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NOTA

Este livro, além de uma insónia, é uma viagem. A insónia pertence a quem
escreveu o livro, a viagem a quem a fez. Porém, como também eu tive de
percorrer os mesmos lugares que o protagonista desta história percorreu, parece-
me oportuno fornecer um breve índice dos mesmos. Não sei bem se para isso
contribuiu a ilusão de que um reportório topográfico, com a força que o real
possui, pudesse dar luz a este Nocturno onde se procura uma sombra, ou a
irracional conjectura de que algum amante de itinerários incongruentes venha a
poder um dia utilizá-lo como guia.

A. T
As pessoas que dormem mal parecem ser mais ou menos culpadas:
o que fazem elas? Tornam a noite presente.
Maurice Blanchot
Índice dos lugares deste livro

1. Khajuraho Hotel. Suklaji Street, sem número, Bombaim.


2. Breach Candy Hospital. Bhulabai Desai Road, Bombaim.
3. Taj Mahal Inter-Continental Hotel. Gateway of India, Bombaim.
4. Railway s Retiring Rooms. Victoria Station; Central Railway, Bombaim.
Dormida com bilhete de comboio válido ou com o Indrail Pass.
5. Taj Coromandel Hotel. 5 Nungambakkam Road, Madrasta.
6. Theosophical Society. 12 Ady ar Road, Ady ar, Madrasta.
7. Autobus-Stop. Estrada Madrasta-Mangalore, cerca de 50 km de
Mangalore, localidade desconhecida.
8. Arcebispado e Colégio de S. Boaventura. Estrada de Calangute-Panaji,
velha Goa, Goa.
9. Zuari Hotel. Swatantry a Path, sem número, Vasco da Gama, Goa.
10. Praia de Calangute. Cerca de 20 km de Panaji, Goa.
11. Mandovi Hotel. 28 Bandodkar Marg, Panaji, Goa.
12. Oberoi Hotel. Bogmalo Beach, Goa.
Primeira Parte

I
O chofer de táxi usava pêra, uma redezinha no cabelo e um rabicho
atado com uma fita branca. Pensei que fosse um sikh, porque o meu guia
descrevia-o exactamente assim. O meu guia intitulava-se: India, a travel survival
kit, tinha-o comprado em Londres, mais por curiosidade do que por qualquer
outra coisa, porque fornecia sobre a Índia informações bastante bizarras e, à
primeira vista, supérfluas. Só mais tarde me daria conta da sua utilidade.
O homem guiava depressa de mais para o meu gosto e tocava a
buzina com fúria. Pareceu-me que roçava os peões de propósito, com um sorriso
indefinível que não me agradava. Na mão direita usava uma luva preta e
também isto não me agradou. Quando meteu por Marine Drive pareceu-me
acalmar-se e alinhou tranquilamente numa das filas do trânsito, do lado do mar.
Com a mão enluvada indicou as palmeiras ao longo do mar e do arco do golfo.
- Ali é Trobay, disse, e à nossa frente fica a Ilha de Elephanta, mas
não se vê. Com certeza há-de querer visitá-la, os barcos partem de hora a hora
do Gateway of India”.
Perguntei-lhe porque estava a percorrer Marir Drive. Não conhecia
Bombaim, mas procurava seguir o seu percurso no mapazinho que tinha em
cima dos joelhos. Os meus pontos de referência eram Malabar Hill e o Chor, o
mercado dos ladrões. O meu hotel ficava entre esses dois pontos e, para lá
chegar, não era preciso percorrer Marine Drive. Estávamos a seguir na direcção
oposta.
O hotel que me indicou fica num bairro miserável, disse afavelmente.
- A mercadoria é de má qualidade, os turistas que vêm a Bombaim
pela primeira vez vão parar a lugares pouco recomendáveis, levo-o para um
hotel mais próprio para uma pessoa como o senhor”.
Cuspiu pela janela e piscou o olho: nE com mercadoria de primeira
classe Exibiu um sorriso viscoso de grande cumplicidade o que me agradou ainda
menos.
- Pare aqui”, mandei, imediatamente.
Ele voltou-se e olhou para mim com ar servil.
- Mas aqui não posso, disse, há o trânsito.
Então desço na mesma, proferi abrindo a porta e segurando-a bem.
Ele travou bruscamente e começou uma algaraviada numa língua que
devia ser o marathi. Tinha um ar furibundo e creio que as palavras que sibilava
entre dentes não deviam ser das mais educadas, mas não me importei nada.
Levava comigo apenas uma pequena mala que tinha ao meu lado, por isso nem
sequer foi preciso sair para me dar a bagagem. Deixei-lhe uma nota de cem
rupias e desci para o enorme passeio de Marine Drive; na praia havia uma festa
religiosa ou uma feira, sabe-se lá, com uma grande multidão apinhada em frente
de qualquer coisa que não consegui distinguir. ao longo do mar havia vagabundos
deitados no paredão, miúdos que vendiam quinquilharia, mendigos. Havia
também uma fila de ricksbaw a motor, saltei para dentro de um cubículo
amarelo ligado a uma motoreta e gritei ao homenzinho a rua do meu hotel. Ele
carregou no pedal de arranque e partiu a toda a mecha, enfiando-se no trânsito.
O Bairro das Gaiolas era muito pior do que eu imaginara. Conhecia-o
através de algumas fotografias de um fotógrafo célebre e pensava estar
preparado para a miséria humana, mas as fotografias fecham o visível num
rectângulo. O visível sem moldura é sempre uma coisa diferente. E depois
aquele visível tinha um cheiro demasiado forte. Melhor dizendo, muitos cheiros.
Quando entrámos no bairro caía o crepúsculo e, o tempo de percorrer
uma rua, de repente, como acontece nos trópicos, caiu a noite. Uma grande parte
das construções do Bairro das Gaiolas é de madeira e de esteiras. As prostitutas
estão em casotas de tábuas desconjuntadas, com a cabeça de fora através de um
postigo. Algumas daquelas casotas eram pouco maiores do que a guarita de uma
sentinela. E depois havia barracas e cortinas de farrapos, talvez lojas ou outras
actividades comerciais, iluminadas com candeeiros de petróleo, diante das quais
havia magotes de gente. Mas o hotel Khajuraho tinha uma pequena tabuleta
iluminada e ficava quase à esquina de uma rua com edifícios em construção. O
vestíbulo, se assim se pode chamar, tinha um aspecto equívoco sem ser sórdido.
Era uma sala na penumbra com um balcão alto como os balcões dos pubs
ingleses, de cada lado do balcão havia dois abajures vermelhos e atrás estava
uma mulher de idade. Vestia um sari vistoso e tinha as unhas pintadas de azul,
pelo aspecto podia ser europeia, embora usasse na testa um dos muitos sinais das
mulheres indianas. Mostrei-lhe o meu passaporte e disse que tinha feito a reserva
por telegrama. Ela fez um gesto de assentimento e pôs-se a copiar os meus dados
de identificação com ostensiva diligência, depois deu-me a ficha para assinar.
Com ou sem casa-de- banho?”, perguntou-me, e especificou os
preços.
Escolhi o quarto com casa-de-banho. Pareceu-me que a pronúncia da
recepcionista tinha um ligeiro sotaque americano, mas não aprofundei.
Destinou-me o quarto e deu-me a chave. O porta-chaves era de
celulóide transparente com uma decalcomania dentro a condizer com o hotel.
