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Unificação entre Contradições: Alemanha, Europa e as crises da globalização

Carlos Frederico Pereira da Silva Gama


Professor de Relações Internacionais

Diretor de Assuntos Internacionais

Universidade Federal do Tocantins (UFT)

Publicado em Mundorama (11/10/2017)

https://www.mundorama.net/?p=24088

Após a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi dividida em zonas de ocupação pelas potências
vencedoras (União Soviética, Estados Unidos, Reino Unido e França). As regiões ocupadas pelos
soviéticos se tornaram a República Democrática da Alemanha (Alemanha Oriental) e as demais se
uniram na República Federal Alemã (Alemanha Ocidental). Por quatro décadas, as Alemanhas foram
potências econômicas nos blocos da Guerra Fria (divididos, a partir de 1961, pelo famoso Muro de
Berlim). A RDA era a segunda maior economia planificada integrante do COMECON e a RFA, segunda
maior economia capitalista da Comunidade Econômica Europeia (CEE), antecessora da União.

Dois grandes partidos dominaram a política da Alemanha Ocidental a partir de 1949. A Democracia
Cristã (CDU) governou durante 28 anos e a Social-Democracia (SPD), 13 anos. Com o fim da Guerra
Fria, a RFA incorporou a RDA em 3 de Outubro de 1990. Na Alemanha reunificada as principais forças
políticas permaneceram aquelas do período do chanceler Konrad Adenauer. Democratas-Cristãos e
Sociais-democratas obtiveram, em média, 70% da preferência do eleitorado nas urnas desde 1990.

Ao longo da Guerra Fria, a plataforma política desses partidos convergiu para um consenso vitorioso.
Em primeiro lugar, conceberam a República Federal Alemã como um estado democrático de direito.
Em seguida, promoveram uma economia baseada na indústria de ponta. Em termos de segurança,
a Alemanha Ocidental fôra impedida de se rearmar pós-1949. Sua atuação se focou na estabilidade
regional, com a consolidação de uma força de prontidão europeia que substituiria progressivamente
as ogivas nucleares estacionadas em ambos os lados do Muro pelas superpotências em disputa. Por
fim, a RFA foi vista como um dos corações da Europa integrada e uma plataforma de ampliação
rumo ao Leste Europeu, simbolizada pela Ospolitik do chanceler socialdemocrata Willy Brandt (que
desafiou a bipolaridade da Guerra Fria, ao abrir canais de negociação com a RDA na década de 1970).

Uma geração após a reunificação alemã e o Tratado de Maastricht (1992), a União Europeia incluía
28 estados, com uma presença significativa de ex-integrantes do bloco soviético. Reunificada, a
Alemanha foi o primeiro país a reconhecer a independência da Croácia e Eslovênia durante a guerra
civil iugoslava. O país se engajou ativamente nas operações de paz sob a batuta da Organização das
Nações Unidas (ONU) e, de forma controversa, participou de operações militares da Europa na
província (hoje estado) do Kosovo, 10 anos após a queda do Muro de Berlim.
A nova Alemanha dos Democratas-Cristãos Helmut Kohl e Angela Merkel e do Sociais-Democratas
Gerhard Schroeder se tornou a maior economia da Europa, uma das 5 maiores do mundo, bem
como um dos 3 maiores exportadores. A integração da RDA e a imigração do Leste Europeu e
Oriente Médio mantiveram o país de mais de 80 milhões de habitantes com crescimento
populacional superior aos vizinhos.

Diante do acúmulo de sucessos, a comunidade internacional se viu surpreendida com a dificuldade


de Merkel em vencer, uma vez mais, as eleições legislativas em 2017. Num sinal de perturbação e
desalento, partidos da extrema-direita obtiveram sua mais expressiva votação desde a República de
Weimar – terão um número significativo de cadeiras no Parlamento alemão, o Bundestag.

O ponto de virada foi a crise financeira internacional de 2008. A crise derrubou a aliança entre
sociais-democratas e verdes liderada por Schroeder. Cerca de 10% do eleitorado não foi às urnas.
Entre 2005 e 2009, Democratas-Cristãos e Sociais-Democratas perderam 7 milhões de votos. Pela
primeira vez após a Reunificação, a soma de seus votos caiu abaixo da casa dos 60% do total.

