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Viviane Gomes de Deus

Danilo Maciel Machado

Linguística
Jouberto Uchôa de Mendonça
Reitor

Amélia Maria Cerqueira Uchôa


Vice-Reitora

Jouberto Uchôa de Mendonça Junior


Pró-Reitoria Administrativa - PROAD

Ihanmark Damasceno dos Santos


Pró-Reitoria Acadêmica - PROAC

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Pró-Reitoria Adjunta de Graduação - PAGR

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Pró-Reitoria Adjunta de Pós-Graduação
e Pesquisa - PAPGP

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Pró-Reitoria Adjunta de Assuntos
Comunitários e Extensão - PAACE

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Gerente do Núcleo de Educação a Distância - Nead

Andrea Karla Ferreira Nunes


Coordenadora Pedagógica de Projetos - Nead

Lucas Cerqueira do Vale


Coordenador de Tecnologias Educacionais - Nead

Equipe de Elaboração e Produção de Conteúdos


Midiáticos:
Alexandre Meneses Chagas - Supervisor
Ancéjo Santana Resende - Corretor
Claudivan da Silva Santana - Diagramador
Edivan Santos Guimarães - Diagramador
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Redação: D486l Deus, Viviane Gomes de


Núcleo de Educação a Distância - Nead Linguística / Viviane Gomes de
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Prédio da Reitoria - Sala 40 Machado. – Aracaju : Gráf. UNIT,
CEP: 49.032-490 - Aracaju / SE 2010.
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Impressão: 1. Linguística – estudo e ensino. I. Titulo


Gráfica Gutemberg Universidade Tiradentes (UNIT) Núcleo de
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Copyright © Universidade Tiradentes


Apresentação

Prezado(a) estudante,

A modernidade anda cada vez mais atrelada ao tempo, e a


educação não pode ficar para trás. Prova disso são as nossas disci-
plinas on-line, que possibilitam a você estudar com o maior confor-
to e comodidade possível, sem perder a qualidade do conteúdo.

Por meio do nosso programa de disciplinas on-line você pode


ter acesso ao conhecimento de forma rápida, prática e eficiente,
como deve ser a sua forma de comunicação e interação com o
mundo na modernidade. Fóruns on-line, chats, podcasts, livespace,
vídeos, MSN, tudo é válido para o seu aprendizado.

Mesmo com tantas opções, a Universidade Tira-


dentes optou por criar a coleção de livros Série Biblio-
iblio-
gráfica Unit como mais uma opção de acesso ao conhe-
onhe-
cimento. Escrita por nossos professores, a obra contém
ntém
todo o conteúdo da disciplina que você está cursando
ando
na modalidade EAD e representa, sobretudo, a
nossa preocupação em garantir o seu acesso ao
conhecimento, onde quer que você esteja.

Desejo a você bom


aprendizado e muito sucesso!

Professor Jouberto Uchôa de Mendonça


Reitor da Universidade Tiradentes
Sumário

Parte I: Introdução aos estudos linguísticos: conceitos,


história, teorias e relação com outras ciências ...... 11

Tema 1: Conceituação e cronologia dos


estudos l inguísticos ................................................. 13
1.1 A Linguística e seu objeto de estudo:
implicações terminológicas............................................ 15
1.2 Conceitos básicos para a compreensão das
teorias linguísticas e das diferentes gramáticas. ........... 24
1.3 Aquisição da linguagem e suas teorias ................... 33
1.4 Do estudo ‘acientífico’ à ciência
da linguagem: um breve histórico ................................ 38
Resumo do Tema I.............................................................. 45

Tema 2: Principais teóricos/teorias da


Linguística moderna ................................................ 47
2.1 Formalismo x Funcionalismo:
correntes e teorias linguísticas....................................... 47
2.2 O Estruturalismo e as principais ideias de Saussure.....53
2.3 O Gerativismo e as ideias de Chomsky ................... 60
2.4 Princípios da Sociolinguística: conhecendo Labov .......67
Resumo do Tema 2............................................................. 75
Parte II: Organização da Língua: Sistema, Norma e fala .........77

Tema 3: Conhecendo o sistema linguístico:


níveis da gramática .................................................. 79
3.1 Introdução ao nível fonético:
delimitação e conceitos .................................................. 79
3.2 Introdução ao nível fonológico: delimitação e con-
ceitos ............................................................................... 88
3.3 Introdução ao nível morfológico: delimitação e con-
ceitos ............................................................................... 94
3.4 Introdução ao nível sintático: delimitação e concei-
tos .................................................................................. 102
Resumo do Tema 3........................................................... 111

Tema 4: A linguística em prática: norma x fala .................. 113


4.1 A importância da comunicação: a semântica e a
pragmática explicam .................................................... 114
4.2 A(s) norma(s): conceitos e (pre)conceitos linguísti-
cos ................................................................................. 123
4.3 A fala: variação e mudança linguística .................. 130
4.4 A Linguística em sala de aula: variação e ensino . 138
Resumo do Tema 4........................................................... 147

Referências ............................................................................ 149


Concepção da Disciplina

Ementa

Fundamentos da linguística e suas relações com outras


ciências; conhecimento da história dos estudos linguísticos e
das teorias modernas sobre língua e linguagem.

Objetivos

Geral

Apresentar os conceitos básicos da Linguística e a cronologia


dos estudos nessa área, chegando à compreensão das teorias
contemporâneas por meio da aplicação dos conteúdos.

Específicos

- Identificar o objeto de estudo da Linguística e os princípios


teóricos básicos desta ciência.
- Reconhecer as principais teorias linguísticas e a sua
aplicabilidade em diferentes contextos de análise.
- Compreender a organização da língua relacionando-a às
teorias contemporâneas a respeito da linguagem e ao ensino-
aprendizagem do Português e do Espanhol.
- Observar os fenômenos linguísticos na fala de pessoas
com diferentes perfis e classificá-los conforme os níveis da
gramática.
- Analisar o prestígio e o estigma dos fenômenos linguísticos
em diferentes situações de fala.
- Repensar a prática docente da diversidade linguística
presente na sala de aula e interferir nessa realidade a fim de
desconstruir a visão de preconceito linguístico.

Orientação para Estudo

A disciplina propõe orientá-lo em seus procedimentos de


estudo e na produção de trabalhos científicos, possibilitando
que você desenvolva em seus trabalhos pesquisas, o rigor
metodológico e o espírito crítico necessários ao estudo.

Tendo em vista que a experiência de estudar a distância é


algo novo, é importante que você observe algumas orientações:

• Cuide do seu tempo de estudo! Defina um horário regular


para acessar todo o conteúdo da sua disciplina disponível neste
material impresso e no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA).
Organize-se de tal forma para que você possa dedicar tempo
suficiente para leitura e reflexão;

• Esforce-se para alcançar os objetivos propostos na


disciplina;

• Utilize-se dos recursos técnicos e humanos que estão ao


seu dispor para buscar esclarecimentos e para aprofundar as suas
reflexões. Estamos nos referindo ao contato permanente com o
professor e com os colegas a partir dos fóruns, chats e encontros
presencias. Além dos recursos disponíveis no Ambiente Virtual
de Aprendizagem – AVA.
Para que sua trajetória no curso ocorra de forma tranquila,
você deve realizar as atividades propostas e estar sempre em
contato com o professor, além de acessar o AVA.
Para se estudar num curso a distância deve-se ter a clareza
que a área da Educação a Distância pauta-se na autonomia,
responsabilidade, cooperação e colaboração por parte dos
envolvidos, o que requer uma nova postura do aluno e uma nova
forma de concepção de educação.
Por isso, você contará com o apoio das equipes pedagógica
e técnica envolvidas na operacionalização do curso, além dos
recursos tecnológicos que contribuirão na mediação entre você e
o professor.
INTRODUÇÃO AOS
ESTUDOS LINGUÍSTICOS:
CONCEITOS, HISTÓRIA,
TEORIAS E
RELAÇÃO COM OUTRAS
CIÊNCIAS
Parte I
1 Conceituação e cronologia
dos estudos linguísticos

Bem-vindo ao ‘universo de (ou das?) Letras’!

Por essa simples saudação já se pode perceber que, para


expressarmos ‘aquilo’ que queremos dizer implica escolha: seja
entre uma letra e outra ( ‘e’ ou ‘a’ ), ou entre palavras/expressões
já formadas (universo/mundo de/das... ‘alguma coisa’). A
princípio parece muito complexo, ou até fácil para alguns. Mas,
atenção: “[...] para quem gosta de certezas e seguranças, tenho
más notícias: a gramática não está pronta! Para quem gosta de
desafios, tenho boas notícias: a gramática não está pronta.

Sofrendo a gramática
(MÁRIO PERINI, 2002) [Com base
no avanço da Linguística e na
sua contribuição para o ensino-
aprendizagem de línguas, Perini
reflete sobre algumas questões
referentes à linguagem e ao ensino
de gramática no Brasil.]
Fonte: http://i.s8.com.br/images/books/
cover/img1/60651.jpg
14 Linguística

Preparados? Iniciemos, então, o nosso curso!


Esta primeira parte trata da fundamentação teórica e da his-
tória dos estudos linguísticos. No Tema 1 veremos os fundamen-
tos da Linguística e um breve histórico da consolidação dessa
ciência, desde a gramática comparada até as teorias contempo-
râneas (SARFATI, 2006). No Tema 2, conheceremos as principais
teorias que norteiam os estudos linguísticos da atualidade, bem
como os teóricos que mais contribuíram para o avanço da ciên-
cia da língua(gem).
Apresentamos a vocês, portanto, informações básicas
acerca da ciência Linguística. Mas... isso é só o começo!

CONCEITUAÇÃO E CRONOLOGIA DOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS


Ao iniciar o estudo em qualquer área científica é de fun-
damental importância preparar o terreno para a construção do
conhecimento. Para isso, é necessário lançar as bases concei-
tuais da ciência, a começar pela sua definição e a descrição do
objeto a ser investigado (considerando suas implicações teórico-
filosóficas e terminológicas). Isto não é diferente com a Linguís-
tica, ramo de estudo que se formou dentre as ciências humanas,
no início do século XX, impulsionado pela divulgação das ideias
revolucionárias do suíço Ferdinand de Saussure (1916) em seu
Curso de Linguística Geral (doravante Curso).

Curso de Lingüística Geral é uma obra póstuma do


autor Ferdinand de Saussure (1957-1913), publicada em 1916.
[Essa obra foi organizada por Charles Bally e Albert
Sechehaya, alunos de Saussure. A partir dessa publicação
foi ‘inaugurada’ a fase estruturalista dos estudos da
linguagem, pois nela foram apresentados os pressupostos
teórico-metodológicos do Estruturalismo, cujas ideias
(principalmente as saussureanas) acabaram influenciando
outras ciências sociais. Sua última edição em português foi
pela Ed. Cultrix de São Paulo, em 2008, com tradução de
Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein.]

Fonte: http://user.img.todaoferta.uol.com.br/J/L/FU/
AEK0GM/1230990680336_bigPhoto_0.jpg#1
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 15

Estão curiosos para saber que ideias foram essas que cau-
saram tanto alvoroço (influenciando até outras ciências)?
No desenvolvimento dos conteúdos deste primeiro tema,
conheceremos, de modo geral, a visão de Saussure sobre a lin-
guagem. Contudo, as principais ideias saussureanas, apresenta-
das na célebre obra do linguista suíço, serão estudadas no Tema
2 de forma mais específica.

1.1 A LINGUÍSTICA E SEU OBJETO DE ESTUDO: IMPLI-


CAÇÕES TERMINOLÓGICAS

Após a breve introdução do primeiro bloco temático, certa-


mente surgiram algumas ‘interrogações’. Nesse exato momento
você deve estar se perguntando, por exemplo: para que me ser-
ve estudar Linguística?
Informo a vocês que a resposta para essa pergunta, espe-
cificamente, não se encontra em nenhum manual para ser ‘deco-
rada’. Saber reconhecer a importância da ciência Linguística para
a sua formação como pessoa e, principamente, como professor
de línguas é um “dever de casa” que deve ser (re)feito (e sem
dúvida será) a cada conteúdo estudado ao longo da disciplina,
sobretudo, ao final do curso de Letras.
Para orientar vocês nas descobertas sobre o universo da
língua(gem), neste primeiro tópico discutiremos duas questões
básicas do curso:

O que é mesmo Linguística?


Qual o objetivo e o objeto dessa ciência?

Esses questionamentos são básicos (no sentido de espera-


dos), mas não possuem uma resposta tão objetiva como, a prin-
cípio, pode-se pensar. Aliás, como as demais ciências humanas,
16 Linguística

a Linguística não é objetiva, não há verdades absolutas, desde


quando o próprio objeto em estudo dá margem para interpreta-
ções diversas que abrangem desde a visão natural, que concebe
a língua como organismo, até o conceito de língua como ativi-
dade social. No entanto, a discussão gerada por essas “simples”
perguntas, contribuirá para as quais de um modo geral, para o
entendimento da importância dos estudos nessa área.

O que é mesmo Linguística?

A resposta a essa pergunta implica esclarecer outras ques-


tões que constituem a base da definição desta ciência, tais como:
Em que consiste esse ‘fazer científico da língua(gem)?’; Como
procedem os estudiosos dessa área do conhecimento e como
estes podem/devem ser denominados (Filólogos, gramáticos ou
linguistas?). São tantas perguntas que nos levam a tantas outras,
mas... não se assustem!
Na maioria dos manuais introdutórios, a Linguística é de-
finida, de modo geral, como o estudo científico da língua(gem)
humana (WEEDWOOD, 2002; BORBA, 2005; MARTELOTTA,
2008). No entanto, uma definição tão objetiva não corresponde à
complexidade dessa ciência, o que se deve ao caráter dinâmico
e multifacetado do seu objeto (do qual falaremos mais adiante).
Para chegarmos a uma conclusão do que se entende por Lin-
guística hoje em dia, partiremos da discussão sobre a denomina-
ção desse campo de estudo. Destacamos, a princípio, que o termo
linguística passou a ser usado para identificar uma nova aborda-
gem do estudo da língua que surgiu em meados do século XIX,
contrastando com a abordagem tradicional (da filologia) feita pelos
estudiosos da Antiguidade clássica (gramáticos gregos e romanos),
autores renascentistas e gramáticos prescritivistas do século XVIII.
A distinção entre Filologia e Linguística foi necessária na-
quele momento. Hoje, de certa forma, a atribuição de nomes di-
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 17

ferentes às duas perspectivas de abordagem – tradicional ver-


sus inovadora – ainda é considerada importante para delimitar
o campo de atuação dos pesquisadores, visto que o objeto de
estudo é o ‘mesmo’ para a Filologia e para a Linguística, porém
com enfoques diferentes. Enquanto o ‘filólogo’ atenta para o de-
senvolvimento histórico das
Veremos mais adiante as ‘dicotomias saus-
línguas (tendo como fonte de
sureanas’. Mas... você sabe o que significa a
pesquisa os textos escritos),
palavra ‘dicotomia’?
o linguista, por sua vez, tem
De acordo com o dicionário Aurélio, esse
como prioridade a língua fa-
termo possui seis significados possíveis na
lada (ainda que se desenvol-
língua portuguesa. No entanto, podemos
vam pesquisas linguísticas
perceber que em todas as entradas do termo
com base em textos escritos).
no dicionário encontra-se a noção de ‘repar-

tir’, ‘dividir’, ou, simplesmente, a existência


De acordo com Wee-
de duas coisas compondo outra. Entretanto,
dwood (2002), a ciência da
no que se refere à teoria linguística, predomi-
língua(gem) é dividida por
na o significado de número 1, registrado no
três dicotomias:
referido dicionário, o mais abrangente, que
1) sincronia vs. diacronia;
apresenta a dicotomia como “[...] método de
2) teórica vs. aplicada;
classificação em que cada uma das divisões
3) microlinguística vs.
e subdivisões não contém mais de dois ter-
macrolinguística. No entanto,
mos”. (AURÉLIO séc. XXI, CD room)
falaremos apenas sobre as
duas primeiras, visto que a
terceira dicotomia apresentada por Weedwood (2002) ainda não
se estabeleceu definitivamente.

No que diz respeito ao primeiro par dicotômico – sincronia


vs. diacronia –, introduzido na Linguística por Saussure, no iní-
cio do século XX, destaca-se a relação tempo/língua. O estudo
sincrônico, caracterizado pela ausência de elementos temporais
na descrição linguística, consiste em descrever a língua de um
determinado tempo/período (também chamado de sincronia).
18 Linguística

Podemos, por exemplo, estudar o uso de determinada palavra


ou expressão em algum século passado, ou década, sendo des-
necessário considerar como era o uso da língua antes ou depois
do recorte de tempo analisado. Um pesquisador que tenha inte-
resse em investigar o uso das formas de tratamento no período
colonial ‘não precisa’ considerar o uso dessas formas em perío-
do antecedente ou posterior, visto que o interesse é: saber quais
expressões eram utilizadas no trato da segunda pessoa no Brasil
colônia. Por outro lado, alguém pode se interessar em estudar
como as pessoas costumam tratar as outras na sociedade atual.
Observamos, assim, que o estudo de um determinado fenômeno
linguístico, no período colonial ou atualmente, sem considerar o
antes ou depois, é o que se define como estudo sincrônico.
A perspectiva diacrônica, por sua vez, caracteriza-se por
considerar o fator tempo como determinante para a mudança
linguística. Desse modo, os estudos diacrônicos correspondem à
análise do desenvolvimento histórico da língua, observando-se,
assim, suas mudanças ao longo de determinado período. Reto-
mando o exemplo do fenômeno apresentado para a perspectiva
sincrônica, poderíamos fazer um estudo diacrônico das formas
de tratamento. Se procedêssemos assim, estaríamos analisando
esse fenômeno do ponto de vista histórico, ou seja, da diacronia.
Sobre a segunda dicotomia que subdivide a Linguística –
teórica vs. aplicada –, destacamos os objetivos que distinguem
essas duas vertentes dos estudos linguísticos. Borba (2005), res-
salta que quando se busca desenvolver uma metodologia de tra-
balho, não se voltando para nenhuma língua em particular, cor-
responde à Linguística teórica e geral.
Por outro lado, ainda segundo o referido autor, quando se
pretende observar e descrever uma determinada língua, aplican-
do novos métodos e descobertas, a fim de aperfeiçoar o ensino
de língua, temos aí a Liguística aplicada.
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 19

Qual o objetivo e o objeto da Linguística?

De modo geral, o objetivo principal da linguística é estudar


e descrever a língua(gem) humana. Apesar de parecer simples,
essa tarefa se torna bastante complexa quando tentamos definir
o seu objeto: a língua(gem).
Vale lembrar que em Linguística a palavra linguagem é usa-
da com o sentido de língua quando se refere ao objeto de estudo
dessa ciência. Como vocês podem perceber, para compreender-
mos melhor o que se define como Linguística, é necessário que
se tenham “bem claros” os conceitos de ‘linguagem’ e ‘língua’
(suas principais concepções – Tema 2).

O que é a linguagem?

A primeira observação a ser feita é quanto à forma como


venho grafando o termo língua(gem) – enquanto objeto de análi-
se da ciência linguística – desde a apresentação do nosso curso.
Essa grafia é encontrada em algumas obras dessa área traduzi-
das do inglês para o português, especificamente no livro História
concisa da Lingüística (WEEDWOOD, 2002). De acordo com uma
nota de roda pé apresentada pelo tradutor, o linguista Marcos
Bagno, o uso do termo língua(gem), assim grafado, justifica-se
pelo fato de a língua inglesa só dispor de uma palavra – langua-
ge – para dois significados que, em português, correspondem a:
1) língua – o próprio código usado na comunicação, no
caso, um idioma;
2) linguagem – capacidade do homem de usar um código
para expressar seu pensamento por meio da fala e/ou da escrita,
ou seja, ‘como’ fazemos uso desse código.

Na visão de Saussure, a linguagem é “heteróclita e multifa-


cetada”, pelo fato de abranger vários domínios; nessa perspec-
20 Linguística

tiva, a linguagem é física, fisiológica e psíquica ao mesmo tem-


po. Portanto, para esse autor, ela é própria do domínio individual
e social. Logo, “não se deixa classificar em nenhuma categoria
de fatos humanos, pois não se sabe como infirir sua unidade.”
(SAUSSURE, 1969 apud FIORIM, 2003, p. 14)
A outra importante concepção de linguagem foi apresen-
tada pelo norte-americano Noam Chomsky em meados do sé-
culo XX. Para esse autor, a linguagem é considerada como um
conjunto (finito ou infinito) de sentenças, todas elas finitas em
comprimento e construídas a partir de um conjunto finito de ele-
mentos.

Recomendo ler o livro: JAKOBSON, Roman. Linguística


e comunicação. 18. ed. São Paulo. Cultrix, 2001.
Disponível no AVA
Esse livro é considerado uma obra clássica dos estudos
linguísticos e, por isso, é indispensável para estudantes e pes-
quisadores da área. Nesta obra, o autor aborda a relação en-
tre linguagem, comunicação e outros sistemas semióticos, in-
clusive a arte, e apresenta a teoria das funções da linguagem.

Chamamos a sua atenção para a relação entre linguagem,


língua e comunicação, o que podemos observar no esquema es-
boçado a seguir:
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 21

EXPRESSÃO (oral ou escrita)



DIÁLOGO / TEXTO / DISCURSO

Figura 2 – Esquema da relação linguagem-língua-comunicação e o seu es-


tudo científico.

Nessa figura tenta-se ilustrar como os termos língua, linguagem estão in-
trinsecamente ligados no processamento da comunicação e que, por isso,
dão margem a discussões teóricas entre correntes linguísticas divergentes
quanto à concepção desses termos.

As funções da Linguagem

Você sabe como funciona, para que serve, uma tesoura?


Pergunta fácil, não é? Difícil é responder: Qual a função (ou as
funções) da linguagem? Isto ocorre por se tratar de algo abs-
trato e de uma complexidade ímpar. Tentando responder essa
pergunta, alguns cientistas (o psicólogo Karl Bühler e os linguis-
tas Roman Jakobson e Michael K. Halliday) apresentaram suas
propostas. Veremos a mais divulgada.
Das três propostas referidas, a mais conhecida foi a de
Jakobson. Segundo esse autor, para compreendermos a varie-
dade de funções da linguagem precisamos levar em conta os
22 Linguística

elementos que constituem a comunicação, pois a predominância


de um dos elementos corresponde a uma determinada função da
linguagem. Veja o esquema a seguir:

Observamos, no esquema, que para haver comunicação é


preciso que a mensagem seja compreendida pelo receptor. Para
isso acontecer é necessário um código (linguagem) comum en-
tre os envolvidos no ato comunicativo.
Por fim, é sempre importante ressaltar que uma mensagem
será eficaz quando atender as seguintes condições:
a) Um conceito apreensível pelo destinatário. Lembramos
que contexto é o nome dado ao conjunto de conhecimentos
necessários à compreensão da mensagem.
b) Um código que seja conhecido por emissor e receptor.
O código consiste num conjunto de convenções de sinais ou
signos visando a uma comunicação eficaz.
c) Um contato ou canal físico e uma conexão psicológica
entre emissor e receptor. O ‘canal’ é o meio pelo qual a mensagem
é transmitida.
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 23

Texto complementar

Língua e Linguagem

Quando falamos ou escrevemos produzimos sentidos.


Uma espécie de dependência entre linguagem e pensamento
que forma uma unidade significativa. Nesse caso é impossível
pensar um sem o outro. O pensamento só se manifesta atra-
vés da linguagem (inclusive a não verbal como os gestos, as
cores, as imagens) e a linguagem só se manifesta pelo pensa-
mento. Pode-se afirmar que a linguagem é o próprio pensa-
mento em ação. Ou ainda, o pensamento só se materializa na
linguagem.
É importante, portanto, notar que o esforço para a produ-
ção dos sentidos ocorre em virtude de os homens desejarem
estabelecer cadeias comunicativas, seja para informar, con-
vencer, emocionar, seja para explicar, determinar, aconselhar.
Mas, para que isso acontecesse, foi necessário a criação de
línguas que expressassem maneiras particulares de conceber
os significados, as formas de uso, os mecanismos de elabora-
ção do universo das palavras.
Em nosso caso, o código comum é a língua portuguesa:
graças a ela, produzimos os efeitos do sentido. No entanto,
não se deve considerar o código comum como uma referên-
cia padrão que se mantém inalterada. Ao contrário, a língua
possui variabilidade, usos diferenciados conforme a situação
cultural, econômica, etária e regional do usuário.
Para se comunicar o falante não precisa necessariamente
dominar as regras da gramática escolar. No entanto, ele utiliza
(mesmo sem ter consciência disso) uma “gramática natural”,
que admite a construção me dá um cigarro, mas não admite,
por exemplo, a construção me cigarro um dá. Ou seja, essa
24 Linguística

gramática natural possui um sistema de regras que formam a


estrutura da língua, e que os falantes interiorizam ouvindo e
falando.