- Quer jantar?, perguntou-me. Olhava-me com desconfiança. Percebi
que o local não era frequentado por ocidentais. Era evidente que perguntava a si
própria o que fazia eu ali, com uma bagagem insignificante, depois de ter
telegrafado do aeroporto.
Respondi que sim. A ideia não me atraía particularmente, mas tinha
muita fome e não me parecia oportuno andar pelo bairro àquela hora.
- A sala de jantar fecha às oito, disse. depois das oito só servimos no
quarto.
Disse que preferia jantar em baixo. ela conduziu-me até uma cortina
do outro lado do vestíbulo e entrei numa saleta abobadada com as paredes
pintadas de escuro, onde havia mesas baixas. As mesas estavam quase todas
livres e a luz era muito fraca. O menu prometia uma infinidade de pratos, mas
depois, ao perguntar ao empregado, fiquei a saber que justamente naquela noite
tinha acabado tudo. Havia só o número quinze. Jantei rapidamente arroz e peixe,
bebi uma cerveja morna e voltei para o átrio. A recepcionista ainda estava
sentada no seu lugar e parecia absorvida a dispor pedrinhas coloridas numa
espécie de espelho. No pequeno sofá do canto, junto à porta da entrada, estavam
dois rapazolas muito escuros, vestidos à ocidental, com calças à boca de sino.
Pareceram não dar por mim, mas eu senti imediatamente um certo mal-estar.
Parei diante do balcão e esperei que fosse ela a falar. De facto falou. Disse algo
com uma voz neutra e indiferente. não percebi bem do que se tratava e pedi-lhe
para repetir.
Era uma tabela. As únicas quantias que percebi foram a primeira e a
última: dos treze aos quinze anos, trezentas rupias, depois dos cinquenta, cinco
rupias.
- As mulheres estão na saleta do primeiro andar, concluiu.
Tirei uma carta do bolso e mostrei-lhe a assinatura. Sabia o nome de
memória, mas preferi mostrar-lho escrito, para não haver equívocos.
Vimala Sar, disse eu. Quero uma rapariga que se chama Vimala Sar”.
Ela lançou um olhar rápido aos dois rapazolas sentados no sofá.
Vimala Sar já não trabalha aqui, disse, foi-se embora”.
Para onde foi?”, perguntei.
Não sei, respondeu, mas temos raparigas mais bonitas do que ela.
As coisas não começavam muito bem. Pelo canto do olho pareceu-
me que os dois rapazolas faziam um ligeiro movimento, mas talvez fosse apenas
impressão minha.
Procure-ma, disse rapidamente, eu espero no quarto.
Por sorte tinha no bolso duas notas de vinte dólares. Deixei-lhas entre
as pedrinhas coloridas e peguei na minha maleta. Enquanto subia as escadas tive
uma pequena inspiração ditada pelo medo.
- A minha embaixada sabe que estou aqui, disse em voz alta.
O quarto parecia limpo. Estava pintado de verde pálido e nas paredes
havia gravuras com esculturas eróticas de Khajuraho, pareceu-me, mas não
tinha muita vontade de me certificar. A cama era muito baixa e ao lado havia
uma poltrona esfarrapada e um montinho de almofadas coloridas. Na mesinha-
de-cabeceira havia vários objectos de forma inconfundível. Despi-me e peguei
em roupa interior lavada. A casa de banho era um cubículo lacado que tinha na
porta um poster com uma loura montada numa Coca-cola. O poster estava
amarelecido e manchado dos insectos, a loura usava o cabelo à Marily n Monroe,
tipo anos cinquenta, o que aumentava a sua incongruência. Ao chuveiro faltava o
crivo, era simplesmente um cano donde jorrava um jacto de água à altura da
cabeça, mas lavar-me pareceu-me a coisa mais voluptuosa do mundo: tinha no
pêlo oito horas de avião, três horas de aeroporto e a travessia de Bombaim.
Não sei quanto tempo dormi. Talvez duas horas, talvez mais. Quando
as pancadinhas na porta me acordaram, fui abrir maquinalmente, ao princípio
nem sequer me apercebi onde me encontrava. A rapariga era pequena e vestia
um bonito sari. Estava a suar e a maquilhagem começava a desfazer-se ao canto
dos olhos. Disse:
- Boa noite, senhor, eu sou Vimala Sar.
Ficou de pé no quarto, de olhos baixos e braços caídos como se me
desse oportunidade de a examinar.
- Sou um amigo de Xavier, - disse eu.
Ela levantou os olhos e li uma grande surpresa no seu rosto. Tinha
colocado a carta dela sobre a mesinha de cabeceira. Olhou para ela e começou a
chorar.
- Porque é que ele veio parar a um lugar destes? perguntei. O que
fazia aqui? Onde está agora?
- Ela começou a soluçar baixinho e eu percebi que tinha feito
demasiadas perguntas.
- Acalme-se, disse.
Quando soube que eu lhe tinha escrito, zangou-se muito, disse ela.
- E porque me escreveu?
- Porque encontrei a sua direcção na agenda de Xavier”, disse ela,
sabia que vocês tinham sido muito amigos, em tempos”.
Porque é que ele se zangou?”.
Ela levou a mão à boca como para impedir o choro. Nos últimos
tempos tornara-se mau”, disse, estava doente.
Mas o que é que ele fazia?”.
Fazia negócios”, disse ela, não sei, não me contava nada, já não era
bom”.
Que tipo de negócios?”.
Não sei”, repetiu, não me contava nada, às vezes andava calado dias e
dias, e depois, de repente, ficava muito agitado e tinha grandes explosões de
fúria”.
Quando é que ele chegou aqui?”.
No ano passado”, disse ela, vinha de Goa, fazia negócios com eles,
depois adoeceu”.
Eles, quem?”.
“Os de Goa, disse, de Goa, não sei. Sentou-se no sofazinho junto da
cama, deixara de chorar, parecia mais calma.
Compre qualquer coisa para beber, disse ela, naquele armariozinho há
licores, uma garrafa custa cinquenta rupias”.
Fui ao armariozinho e peguei numa pequena garrafa cheia de um
líquido amarelado, um licor de tangerina.
Mas quem eram esses de Goa?”, insisti, lembra-se pelo menos do
nome, qualquer coisa?
Ela abanou a cabeça e começou outra vez a chorar. Os de Goa”, disse,
de Goa, não sei. Estava doente”, repetiu.
Fez uma pausa e deu um longo suspiro. Às vezes
parecia indiferente a tudo”, disse, mesmo a mim.
A única coisa que o interessava um pouco eram as cartas de Madrasta,
mas depois, no dia seguinte, voltava ao mesmo.
Que cartas?”.
As cartas de Madrasta”, disse ela ingenuamente, como se fosse uma
informação suficiente.
Mas de quem?”, insisti, quem lhe escrevia?.
“Não sei”, disse, uma sociedade, não me lembro, nunca me deixou lê-
las.
E ele respondia?, perguntei ainda.
Vimala ficou absorta. Sim, respondia, penso que sim, passava muitas
horas a escrever”.
Por favor”, pedi, tente fazer um esforço, o que era essa sociedade?”.
Não sei, disse, era uma sociedade de estudo, creio, não sei, senhor”.
Fez outra pausa e depois disse: ele era bom, a sua vontade era boa, mas a sua
natureza tinha um destino triste”. Tinha os dedos entrelaçados, uns dedos
compridos e bonitos. Depois olhou para mim com uma expressão de alívio como
se lhe tivesse vindo à memória uma recordação. Theosophical Society, disse. E
pela primeira vez sorriu.
