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0722
entrevista
cinco olhares sobre a Educação Popular e Saúde*
David HMSL, Batista IV, Um JAW, Cavalcanti P, Barbosa RHS, Heck S. Education processes *
A entrevista foi
organizada e conduzida
and knowledge production: five perspectives on Popular Education and Health. Interface por Helena Maria
(Botucatu). 2014;18 Supl 2:1579-1590. Scherlowski Leal David
For this issue of Interface, we interviewed Neste suplemento da Interface, trazemos (a)
Faculdade de
five professionals whose origins and life cinco entrevistados com histórias de origem Enfermagem,
Universidade do Estado
histories are different, but whose praxis e trajetos diferentes, mas cuja práxis do Rio de Janeiro. (UERJ).
has been constructed around the principles se construiu e se constrói em torno dos Rua Xavier da Silveira,
of Popular Education and Health. These princípios da Educação Popular e Saúde. 83/304, Copacabana.
Rio de Janeiro, RJ,
individuals are: Selvino Heck, Special São eles: Selvino Heck, atual assessor
Brasil. 22061-010.
Assessor of the General Secretary of the especial da Secretaria Geral da Presidência helenalealdavid@gmail.
Presidency of Brazil, Director of the Popular da República, diretor do Departamento com
Education and Activism Department of the de Educação Popular e Mobilização da
(b)
Articulação Nacional de
Movimentos e Práticas de
National Secretariat of Social Articulation, Secretaria Nacional de Articulação Social Educação Popular e Saúde
and Executive Secretary of the National da Secretaria Geral e secretário executivo (Aneps). Goiânia, GO,
Agro-ecology and Organic Production da Comissão Nacional de Agroecologia e Brasil. iv_batista@yahoo.
com.br
Committee; Regina Helena Simões Barbosa, Produção Orgânica; Regina Helena Simões (c)
Instituto de Saúde
professor and researcher at the Public Barbosa, professora e pesquisadora do Coletiva, Universidade
Health Institute of the Federal University Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Federal Fluminense.
of Rio de Janeiro; Ivanilde Batista, Staff Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Niterói, RJ, Brasil. julio.
wong.un@gmail.com
member of the Health Department of Ivanilde Batista, servidora da Secretaria (d)
Instituto Ageu
the State of Goiás, founder and militant de Estado de Saúde de Goiás, fundadora Magalhães, Fundação
of ANEPS-GO; Paulette Cavalcanti, e militante da Aneps-GO; Paulette Oswaldo Cruz. Recife,
PE, Brasil. paulette.
professor and researcher at the Oswaldo Cavalcanti, professora e pesquisadora da
cavalcanti@gmail.com
Cruz Foundation in Pernambuco; and Julio Fundação Oswaldo Cruz em Pernambuco; (e)
Instituto de Estudos
Alberto Wong Un, professor and researcher e Julio Alberto Wong Un, professor e em Saúde Coletiva,
at the Public Health Institute of the pesquisador do Instituto de Saúde Coletiva Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Rio
Fluminense Federal University. da Universidade Federal Fluminense. de Janeiro, RJ, Brasil.
reginacasa@gmail.com
Keywords: Popular Education and Health. Palavras-chave: Educação Popular e Saúde. (f)
Departamento de
Social activism. Popular participation. Mobilização social. Participação popular. Educação Popular e
Mobilização, Secretaria
Nacional de Articulação
Social, Secretaria Geral
da Presidência da
República. Brasília, DF,
Brasil. selvino.heck@
presidencia.gov.br
Apresentação
Falar sobre os processos de formação de profissionais de saúde, pessoas inseridas em movimentos
populares, gestores de políticas públicas e outros atores impõe, desde o início, buscar contemplar a
diversidade de experiências, projetos e práticas. Para a seção de Entrevistas deste número temático da
Interface, em lugar de um, teremos cinco entrevistados, com histórias de origem e trajetos diferentes,
mas cuja práxis se construiu e se constrói em torno dos princípios da Educação Popular e Saúde. São
eles: Selvino Heck, atual assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República, diretor do
Departamento de Educação Popular e Mobilização da Secretaria Nacional de Articulação Social da
Secretaria Geral e secretário executivo da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica;
Regina Helena Simões Barbosa, professora e pesquisadora do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Ivanilde Batista, servidora da Secretaria de Estado de
Saúde de Goiás, fundadora e militante da Aneps-GO; Paulette Cavalcanti, professora e pesquisadora
da Fundação Oswaldo Cruz em Pernambuco; e Julio Alberto Wong Un, professor e pesquisador do
Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense.