(Celso P. Luft, in Língua e liberdade)

Fonte: NETO, José Borges. Ensaios de filosofia da Linguística, 2004, p.50-51.

Para Refletir
Com base nessa breve introdução aos estudos linguísticos, re-
flita sobre a seguinte questão: Filólogo, linguista e gramático é
tudo a mesma ‘coisa’?
Após refletir, organize suas ideias e discuta no AVA com seus
colegas.

1.2 CONCEITOS BÁSICOS PARA A COMPREENSÃO DAS TEO-


RIAS LINGUÍSTICAS E DAS DIFERENTES GRAMÁTICAS.

Não sei se você tem preferência por alguma língua (por


achá-la ‘mais bonita’) ou se prefere um sotaque a outro (por
achar ‘feio’), ou algo assim. Mas, aviso aos que se encaixam nes-
ses exemplos que o princípio básico da linguística é:

TODAS AS LÍNGUAS E SUAS


VARIAÇÕES TÊM O MESMO VALOR.

Isto se justifica porque, diferente da visão tradicional pres-


critivista, a perspectiva linguística acredita que é natural de toda
língua apresentar variações.
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 25

No entanto, como esses fenômenos linguísticos são estu-


dados, vai depender da concepção de língua e de gramática dos
teóricos. Logo, veremos conceitos que correspondem às três
principais correntes teóricas dos estudos linguísticos.
Nesse início de curso, é comum a dúvida a respeito da cor-
rente teórica que determinado autor segue. Ao longo do curso
poderemos identificar melhor as ideias principais de cada escola
linguística. Entretanto, a depender da sua atenção às aulas e do
seu empenho extra-classe, é bem provável que no final desse
encontro você possa agrupar em três polos as teorias identifica-
das correspondentes a uma das três principais concepções de
língua. Vejamos a seguir:

1) A língua é uma atividade mental.


2) A língua é uma estrutura.
3) A língua é uma atividade social.

A língua como atividade mental

Esta vertente que concebe a língua como uma atividade


mental tem origem nas racionalistas clássicas e modernas. No séc.
XIX foi retomada por Wilhelm von Humboldt, e no séc. XX, a partir
de 1957, por Chomsky. Este teórico é o principal representante do
Gerativismo. Nessa perspectiva, a natureza da linguagem está re-
lacionada à estrutura biológica, pensamento este que deu origem
à Gramática Gerativa (ver Tema 2). Essa concepção de gramática
fundamenta-se em dois princípios teóricos básicos:

- princípio do inatismo – consiste em afirmar a existência de


uma estrutura inata constituída de princípios gerais que estariam
presentes em todas as línguas. A esse conjunto de princípios, os
gerativistas atribuíram o nome de Gramática Universal. Observe
o esquema abaixo:
26 Linguística

- princípio da modularidade da mente – de acordo com


esse princípio, a mente humana é modular, o que significa dizer
que é constituída por módulos ou partes. Essas divisões corres-
pondem aos diferentes sistemas cognitivos, ou seja, cada módu-
lo responde por uma atividade mental diferente.

A língua como uma estrutura

Esse conjunto de teorias toma parte do enunciado linguís-


tico, estabelecendo que a língua é uma estrutura composta por
signos. Estes, por sua vez, são constituídos por unidades organi-
zadas em níveis dispostos hierarquicamente, como se descreve
a seguir:
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 27

- o nível fonológico – fonema (sons com significado em


uma língua). (ver tema 3)

Ex.:
pata e bata opõem-se pelos fonemas por um fonema /p/ e /b/.

- o nível morfológico - morfema, palavra (ver tema 3)

- o nível sintático (= sintagma e sentença). (ver tema 3)

Obs.: Sobre esses níveis, vale ressaltar que alguns mode-


los estruturalistas mais recentes incluem o nível discursivo.

O principal representante dessa corrente teórica que con-


cebe a língua como um sistema estruturado é Saussure. Com a
publicação do seu Curso, o considerado pai do estruturalismo
e da Linguística moderna instituiu a concepção de língua como
estrutura e estabeleceu o campo de atuação da Linguística como
disciplina autônoma.
A partir da divulgação das ideias saussureanas, definiu-se
o objeto de estudo da linguística e, especificamente, da Gramáti-
ca Estruturalista. De um modo geral, gramática tem por base as
dicotomias propostas por Saussure (ver Tema 2), que podem ser
assim resumidas:

- significante x significado – compõem o signo linguístico


28 Linguística

- langue x parole – constituem o objeto linguístico.


(língua) (fala/discurso)

- sincronia (=descritiva) x diacronia (=histórica) - o estudo


da língua pode ser feito numa determinada sincronia (recorte de
tempo (década ou século), ou numa perspectiva histórica (a par-
tir de dois períodos (ver tópico 1.1).

- sintagma x paradigma – são os dois eixos de relações


sobre os quais a língua é feita. Correspondem, respectivamente,
ao eixo horizontal (ordem-sequência) e vertical (associação - es-
colha). Como detalharemos a seguir essa dicotomia, apresento
resumidamente os tipos de sintagma.

Todas as aulas...

↑↑↑
Todos os alunos fizeram a prova.


Sintagma

Sintagma
nominal verbal

Como se observa, as dicotomias são formadas sempre por


duas ideias opostas.

As duas correntes teóricas que apresentamos, até aqui, com-


partilham, de um modo geral, a maneira de ver a língua. Isto se diz
porque ambas, tanto o Gerativismo (a Gramática Gerativa) quanto
o Estruturalismo (a Gramática Estrutural), preservando suas parti-
cularidades, concebem a língua como um fenômeno homogêneo.
Assim, o empenho dos gerativistas e estruturalistas conferiram à
Linguística autonomia enquanto disciplina científica.
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 29

A língua como atividade social

No que diz respeito à terceira corrente teórica, a língua é


vista como uma atividade social por meio da qual emitimos in-
formações, expressamos sentimentos e agimos sobre o outro.
De acordo com essa perspectiva, a língua é um somatório de
usos concretos, historicamente situados, que envolve sempre
um locutor e um interlocutor. Estes, por sua vez, estão situados
num determinado espaço; em geral, interagem a propósito de
um tópico previamente combinado. Diante disso, conlui-se que
a língua como atividade social é heterogênea.

Em consequência dessa nova concepção, que diverge das


duas correntes teóricas anteriormente citadas, a Gramática dei-
xa de ser uma disciplina científica autônoma, passando a buscar
pontos de contacto com outras ciências, tais como: a Psicologia,
a Sociologia, a Antropologia, a Semiologia, a Ciência Política, a
História e a Filosofia. Algumas teorias auxiliares compartilham
dessa visão interdisciplinar dos estudos linguísticos:

Língua como comunicação:

- Jakobson (1969, p. 19), ao estabelecer os elementos do


contexto comunicativo – emissor, receptor, tema, código, canal
e mensagem. (ver tópico 1.1) –, enfatizou o lado social da comu-
nicação.
30 Linguística

- Alguns linguistas da Escola de Praga, por sua vez, a exem-


plo de Mathesius, elaboraram uma teoria da comunicação em
sua argumentação sintática, desenvolvendo hipóteses a respeito
da “articulação tema e rema”.

a língua como um conjunto de funções socialmente defi-


nidas
- De acordo com esta teoria, as estruturas linguísticas não
são autônomas, podem, portanto, ser descritas e interpretadas a
partir das propriedades seguintes:
i) flexibilidade e vulnerabilidade às pressões do uso; com-
binam padrões morfossintáticos com as estruturas emergentes;
ii) não-arbitrariedade das estruturas;

Gramaticalização é um fenômeno que reflete iii) dinâmismo, que cor-


a necessidade de se refazer, próprio de toda responde à capacidade de
gramática. Basicamente, consiste na passa- refazimento (reelaboração)
gem de um item lexical para a condição de das línguas através do pro-
“mais gramatical“. Para saber mais sobre gra- cesso de gramaticalização.
maticalização indico a leitura de: Nesse sentido, não tem
GONÇALVES, S. C. L. et al. (Org.). Introdução uma gramática, o que elas
à gramaticalização. São Paulo: Parábola, 2007. têm são gramaticalizações.

Essa obra apresenta de forma clara os principais conceitos


e teorias envolvidos no processo de gramaticalização.

a língua como um conjunto


de atos de fala. Para saber mais sobre ‘variação lin-

a variação e a mudança como guística’, leia o texto: BASSO, Renato;

fenômenos inerentes à heteroge- ILARI; Rodolfo. A variação que vemos

neidade da língua. e a variação que esquecemos de ver.

a língua como discurso. Contexto, 2007, p151-196.


Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 31

Por fim, a gramática da língua, a partir da concepção de lín-


gua como atividade social, consiste num conjunto de regras em
que se procura correlacionar as classes, as relações e as funções
com as situações reais em sociedade, no contexto em que elas
foram geradas. Para que isso ocorra, essa gramática – denomina-
da Gramática Funcional (ou Funcionalista) – vai além da senten-
ça, avançando na análise dos textos inteiros.

Texto complementar

O que vem a ser uma teoria linguística? Para que serve?

Ataliba Castilho
Teoria é uma palavra grega que quer dizer “visão”, “ponto de
vista”. Lembre-se da fábula dos deficientes visuais e do elefante. Foi
mais ou menos assim. Três deficientes visuais rodearam um elefante.
Um pegou em seu rabo e disse que o elefante era um animal cilíndrico,
fininho e duro como uma corda, ocupando no espaço uma posição va-
riável. Outro apalpou uma das pernas e logo discordou do primeiro: o
elevante até pode ser cilíndrico, mas não é fininho, nem duro, e ocupa
no espaço uma posição fixa, vertical. Um terceiro conseguiu agarrar a
tromba e considerou que seus dois colegas estavam certos só até cer-
to ponto: cilíndrico, OK, posição variável, OK, mas nem fino nem duro.
Qual deles estava certo? Individualmente, nenhum. Coletiva-
mente, todos, ainda que sua visão do elefante fosse apenas aproxi-
mativa. Eles tiveram opiniões diferentes por que tiveram “pontos de
vista” diferentes – permitam-me usar respeitosamente essa expressão,
que é igualmente usada pelos deficientes visuais, visto que, como se
sabe, nossa fala é recheada de imagens. Isso sem mencionar que os
deficientes visuais desenvolvem bastante os outros sentidos. Então, se
um quarto deficiente subisse em seu lombo, e um quinto apalpasse
suas trombas, teriam surgido mais duas opiniões, pelo menos. Nossa
percepção sobre o elefante teria melhorado, mas ainda assim faltaria
32 Linguística

muito para que conhecêssemos a coisa por inteiro.


Primeira moral da história: a língua é o elefante, os usuários
da língua, os linguistas e os gramáticos são os deficientes visu-
ais. Assim como o elefante é um objeto parcialmente escondido
para quem não enxerga bem, assim a língua é um objeto escon-
dido para todo mundo, mesmo para aqueles que enxergam bem.
Segunda moral da história: a cada ponto de vista corresponde
uma percepção do que é a língua. Nenhuma está errada, a menos
que se torne inconsistente em relação ao ponto de vista adotado.
Imagine a confusão se um dos deficientes visuais deixasse de lado o
tato, que estava sendo utilizado pelos outros, e usasse outro dispo-
sitivo dos sentidos, como o olfato, ou a audição, por exemplo. Sua
opinião, por mais valiosa, seria inconsistente com a de seus colegas.
Seria de pouca utilidade comparar cheiros com formas, por exemplo.
Transposta a situação da fábula para o estudo da língua por-
tuguesa, fica claro que se não dispusermos previamente de um
ponto de vista sobre a língua, torna-se difícil refletir coerentemen-
te e com a maior amplitude possível sobre esse objeto escondido.
Saussure acrescenta que na Linguística “o ponto de vista
cria o objeto” – e apenas isto já mostra a importância das teorias
para o estudo das línguas. Por objeto pode-se entender tanto o
objeto teórico (isto é, o ponto de vista sobre a língua), quanto o
objeto empírico (isto é, os materiais sobre que fundamentare-
mos nossa análise). Saussure sabia o que estava falando!

(Disponível em: www.museudalinguaportuguesa.org.br)

Para Refletir
Você já consegue definir qual é a melhor teoria para o estudo
da língua portuguesa? Busque mais informações e discuta com
seus colegas no fórum do AVA.
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 33

1.3 AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM E SUAS TEORIAS

Como é que as crianças podem falar? O adulto tem, na


aprendizagem infantil, papel fundamental na aprendizagem da
língua? Existe uma gramática universal?
Caro leitor, estas e outras questões intrigam os estudiosos
da linguagem desde muito tempo. A aquisição da linguagem é
assunto que é estudado por algumas teorias que serão explana-
das aqui.

Behaviorista

O estruturalismo (ver tópico sobre “Estruturalismo”) bus-


cou na psicologia behaviorista a explicação para a aprendizagem
da língua. Visão associacionista entre som e significado, tipo de
aproximação que previa o aprendizado de comportamentos não-
linguístico e linguístico, por
meio de estímulos, priva- Relembrar as teorias de Skinner no livro de

ções e reforços; resumo Psicologia da Educação, no tópico 1.2 Cor-

na visão de Skinner (1957), rentes Teóricas da Psicologia: Behavioris-

para o comportamento. mo, Gestalt, Psicanálise.

Skinner sugeria ser capaz de predizer e controlar o com-


portamento verbal mediante variáveis que controlam o compor-
tamento (estímulo, resposta e reforço). Esse esquema serve para
verificar a interação que determina a resposta verbal particular.
Um estímulo externo provoca uma resposta externa do organis-
mo. Se a resposta for positiva, o comportamento se mantém. Já
se a resposta for reforçada negativamente, o comportamento é
eliminado. E se não há reforço, tanto positivo como negativo, é a
desaparecer que tende o comportamento.

S (estímulo) → R (Resposta) → Reforço


34 Linguística

Empirismo

A aquisição da linguagem não é caótica, sujeita a incer-


tezas somente. O fato de as crianças, por volta de três anos,
serem capazes de fazer uso produtivo de suas línguas suscita
a questão de como estas línguas são aprendidas, adquiridas. É
essa a questão que as teorias de aquisição tentam responder.
As propostas do empirismo entendem-se aquelas para as quais
o conhecimento é originado da experiência. A questão proble-
matizada é de como as ideias adquiridas, dotadas de capacida-
de de formar associações entre estímulo, ou entre estímulo e
resposta, com base na similaridade e proximidade. A estrutura
não está no indivíduo, nem é construída por ele, mas está no
exterior, fora do organismo.

Inatismo

A hipótese do Inatismo de
Relembrar as teorias de Chomsky no livro dizer que o ser humano
de Psicologia da Educação no tópico 2.2 é possuidor de uma gra-
Correntes teóricas do desenvolvimento: mática inata remonta a
Inatismo, Ambientalismo e Interacionismo. Chomsky (1965). Sua pro-
posta afirma que existe
uma gramática universal, que é uma matriz biológica responsá-
vel pela grande semelhança entre as línguas e pela rapidez com
que as crianças aprendem a falar.
Essa corrente dá maior importância ao organismo, à codifi-
cação genética, que traz muitas informações sobre o comporta-
mento humano, a personalidade, a capacidade de compreensão
de quantidades, a capacidade de distinção entre os sons da fala e
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 35

outros sons, entre outras informações. O meio, o papel somente


de acionar o dispositivo responsável pela aquisição da linguagem.

Hipóteses construtivistas e interacionistas

Há diferentes abordagens que tentam dar conta da lingua-


gem a partir das relações interativas entre as crianças e o ambien-
te, sendo a linguagem consequência da construção da inteligência
em geral (hipótese construtivista de Piaget) ou entre a criança e as
pessoas com quem ela convive (hipóteses interacionistas).

Cognitivismo construtivista

Desenvolvida pelo es-


tudioso suíço Jean Piaget, Relembrar as teorias de Piaget no livro de

sua visão tem por base a Psicologia da Educação no tópico 2.2 Cor-

ideia de que o desenvol- rentes teóricas do desenvolvimento: Inatis-

vimento das estruturas do mo, Ambientalismo e Interacionismo.

conhecimento ou estrutu-
ras cognitivas é feito pela interação entre ambiente e organismo.
Ou seja, não existe uma gramática independente de outros do-
mínios cognitivos.
O conhecimento linguístico não seria inato, mas sim, per-
mite que a experiência seja armazenada e recuperada na intera-
ção entre ambiente e organismo.

Interacionismo social

Proposta desenvolvi-
Relembrar as teorias de Vygotsky no livro de
da pelo psicólogo soviético
Psicologia da Educação no tópico 2.2 Cor-
Vygotsky (1996), explica
rentes teóricas do desenvolvimento: Inatis-
o desenvolvimento da lin-
mo, Ambientalismo e Interacionismo.
guagem e do pensamento
36 Linguística

com base na interação entre os indivíduos. Autor, fala e pensa-


mento têm origens genéticas diferentes.
Desta forma, o mais importante está na troca comunica-
tiva entre a criança e o adulto contexto em que a linguagem e
o pensamento são desenvolvidos. As estruturas construídas so-
cialmente são internalizadas quando a criança passa a controlar
o ambiente e o próprio comportamento.

Visão sociocognitiva

O sociocognitivismo junta a base social, interacional, com a


base cognitiva. A aquisição da linguagem dá-se em termos funcio-
nalistas, assim, o processo começa quando a criança passa a en-
tender que existe uma intenção no ato comunicativo dos adultos.
O conjunto de habilidades cognitivas que caracterizam os
humanos modernos constitui o resultado de algum processo ca-
racterístico, unicamente da espécies de transmissão cultural.

Os estudos sobre Aquisição da Linguagem

Como vimos, na abertura deste tópico há alguns questiona-


mentos a respeito da linguagem da criança que vêm provocando
várias especulações entre leigos ou estudiosos dessa área de pes-
quisa. No entanto, a produção científica nesse campo de investi-
gação não acompanhou as demais áreas dos estudos linguísticos.
Hoje, numa época em que as crianças “só faltam nascer fa-
lando”, o número de pesquisas nesse campo vem aumentando,
na tentativa de entender como seres tão pequenos, e com tão
pouca experiência de vida, podem ser tão criativos no que se
refere ao uso da língua.
Essas pesquisas sobre o que e como a criança aprende a
falar tiveram início, de forma mais sistemática, no século XX. A
partir de então, diversos estudiosos passaram a estudar os fe-
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 37

nômenos da linguagem e do pensamento infantil. Psicólogos do


desenvolvimento, a exemplo de Stern, Bühler, Binet e Guillaume,
entenderam que a linguagem infantil está relacionada à atividade
intelectual exercida pela criança desde os primeiros anos de vida.
Durante a primeira metade do século XX, as pesquisas so-
bre a aquisição da linguagem nos Estados Unidos eram de base
mecanicista. Nessa época predominava, no campo científico, a
corrente Behaviorista ou ambientalista, pensamento este que do-
minou as teorias da aprendizagem nesse período.
Como vimos, de acordo com as ideias behavioristas, a
aprendizagem da linguagem seria resultado da exposição ao
meio, em decorrência de mecanismos comportamentais como
reforço, estímulo e resposta, conforme Scarpa (2001). Desse
modo, a linguagem passaria a ser vista como a origem física de
todo o pensamento.

Ler o texto: O instinto da linguagem (um best-seller na Neu-


rociência) – resenha do livro “The language instinct”.
CAMPOS, Jorge. O instinto da linguagem (um best-seller na Neu-
rociência) – resenha do livro “The language instinct”, de Steven
Pinker. Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL. V. 3, n.
5, agosto de 2005. ISSN 1678-8931 [www.revel.inf.br].

Para Refletir
Como vimos, a aquisição da linguagem por pessoas não-por-
tadoras de alguma deficiência já é complexa. Você já conheceu
alguém que tem dificuldades para falar determinadas palavras?
E os surdos-mudos, como será que eles adquirem a linguagem?
Ficou interessado sobre esse linha de pesquisa? Passe a obser-
var essas situações e compartilhe com seus colegas no AVA o
que você conseguiu perceber.
38 Linguística

1.4 DO ESTUDO ‘ACIENTÍFICO’ À CIÊNCIA DA LINGUAGEM:


UM BREVE HISTÓRICO

Enfim, chegamos ao último tópico do nosso primeiro


tema. Isto não significa dizer que as perguntas acabaram. En-
tão, vamos lá!
É possível imaginar quando começaram, de fato, os estu-
dos linguísticos?
Enfim, existe (ou não) uma ciência da linguagem?
Em geral, costuma-se, datar o nascimento da Linguística
moderna, de maneira mais precisa, no ano de 1916, quando foi
publicado, em francês, o livro Curso de Linguística Geral, do suí-
ço Ferdinand de Saussure (1857-1913). Realmente, após a publi-
cação desse livro, o estudo das línguas humanas não foi mais a
mesmo.
A importância dessa publicação foi tão grande que outros
cientistas começaram a aplicar os mesmos critérios e métodos
de Saussure em suas próprias áreas de conhecimento, fazendo
nascer uma das mais importantes escolas científicas do século
XX, o estruturalismo. As ideias dessa escola influenciaram, além
da Linguística, também a Antropologia, a Psicanálise, a Psicolo-
gia, a Filosofia, etc.
No entanto, não se deve imaginar que a Linguística surgiu
assim, com data fixa, como se resultasse do esforço de apenas
um pesquisador. Conforme os manuais de Linguística, os estu-
dos nessa área tiveram início com o trabalho investigativo de
muitos pesquisadores, sobretudo dos que se ocupavam com os
estudos de comparação entre as diferentes línguas – de caráter
‘acientífico’ –, aos quais o próprio Saussure recorria). Destaca-
se, portanto, que as bases da moderna ciência da linguagem já
tinham sido lançadas, na realidade, durante o século XIX.
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 39

A “linguística” antes do século XIX

A linguística ocidental teve início em Atenas com os


Pensamentos de Platão. Tendo sido o primeiro pensador eu-
ropeu a refletir sobre a problemática da linguagem, esse filó-
sofo levantou quastionamentos importantes, aos quais se re-
corre até hoje. Ressalta-se, porém, que muitas de suas ideias
foram importadas da tradição judaica, da linguística hebraica
e árabe e, também, da India. No entanto, a tradição ociden-
tal apresenta um padrão de desenvolvimento próprio e bem
definido.
No século XVIII, vários linguistas, de forma independente,
destacaram-se no interesse pelo estudo das línguas, dentre eles
Sir William Jones, chegando à descoberta de que o sânscrito
relacionava-se com o latim, o grego e outras línguas europeias.
Não se pode dizer que a linguística oitocentista seja a responsável
pela descoberta ou invenção dos estudos da mudança linguísti-
ca, no entanto, é necessário ressaltar a importância da reflexão
linguística durante este século. Uma vez que inaugura uma nova
concepção da relação história do tempo/história da linguagem e
constrói um novo plano para sua análise, a reflexão oitocentista
a respeito das mudanças observadas nas línguas constitui um
marco na História da Linguística.
O desenvolvimento da Linguística dentre as Ciências Hu-
manas pode ser constatado na vasta bibliografia e no número
crescente de produções científicas em andamento nos diversos
cursos de graduação e pós-graduação em Letras, em diferentes
países (independente da língua), especificamente nas universi-
dades brasileiras. Esse avanço científico se torna possível pela
aplicação de princípios e conceitos que fundamentam os estu-
dos linguísticos e são, portanto, indispensáveis aos futuros pro-
fessores de línguas e profissionais de áreas afins.
40 Linguística

A linguística moderna

Como vimos na introdução deste livro, foi depois da publi-


cação do ‘Curso de linguística geral’, de Ferdinand de Saussure,
a partir do século XX, que os estudos linguísticos acabaram se
dividindo em dois grandes polos: formalista e funcionalista (ver
Tema 2). Tais perspectivas de análise, segundo Berlinck; Augus-
to; Shaer, (2006, p.210), “constituem as duas vias principais pelas
quais se têm desenvolvido os estudos linguísticos de um modo
geral nesse último século”.
No que diz respeito às teorias formalistas, o que engloba o
estruturalismo (ver tópico 2.2) e o gerativismo (ver tópico 2.3),
conforme dito, viu-se que a língua contextualiza-se nela mesma,
ou seja, nas suas propriedades internas, e seleciona a gramática
como seu componente central. Como principais representantes
dessa linha de investigação tem-se Saussure, no Estruturalismo,
e Chomsky, no Gerativismo (ver tema 2).
Ao longo do século XX, muitas outras escolas de estudos
linguísticos foram se desenvolvendo, produzindo uma quanti-
dade enorme de pesquisa, revelando aspectos até então nunca
explorados do funcionamento das línguas e mostrando definiti-
vamente a inadequação e as limitações das análises tradicionais
(mas sempre reconhecendo seu pioneirismo). Diante disso, sur-
giram outros campos de estudo das línguas, além dos campos
tradicionais - fonética, morfologia, sintaxe, semântica –, cada
uma com seus objetivos e métodos de trabalho próprios.

