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Da palavra do outro como palavra de si: reformas. reformas. reformas.

notas para um estudo das semioses ex-apropriadoras da linguagem

“Porque não há propriedade natural da


língua, esta não dá lugar senão à raiva
apropriadora, ao ciúme sem apropriação. A
língua fala este ciúme, a língua não é senão
ciúme à solta. Desforra-se no coração da lei.
Da lei que ela mesma é, aliás, a língua, e
doida. Doida por si mesma. Doida varrida”
Jacques Derrida, O monolinguismo do outro

Exercício: animar o texto com as forças de desidentificação do qual tenta falar o


mesmo texto. Desapropriar a palavra própria enquanto ferramenta de tensão e movimento a
esse monolito que é o projeto de pesquisa, ainda tão vago, mapa de um território por
inventar.
Aqui, retomam-se fragmentos desse projeto, cindidos de seus contextos, como o texto
estrelado no qual insistia Roland Barthes1, para que os reenunciemos em outro tom e a eles
renunciemos para adotar outra voz. Dito e desdito, a constraposição visa, enfim, materializar
os processos de mudança que já se infiltram pela perspectiva tão cuidadosamente construída
– muito limpa, muito direta – até aqui. Em brincadeira aos “Roteiros. Roteiros. Roteiros.
Roteiros. Roteiros.” do Manifesto Antropófago2, nossas reformas multiplicadas.
Apresentamos assim o projeto não como produto ou prontidão, guia para responder
perguntas já esclarecidas, mas bem, em uma brincadeira etimológica, a base instável que
projeta linhas de dúvida ao futuro, projéteis que encontrarão não se sabe ainda quais alvos.
Linhas a serem perturbadas de saída, antes de fixarem seus rumos.

...se o termo lembra mais uma tipologia criminal ou alerta em guias de ética...

Um nó que se mostra firme nesse processo de concretização do projeto, o amarrando


em correias muito firmes, é o nó do plágio como questão legal. Se, como já aludimos aqui, a
proposição do termo “plágio” deve-se a um esforço provocativo, afastamos de saída o caráter
moral/legal das práticas de apropriação linguageira, como se pouco fossem diante do ímpeto

1
BARTHES, Roland. S/Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
2
ANDRADE, Oswald. Obras completas: Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
de proposição de um ponto de vista singular. Ainda sim, parece temerário ignorar essa
dimensão, no que tinge o uso do termo e leva a indagações imediatas sobre qual posição
teríamos diante de leituras e interlocuções que aí insistissem – um de nossos pontos de
partida é, afinal, a multitude de palavras que há numa só palavra, condição que veda qualquer
domínio regulatório àquele que a enuncia. Como querer investigar a fluidez da Comunicação
a partir do conceito-plágio, vedando à palavra-plágio o fluxo semântico constitutivo à tal
fluidez?
Mas ainda não nos parece o caso de voltar a pesquisa a esse sentido constitucional,
direcionando a tese para análises legais, interrogações sobre legislação, esboços de Direito
Comparado. Derivação não desprezível para uma investigação de ciências sociais aplicadas,
como é nosso escopo: pense-se imediatamente nos exaustivos estudos foucaultianos das
formas jurídicas como modos de regulação do visível e do enunciável3. (Fragmento de uma
provocação fugaz: poderíamos pensar a tipificação criminal do plágio como parte do
dispositivo de ocultamento desse plural dos textos?). Não desprezíveis, mas alheias a nossas
intenções, à ordem e a temporalidade da pesquisa que exige uma organização dos caminhos
possíveis. Deslocar então, recusando dar uma ordem – caminho unívoco de leitura –
impossível. Fugir, saber perder o plágio como norte.
Não no centro do palco, mas ainda em cena: grande parte dos esforços da escrita desse
projeto se deu no sentido de destacar o plágio como uma atividade semiótica particular, não
devendo ser confundida com outras modalidades de apropriação da língua mais correntes nos
estudos de Comunicação, entre os itens da vasta tipologia palimpséstica de Gérard Genette 4 e
as noções recentes de mash-up e remix5. Essa distinção parece importante de ser mantida, no
que destaca especificidades semióticas de distintas práticas – importância do trabalho a uma
zona cinzenta de estudos sobre a cópia e a apropriação, muitas vezes impulsionados por um
elogio à termos abstratos e de uma curiosa alegria, como “criatividade” ou “liberdade” (como
apontamos já naquela projeto, a partir da remixologia crítica de David Gunkel6).