Não faremos as suas apresentações: deixaremos que cada um entre na roda, apresente-se e fale de
sua caminhada, destacando as principais questões em torno dos desafios à construção partilhada de
saberes e da formação crítica para a conquista da saúde.
Selvino Heck – Sou filho de colono, agricultor familiar, de Santa Emília, Venâncio Aires, interior
do Rio Grande do Sul, que ainda hoje come verduras e frutas tiradas do pé (mamãe e os irmãos mais
novos continuam na roça e trabalham com Feira do Produtor) e curava muitas de suas doenças com
ervas caseiras passadas por gerações. Fui (ou ainda sou) franciscano amante da paz e da natureza.
Em 1983, ajudei a fundar o Camp (Centro de Assessoria Multiprofissional), de Porto Alegre,
ONG que ajudou a construir os principais movimentos sociais do Sul do Brasil. Morei por muitos
anos nas vilas populares da Lomba do Pinheiro, trabalhando com pastorais populares e movimentos
comunitários, sempre à base da Educação Popular freireana.
Como deputado estadual constituinte gaúcho, fui presidente da Comissão de Saúde da Assembleia
Legislativa, tendo como assessora Maria Luíza Jaeger. Desde 2003, estou no governo federal, oito
anos na Assessoria do Gabinete do presidente Lula, desde 2011, na Secretaria Geral da Presidência da
República, coordenando a Rede de Educação Cidadã (Recid).
Sou conselheiro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consae) e membro da Câmara
Interministerial respectiva. Desde o final de 2012, sou secretário executivo da Comissão Nacional de
Agroecologia e Produção Orgânica e faço parte da Câmara Interministerial respectiva.
Regina Barbosa – Formei-me em Psicologia e iniciei minha formação em Saúde Pública em
1979, quando ingressei no curso de Residência em Saúde Pública da ENSP. Era o início do processo
de redemocratização do país e os movimentos políticos – inclusive o da Reforma Sanitária –
(re)organizavam-se em torno de pautas reivindicativas.
Esse intenso momento histórico contribuiu para a busca de referenciais críticos que nos ajudassem a
compreender nossa sociedade e nosso papel político. Ainda na Residência, engajei-me em um trabalho
educativo na Unidade de Saúde da ENSP, quando organizamos um grupo de reflexão de mulheres-
usuárias, que resultou em mobilização e ações políticas. Pouco depois, tive o privilégio de participar
de uma oficina com Paulo Freire, recém-chegado do exílio, o que foi uma experiência marcante e
inesquecível. Desde então, a Educação Popular se tornou o meu “modo de andar a vida”, uma referência
político-pedagógica que me orienta em todos os espaços em que atuo, inclusive os acadêmicos.
Ivanilde Batista – Sou pedagoga e servidora da Secretaria Estadual de Saúde de Goiás. A vida e o
trabalho me levaram para espaços da saúde coletiva, onde a cada dia um novo desafio se apresenta.
Por meio da militância política no Movimento Popular de Saúde (Mops) nasceu oportunidade de
participar da luta pela Reforma Sanitária, 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986) e I Conferência
Municipal de Saúde do Trabalhador/Goiânia (1998). Também contribui com a fundação do
SINDSAÚDE/GO em 1989, onde hoje estou como secretária de formação política.
entrevista
Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (Aneps), desse lugar, nasceram parcerias e
projetos de extensão com a Universidade Federal de Goiás (UFG).
Esses projetos de extensão, chamados “Café com Ideias”, as quatro edições da Mostra Parceria
Ensino-Serviço-Comunidade – Mopesco –, o III Encontro Nacional de Educação Popular e Saúde e
o I de Práticas Populares de Saúde, entre outras atividades, tiveram como objetivo contribuir com a
reorientação do ensino na saúde, e a educação permanente no SUS, com a participação de movimentos
populares, estudantes e professores da UFG.
Nesse caminho, uma oportunidade relevante foi participar da construção da Política Nacional de
Educação Popular e Saúde (PNEPS) aprovada com louvor pelo Conselho Nacional de Saúde em 2012.
Hoje estamos realizando atividade de formação e articulação política para implantação da PNEPS
com o projeto Saberes, Fazeres e Sabores: Encontros de Saberes e Práticas Integrativas, da PNEPS, em
Goiás, e Articulações na Região Centro-Oeste.
Paulette Cavalcanti – O meu encontro com a Educação Popular vem da crítica ao próprio processo
educacional da universidade, como estudante de medicina. Vem da inconformidade política na mistura
que eu fazia com as lutas pela saúde e educação. Eu comecei a ler Paulo Freire e trago-o para junto da
minha militância. No mestrado, vou discutir a participação popular e social, a formação dos conselhos
de saúde. Hoje, atuo como professora e pesquisadora e na defesa do SUS público e de qualidade.
