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Referencia Bibliográfica:

BORGES, Jorge Luis, A Memória de Shakespeare. Disponível em <


http://paulofernandomonteiroferraz.blogspot.com.br/2013/06/a-memoria-de-shakespeare-jorge-
luis.html>. Acesso em 6 de mayo de 2014.

A MEMÓRIA DE SHAKESPEARE
Jorge Luis Borges

Há devotos de Goethe, das Eddas e do tardio cantar dos Nibelungos; Shakespeare foi meu destino.
Ainda é, mas de um modo que ninguém teria podido pressentir, salvo um único homem, Daniel Thorpe,
que acaba de morrer em Pretória. Há outro cujo rosto nunca vi.

Sou Hermann Soergel. O curioso leitor talvez tenha folheado minha “Cronologia de Shakespeare”,
que achei ser necessária certa vez à boa inteligência do texto e que foi traduzida para vários idiomas,
inclusive o castelhano. Não é impossível que recorde também uma prolongada polêmica sobre certa
emenda que Theobald intercalou em sua edição crítica de 1734 e que, desde essa data, é parte não
discutida do cânone.

Hoje, surpreende-me o tom incivil daquelas quase alheias páginas. Por volta de 1914 redigi, e não
entreguei à publicação, um estudo sobre as palavras compostas que o helenista e dramaturgo George
Chapman forjou para suas versões homéricas e que retrocedem o inglês, sem que ele pudesse suspeitar
disso, a sua origem (Urprung) anglo-saxônica. Nunca pensei que sua voz, que esqueci agora, ser-me-ia
familiar… Alguma separata assinada com iniciais completas, creio, minha biografia literária. Não sei se é
lícito acrescentar uma versão inédita de Macbeth, que realizei para não continuar pensando na morte de
meu irmão Oito Julius, que caiu na frente ocidental em 1917. Não a concluí; compreendi que o inglês
dispõe, para seu bem, de dois registros – o germânico e o latino –, enquanto nosso alemão, apesar de sua
melhor música, deve limitar-se a um só.

Nomeei Daniel Thorpe. Apresentou-o a mim o major Barclay, em certo congresso shakespeariano.
Não direi o lugar nem a data; sei muito bem que tais precisões são, na realidade, imprecisões. Mais
importante que o rosto de Daniel Thorpe, que minha cegueira parcial me ajuda a esquecer, era sua notória
infelicidade. Ao longo dos anos, um homem pode simular muitas coisas, mas não a felicidade. De modo
quase físico, Daniel Thorpe exalava melancolia. Depois de uma longa sessão, a noite encontrou-nos em
uma taverna qualquer. Para sentir-nos na Inglaterra (onde já estávamos), apuramos em rituais jarras de
peltre, cerveja morna e negra.

– No Punjab – disse o major – mostraram-me um mendigo. Uma tradição do Islã atribui ao rei
Salomão um anel que lhe permitia entender a língua dos pássaros. Era fama que o mendigo tinha em seu
poder o anel. Seu valor era tão inestimável que nunca pôde vendê-lo e morreu em um dos pátios da
mesquita de Wazil Khan, em Lahore. Pensei que Chaucer não desconhecesse a fábula do prodigioso anel,
mas dizê-lo teria sido o mesmo que estragar a historieta de Barclay.

– E o anel? – perguntei.

– Perdeu-se, segundo o costume dos objetos mágicos.


Talvez esteja agora em algum esconderijo da mesquita ou na mão de um homem que viva em algum lugar
onde faltem pássaros.

– Ou onde haja tantos – disse – que o que dizem se confunde.

– Sua história, Barclay, tem alguma coisa de parábola.


Foi então que Daniel Thorpe falou. Ele o fez de modo impessoal, sem olhar-nos. Pronunciava o
inglês de modo peculiar, que atribuí a uma longa permanência no Oriente.

– Não é uma parábola – disse ele –, e, se o for, é verdade.