3
Nos termos desse cruzamento jurídico, é possível apontar também uma série de trabalhos de Alexandre Nodari
sobre a noção de Direito Antropofágico, interessados em discutir o tema da “posse contra a propriedade” não só
em termos especulativos, mas aliado a um estudo dos mecanismos legais aí embricados. Cf. NODARI,
Alexandre. “a posse contra a propriedade": pedra de toque do Direito Antropofágico. Dissertação (Mestrado
em Literatura). Florianópolis: UFSC, 2007.
4
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
5
NAVAS, Eduardo. Remix Theory: the aesthetics of sampling. Nova York: Springer Wien,
2012.
6
GUNKEL, David J. Of Remixology: ethics and aesthetics after remix. Cambridge: MIT Press,
2016.
Um desvio primeiro, mas um desvio essencial, que reconfigura o tabuleiro. Devemos
assim, descentrar o foco no plágio, para inscrevê-lo em uma genealogia dos diversos modos
de reenunciação textual já observados em experiências concretas e conceituais, aqui reunidos
e lidos como rastros de uma condição arquiescritural da língua. Nesse deslocamento –
antevisto pela referência à gramatologia do remix e à arquiescritura – o plágio, enquanto
ponta de lança da pesquisa, dá lugar a noção de ex-apropriação da língua articulado por
Jacques Derrida nas reflexões de O monolinguismo do outro7.
Em meio a rememoração de seu aprendizado do francês na Argélia, Derrida constrói
aí uma longa reflexão sobre a questão da (in)propriedade da língua, girando ao redor de dois
postulados simultâneos: “Não falo senão uma única língua, que não é minha” e “Não se fala
nunca apenas uma única língua”. Um jogo tensivo e paradoxal, que torna indecidível a
questão de um lugar da enunciação: campo amplificado de provocações às nossas tão iniciais
hipóteses. Na lógica de dupla sessão derridiana, a questão da reapropriação discursiva deve
ter em vista que o que enuncio não é meu, mas também já é do outro; mas é minha
fala/escritura, ao mesmo tempo que ainda pertence às diferentes vozes que me precederam
(mas cuja condição antepassada, é preciso lembrar, não marca uma origem). O ato plagiário –
bem como a citação palimpséstica ou a remissão dialógica, cada qual a seu modo – é rastro de
tal processo; inscreve o processo e nele é inscrito.
(Necessário demarcar que as colocações de Derrida nesse texto dizem respeito, de
forma mais explícita, à questão das línguas nacionais, como o francês, o árabe e o iídiche – e
nossos problemas e hipóteses partem de um campo mais específico, da enunciação e da
comunicação já recortada contra esse plano. Não propomos aqui um investimento em uma
translinguística comparativa, mas as ideias de monolinguismo do outro também dizem
respeito às modulações da arquiescritura nas falas “individualizadas” – que não são, nunca,
de fato individuais)

...até que medida nossos pronunciamentos seriam nossos, e até onde seria possível traçar
o quanto da glossolalia do ambiente eles capturam e “re-enunciam”...
Demarcação das distâncias que emergem da contaminação do novo ponto de vista: o
trecho acima, importante ao desenvolvimento primeiro da proposta, caduca à luz da noção
renovada de escritura depreendida do debate sobre o monolinguismo do outro. Até que
medida nossos pronunciamentos seriam nossos: afirmação que modelou os anseios inscritos

