You are on page 1of 19

A REINVENÇÃO DAS CIDADES

NA VIRADA DE SÉCULO:
AGENTES, ESTRATÉGIAS E ESCALAS DE AÇÃO POLÍTICA1

Fernanda Sánchez
Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO
Tomando como pano de fundo a globalização, o presente artigo procura mostrar que as mudanças
impulsionadas por este fenômeno não se restringem ao mundo econômico, mas afetam a produção do espaço
urbano e atingem diretamente a formulação e legitimação de paradigmas nas políticas urbanas. Diante
dessa constatação, procurou-se enfatizar a mútua dependência entre os procedimentos materiais e simbólicos
tomados aqui como estratégias de agentes envolvidos nos processos de reestruturação urbana. A abordagem
proposta enfatiza a articulação entre os interesses globais e a formação de um mercado mundial de cidades.
PALAVRAS-CHAVE: reestruturação urbana; cidade-mercadoria; patriotismo de cidade; luta simbólica.

I. A CIDADE-MERCADORIA E AS NOVAS centros de decisão e comunicação que, em


ESTRATÉGIAS ESPACIAIS variados fluxos e interações, parecem conformar
um campo político de alcance global, os atores
As chamadas “cidades-modelo” são imagens
que participam desse campo realizam as leituras
de marca construídas pela ação combinada de
das cidades e constroem as imagens, tornadas
governos locais, junto a atores hegemônicos com
dominantes mediante estratégias discursivas,
interesses localizados, agências multilaterais2 e
meios e instrumentos para sua difusão e
redes mundiais de cidades. A partir de alguns
legitimação em variadas escalas.
Entretanto, quando tomadas isoladamente, as
1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada na sessão
imagens das “cidades-modelo” parecem, para o
“Ambiente urbano: representação e poder” durante o senso comum, apresentar dito estatuto de
Simpósio Cidade e poder, realizado entre 23 e 24 de abril de
“modelos” como resultado apenas do desempenho
2001 na Universidade Federal do Paraná, promovido pela
Revista de Sociologia e Política e pelo Grupo de Estudos Cidade, dos governos das cidade que, através de “boas
Poder e Sociedade, sob coordenação do Prof. Dr. Nelson Rosá- práticas”, conseguiram destacar-se na ação
rio de Souza. O texto recolhe argumentos de duas recentes urbanística, ambiental ou nas práticas de gestão
comunicações de congressos, “La reinvención de los lugares: das cidades. Essa aparência constrói a represen-
relaciones entre cultura y economía en los procesos de tação do processo de transformação de determina-
reestructuración urbana” (8º EGAL, Santiago de Chile,
dos projetos de cidade em “modelos”, como
março de 2001) e “Cidades reinventadas para um mercado
mundial: estratégias trans-escalares nas políticas urbanas” processo que se dá de dentro para fora, como se
(9º ENANPUR, Rio de Janeiro, maio de 2001). A versão fosse construído apenas e essencialmente a partir
revisada recupera comentários e sugestões dos pareceristas da ação local dos governos e cidadãos e, posterior-
da Revista de Sociologia e Política, além de questões surgidas no mente, descoberto por agentes externos, difundido
debate por ocasião do supracitado Simpósio. em outros âmbitos e escalas.
2 Agências multilaterais são organismos de caráter internacio-
No caso de Curitiba, a essa leitura imediata
nal e ação global, que operam como centros de pensamento,
difusão e financiamento de políticas públicas: BID, BIRD – contrapõem-se outras, que se têm consubstanciado
Banco Mundial, a ONU – Organização das Nações Unidas e em trabalhos situados no campo da crítica ao
suas agências (p. ex.: Agência HABITAT, CENUEH – Centro modelo, e que dão visibilidade analítica ao conjunto
das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos). Seu de agentes das elites locais e às suas estratégias
poder político está associado à atuação simultânea em diversas políticas e territoriais para explicar as possibilidades
escalas: nacional e supranacional, regional e local.

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 16, p. 31-49, jun. 2001


31
A REINVENÇÃO DAS CIDADES NA VIRADA DE SÉCULO

de realização histórica do projeto de modernização arbitrários que medem, avaliam e classificam cada
urbana (SÁNCHEZ, 1997; SOUZA, 1999; projeto de modernização urbana com pretensões
OLIVEIRA, 2000). Além dos atores locais, um de reinserção global. Às relações de força entre
conjunto de agentes e estratégias territoriais os atores que orientam as escolhas econômicas e
interescalares comparecem para erigir a imagem espaciais são acrescidas as relações de força
da “cidade-modelo”, numa rede que, ao ser propriamente simbólicas, capazes de disputar a
descoberta, evidencia um complexo mercado no construção e a difusão de “discursos fortes”
qual as imagens são construídas e postas em (Goffmann, apud BOURDIEU, 1998, p. 136) junto
circulação em variadas escalas (local, nacional e a imagens fortes, frutos dos arranjos de poder
internacional), com mútuas influências de diversa que compareceram para produzi-los.
ordem (SÁNCHEZ, 1997; SÁNCHEZ & MOURA,
A análise de diversas publicações e documentos
1999).
permite identificar, de fato, um grande
Efetivamente, o processo de produção do comprometimento das agências de cooperação e
espaço social é ao mesmo tempo objetivo e instituições multilaterais com a difusão dos
subjetivo. Como parte da nova racionalidade do chamados “modelos” e seu ideário, dentre os quais
capitalismo, capaz de potencializar a eficiência destacamos, por exemplo, para o chamado
econômica e a reorganização territorial, são “modelo-Barcelona”, a obra Barcelona: un modelo
introduzidas formas modernas de dominação e de transformación urbana publicada pelo
técnicas de manipulação cultural (BOURDIEU, Ayuntamiento de Barcelona e Oficina Regional para
1998; SANTOS, 2000). Deste modo, o espaço América Latina e Caribe do Programa de Gestão
toma forma também através de representações e Urbana das Nações Unidas, Programa das Nações
imagens adequadas, o que explica a importância Unidas para o Desenvolvimento – PNUD e Banco
que vem adquirindo o city marketing como Mundial. Já para o caso do “modelo-Curitiba”,
instrumento das políticas urbanas. neste texto também focalizado, é notável a
seqüência de premiações outorgadas à Prefeitura
Assim, a retórica planetária dos atores
Municipal pelas mesmas agências, além de
hegemônicos associados ao que seria um “governo
destaques em seus relatórios anuais e numerosos
do mundial”3 (PARAIRE, 1995), contribui para a
artigos de difusão internacional elaborados por
realização dos imperativos do capitalismo atual e
consultores do Banco Mundial e da ONU
da reestruturação econômica global. Trata-se de
(SÁNCHEZ, 2001).
uma retórica persuasiva que, em sua vertente
urbana, configura uma agenda para as cidades, A identificação desses elos políticos entre as
tornada dominante, com pautas definidas para agências multilaterais de cooperação e alguns dos
ações e programas, em uma afirmação política da principais ideólogos encarregados da difusão do
hegemonia do pensamento e ação sobre as cidades. “novo modelo de gestão urbana” (constitutivamen-
Como instrumento de consolidação dessa agenda te vinculado às representações e práticas da
urbana, são desenvolvidas políticas de promoção Cidade-mercadoria), permite-nos o entendimento
e legitimação de certos projetos de cidade. Esses das conexões entre o chamado “pensamento
projetos são difundidos como emblemas da época global” e a ideologia neoliberal: “un gouvernement
presente. Sua imagem publicitária são as chamadas mondial en formation qui a trouvé dans la ‘pensée
“cidades-modelo” e seus pontos de irradiação globale’ le masque scientifique nécessaire à son
coincidem com as instâncias políticas de produção idéologie néolibérale” (PARAIRE, 1995, p. 180)4 .
de discursos: governos locais em associação com De fato, os consultores alçados à condição de ex-
as mídias; instituições supranacionais, como a perts internacionais, e sua atuação junto a organis-
Comunidade Européia e agências multilaterais. mos supranacionais, parecem desempenhar um
importante papel na difusão e legitimação político-
É por intermédio dessas instâncias e atores
ideológica da idéia de cidade transformada em
dominantes que os discursos dão-se como
mercadoria. A importância e alcance dessa ação
“inteligência global” (SANTOS, 2000, p. 100),
exercida com base em um conjunto de parâmetros

4 “Um governo mundial em formação que tem encontrado


3 Para o autor, entram nessa categoria as agências multilaterais no ‘pensamento global’ a máscara científica necessária à sua
como o FMI, a OMC, o Banco Mundial e a ONU. ideologia neoliberal”.

