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da leitura
D322c Dehaene, Stanislas.
Os neurônios da leitura : como a ciência explica a nossa
capacidade de ler / Stanislas Dehaene ; tradução: Leonor
Scliar-Cabral. – Porto Alegre : Penso, 2012.
374 p. ; 23 cm.
ISBN 978-85-63899-44-6
CDU 159.95
os neurônios
da leitura
como a ciência explica a nossa capacidade de ler
2012
Obra originalmente publicada sob o título
Reading in the Brain
ISBN 9780670021109
© 2009 by Stanislas Dehaene. All rights reserved.
Portuguese languaje translation © by Penso Editora Ltda., a Division of Grupo A.
All rights reserved
SÃO PAULO
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Prefácio.................................................................................................... 9
Jean-Pierre Changeux
Introdução
A ciência da leitura.................................................................................. 15
1 Como lemos?..................................................................................... 25
2 O cérebro ao pé da letra.................................................................... 69
3 Os neurônios da leitura...................................................................... 140
4 A invenção da leitura......................................................................... 190
5 Aprender a ler.................................................................................... 213
6 O cérebro disléxico............................................................................ 253
7 Leitura e simetria............................................................................... 280
8 Em direção a uma cultura dos neurônios........................................... 320
Conclusão
O futuro da leitura................................................................................... 343
Referências............................................................................................... 347
Saber orientar-se no cérebro
Anterior posterior
(na frente) (atrás)
dorsal
(superior)
ventral
(inferior)
Corte sagital
anterior
face mediana (no meio)
face lateral
dorsal
(superior)
posterior
ventral
(inferior)
Corte axial
Corte coronal
Circunvolução angular
Lobo parietal
Lobo frontal Circunvolução
temporal superior
Circunvolução
Lobo
occipital temporal média
Circunvolução
Lobo temporal temporal inferior
Região
frontal inferior Região occípito-
Sulco
temporal temporal ventral
superior
Circunvolução
temporal inferior
Região occípito-
Região occípito- temporal ventral
temporal lateral
Prefácio
Jean-Pierre Changeux
1
Cf. Noam Chomsky. Aspectos da Teoria da Sintaxe. Traduzido por J. A. Meireles e E.
P. Raposo. Coimbra: A. Amado, 1975.
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tares mais simples. A esta primeira decifração sucede uma análise dupla:
a do som e a do sentido. Stanislav Dehaene nos faz participar da apaixo-
nante descoberta dos circuitos nervosos mobilizados para a leitura. No
final do século XIX, Jules Déjerine tinha descoberto que uma lesão locali-
zada do cérebro acarretava um déficit seletivo da leitura sem que a escri-
ta fosse afetada, assim como nenhuma das demais capacidades. Ele pro-
pôs, então, a existência de um “centro visual das letras”, localizado na
circunvolução angular, na base da região parietal esquerda. Na ocasião,
ele interpretava seus dados sob a ótica de uma via linear da leitura. Hoje,
concebemos mais que isto, uma rede complexa e abundante que implica-
ria as vias visuais e as vias auditivas e, mais especificamente, as repre-
sentações dos sentidos, dos sons e da articulação das palavras.
Esses traços da topologia neural nos instruem igualmente sobre a
forma como a criança vai aprender o sistema escrito. O método global, tão
controvertido, é definitivamente posto em cacos por Stanislav Dehaene, que
pleiteia a “unificação das pesquisas pedagógicas, psicológicas e neuro-
científicas”. Uma neurociência da aprendizagem da leitura se torna pos-
sível e nos permite, enfim, progredir numa problemática frequentemente
muito ideologizada! O rabiscador do fundo da classe é, enfim, reabilita-
do e apoiado como se deve. Por exemplo, a dislexia, que preocupa tantos
pais e avós, é abordada aqui de forma frontal. Esse defeito de manipula-
ção mental dos fonemas resulta, de fato, de anomalias anatômicas do
lobo temporal, estabelecendo a partir disto a predisposição genética para
a dislexia. Mas quem afirma genético, não afirma irremediável. Muito ao
contrário, uma triagem precoce permitirá o desenvolvimento, através de
exercícios de aprendizagem apropriados no computador, de uma estraté-
gia compensatória. Por fim, as crianças cometem seguidamente erros de
leitura ou de escrita em espelho, no início da aprendizagem da leitura.