7
DERRIDA, Jacques. O monolinguismo do outro. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2016.
no projeto inicial, encapsulando o cerne das dúvidas e guiando a escrita. Afirmação que,
diante dessa outra escritura, se desfaz. Toda a língua vem do outro, mesmo que a ele mesmo
não pertença: a concepção da monolinguagem derridiana dissolve as noções de próprio e de
alheio.
À socorro dessas reformas, também o ensaio Assinatura, acontecimento, contexto, de
Derrida8, que formula a condição de iterabilidade da escritura: o signo independeria da
existência de um destinatário, bem como de uma consciência a produzi-lo, sendo assim
infinitamente repetível e legível. Tal condição estrutural (e Derrida fala aí abertamente da
escrita como estruturação) é a iterabilidade, capacidade de disseminação dos grafemas, nunca
esgotáveis no momento de sua inscrição. Assim, a ideia de uma fala de outro que eu venho a
assumir se dissipa, em favor da noção de um enunciado sem dono, nômade de boca a boca e
de caneta a caneta, infinitamente repetível, infinitamente legível (ainda que os sentidos das
leituras possam variar a cada posição assumida pelo signo em sua deriva). Não à toa, esse
ensaio marca as referências mais diretas de Derrida ao conceito de Comunicação, não mais
compreensível enquanto transmissão de sentido – questão para o desenvolvimento desta tese,
em seu âmbito disciplinar-institucional.
A iterabilidade seria a própria condição de existência da escrita, que daria vazão, no
circuito das trocas comunicacionais, aos processos de ex-apropriação. Esse esquema, mesmo
que ainda muito simplista, já parece indicar uma estruturação outra a pesquisa, levando a uma
nova – para retormamos uma imagem do projeto – agrimensura do campo de atuação da tese.
Uma investigação teórico-conceitual (De quais modos se lidou com a iterabilidade da
linguagem? A seus modos, o dialogismo, a Teoria do Texto e o plágio parecem tentar
responder a isso: mas com quais diferenças? Como a Comunicação, conforme constituída,
abordou tal questão?); mas também concreta (Que estratégias de escritura se originam dessa
perspectiva ex-apropriadora? Quais suas implicações?); ambas, indivisíveis.

...reforçar a pertinência e premência de uma discussão sobre os locais de fala e seus


modelos de significação…
Forçosa revisão: pelas reformas e também pelo retorno àquele texto, revelando certo
emaranhamento de ideias e teorias. Nossa dificuldade primeira derivou mesmo da grande
aposta na centralidade do conceito de plágio; ideia pouco explorada em suas nuances
semiótica, como se viu, que convocou a definição de teorias sobre a linguagem mais

8
DERRIDA, Jacques. Limited Inc. Campinas: Papirus, 1991.
estabelecidas. O dialogismo bakhtiniano, a Teoria do Texto de Kristeva e Barthes, a
pragmática de Deleuze e Guattari: não subsumíveis uma a outra, e nem elas próprias
diretamente ligadas ao problema da disseminação discursivas. Agora, tendo a questão da ex-
apropriação e das vibrações iteráveis dos discursos como eixo regulador, a abarcar o
fenômeno que queríamos como plagiário, é possível voltar e apontar melhor as distinções de
tal trajeto – que ainda nos é pertinente, nem que seja como um processo de diferenciação a
marcar a distância desses nossos centros de interesse.
O que o passeio pelas distantes paisagens do Magreb franco-árabe de O
monolinguismo do outro ou pelos campi norte-americanos de Assinatura, acontecimento,
contexto9 nos provoca enquanto mudança, é uma diferenciação, uma maior especificidade ao
entender, em simultâneo, o que tais teorias teriam a nos dizer sobre a ex-apropriação, e quais
seus limites.
Para Bakhtin10, por exemplo, em suas proposições de um marxismo da linguagem, a
repetição de certas palavras11 produzia disputas de sentido pelo caráter ideológico da
linguagem, bem como pela relação de não coincidência entre classe social e classe
linguística: patrão e empregado tem de usar os mesmo signos, ainda que para cada um deles
estes possuam sentidos díspares. Geração de uma disputa latente às palavras, portadoras dos
mais diversos significados, sulcados pelo seus diferentes usos & reusos.
Essa perspectiva de “escolhas de uso” (ainda que isso seja uma simplificação
caricatural dos argumentos bakhtinianos, longe de qualquer psicologização), a Teoria do
Texto e a pragmática já faziam avançar, ao apontarem que essa distância entre sentidos
possíveis a um texto é da ordem de uma estruturalidade da própria linguagem, e efetivamente
opera como ordem; a professora não dá instrumentos, mas comandos12. Há, com frequência, a
imposição de um sentido único, destinado a obscurecer os outros – que, apesar disso,
permanecem em latência (nos parece simbólico que o texto de Deleuze e Guattari sobre a
palavra de ordem se inicie por uma descrição desses processos de estruturação da linguagem