32
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 31-49 JUN. 2001

combinada parece estar relacionada com a para inseri-la no mercado. Como mercadoria espe-
capacidade dos atores na articulação de diferentes cial, envolve estratégias especiais de promoção:
escalas de ação política. são produzidas representações que obedecem a
uma determinada visão de mundo, são construídas
Através da análise de alguns processos de
imagens-síntese sobre a cidade e são criados dis-
reestruturação urbana da década de 90, em sua
cursos referentes à cidade, encontrando na mídia
relação com os respectivos governos de cidade e
e nas políticas de city marketing importantes
suas políticas urbanas 5 , é possível identificar
instrumentos de difusão e afirmação. As represen-
interessantes convergências. Essas convergências
tações do espaço e, baseadas nelas, as imagens-
dizem respeito às estratégias utilizadas pelo poder
síntese e os discursos sobre as cidades, fazem
político para “vender” as cidades. De fato, a partir
parte, pela mediação do político, dos processos
de um determinado momento histórico, aqui
de intervenção espacial para renovação urbana.
identificado com os anos 90, as cidades passaram
a ser “vendidas” de modo semelhante, o que sugere As imagens-síntese e os discursos sobre as
que o espaço das cidades se realiza agora enquanto cidades referem-se a estratégias baseadas na
mercadoria. racionalidade dos processos de reprodução da
economia global. Desse modo, estão referidas a
A transformação das cidades em mercadorias
estratégias globais. Imagens e discursos baseiam-
vem indicar que o processo de mercantilização do
se em uma visão de mundo que justifica e permite
espaço atinge outro patamar, produto do
a realização das necessidades impostas pelo estágio
desenvolvimento do mundo da mercadoria, da
atual da produção, aquele que se refere à
realização do capitalismo e do processo de
construção do mercado mundial e do espaço
globalização em sua fase atual. A existência de
mundial. Sob a égide da globalização, transformada
um mercado de cidades, como um fenômeno
em paradigma de entendimento do mundo
recente, mostra a importância cada vez maior do
moderno, constrói-se um discurso que a justifica
espaço no capitalismo – a orientação estratégica
e que está na base de sua sustentação.
para a conquista do espaço, que agora alcança
cidades como um todo, postas em circulação num A fase atual do capitalismo só se realiza
mercado mundial – evidencia a produção global produzindo um novo espaço, pressionado pelas
do espaço social. novas exigências da acumulação, mediante suas
lógicas e estratégias à escala mundial. Na produção
A nova inspiração encontrada pelo capitalismo
desse espaço operam agentes e interesses combi-
na conquista do espaço compreende a compra e
nados em diferentes campos políticos e arranjos
venda do espaço na escala mundial. Essa orientação
territoriais para cada caso. Sujeitos, instituições,
estratégia, como afirma Lefebvre (1998), tem
práticas e produtos circulam, de maneira relaciona-
muito mais importância que a simples venda de
da, no âmbito de diferentes mercados, materiais e
parcelas do espaço, pois procura realizar uma
símbolos. Efetivamente, a análise do mercado de
reorganização abrangente da produção subordinada
cidades permite identificar a produção, circulação
às cidades e aos centros de decisão. Aí parece
e troca de bens materiais junto à produção, circula-
estar o que tem de novo o fenômeno do mercado
ção e troca de imagens, linguagens publicitárias e
de cidades: a produção global do espaço.
discursos. Assim, o mercado mundial de cidades
Essa estratégia global encontra uma nova é movido por e, ao mesmo tempo, movimenta
dinâmica para a reprodução do capitalismo: a alguns outros mercados:
construção da cidade-mercadoria que, sob a égide
a) mercado para empresas com interesses
do poder político dos governos locais, perfila-se
localizados: empresas e corporações avaliam, em
através dos processos de reestruturação urbana
detalhe, pequenas diferenças entre lugares para
(como exigência da economia competitiva) e
tomar decisões locacionais. O elenco de fatores
através da construção de imagem para vendê-la,
locacionais é cuidadosamente mensurado por
empresas vinculadas ao capital financeiro, indus-
trial, comercial e de serviços como também é ava-
5 Particularmente nas cidades de Curitiba (Brasil) e Barcelo- liado na localização de novas sedes de organismos
na (Espanha), mas também em cidades francesas como Mont- internacionais. As diferenças são submetidas à
pellier, Lille e Nantes, inglesas como Oxford e Manchester, ordem do capital que tira proveito delas. Nesse
e norte-americanas como Baltimore, Boston e Chicago. sentido é que vários autores (HARVEY, 1994;

33
A REINVENÇÃO DAS CIDADES NA VIRADA DE SÉCULO

SANTOS, 1996) procuram mostrar que o espaço se trava a luta política pela imposição, mediada
é, na atual fase de desenvolvimento do capitalismo, sempre por conflitos e tentativas de construção
mais importantes do que nunca; de hegemonia, de uma leitura frente às muitas
outras que estão em permanente disputa neste
b) mercado imobiliário: a crescente mobilidade
campo. Pensamos que essa luta simbólica possa
do capital imobiliário permite fluidez no
se tratar de um dos processos políticos relevantes
agenciamento de grandes operações localizadas,
na compreensão daqueles mobilizados para a
com investimentos de capital internacional6 ;
reconstrução de lugares, em relação dialética com
c) mercado de consumo: a consagração e os processos materiais de modernização urbana.
circulação de imagens de “cidades-modelo” tende
A relevância conferida ao tema está centrada
a agilizar os fluxos de consumo interno (de espaços
no resgate dessa relação dialética. As lutas
“renovados” e de mercadorias) e externo (visitan-
simbólicas não são mera expressão das relações
tes, consumidores de serviços especializados);
de poder; elas atuam sobre o campo das práticas,
d) mercado do turismo: tem fortes imbricações elas reelaboram as práticas. Por seu lado, as
com o mercado de cidades e, apoiado nesta relação, práticas materiais ligadas à modernização dos
constrói suas segmentações e grupos-alvo no espaços da cidade não se impõem facilmente. Pelo
mercado, como o turismo urbano (com o consumo contrário, a legitimação dos projetos associados à
dos espaços modernizados), o turismo de negócios, modernização depende de estratégias discursivas
o turismo cultural, o turismo de compras, de e retóricas que parecem centrais. Desse modo,
jovens ou de terceira idade; desconstruir leituras e discursos do espaço é
e) mercado das chamadas “boas práticas”: as interpelar seu léxico, seu padrão argumentativo.
agências multilaterais, sob manifestos objetivos Se ler a cidade significa ter uma representação
técnicos, têm implícitos interesses político- de cidade, construir uma imagem de cidade signi-
ideológicos na promoção e difusão internacional fica também compreender e interpretar e, sobre-
de imagens de “cidades-modelo”. Mediante a tudo, sintetizar, dada a complexidade do fenômeno
legitimação de “administrações urbanas compe- observado. Porém, “leituras”, no plural, implicam
tentes”, “gestões competitivas” ou “planejamento que a cidade pode ser representada, ou melhor,
urbano estratégico”, as agências perseguem a re- imaginada, a partir de diversos olhares. Não há
formatação do campo da administração pública e uma única leitura possível. O que se vê depende
do Estado; de onde se olha e para onde se olha (RIBEIRO,
f) mercado de consultoria em planejamento e 1999), e a análise deve identificar de quem são
políticas públicas: atores locais, como prefeitos, esses olhares ou quem realiza essas leituras.
lideranças ou experts internacionais em planeja- As imagens-síntese oficiais, aquelas que se
mento, constroem seus projetos políticos através impõem como dominantes em cada cidade onde
da projeção e reconhecimento de sua atuação que, opera um projeto de modernização urbana definido
referida à escala do “local” necessita, entretanto, e explicitado7 , não deixam margem para dúvidas
de legitimação em simultâneas escalas. As estraté- ou interpretações diversas sobre a informação que
gias territoriais para exportar know how, por parte veiculam; não oferecem alternativas à sua
de governos locais e de consultores identificados decodificação. Organizam, a seu modo, a cidade,
com certas “experiências de sucesso” constroem- tornando-a simbolicamente eficiente, uma espécie
se no campo simbólico, onde o que está em jogo de publicidade que concretiza o modo de reconhe-
é o poder propriamente político. cê-la e avaliá-la. Leituras oficiais da cidade, que
II. AS LEITURAS DA CIDADE NUM CAMPO configuram imagens, costumam ser mostradas
DE LUTA SIMBÓLICA com aparência de objetividade, apresentando fatos
sociais como inquestionáveis. Entretanto, são uma
O tema das leituras da cidade é de interesse das linguagens do poder, convenção social e
em nossa abordagem do campo simbólico, onde

6 Exemplares, neste caso, são as grandes operações imobiliá- 7 Referimo-nos aos casos paradigmáticos, como o de
rias de Barcelona no período olímpico (1986-1992) e pós- Barcelona a partir do ano 1986, quando a cidade foi designada
olímpico (1992 até o presente), em sua maioria, frutos de para sediar os Jogos Olímpicos de 1992; ou o caso de Curitiba,
capitais externos, dos EUA e da Comunidade Européia . Brasil, com a modernização urbana iniciada na década de 70.

34
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 31-49 JUN. 2001

política questionável (DUNCAN & LEY, 1993; Há um complexo intercâmbio entre a


MASSEY, 1993). Seu aparente realismo é, em transformação material e o simbolismo cultural,
essência, ideológico, pois passa como natural aqui- entre a reestruturação de lugares e a construção
lo que é um fato cultural. de identidades. Desse modo, a cultura é o meio
que relaciona a textura da paisagem ao texto social.
Como referências para a ação, as representa-
Como afirma Novais (1999, p. 2), o caráter dialé-
ções constroem-se a partir de uma dada posição
tico do processo de produção do espaço está dado
social e orientam-se a determinados objetivos.
pela imbricação do real com suas representações.
Aparentes noções “neutras” escondem abordagens
As representações que os sujeitos têm do real
seletivas do real, assim como a atribuição ou
influem na construção da realidade ao mesmo tem-
destituição de sentido aos lugares (NOVAIS, 1999).
po que as práticas materiais são a base para novas
Efetivamente, não existe um mundo neutro, visível,
representações do real.
unívoco. Cada representação é uma verdade
parcial, construída a partir de um “conjunto coe- As representações são também carregadas de
rente de valores e orientações”. Essa espécie de intencionalidade: visam à produção de efeitos na
matriz que condiciona as representações está realidade social. Assim, a construção de imagens
expressa na noção de habitus desenvolvida por opera necessariamente com sínteses, seletivas e
Bourdieu (1999, p. 191). Mais que uma noção, parciais, que dão relevância a alguns aspectos e
trata-se de uma orientação metodológica que omitem outros, respondendo ao universo especial
colabora no sentido de transcender a mitologia da de interesses dos sujeitos que a constroem e aos
mimese, pois permite a percepção de que o que é objetivos que se pretendem.
visto através das imagens não é uma realidade
Sujeitos, instituições, práticas e produtos circu-
dada, objetiva, mas um conjunto de informações
lam no âmbito de um “mercado material” e de um
parciais, construídas a partir de uma determinada
“mercado simbólico”, de modo relacionado
perspectiva, através de representações.
(BOURDIEU, 1999; LEFEBVRE, 1998, p. 86).
Neste ponto, parece central recuperar a refle- Efetivamente, a produção, circulação e troca de
xão lefebvriana acerca da produção do espaço: é bens materiais é diferente mas não separada da
necessário entender não apenas como os lugares produção, circulação e troca de signos, linguagens
adquirem qualidades materiais, mas também como e discursos (LEFEVRE, 1998, p. 100). Ao produ-
adquirem valor simbólico através de atividades de zir um objeto material na cidade, uma praça, um
representação. As representações influenciam ava- monumento, um edifício, produz-se também a ma-
liações e rankings de lugares e determinam parte neira como será consumido, através das práticas
considerável das escolhas locacionais. Veja-se, por ideológicas que produzem o objeto sob a forma
exemplo, a transcendência que foi dada pelos de discurso e imagem. Assim, a reelaboração
veículos oficiais e pela mídia local em Curitiba à simbólica que um discurso efetiva é parte integral
pesquisa divulgada pela revista Exame, sobre as da realidade social e, por essa razão, tal realidade
“Dez melhores cidades para se fazer negócios” é também constituída ou determinada pela própria
(2000), na qual Curitiba aparece em primeiro lugar, atividade de simbolização.
dando lugar à produção e veiculação de mais uma
O poder das representações está em sua pre-
de suas imagens-síntese, “Curitiba, a melhor
sença material, literalmente solidificada na arquite-
cidade para os negócios” (SÁNCHEZ, 2001).
tura e no urbanismo. As geografias da chamada
Nas palavras de Harvey, “as possibilidades renovação urbana são geradas por processos mate-
político-econômicas da reconstrução de lugares riais mas também simbólicos, cujos idealizadores,
estão coloridas pela maneira evaluativa da repre- planejadores e profissionais do marketing, codifi-
sentação dos lugares” (HARVEY, 1993, p. 22). cam as formas construídas em códigos de consu-
Materialidade, representação e imaginação não são mo para receptores que irão reinterpretá-los.
mundos separados. Nessa recusa à segmentação
Se há muitas possíveis leituras da cidade, isso
do conhecimento do espaço reside a força da cons-
implica que pode haver e que, de fato, exista dispu-
trução de Lefebvre (1998). Como opção metodoló-
ta. A representação da cidade é um objeto cobiçado
gica, evidencia as imbricações desses três domí-
e disputado. Afinal, como nos diz RIBEIRO
nios na produção do espaço, em processos de
(1999), “representar a totalidade, o todo social,
mútua transformação.
implica poder: implica construção de hegemonia,