Participo da Rede de Educação Popular e Saúde, do GT de Educação Popular da Associação Brasileira de
Saúde Coletiva – Abrasco –, e mediante estes, articulo-me com a Aneps.
Julio Wong Un – Sou peruano, neto de chineses e índios, brasileiro, médico, poeta, educador,
viajante. No Brasil desde 1994. Trabalhei com comunidades e grupos subalternos, procurando aprender
com as pessoas simples, de vidas duras, e plenas de ternuras e alegrias.
No Brasil, fiz mestrado e doutorado sob a orientação de Victor Valla, procurando caminhos próprios
e em diálogo com outros saberes e sensibilidade. Participei da criação da Rede de Educação Popular
e Saúde em 1998. Em 1999, criei a lista de discussão na internet. Acompanhei e apoiei processos e
experiências de articulação, reflexão, produção e afirmação da Educação Popular em Saúde.
De 2006 a 2007, coordenei a Rede de Educação Popular e Saúde. Desde 2011, coordeno o Grupo
Temático de Educação Popular da Abrasco. Sou docente da Universidade Federal Fluminense desde 2006.
da saúde, que se integraram as atividades do Projeto, entendendo que as nossas rodas dialogavam
diretamente com as políticas afirmativas e que favoreciam a integração com grupos da diversidade e
pluralidade do SUS.
Paulette Cavalcanti - Em 1994, eu conheci os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e comecei a
trabalhar com eles, a partir de uma pesquisa de avaliação do Pacs (Programa de Agentes Comunitários
de Saúde). Eu percebi neles o que tinha de novo no SUS, o que tinha de diferente, a grande mudança
da Reforma Sanitária que a gente fazia tanta questão de construir. E aí fui ver que neles estavam os
grandes educadores, e fui trabalhar com eles, aprender com eles.
Foram muitos projetos até 2000. Eu destacaria primeiro o FormaSUS, projeto de formação da CUT
para os ACSs, por meio da CNTSS, no qual juntávamos o ensino médio com uma formação política
muito boa, referenciada na Educação Popular. Esse projeto teve como grande resultado a formação dos
Sindicatos de Agentes Comunitários de Saúde – o Sindacs-PE.
Destaco também os projetos que nasceram da gestão democrática e popular da Prefeitura do Recife,
entre 2001 a 2008. Foi traçado um plano de formar núcleos, em cada comunidade, chamados de núcleos
de cultura e Educação Popular, os Nuceps. Não chegaram a funcionar efetivamente, não colou como a
gente queria, mas a ideia era de organizar grupos da população, que frequentavam o posto, não por
doença, mas pela saúde, pelas coisas que precisavam lutar para ter saúde. Fazíamos oficinas com toda a
equipe, incluindo até o pessoal de apoio. Discuto esse período na minha tese de doutoramento.
Logo depois, começam os que considero mais importantes e que continuam até hoje: o Aesa
(Adolescente Educador em Saúde), Iesa (Idosos Educadores em Saúde) e Esam (Educadores em Saúde
da Mulher). Surgem da ideia de trabalhar com adolescentes e de que os ACSs eram os profissionais
forjados para serem educadores. Também em oficinas, um primeiro grupo de trinta ACSs buscou
entender o que era EP, seus princípios, essa construção com o saber do outro, essa perspectiva de
diálogo, de respeito ao que o outro já sabe.
Discutem-se também os temas próprios da adolescência e técnicas de formação de grupo. Após a
formação, batizam-se de educadores de Aesa, e vão multiplicando-se. Cada ACS, sozinho ou em dupla,
vai formando grupos na comunidade. Cada ciclo de formação tinha uma formatura muito bonita, com
todas as pompas. No começo, nós, técnicos, criticávamos as formaturas. Mas eles mesmos diziam:
criticávamos porque já tínhamos tido a oportunidade de muitas formaturas... Eles estavam tendo a
primeira oportunidade de se formar e queriam mostrar para a sociedade, familiares, que eles agora
eram outra coisa: educadores.
Do Aesa veio o Iesa, o Esam, os PES – Pequenos Educadores em Saúde – e os HES – Homens
Educadores em Saúde. O único que não vingou foi os Educadores em Saúde Ambiental, ESAmb, mas
que derivaram para grupos de teatro, cordel e outras formas de educação em saúde.
Os projetos foram se multiplicando, primeiro por três distritos e depois pelos outros distritos do
Recife. Foram incorporados pelo Curso de Formação Técnica de Agente Comunitário de Saúde e
geraram subprojetos de teatro, rádio comunitária, mostras anuais de arte, cultura e educação em
saúde, além de muitas lutas por saúde na comunidade.
