You are on page 1of 6

Devir-escritor – Razão Inadequada about:reader?url=https://razaoinadequada.

com/2016/04/12/devir-escritor/

razaoinadequada.com

Devir-escritor – Razão Inadequada


Escrito por Rafael Trindade
7-9 minutes

Há um momento em que o escritor entra em devir-escritor. Já


falamos tanto de devires, por que falar de mais um? Qual seria a
importância de se falar de um devir escritor? O mundo é tão
prático, as notícias de internet estão sempre nos informado
rapidamente do que precisamos saber. O devir-escritor é um dos
modos de resistência criativa (dentre os vários outros devires), mas
com uma diferença: trata-se de uma viagem imóvel.

Não existe devir-sedentário, claro, então precisamos considerar a


importante possibilidade de compreender o leitor como um viajante.
Há na leitura e na escrita um processo tão intenso que podemos
falar de um devir-leitor e devir-escritor. Jorge Amado falava de
quando seus dedos digitavam mais rápido que sua mente, os
personagens como que se moviam pelo papel antes dele conseguir
planejar o que fariam; Henry Miller era um ótimo datilógrafo,
digitava muito bem, e podia escrever muitas páginas de seu
romance em um só dia; Kerouac também nos conta deste frenesi
da escrita, quase um estado zen, meditativo, suspenso. Seu corpo
era mais rápido que sua mente, seus dedos, mais rápidos que os
olhos. Uma Razão Inadequada, razão corporal.

1 of 6 5/31/2018, 1:11 PM
Devir-escritor – Razão Inadequada about:reader?url=https://razaoinadequada.com/2016/04/12/devir-escritor/

Félix Guattari

Um Corpo sem Órgãos nasce da escrita e da leitura, um processo


intenso que pode ser obtido no sofá da sala. Lembremos de
Deleuze, é preciso sempre se perguntar: “isso funciona?”. Se não,
pare de escrever ou para de ler! Em seus livros, o desejo pode
alçar voo e encontrar outros territórios. Uma frase, uma lembrança,
um lugar, é difícil saber onde o desejo encontrará um campo livre
para povoar de multiplicidades.

A escrita é uma ferramenta de criação de intensidades. Não se


escreve para fugir da vida, por falta de vida, como fuga. A escrita é
uma arma, uma vitamina que potencializa, ensina e torna mais
capaz de viver. O escritor monta uma máquina de guerra que opera
na realidade, livros são armas!, pensamentos são um modo de
resistir e atuar na realidade concreta. O escritor nômade entra em
contato com os fluxos, seu corpo se torna um canal, ele abre os
poros buscando por algo que se passe em sua superfície. Uma
escrita experimental, que não procura interpretar; nômade é aquele
que abandona a si mesmo no processo, volta, e já é outro!

Buscamos uma geografia das relações, e o devir-escritor é nosso


batedor, explorador de sensações, vanguardista do acontecimento:
o escritor cria linhas de fugas, ele entra em contato com a diferença
pura pois abandona todos os modelos. O livro não é um manual, é
um atestado, a prova de uma vivência. A bíblia não é a palavra de
deus, é a doença dos homens. Joguemos no lixo todos os
manuais. Só queremos, de agora em diante, encontrar livros

2 of 6 5/31/2018, 1:11 PM
Devir-escritor – Razão Inadequada about:reader?url=https://razaoinadequada.com/2016/04/12/devir-escritor/

mapas, livros afetos, livros acontecimentos. O devir-escritor é este


processo, sem imitações, sem analogias. Os livros de Miller são um
bom exemplo, uma cartografia das vivências pelas quais passou:
mapas de linhas e devires. A escrita é um dispositivo para
organizar ideias, ou seja, organizar o corpo, desembaralhar
pensamentos, desembrulhar conceitos, viver.