9
O texto foi proferido enquanto conferência em Montreal, e se desenvolve, parcialmente, enquanto reflexão
acerca dos trabalhos de J. L. Austin sobre os atos de fala – por sua vez, apresentados em ciclos de palestras em
Harvard.
10
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2006.
11
Aí há o caminho de outro deslocamento decisivo: Bakhtin ainda segue certa lógica de uma linguística mais
tradicional e toma a palavra como unidade mínima da análise. Já suas apropriações pela vaga estruturalista
deslocariam essa atomicidade da reflexão semiótica para o Texto – novo objeto que chegou a nomear mesmo
essa vertente teórica desencadeada por Kristeva. No projeto, tais perspectivas se misturavam ainda – aqui,
devem se apartar. Aqui, com Derrida, seguimos o desvio e nos interessa a o Texto da escritura.
12
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34,
1995. v. 2.
por comandos, para logo em seguida destacar artistas que fazem “gaguejar” essa língua
endurecida, linhas de contra-ordem).
Revisando tais visadas, a nossa reforma se afasta dessa ideias de um campo de
disputas em torno do sentido; que se coloca em jogo para a análise seria uma condição
arquiescritural que propele tal linguagem em tantas direções e situações variadas. Isso que
nominamos de uma glossolalia a nosso redor, não se poderia ler sob a noção de uma
polissemia: alerta já dado, é preciso atentar, pela Teoria do Texto, e já aludido por nós em
nosso projeto (“...mais ainda, faz-se necessário precisar que a polifonia, nessas
circunstâncias, apresenta-se menos como polissemia do que enquanto ‘polilexia’...). Mais
marcado ainda pela concepção da iterabilidade: não se poderia falar dessa convivência de
sentidos como condição polissêmica, que diferenciaria expressões e palavras com “mais”
sentidos do que outras (e denuncia também da insistência metafísica na ideia de significado).
Em contraposição a isso, a ideia da disseminação, esse “operador de generalidade”13. Sob tal
ótica, essa espécie de deriva semântica usualmente entendida pela nomenclatura polissêmica
é menos um fenômeno consequencial do uso social da linguagem (como por vezes apareceria
a Bakhtin, ou mesmo a Barthes), mas mesmo a condição de possibilidade de toda e qualquer
escritura. O que se dissemina se ex-apropriará a dado momento.
Daí a volta ao trecho negritado que acima estes parágrafos: se não há uma polissemia,
e se não podemos pensar essa disseminação de sentido nos termos de classe ou afins, como
falar ainda em lugares de fala (quanto menos ainda de modelos de significação)?