Ouça, disse eu, conte-me tudo com calma, tudo o que se lembrar, tudo
o que possa dizer-me.
Servi-lhe mais um copo. Ela bebeu e começou a contar. Foi uma
história longa, prolixa, cheia de detalhes. Falou-me da história deles, das estradas
de Bombaim, de excursões alegres a Bassein e a Elephanta. E ainda de tardes no
Victoria Garden, deitados na relva, dos banhos em Chowpatty Beach, sob as
primeiras chuvas da monção. Soube como Xavier tinha aprendido a rir e do que
ria; e de quanto gostava do pôr-do-sol no mar de Oman, quando passeavam ao
fim da tarde, à beira-mar. Era uma história que ela tinha cuidadosamente limpo
de torpezas e de misérias. Era uma história de amor.
Xavier tinha escrito muitas coisas, disse ela, depois, um dia, queimou
tudo. Estava aqui, neste hotel, pegou numa bacia de cobre e queimou tudo.
Porquê?, perguntei.
Estava doente, disse ela, a sua natureza tinha um destino triste.
Quando Vimala se foi embora a noite devia estar no fim. Não olhei
para o relógio. Corri as cortinas da janela e estendi-me na cama. Antes de
adormecer chegou até mim um grito distante. Talvez fosse uma oração ou uma
invocação ao novo dia que estava a nascer.
II
Como se chamava?, .
Chamava-se Xavier, respondi.
Como o missionário?, perguntou ele. E depois disse: claro que não é
inglês, não é verdade?, .
Não, disse, é português, mas não veio como missionário, é um
português que se perdeu na Índia.
O médico abanou a cabeça em sinal afirmativo. Usava um chinó
brilhante que se movia cada vez que mexia a cabeça, como uma touca de
borracha.
Na Índia perde-se muita gente, disse, é um país feito de propósito para
isso.
Eu disse: pois é. E depois olhei para ele e também ele olhou para mim
com ar despreocupado como se estivesse ali por acaso e tudo acontecesse por
acaso, porque assim tivesse de ser.
Também sabe o apelido?”, perguntou, às vezes pode ajudar”.
Janata Pinto, disse eu, tinha remotas origens indianas, acho que um seu
antepassado era de Goa, pelo menos era o que ele dizia”.
O médico fez um gesto que parecia significar: isso chega; mas não era
isso que queria dizer, naturalmente.
Haverá certamente um arquivo”, disse, espero eu, .
Ele sorriu com ar infeliz e culpado. Tinha os dentes muito brancos e
uma falha na fila superior.
Um arquivo. . . “, resmungou. De repente, a sua expressão tornou-se
dura, tensa. Olhou-me com severidade, quase com desprezo. Isto é um hospital
de Bombaim”, disse secamente, ponha de parte as suas categorias europeias, são
um luxo arrogante”.
Calei-me e também ele ficou em silêncio. Do bolso da bata tirou uma
carteira de palha e pegou num cigarro. Atrás da sua mesa, na parede, havia um
grande relógio. Marcava sete horas, estava parado. Olhei para ele e ele percebeu
o que eu estava a pensar.
Há muito que está parado”, disse, de qualquer modo é meia-noite”.
Bem sei”, disse eu, estou à sua espera desde as oito, o médico de dia
disse-me que o senhor era o único que talvez me pudesse ajudar, diz que tem boa
memória”.
Ele voltou a sorrir, com o seu sorriso triste e culpado e eu percebi que
mais uma vez tinha cometido uma gafe, que não era uma qualidade ter boa
memória, num lugar como aquele.
Era seu amigo?”.
De certo modo, disse eu, em tempos”.
Quando foi internado?.
Há quase um ano, creio, no fim da monção, .
Um ano é muito tempo, disse ele. E depois continuou a monção é o
período pior, vem muitíssima gente.
Imagino, respondi.
Pôs a cabeça entre as mãos como se reflectisse ou como se estivesse
muito cansado.
Não imagina, disse. Tem uma fotografia dele?.
Era uma pergunta simples e prática, mas eu tropecei na resposta,
porque também eu senti o peso da memória e, ao mesmo tempo, a sua
inadequação. O que é que se recorda de um rosto, no fundo? Não, não tinha uma
fotografia, tinha apenas a minha recordação: e a minha recordação era só
minha, não era descritível, era a expressão que eu tinha do rosto de Xavier. Fiz
um esforço e disse: é um homem da minha altura, magro, de cabelos lisos, tem
aproximadamente a minha idade, às vezes uma expressão como a sua, doutor,
porque, se sorri, parece triste.
Não é uma descrição muito precisa, disse ele, mas tanto faz, não me
lembro de nenhum Janata Pinto, pelo menos de momento.
Encontrávamo-nos numa sala muito cinzenta, despida. Na parede do
fundo havia uma grande tina de cimento, como um lavadouro. Estava cheia de
folhas de papel. Junto da tina havia uma espécie de mesa comprida, também esta
atravancada de papéis. O médico levantou-se e foi ao fundo da sala. Pareceu-me
que coxeava. Pôs-se a mexer nos papéis da mesa. De longe, tive a impressão de
que eram folhas de caderno e bocados de papel castanho, de embrulho.
É o meu arquivo, disse, são tudo nomes.
Eu fiquei sentado em frente da mesinha olhando para os poucos
objectos que a ocupavam. Havia uma pequena bola de cristal com a imagem da
ponte de Londres e uma fotografia emoldurada de uma casa que parecia um
chalet suíço. Pareceu-me absurdo. A uma janela do chalet via-se uma figura de
mulher, mas a fotografia estava desfocada e não tinha contornos.
Não é um drogado, pois não?, perguntou-me do fundo da sala. Não
aceitamos drogados.
Fiquei em silêncio e depois abanei a cabeça.
Talvez não, respondi depois, não creio, não sei”.
Mas como sabe que veio para o hospital, tem a certeza?”.
Disse-me uma prostituta do hotel Khajuraho, era lá que ele estava
hospedado, no ano passado.
E o senhor?, perguntou, também está lá hospedado?
Dormi lá a noite passada, mas amanhã mudo. procuro não ficar no
mesmo hotel mais do que uma noite, quando é possível.
Porquê?, perguntou ele desconfiado.
Tinha um monte de papéis nos braços e olhava-me por cima dos
óculos.
Porque sim, disse. Gosto de mudar todas as noites, tenho comigo
apenas esta pequena mala.
E para amanhã, já decidiu?
Ainda não, disse eu. Acho que gostaria de um hotel muito confortável,
talvez de luxo.
Poderia ir para o Taj Mahal, disse ele, é o hotel mais luxuoso de toda a
Ásia.
Talvez não seja má ideia”, respondi.
Ele meteu os braços na tina entre os bocados de papel.
Tantos homens”, disse.
Tinha-se sentado na borda da tina e pusera-se a limpar os óculos.
Esfregou os olhos com um lenço como se os devesse ter cansados ou irritados.
Pó, disse.
O papel?”, perguntei eu.
Ele baixou os olhos, virou-me as costas.
O papel, disse, os homens”.
De longe veio um lúgubre estrondo metálico, como um bidão que
rolasse pelas escadas abaixo.
De qualquer modo não está cá, disse ele, deixando cair todos os
papéis, penso que é inútil procurá-lo entre todos estes nomes”.