Há coisas de um valor tão inestimável que não podem ser vendidas. As palavras que tento reconstruir me
impressionaram menos do que a convicção com que as disse Daniel Thorpe. Achamos que diria algo mais,
mas de repente calou-se, como que arrependido. Barclay despediu-se. Juntos, nós dois voltamos ao hotel.
Era muito tarde, mas Daniel Thorpe propôs-me que prosseguíssemos a conversa em seu quarto. Após
algumas trivialidades, disse-me:

– Ofereço-lhe o anel do rei. É claro que se trata de uma metáfora, mas o que essa metáfora encobre
não é menos prodigioso que o anel. Ofereço-lhe a memória de Shakespeare desde os dias mais pueris e
antigos até os do início de abril de 1616. Não acertei em pronunciar uma palavra. Foi como se me
oferecessem o mar. Thorpe continuou:

– Não sou um impostor. Não estou louco. Rogo-lhe que não julgue até depois de ouvir-me. O major
deve ter-lhe dito que sou, ou era, médico militar. A história cabe em poucas palavras. Começa no Oriente,
ao alvorecer, em um hospital de sangue. A data precisa não importa. Em suas últimas palavras, um soldado
raso, Adam Clay, que havia sido atingido por duas descargas de fuzil, ofereceu-me, pouco antes do fim, a
preciosa memória. A agonia e a febre são inventivas; aceitei a oferta sem dar-lhe crédito. Além disso,
depois de uma ação de guerra, nada é muito estranho. Mal teve tempo de explicar-me as singulares
condições do presente. O possuidor tem de oferecê-lo em voz alta e o outro, de aceitá-lo. Aquele que o
oferece perde-o para sempre. O nome do soldado e a cena patética da entrega pareceram-me literários,
no mau sentido da palavra.

Um pouco intimidado, perguntei-lhe:

– O senhor, agora, tem a memória de Shakespeare?

Thorpe respondeu:

– Tenho, ainda, duas memórias. A minha pessoal e a daquele Shakespeare que parcialmente sou.
Ou melhor, duas memórias me têm. Há uma zona em que se confundem. Há um rosto de mulher que não
sei a que século atribuir.

Perguntei-lhe então:

– O que fez o senhor com a memória de Shakespeare?

Houve um silêncio. Depois disse:

– Escrevi uma biografia romanceada que mereceu o desdém da crítica e algum sucesso comercial
nos Estados Unidos e nas colônias. Acho que é tudo. Preveni-o de que meu presente não é uma sinecura.
Continuo à espera de sua resposta.

Fiquei pensando. Não havia consagrado minha vida, não menos incolor que estranha, à busca de
Shakespeare? Não seria justo que no fim da jornada eu desse com ele?

Disse, articulando bem cada palavra:

– Aceito a memória de Shakespeare.


Algo, sem dúvida, aconteceu, mas não percebi.

Apenas um princípio de fadiga, talvez imaginária.

Lembro claramente que Thorpe me disse:

– A memória já entrou em sua consciência, mas é preciso descobri-la. Surgirá nos sonhos, na vigília,
ao virar as folhas de um livro ou ao dobrar uma esquina. O senhor não se impaciente, não invente
lembranças. O acaso pode favorecê-lo ou atrasá-lo, segundo seu misterioso modo. À medida que eu vá
esquecendo, o senhor recordará. Não lhe prometo um prazo.

O que sobrava da noite foi dedicado a discutir o caráter de Shylock. Abstive-me de indagar se
Shakespeare havia tido contato pessoal com judeus. Não quis que Thorpe imaginasse que eu o submetia a
uma prova. Comprovei, não sei se com alívio ou com inquietação, que suas opiniões eram tão acadêmicas
e tão convencionais como as minhas.

Apesar da vigília anterior, quase não dormi na noite seguinte. Descobri, como em outras tantas
ocasiões, que eu era um covarde. Pelo temor de ser defraudado, não me entreguei à generosa esperança.
Quis pensar que era ilusório o presente de Thorpe. Irresistivelmente, a esperança prevaleceu. Shakespeare
seria meu, como ninguém foi de ninguém, nem no amor, nem na amizade, nem sequer no ódio. De algum
modo eu seria Shakespeare. Não escreveria as tragédias nem os intrincados sonetos, mas recordaria o
instante em que me foram reveladas as bruxas, que também são as parcas, e aquele outro em que me
foram dadas as vastas linhas:

And shake the yoke of inauspicious stars


From this worldweary flesh.

Lembraria Anne Hathaway como lembro aquela mulher, já madura, que me ensinou o amor em um
apartamento de Lübeck, há tantos anos. (Tentei recordá-la e só pude recuperar o papel de parede, que era
amarelo, e a claridade que vinha da janela. Esse primeiro fracasso deveria antecipar-me os demais).

Eu havia postulado que as imagens da prodigiosa memória seriam, antes de mais nada, visuais. Não
foi o que aconteceu. Dias depois, ao barbear-me, pronunciei ante o espelho algumas palavras que me
surpreenderam e que pertenciam, como um colega me assinalou, ao A, B, C de Chaucer. Uma tarde, ao sair
do Museu Britânico, assobiei uma melodia muito simples que nunca ouvira.