...recolocar sua discursividade em um contexto político, de disputa dos usos e sentidos


da palavra alheia…
Essa menção aos locais de fala presente naquele projeto, cada vez mais distante ao
evocarmos assim sua presença, anunciava timidamente uma vontade de inscrever a tese e
suas conversas em um terreno de debate político (algo sibilante já nas leituras de Kenneth
Goldsmith14, mas demarcado pelo Critical Art Ensemble15).
Aqui, de novo, em um trecho que admite de rosto mais limpo tais intenções políticas,
aquela referência a uma disputa de usos e sentidos da palavra. Como vimos, não nos é mais
adequado tratar as coisas nesses termos, desconstruídas tanto as noções de disputa, de uso, de

13
DERRIDA, Jacques. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 51.
14
GOLDSMITH, Kenneth. Uncreative writing: managing language in the digital age. Nova York: Columbia
University Press, 2011. Edição digital para Kindle.
15
CRITICAL ART ENSEMBLE. Distúrbio eletrônico. São Paulo: Editora Subta, s.d.
sentido e mesmo de palavra como operadores analíticos. As solicitações materiais que nos
levaram a formulação de tal enunciado permanecem, porém.
Pensemos três situações bastante claras daquilo a que chamaríamos disputa
apropriativa da linguagem, que demonstram os termos fortemente políticos de tal debate:
a) A própria revelação derridiana de sua infância argelina, e a condição de interdição ao
árabe, com o ensino exclusivo de francês nas escolas.
b) Com base em um poema de Adrienne Rich16, a teórica feminista negra bell hooks17
retoma o tema da escravidão nos EUA, sobretudo a questão da chegada dos
expatriados africanos no continente americano. Capturados nas mais diferentes
regiões e originários das mais diferentes tribos, separados e reunidos por questões
logísticas de compra & venda, os escravos se encontravam qual falando uma diferente
língua ou dialeto. A saída, seja para a organização das tarefas das quais sua
sobrevivência dependia, seja para fins de confabulação e revolta, era aprender e tomar
o inglês dos senhores como língua franca. Há nos versos ““Esta é a língua do opressor
/ no entanto eu preciso dela para falar com você”, de Rich, ecos da memória de tal
apropriação.
c) Filha de mexicanos, nascida e vivida nos limites do Texas, Gloria Anzaldúa escreve
em Borderlands/La frontera18 um monumento às contradições do monolinguismo.
Relato das experiências fronteiriças (e a linguagem não é senão uma zona de margem,
para Derrida), escrito em uma mistura de inglês e espanhol, refletindo sobre a
impossibilidade de uma pureza. Não há uma restituição, de retorno ao espanhol da
família; nem a chance de uma total apropriação do inglês, nunca propriamente seu,
ainda que tenta se impor como linguagem primeira – ideias que marcam sobretudo o
capítulo chamado Como domar uma língua selvagem.
Os casos descritos por Derrida, hooks e Anzaldúa remetem a imposição – e posterior
apropriação – de uma língua nacional, com todo o sistema cultural-político aí acarretado. De
nossa parte, tais reflexões auxiliam a pensar na dinâmica semiótica de poder e contra-poder
linguístico, e como demonstram uma instabilidade da noção de lugar de fala. Não há
propriamente disputas, mas um jogo entre posições de enunciação. O que expressávamos no
projeto como um trabalho da linguagem, exercido pela atividade, plagiária seriam mesmo
tais circunvoluções que levam ao limite a condição de legibilidade desses discursos
16
RICH, Adrienne. The will to change: poems 1968–1970. Nova York: W.W. Norton & Co., 1971.
17
HOOKS, bell. Teaching new worlds, new words. In: Teaching to transgress: education as practice of
freedom. Nova York: Routledge, 1994. p. 167-175.
18
ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1987.
“maiores” – como se vê de forma quase paradigmática no spanglish selvagem de Anzaldúa,
ou no seguimento da exposição de hooks, que lembra que, com o tempo, o uso negro do
inglês erege uma espécie de sublinguagem própria, com suas ressonância estético-políticas19.
É mesmo a manipulação do conceito de ex-apropriação que leva a uma
complexificação no entendimento dessa ordem de acontecimentos, para além de uma
desgastada dicotomia entre “enunciado original imperialista” e “apropriação plagiária
revolucionária”, maniqueísmo que espreita a bibliografia usada até aqui para tratar desses
citações. O trânsito da linguagem pode seguir uma lógica colonial, como se viu nos casos
acima descritos. Já Derrida dedica um longo trecho à exposição de tal dinâmica. Exposição,
mas desmontagem: para ele, o amo e senhor nunca é dono da linguagem, ainda que possa, por
meio de “construções político-fantasmáticas” e seus “speech acts”20, se apresentar como tal.
Esse é, para Derrida, um primeiro round. Apenas o primeiro: ao que se segue,
necessariamente, o movimento de revolta, operado pela interiorização dessa herança: uso da
linguagem como dada pelo amo, contra o amo.
Mas não haveria, jamais, apropriação ou reapropriação absolutas. A língua não é do
senhor, nem se torna do servo: é essa a mudança decisiva do suplemento e do traço do termo
ex-apropriação, modo de radicalizar a compressão da volatilidade disso que tratávamos como
uma “glossolalia ambiental”. Se de absoluto se pode falar, é da existência de uma Lei para a
língua; mas não a Lei de um mestre ou a Contra-Lei do rebelde, mas a própria língua como
Lei. É preciso sempre dizer, não nos esqueçamos desse fascismo pervasivo da linguagem21: é
eles que se depreende desses casos em questão. Aos escravos é necessário conversar, à
imigrante é necessário escrever. Que essa necessidades-injunções tenham que se dar pela
lógica da ex-apropriação demonstra a potencialidade dessa visada para atacar uma
problemática candente a nossos espaços, seja o campo da Comunicação, a disciplina
semiótica ou às experimentações com o pensamento micropolítico e acontecimental.
Agora, se até aqui falamos das línguas nacionais, e a ex-apropriação enunciativa,
como aquelas de Goldsmith, que haviamos trazido anteriormente? É justo aí que os casos
concretos fazem emergir a importância de tal perspectiva para a discussão de uma ética ex-
apropriativa22. Se ouvimos ecos de um debate marcado na esfera pública da teoria nacional,