Instintivamente levantei-me. Tinha chegado o momento de me
despedir, julguei que era isto que me estava a dizer: que me fosse embora. Mas
ele não pareceu dar-se conta disso, dirigiu-se a um armariozinho de metal que
em tempos remotos devia ter sido pintado de branco. Vasculhou dentro dele e
pegou em medicamentos que meteu apressadamente nos bolsos da bata,
pareceu-me que os agarrava ao acaso, sem os escolher.
Se ainda cá está, a única maneira de o encontrar é ir à procura dele,
disse, eu tenho de fazer a minha volta, se quiser pode vir comigo.
Dirigiu-se para a porta e abriu-a.
Farei uma volta mais comprida do que costumo, esta noite, pode ser
que você não ache oportuno vir comigo.
Levantei-me e fui atrás dele.
Acho oportuno, disse. Posso levar a minha bagagem comigo?.
O átrio para o qual se abria a porta era uma sala hexagonal e de cada
um dos seus lados partia um corredor. Estava atravancada de roupa, de sacos, de
lençóis cinzentos. Alguns tinham manchas roxas e castanhas. Metemos pelo
primeiro corredor à nossa direita; no umbral havia um letreiro em hindu,
algumas letras tinham caído, deixando uma mancha clara entre as letras
vermelhas.
Não toque em nada, , disse, e não se aproxime demasiado dos doentes,
vocês europeus são muito delicados, .
O corredor era muito comprido, pintado de azul celeste, melancólico.
O chão estava preto de baratas que rebentavam debaixo dos nossos sapatos,
embora fizéssemos o possível para não as pisar.
Exterminamo-las, disse o médico, mas um mês depois voltam a
nascer, as paredes estão impregnadas de larvas, seria preciso demolir o hospital”.
O corredor terminava num novo átrio idêntico ao principal, mas
estreito e sem luz, separado por uma cortina.
O que fazia o senhor Janata Pinto?, , perguntou-me enquanto arredava
a cortina do átrio.
Pensei em dizer-lhe tradutor simultâneo, , que era o que talvez devesse
dizer. E em vez disso respondi: escrevia contos.
Ah”, disse ele. Tenha cuidado, aqui há um degrau. De que tratavam?, .
Bem, disse eu, não sei bem como explicar. digamos que falavam de
coisas falhadas, de erros humanos, por exemplo, falava de um homem que
passou toda a vida a sonhar com uma viagem e quando finalmente, tem
oportunidade de a fazer, nesse dia dá-se conta de que já não lhe apetece fazê-la”.
Contudo ele partiu, , disse o médico.
Assim parece, disse eu, efectivamente”.
O médico deixou cair a cortina atrás de nós.
Aqui dentro há uma centena de pessoas, disse, receio que não seja um
espectáculo agradável para si, são os que estão aqui há algum tempo, o seu
amigo poderia estar entre estes, se bem que me pareça improvável”.
Segui-o e entrámos na maior sala que eu já vi. Era quase tão grande
como um hangar, e ao longo das paredes e em três filas centrais havia camas, ou
melhor, enxergas. Do tecto pendiam algumas lâmpadas mortiças e eu parei um
momento porque o cheiro era muito forte. De cócoras, junto à porta da entrada,
estavam dois homens vestidos com roupas miseráveis que, quando entrámos, se
afastaram.
São Intocáveis”, disse o médico, são eles que se ocupam das
necessidades corporais dos doentes, não há mais ninguém que faça este trabalho.
A Índia é assim”.
Na primeira cama havia um velho. Estava completamente nu e era
muito magro. Parecia morto, mas tinha os olhos arregalados e olhou para nós
sem a menor expressão. Tinha um enorme pénis pousado na barriga. O médico
aproximou-se e tocou-lhe a testa. Pareceu-me que lhe metia um medicamento
na boca, mas não percebi bem, porque me encontrava aos pés da enxerga.
É um sádbuy, disse o médico, os seus órgãos genitais estão
consagrados ao deus, em tempos era adorado pelas mulheres estéreis, mas nunca
procriou”.
Depois ele afastou-se e eu segui-o. Parava em todas as camas,
enquanto eu ficava de lado a olhar para o rosto do enfermo. Junto de outros
apenas um momento tocando-lhe a testa. As paredes estavam manchadas de
vermelho, por causa das cuspidelas do betel mascado, e o calor era sufocante.
Ou era talvez o cheiro demasiado intenso que dava aquela sensação de
abafamento, de sufocação. As ventoinhas no tecto, contudo, estavam paradas.
Depois o médico voltou para trás e eu segui-o em silêncio.
Não está, disse eu, entre estes não está.
Ele voltou a afastar a cortina do átrio com imutável cortesia e deu-me
passagem.
Está um calor insuportável”, disse eu, e as ventoinhas estão paradas, é
incrível, .
Em Bombaim a corrente, de noite, é muito fraca, respondeu-me.
E contudo têm um reactor nuclear em Trombay, vi a chaminé da
beira-mar.
Esboçou um sorriso muito leve.
A energia vai quase toda para as fábricas, e depois para os hotéis de
luxo, e para o bairro de Marine Drive, aqui temos de nos conformar”.
Começou a caminhar ao longo do corredor e tomou a direcção oposta
àquela donde tínhamos vindo.
Assim é a Índia concluiu.
O senhor estudou aqui?”, perguntei.
Parou a olhar para mim, e pareceu-me que nos seus olhos passava um
relâmpago de nostalgia.
Estudei em Londres e depois especializei-me em Zurique.
Tirou do bolso o seu estojo de palha e pegou num cigarro.
Uma especialidade absurda, para a Índia. Sou cardiologista, mas aqui
ninguém fica doente do coração, só vocês na Europa morrem de enfarte.
De que se morre, aqui?, perguntei eu.
- De tudo o que não tem a ver com o coração. Sífilis, tuberculose,
lepra, tifo, septicemia, cólera, meningite, pelagra, difteria e outras coisas. Mas eu
gostava de estudar o coração, gostava de perceber aquele músculo que comanda
a nossa vida. Fez um gesto com a mão abrindo e fechando o punho. Talvez eu
julgasse que descobriria qualquer coisa lá dentro.
O corredor desembocava num pequeno pátio coberto, em frente de
um pavilhão baixo de tijolos.
Você é crente?, perguntei.
- Não, disse ele, sou ateu. Ser ateu é a pior das maldições, na Índia.
Atravessámos o pátio e parámos à frente da porta do pavilhão.
- Aqui dentro estão os incuráveis, há uma remota possibilidade que o
seu amigo esteja entre eles.
O que têm?”, perguntei.
Tudo o que possa imaginar”, disse ele, mas talvez seja melhor ir-se
embora”.
Também acho, respondi.
Vou acompanhá-lo, disse ele.
- Não, não se incomode, por favor, talvez eu possa sair por aquela
portinia do gradeamento, parece-me que dá para a rua.
Chamo-me Ganesh”, disse, como o deus alegre com cara de elefante.
Eu também lhe disse o meu nome antes de me afastar. O portãozinho
da saída ficava a poucos passos, para além de uma sebe de jasmins. Estava
aberto. Quando me voltei a olhar para ele, ele disse ainda.
Se eu o encontrar, digo-lhe alguma coisa?
Não, por favor”, disse eu, não lhe diga nada.
Ele tirou o chinó como se fosse um chapéu e fez uma ligeira vénia. Eu
saí para a rua. Estava a amanhecer e a gente nos passeios começava a acordar.