Já terá o leitor percebido o traço comum dessas primeiras revelações de uma memória que era,
apesar do esplendor de algumas metáforas, bem mais auditiva do que visual. De Quincey afirma que o
cérebro do homem é um palimpsesto. Cada nova escrita encobre a escrita anterior e é encoberta pela
seguinte, mas a todo-poderosa memória pode exumar qualquer impressão, por mais momentânea que
tenha sido, se lhe derem o suficiente estímulo. A julgar por seu testamento, não havia um único livro, nem
sequer a Bíblia, na casa de Shakespeare, mas ninguém ignora as obras que freqüentou. Chaucer, Gower,
Spenser, Christopher Marlowe, a Crônica de Holinshed, o Montaigne de Florio, o Plutarco de North. Eu
possuía de maneira latente a memória de Shakespeare; a leitura, quer dizer, a releitura desses velhos
volumes seria o estímulo que procurava. Reli também os sonetos, que são sua obra mais imediata. Em
algum momento encontrei a explicação ou várias explicações. Os bons versos impõem a leitura em voz
alta; depois de alguns dias recuperei sem esforço os erres ásperos e as vogais abertas do século XVI.

Escrevi na Zeitschrift für germanische Philologie que o soneto 127 referia-se à memorável derrota
da Armada Invencível. Não lembrei que Samuel Butler, em 1899, já havia formulado essa tese. Uma visita a
Stratford-on-Avon foi, previsivelmente, estéril. Depois ocorreu a transformação gradual de meus sonhos.
Não me foram oferecidos, como a De Quincey, pesadelos esplêndidos nem piedosas visões alegóricas, à
maneira de seu mestre, Jean Paul. Rostos e quartos desconhecidos adentraram minhas noites. O primeiro
rosto que identifiquei foi o de Chapman; depois, o de Ben Jonson e o de um vizinho do poeta, que não
consta nas biografias, mas que Shakespeare veria com freqüência.

Quem adquire uma enciclopédia não adquire cada linha, cada parágrafo, cada página e cada
gravura; adquire a mera possibilidade de conhecer algumas dessas coisas. Se isso acontece com um ente
concreto e relativamente simples, tendo em vista a ordem alfabética das partes, o que não acontecerá com
um ente abstrato e variável, ondoyant et divers, como a mágica memória de um morto?

A ninguém é dado abarcar em um único instante a plenitude de seu passado. Nem a Shakespeare,
que eu saiba, nem a mim, que fui seu parcial herdeiro, ofereceram esse dom. A memória do homem não é
uma soma; é uma desordem de possibilidades indefinidas. Santo Agostinho, se não me engano, fala dos
palácios e cavernas da memória. A segunda metáfora é a mais justa. Foi nessas cavernas que entrei. Tal
como a nossa, a memória de Shakespeare incluía zonas, grandes zonas de sombra repelidas
voluntariamente por ele. Não sem algum escândalo lembrei que Ben Jonson fazia-lhe recitar hexâmetros
latinos e gregos e que o ouvido, o
incomparável ouvido de Shakespeare, costumava errar uma quantidade deles, em meio às risadas dos
colegas.

Conheci estados de felicidade e de sombra que transcendem a comum experiência humana. Sem
que eu soubesse, a longa e estudiosa solidão havia-me preparado para a dócil recepção do milagre. Depois
de uns trinta dias, a memória do morto animava-me. Durante uma semana de curiosa felicidade, quase
acreditei ser Shakespeare. A obra renovou-se para mim. Sei que a lua, para Shakespeare, era menos a lua
que Diana e menos Diana que essa obscura palavra que se demora: moon. Anotei outra descoberta. As
aparentes negligências de Shakespeare, essas absence dans l’infini de que apologeticamente fala Hugo,
foram deliberadas. Shakespeare tolerou-as, ou as intercalou, para que seu discurso, destinado à cena,
parecesse espontâneo, nem burilado nem artificial demais (nicht allzu glatt und gekünstelt). Essa mesma
razão levou-o a misturar suas metáforas.

My way of life
Is fall´n into the sear, the yellow leaf.