Julio Won Un – Trabalhei com a lógica da Educação Popular – ou dos seus parentes: saúde
comunitária, saúde rural, participação popular, ação nos campos da arte e cultura populares, etc. desde
a adolescência. Aos 14 anos, com os meus tios, sindicalistas da educação, acompanhei marchas, cursos,
manifestações pela democracia. Quase fomos presos. E as bombas de gás eram presença frequente.
Um velho professor subiu num banquinho e veio falar para o grupo assustado, de Paulo Freire, dos
sonhos por uma sociedade diferente, onde o homem simples pudesse Ser. Fiquei marcado.
Ao longo da graduação, tive o privilégio de visitar e trabalhar em comunidades faveladas e rurais no
Peru. Investi, por gosto e por opção, no trabalho cultural, desde a poesia, a crônica e a música. Sempre
fui contra o uso da arte como propaganda e contra o uso perverso dos valores éticos e das propostas
radicais dos autores que líamos com fervor e utopia.
O trabalho cultural me levou por caminhos inusitados: conheci músicos indígenas, que eram míticos,
entrevista
toquei com grandes artistas, fiquei amigo de intelectuais, pintores, poetas, escritores. A vida sempre me
sorriu e abençoou com encontros notáveis.
Ainda no internato, desenvolvi atividades de educação e atenção primária com camponeses na
região da serra central do Peru, na aldeia de Marco. O sonho do jovem que cresceu em um conjunto
de prédios foi sempre o de mergulhar no céu azul intenso dos Andes peruanos.
Ao me formar, trabalhei primeiro em ONGs com projetos de Educação Popular em Saúde, com
crianças. Depois, quase desistindo, surgiu a possibilidade de ir de novo ao mundo rural, e trabalhei
um ano com camponeses, agentes de pastoral, e profissionais da saúde tanto na região andina de
Cajamarca e depois em Cuzco – a cidade imperial – e nos vales e povoados ao redor.
Nessas experiências, trabalhei medicina popular indígena, uso culturalmente apropriado de
medicamentos, teatro camponês, rádio comunitária e indígena. Produzimos vários materiais com
participação da população e agentes de pastoral da saúde. Foram anos marcantes. Tudo deslumbrava.
Depois, entre 1992 e 1994, fui gerente de programas de saúde nacionais da Igreja Católica com
temas como doenças infecciosas endêmicas, desenvolvimento humano e saúde, dentre outros.
Já no Brasil, participei, além das reflexões e discussões de Victor Valla e seu grupo, de projetos de
pesquisa e intervenção nas favelas cariocas. Ainda, articulando a Rede de Educação Popular, ajudei,
moderando debates pela internet, com cursos e participações em eventos. Na universidade, o que
pauta meu fazer é esse olhar da Educação Popular.
Regina Barbosa – Desenvolvi toda a minha atuação profissional e acadêmica na confluência da
Educação Popular com o campo de gênero e saúde, este originado no feminismo. Não casualmente,
são campos epistemológicos que, assim como a vertente marxista dialética, expressam os anseios
libertários dos segmentos explorados e oprimidos da sociedade.
Já ao ingressar na UFRJ, em 1986, participei de ricas experiências educativas na Unidade de
Saúde-Escola, situada na Maré, onde desenvolvíamos grupos de reflexão com as mulheres-usuárias,
mobilizávamos a população para participar da gestão da unidade, criávamos modelos terapêuticos
inovadores, como “consultas coletivas”, entre outras.
Posteriormente, juntamente com Karen Giffin (orientadora e parceira de trabalho), desenvolvemos e
implementamos um modelo de pesquisa-ação (PA) baseado em oficinas de reflexão de gênero, realizadas
em pequenos grupos e com participantes já sensibilizados para os temas propostos pela PA. Nessa proposta,
partimos de um processo de reflexão grupal em que os/as participantes compartilham e problematizam suas
experiências privadas, ou seja, as relações familiares e conjugais, a sexualidade, o corpo, etc.
Gradativamente, o processo reflexivo se amplia para outros âmbitos da vida social, ampliando a
consciência crítica sobre o mundo em que vivemos. Os/as participantes dos grupos geralmente são
“agentes sociais”, ou seja, pessoas que atuam profissional ou politicamente no campo temático da PA,
o que é fundamental para se assegurar os desdobramentos posteriores da proposta de ação, que será
elaborada por cada grupo.
Assim, as oficinas de reflexão de gênero geram um processo de (auto)reflexão que problematiza (e
nos problematiza!) a difícil e complexa sociedade em que vivemos, buscando compreender, a partir das
experiências do cotidiano, da subjetividade, do corpo e da saúde, como se produzem e reproduzem as
várias dimensões das desigualdades sociais, entre elas as de gênero.
