço e tempo
na modernidade, “... precondição da
dinâmica extrema da modernidade...” (p. 20)
está presente, mas de certa forma
PAULO COUTINHO*
subsidiário no conflito explorado pelo livro.
Que conflito?
Risco ou perigo? Franz Josef Brüseke,
Risco ou perigo? Apesar do risco estar
no livro “A Técnica e os Riscos da
no título, é do perigo que o autor procura
Modernidade”, constrói seus argumentos
dar conta. E aqui está presente, de saída,
em torno dos dois termos. E não são
uma discussão que atravessa muitos
equivalentes: o risco traz a possibilidade
debates em torno da questão da
do cálculo, da antecipação aos seus
sustentabilidade. Entre catastrofistas e
estragos e está inscrito, disciplinarmente,
otimistas, para nomear os pólos extremos
no campo da Sociologia; já do perigo,
que geralmente são assim nomeados pelos
derivado da sociedade moderna e de sua
adversários. Para os primeiros, a dinâmica
afinidade com o cálculo e a técnica,
da sociedade moderna traz necessari-
ocupa-se com mais propriedade a filosofia.
amente a destruição da própria vida na
Em posições centrais nessa discussão,
Terra; resta-nos a denúncia, ainda que
Ulrich Beck, em A Sociedade de Risco, que
intimamente duvidemos de seus
trata da modernização reflexiva - “A
resultados. Para os otimistas a tudo dá-se
modernização não entrou no seu próprio Pós
um jeito: não há problema colocado pela
mas voltou-se contra si mesma.” - (p. 36),
humanidade que ela mesma não consiga
e Martin Heidegger, com sua crítica ao
resolver. São posições um tanto idealizadas
perigo que ronda a sociedade dominada
essas e, por isso, limitadas. Mas servem
pela técnica, momento em que “Nós não
aqui para elaborar uma preocupação
refletimos que, com os meios da técnica, está-
presente no livro de Franz Brüseke. As
se preparando um ataque à vida e à essência
críticas de Heidegger à sociedade da
do homem que, comparado com a explosão
técnica muitas vezes é apontada como
da bomba de hidrogênio, significa pouco.”
niilista, assim como as iniciativas de
(p. 66)
controle do poder da técnica, por vezes
O livro de Franz Brüseke não está
destruidor, através de instituições oficiais
limitado a discutir esses dois autores, mas
são não raro tomadas por demasiada-
seu desenvolvimento pode ser resumido
mente otimistas, ou mesmo ingênuas. O
na oposição que ali encontra. Boa parte
autor rejeita para seu livro os adjetivos
do último capítulo, por exemplo, discute
de apocalíptico, pessimista ou realista,
o conceito de sagrado como foi apresen-
deixando para o leitor a última versão.
(p.10)
A análise do risco é demandada por
* Paulo Coutinho, economista, mestre em Ciência
Ambiental (PROCAM-USP), doutorando em uma sociedade que perdeu a confiança,
Ciências Sociais - Unicamp ou fé, no progresso e na sua evolução