Divisões da Linguística

Conforme anunciamos no parágrafo anterior, o campo da


Linguística é constituído de diversas áreas, nas quais se desen-
volve o estudo da linguagem com diferentes enfoques. Vejamos
uma ilustração da divisão geral da Linguística:
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 41

Fonte: http://www.cefala.org/fonologia/imagens/img_divisoes_linguisti-
ca_PQ.jpg
Como se observa, os fenômenos linguísticos podem ser analisados à luz da
Psicolinguística, da Sociolinguística, Pragmática, etc. É importante ressaltar
que cada uma dessas áreas, principalmente as tradicionais, ainda se rami-
fica (a Fonética, por exemplo, divide-se em Fonética Articulatória, Fonética
Acústica, Fonética Auditiva e Fonética Instrumental).
42 Linguística

Texto complementar

HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA: A opção “HISTÓRICA”

Indicamos o livro: Quinhentos anos de


No século XIX, os estu-
história linguística do Brasil
dos linguísticos sofrem
[MATTOS E SILVA, R. V. Uma compre-
uma modificação em seu
ensão histórica do Português Brasileiro
caráter, em função da al-
(PB): velhos problemas repensados. In:
teração de seus objetivos.
CARDOSO, S. A. M.; MOTA, J. A.; MAT-
Ao invés de se estudar a
TOS E SILVA, R. V. (Org.). Quinhentos
linguagem para fazer filo-
anos de história linguística do Brasil. Sal-
sofia ou para fazer crítica
vador: Secretaria da Cultura e Turismo do
literária, como nos sécu-
Estado da Bahia, 2006. p. 219-254.
los anteriores, passa-se a
Nese livro você encontra uma coletânea
estudar a linguagem pen-
de textos na área da Linguística Histórica
sando-se em fazer ciên-
com resultados de várias pesquisas.]
cia. Em oposição a toda
a linguística precedente,
os linguistas desse perí-
odo – os comparativistas- pretendem que a sua linguística
seja “científica’: nos moldes da noção de cientificidade que
se impôs no início do século XIX. Esse novo objetivo vai de-
terminar não só uma metodologia como também um novo
objeto para a linguística. A proposição de “fazer ciência” for-
ça os comparativistas a se afastarem da praxis dos linguistas
precedentes e a desenvolverem novas formas de abordar os
fatos linguísticos, bem como os força a definir um novo obje-
to para a linguística, um objeto em que seja possível encon-
trar regularidades que possam ser enunciadas sob a forma
de leis (o que antes se buscava eram normas ou regras).A
comparação entre as línguas e a história de seus desenvolvi-
mentos é esse novo objeto.
A descoberta do sânscrito (antiga língua da India, pre-
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 43

servada por razões religiosas) foi o lance de sorte que per-


mitiu que Franz Bopp criasse uma nova forma de encarar
os fatos linguísticos. Tudo levava a crer, no início do século
XIX,que a comparação entre as línguas fosse um bom lugar
para se encontrar regularidades.Os paradigmas de declina-
ção do grego e do latim, quando comparados com o paradig-
ma do sânscrito, exibiam regularidades notáveis e permitiam
a obtenção de hipóteses razoavelmente bem fundadas sobre
o processo evolutivo que separou as três línguas. Como as
primeiras regularidades tivessem sido observadas nos sis-
temas morfológicos e fonológicos das línguas comparadas
(línguas com flexão de caso e com sistemas fonológicos já
descritos de forma razoável), foi, obviamente, sobre a morfo-
logia e a fonologia das línguas que os comparativistas - como
o bêbado da piada - debruçaram-se. A história das línguas,
obtida a partir do método comparativo, passou a ser central,
na medida em que permitia um estudo científico dos fatos
linguísticos,ou seja, permitia a obtenção de leis gerais que
descrevem regularidades.
Ao contrário do que ocorreu no século XVIII, quando
surgiram inúmeras hipóteses sobre a origem e o desenvol-
vimento das línguas, os comparativistas limitaram-se a des-
crever os fatos e não tentaram explicá-los. Eles se recusaram
a levantar hipóteses, seja sobre a direção das mudanças lin-
guísticas, seja sobre suas razões. A linguística do século XIX
privilegiou a “adequação descritiva”, para usar os termos de
Chomsky. Todos os aspectos da linguagem para os quais não
se dispunham de leis descritivas razoáveis, formuladas em
termos histórico-comparativos, foram relegados a um segun-
do plano.
A linguística histórico-comparativa do século XIX força-
nos a reconhecer uma terceira opção, ao lado das opções
nocional e filológica. Chamemo-la de histórica.
44 Linguística

A opção histórica, como seu nome indica, concentra


sua atenção no caráter dos fenômenos linguísticos. Nessa
perspectiva, a questão da variação liguística, no tempo e no
espaço, passa a ser o objeto de estudos. Isso significa, en-
tre outras coisas, que se abandona a idéia de que a tare-
fa da lingüística é identificar uma essência da língua (seja
ela localizada na sua função representativa, como pretende
a perspectiva nocional, seja numa forma pura e privilegiada
de expressão, como pretende a perspectiva filológica), mas
se reconhece que as línguas, como todo fenômeno humano
e social, mudam historicamente e que, portanto, a tarefa de
quem quer que seja no estudo objetivo (“científico”) da lin-
guagem é descrever mudanças e descobrir as leis subjacen-
tes. Essa opção é típica do século XIX e seus principais re-
presentantes são comparativistas – como Bopp, Schleicher,
Grimm e Schlegel – e neogramáticos como Osthoff, Brüg-
mann, Delbrück e Hermann Paul.

Para Refletir
Linguística Histórica e História da Linguística têm o mesmo sig-
nificado? Reflita e compartilhe sua opinião no AVA com seus
colegas.
Tema I | Conceituação e cronologia dos estudos linguísticos 45

Resumo do Tema I

Ao longo dos conteúdos deste primeiro tema buscamos


esclarecer algumas questões básicas sobre a natureza da lingua-
gem humana, visando a sua descrição em geral. Mostrou-se, por-
tanto, que a linguagem humana constitui-se o objeto da Linguísti-
ca, mas que este mesmo objeto pode ser estudado, também, por
outras ciências, porém com objetivos distintos da ciência que dá
nome a esta disciplina – a Linguística. Observamos, por fim, que
os estudos linguísticos já eram realizados de maneira “acientífica”
(na antiguidade clássica) e que se afirmou cientificamente após
Saussure vindo a se destacar no campo das ciências humanas.
Na sequência do livro, veremos como se desenvolveu
o fazer científico sobre a língua(gem), ou seja, quais as princi-
pais teorias e teóricos da Linguística.
2 Principais teóricos/teorias
da Linguística moderna

No nosso primeiro encontro, você foi convidado a entrar


no universo da língua(gem), onde, conhecemos um pouco
das principais teorias linguísticas ao estudarmos os conceitos
básicos e princípios da Linguística. Hoje, no nosso segundo
tema, convido você a mergulhar no estudo das principais teorias
da Linguística moderna.

2.1 FORMALISMO X FUNCIONALISMO: CORRENTES E TEO-


RIAS LINGUÍSTICAS

No primeiro tópico do tema 1 falei a respeito de uma obra


que foi de fundamental importância para a história e consolidação
dos estudos da linguagem. Alguém lembra que obra é essa? E o
que aconteceu após a sua publicação?
Como vimos, rapidamente, a partir do século XX, os estudos
linguísticos agruparam-se em dois grandes polos: de um lado os
formalistas e do outro os funcionalistas.
48 Linguística

X
forma função

Essas escolas teóricas, segundo Berlinck; Augusto; Shaer,


(2006, p.210), “constituem as duas vias principais pelas quais
se têm desenvolvido os estudos linguísticos de um modo geral
nesse último século”.

Visão geral: forma x função

De acordo com a visão formalista, a língua é objeto formal


abstrato, ou seja, um conjunto de orações. A gramática, por sua vez,
é concebida como uma tentativa de caracterizar esse objeto abstrato,
em termos de regras da sintaxe formal. Já na visão funcionalista,
língua é um instrumento de interação social, logo não existe por si só,
mas sim em virtude de seu uso, visando à interação entre os falantes.
Na visão funcionalista, observa-se a língua na situação social
que gera as estruturas. Contudo, ao se fazer um confronto dessas
duas teorias, foi possível concluir que a notória divergência de
pontos de vista não implica dizer que os estudos funcionalistas
excluíram as ideias dos estudos formalistas, senão que acresceram
a noção de funcionalidade à concepção estrutural (formal) da língua.
Segundo Pezatti (2004, p.175), “os diferentes enfoques não
estudam objetos diferentes, mas elegem diferentes fenômenos do
mesmo objeto”. Isto se justifica porque, na visão do autor, “enquanto
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 49

a linguística formal gera explicações a partir da própria estrutura”,


a linguística funcional “encontra bases explanatórias na função que
exercem as unidades estruturais” (PEZATTI, 2004, p.168).
Até o século XIX, predominava uma visão estritamente formal
da língua, desenvolvida pelo Estruturalismo. O Funcionalismo, que
dá preferência à função da língua em vez da forma, desenvolveu-
se mais intensamente a partir da década de 1970, mas tem suas
raízes na Primeira Escola Linguística de Praga, em voga nos anos 40
e 60, cujos principais representantes eram Trubetzkoy, Jakobson,
Karcevsky e Martinet. Segundo Neves (1997), a ‘Escola linguística
de Praga’ é a designação que se dá a um grupo de estudiosos
que começou a atuar antes de 1930, para os quais a linguagem,
acima de tudo, permitia ao homem reação e referência à realidade
extralinguística. Em 1946, Martinet afirmava que “a língua é um
sistema de meios adaptados a um fim” (a comunicação). Desse
ponto de vista, a língua varia durante a comunicação.
Contestando preceitos de Saussure, ao se opor à ideia da
“sincronia estática”, Martinet propõe uma “sincronia dinâmica”:
a língua está em constante mutação e evolui para atender às
necessidades de uma comunidade. Para Saussure, a língua é um fato
social independente do indivíduo, e, ao estabelecer a dicotomia langue
vs parole, considera a fala, mas não estuda a realidade individual, e
sim o sistema. Mathesius, por sua vez, visto como um dos principais
representantes da corrente funcionalista, também já destacava em
seus trabalhos que na comunicação as formas lexicais e gramaticais
de uma língua são produzidas para servir a um propósito especial
imposto sobre elas pelos falantes no momento da interação.

Funcionalismo ou Funcionalismos?
De acordo com Neves (1997), não há uma teoria monolítica
do funcionalismo. Este modelo apresenta vertentes bastante
diferentes que compartilham a ideia de que a linguagem é um
instrumento de comunicação e interação social e estabelecem
50 Linguística

um objeto de estudo baseado no uso real (não há distinção entre


sistema e uso). Segundo Pezzati (2004, p. 168), na perspectiva
funcional “a linguagem é vista como uma ferramenta cuja forma
se adapta às funções que exerce e, desse modo, ela pode ser
explicada somente com base nessas funções, que são, em última
análise, comunicativas.” O termo “função” remete à dependência
de um elemento estrutural com relação a elementos linguísticos
de uma ordem estrutural ou não-estrutural.
Bühler chamou a atenção para o fato de que a língua tem
funções:
- representativa (descrição do contexto social do falante);
- apelativa (necessária para chamar a atenção do receptor
e modificar seu comportamento) e de;
- exteriorização psíquica (expressão dos sentimentos do
falante).
Jakobson retoma as funções de Bühler ao propor as funções
da linguagem: emotiva, metalinguística, poética, apelativa, fática
e referencial. Essas ideias influenciaram a corrente funcionalista,
segundo a qual tudo o que se passa no fenômeno linguístico
requer uma função, um motivo. Isso implica dizer que essa
vertente se contrapõe à visão estruturalista, que concebia a
linguagem como imotivada, arbitrária.
Para sintetizar o principal pen-
André Maertinet (1908-1999), um linguista
samento das teorias funciona-
francês, foi professor de linguística francesa e
listas é necessário ir ao pensa-
destacou-se dentro da corrente do funciona-
mento de Martinet. Para ele o
lismo linguístico. Quando jovem, esteve em
objeto da verdadeira linguísti-
contato com os mestres do Círculo Linguísti-
ca é o modo como as pesso-
co de Praga, o que lhe possibilitou, mais tar-
as conseguem comunicar-se
de, desenvolver a teoria funcionalista, que vi-
pela língua, e o linguista, por
ria a influenciar profundamente as gerações
sua vez, deve ser sempre
de linguistas posteriores, estabelecendo, as-
guiado observando a compe-
sim, mais um paradigma em linguística.
tência comunicativa.
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 51

Como vocês podem perceber, a questão primordial de toda


a abordagem funcionalista de determinada língua é “explicar as
regularidades observadas no uso interativo da língua, analisando
as condições discursivas em que se verifica esse uso”. (CUNHA,
2008, In: MARTELOTTA, 2008, p. 158).
No que tange à aquisição da linguagem e aos universais
linguísticos, a abordagem funcionalista considera que a criança
desenvolve o sistema linguístico subjacente ao uso, a partir de
suas necessidades comunicativas na sociedade. Os universais,
assim, devem ser explicados através dos fins de comunicação,
dos contextos em que a língua é usada e das propriedades
biológicas, psicológicas e cognitivas dos usuários
Halliday, de acordo com Neves (1997), propõe uma teoria
que tenta explicar fatos intrínsecos à língua. As múltiplas funções
que a língua exerce se refletem na organização interna da língua,
e a investigação da estrutura linguística revela as necessidades a
que a língua serve. “A pluralidade funcional se constrói claramente
na estrutura linguística e forma a base de sua organização
semântica e simbólica, ou seja, lexical e gramatical.” (NEVES,
1997, p. 12)
Halliday (1970) percebe a linguagem servindo, em um
primeiro momento, à expressão do conteúdo (como função
ideacional), em um segundo momento, à função interpessoal,
mantenedora dos papéis sociais e, em um terceiro momento, à
função textual, a qual trabalha a criação do texto.
Para os funcionalistas, o importante é o uso das expressões
linguísticas na interação verbal. É através dela que se conhece
a interação social entre os indivíduos, estabelecendo-se assim,
relações comunicativas entre os usuários.
52 Linguística

A Gramática Funcional

A Gramática Funcional, que estuda a gramática de uma


língua e a sua instrumentalidade de uso, tem como base de
investigação e análise a perspectiva funcional da linguagem
natural, entendida como instrumento de interação social. Sob
este enfoque, entende-se que cada falante tem competência
comunicativa e que há reciprocidade entre os usuários de
determinada língua possibilitando-lhes trocas de experiências
linguísticas, sejam elas mentais ou práticas.
A teoria linguística da gramática funcional, portanto, atenta
para as questões da parte da linguagem que atuam na competência
comunicativa, além de se preocupar com a implementação desta
competência na interação social. Na gramática funcional os
princípios sintáticos e semânticos da língua se explicam a partir
do princípio pragmático (motivações psicológicas dos falantes,
reações dos interlocutores, tipos socializados da fala, objeto da
fala, etc.). A comunicação é, portanto, moldada de acordo com
o ouvinte.
Castilho não considera a existência de uma gramática
funcional, mas uma sintaxe (funcional) do discurso. Para ele
a sintaxe e a semântica são moldadas pelo discurso. Essa
sintaxe funcional seria o estudo da competência comunicativa
(o conhecimento que o falante tem do receptor e, sobretudo,
das intenções dos falantes, o conhecimento linguístico e o
conhecimento pragmático). Para Castilho, a competência
comunicativa é vista como:
1) capacidade de criar sentidos e processar informações
(semântica);
2) capacidade de criação textual (sintaxe);
3) capacidade de promover interação verbal (pragmática).
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 53

Para Refletir
‘Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?’
Certamente você já ouviu essa pergunta, mas não relacionada
às teorias linguísticas. Então, tomando por base as abordagens
formal e funcional da língua(gem), discuta com seus colegas no
AVA como os representantes dessas correntes responderiam a
seguinte questão:
Quem veio antes, a forma (estrutura da língua determina o uso)
ou a função (o uso molda as estruturas linguísticas)?

2.2 O ESTRUTURALISMO: A DE SAUSSURE

Finalmente, chegou
a hora de conhecermos Ferdinand de Saussure (Genebra, 26 de no-
melhor as ideias que revo- vembro de 1857 - Morges, 22 de fevereiro
lucionaram os estudos lin- de 1913) foi um linguista suíço que contri-
guísticos e consolidaram buiu de forma significativa para o desen-
a ciência da língua(gem). volvimento da linguística enquanto ciência.
Como se sabe, pela apre- Suas teorias desencadearam o surgimento
sentação do Curso de Lin- do estruturalismo e estimularam muitos dos
güística Geral no Tema 1, questionamentos presentes na linguística
essas ideias foram herda- do século XX.
das de Saussure e publica-
das após a sua morte.

Mas... o que é mesmo Estruturalismo?

Quando se trata do termo estruturalismo, não é possível


falar em um conceito único. Ainda que não considerássemos o
uso desse termo por outras ciências, entre as próprias escolas
linguísticas, as abordagens estruturalistas foram diferentes, tais
54 Linguística

como a europeia (representada por Saussure) e a Americana


(representada por Bloomfield). No entanto, pode-se dizer, de um
modo geral, que o estruturalismo consiste numa abordagem da
língua (langue) como um sistema estruturado.

O Estruturalismo europeu: a herança saussureana

Diferindo do pensamento linguístico predominante no


século XIX, cujo foco era necessariamente histórico, Saussure
(1857-1913) estabeleceu que o estudo era, na verdade,
bidimensional, comportando, assim, uma dimensão histórico-
temporal – a diacronia – e outra estática – a sincronia, uma vez que
concebia a língua (fala) como uma realidade em tranformação.
No entanto, segundo essa ótica, as mudanças nunca afetariam o
sistema (langue) – a língua – globalmente, o que ocorreria seriam
apenas alterações de elementos da fala.
Assim, opondo-se ao estudo da linguagem numa
perspectiva histórica, Saussure ampliou o horizonte da ciência
Linguística. Isto ocorreu porque, até então, os estudos nessa
área atentavam para o ser da linguagem, e não para o seu
funcionamento. Ao levantar essas questões, Saussure chama a
atenção para a necessidade de a Linguística ampliar seu olhar
para o estudo dos signos, sugerindo assim, a arbitrariedade dos
signos e a rigidez do sistema. Nessa perspectiva, o que deve ser
investigado é parte da língua comum aos falantes, ou seja, “o
sistema, e não as mensagens a que ele serve de suporte” (ILARI,
2007, p. 53, In: MUSSALIM; BENTES, 2007).
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 55

[Para saber mais sobre Saussure, leia:

CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure. 12. ed.


Petrópolis: Vozes, 2003.

Esse livro já se encontra em sua 12ª edição, contendo os


fundamentos e uma visão crítica das iluminadas ideias do
genial fundador da Linguística moderna. Nessa obra, de
linguagem bastante acessível, você encontrará também
exercícios com questões voltadas para o estudo da língua
portuguesa de acordo com a perspectiva dessa teoria.]

Conforme vimos na breve apresentação das principais teorias


linguísticas (tema 1), Saussure deixou um legado não só para a
ciência da linguagem. As suas ideias resumem-se num conjunto de
dicotomias (ver conteúdo 1.2), dentre as quais destacamos: língua
e fala, sincronia e diacronia, paradigma e sintagma, significado e
significante, forma e substância, motivado e arbitrário.

Língua e fala

De acordo com Saussure, a linguagem deve ser tomada como


um objeto duplo, com seu lado social, a língua (langue), e um lado
individual, a fala (parole), sendo impossível conceber um sem o outro.
A língua na visão saussureana é um sistema supra-individual
utilizado como meio de comunicação entre os membros de uma
comunidade; corresponde assim à parte essencial da linguagem, um
sistema gramatical depositado no cérebro de um conjunto de indivíduos
pertencentes a uma mesma comunidade linguística. Daí seu caráter social.
A fala por sua vez, segundo Saussure é a utilização prática,
concreta de um código de língua por um determinado falante num
momento preciso de comunicação, daí seu caráter individual.
56 Linguística

Para Saussure, a língua é condição da fala, uma vez que,


quando falamos, estamos submetidos ao sistema estabelecido
de regras que corresponde à língua.
O objeto de estudo da linguística estrutural é a língua e não
a fala, sendo esta última tomada como objeto secundário. Isso
se dá porque é na língua, conhecimento comum a todos, que
se encontra a essência da atividade comunicativa, e não naquilo
que é específico de cada um.
Saussure não só apontava para um tipo de pesquisa
totalmente diferente do que tinha praticado toda sua vida, como
provocou uma mudança de atitude nos estudos linguísticos,
mudança que é sentida até hoje.

Sincronia e diacronia

“É sincrônico tudo que se relacione com o aspecto estático da


nossa ciência, diacrônico tudo que diz respeito a evoluções. Do mesmo
modo, sincronia e diacronia designarão, respectivamente, um estado
de língua e uma fase de evolução” (SAUSSURE, 1975, p. 96).
Enquanto um estudo sincrônico de uma língua tem como
finalidade a descrição de um determinado momento no tempo, o
estudo diacrônico busca estabelecer uma comparação entre dois
momentos da evolução histórica de uma determinada língua.
A linguística proposta por Saussure põe como prioritário o
estudo sincrônico da língua:

Saussure se opõe aos estudos sócio-comparativos


do século XIX, mostrando que não há possibilidade
de se fazer um estudo histórico sério se o lingüista
se ocupar de meras “porções” da língua. A língua é
um sistema e, na verdade, é o próprio sistema que
muda e que é história. Assim, o estudo autônomo
do sistema (linguística sincrônica) é condição
lógica para o estudo de sua história (linguística
diacrônica). (BORGES; NETO, 2004, p. 103)
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 57

Diante disso, Lucchesi (2004), conluiu que a nova dicotomia


saussureana está relacionada com a primeira de forma direta: a
sincronia correpondendo à língua, e a diacornia à fala.

O signo linguístico

A língua é um sistema de signos, ou seja, o signo é a


unidade constituinte do sistema linguístico. Ele é formado por
duas partes inseparáveis, como duas faces de uma folha de
papel, o significado e o significante.
O significante é uma imagem acústica de uma dado conceito,
ou significado. Ambos são entidades psíquicas, então não se
deve associar a imagem acústica a uma sequência de fonemas,
pois não se trata do som material, já que a fala é excluída dos
estudos estruturalistas.
O signo linguístico é arbitrário, ou seja, a relação que se
estabelece entre significante e significado não é motivado, e
sim convencional. No entanto, Saussure admite que há signos
parcialmente motivados, como dezenove.