Gráfico 1: “Eleições para o Bundestag após a Reunificação” 1

1
http://electionresources.org/de/
Gráfico 2: “Votos para o Bundestag após a Reunificação”2

As respostas à crise transformaram a União Europeia. Considerados pilares da integração, o livre


mercado e a liberdade de movimento se viram subitamente convertidos em prolongada recessão e
dilatada crise humanitária. Instituições comunitárias, dantes vistas como provedoras de soluções e
consideradas como vanguarda das políticas públicas internacionais, passaram a ser consideradas
como parte do problema. Ao invés de enfocar a convergência de políticas entre os estados-membros
e agentes sociais, as ações da UE adquiriram uma intensidade coercitiva inédita na escala regional.
As políticas comunitárias passaram a depender de um sistema estrito de regras e punições, o que
as aproxima das práticas do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial do Comércio.

A ascensão de Merkel ao posto de Chanceler marca o período no qual políticas da UE passam a ser
vistas como mecanismos competitivos que favorecem, em última instância, uma hegemonia alemã,
contra o pano de fundo da retração das economias mais endividadas da União (os PIIGS – Portugal,
Itália, Irlanda, Grécia, Espanha). Dani Rodrik caracterizou essa transformação no conteúdo das
políticas comunitárias como um experimento de integração regional em meio à hiperglobalização 3.

Uma reversão de expectativas também marcou questões de segurança. A Alemanha de Merkel foi
um dos destinos preferenciais dos refugiados da guerra civil na Síria. O país acolheu mais de 1 milhão
de pessoas no último biênio – numa significativa demonstração de solidariedade internacional.

2
Ibid.
3
Rodrik, Dani (2011). The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy. New York:
W.W. Norton.
Não obstante, o apoio do eleitorado às políticas da Chanceler passou a ser relutante. Um estupro
coletivo atribuído a imigrantes do Oriente Médio no réveillon de 2015 em Colônia e o atentado num
mercado de Natal em Berlim (2016), reivindicado pelo grupo terrorista ISIS, tornaram a opinião
pública mais relutante à política de “portas abertas” de Merkel, endossada pela União Europeia.

Em contraste com caracterizações da União como um sistema de governança de múltiplos níveis4,


os estados-membros voltam ao centro das atenções na Europa convulsionada por crises e temerosa
do populismo. Discursos de ódio, supremacia racial e xenofobia retornam ao léxico político e às
urnas. Ansiedades políticas referentes ao status das fronteiras comunitárias – já tensionadas pelo
Brexit e por consultas populares na Escócia e na Catalunha – voltam o relógio para 19915.

Diante da crise, as promessas da integração se tornaram menos persuasivas. A União Europeia


permanece, doravante, em fluxo6 – menos uma comunidade de destino e mais um experimento, no
seio do qual rupturas abruptas convivem com lenta acumulação de conquistas. Consequências não
antevistas7 da globalização transformaram o projeto bem-sucedido da Alemanha do pós-Guerra em
capítulo da crise das democracias liberais8 no século XXI. A vitória na paz veio com sabor de derrota.

4
Hooghe, Lisbet & Marks, Gary (2003). "Unraveling the Central State, but How? Types of Multi-level
Governance" in American Political Science Review, Vol. 97, No.2, pp.233-243
5
Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2017). “A Eleição Presidencial na França e a União Europeia em
crise”. NEMRI. Disponível em: https://nemrisp.wordpress.com/2017/04/27/a-eleicao-presidencial-na-franca-
e-a-uniao-europeia-em-crise/. Acesso em: 27 de Abril de 2017.
6
Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2017). “Jovens Ruínas da Integração Europeia”. MUNDORAMA.
Disponível em: http://www.mundorama.net/?p=23772. Acesso em: 22 de Julho de 2017.
7
Giddens, Anthony (1990). The Consequences of Modernity. Stanford: Stanford University Press.
8
Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2017). “Vitórias Inconclusivas: o Desgaste da Democracia Liberal”.
NEMRI. Disponível em: https://nemrisp.wordpress.com/2017/07/25/vitorias-inconclusivas-o-desgaste-da-
democracia-liberal/. Acesso em: 25 de Julho de 2017.

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