Esse gradativo processo de estranhamento–desvelamento–compreensão ancora as estratégias de
ação que são, posteriormente, construídas nos/pelos grupos. Esse modelo de pesquisa-ação tem sido
implementado em diversos espaços, envolvendo variados sujeitos e temáticas de saúde que sempre
são relacionadas ao enfoque de gênero: mulheres do Complexo da Maré atuando na promoção da
saúde e dos direitos das mulheres; homens de vários segmentos sociais e profissionais engajados
na problematização das “masculinidades”, identificando suas interfaces com a saúde dos homens
e colaborando para a elaboração e implementação de um programa de saúde que considere suas
necessidades e anseios; jovens moradores da Maré refletindo sobre suas identidades sociais e de
gênero, sexualidade e saúde, contextualizando essas questões nos espaços de discriminação e violência
em que vivem e atuando com outros jovens para promover uma consciência crítica e engajada;
Aqueles momentos de formação e estudo, sempre ligados à realidade e à prática, fizeram com que eu fosse
gente, começasse a pensar e ser capaz de trabalhar solidariamente. A luta pelo posto de saúde da Vila São
Pedro não era apenas a luta pelo posto de saúde. Era garantir um direito. Era fazer com que o direito à saúde
fosse de todos. Era ligar a saúde coletiva aos cuidados com a vida das crianças, sua educação, era ter atenção
à saúde e saneamento básico, era pensar na comunidade, era querer mudar o mundo.
consciência popular, na luta por direitos, em melhorias na qualidade de vida do povo, historicamente
entrevista
sem voz nem vez.
Partir da realidade, dialogicidade, construção coletiva, princípios básicos da Educação Popular
freireana, mais os princípios da amorosidade e da emancipação dão consistência às políticas públicas,
garantem um sentido de transformação e mudança e formam povo e nação soberanos, com lideranças
capazes de escutar, capazes de entender a comunidade e atender às diferentes dimensões do ser humano.
Porque a Educação Popular é uma prática social presente nos diversos movimentos da sociedade.
Antes de se tornar direito adquirido, ela é uma prática social e cultural. O seu papel na
transformação significa a criação de uma nova ordem. Ela não é, portanto, um assunto exclusivamente
político e econômico. Implica também uma dimensão ética e cultual. A Educação Popular reconhece a
vida cotidiana e a experiência como espaços de construção de uma nova hegemonia ou nova maioria.
Ela valoriza a cultura popular como fonte de identidade e força de um projeto nacional popular.
Ivanilde Batista – Considero importante a integração dos coletivos de Educação Popular, a
participação e construção solidária das Tendas Paulo Freire em espaços de congressos, conferências e
outros eventos nacionais, estaduais e locais.
A articulação com a Rede de Educação Cidadã (Recid) amplia o leque de participação de outros
movimentos como: Comitê Goiano Contra a Privatização; Movimento das Mulheres Camponesas;
Pastoral da Terra; Fórum Goiano de Economia Solidária e Fórum Goiano de Saúde Mental e outros, que,
por meio de debates e discussões políticas, resultaram em alguns desafios como articular e mobilizar as
pessoas, em torno das discussões da saúde, valorização da cultura popular, saberes e práticas populares
de saúde, ampliar as parcerias pelo o fortalecimento das estratégias (ponto de união) entre e os
diversos movimentos sociais populares e atores sociais rurais e urbanos que possam se interessar pelo
tema da saúde.
Outro fator importante é o apoio político e financeiro do Ministério da Saúde, a construção do
Comitê de Nacional de Educação Popular e Saúde para a construção e na implementação da PNEPS.
No caso de Goiás, tem-se uma potência concreta que é a criação de vários núcleos livres (disciplinas
optativas) de Educação Popular e saúde no curso de Odontologia, Enfermagem e Educação,
especificamente na graduação em Pedagogia da Terra e mestrado profissional em saúde da UFG.
Paulette Cavalcanti – Acho que a Educação Popular, com seus princípios que eram muitos caros
para a gente, é que gerava os avanços reais. Por exemplo, na formação de cada grupo, tinha-se um
levantamento dos principais problemas da comunidade e se fazia um planejamento das lutas que
precisavam se travar nessas comunidades para defender a saúde. Então, podia ser uma passeata,
reivindicando que os ônibus respeitassem os direitos dos idosos à passagem gratuita, podia ser um sarau
onde cada um levava sua contribuição cultural, ou um movimento contra a violência contra as mulheres...