35
A REINVENÇÃO DAS CIDADES NA VIRADA DE SÉCULO

capacidade de convencimento, criação de Botânico ou o Memorial da Cidade (SÁNCHEZ,


consenso”. Nesse sentido é que atribuímos alta 1997).
relevância à reflexão sobre comunicação e
III. RENOVAÇÃO URBANA, CULTURA E
informação, pois as imagens produzidas, tornadas
ECONOMIA
dominantes, são territórios de investimentos
simbólicos que necessitam ser permanentemente As considerações da sessão anterior permitem
disputados na conquista e reprodução do consenso evidenciar que as políticas culturais de lugares vêm
e na atração de novos investimentos. sendo cada vez mais alinhadas às políticas
econômicas. É nesse sentido que pensamos, com
Essa luta pela hegemonia do chamado “discur-
alguns autores, que o poder das representações é
so forte” (BOURDIEU, 1998, p. 136), enquanto
ferozmente disputado e tão fundamental aos
interpretação da realidade e legitimação dos projetos
projetos de reestruturação urbana ou aos chamados
de futuro, está associada à elaboração de imagens,
processos de “re-invenção de lugares” quanto
enquanto sínteses discursivas: um campo de
tijolos e concreto (DUNCAN & LEY, 1993, p. 27;
disputas ampliadas visando, ao mesmo tempo, à
HARVEY, 1993, p. 23, WARD, 1998, p. 233).
conquista e à reprodução do poder político e
econômico. Ousamos dizer que, nos casos das cidades de
Curitiba e Barcelona aqui referidos, a mobilização
A mídia, em sua relação com os governos e
política para a reestruturação das cidades deve-se
coalizões dominantes, é um ator importante no
tanto a atividades no campo simbólico quanto a
cenário cultural e político atual nas cidades. Tem
atividades materiais. O sentido de pertencimento
um papel importante nos processos que
ao lugar, estimulado pelos “projetos de cidade”
acompanham a renovação urbana, que interage e
em curso, tem significados políticos – evidência
interfere no curso dos acontecimentos através de
de que o poder político pode ser mobilizado e
imagens publicitárias, mobilizações e campanhas
exercido através de atividades de modernização
sociais. Exerce um verdadeiro fascínio sobre a
urbana tanto nas mentes quanto no chão.
sociedade civil e política, e tem força de pressão
na elaboração de imagens coletivas que possam Verificamos, nesses casos, que as lideranças
ser absorvidas nas representações de indivíduos e políticas protagonistas dos projetos modernizado-
grupos. Tem também poder para construir ou res investem, particularmente, em construções
destruir a identidade de atores individuais ou discursivas de lealdades afetivas. Em virtude desse
coletivos. investimento no lugar e da associação, trabalhada
nos planos simbólico e afetivo, entre a liderança
Em seu papel de mediadora entre os cidadãos
política, os cidadãos e o lugar, parece haver um
e a cidade, a mídia é estratégica para os governos
significativo ganho de poder para tais lideranças.
locais, pois realiza a espetacularização da cidade e
De fato, pensamos, na direção de Massey (1999,
molda as representações acerca de sua transfor-
p. 292), que o poder social é necessariamente
mação. Ela produz signos de bem-estar e
espacializado; as várias formas de poder social
satisfação no consumo dos espaços de lazer, cria
são constituídas espacialmente. Nesse sentido, é
comportamentos e estilos de vida e promove a
importante lembrar, para o caso de Curitiba, as
valorização de lugares, bem como os usos
representações recorrentes em campanhas
considerados “adequados”. Em outras palavras,
eleitorais, desde os anos 80, que procuravam
celebra os novos lugares transformando-os em
contrapor os candidatos como “o Prefeito da
espetáculo. O caso de Curitiba é paradigmático
Cidade” (Jaime Lerner) ao “Prefeito de um partido”
na simbiose entre governo e mídia, com a
(Roberto Requião), procurando construir a
promoção orquestrada de fragmentos renovados
superioridade do primeiro frente ao segundo.
do espaço da cidade junto à difusão dos usos
sociais considerados adequados, de acordo com Com significativa recorrência nos processos
o que se poderia chamar de ethos do “curitibano locais, o primeiro passo para a auto-definição é a
típico”: na leitura oficial da cidade, aquele cidadão definição do “outro” de modo excludente e
que freqüenta parques, bosques ou os edifícios estereotipado. A desqualificação do “outro”, sejam
culturais e de lazer mais emblemáticos da cidades ou regiões, parece ser uma ferramenta
modernização urbana da última década, como a para a qualificação do “nós”, para a construção
Rua 24 Horas, as Ruas da Cidadania, o Jardim do sentido de pertencimento. O processo de

36
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 31-49 JUN. 2001

representar a diferença, o outro, é uma prática Sínteses e imagens fazem parte da retórica
política e a desqualificação de outros lugares gera oficial que acompanha os processos de
poder para os sujeitos do próprio lugar. reestruturação. Subjacente a essas sínteses
encontra-se a proposta de uma ordem urbana que
Porém, essa oposição binária entre nós e os
pretende fazer impensáveis e impossíveis outras
outros, se por um lado reforça e define a
formas de viver na metrópole, conflitivas com os
identidade do lugar, por outro lado,
parâmetros da cidade-mercadoria e da cidade-
simultaneamente, ordena a diferença complexa
empresa que se busca consolidar. Tudo aquilo que
através de uma simplificação mais facilmente
não adere a essa dinâmica é interpretado como
apropriada. As múltiplas identidades e diferentes
ingovernabilidade, como perturbação da ordem
formas de vida social, que coexistem na cidade,
urbana que deve ser desalojada do panorama da
são simplificadas, depuradas numa única identidade
modernização.
que se pretende sintética.
Ações para potencializar o consenso e esvaziar
A questão das leituras da cidade parece ter, de
o dissenso são desenvolvidas para assegurar a
fato, implicações no alargamento do campo da
viabilidade do projeto modernizador. A
política em sua relação com o espaço. Pensamos
reestruturação urbana só é possível quando
com Massey (idem, p. 281) que uma das
acompanhada de uma reestabilização do governo
características cruciais do “espacial” é a
do urbano: reestruturação e governabilidade do
possibilidade de existência de multiplicidade de
social são as duas caras da moeda da ordem
leituras e narrativas. Espaço, no argumento desse
urbana. As tecnologias do controle, aliadas aos
autor, é a esfera do encontro, ou não, de múltiplas
circuitos da comunicação social, emanam um
trajetórias, a esfera onde elas coexistem, afetam
fluxo ininterrupto e constantemente atualizado, de
umas às outras, entram em conflito. É a esfera
informações que ordenam a vida social.
tanto de sua independência, coexistência, quanto
de sua inter-relação. Assim, a diversidade de De fato, a potenciação dos processos de
leituras da cidade não corresponde somente à informação tem sido transformada em peça-chave
diversidade de representações mas também à dos governos das cidades e a informação midiática,
existência mesma de diferentes realidades sociais através de múltiplas modalidades, tem sido
no espaço. escolhida como forma privilegiada da relação entre
a administração pública e os cidadãos. Esses
Segundo essa interpretação, as imagens-
processos técnicos de informação configuram um
síntese da cidade, aquelas às quais se atribui o
“circuito propriamente político entre dominantes
poder de falar por ela, constituem-se na negação
e dominados”, através dos diversos “aparelhos de
da possibilidade de existência de outras imagens e
produção simbólica” (BOURDIEU, 1999).
de outras leituras. Ao operar com imagens-síntese
retira-se da cidade o que lhe é politicamente Entretanto, a cidade nunca está totalmente
essencial: a multiplicidade enquanto coexistência tomada pelo poder do Estado midiático, pois há
e possibilidade de conflito, de exercício da política. sempre espaço para possíveis ações. Processos
Se espaço e multiplicidade constituem-se constitutivos de sujeitos coletivos expressam
mutuamente, uma de suas expressões sociais pode maneiras de viver e reapropriações da cidade
ser a diversidade de leituras sobre a cidade, com afastadas das previsões da ordem urbana promovi-
potenciais desdobramentos em diversidade de da pela imagem oficial. Os sujeitos sociais, me-
projetos e abertura do futuro. diante esses diferentes modos de participação,
lêem a cidade de modo diferente, fazem usos
A leitura da cidade e sua disputa expressam a
divergentes do território. Reformulam o modo
política, são fatos essencialmente políticos. As
através do qual se imagina e se representa o espaço
identidades são relacionalmente construídas como
e a espacialidade, reformulação que está associada,
parte do processo político mediante relações de
efetivamente, a uma ação política.
poder, mapas do poder, geometrias do poder. Esse
reconhecimento pode levar à renegociação dessas Os lugares são repletos de diferenças internas
identidades, pois reformular o modo através do e conflitos, que podem ser expressos em leituras
qual se representa o espaço é também uma ação dissonantes em disputa de espaço político. Se nas
política. cidades há múltiplas identidades que podem ser
“recurso de riqueza ou fonte de conflito”