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necessária; neste mundo marcado pela tação. Vale mais arriscar uma síntese: a
contingência, as coisas são o que são mas sociedade moderna, através da técnica,
poderiam ser diferentes. Abre- se a desoculta as coisas (os entes, nos termos
possibilidade de uma renovação da de Heidegger), assim como a mineração
liberdade, perdida na sociedade desoculta o minério de ferro para a
progressista e industrial do século XIX, produção do aço, de uma maneira em que
aceita como necessária. Mas, embutida o Ser (ou o Divino) permanece inatingível
na avaliação dos riscos da sociedade atual à humanidade, que passa a ver as coisas,
está a possibilidade de sua superação, pelo produtos da técnica, como a única
cálculo. Cálculo presente na moder- realidade. Perdem-se assim os “rastros dos
nização reflexiva, quando os ambien- deuses” e, portanto, a possibilidade de um
talistas podem discutir com os Estados e pertencimento que transcenda as
as grandes corporações mesmo, e às vezes limitações do mundo dominado pela
principalmente, no campo da técnica e técnica, mundo trazido à existência, para
da ciência. Franz Brüseke rejeita a análise Heidegger, no fim do século XVII pelo
exclusivamente sociológica do risco. “A pensamento de Leibniz que, em 1671,
confusão entre os aspectos ontológicos e formula o princípio do fundamento: nada
sociológicos do risco, ou melhor, a ausência é sem razão. Naquele momento, após uma
completa de uma reflexão ontológica de Beck incubação de 2.300 anos na filosofia
tem um efeito desastroso. Em vez de assumir ocidental, o princípio do fundamento
o inevitável - que é a simples ocorrência de torna as coisas (entes) manipuláveis pela
que a vida individual, per si, é um percurso ciência e pela técnica. E isto é uma
finito sob a estrela do risco -, projeta o temível subtração, quando perde-se o essencial;
na sociedade.” (p.39) aqui Heidegger encontra eco em críticos
Sociologia territorializada, a obra de da sociedade industrial, ainda que
Beck vem da análise da Alemanha dos anos involuntariamente, como nos
80 e pode estender-se a países em situação representantes da Escola de Frankfurt. O
semelhante que vivem no Estado do bem- que fazer? Se está rejeitada, como
estar social. Para Franz Brüseke, “... uma suficiente, uma ação “por dentro” da
teoria adequada da sociedade moderna modernidade reflexiva, ou seja, uma
contemporânea tem que se abrir além do denúncia dos riscos globais em “termos
horizonte das regiões racionalizadas e suas auto- técnicos”, voltamos então ao fundamento.
explicações racionalizantes.” (p.52) Não ao de Leibniz, mas o que ele ocultou.
Para escapar da racionalização, o Franz Brüseke segue Heidegger no
percurso tentado vai pelas trilhas da retorno ao sagrado. Não a uma religião
filosofia de Martin Heidegger. Aqui está determinada nem a uma perspectiva
o perigo, também de fazer uma síntese que necessariamente teológica, mas como
descaracterize tanto o esforço de Franz uma via imposta ao enfrentarmos o
Brüseke quanto do polêmico filósofo, para niilismo e sua expressão: a sociedade
muitos crítico maior da sociedade dominada pela técnica. Apesar de
dominada pela técnica, pelo poder ausentes no texto, é caminho semelhante
encarnado na técnica e em sua falta de tomado por representantes da Ecologia
objetivo (niilista, portanto). Melhor aqui Profunda (Arne Naess à frente) e alguns
não reproduzir, em resumo, a argumen- pensadores e ambientalistas próximos