Acho que a EP muda a perspectiva de mundo das pessoas, que passam a se ver em um mundo que
podem transformar, com o qual não precisam simplesmente se conformar. E isso muda tudo. As pessoas
saem de casa, vão estudar, participar de conferências, do orçamento participativo, das associações. Mas
podem também ir à praia, ao teatro, ao cinema, a lugares que nunca tinham ido porque, apesar de
públicos, não eram vistos como delas.
A EP, em Recife, no contexto de uma Prefeitura popular, entendia que o compromisso era contribuir
na libertação das pessoas, na equidade de todas as formas. Podia ser que a gente tivesse sonhando,
muita gente achava esquisito fazer isso a partir do Estado, de um setor, de uma secretaria de saúde.
Mas vingou até hoje e deu um bocado de frutos. Eu acho que tiveram muitos resultados. Desde os
considerados mais concretos como de reduzir indicadores de saúde, como gravidez na adolescência,
vacinação de idosos, vacinação antirrábica animal... Até o próprio processo mesmo de participação.
Os idosos invadiram a conferência municipal da pessoa idosa, os jovens tomaram conta do
Orçamento Participativo da Juventude. E por aí afora. Saiu da saúde e foi para as políticas sociais,
da mulher, da juventude, da pessoa idosa... Acho que esse é o grande avanço, resultado real, a
possibilidade de organizar a população nessa perspectiva de luta pela saúde.
Então, a partir destas fortalezas e também desafios, o que precisa ser posto em reflexão e
entrevista
ação para que a EPS se capilarize cada vez mais nos serviços e práticas de saúde?
Julio Wong Un – O que falta? Muito. Avançamos muito em vários sentidos. Dentro da academia,
nos serviços, nas políticas de saúde, nos movimentos sociais e grupos comunitários. Hoje, não é mais
estranho ouvir ou falar de Educação Popular em Saúde. Dispositivos como tendas, teatros e comparsas,
terapias e formas de cuidado viraram “normais”. Entretanto, foram simplificados, superficializados,
muitas vezes, ou, pior, tergiversados ou distorcidos.
É urgente e preciso empreender processos de democratização verdadeira, quebrando a lógica dos
poderes do Estado e da política “como ela é”. Construir caminhos de criação e de relações isentas do
parasitismo político e social; e que questionem a vaidade embutida nos gestores, profissionais e em
muitos intelectuais da Saúde Coletiva.
Penso que ainda se pensa a Educação Popular como coisa simplória, espetáculo a favor de melhorar a
imagem de alguns políticos e gestores, forma de maquiar processos de exploração e de imposição de práticas
verticais e opressivas. Ou, ainda, formas de “distrair” as massas e diminuir conflitos e tensões sociais.
Assim, enquanto houver pessoas e grupos que lucram egoisticamente com formas de dizer da
EPS, com seus métodos, com suas tecnologias culturais, construídas em diversos grupos culturais, não
chegaremos a capilarizar, nem a participar de forma verdadeira na construção de modos mais humanos
de convívio social.
Selvino Heck – Dois elementos, entre outros tantos, parecem fundamentais, são passos urgentes
e necessários a serem dados. O primeiro: os movimentos sociais, as pastorais populares, as ONGs, em
suas diferentes expressões e espaços de atuação – saúde, economia solidária, direitos humanos, meio
ambiente, agricultura familiar, agroecologia, educação –, de forma articulada entre si, devem voltar a
fazer processos de formação massivos com base na Educação Popular, como acontecia nos anos 1970
e 1980 em especial. Esses processos de formação devem relacionar as práticas cotidianas e locais com
uma visão de mundo e com processos de formação globais. Devem ligar o micro com o macro. Devem
ser de base e permanentes. Devem alimentar a utopia e a esperança.
O segundo: a construção de uma política pública de Educação Popular. Nesse sentido, um passo foi
dado com a deliberação da 1ª Conferência de Educação, que reconheceu, em 2010, a importância da
Educação Popular como política pública no documento final, conforme o Eixo I – O Papel do Estado na
Garantia do Direito a uma Educação de Qualidade:
Considerando os processos de mobilização social nas últimas décadas, que visavam à construção da
educação popular cidadã, formação da cidadania e dos direitos humanos, o novo Plano Nacional de
Educação (PNE) deve articular a educação formal com experiências de educação não formal, ou seja, as
experiências de educação popular e cidadã, incorporando-as como políticas públicas.
Transformar a Educação Popular em política pública significa e requer o papel do governo com
mediações e passos necessários, sem que se retire a autonomia e a voz própria das organizações sociais
e populares: a construção dialética e descentralizada (sociedade/Estado) na formulação execução
e avaliação da política; pessoas como sujeitos e não objetos do processo; ruptura com as práticas
autoritárias (sociedade/Estado); disputa por hegemonia política e cultura na sociedade e no Estado para
efetivação da proposta.