37
A REINVENÇÃO DAS CIDADES NA VIRADA DE SÉCULO

(MASSEY, 1993, p. 65) é necessário, portanto, mobilizadas. Diante dessa mobilização, há também
questionar a idéia da “identidade do lugar” como maneiras de defender formas particulares de pensar
se fosse única, ou da “imagem-síntese do lugar”, e entender o espaço, como recusa às armadilhas
idéias-força do discurso urbano dominante que se de formulações hegemônicas prévias, abrindo
tornam armadilhas e fetiches. Elas inevitavelmente terreno para novas questões que politicamente
carregam uma leitura feiticizada e reducionista das precisam ser apresentadas. Segundo Massey, essa
relações sociais, pois, nas operações de síntese, recusa às formas dominantes de representar e
prevalecem aqueles traços identitários instru- pensar o espaço estaria contribuindo também para
mentais às relações dominantes de poder. construções mais abertas de futuro (MASSEY,
1999, p. 285).
A hegemonia é construída ao evocar uma
identidade territorial homogênea, que precisa de IV. UMA NOVA LINGUAGEM SOBRE AS
proteção contra o diferente-externo. Essa CIDADES: ATORES E GEOGRAFIA DA
identidade unificadora em torno ao lugar é evocada DIFUSÃO
pela intelligentsia urbana vinculada ao novo
A difusão, na escala mundial, de representações
projeto modernizador. Está presente em obras
e leituras sobre as cidades, sobre a crise e sobre
consideradas referenciais para a difusão do modelo
os projetos de reestruturação, encontra-se associa-
de reestruturação urbana contemporâneo como
da à difusão de uma nova linguagem planetária,
analisado, por exemplo, em Borja e Castells (1997)
“produto de um imperialismo propriamente
ou Borja (1995). Esses autores assumem uma
simbólico” (BOURDIEU & WACQUANT, 2000).
perspectiva teórica, com evidentes desdobra-
O chamado “imperialismo simbólico” é, para esses
mentos políticos e culturais, que valoriza a constru-
autores, uma violência cultural que se apóia no
ção do sentido de lugar associada à construção de
alargamento e agilização das relações de comuni-
uma identidade unificadora. A questão da
cação. Uma das expressões desse fenômeno é que
identidade consensuada é apresentada como
ele universaliza os particularismos, as representa-
condição de sobrevivência e êxito da cidade face
ções particulares sobre as relações entre as cidades
à globalização. Segundo os mesmos autores, se
e o mundo, e as faz serem reconhecidas como
não for vigorosamente perseguida essa identidade
universais.
“de todos” junto a uma atitude competitiva
agressiva, será difícil desviar-se de um cenário de Pensamos que o city marketing e a imposição
futuro apocalíptico. de imagens urbanas tornadas dominantes contribui
para o exercício da violência, especialmente em
Nossa argumentação é que a ordem necessária
sua forma simbólica, pelas vias da comunicação e
para impor os projetos de modernização constrói-
do conhecimento, violência nem sempre percebida
se em larga medida mediante o controle sobre a
por suas próprias vítimas.
produção simbólica, sobre a produção das
representações espaciais. Os discursos reguladores Com efeito, a discussão acerca dos processos
contidos nas novas políticas e interpretações sobre de reestruturação urbana e da “necessidade de
a cidade e o mundo permeiam os espaços mentais inserção competitiva das cidades” vem acompa-
e são, portanto, parte das representações do poder, nhada por uma significativa mudança na linguagem
da ideologia e do controle. relativa ao planejamento e à gestão. Nessa sentido,
como nota Oliveira (1999, p. 141), “as metáforas
Nesse sentido, representar o espaço é, portanto,
e analogias próprias do novo discurso se destacam
um ato de poder simbólico. Como observa Novais
pela grande potência que têm mostrado no sentido
(1999, p. 2), o espaço está em disputa, inclusive
de imprimir novas direções ao pensamento e às
no nível das representações. Trata-se de uma luta
experiências na gestão”. Cidade-empresa, cidade-
pelas representações dominantes, uma disputa para
mercadoria são algumas das analogias que emer-
impor visões de mundo manipulando imagens do
gem e se afirmam nesse novo repertório, com per-
real.
ceptíveis influências nas representações sociais e
Entendimentos particulares de certos conceitos nas relações de poder na cidade. Metáforas consti-
e noções tornam-se apropriados em momentos tutivas do novo discurso sobre o urbano na virada
específicos do espaço-tempo e a partir de perspec- de século tornam o city marketing um imperativo,
tivas políticas particulares. Nesses momentos, as um instrumento de difusão de determinadas
formas de representar o espaço são ativamente representações que estariam sendo afirmadas.

38
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 31-49 JUN. 2001

Outro aspecto que evidencia a manipulação Os novos significados transformam-se em vetores


simbólica operada pela nova linguagem é a pois favorecem certas práticas sociais e políticas
subordinação do debate ao chamado desempenho em detrimento de outras. A manipulação simbólica
eficaz da administração pública, em termos de operada pela linguagem celebra determinadas
efetiva integração competitiva. Essa subordinação palavras-chave que reafirmam, pela repetição
“responde a uma versão tecnocrática da sociedade exaustiva, as receitas contemporâneas para as
que esvazia a dimensão política do Estado, cidades.
subsumindo as demandas sociais na esfera técnica”
Nessa luta simbólica, não parece estar em jogo
(idem, p. 150).
a compreensão da complexidade da cidade, visto
A nova retórica associada ao projeto dominante que, segundo nos lembra Lefebvre (1998, p. 98),
de modernização urbana, que tece as figuras de a terminologia figurativa utilizada é muito mais me-
linguagem em discursos e imagens da reestrutu- tafórica do que propriamente conceitual. Trabalhar
ração, entretece também interpretações e leituras com as diferentes leituras do espaço da cidade
do mundo que lhe dão sustentação. A reestrutura- exige, metodologicamente, a distinção clara entre
ção das cidades é apresentada como um imperativo pensamento e discurso sobre o espaço (palavras,
da reestruturação produtiva no “mundo-globali- imagens, símbolos) e pensamento adequado ao
zado”. Para tratar as questões das cidades através entendimento do espaço (fundado em conceitos)
do discurso supostamente mais renovador, aquele (idem, p. 104). A metaforização tem instrumentali-
capaz de ter maior alcance, há também uma dispu- dade, eficácia para responder aos quesitos de uma
ta pelo sentido do contexto, pelas representações nova ordem, mas não propriamente potencialidade
do mundo que se pretendem tornar categorias de para o entendimento do espaço.
análise do mundo. Desse modo, as metáforas e
As noções que fundamentam os atuais projetos
analogias que ordenam o discurso da cidade têm
de reestruturação urbana servem de referencial
imbricações com as metáforas e analogias que or-
para compreender o mundo globalizado e elaborar
denam determinada visão de mundo: “é preciso
ações para nele vencer. Estão sujeitas a manipula-
afirmar a síntese ‘mundo-globalizado’ para afir-
ções e a tentativas de imposição de visões de mun-
mar a metáfora ‘cidade-empresa’” (idem, p. 154).
do. Podem ser interpretadas como “formas progra-
Metáforas e figuras de linguagem, com o tem- madas – ideológicas – de conhecer e agir no mun-
po, podem ser naturalizadas e incorporadas como do” (NOVAIS, 1999, p. 14).
moeda corrente na interpretação das questões
As idéias mais recorrentes sobre a globalização
relativas às cidades. Entretanto, a pertinência da
têm em comum a ênfase no capital e na empresa
metáfora é construída socialmente, inserida em
como motores do processo ou seja, o mundo
visões de mundo que estão em permanente disputa.
global é aquele “dominado pela rede de conexões
O sentido figurativo pode transformar-se em – de idéias, dinheiro, comunicação – que são
literal no curso da disputa para tornar dominante centradas no mundo desenvolvido”. Entretanto,
determinada visão de mundo. Como observa Oli- cada globalização, segundo a perspectiva a partir
veira, “literal” e “figurado” não são esferas distin- da qual seja lida, constrói um mundo diferente a
tas, mas os limites de um continuum metafórico partir de certas idéias-força (idem, p. 10).
em que “a linguagem começa como metáfora e
A propósito da possibilidade de encontrar
apenas depois de longo uso endurece ou congela
diversos mundos, e diversas visões de mundo,
como literalidade”. Assim, o emprego recorrente
que escapem à crença de que o mundo apresentado
da metáfora “cidade-empresa” poderia conduzir,
é o verdadeiro, parece pertinente a orientação de
com o tempo, à transformação da metáfora na
Santos: “[...] devemos considerar a existência de
representação social dominante de cidade, não mais
pelo menos três mundos num só. O primeiro seria
“como se fosse” uma empresa mas já como “um
o mundo tal como nos fazem vê-lo: a globalização
tipo singular” de empresa (ibidem).
como fábula; o segundo seria o mundo tal como
A construção de uma ponte cognitiva entre ele é: a globalização como perversidade; e o
cidade e empresa ou entre cidade e mercadoria terceiro, o mundo como ele pode ser: uma outra
estabelece relações entre atributos de uma e de globalização” (SANTOS, 2000, p. 18).
outra que impulsionam uma nova maneira de
A retórica ligada à globalização responde a uma
representar mas também de administrar a cidade.