A Linguística pós-saussureana

As gerações que se seguiram a Saussure mantiveram


uma orientação estruturalista, estudando a língua sob um olhar
sincrônico, preocupados com o sistema, com uma concepção
de língua que priorizava a forma, em detrimento da substância.
Estas correntes foram, entretanto, bastante diferentes entre
si e, por isso, muitas vezes referiam-se a elas no plural, como
estruturalismos; entre elas, há a Escola Linguística de Praga,
com seu caráter funcionalista, a glossemática de Hjemslev, o
funcionalismo de Martinet, entre outros.
O aspecto mais característico da Escola de Praga, que teve
forte atuação na década que antecedeu a II Guerra Mundial, é a
58 Linguística

combinação de estruturalismo com funcionalismo. Para eles, a


estrutura das línguas é, em grande parte, determinada por suas
funções características.
É também grande contribuição desta Escola a distinção
entre tema e rema: o tema de um enunciado é a parte que se
refere ao que já é conhecido ou dado no contexto (também
chamado por outros teóricos de tópico ou assunto psicológico),
e rema é a parte que veicula a informação nova (o comentário ou
predicado psicológico).
A glossemática, de Hjemslev, foi a escola linguística
estrutural que mais procurou aplicar a tese saussuriana de que
as línguas se constituem como sistemas de oposição, o que a
levou a uma caracterização exaustiva das relações por meio das
quais as línguas se estruturam. Isto fez com que fosse acusada
de uma preocupação excessiva com os instrumentos de análise
linguística e de produzir textos abstratos e de difícil aplicação.
No entanto, há muitas distinções apresentadas por
Hjelmslev que são bastante claras, tais como:
a) A explicação de como a forma e a substância se articulam
com a expressão e o conteúdo; e
b) A demonstração de que a variedade de relações entre os
eixos sintagmáticos e paradigmáticos é objeto de uma tipologia
exaustiva.
Com Saussure, a linguística passa a ter um ponto de vista próprio,
“interno”, não subordinado ao de outras áreas do conhecimento.

Indico a vocês a leitura de LUCCHESI, Dante. Sistema, Mudança


e Linguagem. Parábola Editorial. São Paulo, 2004. Nessa obra,
encontramos um percurso na história da linguística moderna,
o autor aborda a problemática da contradição entre mudança
e sistema e sistema questionando a ‘concepção de língua
como sistema’ apresentada por Saussure.
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 59

Prof. Dr. Dante Lucchesi cursou o doutora-


do em Linguística pela Universidade federal
do Rio de Janeiro, após concluir o mestrado
em Linguística Portuguesa Histórica pela Uni-
versidade de Lisboa. Desde 1992 ele é pro-
fessor de Língua Portuguesa da Universidade
Federal da Bahia; é responsável pelo Projeto
VERTENTES – grupo de pesquisa na área da
sociolinguística que investiga os vestígios da
crioulização na fala de comunidades afro-bra-
sileiras.

Eugênio Coseriu, em seu livro Sincronia, diacronia e


história, de 1973, contrapõe-se à visão de Saussure, propondo
que se veja a língua como um sistema em movimento, em
permanente sistematização. De acordo com a visão coseriana,
as línguas são objetos históricos e, por isso, seu estudo deve
envolver tanto descrição quanto história. Além de Coseriu,
outros estudiosos, como William Labov, também questionaram e
sugeriram alterações ao modelo de estudo separatista proposto
por Saussure.

Para Refletir
Um dos princípios básicos da visão estrutural da língua é a
arbitrariedade do signo. Você entende o que isto quer dizer?
Reflita e discuta com seus colegas no AVA.
60 Linguística

2.3 O GERATIVISMO E AS IDEIAS DE CHOMSKY

O gerativismo é uma corrente de estudos linguísticos que


teve início nos Estados Unidos, no final da década de 50, a partir
dos trabalhos de Noam Chomsky. Considera-se o ano de 1957 a
data de nascimento da linguística gerativa com a publicação de
Syntactic Structures.
Ao longo de meio século de existência, o gerativismo
passou por diversas modificações e reformulações, que refletem
a preocupação dos pesquisadores em elaborar um modelo
formal capaz de explicar e descrever abstratamente o que é e
como funciona a linguagem humana.
A linguística gerativa surgiu em resposta e rejeição ao
modelo behaviorista (ver tema1) de descrição dos fatos da
linguagem, que interpretava a linguagem como uma resposta que
o organismo humano produzia diante de estímulos externos que
recebia. Esta resposta, a parte de repetição mecânica e constante,
se tornaria um hábito, que caracterizariam o comportamento
linguístico do falante.
Com o gerativismo, as línguas deixam de ser interpretadas
como um comportamento socialmente condicionado e passam a
ser analisadas como uma faculdade mental natural.

Conceito de Gramática

Há definições diversas para o conceito de gramática, e o mais


recorrente no senso comum é aquela da gramática tradicional, que
é vista como um conjunto de regras do “bem falar”, que prescreve
o que é certo e o que é errado em uma língua.
O conceito de gramática adotado pela gerativa não é
determinado por um padrão de correção. Partindo-se do princípio
de que só os humanos são capazes de combinar um número
finito de elementos.
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 61

Para formar infinitas sentenças (aspecto criativo da


linguagem), e que só eles são capazes de falar uma língua
natural, percebemos que, quando falamos, ainda que não
estejamos seguindo as normas da gramática tradicional, estamos
obedecendo a regras ditadas pela “racionalidade humana”.
Há, desta forma, uma gramática internalizada no falante.

Ex.: *Cê viu Maria saindo?


*Quem cê viu saindo?
*Jonas disse que cê foi viajar.
* Maria viu cê.
* João comprou o livro pro cê.
* Maria e cê vão comprar o livro.

Ressaltamos, assim, que sentenças agramaticais e


gramaticais não correspondem aos conceitos de certo e errado
da gramática tradicional.

Noção de Competência e Desempenho

O que permite ao falante julgar quais das sentenças anteriores


são gramaticais ou não é o conhecimento inconsciente que ele tem
sobre a língua, ou seja, a competência linguítica. Quando o falante
põe em uso a competência para produzir as sentenças que ele fala, o
resultado é o que Chomsky chamou de performance ou desempenho.
Diante disso a teoria gerativa tem o papel de explicar a
competência linguística do falante, explicitando os mecanismos
gramaticais que subjazem a ela. Portanto, uma teoria gerativista
deve ser capaz de lidar com sentenças que ainda não ocorreram
e com as que nunca ocorrerão (evidência negativa).
Conforme a noção de competência proposta por Clube
Husky, supõe-se que o homem possui em seu aparato genético
uma faculdade da linguagem, uma capacidade que seria inata.
62 Linguística

Nessa perspectiva, a mente/cérebro é modular, ou seja, é


composta por módulos responsáveis por diferentes atividades;
assim, a faculdade da linguagem não é parte da inteligência como
um todo, haveria um módulo específico para as línguas naturais.
Surge então um questionamento: como explicar a
diversidade das línguas, a partir do momento em que se toma
por base um aparato genético?
Para responder a isto, há atualmente as noções de princípios
e parâmetros:

Princípios são leis gerais válidas para todas as línguas


naturais;
Parâmetros são propriedades que uma língua pode ou não
exibir e que são responsáveis pela diferença entre as línguas.

Gramática Universal
A Gramática Universal é o estágio inicial de um falante
que está adquirindo uma língua; é o conjunto das propriedades
gramaticais comuns compartilhadas por todas as línguas naturais.
A Gramática Universal se constitui de princípios e parâmetros,
porém os segundos sem valores fixados. À medida que os
parâmetros vão sendo fixados, (NEGRÃO; SCHER; VIOTI 2004,
p. 96), vão surgindo as gramáticas das línguas.
Vejamos algumas características da gramática na
perspectiva do gerativismo:

- A gramática Gerativa assume que os seres humanos nascem


dotados de uma faculdade da linguagem, que é um componente
da mente/cérebro especificamente dedicado à língua;

- A faculdade da linguagem, em seu estado inicial, isto é, no


estado em que ela está logo que a criança nasce, é considerada
uniforme em relação a toda espécie humana;
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 63

- O estado inicial vai sendo modificado à medida que a


criança vai sendo exposta a um determinado ambiente linguístico;

Observamos assim, que uma criança que cresce em um


ambiente linguístico em que se fala português desenvolve o
conhecimento dessa língua, a partir da interação da informação
genética que ela traz no estado inicial de sua faculdade da
linguagem com os dados linguísticos a que é exposta. Logo esse
conhecimento linguístico da criança é adquirido por meio de sua
participação em interações verbais com membros da comunidade
linguística, sem que isso envolva qualquer estimulação específica
ou correção por parte dos pais ou de outras pessoas.
De acordo com a tese da gramática universal, a aquisição
do conhecimento não se dá, como sugerem alguns linguistas,
a partir da memorização das propriedades descritivas de
construção de uma língua. Se o processo se desse assim tão
apenas exteriormente ao indivíduo, a aquisição da linguagem
seria algo extremamente penoso.
Então, esta frase deve permanecer para os gerativistos, a
língua I (interna) de um falante não é adquirida por observação
ou imitação. Admite-se, assim, que uma criança vai adquirir uma
língua independentemente da condição social, qualidade afetiva
ou intelectual de interação com o adulto e aproximadamente
no mesmo período que as outras crianças, tudo isso graças à
dotação genética.
A capacidade para adquirir linguagem é vista, assim
como algo inato, a criança “marca” aquilo que é específico em
sua língua. Os princípios são determinados geneticamente, e
a aquisição se mostra como uma “formatação da faculdade da
linguagem através da fixação de valores paramétricos”.
Outro fato que aponta para a questão da dotação genética da
linguagem é a “pobreza de estímulo”: mesmo exposta a um input
linguístico repleto de frases truncadas, não-organizadas e não
64 Linguística

corrigidas, a criança adquire a língua com toda sua complexidade.


Observa-se, portanto, que a criança não adquire uma língua
baseada em estímulos externos, senão seria impossível justiçar
alguém tão pequeno, com 4 anos, exposto a uma linguagem
muitas vezes fragmentada, ser tão proficiente em sua língua.
Assim, os parâmetros são vistos como o espaço para a
mudança linguística; desta forma, a mudança seria implementada
a partir do processo de aquisição da linguagem.
É importante dizer que nem tudo que rodeia a criança
no input é um dado acionador, então haveria determinadas
condições que levariam estruturas a desaparecerem de uma
língua por não terem sido acionadas parametricamente em
determinado momento da história.

A metodologia gerativista
O gerativismo propõe-se a analisar a linguagem humana de
uma forma matemática e abstrata (formal), afastando-se bastante
do trabalho empírico que se baseia no estudo de um corpus de
fala. Não lhe interessam estes dados ou sua relação com fatores
extralinguísticos, por isso os gerativistas costumam usar como
dados para suas análises testes de gramaticalidade e a sua própria
intuição, visto que ele é um falante nativo de sua própria língua.
A primeira elaboração do modelo gerativista ficou
conhecida como gramática transformacional e foi desenvolvida
e reformulada diversas vezes durante as décadas de 1960 e 1970.
Nesta fase, tinham como objetivo descrever como os
constituintes das sentenças eram formados e como tais constituintes
transformavam-se em outros por meio de aplicação de regras.
Ainda nesta fase (da Teoria Padrão), para dar conta de
estruturas diferentes, mas relacionadas, como passivas e ativas, os
gerativistas formularam as regras transformacionais. Explicando
de forma breve, uma transformação forma uma estrutura a partir de
outra já existente. A estrutura primeiramente formada é chamada
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 65

estrutura profunda, e a dela derivada, a partir da aplicação de


regras transformacionais, chama-se estrutura superficial. Nesse
sentido, a voz ativa é interpretada como estrutura profunda,
sobre a qual são aplicadas regras transformacionais que geram a
voz passiva, a estrutura superficial.
Nesta teoria, uma teoria de regras gramaticais, tais regras
atendiam a um formato muito flexível, sendo possível construir
regras capazes de descrever qualquer fenômeno imaginável,
mesmo aqueles cuja plausibilidade de ocorrência em qualquer
língua humana seria nulo. Ex.: Não existe língua em que seja
possível mover uma preposição em qualquer posição frásica
para o início da frase *SEM O JOÃO SAIU A CARTEIRA.

Mas a Teoria Padrão não continha qualquer mecanismo que


impedisse a formulação de tal regra. Nesta fase, os gerativistas
descreviam separadamente e de maneira atomista as construções
individuais (passivas, interrogativas, relativas etc.), sem procurar
estabelecer propriedades gerais ou condições comuns a que
estas estruturas pudessem obedecer.
Este caráter extremamente descritivista, o fato de o
modelo permitir uma grande variedade de gramáticas e o seu
enorme poder expressivo fizeram surgir uma insatisfação nos
gerativistas, dando início ao desenvolvimento de uma Teoria
Padrão Ampliada.

Década de 60 e 70 do século XX

A partir da segunda metade da década de 60 e durante os


anos 70, buscou-se diminuir a capacidade descritiva do modelo
gerativista e aumentar sua capacidade explicativa. Para isso,
retiraram-se da formulação das regras particulares os aspectos
que podiam ser convertidos em princípios gerais da linguagem e
foram atribuídos à Gramática Universal.
66 Linguística

Assim, os linguistas chegavam a uma versão simplificada


das regras, reduzindo a enorme variedade de sistemas de regras
a um número muito pequeno de opções, que atuam em conjunto
com princípios restritivos universais na caracterização das
gramáticas possíveis.

Década de 80 e 90 do século XX

Na década de 80, surge o modelo de Princípios e Parâme-


tros, já apresentado neste conteúdo.
Na década de 90, a ideia de transformação de uma estru-
tura profunda numa estrutura superficial é abandonada em favor
de uma visão que não mais representava estruturas, e sim as
derivava, mostrando os passos pelos quais a estrutura é formada
(derivada) sem que tenha que ser comparada com outra estrutu-
ra independente.
O projeto da linguística gerativa a partir desse período é
observar comparativamente as línguas humanas, com seus mi-
lhares de fenômenos morfofonológicos, sintáticos, semânticos
e sintáticos, afim de descrever os princípios e parâmetros da
Gramática Universal que subjazem à competência linguística dos
falantes, para, assim, poder explicar como é a faculdade da lin-
guagem.
Por fim, concluímos que gramática gerativa distingue a ca-
pacidade que os seres humanos têm de aprender uma língua
- a competência com os atos efetivos de fala - a performance. A
primeira é inata e praticamente não varia de pessoa para pessoa.
Mas o desempenho está associado ao comportamento e depen-
de de fatores do meio. Nas palavras de Chomsky: “A competên-
cia é o que você sabe. A performance é o que você faz com isso.”
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 67

Para Refletir
Como você definiria a língua se adotasse a concepção
gerativista?

2.4 PRINCÍPIOS DA SOCIOLINGUÍSTICA: CONHECENDO


LABOV

Ao observarmos uma conversa entre dois indivíduos


pertencentes a estratos sociais diferentes ou entre um jovem e
alguém mais velho, notamos que as línguas não são estáticas; ao
contrário, estão em constante variação e mudança. Não é só o
linguista que consegue perceber essa variação. O falante comum
também tem consciência disso. Tanto é assim que sua maneira
de falar com uma autoridade, por exemplo, não é a mesma com
que fala com pessoas do seu convívio social.
Entretanto, como já sabemos, a ideia, que nos parece
tão óbvia atualmente, de que a variação é comum a todas a
línguas vivas, foi por muito tempo excluída dos estudos sobre a
linguagem. A concepção estruturalista que vigorou até meados
do século XX considerava a variação linguística como um quadro
caótico que não podia ser descrito.
Mas isso não quer dizer que os estruturalistas não
reconhecessem a existência da variação, eles apenas não a
consideravam como seu objeto de estudo, uma vez que não
dispunham de um aparato teórico-metodológico para descrevê-
la. Com isso, a langue foi tomada como objeto de estudo,
desprezando-se a parole (fala), que é, em si, heterogênea e sujeita
à ação de fatores sociais. Em outras palavras, desprezava-se a
relação entre língua e sociedade. O que se verá mais adiante,
porém, é que estava aí a chave para a compreensão da mudança
linguística.
68 Linguística

Precisamos ressaltar que, embora predominasse uma vi-


são formalista dos fatos da língua, alguns estudiosos privilegia-
ram a relação linguagem e sociedade, a exemplo do austríaco
Hugo Schuchardt, que observou a existência de variedades de
fala existentes numa comunidade linguística, relacionando-as a
condicionamentos extralinguísticos, como sexo, idade e nível de
escolaridade. Com esse estudo, Schuchardt, ao considerar o con-
texto cultural e social da língua como condicionante básico da va-
riação e da mudança, abre caminho para a Dialetologia e mais tar-
de para a Sociolinguística.
Antoine Meillet (1866-1936), apesar de qua-
Antoine Meillet, nos pri-
se sempre considerado como discípulo de
meiros anos do século XX,
Saussure, na resenha que escreve para o
introduziu uma concepção
Curso de linguística geral, opõe-se à ideia
sociológica da língua, ao
saussuriana de que “a linguística tem por úni-
considerar esta como um
co e verdadeiro objetivo a língua considerada
fato social e que não existe
em si mesma e por si mesma” (SAUSSURE,
fora do indivíduo.
1931, p. 31). Meillet ressalta que “ao separar

a variação linguística das condições externas


Ao conceber a língua como
de que ela depende, Ferdinand de Saussure a
um sistema homogêneo e
priva de realidade; ele a reduz a uma abstra-
encerrado em si mesmo,
ção que é absolutamente inexplicável.
os estruturalistas viam-se
diante de uma importante
questão, conhecida como paradoxo saussuriano: como uma lín-
gua poderia mudar sem comprometer a funcionalidade do siste-
ma? Dizendo de outra maneira: como justificar que a existência
de uma diversidade de formas linguísticas não impediria a comu-
nicação entre os membros de uma comunidade?
Conforme assinala Almeida (2009), apesar da forte
resistência à consideração de fatores sociais, culturais, históricos e
ideológicos no tratamento das questões linguísticas, dialetólogos
e sociolinguistas insurgiram-se contra o modelo predominante.
Ainda de acordo com a referida autora, a homogeneidade
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 69

linguística, propagada pelo estruturalismo e pelo gerativismo,


é rejeitada e a variação passa a ser vista como uma condição
normal do sistema linguístico. Para a Sociolinguística, a ausência
de variação é que seria anormal.
Por essa concepção, a variação não é vista como aleatória.
Isso quer dizer que, quando o falante faz a opção por uma forma
linguística, existem forças que atuam nessa escolha. Tais forças
podem ser internas ou externas (como sexo, idade, origem
étnica, etc) à língua.
A Sociolinguística
desponta a partir da década William Labov (nascido a 4 de dezembro de
de 1960 como reação aos 1927) é um renomado linguista americano,
estudos que não conside- considerado o fundador da Sociolinguística
ravam a abordagem dos Variacionista. É professor do departamento
fatos sócio-históricos no de Linguística na University of Pennsylvania e
tratamento dos fenômenos desenvolve pesquisas nas áreas de sociolin-
linguísticos. Esse novo mo- guística, mudança linguística e dialetologia.
delo teórico-metodológico, Entre suas principais obras estão Padrões
a Sociolinguística Variacio- Sociolinguísticos (1972); Fundamentos para
nista ou Teoria da Variação, uma teoria da mudança linguística (1968);
tem como seu principal Language in the Inner City (1972); Principles
representante o linguista of Linguistic Change (1994). É presidente da
americano William Labov, Linguistic Society of America desde 1979 e
que desenvolveu os clás- membro da National Academy of Sciences
sicos estudos sobre a mu- desde 1993.
dança em progresso na Ilha
de Martha’s Vineyard (1963) e sobre a estratificação social do
inglês da cidade de Nova Iorque (1966).
Em síntese, como destaca Almeida (2009), com a
formalização do modelo da Sociolinguística Variacionista, a ideia
da variação como uma condição da língua bem como a análise
e a abordagem dos fatores linguísticos e extralinguísticos que
influenciam na variabilidade de falares de uma comunidade
70 Linguística

passaram a constituir o centro de interesse da análise linguística.


A tarefa da Sociolinguística é, assim, descrever e analisar a
variação linguística, correlacionando-a às estruturas sociais. Em
outras palavras, enfatiza-se a relação entre língua e sociedade.
Isso não quer dizer, entretanto, que os fatores de natureza
linguística sejam desprezados.
A denominação Sociolinguística para a nova ciência
surgiu em um congresso, em 1964, organizado por William
Bright, na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA)
em que estiveram John Gumperz, Dell Hymes, John Fisher,
William Labov e José Pedro Rona. Bright foi o responsável por
publicar as atas das discussões e escrever o texto introdutório,
As dimensões da Sociolingüística, em que traça o perfil da
nova disciplina científica, enfatizando nessa caracterização a
relação entre linguagem e sociedade ao afirmar que cabe à
Sociolinguística a tarefa de “mostrar que a variação [...] não
é livre, mas correlacionada a diferenças sociais sistemáticas”
(BRIGHT, 1974, p. 11).
Labov (2008) considera redundante o termo
Sociolinguística, uma vez que, para ele, não é possível
conceber uma teoria ou uma prática linguística dissociada
das questões sociais.
Diferentemente da visão formalista, Labov (2008, p. 13)
partia da análise empírica, observando a fala concreta dos
indivíduos tal como “usada na vida diária por membros da
ordem social” – o vernáculo.
Considerando que a relação entre língua e sociedade,
a Sociolinguística descreve a língua da comunidade de
fala. Esta é entendida como um conjunto de pessoas que
interagem verbalmente e seguem o mesmo conjunto de
normas linguísticas.
Partindo do pressuposto de que a variação não se dá ao
acaso, a Sociolinguística busca sistematizar o caos aparente
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 71

da língua (TARALLO, 2005). Mas o que caracterizaria esse


caos?
A aparente situação caótica da língua diz respeito à
existência de diferentes formas de expressar uma mesma
ideia. A essas diferentes formas de se dizer a mesma coisa
dá-se o nome de variantes linguísticas, definidas por Tarallo
(2005, p. 8) como “[...] diversas maneiras de dizer a mesma
coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de
verdade”. Ao conjunto dessas variantes chama-se variável.
Vamos entender melhor esses conceitos. No português
do Brasil, um dos fatos em variação que tem despertado
a atenção de muitos estudiosos é a expressão do objeto
direto de terceira pessoa. A esse fato vamos chamar variável
linguística. Para essa variável existem, pelo menos, três
variantes no português do Brasil. Vejamos quais são elas.
72 Linguística

As variantes estão sempre em concorrência e podem


permanecer assim por vários anos sem que nenhuma delas
desapareça ou pode ser que uma delas suplante as outras.
Na sistematização da variação, o sociolinguista descreve os
contextos linguísticos e extralinguísticos que condicionam o uso
de determinada forma.

Texto complementar

SOCIOLINGUÍSTICA –
UMA ENTREVISTA COM WILLIAM LABOV

William Labov
Universidade da Pennsylvania

ReVEL – O senhor teve uma enorme importância nos


desenvolvimentos da Sociolinguística nos Estados Unidos.
E pode ser considerado o fundador da Sociolingüística
Variacionista. O senhor poderia nos contar um pouco sobre a
sua história no campo da Sociolinguística?
Labov – Quando eu comecei na Linguística, eu tinha
em mente uma mudança para um campo mais científico,
baseado na maneira como as pessoas usavam a linguagem
na vida cotidiana. Quando eu comecei a entrevistar pessoas e
gravar suas falas, descobri que a fala cotidiana envolvia muita
variação lingüística, algo com que a teoria padrão não estava
preparada para lidar. As ferramentas para estudar a variação
e a mudança sincrônica surgiram dessa situação. Mais tarde,
o estudo da variação linguística forneceu respostas claras
para muitos dos problemas que não eram resolvidos por uma
visão discreta da estrutura linguística.
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 73

ReVEL – Qual é o objeto de estudo da Sociolinguística?