Alguns estavam a enrolar as esteiras do repouso nocturno. A rua estava invadida
de corvos que saltitavam em volta do esterco das vacas, Junto à escadaria da
entrada estava um táxi desconjuntado com um chofer que dormitava com a cara
apoiada na janela.
Taj Mahal, disse eu, entrando.
III
OS únicos habitantes de Bombaim que não se preocupam com o
direito de admissão, vigente no Taj Mahal são os corvos. Descem sobre a
esplanada do Intercontinental, pousam ciosos nas janelas do edifício mais antigo,
empoleiram-se nos ramos das mangueiras dos jardins, saltitando sobre o
impecável tapete de relva que cerca a piscina. Seriam capazes de beber dos
bordos ou dar bicadas na casca de laranja do copo do martini se um diligente
criado de libré os não enxotasse com um pau de cricket, como num espectáculo
absurdo posto em cena por um encenador extravagante. É preciso cuidado com
os corvos, têm o bico muito porco. A câmara municipal de Bombaim teve de
mandar tapar os enormes depósitos do aqueduto: aconteceu já que as aves, que
se encarregam de reintroduzir no ciclo biológico os cadáveres que os Parses
expõem nas Torres do Silêncio (há numerosas torres na zona de Malabar Hill),
deixaram cair na água alguns bocados. Mas apesar destas medidas, a câmara
municipal não resolveu evidentemente o problema da higiene, porque depois há o
problema dos ratos, dos insectos, das infiltrações nos esgotos. É melhor não beber
a água de Bombaim. Pode beber-se no Taj Mahal, que possui os seus
depuradores próprios e se orgulha da sua água. Porque o Taj não é um hotel: com
os seus oitocentos quartos é uma cidade dentro de uma cidade.
Quando entrei nesta cidade fui recebido por um porteiro disfarçado de
príncipe indiano, de faixa e de turbante vermelhos que me guiou até à portaria
flamejante de dourados onde havia outros empregados também mascarados de
mabaraja. Provavelmente pensaram que eu também estava mascarado, mas ao
contrário, que era um ricaço disfarçado de pobre, e fizeram o possível para me
arranjar um quarto na ala nobre do edifício, a do mobiliário antigo e vista para o
Gateway of India. O meu primeiro impulso foi dizer que não estava ali por
questões de estética, mas apenas para dormir num descarado conforto, e que
podiam instalar-me à vontade deles num quarto com mobília vergonhosamente
moderna, que mesmo o arranha-céus do Intercontinental servia. Mas depois
pareceu-me cruel dar-lhes esta desilusão. Recusei porém a suite dos pavões. Era
excessiva para uma pessoa só, mas não era evidentemente por uma questão de
preço, especifiquei para manter o estilo que já tinha escolhido.
O quarto era imponente, a minha maleta precedera-me por vias
misteriosas e estava em cima de um banco de corda, a banheira já estava cheia
de água e de espuma, meti-me nela e depois embrulhei-me numa toalha de
linho. As janelas davam para o mar de Oman, era já quase dia claro, com uma
luz rosada que tingia a praia, a vida da Índia começava a formigar, as pesadas
cortinas de veludo verde deslizavam doces e macias como um pano de teatro, fi-
las descer sobre a paisagem e o quarto foi todo penumbra e silêncio, o zumbido
preguiçoso e reconfortante da grande ventoinha embalou-me, tive apenas tempo
de pensar que também ela era um luxo supérfluo porque todo o quarto estava
perfeitamente climatizado, e cheguei imediatamente a uma velha capela numa
colina mediterrânica, a capela era branca e fazia calor, estávamos esfomeados e
Xavier, rindo, tirava sanduiches e vinho fresco, Isabel também ria, enquanto
Magda estendia uma manta na relva, longe havia o azul celeste do mar e um
burro solitário dormitava à sombra da capela. Mas não era um sonho, era uma
recordação real: olhava no escuro do quarto e via aquela cena distante que me
parecia um sonho porque tinha dormido muitas horas e o meu relógio marcava
quatro da tarde. Fiquei muito tempo na cama a pensar naqueles tempos, voltei a
percorrer paisagens, rostos, vidas. Recordei as excursões de carro através dos
pinhais, os nomes que tínhamos dado uns aos outros, a guitarra de Xavier e a voz
aguda de Magda, que anunciava com irónica gravidade, imitando os vendedores
ambulantes das feiras: senhoras e senhores um pouco de atenção, temos
connosco o rouxinol italiano! E eu prestava-me ao jogo e começava a cantar
velhas canções napolitanas, imitando os gorgeios antiquados dos cantores de
outros tempos, enquanto todos se riam e aplaudiam. Entre nós eu era o Roux e
tinha-me resignado: as letras iniciais de rouxinol. Mas, dito assim, parecia um
belo nome exótico, não havia razão para a gente se zangar. E depois os verões
seguintes desfilaram por sua vez. Magda a chorar, pensei, porquê? Seria justo? E
a Isabel e as suas ilusões? E quando aquelas recordações ganharam contornos
insuportáveis, nítidos como se fossem projectados na parede, levantei-me e saí
do quarto.
Às seis da tarde já não são horas para almoçar e é um pouco cedo de
mais para jantar. Mas no Taj Mahal, dizia o meu guia, graças aos seus quatro
restaurantes, pode-se comer a qualquer hora. No último andar do Apolo Bunder”
havia o Rendez-vous, mas era demasiado íntimo. E demasiado caro. Parei no
Apolo Bar e escolhi uma mesa junto do vidro da esplanada olhando as primeiras
luzes da noite, a beira-mar era uma grinalda, tomei dois gins tónicos que me
puseram de bom humor e escrevi uma carta à Isabel. Escrevi durante muito
tempo, de jacto, com entusiasmo, e contei-lhe tudo. Falei- lhe daqueles dias
passados e da minha viagem e de como os sentimentos voltam a aflorar com o
tempo. Disse-lhe também coisas que nunca pensaria dizer-lhe e quando voltei a
ler a carta, com a alegria inconsciente de quem bebeu em jejum, percebi que
aquela carta, no fundo, era para Magda, tinha-a escrito para ela, sem dúvida,
embora dissesse Querida Isabel”; assim amarrotei-a e deixei-a no cinzeiro, desci
ao rés-do-chão, entrei no Tanjore Restaurant e pedi um jantar sumptuoso,
exactamente como faria um príncipe disfarçado de pobre. E depois, quando
acabei de jantar, era de noite, o Taj animava-se e cintilava de luz, no relvado
junto da piscina os criados de libré estavam prontos para afugentar os corvos, eu
instalei-me num sofá no meio daquele hall tão grande como um campo de
futebol e pus-me a contemplar o luxo. Não sei quem disse que no puro acto de
olhar há sempre um pouco de sadismo. Tentei, mas não consegui lembrar-me,
porém, senti que havia algo de verdadeiro naquela frase: e assim pus-me a olhar
com maior volúpia, com a perfeita sensação de ser apenas dois olhos que
olhavam enquanto eu estava algures, sem saber onde. Olhei as mulheres, e as
jóias, os turbantes, os barretes mouriscos, os véus, as caudas, os vestidos de
cerimónia, os muçulmanos e os milionários americanos, os reis do petróleo e os
criados silenciosos: escutei gargalhadas, frases compreensíveis e
incompreensíveis, cumplicidades, segredos. E tudo isto nunca parou durante toda
a noite, quase até ao amanhecer. Depois, quando as vozes se espaçaram e as
luzes amorteceram, encostei a cabeça às almofadas do sofá e adormeci. Não foi
por muito tempo, porque o primeiro barco para Elephanta, mesmo em frente do
Taj, levanta ferro às sete: e naquele barco, além de um casal de japoneses de
meia-idade de máquina fotográfica ao pescoço, ia também eu.

