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O gradualismo eficacial do dolus malus na improbidade administrativa

(Artigo publicado no periódico Carta Forense – Edição nº 110- Julho 2012/ Site: www.cartaforense.com.br/ISSN-
1982-7393)

José César Naves de Lima Junior1

A Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa) tem


natureza principiológica estabelecendo padrões éticos de governo, deveres ao
agente público e direitos a sociedade com o escopo precípuo de assegurar a
probidade na administração pública, além do equilíbrio das relações jurídicas
entre essas partes. Dessarte, para sua correta interpretação é preciso
considerar as normas e princípios de diversas disciplinas do Direito que,
conjuminadas, formam um microssistema multidisciplinar de proteção dos
interesses da sociedade, parte possivelmente vulnerável dessa relação
jurídica. Esse microssistema é formado pela Constituição Federal, Lei de Ação
Popular, Lei de Ação Civil Pública e Lei de Improbidade Administrativa que
somadas à recente Lei da Ficha Limpa guarda uma forte aproximação com o
Direito Penal em virtude da gravidade das sanções cominadas a ilicitude civil,
resultando no que se denominou de direito administrativo sancionador.
Em contexto paramentado pelo diálogo das fontes, percebe-
se que um possível desnível imiscuído entre o gestor público e a sociedade
não se desfaz por meio de simetria formal, ou através do sistema de controle
vigente (Tribunal de Contas, Poder Legislativo ou Controladoria), sendo
necessário o reconhecimento de direitos e a imposição de deveres lastreados
no princípio do favor debilis, quer dizer, em favor da parte débil, frágil, no intuito
de potencializar a tutela do interesse público. A provável vulnerabilidade coloca