Labov – É a língua, o instrumento que as pessoas
usam para se comunicar com os outros na vida cotidiana.
Esse é o objeto que é o alvo do trabalho em Variação
Linguística. Existem outros ramos da Sociolinguística que
estão preocupados primordialmente com questões sociais:
o planejamento linguístico, a escolha pela ortografia oficial e
outros que se preocupam com as consequências das ações
de fala. Todas essas são importantes áreas de estudo, mas
eu sempre tentei abordar as grandes questões da Linguística,
como determinar a estrutura da linguagem – suas formas e
organização subjacentes – e conhecer o mecanismo e as
causas da mudança linguística. Os estudos da linguagem
usada no dia-a-dia provaram ser bastante úteis para alcançar
esses objetivos.

ReVEL – Qual é o futuro da Sociolinguística? Qual é o


futuro da Sociolinguística Variacionista?
Labov – A Linguística não é uma ciência previsível, e eu
prefiro deixar o futuro acontecer em seu devido tempo. O que
irá determinar o futuro serão os resultados dos estudos em
variação linguística, se eles provarem ser uma rota positiva
e cumulativa para responder nossas questões fundamentais
sobre a natureza da linguagem e das pessoas que a utilizam.

ReVEL – O senhor poderia sugerir algumas leituras


essenciais na área de Sociolinguística?
Labov – Entre os estudos mais antigos importantes,
eu acredito que os trabalhos de Peter Trudgill em Norwich,
Walt Wolfram em Detroit e meus próprios estudos em Nova
Iorque (que acabaram de aparecer em uma segunda edição,
bem como no livro Sociolinguistic Patterns) deveriam ser
conhecidos. Alguns dos trabalhos mais importantes em
74 Linguística

variação linguística são feitos no Brasil, e as pesquisas de


Anthony Naro, Marta Scherre, Sebastião Votre, Gregory Guy,
Eugenia Duarte e Fernando Tarallo devem ser vistas. Muitos
desses trabalhos têm relação com a pesquisa em variação em
espanhol, nos estudos de Shana Poplack, Richard Cameron e
Carmen Silva-Corvalán. Meu trabalho recente está reportado
em dois volumes do Principles of Linguistic Change (1994,
2001). Por fim, qualquer um que deseja estar atualizado com
pesquisas na área deve ler o periódico Language Variation and
Change, onde são publicados os artigos mais importantes.

Fonte: http://i.s8.com.br/images/books/cover_tn/img3/pq292813.jpg
http://2.bp.blogspot.com/_PtYb0vq1NkI/Sv7yDEqFrSI/AAAAAAAAAOs/
Km8NamQYcdk/s400/Dante.gif

Para Refletir
O objeto de estudo da análise variacionista é a comunidade de
fala. De acordo com a definição do professor Gregory Guy, uma
comunidade de fala é formada por falantes que: compartilham
traços linguísticos que distinguem seus grupos de outros;
comunicam-se relativamente mais entre si do que com outros.
Comece a observar como as pessoas de sua comunidade falam,
depois compare com o modo de falar de outros lugares.
Tema II | Principais teóricos/teorias da Linguística moderna 75

Resumo do Tema 2

Como vocês podem perceber, os estudos linguísticos


compreendem visões distintas do mesmo objeto. As várias
teorias apontam para detalhes que precisam ser estudados.
Portanto, não há uma corrente melhor ou pior, mas todas
são necessárias para a compreensão da linguagem humana,
sobretudo da língua falada.
ORGANIZAÇÃO DA LÍNGUA:
SISTEMA, NORMA E FALA
Parte II
3 Conhecendo o sistema
linguístico: níveis da gramática

Então, pessoal, no tema anterior concluímos a parte mais


teórica da nossa disciplina: vimos a definição e os principais
conceitos da linguística, além de conhecermos as teorias e
teóricos que mais contribuíram para o desenvolvimento dos
estudos da linguagem. Agora, neste terceiro tema, damos início
a uma parte mais prática, na qual ‘veremos a língua por dentro’,
como funcionam os subsistemas que compõem a gramática
de uma língua, partindo dos conceitos básicos de cada ciência
correspondente aos níveis gramaticais.

3.1 INTRODUÇÃO AO NÍVEL FONÉTICO: DELIMITAÇÃO E


CONCEITOS

A fonética consiste no estudo dos sons físico-articulatórios


isolados, como eles são percebidos em suas particularidades
articulatórias, acústicas e auditivas. Ela é a ciência que apresenta
80 Linguística

os métodos para a descrição, transcrição e classificação dos sons


da fala, principalmente os sons usados na linguagem humana.
Considerando que o homem é capaz de produzir uma
gama variadíssima de sons vocais, os estudos fonéticos têm a
finalidade de investigação do som da fala, e sua unidade básica
de estudo é o fone. Para a transcrição fonética se utilizam os
colchetes [d], representantes da sua unidade mínima.

Ex.:
1) Transcrição de uma palavra 
2) Transcrição de uma frase 

Como ciência, a fonética trata da substância da expressão,


assim como para qualquer estudo fonológico, torna-se
indispensável partir do conteúdo fonético, articulatório e/ou
acústico para determinar quais são as unidades distintivas de
cada língua. Sendo assim, a produção dos sons é estudada de
três ângulos diversos:

- Fonética articulatória - estudo da produção da fala na


dimensão motora, fisiológica e articulatória. Ela analisa como os
sons são produzidos, isto é, a posição e a função de cada um dos
órgãos do aparelho fonador;

- Fonética acústica – estudo da onda sonora produzida


pela corrente de ar em sua passagem pelo aparelho fonador, ou
seja, focaliza-se na percepção das propriedades físicas, sinais
acústicos, dos sons da fala a partir de sua transmissão do falante
ao ouvinte.

- Fonética auditiva – estudo da percepção da fala.


A produção do som envolve vários órgãos que
conjuntamente fazem, como resultado, soar nossa voz. As
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 81

unidades constitutivas do contínuo sonoro são produzidas por


um mecanismo fisiológico específico a que se convencionou
chamar de aparelho fonador, e do qual fazem parte os pulmões,
a laringe, a faringe e as cavidades orais e nasais:

Com o objetivo de compreendermos o mecanismo de


produção da fala e da articulação dos sons é que a figura acima
vem auxiliar permitindo na visualização do aparelho fonador.
É importante destacar que os órgãos do corpo humano que
participam da produção da fala dividem-se em três grupos:
- o sistema articulatório (composto pela faringe, língua,
palato, nariz, dentes, lábios);
- o sistema fonatório (composto pela laringe onde está a
glote);
- o sistema respiratório (pulmões, músculos pulmonares,
brônquios, traqueia).
82 Linguística

Quanto à funcionalidade do aparelho fonador, ressaltamos


que os órgãos utilizados na produção da fala não têm como
função primária a articulação de sons. Os pulmões e a cavidade
nasal, por exemplo, têm um desempenho específico no processo
de respiração, mas para a produção do som servem de câmara
iniciadora da corrente de ar, e a cavidade nasal funciona como
câmara de ressonância para a produção de sons nasalizados. E
assim ocorre com os demais órgãos.
Por processo de fonação entendem-se os diversos estados
da glote e consequente excitação acústica da corrente de ar ao
passar pelas cordas vocais ou pregas vocais. Assim, a glote é o
espaço entre os músculos estriados que podem ou não obstruir
a passagem de ar dos pulmões para a faringe. Estes músculos
são chamados de cordas vocais. Diremos que o estado da glote
é vozeado – ou sonoro – quando as cordas vocais estiverem
vibrando durante a produção de um determinado som, ou seja,
os músculos que formam a glote aproximam-se e, devido à
passagem da corrente de ar e da ação dos músculos, ocorre
a vibração. Em oposição, denominamos o estado da glote de
desvozeado – ou surdo – quando não houver vibração das cordas
vocais, ou seja, os músculos que formam a glote encontram-se
completamente separados de maneira que o ar passa livremente.
Outras posições das cordas vocais geram outros tipos de
sons, como:
O sussurrado - resultante de uma pequena abertura na
glote.
O glotal (também conhecido como oclusão ou oclusiva) -
quando a corrente de ar é bruscamente interrompida na glote
por um período mais prolongado das cordas vocais.
O aspirado – resultante das vogais surdas produzidas com
a mesma ruptura labial e altura da língua da vogal que se segue
a uma consoante.
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 83

O murmurado – Quando há uma vibração das cordas


vocais, ocorrendo um escape extra de ar.
O tremulado – sons produzidos pela vibração lenta dos
ligamentos das cordas vocais.
Os segmentos orais e nasais são outro ponto a ser
observado, para tanto devemos nos concentrar na posição do véu
palatino. Para isto, amigo leitor, é só acompanhar o que acontece
com a úvula, pois ela localiza-se no final do véu palatino ou palato
mole. A úvula é aquela “gota de carne” que vemos quando
observamos a boca de uma pessoa aberta, ela é comumente
chamada de “campainha”. Teremos som oral quando o ar não
tiver acesso à cavidade nasal devido a úvula está levantada. Em
contrapartida teremos um som nasal quando o ar tiver acesso à
cavidade nasal ocasionando ali ressonância em virtude da úvula
abaixada, como demonstra a gravura abaixo:

Produção do som oral Produção do som nasal

Os diferentes modos por que o fluxo de ar é modificado


permite o estabelecimento de duas grandes classes de sons:
o das consoantes e o das vogais. Entende-se por segmento
consonantal um som que seja produzido com algum tipo de
obstrução nas cavidades supraglotais de maneira que ocorra
obstrução total ou parcial da passagem da corrente de ar podendo
ou não haver fricção. Já como segmento vocálico compreende-
84 Linguística

se a passagem livre da corrente de ar, sem obstrução ou fricção


no trato vocal.
É através do ponto e modo de articulação que conseguimos
classificar essas duas grandes classes de sons. Pontos ou áreas
de articulação são os diferentes lugares em que dois articuladores
entram em contato. Modos de articulação são os diferentes
graus de fechamento da cavidade orofaríngea e as maneiras por
que o ar nela modificado escoa pela boca.

OBS.: Um articulador é qualquer parte, na área orofaríngea,


que participa na modificação da qualidade do som. Existem
dois tipos de articuladores: o ativo (lábios, língua, úvula, etc.)
e o passivo (arca dentária, os alvéolos, a abóbada palatina).

Listamos a seguir as categorias de pontos de articulação:

Bilabial: é o som articulado com os dois lábios: superior e


inferior. Ex: pá, boa, má
Labiodental: é o som articulado com os dentes superiores
e com o lábio inferior. Ex: faca, vaca, vá.
Alveolar: é o som articulado com o ápice ou a lâmina da
língua e com os alvéolos. Ex: nada, lata, data, sapa.
Alveopalatal (ou pós-alveolares): é o som articulado com a
parte anterior da língua e com o palato duro. Ex: chá, já.
Palatal: é o som articulado com a parte média da língua e
com a parte final do palato duro. Ex: banha, palha.
Velar: é o som articulado com o dorso da língua ou parte
posterior da língua e com véu palatino ou palato mole. Ex: casa,
gata, rata.
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 85

Uma vez definido o ponto de articulação, agora identificare-


mos a maneira ou modo como o som se articula. Nesse sentido,
uma consante pode ser:
Oclusiva: quando as cordas vocais aproximam-se até que
se produza uma oclusão/bloqueio e depois separam-se. Ex: pá,
tava, bar, gol.
Nasal: quando o a escoa tanto pela cavidade bucal, como
pelo nariz. (cavidade nasal) Ex: má, nua, banho.
Fricativa: quando as cordas vocais aproximam-se muito,
mas sem que se produza uma oclusão, e caracterizam-se por
certo ruído. Ex: fé, vá, sapa, chá, já, rata.
Africada: quando na fase inicial há uma obstrução completa
da passagem de ar, mas na fase final dessa obstrução, quando se
dá a soltura da oclusão, ocorre então uma fricção. Ex: [t∫]ia, [dȘ@ia
Laterais: quando a passagem de ar tem saída lateral devido
ao encontro de dois articuladores: um passivo e um ativo. EX:
Lá, palha, sal
Vibrantes: quando os articuladores, passivo e ativo, se
tocam causando vibração. Ex: marra, carro, Maria, careta,

OBS.: Atentamos aqui que o som /r/ varia consideravelmente,


dependendo do dialeto em questão, podendo, quanto ao
ponto, tornar-se sonsm uvular, faringal, retroflexo e glotal;
e, quanto ao modo ou maneira, ser tepe (vibrante simples),
fricativo ou retroflexo.
86 Linguística

Tabela simplificada dos sons


Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 87

A tabela anterior explicita alguns dos sons produzidos pela


língua portuguesa. Ainda frisando os sons:
[T∫] – É uma pronúncia da consoante inicial da palavra tia
do sudeste brasileiro;
[∫] - É uma pronúncia da junção das consoantes “Ch”. Ex:
chá;
[Ș] - É uma pronúncia da consoante “J”. Ex: Já;
[dȘ] - É uma pronúncia da consoante inicial da palavra dia
do sudeste brasileiro.
[h] – Esse som representa a letra “r” em palavras como:
rato, mar, carro, morte.
Para realizarmos uma transcrição fonética é necessário
termos noção dos segmentos aqui já levantados, uma vez que
transcrição fonética é a tentativa de se registrar de modo claro o
que se passa na fala. A finalidade de uma transcrição é possibilitar
a leitura de qualquer som de uma língua que se pretende estudar.
É por essa razão que o alfabeto fonético é uma convenção para
se escrever os sons das línguas, independente da convenção
que cada um utiliza para a sua escrita no cotidiano.
Apresentado os parâmetros articulatórios das consoantes,
agora é hora de conversarmos sobre vogais. Os segmentos
vocálicos são descritos levando-se em consideração os
seguintes aspectos: posição da língua em termos de altura: alta,
média, baixa, posição da língua em termos anterior/posterior e
arredondamento ou não dos lábios.
88 Linguística

Para Refletir
Antes dessa aula você já tinha percebido, por exemplo, quantos
“erres” você mesmo realiza (a depender do contexto fônico)?
Quando pronunciamos as palavras rato, cara, carreta, carta e
mar, é possível perceber que em cada contexto (inical, medial ou
final) ocorre um som difente, sem contar as variações regional
(ou diatópica). A partir de agora, fique atento às diferentes
realizações das consoantes e vogais e tente fazer a transcrição
dos diferentes sons que você identificar. Em seguida, discuta
com seus colegas no fórum do AVA.

3.2 INTRODUÇÃO AO NÍVEL FONOLÓGICO: DELIMITAÇÃO E


CONCEITOS

Como já explicitado, a organização da cadeia sonora de


fala é orientada por certos princípios. Tais princípios agrupam
segmentos consonantais e vocálicos em cadeia e determinam
a organização das sequências sonoras possíveis de uma
determinada língua. Portanto, os segmentos consonantais
e vocálicos organizam-se em estruturas silábicas formando
palavras possíveis em uma determinada língua.
Dessa forma é necessário compreendermos a função da
fonologia que estuda o sistema sonoro de um idioma, do ponto
de vista de sua função no sistema de comunicação linguística e
tem como sua unidade básica de estudo o fonema.
O conceito de fonema foi formulado com mais precisão a
partir de 1930 nos trabalhos do Círculo Línguístico de Praga. A
noção tal como usada atualmente já estava implícita na dicotomia
língua-fala estabelecida por Saussure.
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 89

Unidade mínima

O fonema é a menor unidade distintiva e indivisível da


língua. Essas unidades fônicas são em número limitado e definem
quais são os sons de uma língua que têm valor distintivo (servem
para distinguir palavras).

Ex.: caço (do verbo caçar) caso (do verbo casar)

Objetivo

Um dos objetivos centrais da fonêmica é fornecer aos seus


usuários o instrumento para a conversão da linguagem oral em
código escrito. Para se representar os fonemas usam-se barras
transversais /b/.
O procedimento habitual de identificação de fonemas é
buscar duas palavras com significados diferentes cuja cadeia
sonora seja idêntica. Dessa forma “pato” difere de “mato”,
haja vista o traço de sonoridade opositivo de /b/ e /m/. As duas
palavras constituem um par mínimo, uma oposição fonêmica.
Em fonologia os traços distintivos, também conhecidos
como funcionais, referem-se às unidades mínimas e constrativas.
Eles são passíveis de alteração em função de certas circunstâncias
da enunciação. É o que se chama alofone (variante do fonema).

Há três possibilidades para a ocorrência de um alofone:

a) A primeira depende dos diferentes hábitos articulatórios


dos falantes da língua - variante livre. Ex: O /t/ pronunciado com
a ponta da língua tocando os alvéolos em vez de a parte interna
da arcada dentária superior.
90 Linguística

b) A segunda depende da posição do fonema na enunciação,


ou seja, é possível que a contiguidade de outro fonema ou a sua
posição na sílaba altere a articulação – variante posicional. Ex: O
/t/ com uma articulação africada em tijolo pelo contato com o /i/.

c) A terceira ocorre por intenção comunicativa, enriquecendo


a articulação de algum traço inabitual – variante estilística. Ex:
O /o/ da palavra gol pronunciado prolongadamente para indicar
entusiasmo.
As alterações por que passam os fonemas em sua
articulação podem, em determinadas situações, neutralizar a real
oposição que há entre eles. Um dos resultados articulatórios dessa
neutralização é o arquifonema, este corresponde acusticamente
a um dos fonemas neutralizados ou é o denominador comum de
todos ele.

Ex: mar, a variação da pronúncia do /R/.

Uma língua possui um número limitado e fixo de fonemas,


que se organizam naturalmente num paradigma de grupos
opositivos, oposição por ausência ou presença de sonoridade,
e associativos, pela coincidência da articulação. Chama-se a
esse paradigma o sistema fonológico da língua. Nem todos
os sistemas são idênticos, eles apresentam divergência de
idioma para idioma, seja pelo número diferente de fonemas,
seja pela distribuição desses fonemas no sistema.
Assim, quando falamos que estamos estudando uma
língua, estamos nos referindo ao estudo fonológico do idio-
ma, os traços distintivos que envolvem a língua estudada.
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 91

A língua é dinâmica por sua própria natureza e está


sujeita a modificações determinadas por fatores fonéticos,
fonológicos, morfológicos e sintáticos. Sabendo que o
comportamento fonológico não é amorfo,podemos agru-
par esses processos fonológicos em três grupos:
1- Processos que acrescentam traços ou mudam a
especificação dos traços como assimilação.
2- Processos que inserem segmentos como, por exemplo,
a ditongação que irá explicar o aparecimento de uma semivogal
em rapa[y]z.
3- Processos que apagam segmentos, como pronúncias
como ‘peraí’ ao invés de ‘espera aí’.

Leitor, lembre que no estágio de descrição de uma língua, o


objetivo central é identificar como se organiza a cadeia sonora
da fala. Assim sendo, basta que encontremos pares mínimos
para sons foneticamente semelhantes.

A grafia é o sistema empregado para registrar a linguagem


por escrita, quando se vale de um desenho convencional para
se reportar às formas da língua, constitui o que chamamos
de ideogramas. Quando se vale dos elementos da fonação,
constitui a grafia fônica. Em português, como nas demais línguas
ocidentais, a grafia é fônica, representada por letras, diacríticos
(cedilha, til, acentos) e sinais de pontuação.
A grafia de uma língua costuma ser fixada convencionalmente
num sistema estrito a que chamamos de ortografia. Esta grafia é
representada pela letra, um sinal gráfico com o qual os vocábulos
se constroem na língua escrita. Ao conjunto de letras de uma
língua chama-se alfabeto.
92 Linguística

A correspondência entre a letra e o fonema nunca é


rigorosa e estritamente coerente, dadas as funções específicas
na comunicação social . A letra como tal tem valor apenas dentro
da língua escrita, não podendo ser tomada como representação
dos fonemas da língua oral.
É nesse contexto de assimilação das letras que a
alfabetização aparece. A alfabetização é um processo que a cada
momento se modifica, sendo o educador e o linguista figuras
importantes para este processo.
Alfabetizar é transpor os sons da fala para a grafia. E é
através da ortografia que se inicia o processo de uma escrita
padronizada. Todavia, alfabetizar não é apenas ensinar códigos
de escrita, mas atingir, sobretudo, o funcionamento e a estrutura
da língua.

Resumindo

- Há 26 letras no alfabeto latino e elas não são suficientes para


representar unitariamente os fonemas de nossa língua.
- Uma única letra pode indicar fonemas diferentes.
- Um único fonema pode ser indicado por letras diferentes.
- Uma sequência de letras pode representar um só fonema.
- Uma letra pode representar uma sequência de fonemas.
- As letras que em certos contextos representam um mesmo
fonema podem, como grafemas, distinguir na língua escrita
os homônimos da língua oral.
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 93

Sílabas

A junção de consoantes e vogais forma o que conhecemos


por sílaba. Sílaba é o conjunto de um ou mais fonemas
pronunciados numa única emissão de voz. Na língua portuguesa,
o núcleo da sílaba é sempre uma vogal: não existe sílaba sem
vogal e nunca há mais do que uma única vogal em cada sílaba.
Assim a constituição básica da sílaba em português é a
conhecida como:
- CV (consoante e vogal): ca-ma.
- V: a-ma-nhã.
- CCV: pra-to.
- CVC: car-ta.
- CVV: coi – ta - do.
As estruturas V, CV, CCV são entendidas como sílabas
abertas, pois não há consoantes no seu declive, ex: “pá”. Já as
estruturas CVV, CVC são consideradas sílabas travadas quando
há consoantes ou semivogais no seu declive, ex: “mar”.

Para Refletir
Sabemos que língua não é estática e que mudanças de or-
dem fonética e fonológica estão sempre em curso, de tal for-
ma que o sistema ortográfico, por muitas vezes, não consegue
acompanhá-las. Dessa forma fica uma pergunta para você que
acompanhou toda a discussão sobre fonética e fonologia. Para
as dificuldades ortográficas que os estudantes muitas vezes
apresentam não haveria também razões de caráter educacio-
nal, da própria política de ensino do país? Acreditar que se pos-
sa chegar a um sistema de escrita homogêneo e que reproduza
de forma biunívoca a fala, como solução para o problema dos
erros ortográficos, é ignorar a enorme variabilidade do com-
portamento linguístico e sociocultural.
94 Linguística

3.3 INTRODUÇÃO AO NÍVEL MORFOLÓGICO: DELIMITAÇÃO E


CONCEITOS

Em geral, define-se a morfologia como a área da Gramática


que se dedica ao estudo da estrutura interna das palavras
(SANDALO, 2006). No entanto, a definição de palavra é um ponto
de discussão entre os estudiosos da linguagem.
No que diz respeito ao termo morfologia, sabe-se que foi
empregado primeiramente nas ciências da natureza, botânica
e geologia. Na linguística, essa denominação começou a ser
utilizada a partir do século XIX. Se analisarmos esse termo “ao
pé da letra”, com base em elementos que lhe deram origem,
morfologia significa o estudo da forma.
O termo forma, por sua vez, pode ser entendido, num
sentido amplo, como sinônimo de plano de expressão, opondo-
se ao plano de conteúdo. Desse modo, a forma compreende dois
níveis de realização:
- os sons, destituídos de significados, mas que se combinam
e formam unidades com significado;
- as palavras têm regras próprias para a combinação, na
composição das unidades maiores.

A palavra não precisa, necessariamente, ser interpretada


como uma unidade fundamental, para representar a correlação
entre o plano de conteúdo e o plano de expressão. Essa tarefa
pode ser atribuída ao morfema, duas unidades distintivas como
possíveis centros nos estudos morfológicos.
No que se refere à diferença, a unidade que se centra o estudo
morfológico – morfema ou palavra – com maneiras diferentes de
focalizar a morfologia. Podemos dizer que a noção de morfema
está relacionada com o estudo das técnicas de segmentação das
palavras em suas unidades constitutivas mínimas, ao passo que
os estudos que privilegiam a noção de palavra, com o modo pelo
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 95

qual a estrutura das palavras em construções maiores, com o


vocabulário total da língua.

Caro aluno, nessas primeiras observações já nos é permitido


verificar uma parte das questões de investigação de morfologia
– definida como área da linguística que estuda a forma das
palavras. Ainda restaria acrescentar, para completar o domínio
da investigação da morfologia que, a partir de “cont-ar”, também
podemos obter outra série de palavras: contista, contador, conta,
conto e contagem. Estas palavras, embora estejam associadas a
contar, não podemos dizer que sejam formas diversas da mesma
base de significado lexical, ou seja, um novo termo possui com
significado lexical próprio, sendo chamada de Morfologia Lexical.
Já na construção do conjunto de termos formados de “cont-
ar”, podemos constatar a atuação do processo de flexão (contou,
contamos, contava, contávamos, contasse), formando palavras
em objeto de estudo da Morfologia Flexional, sem mudança da
raiz lexical.