39
A REINVENÇÃO DAS CIDADES NA VIRADA DE SÉCULO

ideologia que, decididamente, comparece para distribuidoras desta “língua franca passe-partout”
construí-la, com um notável papel na produção, (BOURDIEU & WACQUANT, 2000).
disseminação, reprodução e manutenção da
Diversos níveis institucionais e diferentes cor-
globalização atual (BOURDIEU, 1998; SANTOS,
pos de agentes altamente especializados, públicos
2000). Entretanto, a racionalidade dominante, que
e privados, respondem a funções determinadas no
apresenta a globalização como fato inexorável, tem
processo de produção simbólica. As atividades no
seus limites, que devem ser avaliados e explicita-
campo simbólico devem ser capazes de assegurar,
dos, para resgatar a relevância e potencialidades
mediante técnicas e métodos articulados, a difusão
da política bem como as condições para a mudança.
de discursos e imagens que façam valer os interes-
Se é notável, no discurso dominante sobre o ses dominantes e que construam a adesão social
urbano, a emergência de lugares-comuns planetari- em torno de determinados projetos. O que está
zados, mundializados, eles parecem referir-se a em jogo no campo simbólico é o poder propria-
condições históricas e políticas particulares, que mente político. Linguagens especiais encobrem as
propiciaram a difusão de uma determinada leitura, condições objetivas e as bases materiais em que
tornada hegemônica, tacitamente constituída em tal poder se funda.
modelo e medida de todas as coisas. Impondo ao
Grandes empresas de publicidade e marketing
mundo todo determinadas categorias de percepção
e os principais veículos da mídia dominam os
e representação, os atores dominantes na produção
conteúdos e sua divulgação, daí porquê os
de modelos e políticas urbanas refazem o mundo
principais agentes a elas relacionados concentram
à sua imagem, com uma colonização mental que
imenso poder, que não é simplesmente o poder do
se opera através da difusão dessas categorias e
dinheiro, mas o poder que a riqueza exerce sobre
representações, produzidas e reproduzidas num
os espíritos, sobre as mentes. É algo que amplia a
processo de luta simbólica.
definição dos campos de poder, diferentemente
Em determinadas circunstâncias, as do poder político ou econômico.
representações sobre as cidades podem ser
A luta simbólica é travada também pelo reco-
poderosas em suas conseqüências locais,
nhecimento de autoridade para falar sobre a cidade.
regionais, nacionais e internacionais. Podem ter
No discurso da “cidade-empresa” e da “gestão
desdobramentos geopolíticos e econômicos que
empresarial da cidade”, há uma construção
repercutem em variadas e simultâneas escalas.
mitificada da figura do líder carismático, do admi-
Devido a essa dimensão, não costumam ser
nistrador erudito, da liderança política enaltecida
pautadas pelos parâmetros e objetivos definidos
sobretudo pela competência técnica capaz de situá-
apenas pelas autoridades dos governos municipais.
lo acima da política, requisitos tidos como
Para a sua elaboração acurada comparecem
indispensáveis do “Prefeito empreendedor” ou dos
necessariamente saberes de experts provenientes
agentes portadores da missão de desencadear
de campos cada vez mais especializados. Publi-
planos e projetos estratégicos associados à
citários, consultores em marketing, produtores
reestruturação urbana.
culturais, conselheiros em comunicação e pesqui-
sadores de mercado são os agentes exemplares A apresentação do perfil técnico ou erudito de
que emergem como figuras centrais associadas à determinada liderança qualifica-a como portadora
gestão empresarial das cidades. Têm como missão de aparente imparcialidade e conhecimento
dar forma mercadológica aos projetos políticos científico sobre as questões urbanas. Trata-se da
das coalizões com interesses localizados. manipulação política do denominado “discurso
competente”, discurso com aparência científica
As representações e discursos devem, tam-
que permite a dissimulação de práticas de
bém, o essencial de sua força de convicção ao
subordinação. São exemplares as representações,
prestígio dos sujeitos e instituições a partir dos
já mitológicas, que cercam as figuras dos ex-
quais emanam e circulam como fluxos. São
Prefeitos, ambos por longos períodos, Pasqual
apresentados em toda parte, simultaneamente, a
Maragall (Barcelona) e Jaime Lerner (Curitiba).
partir das instâncias pretensamente neutras do
pensamento neutro que são os grandes organismos A leitura técnico-material das cidades não está,
internacionais como o Banco Mundial, a Comissão portanto, fora da luta das representações e, na
Européia, a ONU e as grandes mídias, forma de um “discurso competente”, pode partici-

40
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 31-49 JUN. 2001

par da difusão de um conjunto de idéias convenien- promoção da coesão social, destaca-se que o poder
tes e interesses particulares. As noções e represen- político através da mídia parece exercer um
tações a respeito da cidade impõem-se pela autori- crescente domínio sobre a vida coletiva nas
dade de quem as divulga e pela repetição incessante cidades. Os projetos de cidade construídos e
de sua pseudo-verdade, a fim de garantir sua afirmados também enquanto projetos de
visibilidade e aceitação cultural (NOVAIS, 1999, comunicação, por serem de mão única, parecem
p. 10). comprometer o jogo democrático mais amplo,
aquele que se estabelece pelo confronto de atores
Parece claro que as representações do espaço
e projetos políticos na e pela cidade.
relacionam-se com as condições políticas,
culturais e materiais dominantes das diferentes A publicidade em televisão, rádio, imprensa e
épocas. Quanto à época presente, nossa análise demais meios de comunicação e informação que,
das políticas de promoção das cidades, ou, como nos casos analisados, têm sido intensamente utiliza-
preferem alguns autores, da “re-invenção das dos como veículos construtores de determinadas
cidades” (WARD, 1998), parece indicar a leituras da cidade, intervêm decisivamente na cria-
emergência de um conjunto de representações que ção de valores culturais e de representações sociais
desenham uma cidade ideal, fruto de uma que, por sua vez, promovem determinados com-
competição imagética, de uma luta simbólica que portamentos e formas de utilização dos espaços
procura dotar esta cidade ideal das quantidades públicos (SÁNCHEZ, 1997, p. 66-68). A ilusão
apropriadas de valores hegemônicos. Efetiva- de objetividade, a aparência de ordem “natural”,
mente, há suficientes indicadores da existência de permitem a aceitação passiva de valores culturais,
uma rede global onde operam fluxos informacio- políticos e morais dos grupos ligados ao projeto
nais ligados a representações de uma urbanidade- político dominante frente aos demais grupos
modelo, ao nosso ver, descolada e imposta à urba- subordinados.
nidade social complexa. Nessa esfera da circulação
Ao tratar da renovação urbana de Barcelona
simbólica, discursos, imagens e políticas de city
no período olímpico e pós-olímpico, P. López Sán-
marketing acompanham e alimentam processos
chez (1993, p. 103) refere-se à “fabricação de
de reestruturação produtiva e de atração de capitais
uma cidadania” ajustada ao projeto, como um de
internacionais.
seus principais pilares políticos, visando a garantir
V. O PATRIOTISMO DE CIDADE a ordem social na cidade. Para ele, o estímulo a
essa condição cidadã fabricada é motor do projeto,
A participação dos cidadãos, o sentido de per-
iniciado em 19868 , da “Barcelona competitiva”.
tencimento à cidade, a adesão aos novos projetos
ou serviços oferecidos, o elevado grau de aceitação Desse modo, a coalizão dominante procura
e aprovação pública dos “projetos de cidade” e, legitimar o projeto de cidade na medida em que
principalmente, a aparente unanimidade que alguns “faz cidade”9 e, ao mesmo tempo, fabrica cida-
projetos têm alcançado são elementos reiterada- dãos à sua medida. Essa representação da cidade
mente apresentados pelos governos municipais e da vida social está presente nos documentos
através das imagens hegemônicas de Barcelona e oficiais que apresentam como “princípio básico”
Curitiba, para mostrar o êxito de seus projetos. da política e da ação na cidade a “Generación de
un patriotismo de la ciudad que permita a sus
Entretanto, torna-se necessário deter-se na na-
líderes, actores y conjunto de la ciudadanía asumir
tureza dessa participação: trata-se de uma partici-
con orgullo su pasado y su futuro, y especialmente
pação efetiva ou representada, passiva ou ativa,
su actividad presente [...]” (BORJA, 1990, p. 62).
legitimadora ou transformadora dos projetos ofi-
ciais? Essas perguntas parecem centrais para Nesse documento, lado a lado com a geração
aqueles que reivindicam a necessidade de deco- de patriotismo de cidade, está a “definição de um
dificar os projetos de renovação urbana. Torna-se
necessário deter-se na relação entre projeto político 8 Ano da denominação de Barcelona como cidade anfitriã
de cidade e criação de patriotismo urbano, tratados para as Olimpíadas de 1992.
nesta seção através desses dois casos específicos. 9 A expressão “fazer cidade” se impôs na Espanha e na

Ao interpretar a produção de imagens e as América Latina como uma das representações mais fortes
políticas de city marketing como instrumentos de associadas ao urbanismo de resultados, à demonstração dos
espaços de modernização produzidos.
legitimação dos projetos de modernização e de

41
A REINVENÇÃO DAS CIDADES NA VIRADA DE SÉCULO

projeto de cidade que mobilize recursos, energias uma participação contemplativa da cidade. Com
e ilusões” (ibidem). Projeto de renovação e patrio- efeito, cabe pensar que a assistência ao espetáculo
tismo de cidade estão encadeados. Na configuração cria uma forte ilusão de participação.
do espaço político da metrópole em renovação, é
Observa-se que os cidadãos sentem-se
evidente o caráter regulador do governo da cidade:
partícipes e beneficiados por essas políticas; não
sob o aspecto ideológico, através do reforço ao
obstante isso, assistem a um espetáculo de
patriotismo de cidade; sob o aspecto prático,
transformações para o qual são convidados para
através da implementação do projeto de cidade e
um lugar aparentemente preferencial, mas que
da instrumentalidade dos espaços modernizados;
resulta ser apenas uma parte do cenário. Os
sob o aspecto tático-estratégico, através da
cidadãos contemplam a cidade modernizada como
subordinação do projeto aos objetivos políticos de
os “figurantes de um grande anúncio de griffe
reposicionamento territorial de Barcelona no
urbanística” (SÁNCHEZ, 1997, p. 44).
sistema urbano europeu.
Efetivamente, muitos investimentos, públicos
Desse ponto de vista, a comunicação social
e privados, concentrados territorial e socialmente,
tem sido um dos elementos centrais dos projetos
que poderiam gerar conflitos pela distribuição de
de reestruturação urbana tanto em Barcelona
recursos, são apresentadas como, “a longo prazo,
quanto em Curitiba. Ela tem desempenhado um
bons para todos”. A identificação entre os cidadãos
papel fundamental na busca do necessário
e a “imagem de marca” de sua cidade têm-nos
consenso social ao redor dos projetos, melhorando
levado a aceitar com maior facilidade os transtor-
sua efetividade, sobretudo se for considerado que
nos ou sacrifícios em sua vida quotidiana, apesar
a implementação dos mesmos acarretou períodos
de que em muitos casos tenha sido possível identi-
de mudanças profundas e muito rápidas.
ficar os significativos custos sociais derivados das
Assim, a participação da população, estimulada remodelações urbanas11 , caracterizando a seletivi-
através da mídia e do conjunto de campanhas de dade da modernização. Por trás da aparente unani-
comunicação, é uma participação vinculada à midade em torno dos benefícios da modernização,
adesão a programas e políticas oficiais, uma é possível encontrar expressões reveladoras das
participação legitimadora e não transformadora outras faces da mesma, como indicam estes tre-
dessas políticas. Essa idéia de participação é chos: “En Barcelona se han reducido las desigual-
coincidente com aquela que impera no governo dades, pero no por un proceso de movilidad
municipal de Curitiba, por exemplo nas campanhas ascendiente de las clases populares, sino porque
de educação para o trânsito ou nas campanhas de buena parte de éstas está siendo, poco a poco,
reciclagem de lixo. A construção de um projeto sustituida o expulsada por quienes tienen mayor
de cidade respaldado por um aparente consenso poder adquisitivo. Barcelona será cada día una ciu-
encobre práticas autoritárias e tecnocráticas nas dad más rica porque se debe contar con recursos
definições das políticas, com escassas possibi- para vivir en ella, y con una población más enveje-
lidades de influência da sociedade civil. cida, ya que los que se tienen que marchar son los
jóvenes” (FAVB, 1992, p. 60). “Durante estos años,
VI. O PAPEL DAS CAMADAS MÉDIAS NA
la construcción de las grandes infra-estructuras
DEFESA DA CIDADE-PÁTRIA
viarias ha aumentado objetivamente la accesibili-
As campanhas oficiais que acompanham as dad – en coche privado – de la periferia al centro
políticas destacam, com ênfase, a vontade de de la ciudad. Desde luego, la atención y rigor para
envolver os cidadãos nos projetos de renovação mejorar las condiciones de habitabilidad no han
urbana. De fato, em ambas as cidades, os grupos estado a la altura del resto de las obras realizadas
políticos que vêm detendo o poder nos governos durante la década pré-olímpica en Barcelona”
municipais há décadas10 criaram para a maioria (idem, p. 67).
da população um sentimento de orgulho e de
pertencimento à cidade. Esse sentimento gera,
11 Falamos, por exemplo, da renovação de bairros que está
entretanto, mais do que uma participação ativa,
implicando a expulsão de parte de sua população original,
ou do aumento do custo da moradia provocada por processos
10 Em Barcelona, desde o ano de 1979; em Curitiba, desde de repentina revalorização que conduzem a uma
1971, com apenas um período de descontinuidade política transformação substancial da composição social dos
nos anos 80 (1983-1989). habitantes da cidade.