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dessa perspectiva como, por exemplo, vezes está acuado em uma posição
Fritjof Capra e Gary Snyder. reativa, também e principalmente quando
Para Heidegger, nosso tempo viu a aceita, a princípio, a validade exclusiva
deserção dos deuses, que não deixaram dos argumentos técnicos. E isto não é são.
vestígios, e ficamos sem mesmo sentir a Até porque, lembramos aqui, neste ano
nossa ausência de fundamento. “Estando de 2001, o presidente dos Estados Unidos
sem fundamento, o nosso tempo fica repudia os termos do Protocolo de Quioto,
pendurado sobre o abismo, sobre o sem- acordo que procura controlar o
fundamento (Abgrund). Uma mudança, aquecimento do planeta, alegando não
uma virada radical, só pode acontecer ser iniciativa suficientemente alicerçada
quando este abismo for percebido e vivido.” em pesquisa científica. Claro que vale
(p.186) Contra a razão calculadora, resta- colocar todos os argumentos possíveis,
nos alguns poetas, que ainda procuram técnicos e científicos inclusive, na
“... cantar os vestígios dos deuses resposta ao presidente originário do
afugentados.” (p. 187) E “...Onde os rastros Texas, sede de importantes empresas
[dos deuses] se perdem está à espera o petrolíferas. Mas, seria só isso? O embate
perigo.” (p. 187) no campo da técnica e da ciência? Outros
Ao tomar por referência a obra de pertencimentos são chamados, e aqui está
Rudolf Otto, posteriormente, Franz o valor maior do livro de Franz Brüseke,
Brüseke apresenta a idéia do Numinoso, ao convidar-nos a uma outra perspectiva.
algo como a essência, ainda que um Fica, no entanto, uma pergunta
conceito composto, da experiência do incômoda, e não só ao autor. Não estamos
sagrado. O Numinoso, momento irracional nós tão acostumados a respostas “no
do sagrado por ser inalcançável pela domínio do cálculo” que restamos mudos,
reflexão científica, tem suas imensas ou quase isto, quando devemos pensar um
energias liberadas pelo mundo da técnica, “outro modelo de desenvolvimento” que
onde nada é sem razão. Em “...suas formas não escamoteie para um cômodo “direito
cruas e irracionais [o Numinoso] torna-se de liberdade religiosa” a questão do
um tema exatamente no momento em que a sagrado? Como pode ser realizada a
técnica moderna consegue libertar, com meios vivência de um pertencimento para-além
racionais, energias capazes de reduzir a da história ou, ao menos, dos valores da
complexidade da vida às suas cinzas sociedade moderna? E como isto pode
radioativas.” (p. 206) Para nós, hoje, o inscrever-se na prática ambientalista, já
retorno ao sagrado é uma exigência para que teria que ser necessariamente uma
o fundamento de uma “ética forte”. Uma expressão que superaria as possibilidades
ética fundada no discurso é “fraca” e não do discurso, da linguagem? A expressão
dá conta dos estilhaços do sagrado, “... o debate e a prática de um
decomposto na sociedade moderna. (p. desenvolvimento sustentável que busca
205) soluções economicamente eficazes,
Franz Brüseke enfrenta o perigo. socialmente equilibradas e ecologicamente
Chama nossa atenção para algo “além da prudentes.” (p. 171) não revela uma
técnica”, da necessidade mesmo de postura herdada da sociedade da técnica
fugirmos ao controle do discurso, inclusive e do cálculo? Se a resposta é sim, o que
por vezes o ambientalista, que muitas fazer?

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O livro, composto por três capítulos


(de cinco) antes publicados como artigos,
tem uma evolução não truncada. Uma
padronização na citação bibliográfica
poderia ajudar os leitores a saber o ano
da primeira edição e a página citada das
obras referidas e, algumas vezes, também
da existência de traduções disponíveis em
português. De Mircea Eliade, por
exemplo, O Sagrado e o Profano (p. 215)
foi traduzido. Ainda na bibliografia,
algumas obras comentadas não estão
relacionadas, como a da nota 49, página
170. As dificuldades na tradução e
interpretação de Heidegger não
precisariam ser aumentadas com o
formato de apresentação e discussão do
texto do filósofo tal como acontece nas
páginas 74 e 75. A nota de número 50,
página 105, o comentário sobre a relação
de Heidegger com o nazismo ser mais “um
escândalo francês do que um escândalo
alemão” pede uma referência, ausente, ao
professor Zelkjo Loparic, que dedicou o
livro Heidegger Réu - Um Ensaio sobre a
Periculosidade da Filosofia (Campinas:
Papirus, 1990) em parte a essa questão,
opondo-se ao seu ex-colega, Victor
Farias, com quem frequentou curso
oferecido pelo filósofo alemão. Por fim: a
orelha humana nas costas de um rato, foto
que correu o mundo, foi criada com genes
humanos ou era uma orelha “normal” que,
decepada, foi ali costurada para não
perder sua irrigação sangüínea e assim
manter condições de posterior reimpla-
nte? (p. 66)

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