Nos estudos comparativos entre as línguas desenvolvido


no século XIX, permitiu que se formulasse uma tipologia
morfológica.
Foi o conhecimento maior de línguas fora do domínio indo-
europeu que permitiu à linguística rever seu conceito de palavra,
assim como os mecanismos usados para a sua identificação. Os
critérios semânticos – uma palavra – mostram-se insuficientes,
quando aplicados a várias línguas, como as polissintéticas,
ou seja, a palavra obedece aos critérios de poder ocorrer
isoladamente em várias posições sintáticas.
96 Linguística

As palavras são signos linguísticos e, adotando a definição


sintática da palavra, o elemento mínimo que pode ocorrer
livremente no enunciado ou pode sozinho constituir um
enunciado, resta examinar o que significa estudar a forma das
palavras. E poderíamos associar forma ao significante do signo
linguístico, expressão sonora, que está intimamente ligada ao
significado, conteúdo semântico.
O significado e o significante se correspondem,
respectivamente, ao plano de expressão e ao plano de conteúdo,
os sons que são organizados linguisticamente para gerar
significado.

Mas qual seria, afinal, a unidade


mínima a ser estudada na Morfologia?

Ela possui sua própria unidade básica, e a unidade mínima


de análise é o signo, a palavra. E para evitar que enunciados
diferentes pudessem ser segmentados de maneiras diversas
e que noções procedentes dos estudos tradicionais fossem
associados à análise gramatical. A linguística do século XX
retirou da noção de palavra, em favor da noção de morfema.
Sendo assim, a noção de morfema tornou-se unidade básica da
gramática, dentro dos estudos morfológicos.
Assim, a morfologia torna-se baseada em morfemas, e
maior parte do século XX passou a ser análise sintagmática dos
vocábulos. Palavras e vocábulos passaram a ter a mesma carga
semântica. E considerar o morfema ou a palavra como a unidade
central do estudo morfológico resulta em modos diferentes de
abordar a morfologia.
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 97

É possível dizer que a noção de morfema está relacionada


com o Estruturalismo, tendo como problema central a
identificação dos morfemas nas diversas línguas do mundo. A
noção de palavra é própria de estudos preocupados com o modo
pelo qual a estrutura das palavras reflete as suas relações com
outras palavras em construções maiores, formando o vocabulário
total da língua.

Processos Morfológicos

Produzindo um novo signo linguístico, associando


dois elementos mórficos, se obedece a certos princípios ou
mecanismos que variam em sua possibilidade de combinação
nas diferentes línguas. Assim, os modos de combinação são
processos morfológicos nas formas:

Adição: os morfemas auditivos são facilmente captados


pela análise morfêmica. São os radicais e os afixos. Quando um
ou mais morfemas é acrescentado à base, que pode ser uma raiz
ou radical primários, isto é, o elemento mínimo de significado
lexical. Em aprofundar, temos os seguintes morfemas a-profund-
ar, onde a-e – ar são morfemas aditivos, que se acrescentaram à
raiz profund-. Aprofund- é a base de aprofundar. São chamados
afixos os morfemas que se adicionam à raiz; afixação é o
processo. Dependendo da posição dos afixos em relação à base
podemos ter cinco tipos:
98 Linguística

1 - Sufixação: depois da base. Ex: livro > livro-s; casa >


cas-eiro;
2 - Prefixação: antes da base. Ex: ler > re-Ier; certo > in-
certo;
3 - Infixação: dentro da base. Ex: “esticado” > “esticar”;
4 - Circunfixos: são afixos descontínuos que enquadram a
base, como em Georgiano (Cáucaso):
“muito” “muito bonito” e “ muito largo”, um sufixo de
nominativo. Nenhum dos dois tem significado isoladamente, por
isso é preferível tratar a combinação dos dois como uma unidade.
5 - Os transfixos são descontínuos, atuando numa base
descontínua, “ele fechou” e “eu fecharei”.

b) Reduplicação: é um tipo especial de afixação, que


repete fonemas da base, com ou sem modificações. Nas línguas
clássicas -latim, grego e sânscrito – está associado à flexão
verbal. Alguns perfeitos latinos são marcados pela repetição da
consoante inicial do radical do verbo, seguida de –e. O morfema
reduplicado pode aparecer antes, no meio ou depois da raiz.
Pode, também, repetir toda a raiz ou parte dela. Repete-se a
sílaba final da raiz: l”velho” e “muito velho”. Nas línguas crioulas
os significados mais frequentemente obtidos pela reduplicação
são de intensidade, iteração e distribuição.

Alternância: quando alguns segmentos da base são


substituídos por outros, de forma não arbitrária, porque são
alguns traços que se alternam com outros; como em português:
pus/pôs; fiz/fez; fui/foi. A linguística histórica trata esses
processos de alternância de vogais no interior da raiz como
apofonia e metafonia.
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 99

Subtração: os segmentos da base são eliminados para


expressar valor gramatical. pode-se dizer que no português
alguns femininos são formados por subtração de morfemas do
masculino, como em órfão/órfã; anão/anã; campeão/campeã, etc.

Morfema zero

É preciso bastante moderação ao se postular a noção


de morfema zero {0}. Não sendo possível afirmar de maneira
categórica, pelo limite. Pode-se dizer que há morfema zero
somente quando não houver nenhum morfe evidente para
o morfema, ou seja, quando a falta de uma expressão numa
unidade léxica se opõe à presença de morfema em outra, como
se deduz da comparação das formas verbais.
A marca de feminino é sempre /-a/, como exemplo. Sua
ausência é significativa como característica de masculino. Um
morfema zero se opõe a elementos bem definidos, representantes
das propriedades morfossintáticas.

Masculino
Mestre
Leitor

Feminino
Mestra /a/ morfema zero
Leitora /a/ morfema zero
100 Linguística

Morfologia Lexical

Derivação e composição são os processos mais gerais de


formação de palavras. O processo de derivação é o mais utilizado
para formar novos itens lexicais. Embora a grande diversidade
morfológica observada nas línguas do mundo dificulte o
reconhecimento da existência de “universais morfológicos”, a
pesquisa, ainda incipiente na área, revela que entre os processos
de afixação (prefixação e sufixação) há uma preferência pela
sufixação. Raras são as línguas exclusivamente prefixais; mas
muitas são exclusivamente sufixais.
Uma forma derivada é geralmente uma forma livre, isto é,
uma forma mínima que pode constituir sozinha um enunciado,
como um verbo, um adjetivo ou um advérbio. Podemos ter
derivados a partir de formas presas, isto é, formas que não
podem ocorrer sozinhas, como morfológico, em que se juntou
o sufixo - ico, que é ao mesmo tempo composta. O arranjo
consiste na associação de duas bases para formar uma palavra
nova. Incluiremos palavras compostas a partir de formas livres,
como guarda-livros (guarda + livros) como também a partir de
formas presas, como geologia (psico+logia).

Composição

O processo de composição junta uma base a outra, com


ou sem modificação de sua estrutura fônica; aglutinando-se, em
aguardente, ou justapondo-se, em pentacampeão. Os elementos
do composto apresentam uma relação entre um núcleo e um
modificador (ou especificador), entre um determinado e um
determinante. Em português, o primeiro elemento do composto
que funciona como núcleo nas estruturas formadas por:
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 101

Substantivo+substantivo

Ex.: sofá-cama, peixe-espada, mestre-sala

Substantivo+adjetivo

Ex.: caixa-alta, obra-prima, amor-perfeito

Verbo+substantivo

Ex.: guarda-roupa, porta-estandarte, beija-flor

Chegando ao fim. Ressaltamos que a diversidade das


línguas, morfologicamente, é muito grande, maior do que
a diversidade sintática. Não se pode generalizar uma noção
obtida pela análise do português ou de qualquer outra língua
indo-europeia. No entanto, a traço já estabelecido de muitas
línguas revela funcionamento semelhante. A afirmativa de que
cada morfema tem uma forma única para expressar um mesmo
significado é contestada por todas as línguas em diferentes graus
e ocorrências.
A morfologia é uma área que tem provocado muitas
polêmicas entre os linguistas, que nem sempre consideraram
o nível morfológico pertinente para a construção de uma teoria
da gramática. O estruturalismo tratou a morfologia como uma
questão fundamental, ao valorizar a descrição da diversidade
das línguas, evidenciada pela grande diferença morfológica. Para
o gerativismo, essa diversidade remete a um aspecto crucial:
como conciliar a proposta de uma gramática universal diante
de tamanha diversidade morfológica? Esse é o desafio que o
gerativismo está enfrentando hoje, ao considerar a morfologia
como um problema central a investigar.
102 Linguística

Para Refletir
No que diz respeito à forma e, especificamente, à formação
das palavras, você já percebeu que, em geral, os falantes
criam novos verbos sempre terminando em –ar, ou seja, na
1ª conjugação? Pense num objeto e tente criar um verbo.
Compartilhe sua reflexão no fórum do AVA com seus colegas.

3.4 INTRODUÇÃO AO NÍVEL SINTÁTICO: DELIMITAÇÃO E


CONCEITOS

O termo sintaxe tem origem no grego syntaxis (ordem,


disposição) e remete, tradicionalmente, à área da Gramática que
se dedica a descrever o modo como as palavras se combinam
para formar sentenças. É importante destacar que essa descrição
é organizada sob a forma de regras (BERLINK, AUGUSTO, SHER,
2006).
De acordo com Berlink et al. (2006) a maioria dos
compêndios gramaticais, de visão tradicional, apontam que as
regras, em geral, são obtidas da seguinte forma:

• Reúne-se, numa lista, um elenco numeroso de escritores


consagrados;

• Faz-se uma lista de regras segundo as quais os escritores


combinam e organizam as palavras em seus textos.

Como surgiu

As gramáticas de hoje são herança da tradição grega que


nos remontam às preocupações filosóficas da Grécia antiga,
traduzida e divulgada pelos romanos. Nos nossos compêndios
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 103

gramaticais as explicações encontradas, geralmente, são


adaptações das categorias e dos princípios que provêm da
Antiguidade Clássica. Ressalta-se, no entanto, que, tendo sido
concebidos originalmente a partir da análise das regras das
línguas gregas e latinas, os princípios nem sempre refletem os
fatos de todas as línguas. Diante disso, questiona-se a existência
de alternativas de descrição e análise, que contemple as regras
de uma gramática.

Afinal, o que é e para que serve a Sintaxe?

A sintaxe é a parte do sistema que permite criar e interpretar


frases. As palavras, cuja formação é alvo de estudo da morfologia,
podem ser listadas em dicionários e mesmo assim se criam
ou se modificam por aí, na fala espontânea, nos textos de toda
espécie, sem que cheguem a figurar registro lexicográfico. Quanto
às sentenças, a todo momento podemos pronunciar uma frase
nova, ninguém pode afirmar com precisão que a frase que inicia
este parágrafo e a que estou escrevendo agora não são inéditas,
nem que dizem exatamente a mesma coisa, ou não. Portanto, ao
contrário do que ocorre com o falante em relação às palavras, nós
não aprendemos o significado de cada uma das frases possíveis
numa língua, isoladamente, como se não tivessem nada em
comum umas com as outras, ou com suas partes.
Entendemos, assim, que os falantes reconhecem as
estruturas como sendo da sua própria língua devido à existência
de um sistema de unidades – sons, palavras, afixos, acentos – que
gera as sentenças de acordo com regras internas e próprias de
cada língua, que as ajustam. Isto, segundo Negrão; Scher; Viotti
(2003), significa dizer que o falante de qualquer língua natural
tem um conhecimento inato sobre como os itens lexicais de sua
língua se organizam para formar expressões de maior e menor
complexidade, até chegar ao nível da sentença.
104 Linguística

Pensar assim implica admitir que a competência linguística


interfere também na percepção que os falantes têm das sentenças
de nossa língua. Observa-se, portanto, que elas – as sentenças –
não resultam, simplesmente, da mera ordenação de itens lexicais
em uma sequência linear. Desse modo, como destacam Negrão et
al. (2003), “[...] sem nunca ter passado por um aprendizado formal a
respeito desse assunto, sabemos que uma série de palavras como
‘menino bicicleta o da caiu’ não é uma sentença do português”.
Continuando, Negrão et al. (2003) afirmam que essa nossa
competência é responsável, também, por nos indicar os dois
constituintes básicos de uma sentença

de um lado, estão aqueles que fazem um tipo particular


de exigência e determinam os elementos que podem
satisfazê-la; e, de outro, estão os itens lexicais que
satisfazem as exigências impostas pelos primeiros.

Vejamos, por exemplo, a sentença ‘O Noé construiu uma


arca’. De acordo com a intuição de falante nativo do português,
sabemos que o verbo ‘construir’ é um item lexical daqueles que
fazem exigências. Quer isto dizer que essa forma verbal precisa
ser acompanhada de duas outras expressões linguísticas:
i) a que irá corresponder ao objeto construído e outra, ii) que
corresponderá ao agente construtor. Na sentença analisada, as
expressões ‘uma arca’ e ‘José’ são as expressões que atendem
às exigências impostas pelo verbo construir.
Como bem observam as referidas autoras, atender a essas
exigências é algo que ocorre tão naturalmente que só percebemos
que há essa dinâmica na construção das sentenças quando
somos expostos a uma frase descontextualizada. Certamente
saberíamos identificar se uma das exigências impostas pelo
verbo fosse satisfeita. Na prática, conforme Negrão et al. (2003),
ocorreria o seguinte:
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 105

Imaginemos que alguém se aproxime de nós e


nos diga, como início de conversa, ‘comprou um
carro’. Nossa reação é imediata! Perguntamos
logo ‘quem construiu uma casa?’. Com isso,
estamos pedindo a nosso interlocutor que acerte
sua sentença, de modo a que as imposições
feitas pelo verbo construir sejam satisfeitas. (p.82)

A situação acima exemplificada nos mostra que nosso


conhecimento linguístico pode ser útil para nos orientar na
análise de sentenças da língua.

Quanto às categorias gramaticais

Seguindo a linha de discussão de Negrão et al. (2003),


destacamos a questão das categorias gramaticais. Quanto a isso,
é importante observar que o falante nativo do português irá dizer,
por exemplo, que a palavra garoto é do mesmo tipo que menina
ou cavalos, mas sabem que são diferentes das palavras ‘comprar’,
‘comprou’, ‘compraria’. Estas, por sua vez, identificam-se com
contar, contávamos, contarão. Quer isto dizer que os falantes de
uma língua sabem identificar se um item lexical pertence a uma
determinada categoria gramatical.
Diante disso, poderiam até dizer que a identificação e
agrupamento de itens feitos pelos falantes decorreriam do
conhecimento prévio do significado do item lexical em foco.
Ressalta-se, porém, que quando o falante é exposto a construções
com palavras inexistentes em sua língua, mas que apresentam
características de determinado grupo gramatical, certamente
esse falante identificará o item lexical inventado como elemento
da categoria condizente. Para exemplificar, reproduzimos, a
seguir, as sentenças apresentados por Negrão et al. (2003, p.83):
106 Linguística

a. Os meninos plongam sempre aos domingos.


b. Na minha infância, eu plongava todas as tardes.
c. Uma vez, um jornalista do Estado plongou vários artistas
aposentados.
d. Quando ele chegou, nós estávamos plongando os
convidados todos.

Diante desse exemplos, Negrão et al. (2003) declaram:

“[...] se o falante tiver conhecimento da


metalinguagem da teoria gramatical dirá não só que
‘plongar’ é um verbo, mas também que é um verbo
que tem um sujeito e um complemento (p.83).

Logo, na visão das referidas autoras, o indivíduo que


é capaz de dizer essas coisas, é porque consegue perceber
as propriedades gramaticais - morfológicas, distribucionais e
semânticas - características de cada categoria da língua. Para
reforçar essa ideia, as autoras afirmam:

o falante reconhece que o item lexical ‘plongar’


pertence à mesma categoria do item lexical
cantar porque ambos possuem a propriedade
de assumir formas variadas dependendo
dos traços morfológicos de seus sujeitos,
que, de maneira geral, são os elementos que
antecedem os verbos. (NEGRÃO et al.,2003, p.83)

Sobre o exemplo do verbo ‘plongar’, é importante destacar,


ainda, que somente unidades léxicas desse tipo, ou seja, verbos,
são acrescidas de sufixos (morfemas) que trazem as informações
de tempo e aspecto do evento descrito pela sentença. Além
disso, essas partículas estabelecem a concordância verbal, ou
seja, harmonizam o número (singular/plural) e pessoa (1ª, 2ª ou
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 107

3ª) do verbo com o sujeito. Estabelecem uma concordância de


número e pessoa com o seu sujeito. Desse modo, as marcas
morfológicas permitem-nos diferenciar a categoria dos verbos
dos demais grupos de palavras.
Vejamos mais um conjunto de dados apresentados por
Negrão et al. (2003):

a. a aula, os alunos saíram.


b. Os alunos foram saindo sem que o professor

Com respeito a esses exemplos, as autoras afirmam:

O fato de os verbos, nas sentenças acima, serem


os itens lexicais que denotam situações que podem
ser do tipo de atividades, estados ou eventos
também é um critério, nesse caso semântico, com
o qual os falantes operam para classificar os itens
lexicais de sua língua. (NEGRÃO et al.,2003, p.84)

Ante o exposto, as autoras concluem que as propriedades


morfológicas, distribucionais e semânticas características de cada
item lexical de uma língua possibilitam-nos agrupar categorias
que se definem exatamente porque os itens que as integram
compartilham as mesmas propriedades gramaticais. Assim, o
linguista deve atentar para o comportamento gramatical de cada
palavra que compõe o dicionário de sua língua e separar por
grupos de itens que apresentem comportamento semelhante,
correspondendo, cada um, a uma categoria gramatical.

A sintaxe na visão da Gramática gerativa

Segundo Berlink et al. (2006), na perspectiva da teoria


gerativista, como já estudamos, a linguagem é uma dotação
genética. De acordo com essa concepção, indivíduo já nasce
dotado de uma Gramática Universal (GU). Esta, por sua vez,
108 Linguística

deve ser entendida como a soma dos princípios linguísticos


geneticamente determinados, específicos à espécie humana e
uniformes através da espécie.
Conforme vimos quando tratamos do Gerativismo, “[...]
a GU constitui o estado inicial da faculdade da linguagem, e
a gramática do indivíduo adulto constitui o seu estado final”
(BERLINK et al., 2006, p. 214). Essa corrente teórica, como se sabe,
distingue competência e desempenho (ver tema 2). Lembrando
que, também, a competência corresponde à gramática interna do
falante; o desempenho, por seu turno, equivale ao uso concreto
desse conhecimento internalizado, ou seja, a ‘fala’ (= parole)
da dicotomia saussureana, considerando suas divergências de
concepção do objeto.
A exibição aos dados particulares de uma dada língua tem
como papel determinar a fixação dos parâmetros de variação
já previstos pela Gramática Universal. O objetivo central do
empreendimento gerativista é “o estudo da natureza e das
propriedades exatas da Gramática Universal”.
Assim, além de prover uma descrição de fatos linguísticos,
observação direta de estados finais que caracterizam, inclusive,
a diferença das línguas, os estudos gerativistas preocupam-se
especialmente em explicar os atributos específicos do saber dos
falantes - ou seja, da competência - que restringem, por outro
lado, as possibilidades de variação.
A fim de formalizar esse conhecimento internalizado
do falante, a teoria utiliza alguns recursos notacionais. Para
descrever a organização dos constituintes básicos da sentença
- a chamada estrutura de constituintes, classificam, se os dados
que a compõem em categorias sintagmáticas. Uma vez que esses
constituintes sintáticos, os sintagmas, se constituem de uma
forma hierárquica, segundo se verá a seguir, a representação
arbórea. Então, comecemos pelo sintagma verbal (SV):
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 109

De acordo com a exposição de Berlink et al. (2006), “[...] é


no sintagma verbal que se situam as relações entre o verbo e os
sintagmas nominais (SN) que completam seu sentido, ou seja,
seus assuntos”. Conforme a visão da gerativa, costuma-se dizer
que um verbo atribui papéis temáticos aos seus argumentos na
teoria gerativa. No exemplo exposto acima, o SV apresenta três
elementos terminais - amar, Maria e José - que ocupam, nessa
mesma ordem, as posições de núcleo (V°), especificador (à
esquerda do núcleo) e complemento (à direita do núcleo).
No que diz respeito à transitividade do verbo amar, nota-se
que ele seleciona dois argumentos. Nesse contexto, há, portanto,
dois papéis temáticos a atribuir: o de agente e o de paciente
ou tema. Maria recebe o papel de tema. Unidos, o verbo e o
complemento conferem o papel de agente a José.
110 Linguística

A elaboração da estrutura arbórea anterior pode se


dar, portanto, de baixo para cima. Pode-se, assim, começar
estabelecendo relações semânticas entre o verbo e seus
argumentos. Em seguida, observam-se duas modificações em
relação à etapa anterior. O verbo precisou deslocar-se da posição
de núcleo do sintagma verbal (V°) para a posição de núcleo do
sintagma flexional (Fº), onde estão os conhecimentos de tempo e
concordância, deixando, na sua posição de origem, um vestígio
do movimento.
Além do mais, o sintagma nominal que aceitava a posição
de especificador do sintagma verbal também se desloca para o
estilo de especificador do sintagma flexionaI.
Por fim, é importante dizer que não há só a interpretação
gerativa para a análise da sentença. Destacam-se, portanto,
a visão formalista (com ênfase na concepção de estrutura) e a
visão funcionalista da sintaxe, as quais serão resumidas no AVA.