Certa manhã discerni uma culpa no fundo de sua memória, Não procurei defini-la; Shakespeare o
fez para sempre. Para mim, basta declarar que essa culpa nada tinha em comum com a perversão.
Compreendi que as três faculdades da alma humana, memória, entendimento e vontade, não são uma
ficção escolástica. A memória de Shakespeare não podia revelar-me outra coisa que as circunstâncias de
Shakespeare. É evidente que estas não constituem a singularidade do poeta; o que importa é a obra que
executou com esse material inconsistente.

Ingenuamente, eu havia premeditado, como Thorpe, uma biografia. Não demorei em descobrir que
esse gênero Literário requer condições de escritor que por certo não são minhas. Não sei narrar. Não sei
narrar minha própria história, que é bem mais extraordinária que a de Shakespeare. Além do mais, esse
livro seria inútil. O acaso ou o destino deram a Shakespeare as triviais coisas terríveis que todo homem
conhece; ele soube transmutá-las em fábulas, em personagens muito mais vividos que o homem cinza que
sonhou com eles, em versos que as gerações não deixarão desaparecer, em música verbal. Para que
destecer essa rede, para que minar a torre, para que reduzir às módicas proporções de uma biografia
documental ou de um romance realista o som e a fúria de Macbeth?

Goethe constitui, segundo se sabe, o culto oficial da Alemanha; mais íntimo é o culto a
Shakespeare, que professamos com nostalgia. (Na Inglaterra, Shakespeare, que tão distante está dos
ingleses, constitui o culto oficial; o livro da Inglaterra é a Bíblia). Na primeira etapa da aventura senti a
felicidade de ser Shakespeare; na última, a opressão e o terror. No início, as duas memórias não
misturavam suas águas. Com o tempo, o grande rio de Shakespeare ameaçou, e quase afogou, meu
modesto caudal. Percebi com temor que estava esquecendo a língua de meus pais. Já que a identidade
pessoal baseia-se na memória, temi por minha razão.

Meus amigos vinham visitar-me; assombrou-me que não percebessem que eu estava no inferno.
Comecei a não entender as coisas cotidianas que me rodeavam (díe alltägliche Umwelt). 1 Certa manhã
perdi-me entre grandes formas de ferro, de madeira e de cristal. Aturdiram- me assobios e clamores.
Demorei um instante, que pôde parecer-me infinito, em reconhecer as máquinas e vagões da estação de
Brêmen. À medida que transcorrem os anos, todo homem é obrigado a suportar o crescente peso de sua
memória. Duas me angustiavam, confundindo-se às vezes: a minha e a do outro, incomunicável.

Todas as coisas querem perseverar em seu ser, escreveu Spinoza. A pedra quer ser uma pedra, o
tigre, um tigre, eu queria voltar a ser Hermann Soergel. Esqueci a data em que decidi libertar-me. Dei com
o método mais fácil. No telefone marquei números ao acaso. Vozes de criança ou de mulher respondiam.
Achei que meu dever era respeitá-las. Dei por fim com uma voz culta de homem. Disse-lhe:

– Você quer a memória de Shakespeare? Sei que o que lhe ofereço é muito sério. Pense bem.

Uma voz incrédula replicou:

– Enfrentarei esse risco. Aceito a memória de Shakespeare.

Declarei as condições da dádiva. Paradoxalmente, sentia ao mesmo tempo a nostalgia do livro que
eu deveria ter escrito e que me foi proibido escrever e o temor de que o hóspede, o espectro, nunca me
deixasse.

Desliguei o telefone e repeti como uma esperança estas resignadas palavras:

Simply the thing I am shall make me live.

Eu havia imaginado disciplinas para despertar a antiga memória; tive de buscar outras para apagá-
la. Uma entre tantas foi o estudo da mitologia de William Blake, discípulo rebelde de Swedenborg.
Comprovei que era menos complexa do que complicada.

Esse e outros caminhos foram inúteis; todos me levavam a Shakespeare.

Encontrei, enfim, a única solução para povoar a espera: a estrita e vasta música, Bach. PS. 1924 – Já
sou um homem entre os homens. Na vigília sou o professor emérito Hermann Soergel; manuseio um
fichário e redijo trivialidades eruditas, mas na aurora sei, algumas vezes, que aquele que sonha é o outro.
De vez em quando, surpreendem-me pequenas e fugazes memórias que talvez sejam autênticas. Após sua
leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o
autor e a publicação de novas obras.

1. Compreende três contos inseridos em diferentes publicações, anteriores a 1983, e um intitulado “A


memória de Shakespeare” (1980), não incluído até agora em livro.

1. “O meio ambiente cotidiano.” (N. da T.)

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