Uma política pública de Educação Popular é o reconhecimento do Estado, tal como fez nos anos
1960, com Paulo Freire no governo federal, e nos anos 1980, com Paulo Freire como secretário
municipal em São Paulo, de que a Educação Popular tem um espaço de formulação como de articulação
presente em todas as políticas públicas e na construção de um projeto de desenvolvimento democrático
e popular e de uma sociedade justa e igualitária.
O exemplo do Comitê Nacional de Educação Popular em Saúde (CNEPS), instituindo uma Política
Nacional de Educação em Saúde, aprovada no Conselho Nacional de Saúde, a existência de um
Departamento de Educação Popular e Mobilização Cidadã na Secretaria Geral da Presidência da
República, que coordena uma Rede de Educação Cidadã, são exemplos e experiências de como
é possível capilarizar e tornar participativos os processos de Educação Popular. Exemplos a serem
seguidos, estimulados, reconhecidos, divulgados.
Ivanilde Batista - Para capilarizar a Educação Popular e Saúde (EPS), deve-se mudar a forma
de organizar políticas de gestão que não dão conta de toda de dimensão das necessidades reais da
população que tem o direito de ser atendida pelo SUS.
Para superar essa lacuna e fortalecer a EPS, seria importante fortalecer os conselhos de saúde, criar
ciclo de diálogo, análise políticas, ações e gestão participativas, no âmbito das estruturas institucionais
de governo, buscando um processo de democratização das relações. Assim, sensibilizar todos os níveis
da sociedade civil, desde as comunidades até os setores públicos e privados, esclarecendo importância
da participação popular no controle social das políticas públicas.
A Educação Popular propõe um processo de participação mediante o qual os interessados
protagonizam as ações educativas. Essa participação não é um processo uniforme. Pelo contrário,
abrange uma sequência de abordagens que vão desde a construção, divulgação de informação, a
colaboração, a coordenação, a consulta, a representação política até a pesquisa participativa.
É fundamental a participação dos movimentos sociais populares na formulação, implementação e
acompanhamento, pensando estratégias para a inclusão de grupos sociais em situação de exclusão
ou vulnerabilidades. Mas o processo democrático, em diversas situações, é construído localmente
e sabemos que ainda existem municípios e estados da federação que as concepções políticas são
conservadora, que a políticas de direitos ainda não avançaram e a Educação Popular em Saúde, por
mais que esteja institucionalizada, ainda demora um pouco pra chegar, mas é um estratégia de luta das
comunidades organizadas.
Penso que a Aneps, nesses dez anos, tem contribuído de forma efetiva na construção do SUS, no
fortalecimento da Educação Popular e Saúde e no avanço da participação popular no SUS.
Paulette Cavalcanti – Acho que tem de envolver a comunidade, de organizá-la para resolver
problemas que realmente necessitem, que podem ser ações de cuidado, mas que tem de incluir o
conceito ampliado de saúde e gerar lutas por direitos. Hoje, acho que os grupos de Aesa, Iesa e Esam,
HES, em si, são práticas de cuidado. Só que entendemos que isso vem junto com a luta política, com
a perspectiva de que saúde não existe sem habitação, trabalho, cultura, lazer, educação, transporte,
coisas básicas as quais sustentam a vida.
Para isso, tem que se discutir a opressão, a diferença entre as classes, a exploração, a sociedade
exploradora. Pode-se fazer isso junto com religião, com gestão, com automassagem, com as
benzedeiras, parteiras, com as professoras do ensino fundamental, com agentes de saúde, com
médicos. Mas se não discutir isso, para mim, não é Educação Popular. Porque não tem a perspectiva de
libertar e transformar. Eu não posso me conformar porque a minha dor passou. Preciso saber o porquê
da dor, minha e do outro, e discutir como se pára com isso.
Também são necessários momentos de formação, conversas em roda, envolvimento dos
profissionais e serviços de saúde com as pessoas da comunidade, e vice-versa. É preciso ter um
compromisso ético-político com uma sociedade sem exploração, sem opressão.
Outra coisa muito importante, que fizemos no Aesa/Iesa, é trazer, para a coordenação, o próprio
usuário. Descentralizar o poder de verdade. Montamos uma que não era só profissional e gestor, muito
menos só gestor. Reuníamos, cada mês numa comunidade diferente, com os representantes, com os
adolescentes, idosos, mulheres e ACSs representando cada grupo. Era uma coordenação colegiada,
onde o usuário realmente definia: esse mês a gente vai fazer isso, aquilo... e a gestão implementava. E
isso gerava uma unidade entre os grupos, trocando também experiências.