Nosso sistema visual se desenvolve espontaneamente de forma simétrica
e a criança deverá ultrapassar este viés para aprender o sistema escrito.
Processos importantes de plasticidade neural intervêm para estabelecer
os circuitos do adulto. Mais impressionante ainda: a criança da qual o
hemisfério esquerdo foi retirado aos 4 anos, em virtude de um tumor in-
vasivo, pode adquirir até os 11 anos a língua e aprender o sistema escri-
to, mas com o hemisfério direito, em vez do esquerdo. Uma importante
amplificação compensatória dos circuitos existentes no hemisfério direito
permitirá à criança, ao tornar-se adulta, ler e escrever, a despeito de uma
lesão inicial maior.
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por ressonância magnética, hoje, são necessários alguns minutos para vi-
sualizar as regiões cerebrais ativadas quando deciframos as palavras.
O funcionamento íntimo dessas operações mentais tornou-se aces-
sível à experimentação. No laboratório, seguimos passo a passo o percur-
so das palavras desde a análise da sequência das letras até o reconheci-
mento visual, o cálculo da pronúncia e o acesso à significação.
Sobre esta base empírica, uma teoria da leitura começa a se vis-
lumbrar. Ela descreve como funcionam os circuitos corticais herdados de
nosso passado evolutivo e que, bem ou mal, foram adaptados para a lei-
tura. Ela explica como as redes de neurônios aprendem a ler: por quais
mecanismos, chegados à idade adulta, lemos com tanta eficácia; de onde
provém que algumas crianças sofram de dislexia e como podemos consi-
derar a possibilidade de remediá-la.
O objetivo deste livro é fazê-los compartilhar, em termos simples,
esta ciência da leitura e os avanços experimentais que a sustentam. No
séc. XXI, pode se aceitar que uma pessoa culta conheça melhor o funcio-
namento de seu carro ou de seu computador do que de seu próprio cére-
bro? Nosso sistema escolar, por muito tempo submetido aos riscos da in-
tuição destes ou daqueles que decidem, não pode mais aceitar submeter-
-se a reforma após reforma sem que os conhecimentos das neurociências
cognitivas não sejam levados em conta. Pais, educadores e políticos, ade-
mais, já compreenderam muito bem: muitos se entusiasmam pelas novas
imagens do cérebro... com o risco muitas vezes de desconhecer os limi-
tes ou de caricaturar as implicações para o ensino. Muito recente, a ciên-
cia da leitura jamais foi ensinada. Minha ambição é a de fornecer aqui
alguns pontos de referência a fim de que não se possa mais ignorar a
complexidade das operações de que nosso cérebro lança mão para ler.
Todos sabem que a aprendizagem da leitura não se efetua suave-
mente. Todas as crianças, seja qual for a língua, encontram dificuldades
no momento de aprender a ler: estima-se que 10%, quando adultos, não
dominam os rudimentos da compreensão textual*. São necessários anos
de trabalho antes que as engrenagens cerebrais da leitura, bem lubrifica-
das, possam, enfim, esquecer. Por que tal dificuldade? Quais são as pro-
fundas modificações que a aprendizagem da leitura impõe aos circuitos
do cérebro? Podemos provar que certas estratégias de aprendizagem são
mais bem adaptadas que outras à organização cerebral da criança? Quais
*
Conforme o Boletim INAF (2007, dez.), em 2007, na faixa etária dos brasileiros de 15
a 64 anos temos: 7% de “analfabetos absolutos”; no nível rudimentar, temos 25%; no
nível básico, temos 40% e apenas 28% consegue o nível pleno.
Os neurônios da leitura 17
razões explicam que o método global não seja o mais eficaz? A todas es-
tas questões e, mesmo se resta muito ainda por descobrir, a nova ciência
da leitura começa a fornecer respostas precisas.