IV
Que fazemos nós dentro destes corpos, disse o senhor que se
preparava para se estender na cama ao lado da minha.
A sua voz não tinha uma entoação interrogativa, talvez não fosse uma
pergunta, era só, a seu modo, uma constatação, em todo o caso seria uma
pergunta a que eu não poderia responder. A luz que vinha do cais da estação era
amarela e desenhava nas paredes escalavradas a sua sombra magra que se
movia no quarto com leveza, com prudência e discrição, pareceu-me, como se
movem os indianos. De longe, vinha uma voz lenta e monótona, talvez uma
oração ou um lamento solitário sem esperança, como os lamentos que se
exprimem só por si, sem nada pedir. Era-me impossível decifrá-lo. A Índia era
também isto: um universo de sons monótonos, indiferenciados, indistintos.
Talvez viajemos dentro deles”, disse eu. Devia ter passado um certo
tempo desde a sua primeira frase, tinha seguido outra linha de pensamento:
alguns segundos de sono, talvez. Estava muito cansado.
Como disse?”, perguntou.
Estava a referir-me aos corpos”, disse eu, talvez sejam como malas,
em que nos transportamos a nós próprios”.
Por cima da porta havia uma veilleuse azul, como nas carruagens dos
comboios nocturnos. Ao misturar-se com a luz amarelada que vinha da janela,
criava uma luz verde-pálida, quase um aquário. Olhei para ele e, na luz
esverdeada, quase lúgubre, vi o perfil de um rosto afilado, com o nariz
ligeiramente aquilino, as mãos sobre o peito.
Conhece Mantegna?”, perguntei-lhe.
Também a minha pergunta era absurda, mas não menos do que a
dele, certamente.
Não, disse, é um indiano?, .
É um italiano, disse eu.
Só conheço ingleses”, acrescentou, os únicos europeus que conheço
são ingleses, .
O lamento distante recomeçou com maior intensidade, agora era
muito agudo, por instantes julguei que fosse um chacal.
É um animal”, disse eu, o que é que acha?.
Pensei que era um amigo seu, respondeu em voz baixa.
Não, não, disse eu, estava a referir-me à voz que vem de fora.
Mantegna é um pintor, mas eu não o conheci, morreu há alguns séculos”.
O homem respirou profundamente. Estava vestido de branco, mas
percebi que não era mulçulmano.
Eu estive em Inglaterra”, disse ele, mas também falava francês, se
prefere falamos francês”.
A sua voz era neutra, como se fizesse uma afirmação diante do
guichet de uma repartição pública; e isto, não sei porquê, perturbou-me.
É um jaina”, disse ele daí a alguns segundos, chora por causa da
maldade do mundo”.
Eu disse: Ah, claro”, porque tinha percebido que agora se estava a
referir ao lamento que vinha de longe.
Em Bombaim não há muitos jainas”, disse a seguir no tom de quem
explica o facto a um turista, no Sul sim, ainda há muitos. É uma religião muito
bela e muito estúpida. Disse isso sem qualquer desprezo, sempre no tom neutro
de um depoimento.
O senhor o que é?”, perguntei, queira desculpar a minha indiscrição.
Sou jaina”, disse.
O relógio da estação bateu a meia-noite. O lamento distante parou de
repente, como se esperasse o bater do relógio. Começou um novo dia”, disse o
homem, a partir deste momento é outro dia.
Fiquei em silêncio. As afirmações dele não deixavam espaço ao
diálogo. Passaram alguns minutos, pareceu-me que as luzes do cais tinham
enfraquecido. A respiração do meu companheiro tornara-se pausada e lenta,
como se dormisse. Quando voltou a falar tive uma espécie de sobressalto.
Eu vou para Varanasi, disse, e o senhor?”.
Para Madrasta, disse eu.
Madrasta, repetiu ele, sim, sim.
Queria ver o lugar onde dizem que o apóstolo S. Tomás foi
martirizado, os portugueses construíram lá uma igreja no século XVI, não sei o
que resta dela. E depois tenho de ir a Goa, vou consultar uma antiga biblioteca,
foi para isso que vim à Índia.
É uma peregrinação?”, perguntou ele. Respondi que não. Ou melhor,
sim, mas não no sentido religioso do termo. Quando muito era um itinerário
privado, sei lá, procurava somente rastos.
O senhor é católico, suponho, disse o meu companheiro.
Todos os europeus são católicos, de certo modo, disse eu. Ou pelo
menos cristãos, é praticamente a mesma coisa”.
O homem repetiu o meu advérbio como se o saboreasse. Falava um
inglês muito elegante, com pequenas pausas e as vogais levemente arrastadas e
hesitantes, como é apanágio de algumas universidades, percebi. Practically. . .
Actually, disse ele, “que palavras curiosas, ouvi-as muitas vezes em Inglaterra,
vocês, europeus, usam muitas vezes estas palavras. Fez uma pausa mais longa,
mas percebi que não tinha acabado de falar. Nunca consegui chegar à conclusão
se é por pessimismo ou por optimismo, prosseguiu, o que é que lhe parece?
Perguntei-lhe se não se importava de explicar melhor.
Bom, disse ele, é difícil explicar melhor. Por exemplo, às vezes
pergunto a mim próprio se é uma palavra que indica soberba ou se, pelo
contrário, quer simplesmente dizer cinismo. E também muito medo, talvez. Está
a perceber?
Não sei, disse eu, não é muito fácil. Mas talvez a palavra praticamente
não queira dizer praticamente nada.
O meu companheiro riu. Era a primeira vez que ria.
- O senhor é muito hábil, disse, ganhou-me ao mesmo tempo deixou-
me ganhar, praticamente.
Também eu ri, e depois acrescentei imediatamente:
seja como for, no meu caso é praticamente medo.
Calámo-nos um bocado, depois o meu companheiro pediu-me licença
para fumar. Rebuscou num saco que tinha ao pé da cama e no quarto espalhou-
se o cheiro daqueles cigarros indianos pequenos e perfumados feitos de uma
folha de tabaco.
Em tempos li os Evangelhos, disse ele, um livro muito estranho.
Só estranho? “, perguntei.
Teve uma hesitação. Também cheio de soberba, disse, sem ofensa.
Receio não estar a perceber muito bem, disse eu.
Estava a referir-me a Cristo, disse ele.
O relógio da estação bateu meia-noite e meia. Sentia que o sono se
estava a apoderar de mim. Do parque, atrás das linhas, chegou o crocitar dos
corvos.
Varanasi é Benares, disse eu, é uma cidade santa, o senhor também
vai em peregrinação?
O meu companheiro apagou o cigarro e tossiu.
Vou para morrer, disse, restam-me poucos dias de vida.
Ajeitou a almofada debaixo da cabeça.
Mas talvez seja melhor dormir, continuou, não temos muitas horas de
sono, o meu comboio parte às cinco.
O meu parte pouco depois, disse eu.
Não tenha receio, disse ele, o criado virá acordá-lo a tempo. Suponho
que não teremos ocasião de nos voltarmos a encontrar sob as aparências em que
nos conhecemos, estas nossas actuais malas. Desejo-lhe boa viagem.