42
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 31-49 JUN. 2001

De fato, junto aos que de uma ou outra maneira o que não se integra pela mídia não se converte
obtêm vantagens dos efeitos da renovação urbana em notícia, não aparece e, portanto, não existe
e, portanto, estão interessados em promovê-la, há [...]. Vive-se a estreiteza do dia-a-dia, com a trivia-
amplos setores da população que não participam lidade de indivíduos podados em sua auto-afirma-
diretamente dos benefícios mas que, mesmo ção” (TEZZA, 2001). “Às vezes penso que Curitiba
assim, terão que assumir seus custos. Para eles, é uma cidade exacerbadamente mental. Trazemos
o acesso aos benefícios da modernização é possível essa Curitiba entranhada na cabeça, tão ou mais
apenas no plano do imaginário. Com a veiculação real do que a feita de areia, pedra e cimento. É a
exacerbada dos hábitos da classe média, a virtuali- essa Curitiba que pertencem os limites de nossa
dade do usufruto constitui um elemento de fixação autofagia, de nossa frieza, de nossa soberba pro-
da linguagem mítica aparentemente tão relevante vinciana. O que está em curso aqui é a confirmação
quanto o usufruto ou consumo efetivos. dos valores máximos da classe média brasileira.
Assim, Curitiba atrai mais o igual do que o diferen-
A difusão de valores e modos de vida próprios
te, mais o conservador do que o ousado, mais o
das camadas médias contribui para a consolidação
consumidor do que o criador” (DALA STELLA,
da representação da vida urbana construída com
2000).
base na imagem de uma ordem urbana harmoniosa
e sem conflito. A forte veiculação das imagens- Esta identificação das camadas médias com o
síntese da cidade intensifica a idéia do socialmente projeto de cidade mostra-se também clara em
pleno usufruto dos novos espaços – produtos da levantamentos qualitativos realizados em Barcelo-
modernização – e implicitamente sugere a existên- na. Um exemplo é “Barcelona a 100” (AROCA &
cia de uma vida de classe média para todos os VILLALONGA, 1997), publicação resultante de
habitantes. cem entrevistas a profissionais de diferentes áreas
com idades entre 30 e 40 anos, identificados, pelas
De fato, estudos acerca do uso social dos
autoras, como “protagonistas de uma nova geração,
espaços públicos de renovação em Curitiba mos-
o futuro mais imediato desta Barcelona que experi-
tram uma forte afluência das camadas médias e
mentou uma revolução urbanística e que cresce
uma composição social bastante seletiva nos mes-
tão vertiginosamente como eles” (idem, p. 7). Os
mos, particularmente nos novos espaços culturais
gostos, expectativas e projetos das camadas
(SÁNCHEZ, 1997). Freqüentemente, as formas
médias, das quais esse grupo de profissionais
de uso desses espaços podem ser lidas enquanto
parece representativo, têm uma sobreposição com
sínteses do novo padrão de vida coletiva veiculada
aquelas representações que constroem as imagens
pelo city marketing. Respondem a valores culturais
oficiais, sendo pouco presentes imagens confli-
fortemente associados ao estilo de vida das
tantes, críticas ou divergentes.
camadas médias. A capacidade de “capturar” esse
setor da sociedade reside na evidente adequação As camadas médias procuram espetáculos e
entre os significados dos novos espaços e o con- bons serviços buscando a constante elevação do
junto de representações dos cidadãos – seus consu- nível de vida. Assim, nesses projetos de cidade, o
midores. O espaço é consumido como outro consumo do espaço parece estar fortemente asso-
produto qualquer e para intensificar esse consumo ciado ao consumo da cultura e ao consumo acele-
os governos municipais, através do marketing, rado de bens e serviços. Os cidadãos de classe
utilizam-se de mecanismos de sedução associados média, no usufruto dos novos espaços, parecem
à oferta do produto-espaço. encontrar-se a si mesmos; parecem dizer algo de
si mesmos para si mesmos. Tanto no plano das
Com efeito, as imagens dos novos espaços pro-
práticas espaciais quanto no plano ideológico é
duzem maior ressonância junto àqueles aos quais
esse setor da sociedade que, na reprodução cotidia-
implicitamente se dirigem. As camadas médias ne-
na e silenciosa dos valores e representações domi-
las identificam-se, refletem-se, o discurso projeta-
nantes, na defesa irredutível do projeto de cidade,
se sobre o outro que lhe serve de espelho e identifi-
encarna com mais força o conservadorismo e a
ca-se com ele. Há uma identificação mútua entre
despolitização produzidos pela cidade-pátria.
este projeto de cidade e as camadas médias, recen-
temente capturado pelo olhar da literatura, que es- VII. A ENGENHARIA DO CONSENSO
pelha “o conservadorismo pós-moderno do cida-
O notável grau de identificação do cidadão com
dão curitibano”: “Nesta cidade fortemente oficial

43
A REINVENÇÃO DAS CIDADES NA VIRADA DE SÉCULO

sua cidade 12 , sem dúvida um dos objetivos mismo econômico, de harmonia social, de qualida-
explícitos dos gestores de imagens, tem como de ambiental e de cooperação governamental com
conseqüência a imposição de barreiras ao a iniciativa privada, sugerindo um entorno propício
exercício da participação crítica. Ainda mais, o para os investimentos.
modelo comunicacional adotado, os recursos de
A necessidade de transmitir a existência de uma
linguagem utilizados bem como o peso dos agentes
atmosfera propícia aos negócios fica bem explícita
econômicos envolvidos nos projetos de cidade
em Barcelona, onde o governo municipal publica
distanciam os cidadãos da tarefa de elaboração do
uma revista, em catalão, espanhol e inglês, dirigida
futuro coletivo.
ao mundo empresarial internacional, com o
De fato, as políticas de comunicação social significativo nome de Barcelona, buenas notícias,
têm o efeito de produzir na população a sensação com a finalidade de dar conhecimento de fatos
de viver num meio privilegiado, o qual, levado ao econômicos exclusivamente positivos, tais como
seu limite, tem colocado de manifesto em alguns empresas estrangeiras que investem em Barcelona,
momentos um sentimento ufanista dos cidadãos empresas barcelonesas que se implantam no exte-
com sua cidade. Em algumas ocasiões, essas rior, novas infra-estruturas logísticas, melhorias
demonstrações de exaltação ao lugar aparecem de urbanísticas ou resultados do ano turístico. Em
modo bastante explícito, como num vídeo de orientação semelhante, Curitiba vem sendo divul-
promoção das transformações de Barcelona gada como “a melhor cidade brasileira para se
protagonizado por um casal de namorados – ela fazer negócios”.
barcelonesa, ele estrangeiro, o qual, depois de
As diretrizes que norteiam a atuação municipal
passear pelas áreas renovadas da cidade, exclama:
na área da comunicação seguem uma lógica essen-
“Do you realize how lucky you are to live in
cialmente técnica, que se manifesta por uma con-
Barcelona?”13 (Barcelona, una passió, 1992).
cepção específica de participação. Ela tem, antes
Essa hábil engenharia do consenso, tão cara de mais nada, valor instrumental para o aperfeiçoa-
às políticas urbanas de virada de século, está mento dos projetos administrativos e é considerada
também presente como instrumento legitimador imprescindível para a implementação eficaz dos
dos planos estratégicos de cidade. Com efeito, mesmos, uma vez que cria uma certa pressão mo-
dentre os fatores apresentados para explicar o êxito ral e ética para o cuidado com a cidade. A mobiliza-
dos planos em algumas cidades, Borja destaca: ção popular não se refere à tomada de decisões
“acordo entre atores urbanos, públicos e privados” políticas; ela acontece apenas na fase de implemen-
e “vontade conjunta e consenso entre os cidadãos tação dos projetos. A competência e eficiência do
para que a cidade desse um salto, tanto do ponto governo municipal, destacadas ad nauseum na
de vista físico como do econômico, social e comunicação oficial, servem para deslegitimar
cultural” (BORJA, 1996, p. 84). quaisquer outras formas de participação que ver-
dadeiramente disputem espaço político. Assim, o
Essa idéia do consenso-cidadão ou, em outras
cultivo ao patriotismo de cidade tem a sua contra-
palavras, da sustentabilidade social do projeto, não
face, que é o esvaziamento da política.
tem apenas a função de ser um cimento social
indispensável na escala local. Passa a ser também, Tanto em Curitiba como em Barcelona opera
no mercado externo, um elemento de medida da um viés ideológico comum: trata-se do uso da
capacidade de atuação e do grau de confiança que emoção como instrumento político, dentro das
merecem as elites locais para viabilizar futuros estratégias de criação de identidade local (FREY,
investimentos, ou seja, um elemento mais de 1996, p. 123). A construção, mediante fortes
atratividade locacional. Nesse sentido, a mídia aparatos de comunicação, de uma relação emotiva
incide, especialmente, através de notícias de oti- e afetiva entre a população, o governo municipal e
a cidade parece central para explicar o êxito desses
12 Esta ampla identificação pode ser verificada em pesquisas projetos políticos nos anos 90. O reforço dessa
de opinião, pesquisas de popularidade dos prefeitos ou mesmo,
relação emotiva procura assegurar a sustentação
resultados de eleições municipais. Ver, a esse respeito Aroca (passiva) da população para a política municipal,
e Villalonga (1997) e Sallas (1999). assim como a disposição da população em partici-
13 “Você se dá conta da sorte que você tem por viver em par da implementação dos projetos da Prefeitura.
Barcelona?” Aos habitantes da cidade-pátria, essa coleção

