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É lugar comum reproduzir a ideia de que vivemos uma crise ética. Desse modo,
concebe-se que as pessoas, por abandonar certos valores caros ao convívio, contribuem
para a decadência das relações humanas, o que inevitavelmente desaguaria e poderia ser
visto com mais nitidez na prática política.
Mas no que consistiria a famigerada crise ética de que estamos sendo constantemente
vítimas?
A rigor, a questão ética se explica pela sua relação com os diversos campos de nossa
realidade, pois a soma da relação entre a ética e o direito, a ciência, a arte e a economia,
implicaria, em última instância, nas diversas manifestações da questão ética no
conjunto.
Em termos gerais, não é equívoco sustentar que o fim último de toda conduta ética é
justamente possibilitar a boa convivência, a vida boa – e não “a boa vida” – ou, para ser
um pouco mais sofisticado, a eudaimonia aristotélica, mediante as quais objetivamos
mitigar o sofrimento e a dor que infligimos a nós mesmos e aos outros.
É óbvio que a tese maquiavélica, comungada por Hegel, mas contrária à de Erasmo de
Roterdã e de Kant, se desenrola toda ela ex parte principis (do ponto de vista do
governante) – e não ex parte populi (do ponto de vista do povo) – e hoje encontrara um
poderoso adversário na moderna configuração do Estado de Direito, segundo o qual o
governo das leis sobrepuja o governo dos homens, o poder é controlado pelo consenso
popular e o governante é responsável por suas decisões.
Neste cenário, pode-se perquirir que a redução da política à ética tem natureza
propositiva e aproxima-se mais das teorias idealistas da política, ou seja, como a política
deveria ser; ao passo que a autonomia da política em face da ética, de índole, portanto
descritiva, afina-se com as teorias realistas da política, isto é, como a política de fato é.
E como ela é e sempre foi, aliás, explica bem e por si só o abismo existente a atividade
política e o mínimo ético que se exigive do homem comum.
A crise, portanto, não diz respeito à ética em si, que preserva a função de definir o bem
e o mal, mas à dificuldade de se responder àquela complexa pergunta da existência ou
não de uma “ética própria” de certas realidades em face da ética tradicionalmente
concebida, ou se tais modalidades existenciais de vida teriam ou não um estatuto
específico, que, além de reger, excepcionaria as relações entre os que se dispusessem a
nelas conviver, sem que fossem submetidos à lente implacável de uma norma ética geral
mais rigorosa.