Para Refletir
No que diz respeito à sintaxe do português, ou seja, a ordem
dos constituintes de uma sentença, é comum alguém dizer: Dê-
me um copo com água, por favor!
Como você diria? E seus colegas? Reflita e compartilhem suas
ideias no fórum do AVA.
Tema III | Conhecendo o sistema linguístico: níveis da gramática 111

Resumo do Tema 3

Neste tema apresentamos os conceitos básicos


referentes aos componentes da gramática. Ressalta-se, pois,
o caráter complementar dos subsistemas na composição de
uma língua. Logo, é de fundamental importância conhecer as
relações entre esses níveis gramaticais para que conheçamos
a fundo uma língua a ponto de poder ensiná-la a outros.
4 A linguística em prática:
norma x fala

Esse último tema da nossa disciplina tem por objetivo


contribuir para o esclarecimento da real finalidade dos estudos
linguísticos: o ensino de línguas. Nesse intuito, os quatro
conteúdos apresentados aqui abordam questões fundamentais
à formação de uma consciência crítica sobre a aplicação da
linguística em sala de aula a partir da oposição – norma vs
fala – que mais dificulta o trabalho dos professores de línguas,
especificamente de português. Diante disso, discutiremos
a seguir: 1) A importância da comunicação: a semântica e
a pragmática explicam; 2) A(s) norma(s): conceitos e (pre)
conceitos linguísticos; 3) A fala: variação e mudança linguística;
4) A fala: variação e mudança linguística.
114 Linguística

4.1 A IMPORTÂNCIA DA COMUNICAÇÃO: A SEMÂNTICA E A


PRAGMÁTICA EXPLICAM

Nesse tópico, gostaria de destacar um princípio fundamental


da teoria linguística: é importante que ocorra a comunicação.
Para o linguista não importa se o falante se expressa bem ou
mal, mas sim que o que ele fala tenha sentido (uma questão
semântica), e esteja adequado ao contexto da fala, considerando
a intenção do falante (uma questão pragmática). Essa questão,
que é o foco da eterna “guerra” entre os cientistas da linguagem
e os gramáticos tradicionais, a princípio causa uma certa
frustração nos alunos que entram no curso de Letras. Isto ocorre
porque muitos (na verdade, a grande maioria) dos que optam
por este curso são pessoas que gostam de estudar gramática
e/ou literatura, portanto esperam encontrar pela frente quem
lhes ajude a aperfeiçoar seu modo de falar e escrever. Você é
um desses? Então..., sinto decepcioná-los. O principal objetivo
nosso enquanto professores do curso de Letras é, inicialmente,
ampliar a visão (limitada) dos que se interessam pelo estudo
de línguas. Quem ingressou nessa carreira com a pretensão
de aprimorar seus conhecimentos a respeito das regras da
gramática tradicional, pura e simplesmente, por certo deve ter se
surpreendido com tudo que já viu até agora e... prepare-se: hoje,
no nosso último encontro, ainda haverá surpresas.
Assim, tendo visto no bloco anterior os níveis de
estruturação da língua, tratamos agora de dois outros níveis que
são fundamentais para a compreensão da perspectiva linguística:

- o semântico (da Semântica);


- o pragmático (da Pragmática).
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 115

Pode-se dizer que esses dois níveis que compõem a


estrutura da língua são (ainda mais) interligados.
Semântica é, basicamente, o estudo do significado, ou seja,
a ciência das significações. Portanto, cabe aos estudiosos desse
campo investigar os problemas suscitados sobre o significado: i)
Será que tudo tem significado? ii) o significado é imagem acústica
ou imagem visual?
O homem, desde sempre, se preocupou com a origem
das línguas e com a relação entre as palavras e as coisas que
elas significam, se existe, naturalmente, uma ligação entre os
nomes e as coisas nomeadas ou se essa associação resulta,
simplesmente, de uma mera convenção. Destacamos, também,
o interesse pelas mudanças de sentido, a escolha de novas
expressões, o nascimento e morte das locuções nas línguas.
No que respeita ao estudo dessas questões, é importante
lembrar que um tratamento sincrônico descritivo dos fatos da
linguagem e da visão da língua como estrutura datam do século
XX, junto com as novas teorias do símbolo. A partir desses
estudos, concluiu-se que as formas linguísticas são símbolos e
valem pelo que significam, são ruídos bucais, porém significantes.
Constantemente, costuma-se fazer referência mental de
uma forma a determinado significado que a eleva a elemento de
uma língua. No entanto, conforme os estudos realizados nessa
área, não existe nenhuma relação entre o semantema (= lexema
ou morfema lexical – unidade léxica) cão e um certo animal
doméstico, a não ser o uso que se faz desse semantema para
referir-se a esse animal.
Essa ‘convenção’ ilógica remete ao princípio da
arbitrariedade do signo, da teoria saussureana. Desse modo,
cada língua “recorta” o mundo objetivo a seu modo, o que
chama “visão do mundo”. Nesse aspecto da particularidade das
línguas, destaca-se, também, a existência da linguagem figurada,
a metáfora. Esta, por sua vez, consiste no uso de uma palavra
116 Linguística

(ou expressão) por outra, ficando subtendido, na segunda,


a significação da primeira. É importante considerar, ainda, a
denotação (significado mais restrito) e a conotação (um misto de
emoção/sentimento/percepção que envolve o semantema – casa
/ lar).
Quanto aos semantemas, estudá-los não é uma tarefa
fácil, uma vez que são em número infinito e sua significação
fluída, sujeita às variações sincrônica (de tempo), sintópica (de
lugar) etc. A polissemia faz da significação dessas unidades
um conglomerado de elementos e não um elemento único: ele
anda a passos largos / anda de carro / anda doente. Quanto à
significação interna dos morfemas, (morfema gramatical) ela se
distribui nas categorias gramaticais que enquadram um dado
semantema numa gama de categoria – gênero, número etc –
para maior economia da linguagem.
Os elementos lexicais que fazem parte do acervo do falante
de uma língua podem ser:

– simples – cavalo
– compostos – cavalo-marinho
– complexos – a olhos vistos, briga de foice no escuro (são
sintagmáticos)
– textuais – orações, pragas, hinos (são pragmáticos, não
entram nos dicionários de língua, a não ser por comodidade. O
conceito de gato não está contido em “à noite todos os gatos são
pardos”)

Nem todo lexema é, portanto, uma palavra, às vezes é um


conjunto, em geral idiomático: favas contadas, nabos em saco
etc. Nesse caso, falamos em sentido figurado, oposto a sentido
literal.
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 117

Nas alterações sofridas nas relações entre as palavras estão


as chamadas figuras de retórica clássica:

1) Metáfora – comparação abreviada.


2) Metonímia – transferência do nome de um objeto a
outro, com o qual guarda alguma relação de:
– autor pela obra – Ler Machado de Assis;
– agente pelo objeto – Comprar um Portinari;
– causa pelo efeito – Viver do seu trabalho;
– continente pelo conteúdo – Comeu dois pratos;
– local pelo produto – Fumar um havana;
etc.
3) Sinédoque (para alguns é caso de metonímia)
– parte pelo todo – Completar 15 primaveras;
– singular pelo plural – O português chegou à América em
1500.
4) Catacrese – extensão do sentido de uma palavra a objetos
ou ações que não possuem denominação própria – embarcar no
ônibus; o pé da mesa.

Cumpre distinguir homonímia de polissemia, o que nem


sempre é fácil. A distinção pode ser:

– descritiva – considerando ser a palavra um feixe de


semas, se entre duas palavras com a mesma forma, houver um
sema comum, diz-se ser um caso de polissemia (Ex.: coroa –
adorno para a cabeça ou trabalho dentário). Em caso contrário,
será homonímia (Ex.: pena – sofrimento ou revestimento do
corpo das aves).
118 Linguística

– diacrônica – se as palavras provêm do mesmo léxico,


diz-se ocorrer um caso de polissemia;(Ex.: cabo – acidente
geográfico e fim de alguma coisa) No contrário, ocorrerá um caso
de convergência de formas (Ex: canto – verbo cantar e ângulo).

No levantamento da tipologia das relações entre as palavras


assinalam-se ainda os fenômenos da sinonímia, antonímia,
homonímia, polissemia e hiponímia. Os sinônimos se dizem
completos, quando são intercambiáveis no contexto em questão.
São perfeitos quando intercambiáveis em todos os contextos, o
que é muito raro, a não ser em termos técnicos.
Por exemplo, em: casamento, matrimônio, enlace, bodas,
consórcio, há um fundo comum, um “núcleo”; os empregos são
diferentes, porém próximos. Nem todas as palavras aceitam
sinônimos ou antônimos. A escolha entre séries sinonímicas é,
às vezes, regional. (Ex.: pandorga, papagaio, pipa).
Quanto à homonímia, pode ocorrer coincidência fônica e/
ou gráfica. A coincidência de grafemas e fonemas pode decorrer
de convergência de formas (Ex.: são – verbo ser, sinônimo de
sadio, forma variante de santo derivando, respectivamente, de
sunt, sanum, sanctum). Ou é resultado de existência coincidente
do mesmo vocábulo em línguas diferentes (Ex.: manga – parte da
roupa ou fruto, provindo, respectivamente, do Latim e do Malaio).
O estudo da homonímia e da polissemia envolve, portanto,
o problema de significação, principalmente universal, e de
significação, marginalmente ocasional. Quando a mesma forma
fônica cobre significações diferentes, embora correlatas, tem-
se a polissemia; quando cobre significações completamente
diferentes, tem-se a homonímia. A polissemia envolve matizes
emocionais, é determinada pelo contexto; constitui, às vezes,
linguagem figurada e linguagem literária. A tarefa do ouvinte é
fazer uma seleção entre as significações alternativas, por meio do
contexto em que se acha o signo. Diz-se serem os homônimos
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 119

lexemas iguais e palavras diferentes, isto é, com conteúdo


semântico diferente. Como os lexemas também podem se
apresentar com mais de uma forma, a descrição de homonímia
precisa ser refinada para se distinguir homonímia parcial de
homonímia total, considerando-se aqui a não coincidência entre
língua escrita e falada.
Já a polissemia só ocorre com lexemas simples. É, por
vezes, difícil distingui-la de homonímia. Um dos critérios é o
etimológico, não relevante na linguagem estrutural. O principal,
aqui, é haver relação entre significados. Permanece o problema
do dicionário: deve haver uma ou mais de uma entrada lexical?
Ex.: pupila – parte do olho / menor de que se deve cuidar – têm a
mesma etimologia. Mas deve-se considerar a relação sincrônica
entre os significados. O fato de a língua sofrer alterações dificulta
o problema.
Quanto à sinonímia, os lexemas podem ser completamente
sinônimos ou não, conforme sejam intercambiáveis em todos os
contextos ou não. A sinonímia total é muito rara, só ocorre em
termos científicos. A distinção é, por vezes, sutil, inclui o fator
eufemismo. Podemos dizer que um lexema se relaciona a outros
pelo sentido e se relaciona com a realidade pela denotação.
Sentido e denotação são interdependentes. Isomorfia total
entre duas línguas é difícil, ocorre mais frequentemente em
empréstimos decorrentes de intercâmbio cultural (Ex.: a palavra
camisa, herdada pelos romanos aos iberos).
A análise componencial coloca a tese de serem os lexemas
de todas as línguas complexos de conceitos atomísticos universais
como os fonemas são complexos de traços atomísticos universais
(possivelmente). Assim o lexema mulher pode ser descrito pelos
traços adulto, femenino, humano, em relação a homem que seria
adulto, não-femenino, humano. Nem todo lexema é passível de
análise componencial (a análise componencial ajuda a distinguir
homonímia de polissemia).
120 Linguística

Entre as relações pelo sentido, colocamos também a


hiponímia e a antonímia. A antonímia inclui os casos de oposição
de sentido (solteiro / casado; morto / vivo), ou, como dizem
alguns autores, a incompatibilidade (vermelho / azul / branco
seriam incompatíveis entre si).
As relações hiponímicas provêm do fato de um termo ser
mais abrangente que outro: (Ex.: flor > rosa, orquídea etc.)
Um grande número de palavras aceita polissemia. Escapam
os termos técnicos, palavras muito raras e palavras muito longas.
O deslizar de sentido ocorre por muitas causas:
– interpretações analógicas – (Ex.: mamão).
– transferência do adjetivo ao substantivo – (Ex.: pêssego,
burro).
– adaptação de palavras estrangeiras – (Ex.: forró).

FATORES LINGUÍSTICOS FATORES


EXTRALINGUÍSTICOS
Coesão Intencionalidade
Coerência Aceitabilidade
Intertextualidade Informatividade
Situacionalidade

A Pragmática, por seu turno, é o ramo da linguística que


estuda a linguagem no contexto de seu uso na comunicação.
Essa análise contextualizada justifica-se porque as palavras, em
sua significação comum, assumem, na maioria das vezes, outros
significados distintos no uso da língua.
Diante disso, recentemente, o campo de estudo da
pragmática passou a englobar o estudo da linguagem comum e
o uso concreto da linguagem, enquanto a semântica e a sintaxe
estão mais voltadas para a construção teórica a respeito dos
significados das sentenças. A pragmática, portanto, estuda os
significados linguísticos determinados não exclusivamente
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 121

pela semântica proposicional ou da frase, mas aqueles que se


deduzem a partir de um contexto extralinguístico: discursivo,
situacional, etc.
Quanto ao uso do termo pragmática para designar um
ramo da linguística, sabe-se que teve início com Charles Morris,
em 1938, significando o estudo da linguagem em uso. Rudolf
Carnap, que trabalhara com Morris em Chicago, foi quem a
definiu como sendo a ‘relação entre a linguagem e seus falantes’.
A partir de então, os estudos pragmáticos evoluíram para
uma compreensão mais filosófica, como prática social concreta,
passando a analisar a significação linguística de acordo com
a interação existente entre quem fala e quem ouve. Nessa
perspectiva, passou-se a observar o contexto da fala (não mais
o significado isolado das palavras), os elementos socioculturais
em uso e, também, os objetivos, efeitos e consequências desse
uso.
Diante disso, entende-se que a linguagem é uma variável
com participação fundamental nos processos de convivência com
a realidade física e social, além de sua importância na maneira
de organizar as ideias sobre a realidade que nos rodeia. Sendo
assim, a linguagem nunca se esgota em simples instrumento
de referência ao mundo externo. Ao falarmos, manifestamos a
nossa perspectiva, nossa avaliação do conteúdo do dito.
Essa posição resulta, certamente, da soma de nossas
experiências, de nossa própria ideologia, e deságua num discurso
que de modo algum corresponde a uma simples e objetiva
descrição da realidade. Todo discurso pretende converter a uma
ideologia, e essa será, evidentemente, a ideologia do falante.
Um enunciado que vise, apenas, a reproduzir as próprias coisas
esgota seu poder de informação a dados de fatos. Uma forma
de expressão, se é produtiva, deve conter não só informações,
deve, além disso, estimular a busca por informações novas. O
mesmo se pode dizer das artes visuais. Mesmo quando se dizem
122 Linguística

meramente representativas, na verdade, nunca o são. Sempre


haverá a dimensão criativa.
Conclui-se, diante disso, que tanto nas artes visuais quanto
na arte da argumentação, na interação entre os indivíduos, a
linguagem apenas prolonga a percepção e essa percepção
sempre se mostrará dotada de uma dimensão produtiva. Para
essa interpretação dos fatos linguísticos, que condiz com uma
visão funcionalista da linguagem, a semântica e a pragmática
mostram-se complementares e fundamentais.

Para Refletir

Considerando o aspecto semântico-pragmático-discursivo,


veja se você consegue identificar a diferença entre as frases
abaixo:

a) Ela era uma mulher grande.


b) Ela era uma grande mulher.

Reflita sobre o significado dessas frases e a intenção dos


falantes em cada uma delas. Depois, compartilhe sua opinião
com seus colegas no fórum do AVA.
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 123

4.2 A(S) NORMA(S): CONCEITOS E (PRE)CONCEITOS LIN-


GUÍSTICOS

Nesse tópico abordamos duas questões que estão no


centro das discussões linguísticas que consideram a língua
como atividade social: o conceito de norma e o preconceito
linguístico. Destaca-se, portanto, as teorias variacionista e
a funcionalista, que, em vista de seus princípios teóricos
defendem a ideia de que ‘nada na língua é por acaso’, frase esta
que dá título a um dos livros de maior destaque do Prof. Marcos
Bagno.
Em concordância com a visão desse linguista e escritos
a respeito da norma e do preconceito linguístico, acreditamos
que é preciso haver uma mudança de postura, principalmente,
por parte dos professores.
Nessa perspectiva em que se considera o entorno da
situação de fala, embora falemos a mesma língua, consideramos
as particularidades de cada lugar, cada grupo social, o que
identifica os seus dialetos. Posto que esse sistema articulado
– a língua –, que comunica ideias e pensamentos, serve a uma
comunidade constituída de indivíduos diferentes, é natural
que cada um imprima a ele características particulares “de
seu desenvolvimento histórico, cultural e de sua configuração
social”. Quer isto dizer que cada língua é diferente das demais
e essa diversidade é encontrada também no interior de cada
uma delas.

Mas... o que é ‘norma’?


O conceito de ‘norma’, geralmente, deixa subentendida
uma visão preconceituosa da língua e atribui valor positivo
apenas àquelas formas que possuem um prestígio social.
No caso do Brasil, costuma-se pensar a variedade do Rio de
Janeiro como ‘a norma’ e não há qualquer razão linguística
que sustente tal pensamento. As razões são de ordem
124 Linguística

extralinguística: o fato de estar situado entre o Norte e o Sul;


é centro político há mais tempo (desde 1763 quando se tornou
a capital do país), possui menos marcas regionais (exceto o
chiado). Sabe-se, porém, que não há uma norma única, mas
uma pluralidade, usada segundo os níveis sociolinguísticos e
as circunstâncias da comunicação.
Segundo LUCCHESI (1994), há três conceitos de norma:
a) Norma-padrão – Uso da língua conforme prescrito na
gramática normativa.
b) Norma-culta – Fala dos indivíduos com maior
escolaridade.
c) Norma(s) vernácula(s) – Padrões linguísticos das classes
mais baixas e não escolarizadas.

Nesse sentido, é comum a ideia de que o contexto sócio-


histórico de formação do português brasileiro reflete-se na
diversidade linguística existente no país. A hegemonia do
português no Brasil deve-se exclusivamente a razões histórias e
sua normatização só se deu nos últimos dois séculos.

O estudo da(s) norma(s)

Em 1970, começam a aparecer trabalhos com uma rigorosa


metodologia quantitativa que se prestavam à descrição da norma
culta brasileira. Assim, surgiu o Projeto de Estudo da Norma
Urbana Culta - Projeto Nurc.
Analisando dados da norma culta, observa-se o que já se
assinalou ainda há pouco: há fatos linguísticos característicos
das variedades populares presentes na variedade culta. Salienta-
se que alguns usos são generalizados no português como um
todo e outros diferem em relação à frequência.
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 125

A norma culta é privilégio de uma minoria

É grande (e vergonhoso) o número de analfabetos em


nosso país, e a norma culta está intimamente associada à norma
literária, à língua escrita. Por razões históricas e culturais, não
se desenvolve o hábito de leitura e escrita, não desenvolvendo,
consequentemente, as habilidades linguísticas no nível da norma
culta.
Há um grande distanciamento entre a norma culta e a
padrão (NP), que é um ideal ainda inspirado no português de
Portugal, com foco totalmente voltado para a modalidade escrita.
No entanto, inúmeros autores, como Chico Buarque, Manuel
Bandeira e Machado de Assis, considerados bons exemplos de
usuários da norma culta, fazem uso cada vez maior de construções
que se afastam do que prescreve a NP.

Em que consiste o preconceito?

É importante pensar sobre o conjunto de consequências


sociais, culturais, ideológicas que a variação linguística faz surgir
em qualquer comunidade.

Discurso científico – embasado nas teorias da Linguística


moderna, trabalha com as noções de variação e mudança.
Discurso do senso comum – impregnado de concepções
ultrapassadas sobre a linguagem e de preconceitos sociais,
opera com a noção de erro.
126 Linguística

A noção de “erro”, em língua, tem a mesma origem


das outras concepções de “certo” e “errado” que circulam na
sociedade. O “erro” é invenção dos seres humanos.

Onde e quando nasceu o “erro” linguístico?

A noção de “erro” nasce, no mundo ocidental, junto com as


primeiras descrições sistemáticas da língua grega.
Depois do período do helenismo, quando o grego se tornou
uma língua falada em muitos lugares, devido às conquistas de
Alexandre, o Grande, surgiu a necessidade de se normatizar esta
língua.
No séc. III a. C., surgiu a conhecida Gramática Tradicional
(GT). A Gramática Tradicional tem uma abordagem não-científica,
que combina intuições filosóficas e preconceitos sociais. – Ex.:
Conceito de sujeito.

Em consequência, passa a ser visto como erro:

Todo e qualquer uso que escape desse modelo idealizado,


toda e qualquer opção que esteja distante da linguagem literária
consagrada.
Toda pronúncia, todo vocabulário e toda sintaxe que
revelem a origem social desprestigiada do falante.
Tudo o que não conste dos usos das classes sociais letradas
urbanas com acesso à escolarização formal e à cultura legitimada.

É ou não é para ensinar gramática? Se for ensinar apenas


como repetição, sem o mínimo de criticidade, não se deve
ensinar; mas se for ensinar através de textos falados e escritos,
construindo conhecimento gramatical junto com os alunos,
fazendo-os descobrir o quanto já sabem sobre a gramática de
sua língua, deve-se sim ensinar.
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 127

Enquanto a Gramática Tradicional impõe uma única forma


certa de dizer cada coisa, a Linguística demonstra que todas as
formas de expressão verbal têm organização gramatical, seguem
regras e têm lógica linguística perfeitamente demonstrável. Ou
seja, conforme Bagno (2003), nada na língua é por acaso.
A variação não é exclusiva dos falantes não escolarizados.
A variação ocorre também entre falantes escolarizados e na
modalidade escrita, em estilos monitorados.
Cada variante linguística recebe avaliações diferentes,
avaliações que se distribuem num continuum que vai do mais
estigmatizado ao mais prestigiado.
As avaliações de estigma e prestígio atribuídos a formas
linguísticas são avaliações sociais, não propriamente linguísticas.
“Onde tem variação sempre tem também avaliação”.
Não é a língua que está sendo avaliada, mas sim a pessoa
que está usando a língua daquele modo.

O que fazer na escola? Há três opções:

Desconsiderar as contribuições da ciência linguística e


levar adiante a noção de “erro”, insistindo no ensino da gramática
normativa e da norma-padrão tradicional como única forma
“certa” de uso da língua.
Aceitar as contribuições da ciência linguística e desprezar
totalmente a antiga noção de “erro”, substituindo-a pelos
conceitos de variação e mudança.
Reconhecer que a escola é o lugar de interseção inevitável
entre o saber erudito-científico e o senso comum, e que isso
deve ser empregado em favor do estudante e da formação de
sua cidadania.
128 Linguística

Os comportamentos sociais não são ditados pelo


conhecimento científico, por isso tamanha dificuldade nas
mudanças de atitude com relação à variação linguística.
Reconhecer o senso comum, mas também lutar contra
ele, se for o caso. Se o conhecimento vindo do senso comum
atuar como repressor da liberdade individual ou coletiva, como
instrumento de discriminação social, de opressão, deve sim ser
combatido.

Mudança de atitude

Essa mudança deve refletir-se na não-aceitação de dogma,


na adoção de uma nova postura (crítica) em relação a seu próprio
objeto de trabalho: a norma culta.
A gramática tradicional tenta nos mostrar a língua como
um pacote fechado, como um embrulho pronto e acabado. Mas
não é assim. Conforme Bagno (2003), a língua é viva, dinâmica,
está em constante movimento – toda língua viva é uma língua
em decomposição e em recomposição, em permanente
transformação.

O que é ensinar português? Devemos ensinar o quê?

Atualmente está ocorrendo uma crise no ensino de


língua portuguesa. Muitos professores já não querem recorrer
exclusivamente à gramática normativa, porém faltam recursos
didáticos que auxiliem a prática pedagógica.
Muita gente acredita que é a norma culta que deve constituir
o objeto de ensino/aprendizagem em sala de aula. Mas o que é e
onde está essa norma culta?
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 129

Ler o texto: Alguém viu a dona norma?

Esse texto é de autoria da professora Sônia Bastos Borba


Costa, integrante do Grupo PROHPOR na UFBA. Essa
polêmica discussão é iniciada pela pergunta que deu título ao
artigo, cujo link encontra-se disponível no site do PROHPOR.
http://www.prohpor.ufba.br/alguemviu.html#_ftn1

Infelizmente, os métodos tradicionais de ensino de língua no


Brasil visam, por incrível que pareça, a formação de professores
de português!
Mas, por fim, é importante lembrar que conhecer uma
língua é uma coisa e conhecer sua gramática é outra. Saber
uma língua não significa saber analisá-la. Alguém pode falar e
escrever uma língua sem saber nada “sobre” ela; por outro lado,
é perfeitamente possível saber muito “sobre” uma língua sem
saber dizer uma frase nessa língua em situações reais.

