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Bruxas por trás da caça

Empanturravam-se em banquetes canibalescos, cujo


cardápio incluía corações de crianças e carne de homens
enforcados.
Por José Francisco Botelho
access_time 31 out 2016, 18h26 - Publicado em 30 nov 2007, 22h00

Por que mulheres inofensivas – sem chapéu pontudo e com vassoura só para
limpar a casa – foram exterminadas na Idade Média? Fanatismo, alucinações e
até comida estragada podem explicar a perseguição às feiticeiras.

Entre os séculos 15 e 17, a Europa estava infestada de bruxas. Disfarçadas e


infiltradas entre os bons cristãos, elas adoravam o Diabo em segredo,
promoviam rituais malignos e lançavam feitiços e maldições com a ajuda do
chefe dos demônios. Na calada da noite, roubavam bebês recém-nascidos e os
esquartejavam antes de receber o batismo.

Depois, ferviam os corpos mutilados num caldeirão para fabricar venenos e


poções mágicas. Quando ofendidas, lançavam maldições terríveis: podiam
invocar tempestades e chuvas de granizo, matar pessoas com um simples olhar
e transformar suas vítimas em sapos, ratos ou cobras. Nas noites de sexta-feira,
as adoradoras de Satanás montavam em vassouras ou cadeiras enfeitiçadas e
voavam para o sabá – na superstição medieval, uma espécie de missa satânica
realizada em florestas ou montanhas desertas.

Nessa noitada diabólica, as bruxas se entregavam a uma maratona de pecados


e blasfêmias. Empanturravam-se em banquetes canibalescos, cujo cardápio
incluía corações de crianças e carne de homens enforcados. Engatavam orgias
onde todas as perversões sexuais imagináveis eram permitidas e encorajadas.
Às vezes, o coisa-ruim em pessoa entrava na farra, dançando e amando suas
servas na forma de bode preto, gato gigante ou homem-monstro, com 7 chifres
na cabeça e um enorme pênis ereto, todo coberto de espinhos.

Os delirantes relatos vêm de livros como Martelo das Feiticeiras (1487) e o


Quadro da Inconstância dos Anjos Malvados e Demônios (1612), manuais
usados para caçar, prender e exterminar as “agentes de Satã”. Durante séculos,
esses livros foram levados a sério – e a crença nas bruxas não era vista como
superstição, mas artigo de fé. “Acreditar em bruxas é uma parte essencial da
doutrina cristã. Duvidar de sua existência é uma grave heresia contra a Santa
Igreja”, afirmavam o monge alemão Heinrich Kraemer e o padre suíço James
Sprenger, autores de Martelo das Feiticeiras.

Na época de Kraemer e Sprenger, a crença na bruxaria era tão forte que


desencadeou uma das perseguições mais brutais que o Ocidente já viu. A caça
às bruxas, que atingiu o ápice entre os séculos 15 e 17, foi um capítulo sinistro
na transição do mundo medieval para o período moderno. Durante cerca de 400
anos, os governos laicos e as autoridades religiosas da Europa prenderam,
torturaram e assassinaram uma multidão de pessoas pelo crime de feitiçaria.
Como os registros oficiais da época são muitos confusos, o número exato de
vítimas é até hoje um mistério. Alguns historiadores sugerem um total de 200
mil mortos, enquanto outros falam até em 9 milhões.

Quase todos eram mulheres, em geral camponesas miseráveis, que viviam


sozinhas em pequenos casebres às margens das aldeias. Para sobreviver, elas
atuavam como curandeiras, fazendo feitiços, simpatias e remédios naturais.
Esse verniz de simplicidade e sofrimento torna ainda mais intrigante o mistério
que nenhuma das teorias consegue explicar direito: afinal, por que raios as
pessoas começaram a ver naquelas tiazinhas inofensivas bruxas voando em
vassouras e dançando peladonas com o Diabo? Para entender isso, precisamos
voltar ao início da civilização ocidental e responder a uma outra pergunta:

O que é uma bruxa?

Segundo o Martelo das Feiticeiras e outros manuais da época, bruxa (ou bruxo)
era alguém que praticava magia para fins malignos, com a ajuda do demônio. O
conceito de bruxaria surgiu na Idade Média, mas outras formas de magia eram
praticadas desde a Antiguidade – e nem sempre eram vistas como algo mau. No
mundo greco-romano, a palavra mageia designava uma espécie de religião não
oficial baseada no culto de deuses ligados à noite e à escuridão. Segundo a
crença da época, divindades como Plutão, deus dos mortos, e Hécate, deusa
das encruzilhadas e da lua nova, podiam tanto causar doenças quanto curá-las.