44
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 31-49 JUN. 2001

de indivíduos que vivem juntos, porém isolados, pulación, puedes de hecho cambiar la percepción
receptores de notícias e anúncios em domicílio que tiene el ciudadano de las cosas. Tu inviertes
(uma vez que triunfa a forma cultural da “ícone- sensaciones que tiene la gente de algo que funciona
dependência”) (JAMESON, 1995, p. 103), resulta- mal. Tu lo inviertes al mejorar el problema, al
lhes difícil escapar à condição de espectadores e actuar, pero inviertes mucho más las opiniones al
consumidores de imagens. Nesse sentido, como comunicar que va a mejorar, al saber comunicar”
observa López Sánchez (1993), a mercantilização (NAVARRO, 1997).
da cidade e sua linguagem promocional constran-
VIII. CONFLITOS, ANTAGONISMOS, TEN-
gem os terrenos de intervenção social nos espaços
SÕES: PARA ALÉM DA CIDADE-PÁTRIA
urbanos.
De fato, tanto no caso de Curitiba quanto no
A política de comunicação social, além de
caso de Barcelona, as representações tornadas
instrumento para a renovação urbana, visa a
dominantes são cuidadosamente desenhadas para
construir uma ordem urbana sob a qual as formas
mostrar uma cidade homogênea e apagar as
de viver a cidade que não se adaptem à cidade-
diferenças políticas, culturais, de classe ou de
pátria são interpretadas como “ingovernabilidade”,
origem étnica presentes no território urbano. Os
desordem. Sob essa orientação, quando as pesqui-
discursos da cidade-pátria e do consenso-cidadão,
sas de opinião acerca das obras da Barcelona-92
da sociedade urbana como um bloco homogêneo
mostravam significativas críticas, o governo muni-
sem conflitos de interesses, orientada para um
cipal apontou a necessidade de reconduzir a opinião
grande objetivo comum, são forjados no interior
pública (idem, p. 7). O instrumento escolhido para
das políticas urbanas, com o apoio incondicional
tal recondução foi precisamente aquele da cidade
dos meios e com o uso amplo de variados instru-
do marketing: uma impressionante ofensiva publi-
mentos publicitários, atuando como elementos-
citária promovida por Barcelona Holding Olím-
chave na regulação social e no controle político
pico e pelo Ayuntamiento de Barcelona. Também
da população. Como expressa López Sánchez: “La
em Curitiba as políticas de marketing têm procura-
homologación del ‘todos’ a una mayoría normali-
do reforçar o elo afetivo entre os cidadãos e o
zada de ciudadanos pretende redundar en la opa-
projeto de cidade com marcantes campanhas
cidad o desaparición de las contradicciones metro-
como a do “coração curitibano” nos anos 80 ou,
politanas y en el secuestro del antagonismo, ya
no ano 2000, com a escolha da música-tema cujo
que la constitución de esa mayoría normalizada
fragmento mais reiterado era “quando a gente ama,
se maneja para invalidar los flujos sociales no
claro que a gente cuida”. Subjacente a essas repre-
capturados en la ilusión colectiva” (LÓPEZ
sentações afeto-cidade-cidadão está a idéia de que
SÁNCHEZ, 1993, p. 110).
qualquer pensamento ou ação que ameaça o
consenso pode ser representada como desamor à Pesquisa qualitativa realizada com jovens de
cidade, e não desacordo com o projeto dominante. Curitiba, entre 14 e 20 anos mostra alguns dados
que indicam de fato um sentimento de exclusão e
O alcance da comunicação como instrumento
de mal-estar em relação à cidade, por exemplo,
político desses governos de cidade parece cres-
por parte de jovens negros (SALLAS, 1999, p.
cente. As estruturas tecnológicas de informação
52). Se o quadro de referência majoritário, entre
e comunicação são peças-chave na construção do
os jovens, está extremamente pautado pela ação
patriotismo de cidade, equipamentos do poder,
do marketing das últimas décadas, há porém sinais
dispositivos centrais na produção da subjetividade
de resistência e de recusa à reprodução da imagem
coletiva. O seguinte fragmento, selecionado de
oficial por parte de alguns setores da população
entrevista, parece sintetizar a dimensão deste poder:
jovem. Indicador expressivo são os dados organi-
“Lo que ves acá es un peligro. Nosotros tenemos
zados segundo extrato sócio-econômico e de cor
la lista de cuales son las prioridades de los ciuda-
dos entrevistados. Eles revelam que quanto mais
danos, elaboradas con base en las encuestas de
pobres e de pele mais escura, menos os jovens
enero. Primera, la vivienda, segunda, el empleo.
gostam da cidade, além de identificarem “a ação
Si nosotros en febrero hacemos una gran campaña
violenta da polícia” como o principal problema de
sobre ambiente y calidad de vida, sabemos que la
Curitiba (idem, p. 56).
encuesta que hagamos en marzo nos va a traer
ese tema como una de las prioridades de la ciudad, A construção das representações é um proces-
de los ciudadanos. Hay una posibilidad de mani- so complexo e contraditório. Há nas representações

45
A REINVENÇÃO DAS CIDADES NA VIRADA DE SÉCULO

dos jovens fortes disjunções e tensões que na cidade-pátria são consentidas apenas as
combinam leituras favoráveis relativas à cidade, diferenças domesticadas, aquelas que são captu-
positivas para o público externo, com leituras radas pelo espetáculo, ainda assim o urbano não
bastante críticas associadas à cidade do cotidiano perde sua característica de lugar de contradições
e aos problemas que diretamente eles vivenciam. e de agregação conflitiva. O mal-estar associável
às cidades para além da cidade-pátria pode ser
Com efeito, os projetos de renovação urbana
considerado ruído, aviso de irrupções e movimen-
orientados para atender aos grandes interesses de
tos sociais com crescente presença política.
mercado, promovidos como necessários para a
“inserção competitiva da cidade”, caracterizam- IX. CONCLUSÕES: AGENTES E ESTRATÉ-
se pela seletividade. Nesses projetos muitos GIAS EM DISPUTA
fragmentos da cidade-metrópole são esquecidos,
Nesta virada de século, o que parece explicar
riscados da modernização. Por outro lado, aqueles
a aproximação de certas políticas urbanas é a
fragmentos eleitos como canteiros midiáticos para
orientação dos respectivos governos para a
ilustrar o chamado “renascimento urbano” têm sido
transformação das cidades em mercadorias, junto
espaços reconfigurados social, econômica e
à transformação da base material das cidades para
culturalmente, representando, para muitos, a
o novo padrão de acumulação, sob as pressões
destruição de seus próprios modos, divergentes,
uniformizadoras dos atores hegemônicos para a
de viver o urbano.
realização do mundo atual. Como resposta a essas
Assim, os projetos de renovação dos espaços pressões, os projetos de cidade, os modelos de
acolhem variados tipos de investimentos imo- desenvolvimento construídos pelos governos
biliários, culturais e comerciais, redesenhando a locais junto a agentes privados com interesses
geografia e a história social dos lugares. Os espaços localizados, parecem guardar, de fato, semelhanças
renovados são vendidos como espaços “seguros”, significativas.
que vêm restabelecer a ordem, a civilidade, como
O esforço político de alguns prefeitos e
contraface das áreas estigmatizadas como “deca-
governos de cidade em vender sucesso e promover
dentes”. As representações excludentes reforçam
a re-invenção dos lugares encontra-se diretamente
os processos de gentrificação, como uma “revan-
associado aos arranjos particulares de interesses
che contra trabalhadores precarizados, imigrantes,
originados naqueles mercados, que guardam
sem-teto” que ameaçam o projeto modernizador
relações com o mercado de cidades. Esse esforço
(SMITH, 1996). Os processos de rápida valoriza-
dos governos também está orientado pela
ção desses espaços e o súbito encarecimento da
necessidade de dar visibilidade internacional a seus
moradia têm, de fato, expulsado as populações
projetos e ações urbanas, visando a um trânsito
pobres das áreas centrais, o que vem ser corro-
notável junto às agências multilaterais – que, por
borado por Tello (1994), que evidencia, para o
sua vez, garantirão futuros financiamentos para
caso de Barcelona, francos processos de expulsão
novos projetos. A construção de imagens-modelo
para as periferias metropolitanas14.
e a conquista de expressão no mercado de cidades
O seqüestro do antagonismo passa pela torna-se fundamental nesse contexto.
tentativa de neutralização dos conflitos e pelo
Através de diversas tendências perfilam-se as
obscurecimento das manifestações urbanas
estratégias contidas nas políticas urbanas, tanto
contrárias aos projetos e obras da renovação. Se
as locais quanto aquelas da agenda urbana
internacional: a adaptação técnica do território com
a renovação de infra-estruturas de mobilidade e
14 Rosa Tello (1994, p. 74) mostra que o encarecimento do de telecomunicações, a apresentação de algumas
preço da habitação nos anos que sucederam à denominação experiências de renovação urbana como modelos,
de Barcelona como cidade olímpica constituiu-se em fator a construção de espaços seletivos voltados aos
de homogeneização social e de segregação daqueles segmentos negócios, ao consumo e à habitação.
da população que dispõem de pouca ou nenhuma capacidade
de endividamento. Segundo a autora, o preço da habitação Os agentes econômicos privados com interes-
converteu-se num instrumento de controle social, o qual ses localizados e a crescente mundialização dos
tende a estreitar as possibilidades de existência de uma cidade fluxos e conexões relativos aos mercados pressio-
plural, do ponto de vista da composição sócio-econômica da
nam os governos locais para o exercício de sua
população.

