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Crise ética e a política

É lugar comum reproduzir a ideia de que vivemos uma crise ética. Desse modo,
concebe-se que as pessoas, por abandonar certos valores caros ao convívio, contribuem
para a decadência das relações humanas, o que inevitavelmente desaguaria e poderia ser
visto com mais nitidez na prática política.

Mas no que consistiria a famigerada crise ética de que estamos sendo constantemente
vítimas?

A rigor, a questão ética se explica pela sua relação com os diversos campos de nossa
realidade, pois a soma da relação entre a ética e o direito, a ciência, a arte e a economia,
implicaria, em última instância, nas diversas manifestações da questão ética no
conjunto.

Consideradas essas relações, o ponto fundamental é invariavelmente o mesmo: definir e


mensurar o contraste das ações humanas levadas a efeito nas inúmeras vertentes da vida
individual e social e algumas normas básicas, gerais e obrigatórias que regem estas
ações, de modo que, sem elas, a convivência não seria apenas impossível e insuportável,
mas sobretudo infeliz.

Em termos gerais, não é equívoco sustentar que o fim último de toda conduta ética é
justamente possibilitar a boa convivência, a vida boa – e não “a boa vida” – ou, para ser
um pouco mais sofisticado, a eudaimonia aristotélica, mediante as quais objetivamos
mitigar o sofrimento e a dor que infligimos a nós mesmos e aos outros.

Assim, dentro do código lícito-ilícito, a ética existe em razão da e para a convivência, de


modo que, em torno dela, gravitam certos valores revelados imprescindíveis ao bom
convívio entre as pessoas. Que valores são estes? Na verdade, por mais paradoxal que
isto possa parecer, só a própria convivência se encarregará de dizer quais serão eles e
em que circunstâncias um valor prevalecerá sobre outro.

De forma um tanto quanto esquemática, podemos estabelecer que, ontologicamente, a


convivência define quais são os valores essenciais à manutenção da boa relação entre
nós. Axiologicamente, a convivência estabelecerá quando um valor prevalecerá sobre
outros. E pragmaticamente, é de novo a convivência que criará os mecanismos para
proteger tais valores. Sob esta óptica, justiça, liberdade, paz, igualdade, segurança e um
mínimo de bem-estar, inevitavelmente, constariam desse rol, em todos os tempos e em
todos os lugares.

Contudo, a polêmica da questão ética – e de sua eventual crise – se propõe a saber se o


critério utilizado pela ética geral, a saber, o critério que estabelece o que é o bem e o que
é o mal, também se aplicaria às outras questões específicas do convívio humano.

É sugestiva, nesse passo, a histórica celeuma instaurada pela filosofia política de


Maquiavel, que sustenta a total independência da política com respeito à ética. Esta
seria endereçada apenas ao homem comum e não ao príncipe, cuja conduta se coloca em
um patamar superior, obedecendo a diferente lógica, que não à dos simples de coração.

É óbvio que a tese maquiavélica, comungada por Hegel, mas contrária à de Erasmo de
Roterdã e de Kant, se desenrola toda ela ex parte principis (do ponto de vista do
governante) – e não ex parte populi (do ponto de vista do povo) – e hoje encontrara um
poderoso adversário na moderna configuração do Estado de Direito, segundo o qual o
governo das leis sobrepuja o governo dos homens, o poder é controlado pelo consenso
popular e o governante é responsável por suas decisões.

Ademais, a douta conclusão a que chegam os realistas ou os defensores a separação da


política relativamente à ética parte de três premissas, no mínimo, interessantes sob o
enfoque analítico. A primeira é a de que os fins justificariam os meios. Porém, a objeção
pertinente seria questionar quais seriam esses fins e quais seriam esses meios. A segunda
premissa: a política estaria sim subordinada à ética; todavia, as razões de estado
excepcionariam a incidência desta àquela, na medida em que nenhuma regra ética teria
valor absoluto. Estado de necessidade e legítima defesa se enquadrariam nessas
exceções ao imperativo ético. Por fim, a distinção weberiana segundo a qual há uma
contraposição insuperável entre a ética dos princípios e a ética dos resultados, de modo
que o homem comum avalia as ações com base na primeira, ao passo que o político, na
última. O homem comum se pergunta: que princípios devo observar? O político: que
consequências decorrem de minha ação? O homem comum age de acordo com a
máxima: faça-se a justiça e pereça o mundo (fiat iustitia pereat mundus); o político,
invertendo o raciocínio, pondera: pereça a justiça, faça-se o mundo.
Talvez a sensação de estarmos sempre assistindo a uma insolúvel crise de valores seria,
ao fim e ao cabo, a dificuldade de responder à incômoda indagação acerca de uma
possível autonomia e independência de outras realidades humanas em face da ética.
Assim, a arte, a ciência, a economia e, designadamente, a política estariam isentas de se
submeterem à rigorosa régua da ética que traça a linha entre o bem e o mal, na medida
em que, para elas, as dicotomias seriam, respectivamente, outras: o belo e o feio, a
verdade e a mentira, o útil e o inútil, o eficaz e o ineficaz. Na verdade, a idéia da
autonomia da política perante a ética é tautológica, na medida em que corresponde a
apenas afirmar que ética e política são coisas diversas porque são diversas.

Neste cenário, pode-se perquirir que a redução da política à ética tem natureza
propositiva e aproxima-se mais das teorias idealistas da política, ou seja, como a política
deveria ser; ao passo que a autonomia da política em face da ética, de índole, portanto
descritiva, afina-se com as teorias realistas da política, isto é, como a política de fato é.
E como ela é e sempre foi, aliás, explica bem e por si só o abismo existente a atividade
política e o mínimo ético que se exigive do homem comum.

A crise, portanto, não diz respeito à ética em si, que preserva a função de definir o bem
e o mal, mas à dificuldade de se responder àquela complexa pergunta da existência ou
não de uma “ética própria” de certas realidades em face da ética tradicionalmente
concebida, ou se tais modalidades existenciais de vida teriam ou não um estatuto
específico, que, além de reger, excepcionaria as relações entre os que se dispusessem a
nelas conviver, sem que fossem submetidos à lente implacável de uma norma ética geral
mais rigorosa.

Marcos Antônio da Silva

Mestre em Direito pela UENP

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