1
Graduado em Direito Pela Universidade Federal de Uberlândia, 1995. Membro do Ministério Público do
Estado de Goiás, Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Pontifícia
Universidade Católica de Goiás, Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Associação Goiana
de Ensino - Faculdade Anhanguera de Ciências Humanas e Especialista em Ciências Penais pela
UNIDERP - Universidade para o Desenvolvimento do Estado e Região do Pantanal. Professor de Direito
Civil da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás no ano de 2000. Professor
de Direito Comercial e Direito Penal da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Goiatuba-GO nos
anos de 2001 e 2006. Presidente da Regional Sul da Associação Goiana do Ministério Público do Estado
de Goiás 2002/2003. Componente titular da banca do 55º concurso para ingresso na carreira do Ministério
Público do Estado de Goiás nas disciplinas de Direito Civil e Processual Civil. Promotor de Justiça titular
da 7ª Promotoria de Justiça da comarca de Itumbiara/GO.
em risco o princípio da isonomia insculpido no art. 5º, caput, da Constituição
Federal com diretrizes fornecidas pelo art. 5º, da Lei de Introdução ao Código
Civil que informa o sistema normativo nacional, salientando que no âmbito da
LIA (Lei de Improbidade Administrativa) a fragilidade apresenta natureza
polifacética, pois pode manifestar-se em vários campos da atividade
administrativa, a exemplo da esfera jurídica, pois o agente político detentor de
mandato eletivo dispõe de assessoria jurídica; na esfera técnica, dada a
organização da estrutura administrativa e legal que ampara o exercício de
funções públicas; na esfera política, pelo exercício de parcela do poder estatal
(competência); econômica, pela gestão de receitas públicas. Enfim, detém uma
série de poderes e prerrogativas outras que a sociedade não possui, aflorando
a partir disso certa disparidade perante a lei.
Por outro lado, conquanto a mens legis pareça perseguir a
proteção do interesse público, nossos tribunais firmaram entendimento no
sentido de se exigir a prova de dolo específico para a responsabilização civil do
agente público, ou seja, a má-fé. Depreende-se da leitura de diversos julgados
que essa aleivosia corresponde ao que o direito penal chama de dolo
normativo, no qual além da consciência e vontade exige-se também a
consciência atual da ilicitude (dolus malus), que caracteriza o elemento
normativo do dolo. Desse modo, essa orientação pretoriana além de acentuar
a possível vulnerabilidade do corpo social, tem servido de instrumento da
salvaguarda de práticas ilícitas dadas às dificuldades de se produzir provas
desse elemento subjetivo.
É preciso salientar que as circunstâncias que permeiam a
improbidade administrativa, ausentes nas infrações penais, como a
organização e estrutura de Poder, e uma possível vulnerabilidade daí
decorrente nos parece exigir a imposição de deveres ao gestor público em
nível superior ao exigido da sociedade. Ademais, a administração pública está
sujeita ao princípio da legalidade, segundo o qual o gestor público somente
deverá atuar nos estritos limites delineados pela lei. Nota-se que tais
peculiaridades podem comprometer o interesse público diante da exigência de
provas do refalsamento, causando desequilíbrio a relação entre
gestor/sociedade. Trata-se de aspecto comumente relegado no devido
processo legal, pois a produção dessa prova tem se revelado muito difícil
senão impossível ao Ministério Público nos processos envolvendo a
improbidade.
Nesse particular, conquanto persista celeuma acerca da
natureza do elemento subjetivo da improbidade administrativa, existindo
divergência no Superior Tribunal de Justiça que já decidiu pela
imprescindibilidade da prova de má-fé, como pela suficiência de dolo genérico
(REsp. 765.212 – AC/2010) admitido, inclusive, para a caracterização de uma
série de infrações penais, como nos crimes contra a vida, cujas reprimendas
atingem o segundo bem mais valioso da pessoa humana, o jus libertatis, não
se justificaria, outrossim, essa exigência. Aliás, não é inútil dizer que a
tipicidade aberta, mormente do art. 11, da LIA, embora possa propiciar abusos
ou excessos no ajuizamento de ações sem justa causa provenientes das
dificuldades de descrição dessa espécie de ilícito que comporta obviamente
inúmeras formas de conduta (comissiva ou omissiva), prescinde, a nosso ver,
de dolo específico na forma como tem sido defendida pela jurisprudência, por
possivelmente admitir certa graduação diante de uma gama de fatores
essenciais ignorados na apreciação das lides envolvendo corrupção.
As particularidades referentes à organização e estrutura de
Poder, a possível vulnerabilidade do corpo social, somados a legalidade
estrita, pedra basilar da gestão pública, podem indicar a presença de dolo
específico em menor proporção, mas a ponto de permitir o reconhecimento da
improbidade administrativa. O dolo genérico na improbidade, desde que
jungido a esses fatores, certamente comporta traços de má-fé, pois seria
inconcebível supor que um gestor público contando com toda a indumentária
estatal, ao praticar ato que ofenda princípios que regem a administração
pública assim o fizesse sem nenhum lastro de dolus malus. Constata-se que o
elemento subjetivo (dolo) está compaginado ao conhecimento e a vontade do
agente, sendo que esta última varia em intensidade conforme o grau de
amplitude ou extensão da primeira, relação esta que certamente deverá ser
valorada em conjunto com aqueles fatores ou condicionantes do agir estatal,
conferindo-se ao dolo genérico na improbidade caráter distinto, sui generis,
decorrente de seu gradualismo a ser valorado na aferição da existência de
improbidade e dosimetria das respectivas sanções.
Por tudo que foi exposto, conclui-se que a discussão em
torno da natureza do dolo, específico ou genérico, necessário para caracterizar
a improbidade administrativa possivelmente desloca-se para o seu grau de
intensidade, vez que fatores essenciais como a organização e estrutura de
poder, vulnerabilidade do corpo social e a legalidade estrita, possíveis
condicionantes do agir estatal, influenciam de certa forma o conhecimento e,
por conseguinte a vontade do gestor público a ponto de possibilitar a presença
de traços do animus específico no dolo genérico, conferindo-lhe um caráter sui
generis, peculiar, inexistente na ilicitude penal.

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