Boa viagem para si também, respondi.
Segunda Parte

V
O meu guia afirmava que o melhor restaurante era o My sore
Restaurant do Coromandel, e eu tinha uma grande curiosidade em confirmá-lo.
Na boutique do rés-do- chão comprei uma camisa branca, à indiana, e um par de
calças elegantes. Subi ao meu quarto e tomei um longo banho para lavar todas as
marcas da viagem. Os quartos do Coromandel têm mobília a imitar o estilo
colonial, de bom gosto. O meu quarto dava para as traseiras, para um largo
amarelado, cercado de vegetação selvagem. Era um quarto enorme, com duas
camas grandes cobertas por duas colchas muito bonitas. Ao fundo, ao pé da
janela, havia uma escrivaninha com uma gaveta ao centro e três de cada lado.
Foi por pura casualidade que escolhi a última gaveta da direita para pôr os meus
papéis.
Acabei por descer muito mais tarde do que queria, mas em todo o
caso o My sore ficava aberto até à meia-noite. Era um restaurante com vidraças
sobre a piscina, com mesas redondas e biombos de bambu pintados de verde. Os
abajures das mesas tinham luzes azuis e havia muito ambiente. Um músico,
sobre um estrado forrado de vermelho, entretinha os clientes com música muito
discreta. O criado guiou-me através das mesas e foi muito solícito ao aconselhar-
me a comida. Concedi-me três pratos e bebi sumo de manga fresco. Os clientes
eram quase todos indianos, mas na mesa ao lado da minha estavam dois senhores
ingleses com ar doutoral que falavam de arte dravídica. Mantinham uma
conversa muito grave e competente e durante todo o jantar diverti-me a
controlar se as informações que forneciam um ao outro eram exactas. De vez
em quando, um deles cometia erros cronológicos, mas o outro parecia não se
aperceber. São curiosas as conversas ouvidas por acaso: diria que eram velhos
colegas de universidade e só quando um deles confiou ao outro que renunciava
ao voo do dia seguinte para Colombo, percebi que se tinham conhecido naquele
dia. Ao sair, estive tentado a entrar no English Bar do átrio, mas depois achei que
o meu cansaço não precisava de nenhuma ajuda alcoólica e subi para o meu
quarto.
Quando o telefone tocou, estava a lavar os dentes. De repente pensei
que fosse a Theosophic; Society, que me prometera uma confirmação telefónica,
mas ao pegar no telefone excluí a hipótese, tendo em conta a hora. Depois
lembrei-me que antes do jantar tinha avisado a recepção de que uma torneira da
casa de banho funcionava mal. De facto, era da recepção.
Desculpe, senhor, está aqui uma senhora que deseja falar-lhe.
O quê?, perguntei, com a escova entalada entre os dentes.
Está aqui uma senhora que deseja falar com o senhor, repetiu a voz da
telefonista. Ouvi o clique da cavilha e uma voz feminina, rouca e decidida, disse:
Sou a pessoa que ocupava o seu quarto antes de si. Preciso
absolutamente de lhe falar, estou no hall.
Se esperar cinco minutos vou ter consigo ao english Bar, disse, ainda
deve estar aberto.
Prefiro subir eu, disse, sem me dar tempo de replicar, é um assunto da
máxima urgência”.
Quando bateu eu tivera apenas tempo de me voltar a vestir. Disse que
a porta estava aberta e ela entrou, parando um momento a olhar para mim. O
corredor estava na penumbra. Só vi que era alta e que trazia um lenço sobre os
ombros. Entrou e fechou a porta. Eu estava sentado na poltrona, em plena luz, e
levantei-me. Não disse nada, esperei. E, de facto, ela falou. Falou sem avançar
um passo, com a mesma voz rouca e decidida que tinha ao telefone.
Queira desculpar-me por esta intromissão, deve achar uma má
educação inconcebível, infelizmente há circunstâncias em que não se pode
proceder doutro modo.
Ouça, disse eu, a Índia é misteriosa por definição, mas as charadas
não são o meu forte, poupe-me esforços inúteis.
Ela olhou para mim com ostensiva surpresa.
Deixei simplesmente no seu quarto algumas coisas que me
pertencem, disse com calma. Venho buscá-las.
Imaginava que voltasse, disse eu, mas não esperava tão cedo, ou
melhor, tão tarde.
A mulher olhou para mim com redobrada surpresa.
Que quer dizer?”.
Que você é uma ladra”, disse eu.
A mulher olhou para a janela e tirou o lenço dos ombros. Pareceu-me
bonita, ou talvez fosse a luz filtrada pelo abajur que dava à sua cara um ar
aristocrático e distante. Já não era muito jovem e o seu corpo era muito elegante.
Você é muito definitivo, disse. Passou a mão pela cara como se
quisesse afugentar o cansaço ou um pensamento. Os seus ombros estremeceram
com um ligeiro arrepio.
O que é que quer dizer roubar?, perguntou.
O silêncio caiu entre nós e dei-me conta da torneira que continuava a
gotejar de modo exasperante.
Relefonei antes de jantar”, disse eu, garantiram-me que a arranjavam
imediatamente.
Um ruído insuportável, receio que não me deixe dormir”.
Ela sorriu. Encostara-se à cómoda de bambu com um braço caído ao
longo do corpo como se estivesse muito cansada.
Acho que terá de se habituar, disse. Eu estive aqui uma semana e pedi
dezenas de vezes que a arranjassem, por fim conformei-me.
Fez uma pequena pausa. Você é francês?”.
Não, respondi.
Olhou-me com ar desfeito.
Vim de táxi de Madurai”, disse ela, viajei todo o dia.
Passou o lenço pela testa como se fosse um lenço de assoar.
Por um instante teve uma expressão desesperada, pareceu-me.
A Índia é horrível”, disse, e as estradas um inferno.
Madurai fica muito longe, repliquei, porquê Madurai? “.
Ia para Trivandrum, depois, dali, iria para Colombo.
Mas de Madrasta também há um avião para Colombo, objectei.
Não queria apanhar esse, disse ela, tinha boas razões, não lhe será
difícil deduzi-las.
Fez um gesto cansado.
De qualquer modo já o perdi”.
Olhou-me com um ar interrogativo e eu disse:
Está tudo ali onde o deixou, na última gaveta do lado direito.
A escrivaninha estava atrás dela, era uma escrivaninha de bambu com
cantos de latão e um grande espelho no qual se reflectiam os seus ombros nus.
Ela abriu a gaveta e pegou no maço de documentos atado com um elástico.
É demasiado estúpido, disse ela. Faz-se uma coisa destas e depois
esquece-se tudo numa gaveta.
Tive-o guardado durante uma semana no cofre do hotel, e depois
deixei-o aqui enquanto fazia as malas.
Olhou-me como se esperasse a minha confirmação.
De facto é mesmo estúpido, disse eu, a transferência de todo esse
dinheiro é uma burla de grande envergadura, e depois você cai numa distracção
tão estúpida”.
Talvez estivesse demasiado nervosa, disse ela.
Ou demasiado ocupada a vingar-se”, acrescentei. A sua carta era
notável, a sua vingança feroz, e ele não pode fazer nada, se você chegar a tempo.
É só uma questão de tempo”.
Os seus olhos faiscaram olhando-me no espelho. Depois virou-se de
repente, vibrante, com o pescoço hirto.
Leu também a minha carta! exclamou com desdém.
Copiei até uma parte, disse eu.