19
A esse fenômeno – chamado de black english – também se referem Deleuze e Guattari em Mil platôs,
derivando os estudos sociolinguísticos de William Labov.
20
DERRIDA, Jacques. O monolinguismo do outro. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2016. p. 50.
21
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2013.
22
Que é, forçosamente, a destinação do debate ex-apropriativo, para o próprio Derrida: “[...] lembremos, a
propósito, que este discurso acerca da ex-apropriação da língua, mais precisamente da ‘marca’, abre para uma
centrado sobretudo nas aporias do lugar de fala (pensemos nas posições de Djamila Ribeiro23,
e seu contraexemplo nas polêmicas de Francisco Bosco24, ou, ainda, a provocação midiática
de Antonio Engelke25), a retirada dos termos de próprio e alheio dessa discussão parece
oferecer potências outras para se pensar tais problemas, deslocando o centro dos argumentos
de um direito de quem pode falar – que marca, sobretudo, as tentativas de refutação do lugar
de fala, como vistas em Bosco e Engelke – para uma tentativa de compreensão das
ressonâncias semióticas das diversas circunstâncias de escritura ex-apropriativa. Todos
podem comunicar tudo, roubando a linguagem de onde ou de quem quer que seja; mas se
essa comunicação não pode mais ser compreendida como mero veículo de uma informação
cândida, é preciso indagar como ela se reinscreve na linguagem (na arqui-escritura) e o que
passa a disseminar.
Vejamos um esboço dessa possibilidade investigativa diante de um brevíssimo
experimento de justaposição crítica, na insurgência de um quarto caso de ex-apropriação:
d) Sob os holofotes prestigiados da Universidade de Brown, Kenneth Goldsmith,
recortado contra uma enorme projeção da foto de um jovem negro, lê um novo poema
de rearranjo textual. “O corpo de Michael Brown” traz, palavra a palavra – mas com
inversões na ordem descritiva – o relatório de autópsia de Michael, o jovem da foto-
fantasma, morto em um caso de brutalidade policial semanas antes, em 201526. Se os
plágios de Goldsmith costumam ser entendidos como jogos com o cotidiano – como
no caso de Soliloquy ou Traffic, referidos em nosso projeto passado –, essa
intervenção foi recebida de forma furiosa, sob acusações de apropriação cultural e
racismo, gerando um questionamento da validade, tanto artística quanto política, do
projeto da escrita não-criativa.
Mas como lidar com isso? Qual a distância desse ato de ex-apropriação para os outros
praticados por Goldsmith? Não foi pego um texto institucional, “do poder” – o relatório
médico – e transformado, pela força de sua própria escritura, em um manifesto de luto e luta?
Por outro lado, também não é desprezível o simbolismo da manutenção dos papéis de senhor