Carlos Drummond de Andrade

É preciso aproximar-se cuidadosamente da escrita. Pensá-la


sempre como um processo inacabado, sempre em vias de…, só
assim o fluxo da escrita permite entrar em devir. Da mão do escritor
para o papel, novas conexões se fazem; das palavras no papel
para os olhos do leitor, devires inesperados acontecem; da leitura
para a vida, ainda mais novas possibilidades. Sempre aberto,
sempre abrindo, escancarado, explícito: a escrita se abre novas
veredas. Lembrando maio de 68, a escrita precisa voltar a ser

3 of 6 5/31/2018, 1:11 PM
Devir-escritor – Razão Inadequada about:reader?url=https://razaoinadequada.com/2016/04/12/devir-escritor/

perigosa!

Todo leitor, enquanto está lendo, é o leitor do seu próprio eu. O


trabalho do escritor é simplesmente uma espécie de instrumento
ótico oferecido ao leitor para lhe permitir distinguir o que, sem o
livro, ele talvez nunca fosse vivenciar em si mesmo. E o
reconhecimento em si próprio, por parte do leitor, daquilo que o
livro diz é a prova da sua veracidade” – Proust.

Para uma boa leitura, é necessário cantar junto, solfejar, não


pensando em uma peça ideal, mas compondo junto. Quando
Deleuze interpretava seus filósofos favoritos, muitas vezes
colocava palavras em sua boca, os enrabava. Não é para ler a
partitura ao pé da letra, isso torna a música sem graça, sem se
misturar no processo, sem se doar, é impossível entrar em devir. A
escritura se torna uma possibilidade de vida, ela arrasta para
lugares inéditos, sensações nunca antes experimentadas. E se
pensarmos o livro como um trampolim para a vida? Uma entrada,
múltiplas saídas. Percebemos que fracassamos quando caímos na
imitação, todo devir é um portal que precisamos atravessar.

Aquele que escreve, (tanto quanto aquele que lê) dá passagem às


vibrações corpóreas. O pensamento se movendo por entre os

4 of 6 5/31/2018, 1:11 PM
Devir-escritor – Razão Inadequada about:reader?url=https://razaoinadequada.com/2016/04/12/devir-escritor/

dedos do escritor. Escrever não é apenas descrever o mundo,


representá-lo, cuidado com os espelhos, eles distorcem e
enganam, quem carrega um livro como uma fonte de
representação, faz mau uso de suas potencialidades, torna a
escrita algo medíocre. Livro = arma = ferramenta. Deixemos de
lado os escritores planônicos, porque uma Razão Inadequada
busca por simulacros, não trocaremos a realidade por espelhos
bem polidos! Quando um livro transforma-se em bíblia, em
regulamento, em dicionário, em espelho da realidade, em palavra
intocada, a ferramenta perde sua multiplicidade e torna-se um
ídolo, ídolos que devem ser adorados, mas para nós, o tempo dos
Ídolos acabou, Deus está morto.

Destruir os Ídolos, o que é um escritor que não faz mal a ninguém?


O que é um escritor que busca o reconhecimento? A celebridade?
Escritores ressentidos e desesperados, rancorosos “não veem
como sou bom, um dia eles verão“. Um pensamento precisa afetar,
para o bem ou para o mal. Um escritor precisa escrever com seu
sangue. Não apenas quando vai bem… escrever é uma forma de
melhorar também! Não seria no devir-escritor a grande expressão
da liberdade? A possibilidade de filtrar todo ressentimento? A força
de expressão que dá provas de sua potência e singularidade? No
devir-escritor, o corpo encontra sua força própria para realizar seus
encontros, autopoiésis, ele mostra sua capacidade de efetuar-se e
transforma-se neste ato. O escritor se cansou de olhar o rio, agora
ele quer ser o rio. E no devir-escritor, ele conquista esta proeza.

Texto da série: Ética dos Devires

5 of 6 5/31/2018, 1:11 PM
Devir-escritor – Razão Inadequada about:reader?url=https://razaoinadequada.com/2016/04/12/devir-escritor/

The Impact of a Book – Jorge Mendez Blake

6 of 6 5/31/2018, 1:11 PM

You might also like