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Na Rússia, no entanto, não há brasileiro que não tenha se surpreendido e empolgado com as
imagens da torcida brasileira, muito embora esmagada pelos padrões Fifa (proibição de
instrumentos de grande portes, tamanho máximo para as bandeiras somente, assento marcado,
nenhum lugar do estádio para torcer em pé). A surpresa era tanta que as emissoras de televisão
não cansaram de reprisar as cenas e músicas dos torcedores brasileiros, e é provável que todos
nós ainda tenhamos em mente as canções que fizeram sucesso na Copa1.
Uma vez passada a euforia, é também preciso realizar uma revisão crítica dessas músicas. Para
muitos, é provável que este gesto seja visto como elitista, afinal, a música no Brasil sempre foi
compreendida como a mais legítima expressão da espontaneidade popular, estando para além da
raia de análises críticas. Não por outra razão, no meio cultural (até mesmo de esquerda) impera
uma covardia crítica diante da miséria musical do funk ou sertanejo universitário (com suas letras
ridículas e arranjos estereotipados). O que se torna ainda mais verdadeiro no caso do futebol, meio
que sempre se viu apartado de críticas culturais já que prevalece o mito da irracionalidade dos
torcedores “doentes” pelo seu clube, portanto também situados para além de qualquer possibilidade
de análise crítica. Na ausência dessa, nossos clubes de futebol permanecem com um repertório
medondo de músicas estúpidas, homofóbicas, caricatas, etc.
Outros vão dizer que basta cantar, como se não importasse o que a canção veicula e transmite.
Contra um argumento dessa estirpe, basta lembrar como o primeiro grande filme do cinema
brasileiro se singularizou justamente porque a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol era
definidora para a compreensão da narrativa. Ou seja, não era possível compreender a história sem
realmente ouvi-las e interpretar suas letras, pois as canções não eram um mero acompanhamento.
Assim também ocorre nos estádios de futebol: as músicas entoadas pelas torcidas não são neutras
como “música ambiente”, mas impelem os jogadores de acordo com o sentido das letras.
Não quero subestimar a dificuldade que é criar uma canção em que a letra seja facilmente decorável
e que possua a dicção própria a grudar no ouvido e mente dos torcedores. Principalmente porque,
diferente dos argentinos e uruguaios, nossos clubes de futebol não compartilham irrestritamente os
mesmos modelos de músicas2 - se fosse assim, precisaríamos apenas modificar a letra ao pôr o
1
Não vou falar aqui das músicas que artistas gravaram em vista da Copa, dentre os quais se
inclui Rincon Sapiência, Neguinho da Beija-Flor, Wesley Safadão, Timbalada, Mc Loma, etc. Para
uma análise minimamente divertida destas músicas: https://www.vice.com/pt_br/article/vbqq53/re-
senhas-musicas-brasileiras-copa-do-mundo-2018
2
Embora não façamos isso de modo tão extensivo como as demais torcidas latinas, o próprio
ritmo do Brasil Olê Olê Olê é utilizada por diferentes torcidas como a do Vasco
(https://www.youtube.com/watch?v=mmmBKSV0uyg).
nome do Brasil, já que o ritmo todos já saberíamos. A despeito desta dificuldade, não podemos
simplesmente olhar ingenuamente para as canções.
94 Romário
2002 Fenômeno
Primeiro tetra-campeão
Único pentacampeão
É valioso que a nossa principal música na Copa esteja preocupada em resgatar o passado e assim
historicizar o presente. O problema é o personalismo que a música privilegia, elegendo um nome
individual para representar uma conquista coletiva, assim duplicando nosso constante apego às
figuras que ocupam o poder e nas quais confiamos o rumo nacional. Sobretudo, o que o que devem
pensar os jogadores? Caso seja campeões, que a próxima música certamente afirmará que 2018
foi Neymar, algo tão desmedido quanto os próprios jogadores que usaram um boné com a inscrição
“Força Neymar” antes da partida da Alemanha, o que não ocorreria caso fosse qualquer outro
jogador lesionado. De modo mais acertado, na Copa de 2002 foram os próprios jogadores que
tentaram impedir a centralização da conquista em poucas figuras. Antes da partida final contra a
Alemanha, os jogadores reservas quebraram o protocolo e também se enfileiraram para a foto oficial
junto ao times.
Nas demais músicas, sobressai uma preocupação quase exclusiva em atingir os rivais
(principalmente a Argentina):
“Mil gols, mil gols, mil gols, mil gols, mil gols,
só Pelé, só Pelé, Maradona cheirador.”
Próximo ano, a Copa América acontecerá no Brasil, Será uma boa oportunidade de acertarmos os
rumos e reinventarmos de maneira ainda mais assinta a torcida pela seleção.