política, para um direito e para uma ética”. DERRIDA, Jacques. O monolinguismo do outro. Belo Horizonte:
Chão da Feira, 2016. p. 51.
23
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. São Paulo: Letramento, 2017.
24
BOSCO, Francisco. A vítima tem sempre razão?: lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro. São
Paulo: Todavia, 2017.
25
ENGELKE, Antonio. Pureza e Poder. piauí, São Paulo, n. 132, set. 2017. Disponível em:
<http://piaui.folha.uol.com.br/materia/pureza-e-poder/>.
26
THE NEW YORKER. Something borrowed: Kenneth Goldsmith’s poetry elevates copying to an art, but did
he go too far?. Nova York, out. 2015. Disponível em:
<https://www.newyorker.com/magazine/2015/10/05/something-borrowed-wilkinson>.
e servo, entre o branco que fala e o negro objeto – como se tal ex-apropriação não chegasse
aquele segundo round da rebeldia linguística. Mas deveria Goldsmith se vedar a falar por
outro? Se a iterabilidade tem sempre a ver com outro – itara, origem semânica do termo,
lembra Derrrida, é outro em sânscrito? Seria um caso de leitura das circunstâncias, não
apenas do texto e do ato? Seria possível falar em contexto aí – contexto que Derrida recusa
pela sua fragilidade enquanto conceito para se pensar os atos de comunicação27?
Não performativas para fins de exposição – como o são muitas das interrogações que
o autor destas linhas escreve –, essas dúvidas tem nos atravessado nesse período de
reconfiguração, pela sua presença no contemporâneo e por sua interface com os campos da
Cultura e da Comunicação, no qual nos inserimos. Uma revisão das teorias de lugar de fala,
aliada ao estudo da ex-apropriação, parece um passo necessário à organização do trabalho aí
em diante, no que é central a uma proposta que se quer política, e também porque elas
parecem ajudar a desmontar certos pressupostos cristalizados da conceituação da apropriação
linguageira da qual lançavamos mão (sem poder esquecer que longe de ser um mestiço
fronteiriço, como alguns dos ex-apropriadores aludidos, aquele que inscreve essas perguntas
aqui neste plano de reforma está mais para o lugar de enunciação do amo, homem-branco-
metropolitano).

***

Abertas as veias dessas dúvidas, incentivadas pelo giro de nossa perspectiva, o que
resta são mesmo os restos do texto passado, e o palimpsesto deste texto presente sobre
aquele. O que tentamos aqui foi um rascunho, esboço de alguns primeiros movimentos de
desapropriação e reapropriação do trabalho, derivado de certas leituras, ainda um tanto
incompletas (ainda há tanto Derrida por diante, e mesmo uma volta à Teoria do Texto – com
a qual ele manteve tantos intercâmbios, mal disfarçados28), ainda pouco esquematizadas.
Escrito de aprendizagem, também, no teste do alcance heurístico dessas proposições cuja
inscrição tanto encantou (e auxiliou na revitalização de um olhar já cansado daquela proposta
– pois, talvez, ainda cansado de seu trabalho anterior).