Para Refletir
Então, vale tudo?
Conforme estudamos até aqui, vimos que, em termos de língua,
tudo vale alguma coisa. É preciso, no entanto, observar a
adequabilidade e aceitabilidade do enunciado em determinado
contexto de fala. Nesse sentido, tudo vai depender de quem
diz o quê, a quem, como, quando, onde, por quê e com qual
finalidade/intenção.
130 Linguística

4.3 A FALA: VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGUÍSTICA

Conceber a língua como “forma de comportamento social”


(LABOV, 2008[1972]), implica admitir também que os processos
de variação e mudança são constantes. Do contrário, incorre-
se no pensamento (há muito ultrapassado) do mito do caos
linguístico. A respeito dessa questão, Lucchesi afirma:

Não existe, portanto, um caos lingüístico,


cujo processamento, análise e sistematização
sejam impossíveis de serem processados. Há,
pelo contrário, um sistema (uma organização)
por trás da heterogeneidade da língua falada.
(LUCCHESI; ARAÚJO, site: vertentes.ufba.br)

É importante destacar que a discussão sobre variação e


mudança será aqui resumida para facilitar o entendimento
da dinâmica da língua. Salienta-se, também, que alguns
trechos correspondem à discussão desenvolvida em minha
dissertação de mestrado (DEUS, 2009), num tópico de nome
semelhante – A variação e a mudança linguística –, a fim de
justificar a mudança ocorrida no paradigma pronominal do
Português do Brasil. Essa alteração no quadro de pronomes
do PB constitui-se a questão central do meu trabalho cujo
título é: VOCÊ ou TU? Nordeste versus Sul: o tratamento do
interlocutor no português do Brasil a partir de dados do Projeto
Atlas Linguístico do Brasil, coordenado pelas professoras
Suzana Cardoso (presidente) e Jacyra Mota (vice-presidente).
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 131

Profa. Dra. Suzana Alice Cardoso é


Professora emérita da Universidade
Federal da Bahia. Atualmente é edi-
tora da revista Estudos Linguísticos e
Literários e membro do Conselho Edi-
torial das revistas A Cor das Letras, Fi-
lologia e Linguística Portuguesa. Tem
experiência na área de Letras, com
ênfase em Língua Portuguesa, atu-
ando principalmente nos seguintes Fonte: http://busca-

temas: dialectologia, geolinguística, textual.cnpq.br/bus-

português do Brasil, língua portugue- catextual/visualizacv.

sa e variação. É Diretora-Presidente jsp?id=K4787164D3

do Projeto Atlas Linguístico do Brasil.

Para saber mais sobre esse projeto, acesse o site:

http://www.alib.ufba.br/index.asp
132 Linguística

O mito do ‘caos’ vs realidade da variação

A variabilidade que caracteriza todas as línguas vivas


foi, por muito tempo, concebida como uma situação caótica,
conforme já assinalado. O ‘aparente caos’ diz respeito,
portanto, à existência de formas alternantes para comunicar
uma mesma ideia. Há, assim, diferentes denominações
semanticamente equivalentes em todos os níveis da língua
(fonético, morfológico, sintático, semântico e lexical) –
variantes linguísticas –, definidas como “[...] diversas
maneiras de dizer a mesma coisa em um mesmo contexto,
e com o mesmo valor de verdade” (TARALLO, 2005, p. 8). O
conjunto de duas ou mais variantes constitui um fenômeno
variável.
No entanto, é importante lembrar que nem tudo na
língua é variável. Assim como os falantes de uma língua
compartilham variantes, também compartilham regras
categóricas, as quais se definem como regras obrigatórias,
fixas, que, se transgredidas, tornam as sentenças
agramaticais. Em português, não se diz, por exemplo,
menino o, uma vez que o sistema só aceita o determinante
em posição anterior ao núcleo do sintagma nominal (o
menino).

Os tipos de variação

De acordo com a perspectiva variacionista, estabelecem-se


três tipos básicos de variação, conforme Cezário e Votre (2008,
p. 144-5):
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 133

(a) variação regional, associada a distâncias


espaciais entre cidades, estados, regiões
ou países diferentes; a variável geográfica
permite opor, por exemplo, Brasil e Portugal;

(b) variação social: associada a diferenças


entre grupos socioeconômicos, compreende
variáveis já citadas, como faixa etária,
grau de escolaridade, procedência, etc.;

(c) variação de registro: tem como variantes o


grau de formalidade do contexto interacional
ou do meio usado para a comunicação, como
a própria fala, o e-mail, o jornal, a carta, etc.

Esses três tipos de variação correspondem aos três


aspectos fundamentais que uma língua apresenta (FERREI-
RA; CARDOSO, 1994), quais sejam: diatópico, diastrático
e diafásico. Estes, por sua vez, apresentam certa homoge-
neidade interna conferida por alguns traços semelhantes.
Desses traços coincidentes, decorrem unidades ditas sin-
tópicas (os dialetos, tais como o nordestino, o gaúcho),
sinstráticas (os estratos sociais, tipo linguagem culta, po-
pular), sinfásicas (o estilo de língua: formal, familiar, lite-
rário).
É importante observar, ainda, que cada unidade sintó-
pica (o dialeto de uma região) pode conter diferenças dias-
tráticas (socioculturais) e diferenças diafásicas (de estilo);
cada unidade diastrática pode conter diferenças diatópicas
e diafásicas; cada unidade sinstrática (na linguagem fami-
liar) apresentará diferenças diatópicas e diastráticas.
Contudo, vale ressaltar que variação linguística não
implica necessariamente mudança linguística; já a mudan-
ça, por sua vez, pressupõe, sempre e indispensavelmente,
um processo de variação. Isto significa que as mudanças
surgem da heterogeneidade da língua, porém nem todo
134 Linguística

fato heterogêneo resultará em uma mudança.


Assim, de acordo com os princípios da teoria da va-
riação de Labov, os processos de mudança que ocorrem
no interior das comunidades de fala contribuem para as
grandes mudanças. É, portanto, nessas comunidades de
fala que devem ser observadas as formas linguísticas em
variação.
Diante disso, as análises realizadas na perspectiva
laboviana observam as variações sistemáticas, dentro de
uma heterogeneidade estruturada na comunidade de fala.
Os adeptos dessa teoria procedem assim, visto que, con-
forme dissemos na introdução deste conteúdo, não acredi-
tam na existência de um caos linguístico incompreensível,
mas que por trás do ‘aparente caos’ existe um sistema as-
sociado à heterogeneidade da língua falada.
É importante destacar que os estudos variacionistas
consideram a língua em seu contexto sociocultural, vis-
to que parte considerável das explicações para a variação
observada no uso da língua se baseia em fatores extralin-
guísticos, não apenas em fatores internos ao sistema lin-
guístico. Como exemplo dos fatores externos à língua que
costumam atuar na variação, citamos os seguintes:

• Origem geográfica
• Status socioeconômico
• Grau de escolarização
• Idade
• Sexo
• Mercado de trabalho
• Redes sociais
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 135

Lembramos, também, que variação não ocorre


somente no modo de falar das diferentes comunidades.
Nós variamos nosso modo de falar individualmente, de
maneira mais consciente ou menos consciente, conforme
o contexto da interação no qual nos encontramos. A essa
variável atribui-se o nome de monitoramento estilístico.
No que diz respeito à variação estilística, destacam-se
os seguintes fatores: a formalidade, a tensão psicológica,
a pressão por parte dos interlocutores e do ambiente, a
insegurança ou autoconfiança e, por fim, a intimidade
com a tarefa comunicativa a ser realizada. Dessa forma,
o monitoramento opera tanto na língua falada quanto na
língua escrita.

O interesse pela mudança: início dos estudos

Foi aproximadamente no final do século XX que veio


à tona uma explosão de interesses que passaram a nortear
as pesquisas, considerando-se os mais diferentes aspectos
da mudança linguística. A partir de então, os pesquisadores
dedicaram-se ao estudo dos princípios que regem a mudan-
ça linguística, atentando, especificamente, para o que torna
algumas mudanças mais prováveis do que outras.
Seguindo essa pista que tanto instigou, e até hoje
instiga os estudiosos da área, descobriu-se a existência
de um nexo fundamental entre variação e mudança: toda
língua muda porque varia. Chegando-se, assim, ao consi-
derado centro da discussão. No entanto:
136 Linguística

[...] deve ficar claro, por ora, que, não é


qualquer diferença entre gerações ou entre
grupos socioeconômicos que pode estar
indicando a mudança”, razão pela qual se diz em
Linguística Histórica, que “nem toda variação
implica mudança, mas que toda mudança
pressupõe variação. FARACO (2005, p.23).

Nota-se, pois, que nem todo item em variação resultará em


uma mudança linguística.

Sobre caráter heterogêneo da língua

As discussões linguísticas atuais partem da seguinte


ideia: a língua é intrinsecamente heterogênea, múltipla, vari-
ável, instável e está em desconstrução e reconstrução. Esse
pensamento corresponde à concepção de língua como uma
atividade social (já estudada), a qual predomina nos estudos
linguísticos da atualidade.
De acordo com essa perspectiva, se os seres humanos
são heterogêneos, diversificados, instáveis, seria estranho
que a língua usada por eles permanecesse estável e homo-
gênea. A variação e a mudança linguística são, portanto, o
estado natural da língua. Portanto, não se pode enxergar a
variação como “problema”, muito menos a mudança como
algo ruim, “destrutivo” para a língua. Ao contrário disso, ad-
mitir que uma língua apresenta variação significa dizer que
ela muda, que é heterogênea.
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 137

A respeito de caráter heterogêneo da língua, destaca-


mos a visão da sociolinguística variacionista, de Labov (2008
[1983]). Segundo esse autor, a heterogeneidade é possível de
ser analisada de forma coerente, superando, assim, o idea-
lismo homogeneizante que predominava até então. Se para a
visão estruturalista, que concebia a língua “em si e por mes-
ma” (SAUSSURE, 2006 [1916]), era impossível explicar como
o sistema continuava em perfeito funcionamento enquanto
mudava (paradoxo saussuriano), para a Sociolinguística va-
riacionista, o princípio é o de que a língua é um sistema hete-
rogêneo, mas estruturado.
Fica claro, assim, que uma das grandes contribuições
dessa teoria é o entendimento de que os processos em variação/
mudança são regulados não apenas por contextos linguísticos
– encaixamento linguístico –, mas, sobretudo, pelos sociais
– encaixamento na estrutura social. O falante que opta por
determinada forma linguística pode fazê-lo em função do sexo,
da escolaridade, da faixa etária ou da região onde mora. Nesse
sentido, convém lembrar que:

O reconhecimento de que uma análise


estritamente linguística é incapaz de dar conta
do processo de mudança, e a iniciativa de
explicar a variação inerente ao sistema linguístico
através da covariação com os fatores sociais
conduzem a uma visão mais abrangente e
adequada do processo histórico de constituição
da língua e da própria língua enquanto objeto de
estudo da linguística. (LUCCHESI, 2004, p. 176)

Os comportamentos sociais não são ditados pelo


conhecimento científico, por isso tamanha dificuldade nas
mudanças de atitude com relação à variação linguística.
138 Linguística

Reconhecer o senso comum, mas também lutar contra


ele, se for o caso. Se o conhecimento vindo do senso comum
atuar como repressor da liberdade individual ou coletiva, como
instrumento de discriminação social, de opressão, deve sim ser
combatido.
Cabe ao professor o trabalho de reeducação sociolinguística
de seus alunos. Isto significa fazer uso do tempo e do espaço
escolar para formar cidadãos conscientes da complexidade da
dinâmica social, das escalas de valores existentes.

Para Refletir
A respeito dessa propriedade mutável das línguas, é importante
ressaltar que as mudanças não ocorrem de uma hora para
outra, mas sim de forma lenta e gradual.
Por falar em mudança... vosmecê consegue se lembrar de
alguma palavra que mudou na Língua Portuguesa?

4.4 A LINGUÍSTICA EM SALA DE AULA: VARIAÇÃO E EN-


SINO

A preocupação com o ensino da língua portuguesa nas


escolas é antiga e recorrente entre os estudiosos que investigam
a realidade linguística brasileira, uma vez que é notória a falta
de sintonia entre os fatos linguísticos correntes e a descrição
gramatical. Em vista disso, algumas questões têm, com
frequência, se apresentado: ‘Que língua ensinar?’ ‘Quais as
estratégias para se garantir um ensino eficiente?’.
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 139

Essa dita crise no ensino não é privativa do português,


mas comum a várias línguas, uma vez que a variação é condição
de todas elas. Está claro, portanto, que as reflexões sobre o
ensino da língua portuguesa passam pelo entendimento de sua
variabilidade. Sendo a língua o reflexo da estrutura social do povo
que a utiliza é impossível manter a visão do purismo linguístico
tão comumente propagada pela escola.

Ler: Nós cheguemo na escola, e agora?

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemo na escola, e


agora? 2. ed. São Paulo: Parábola, 2005.

Nessa obra a autora aborda a questão das diferenças


sociolinguísticas e culturais que ocorrem no português dos
alunos-usuários em nosso contexto educacional. Dessa
forma, disponibiliza ao leitor um livro, fruto da pesquisa
sociolinguística realizada no Brasil, com uma excelente
fundamentação teórica e adequada exemplificação de
entrevistas sociolinguísticas, eventos de oralidade, análise
de erros, episódios comunicativos reveladores de problemas
sociais e comunitários.]
140 Linguística

Sociolinguística e ensino

Nesse sentido, é imprescindível ressaltar a interface


sociolinguística e ensino, tão necessária à promoção de
um ensino da língua mais coerente, menos conservador e
excludente, em que se levem em conta as especificidades
de cada dialeto sem, contudo, desprezar a importância de
se ensinar a modalidade culta, que nada tem a ver com o
padrão “lusitanizante” prescrito pelas gramáticas normati-
vas. Essa proposta de ensino deve garantir a formação de
indivíduos multidialetais, capacitados a escolher o regis-
tro adequado às diversas situações de fala e utilizá-lo, de
acordo com a norma linguística em uso. Trata-se de dar ao
trabalho do linguista uma aplicabilidade social.
Ao mesmo tempo em que se reconhece o papel da
escola no ensino da norma oficial, desconfia-se da eficá-
cia dessa tarefa. A questão que se põe é que a instituição
escolar não tem logrado êxito no que tange à recuperação
das normas socialmente prestigiadas. Segundo a crise do
ensino se insere no contexto mais amplo das circunstân-
cias culturais e econômicas que identificam a realidade
brasileira. Suas causas estariam, portanto, em questões
socioculturais, socioeconômicas e pedagógicas (conteúdo
e formação do professor). Há de se considerar ainda que a
ideologia subjacente ao ensino da língua portuguesa é re-
vestida de um caráter homogeneizante e preconceituoso,
na medida em que rejeita qualquer fato em desacordo com
os ditames do tradicionalismo gramatical. Há uma com-
pleta desatenção à realidade “heterogênea, plural e pola-
rizada” da língua no Brasil, ignorando que no português
brasileiro coexistem várias normas: de um lado, as normas
vernáculas e, do outro, as normas cultas e, no horizonte,
como bem diz Mattos e Silva (2006, p. 230), “paira, ou pára
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 141

a norma padrão”.
Para que se compreenda o fosso entre o que ensinam
as gramáticas e o uso real da língua, não se pode perder de
vista como se deu a constituição da norma culta no país.
A alteração do panorama educacional brasileiro a partir da
década de 1960, quando o ensino passou a alcançar as
classes menos privilegiadas e antes excluídas desse pro-
cesso, fez com que a norma popular, característica daque-
las camadas, adentrasse os muros da escola, atingindo os
falantes ditos cultos. A escola, que se pretendia democrá-
tica, contudo, não oferecia a qualificação necessária para
os novos ingressos, uma vez que não havia como formar
profissionais para cobrir a demanda. No que tange ao ensi-
no da língua materna, isso se devia à impossibilidade dos
professores de português, cada vez mais provenientes das
chamadas classes sociais populares e com formação do-
cente precária, não terem como transmitir o padrão norma-
tivo-prescritivo lusitanizante, idealizado para o ensino da
matéria, desde a segunda metade do século XIX.
A partir de 1970 proliferam-se faculdades que pas-
saram a formar profissionais sem a devida qualificação.
Os cursos de Letras, cada vez mais deficientes, em vez de
promover uma reflexão refinada sobre as questões que en-
volvem a formação do português, seus aspectos variáveis,
acaba por tornar-se uma tentativa de recuperação das defi-
ciências do ensino fundamental e médio. O professor rece-
be assim uma formação deficiente e fragmentada.
De acordo com a formação do professor precisa ser
radicalmente modificada para promover uma mudança de
atitude diante das condições socioculturais e linguísticas
dos alunos. É necessário também rever conteúdos e pro-
cedimentos de ensino, a fim de que se possa ensinar a
modalidade culta sem estigmatização das variedades lin-
142 Linguística

guísticas adquiridas no processo natural de socialização.


A tarefa fundamental é, nesse sentido, promover a renova-
ção dos métodos de ensino/aprendizagem da língua.
Essa realidade sócio-histórica não foi considerada
pela escola e, consequentemente, pelos compêndios e
gramáticas escolares, que continuam a impor um padrão
linguístico idealizado, reforçando a situação diglóssica en-
tre este padrão e a fala do aluno. A escola não pode ver
como uma impropriedade do português uma estrutura em
que os pronomes ‘ele’ e ‘ela’ apareçam como objeto, mas
descrevê-la como uma possibilidade de expressão que, in-
clusive, está presente na língua desde o século XIII, por-
tanto, tão legítima como qualquer outra. Naturalmente, é
tarefa da escola ensinar ao aluno que, sem desprezar a sua
variante, pode recorrer, em contextos formais e escritos,
às estruturas com os clíticos, que não trouxeram da lingua-
gem familiar.
É preciso, portanto, rever o conceito de língua que
tem sido propagado, o qual não evidencia em nada a re-
alidade “multifacetada” de que se reveste a língua portu-
guesa no Brasil. Cabe à escola “repensar o lugar da norma
padrão e observá-la como produto de uma hierarquia de
múltiplas formas variantes possíveis, segundo uma escala
de valores baseados na adequação de sua fonte linguística,
com relação às exigências da interação. A variação é inevi-
tável em qualquer língua viva e, num país como o Brasil, as
diferenças são ainda mais acentuadas. Cada falar tem sua
norma, variantes que prevalecem estatisticamente, mas
não anula as outras. Toda comunidade tem seu saber lin-
guístico, com uma norma padrão independente da norma
padrão da escola. Essas normas podem até coincidir, mas
nem sempre isso ocorre.
Nas salas de aula brasileiras, convivem, em desar-
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 143

monia, normas vernáculas, normas cultas e a norma pa-


drão. Dentro dessa pluralidade de normas, a escola, desa-
tualizada, pretende ensinar, numa tarefa que tem se revela-
do pouco frutífera, a norma padrão, idealizada e não-reali-
zada. Nem mesmo os que se lançam à tarefa de ensinar tais
regras conseguem realizá-las: “Comumente, entretanto, o
mesmo professor que ensina essa gramática não consegue
observá-la em sua própria fala nem mesmo na comunica-
ção dentro de seu grupo profissional.
Não há espaço na escola para o reconhecimento da
legitimidade das normas vernáculas, aquelas usadas pelos
segmentos socialmente menos favorecidos, e sequer para
a norma culta, esta inclusive desconhecida no espaço es-
colar. Na escola neutralizam-se as marcas identificadoras
de cada grupo. Antes de tudo, a escola precisa desfazer o
equívoco de identificar língua padrão e norma culta como
sinônimas e deixar evidente que modalidade de uso deve
ser ensinada (culta ou padrão?).
Embora mantenham certa aproximação, sobretudo
em situações formais, são sensivelmente diferentes. Vol-
tando à discussão, se estabelece essa distinção, na norma
padrão, reuniria as formas prescritas pelas gramáticas nor-
mativas, enquanto a segunda [a norma culta] conteria as
formas efetivamente depreendidas da fala dos segmentos
plenamente escolarizados, ou seja, dos falantes com curso
superior completo, de acordo com a já clássica definição
do Projeto Estudo da Norma Culta. (NURC)
Não se quer dizer aqui que a escola deva furtar-se de
dar a conhecer ao aluno a variedade padrão da língua, sob
alegação simplista de que o que importa é a comunicação.
Reconhece-se que é seu papel ocupar-se preferencialmen-
te do ensino da chamada norma oficial, o que significa,
no caso do sistema pronominal, ensinar o emprego dos
144 Linguística

clíticos acusativos e do dativo de terceira pessoa, etc. Não


há nisso qualquer problema, a não ser pelo fato de que se
trata do ensino do padrão a quem não o fala usualmente,
isto é, a questão é particularmente grave, em especial para
alunos de classes populares, por mais que também haja
alguns problemas decorrentes das diferenças entre fala e
escrita, qualquer que seja o dialeto.
Garantir ao indivíduo o conhecimento das variantes
socialmente prestigiadas torna-se particularmente impor-
tante quando se considera que, além de ser um instru-
mento de comunicação, a língua é instrumento de poder. E
numa sociedade tão desigual como a brasileira, essa é, so-
bretudo, uma decisão política com implicações para toda
a sociedade, conforme assinalam, uma vez que, em toda
e qualquer sociedade socialmente estratificada, o conhe-
cimento do padrão ou o conhecimento de variedades de
prestígio é, de fato, uma ferramenta de afirmação, enquan-
to o uso de formas não-padrão ou de formas sem prestí-
gio pode conduzir à dominação e exploração econômica.
Enquanto esta ampla situação não mudar, negligenciar as
formas padrão ou as formas de prestígio na educação é
quase equivalente a negligenciar os próprios falantes das
variedades sem prestígio, no sentido de dificultar a sua
inserção no processo produtivo.
Considera-se importante dar consciência ao cida-
dão da existência das variedades socialmente prestigiadas
para que possa ter acesso a elas como forma de não ser
excluído.
É igualmente importante garantir-lhe o acesso a essa
modalidade sem que se alimente a falsa ideia de sua in-
competência linguística. Vale dizer ainda que, no ensino
de língua, é preciso considerar as especificidades de cada
modalidade, reservando-lhe o direito à legitimidade.
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 145

As atividades propostas nas salas de aula devem in-


centivar a reflexão sobre os fatos linguísticos e não apenas
propagar os conceitos de ‘certo’ e ‘errado’, como frequen-
temente acontece. O ensino de língua portuguesa deve es-
tar centrado na proposta de capacitar o aluno para a pro-
dução de textos orais e escritos, também para decodificar
sentidos em estruturas mais complexas, comuns em gêne-
ros textuais mais eruditos
Em síntese, é necessário promover um ensino que
leve em conta o funcionamento real da língua, o que im-
plica reconhecer a existência das formas alternantes – pa-
drão e não-padrão – e, sobretudo, seus contextos de uso,
sem, contudo, desprezar o ensino da norma oficial. Esta,
o indivíduo aprende como uma segunda língua, conside-
rando que, ao adentrar os muros da escola, já domina a
gramática de sua língua materna. Não se trata de ensinar
mesóclise, mas exigir que o aluno escreva seus pronomes
nessa posição quando a regra exigir.
O ensino da língua portuguesa deve sempre consi-
derar os saberes envolvidos nesse processo: o saber do
aluno (saber da norma vernácula de uso do falante), o sa-
ber do professor (recebidos nos cursos de graduação) e a
norma subjetiva (linguístico prescritivo).

Assim, diante da pergunta do aluno “Está certo?” O


professor deve refletir com ele observando:

1 - o que dizem os falantes;


2 - o que diz a tradição;
3 - o que dizem as pesquisas linguísticas.

Primeiramente, o professor deve saber observar e


146 Linguística

descrever as variedades trazidas por seus alunos, locali-


zando os contextos de uso (escrita e oralidade).
Em seguida, investiga-se o que dizem as gramáticas
tradicionais, de que maneira o ponto aparece designado,
descrito, prescrito.
Por fim, a escola deve, com auxílio de dialetólogos
e sociolinguistas, descrever as normas cultas locais e for-
necer generalizações descritivas a partir das pesquisas,
esquivando-se, dessa forma, das explicações sem sentido
sobre ‘certo’ e ‘errado’.

Para Refletir
Observe a seguinte situação e pense qual deveria (ou deve) ser
a atitude do professor:

Ao ensinar uma turma de 4ª série a professora coloca para


os alunos que irá iniciar o trabalho (ensino) de concordância
verbal. Ao explicar o assunto dá um exemplo do tipo: “não
é correto a gente falar: ‘nós vai’ ”. Diante deste exemplo um
aluno diz que fala daquela maneira e acha bonito. A professora
ignora a resposta do aluno e reafirma que é errado e que se
deve falar “nós vamos”.
Tema IV | A linguística em prática: norma x fala 147

Resumo do Tema 4

Que pena, chegamos ao fim da nossa disciplina!


Com a apresentação desse último tema, esperamos ter
contribuído para ampliar os seus conhecimentos a respeito
do objeto da linguística: a língua falada, considerando as
diversas normas. Nesse sentido, destacamos a importância
dos estudos linguísticos para a prática docente, visto que,
cabe ao professor o trabalho de reeducação sociolinguística
de seus alunos. Quer isto dizer que o professor de língua
deve fazer uso do tempo e do espaço escolar para formar
cidadãos conscientes da complexidade da dinâmica social e
das escalas de valores existentes.
Linguística 149

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