“As leis romanas condenavam a magia com fins maléficos, pois a enfermidade e
a morte freqüentemente eram atribuídas a causas mágicas. Mas a magia com
fins benéficos na Grécia e em Roma era considerada lícita e mesmo necessária”,
diz o historiador Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, da USP, em seu livro
Bruxaria e História.

A tolerância virou pó no início da Idade Média. Com a Europa convertida ao


cristianismo, os ritos mágicos caíram no enorme balaio de crenças proibidas. Só
esqueceram de combinar com o povão, que durante todo o período medieval
continuou invocando espíritos, amaldiçoando inimigos e enfeitiçando amantes à
revelia dos padres. Com uma diferença: se nos tempos antigos havia magos e
magas na mesma proporção, na Europa cristã a bruxaria era monopólio
feminino.

Não é difícil entender por quê: enxotadas do comando da Igreja (desde o século
2, o sacerdócio cristão era exclusividade dos homens), as mulheres fizeram das
práticas mágicas proibidas sua solitária esfera de poder. Entre as figuras mais
respeitadas nas aldeias e nos campos – onde viviam 95% da população
européia no século 15 – estavam as curandeiras, chamadas de “mulheres
sábias” na Inglaterra, França, Alemanha e outros países. “Eram geralmente
viúvas ou solteironas, com enorme conhecimento de ervas medicinais. Embora
fossem pessoas miseráveis, tinham grande prestígio. Num mundo quase sem
médicos, elas serviam como faz-tudo: parteiras, adivinhas, terapeutas”, diz o
historiador Henrique Carneiro, da USP.

Passados de mãe para filha ou de tia para sobrinha, os segredos das


curandeiras escapavam à compreensão da ciência. De fato, alguns de seus
remedinhos eram pra lá de estranhos. Ovos fervidos em urina, por exemplo,
eram usados contra picadas de insetos. Pomadas de sêmen de cavalo serviam
para provocar a gravidez. Amuletos para atrair o amor, afastar mau-olhado e
detectar venenos usavam como ingredientes ratos assados, pele de cobra e
dentes humanos, recolhidos no cemitério mais próximo. Bênçãos e rezas
também estavam no repertório. Em meio à bizarrice, nem tudo era chute ou
superstição. A “magia” dessas mulheres abarcava conhecimentos que depois
seriam cientificamente comprovados (veja alguns exemplos no quadro ao lado).

O que nem as curandeiras nem os cientistas podiam prever eram as desgraças


que arrasariam a Europa no século 14. Em 1315, catástrofes climáticas
destruíram colheitas em toda a Europa, exterminando 20% da população e
originando surtos de canibalismo. Décadas depois veio a peste negra – a
gigantesca epidemia que varreu um terço dos habitantes da Europa, cerca de
20 milhões de pessoas. Numa época coalhada de superstições, era preciso
culpar alguém pelas calamidades. Sobrou para as curandeiras.

“Durante as crises, os pobres do campo passaram a descontar sua frustração


pelas colheitas ruins ou pela alta taxa de mortalidade infantil sobre aquelas que
tinham menos capacidade de reagir – as solteironas e as viúvas, sem maridos
ou filhos para protegê-las”, afirma a historiadora americana Anne Lewellyn
Barstow, no livro Chacina de Feiticeiras. A fagulha virou incêndio com a
radicalização religiosa da Inquisição, movimento cristão de perseguição aos
hereges. A caça às bruxas, até então esporádica, foi oficializada em 1484,
quando o papa Inocêncio 8o publicou uma bula transformando em hereges
todos aqueles que “realizam encantamentos, sortilégios, conjurações de
espíritos e outras abominações do gênero”. A sabedoria popular sem respaldo
da Igreja passou a ser coisa do Diabo.

Tá todo mundo louco

Embalados pelo frenesi da Inquisição, muitos países incluíram a bruxaria na lista


de crimes contra o Estado. A caça às bruxas intensificou-se e fez vítimas como
a alemã Walpurga Hausmanin, uma viúva idosa que ganhava a vida como
curandeira no vilarejo de Dillingen, no sul do país. Em 1587, seus antigos
clientes e amigos a acusaram de matar bebês e dizimar os animais da aldeia
(uma simples fofoca mandava pessoas ao calabouço). Walpurga foi presa e
levada ao tribunal. Isolada do mundo exterior, não tinha direito a nenhum tipo de
defesa.