27
DERRIDA, Jacques. Limited Inc. Campinas: Papirus, 1991. p. 20.
28
A ligação com o pensamento de Barthes, a exemplo, é lida de forma central em um dos ensaios de
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Com Roland Barthes. São Paulo: Martins Fontes, 2012. E, mais: admitida pelo
próprio em DERRIDA, Jacques. As mortes de Roland Barthes. RBSE – Revista. Brasileira de Sociologia da
Emoção, v. 7, n. 20, 2008.
Em um último movimento, a imaginação de um porvir, na tentativa de reorganizar o
fluxo caótico das últimas páginas, na antevisão de alguns caminhos para o trabalho a partir
deste bota-abaixo:

Nos parece necessária uma exploração teórica inicial, que expanda os apontamentos
feitos até aqui sobre as as noções de escritura, ex-apropriação e iterabilidade, sob o signo de
Derrida; capaz de voltar (e descentrar) os marcos teóricos que nos guiaram anteriormente
para perceber não só a permanência na cultura do problema da volatilidade da linguagem,
bem como os diferentes modos que a semiótica e certas teorias ligadas à Comunicação
lidaram com ele. (Essa relação com a Comunicação parece também válida de maior
dedicação: há, por exemplo, fortes deslocamentos em relação ao próprio conceito de
Comunicação, motivados pela colocação em cena da iterabilidade, em Assinatura,
acontecimento, contexto – material que ainda não tivemos tempo ou força de deglutir)
Permanência a ser vista também por uma revisão e, talvez, tipologização das diversas
respostas escriturais, esse bestiário de práticas as quais viemos aludindo, dos palimpsestos
aos remixes – e mesmo a tradução29. E também o plágio, sim, que retorna não objeto-teoria
central, como se apresentava, mas enquanto um acontecimento singular, passível de
demonstrar dinâmicas significantes particulares.
E então o problema demonstrativo: o corpus erigido na fase projecional não parece
mais corresponder ao desafio. Os casos limítrofes de plágio – os trabalhos de Goldsmith ou
de Valêncio Xavier30 apresentados – são interessantes como demonstração, pontos de ruptura
que auxiliam a compreender a radicalidade da condição iterável de toda e qualquer escrita.
Parecem limitados, porém, para tratar de um campo de problemas que se esgarça feito um
amplo horizonte, logo que deixamos o porto seguro de uma investigação do plágio como
dispositivo, entendido por meio de manifestações estéticas e artísticas. De instante, soa mais
produtiva a exposição de alguns casos de enunciação ex-apropriativa que possam convocar
determinados aspectos específicos da base teórica a ser desenvolvida – o poema-autópsia de
Goldsmith, por exemplo, poderia constituir ponto de partida a uma análise sobre os
paradoxos do lugar de fala diante do paradigma da iterabilidade (ou ainda: dos paradigmas da

29
A questão da tradução marca também as reflexões linguageiras de Derrida – e conecta-se de forma decisiva às
reflexões de (não) pertença presentes em O monolinguismo do outro, como demonstra Rafael Haddock-Lobo.
Cf. HADDOCK-LOBO, Rafael. Escrituras de Babel: língua e tradução em Jacques Derrida. Aproximação, Rio
de Janeiro, v. 2, n. 2, 2009. Disponível:
<https://revistaaproximacao.files.wordpress.com/2015/04/2009021.pdf>.
30
XAVIER, Valêncio. O mez da grippe e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
iterabilidade diante dos avanços recentes das teorias sobre apropriação e lugar de fala). Mas
são ralos ainda, tais exemplos, pouco pensados até aqui; questão de prioridades para o fôlego.

Fica por aqui esse rascunho, uma planta para esse território por imaginar; como uma
cidade invisível de Italo Calvino, epígrafe do texto rasurado, mas ainda presente entre os
rastros dessa mais recente – mas ainda não, e jamais, última – inscrição.

Referências

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