As Mostras de Arte e Educação em Saúde, a inclusão da EP no curso de formação técnica em ACS, a
participação no OP, nas conferências e até mesmo, depois, nos congressos da Abrasco e nos encontros
nacionais de EPS eram discutidos nessa coordenação colegiada. E respeitados. Não adianta discutir e
não implementar como hoje é feito nos conselhos de saúde.
Regina Barbosa – Este é um debate complexo e as respostas às questões acima envolvem várias
entrevista
dimensões de análise, da política e do papel do Estado aos conflitos urbanos e rurais. Em primeiro
lugar, há de se considerar que existem realidades distintas e diversas pelo país afora, marcadas por
conjunturas políticas locais que propiciam diferentes espaços de atuação. Penso que a EPS, de muitas
formas, entrelaça-se a esses contextos e conjunturas e com eles interage, fortalecendo-se ou, ao
contrário, fragilizando-se.
Mestre Paulo Freire nos ensinava que o trabalho pedagógico, na perspectiva da Educação Popular,
requer, em primeiro lugar, um profundo compromisso com a justiça social. Este é, sem dúvida, o
primeiro passo, mas não suficiente. A meu ver, temos enfrentado grandes desafios e dificuldades para a
efetivação de uma política de EPS, sendo um dos mais importantes e graves o processo de privatização
da saúde pública em curso, que, entre outras consequências, fragiliza o vínculo de trabalho dos
profissionais de saúde e, como decorrência, seu envolvimento e compromisso com a população.
Assim, é fundamental uma política de Estado que assegure o Sistema Único de Saúde com
financiamento público e vínculo de trabalho estável, de forma a viabilizar a consolidação, a
continuidade e a ampliação das políticas de saúde, inclusive a de Educação e Saúde.
A capilaridade da atuação só pode ser garantida, a meu ver, nessa perspectiva. Na Estratégia Saúde
da Família do Rio de Janeiro, por exemplo, temos acompanhado esforços e investimentos em trabalhos
educativos comprometidos com a EPS que, em função da precariedade e instabilidade dos vínculos
profissionais, são descontinuados. Além do mais, a escalada de violência nos espaços populares da
cidade e a efetiva ameaça de poderes armados compromete a atuação dos profissionais e educadores.
Recentemente, foi denunciado, na imprensa carioca, a invasão policial na residência de dois jovens
fotógrafos, moradores e militantes dos movimentos sociais do Complexo da Maré, destruindo inclusive
seus instrumentos de trabalho. Esse tipo de situação faz parte do cotidiano do Rio de Janeiro e,
banalizado, raramente ganha as páginas dos jornais.
Como podem os profissionais de saúde e educadores se solidarizarem com a população diante
desses graves acontecimentos sem comprometer suas vidas? Essas são, certamente, barreiras reais e
graves para uma maior participação da população em espaços educativos, especialmente aqueles de
caráter crítico e questionador.
Por fim, não poderia deixar de lembrar que o ideário da Educação Popular aponta para um “outro
mundo possível” e penso que não podemos perder essa utopia de nosso horizonte. Apesar de estarmos
vivendo um momento histórico particularmente difícil e desagregador, inclusive dos movimentos sociais,
creio ser nossa tarefa alimentar, nos espaços em que atuamos, a esperança e a crença em uma sociedade
baseada na justiça social e na fraternidade. Esse foi o principal legado que Paulo Freire nos deixou.
David HMSL, Batista IV, Um JAW, Cavalcanti P, Barbosa RHS, Heck S. Procesos de
formación y producción de conocimiento: cinco miradas sobre la Educación Popular en
Salud. Interface (Botucatu). 2014;18 Supl 2:1579-1590.
En esta edición, presentamos a cinco entrevistados con historias de origen y trayectos
diferentes y praxis gira alrededor de los principios de la Educación Popular en Salud.
Son: Selvino Heck, actual asesor especial de la Secretaría General de la Presidencia de la
República, director del Departamento de Educación Popular y Movilización de la Secretaría
Nacional de Articulación de la Secretaría General y secretario ejecutivo de la Comisión
Nacional de Agroecología y Producción Orgánica; Regina Helena Simões Barbosa,
profesora e investigadora del Instituto de Estudios de Salud Colectiva de la Universidad
del Estado de Río de Janeiro; Ivanilde Batista, funcionaria de la Secretaría de Estado de
Salud de Goiás, fundadora y militante de Aneps-GO; Paulette Cavalcanti, profesora
e investigadora de la Fundación Oswaldo Cruz en Pernambuco; y Julio Alberto Wong
Un, profesor e investigador del Instituto de Salud Colectiva de la Universidad Federal
Fluminense.
Palabras clave: Educación Popular en Salud. Movilización social. Participación popular.