Os juízes examinavam o corpo das vítimas em busca de “marcas do Diabo” –


verrugas, sinais de nascença ou simples cicatrizes. Acorrentada e espancada,
Walpurga confessou: seus poderes eram dádivas de Satanás. Marcada com
ferro em brasa, foi queimada viva em praça pública. Por mais de 200 anos,
houve muitas Walpurgas. Pessoas de todas as idades juravam ter visto sabás e
muitos admitiam ter participado das orgias. O fanatismo religioso fazia a maioria
da população acreditar que o Diabo estava à solta.

Será possível entender racionalmente essa maluquice? Há algumas explicações,


nenhuma delas plenamente satisfatória. A mais tradicional vem da psicologia,
que classifica a perseguição às bruxas como um período de histeria coletiva,
doença caracterizada pela falta de controle sobre atos e emoções. Parece algo
muito esquisito? Sim, mas pode rolar até nas sociedades mais liberais. Alguns
estudiosos defendem que foi justamente isso o que aconteceu nos EUA da
década de 1950, época da paranóia anticomunista – não por acaso, também
chamada de “caça às bruxas”. “O medo dos comunistas era tão grande que
qualquer intelectual virava suspeito de espionar para a União Soviética”, diz o
historiador inglês Nigel Cawthorne em seu livro Witch Hunt (“Caça às Bruxas”,
sem tradução no Brasil).

Mas o pânico social não justifica totalmente as descrições detalhadas de vôos


noturnos, lobisomens e bailes satânicos. A loucura em massa talvez possa ser
explicada pela própria massa – não a humana, mas a do pão. Parece louco, mas
é simples: entre os séculos 15 e 17, o principal alimento da dieta européia era o
pão feito à base de centeio. Em climas chuvosos e úmidos, como em boa parte
da Europa, era comum que os depósitos de centeio fossem atacados por um
fungo conhecido como Claviceps purpurea.

O Claviceps é um velho conhecido dos viajandões: ele contém um alcalóide


chamado ergotamina, que em 1943 foi usado em laboratórios americanos para
produzir o LSD. Se essa explicação for correta, dá para concluir que grande
parte das pessoas envolvidas no massacre às bruxas poderia estar literalmente
delirando, em estado de transe, falando sozinha ou descrevendo visões
psicodélicas. Ver assombrações demoníacas e outras cenas seria compatível
com esse quadro alucinado de alteração química.

Fogo na corte

A viagem do mal só deu sinais de esgotamento no final do século 16, quando


pipocaram as primeiras denúncias de psiquiatras e até jesuítas da loucura
coletiva. Mas a caça às bruxas fez vítimas até a metade do século 18. Com as
curandeiras exterminadas, a atenção dos caçadores se voltou a qualquer
mulher suspeita. A gota dʼágua veio em 1682, quando a marquesa de
Montespan, amante do rei francês Luís 14, foi acusada de satanismo. Sentindo o
calor da fogueira muito próximo ao trono, Luís 14 baixou um decreto proibindo a
perseguição a bruxas na França. No século seguinte, o rei francês foi imitado
por outros governantes. Mas a última execução por bruxaria só aconteceria em
1782 – apenas 7 anos antes da Revolução Francesa, que inaugurou oficialmente
a modernidade no Ocidente. Mesmo com suas chamas extintas, a chacina das
feiticeiras continua sendo um dos enigmas mais arrepiantes da história.

Não é feitiçaria, é tecnologia!

Ervas “bruxas” são usadas até hoje pela farmacologia

Sálvia

Por conter o hormônio estrógeno, é uma planta indicada para problemas no


ovário e disfunções menstruais.

Esclaréia

É uma espécie específica de sálvia de que se extraem substâncias


antiespasmódicas que ajudam, por exemplo, no controle de cólicas.

Hissopo

Planta aromática usada como expectorante, facilitando a tosse para expelir o


escarro. Também é usada como antiinflamatório e relaxante de vasos
sanguíneos.

Salsa

Suas folhas servem como tempero e sua raiz é usada como diurético
(medicamento que facilita o xixi).

Dedaleira

Desta erva produz-se a digitalina, um extrato usado contra insuficiência


cardíaca e arritmia. Dependendo da dose, pode ser venenosa.

Centeio

A ergotina, produzida pelo fungo que contamina sua espiga, é usada para
amenizar a dor do parto e conter hemorragias. Um de seus alcalóides, a
ergotamina, possui propriedades lisérgicas.

Beladona

Planta ornamental usada para tratar espasmos na laringe e nas cordas vocais.

Para saber mais

Bruxaria e História

Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, Ática, 1991.

História Noturna

Carlo Ginzburg, Companhia das Letras, 1989.

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