46
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 31-49 JUN. 2001

capacidade racionalizadora, de modo que os fluxos aparente inexorabilidade dos cenários que aponta.
continuem a operar. Trata-se de um complexo feixe
Os movimentos sociais urbanos, em suas lutas
de relações comerciais que incidem na configura-
e conquistas, demonstram a capacidade de partici-
ção do espaço político para o qual os governos,
par desta luta simbólica ao criar um ideário de
através de estratégias transescalares nas políticas
cidade, de representação de cidade, que disputa o
urbanas, assumem um caráter regulador, sob três
“pensamento hegemônico” sobre a mesma. Parti-
aspectos:
dos políticos e alianças construídas na perspectiva
a) ideológico: mediante a difusão das estratégias de campanhas para as eleições municipais também
dos organismos internacionais, construção de re- têm importante papel na luta simbólica, disputando
presentações, imagens e discursos associados à projetos alternativos de cidade.
reprodução do modus operandi das chamadas
Alternativas críticas podem ser também formu-
“cidades-modelo”, venda das cidades enquanto
ladas pelas várias correntes no âmago do denomi-
mercadoria;
nado pensamento crítico. Pensamos que o campo
b) prático: através do caráter instrumental do da produção simbólica, da cultura e da imagem,
espaço e dos meios de ação utilizados, o Estado relacionados dialeticamente com a produção
submete o espaço a uma logística que atende a material das cidades, adquirem hoje centralidade
interesses de mercado; no confronto com a leitura hegemônica de cidade.
c) tático-estratégico: com a subordinação dos A possibilidade de confronto vem do notável
recursos do território urbano aos objetivos políticos imbricamento desses campos com o projeto hege-
de valorização e reordenamento dos diferentes mônico, com a leitura dominante de cidade e,
mercados que incidem no lugar. principalmente, do fato de se tratarem de campos
em disputa (RIBEIRO, 1999). Diante dessa possi-
A visão de mundo dominante que constrói a
bilidade de questionamento e confronto, a reflexão
“cidade da virada de século” procura, a partir da
abre-se, no campo da cultura, para processos
difusão de “modelos”, normatizar as cidades, con-
relevantes que precisam ser desvendados: a visão
figurá-las de acordo com os parâmetros da cidade
de mundo que sustenta as políticas de marketing
competitiva, da cidade-empresa, da cidade-
urbano, a mercantilização da cultura, o envolvi-
mercadoria e da cidade-pátria, desconsiderando a
mento da cultura com a promoção de serviços e
complexidade sócio-espacial e a multiplicidade de
mercadorias, a inserção da cultura em processos
projetos políticos em cada território urbano. Diante
de “gentrificação” – valorização de áreas da cidade
dessa marcada tendência, parece haver um sentido
e de segmentos sociais em detrimento de outros,
político na análise e desconstrução crítica dos pro-
a relação entre cultura e reprodução de processos
cessos que a acompanham, como contribuição do
de inclusão-exclusão social.
pensamento crítico à possibilidade de representar
o espaço de maneira que supere os limites das No campo da imagem, os processos que ne-
representações dominantes. cessitam de desvendamento parecem ser: a cons-
trução de relações entre comunicação, poder e
Ainda que o livre jogo político, democrático e
imagem; a mercantilização da imagem da cidade e
plural pareça bastante constrangido pelos dispo-
a circulação do discurso das “cidades-modelo”;
sitivos da ordem urbana associados à cidade-pátria,
as estratégias de difusão de imagens em múltiplas
podem ser identificados comportamentos, mani-
e mutuamente constituídas escalas espaciais; os
festações e movimentos que indicam e afirmam
principais agentes produtores da imagem da cidade
que o campo de possíveis ações que é o espaço
e suas relações constituídas através do habitus; a
urbano nunca estará totalmente capturado pelas
inscrição de filtros sociais e espaciais na organiza-
estratégias de poder de seus governos midiáticos.
ção da imagem da cidade; as práticas materiais e
Como qualquer cultura tornada hegemônica em os valores que pressionam para a atualização das
certas condições históricas, políticas, técnicas e imagens; a emergência de leituras e imagens
econômicas, a cultura urbana que hoje parece alternativas.
dominante por certo não é nem será internalizada
A análise desses campos, ou melhor, o seu
passivamente. A possibilidade de ela ser negociada,
desvendamento pode colaborar para que ocorra o
resistida e seletivamente apropriada pelas pessoas
necessário refazer do pensamento crítico sobre a
no cotidiano está sempre presente, a desafiar a

47
A REINVENÇÃO DAS CIDADES NA VIRADA DE SÉCULO

cidade e, desse modo, ajudar a reinscrever possí- monia na leitura do urbano.


veis projetos críticos, capazes de disputar hege- Recebido para publicação em 15 de maio de 2001.

Fernanda Sánchez (fsanchez@usp.br) é Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal do Paraná


(UFPR), Doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e Pesquisadora do Instituto de
Planejamento e Pesquisa Urbana e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AROCA, M. V. & VILLALONGA, I. 1997. Bar- FREY, K. 1996. Crise do Estado e estilos de gestão
celona a 100. Protagonistas de una nueva municipal. Lua Nova, São Paulo, n. 37, p.107-
generación. Barcelona : Sirpus. 138.
BORJA, J. 1990. Políticas para la ciudad europea HARVEY, D. 1993. From Space to Place and
de hoy. In : DE FORN, M. & BORJA, J. Back Again : Reflections on the Condition of
(dirs.). Barcelona y el sistema urbano europeo. Postmodernity. In : BIRD, J. (org.). Mapping
Barcelona : Ayuntamiento de Barcelona. the Futures : Local Cultures, Global Change.
Londres : Routledge.
_____. (org.). 1995. Barcelona. Un modelo de
transformación urbana. Quito : Programa de LEFEBVRE, H. 1998. The Production of Space.
Gestión Urbana / Oficina Regional para Amé- Londres : Routledge.
rica Latina y el Caribe.
LÓPEZ SÁNCHEZ, P. 1993. Todos, mayoría y
_____. 1996. As cidades e o planejamento estra- minorías en la Barcelona Olímpica. Economía
tégico. Uma reflexão européia e latino-ameri- y sociedad, Madrid, n. 9, p. 103-115.
cana. In : FISCHER, T. (org.). Gestão
MASSEY, D. 1993. Power Geometry and a
contemporânea. Cidades estratégicas e organi-
Progressive Sense of Place. In : BIRD, J.
zações locais. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio
(org.). Mapping the Futures : Local Cultures,
Vargas.
Global Change. Londres : Routledge.
BORJA, J. & CASTELLS, M. 1997. Local y
_____. 1999. Spaces of Politics. In : MASSEY,
global. La gestión de las ciudades en la era de
D. (org.). Human Geography Today. Part V :
la información. Madrid : United Nations for
Rethinking Space and Place. Cambridge :
Human Settlements/Taurus/Pensamiento.
Polity Press & Blackwell Publishers.
BOURDIEU, P. 1998. Contrafogos : táticas para
NAVARRO, F. 1997. Entrevista com o Coordena-
enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro :
dor da Dirección de Comunicación Corporativa
Zahar.
y Qualitat del Ayuntamiento de Barcelona.
_____. 1999. A economia das trocas simbólicas. Barcelona, 18.dez.
5a ed. São Paulo : Perspectiva.
NOVAIS, P. 1999. Uma crítica ao conceito de
BOURDIEU, P. & WACQUANT, L. 2000. La espaço no planejamento estratégico. In : Anais
nouvelle vulgate planétaire. Le Monde Diplo- do VIII Colóquio internacional sobre o poder
matique, Paris, p. 6-7, maio. local : “Poder local e internacionalização :
desenvolvimento, (re)configurações organiza-
DALA STELLA, C. 2000. Riachuelo, 266.
cionais e estratégias de gestão”. Salvador :
Curitiba : Criar.
UFBA/NPGA/NEPOL.
DUNCAN, J. & LEY, D. 1993. Place, Culture,
OLIVEIRA, F. L. 1999. A metáfora cidade-
Representation. London : Routledge.
empresa no planejamento estratégico de cida-
FAVB. 1992. La Barcelona de Maragall. Barcelo- des. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, v. XIII,
na: Federación de las Asociaciones de Vecinos n. 1, p. 141-162, jan.-jul.
de Barcelona, n. 10-11, nov.-dez.
OLIVEIRA, D. 2000. Curitiba e o mito da cidade

48
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 31-49 JUN. 2001

modelo. Curitiba : UFPR. pensamento único à consciência universal. Rio


de Janeiro/São Paulo : Record.
PARAIRE, P. 1995. Le “village-monde” et son
château. Paris : Le temps des cerises éditeurs. SMITH, N. 1996. The New Urban Frontier : Gen-
trification and the Revanchist City. London :
RIBEIRO, A. C. T. 1999. As leituras da cidade.
Routledge.
Intervenção como moderadora de mesa. In :
Anais do Seminário “Repensando as políticas SOUZA, N. R. 1999. Planejamento urbano, saber
públicas e a ação na cidade”. Rio de Janeiro : e poder : o governo do espaço e da população
Câmara Municipal do Rio de Janeiro/IPPUR- em Curitiba. São Paulo. Tese (Doutorado em
UFRJ. Documento disponível em CD-rom. Sociologia). FFLCH, Departamento de Ciên-
cias Sociais, Universidade de São Paulo.
SALLAS, A. L. F. (org.). 1999. Os jovens de
Curitiba : desencantos e esperanças. Juventu- TELLO, R. & MARTINEZ, S. 1994. Tercia-
de, violência e cidadania. Brasília : UNESCO. rização e encarecimento do alojamento em
Barcelona. Finisterra, Lisboa, v. XXIX, n. 57,
SÁNCHEZ, F. 1997. Cidade espetáculo : política,
p. 61-77.
planejamento e city marketing. Curitiba :
Palavra. TEZZA, C. 2001. Pacato cidadão curitibano. Cris-
tóvão Tezza espelha em 11 livros o conserva-
_____. 2001. A reinvenção das cidades para um
dorismo pós-moderno do sul. Gazeta Mer-
mercado mundial. São Paulo. Tese (Doutorado
cantil, São Paulo, 23.fev.
em Ciências: Geografia Humana). FFLCH,
Departamento de Geografia, Universidade de VAINER, C. B. 2000. Pátria, empresa e merca-
São Paulo. doria. Notas sobre a estratégia discursiva do
planejamento estratégico urbano. In : ARAN-
SÁNCHEZ, F. & MOURA, R. 1999. Cidades
TES, O., VAINER, C. B. & MARICATO, E.
modelo : espelhos de virtudes ou reprodução
A cidade do pensamento único : desmanchando
do mesmo? Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro,
consensos. São Paulo : Vozes.
ano XIII, n. 2, p. 95-114, ago.-dez.
WARD, S. V. 1998. Selling Places. The Marketing
SANTOS, M. 1996. A natureza do espaço. Técnica
and Promotion of Towns and Cities, 1850-
e tempo, razão e emoção. São Paulo : Hucitec.
2000. Londres : Routledge.
_____. 2000. Por uma outra globalização : do

OUTRAS FONTES

Barcelona, una passió. 1992. Dirigido por L. As dez melhores cidades para se fazer negócios.
Pomés. Barcelona, Ajuntament de Barcelona. 2000. Exame, São Paulo, ano 34, n. 9, ed.
Vídeo de difusão oficial., 20 min. 713, maio.

49

You might also like