Ela esclarece igualmente as patologias da leitura. No decorrer das
páginas, tomaremos conhecimento de pacientes que, após um acidente
vascular, perdem repentinamente a faculdade de ler. Abordaremos, igual-
mente, a questão da dislexia, um vasto problema para a sociedade, cujas
origens começam a ser identificadas. No momento, é incontestável que o
cérebro de certos disléxicos não é exatamente igual ao de outros; vários
genes de susceptibilidade à dislexia foram identificados, a maior parte al-
tera a migração dos neurônios antes mesmo do nascimento e tal fato po-
deria explicar as anomalias anatômicas e funcionais que mostra o cérebro
das crianças disléxicas. Contudo, não se aceita a resignação: novas estraté-
gias terapêuticas, baseadas sobre a reeducação intensiva dos circuitos da
linguagem e da leitura estão prestes a surgir e a imagem cerebral mensura
passo a passo os progressos que elas induzem no cérebro da criança.
De todas estas pesquisas emerge uma nova esperança: a de ver
aparecer uma neurociência verdadeira da educação, na fronteira entre a
psicologia e a medicina, capaz de explorar as novas imagens do cérebro
a fim de atingir o ótimo nas estratégias de ensino e de adaptá-las a cada
cérebro de criança ou adulto.
em leitor experiente. De fato, não existe senão uma solução, uma só via
de aprendizagem que analisaremos em detalhe. Evidentemente seria de-
sejável que nossas escolas nela se inspirassem para levar ao ótimo o ensi-
no da leitura e reduzir os índices de fracasso.
Incidentalmente, seremos levados a interpretar certos aspectos im-
pressionantes da aprendizagem da leitura. Por que os leitores jovens es-
crevem frequentemente em espelho, da direita para a esquerda? Com-
preenderemos por que tais erros, contrariamente a uma opinião corren-
te, não são os primeiros sintomas da dislexia, mas a consequência natu-
ral da organização das áreas visuais. Entre a maioria das crianças, a dis-
lexia parece ser devida a outra anomalia, situada no tratamento dos sons
da fala. Nós descreveremos os signos precursores, as bases cerebrais e as
últimas descobertas da genética.
Chegaremos enfim ao seguinte fato surpreendente de que somente
nós, entre os primatas, somos capazes de invenções culturais tão sofistica-
das quanto a leitura. No exato oposto da visão espalhada entre as ciências
sociais pela qual nosso cérebro, virgem de toda a estrutura, não imporia
nenhum limite às culturas humanas, o exemplo da leitura mostra que a
organização cultural está inextricavelmente ligada à de nosso cérebro.
No curso de sua longa história cultural, a humanidade descobriu
que poderia reconverter seu sistema visual a fim de reconhecer a escrita.
Examinarei brevemente a possibilidade de submeter outros traços da cul-
tura humana a uma análise similar. As matemáticas, as artes e as religi-
ões não são talvez senão dispositivos modalizados por séculos de evolu-
ção cultural a fim de conquistar rapidamente os circuitos de nossos cére-
bros de primatas.
Contudo, persiste um enigma. Nenhuma espécie além da nossa in-
ventou símbolos falados ou escritos. Entre os chimpanzés, a lista de tra-
ços culturais se reduz a algumas dezenas de elementos. Entre todos os
primatas, por que somente nossa espécie é dotada de uma rica dimensão
cultural? Esboçarei em conclusão algumas pistas para a reflexão em tor-
no desta questão fascinante. Dois conceitos recentes, o da “teoria do es-
pírito” – a capacidade de imaginar o que pensam nossos congêneres – e
o de “espaço de trabalho consciente” – uma rede neuronal onde as ideias
se recombinam em sínteses novas – poderiam contribuir para abarcar a
singularidade cultural do espírito humano.
Ao final desta análise, a variabilidade cultural da espécie humana
não nos parecerá mais tão vasta. Talvez a impressão da infinita varieda-
Os neurônios da leitura 23
de das culturas não é senão uma ilusão ligada à nossa incapacidade para
imaginar formas culturais diferentes daquelas que nosso cérebro nos per-
mite conceber. A leitura, invenção cultural recente, pertence desde milê-
nios ao envelope de possibilidades acessíveis aos circuitos cerebrais. Por
detrás da diversidade aparente dos sistemas de escrita se movem os me-
canismos neuronais universais que revelam, como em filigrana, os limi-
tes de nossa natureza humana.
NOTAS
1 Gould, 1992.
2 Dawkins, 1996.
3 Changeux, 1983.