Ela olhou-me com surpresa ou medo, talvez.
Copiou?”, repetiu, porquê?”.
Só a parte final”, disse eu. Lamento muito, foi mais forte do que eu.
De resto, não sei a quem é endereçada, percebi apenas que se trata de um
homem que a deve ter feito sofrer muito.
Era demasiado rico, disse ela, pensava que podia comprar tudo, até as
pessoas.
Depois fez um gesto nervoso, apontando para si própria, e eu percebi.
Ouça, parece-me que percebo vagamente o que se passou. Você não
existiu durante anos, foi sempre apenas um testa de ferro, até que um dia decidiu
dar uma realidade a esse nome. E essa realidade é você mesma. Mas eu de si
conheço apenas o nome com que assinou, é um nome muito comum e não tenho
intenções de saber mais nada.
Na verdade”, disse ela, o mundo está cheio de Margareths”.
Afastou-se da escrivaninha e foi sentar-se no banco do toucador.
Apoiou os cotovelos nos joelhos e pôs a cara entre as mãos. Ficou assim muito
tempo, sem dizer nada, escondendo a cara.
Que pensa fazer agora?, perguntei.
Não sei, respondeu, tenho muito medo. Tenho de estar nesse barco de
Colombo, amanhã, senão todo aquele dinheiro se evapora.
- Ouça, disse eu, é noite alta, não pode ir para Trivandrum a estas
horas, e em todo o caso, não chegaria a tempo do avião de amanhã. Amanhã de
manhã, daqui, há um avião para Colombo, está com sorte porque, se se
apresentar com tempo, arranja lugar, e a sua saída deste hotel está registada.
Olhou para mim como se não percebesse. Olhou-me por muito
tempo, intensamente, estudando-me.
- Pela minha parte, você partiu realmente”, acrescentei, neste quarto
há duas camas confortáveis.
Pareceu descontrair-se. Cruzou as pernas e esboçou um sorriso.
Porque faz isso?, perguntou.
Não sei”, disse eu. Talvez eu tenha simpatia pelos fugitivos. E, depois,
também eu lhe roubei alguma coisa.
Deixei a minha mala na recepção, disse ela.
Talvez seja mais prudente deixá-la lá, vai buscá-la amanhã de manhã.
Posso emprestar-lhe um pijama, somos quase do mesmo tamanho.
Ela riu.
Permanece apenas o problema da torneira, disse ela.
Também ri.
De qualquer modo, você já está habituada, penso. O problema é só
meu.
VI
Le corps humain pourrait bien n’être qu’une apparence, disse ele. II
cache notre réalité, il s’épaissit sur notre lumière ou sur notre ombrep.

Levantou a mão e fez um gesto vago. Vestia uma jaqueta larga,


branca; a manga flutuou sobre o pulso magro. Bem, mas isso não é a teosofia que
o diz. Victor Hugo, Les Travailleurs de la Nlerv. Sorriu e estendeu- me uma
bebida. Ergueu o copo cheio de água como se fosse para brindar.
A quê?, pensei. E depois ergui também eu o copo e disse: À luz e à
sombra.
Ele voltou a sorrir. Desculpe este jantar demasiado frugal”, disse, mas
era a única maneira de conversar com uma certa calma depois da sua breve
visita desta tarde. Lamento que os meus compromissos não me tenham permitido
recebê-lo com mais comodidade.
É uma honra, disse eu, é muito simpático da sua parte, não me
atreveria a esperar tanto, .
Raramente recebemos visitas aqui na sede, prosseguiu no seu tom de
vaga justificação, mas penso ter percebido que não é um simples curioso.
Dei-me conta que o meu bilhete um pouco misterioso, os meus
telefonemas, a minha visita da tarde em que tinha apenas feito alusão a uma
pessoa desaparecida”, tudo isso parecia uma mensagem em código; não podia
continuar naquele tom. Era necessário explicar-me com clareza, com exactidão.
Mas o que é que eu tinha que perguntar, afinal? Só uma remota notícia, um rasto
hipotético: uma possível pista para chegar a Xavier.
Estou à procura de uma pessoa, disse, chama-se Xavier Janata Pinto,
desapareceu há quase um ano, tive as últimas notícias dele em Bombaim, mas
tenho boas razões para crer que estava em contacto com a Theosophical Society,
eis o motivo que me traz aqui”.
Seria uma indiscrição perguntar-lhe quais os motivos que o levam a
pensar isso?, perguntou o meu anfitrião.
Entrou um criado com uma bandeja e nós servimo-nos com
parcimónia: eu por boa educação, ele certamente por hábito.
Queria saber se era membro da Theosophical Society, disse eu.
O meu anfitrião olhou-me nos olhos.
Não era, afirmou em voz baixa.
- Mas mantinha uma correspondência convosco, disse eu.
- Talvez”, disse ele, mas nesse caso tratar-se-ia de uma
correspondência privada e reservada.
Começámos a comer almôndegas de vegetais acompanhadas de um
arroz totalmente insípido. O criado esperava de parte com o tabuleiro na mão. A
um gesto do meu anfitrião desapareceu discretamente.
- Temos um arquivo, mas é reservado aos nossos sócios. De qualquer
modo, não inclui a correspondência privada, especificou.
Eu anuí em silêncio, pois apercebi-me de que ele estava a conduzir a
conversa a seu bel-prazer e que era inútil eu continuar com perguntas directas e
demasiado explícitas.
O senhor conhece a Índia?, perguntou-me daí a pouco.
Não, respondi, é a primeira vez que cá venho, ainda não percebi bem
onde estou.
Não estava a referir-me concretamente à geografia, precisou, queria
dizer a cultura. Que livros leu?
Muito poucos, respondi, ando agora a ler um que se intitula A travel
survival kit, que me tem sido bastante útil. E muito divertido, disse ele, glacial, e
mais nada?
Bem, disse eu, mais algumas coisas, de que agora não me lembro.
Concordo que não vim preparado. A única coisa que recordo bem é um livro de
Schlegel, mas não o mais conhecido dos dois, o irmão, creio, intitulava-se Sobre a
lingua e a sabedoria dos indianos.
Ele reflectiu e disse: deve ser um livro antigo.
Sim”, disse eu, é de 1808”.
Os alemães sentiam-se muito atraídos pela nossa cultura, muitas vezes
formulavam juízos interessantes sobre a Índia, não acha?
“Talvez”, disse eu, não estou à altura de o afirmar categoricamente.
Que pensa de Hesse, por exemplo?
Hesse era suíço, disse eu.
Não, não, precisou o meu anfitrião, era alemão, adquiriu a
nacionalidade suíça só em 1921.
De qualquer modo morreu suíço”, insisti.
Ainda não me disse o que pensa dele, retorquiu o meu anfitrião em
tom amável.
Era a primeira vez que sentia crescer em mim uma forte irritação.
Aquela sala inóspita, escura, fechada, com bustos de bronze ao longo das paredes
e as vitrinas cheias de livros; aquele indiano sabichão e presunçoso que estava a
conduzir a conversa a seu jeito; os seus modos entre condescendentes e
astuciosos: tudo isto me provocava um mal-estar que, dava-me conta, se estava
estupidamente a transformar em cólera. Tinha vindo por razões bem diferentes e
ele tinha-as ignorado com desenvoltura, indiferente à minha ansiedade que, sem
dúvida, tinha percebido pelos meus telefonemas e pelo meu bilhete. E estava ali a
submeter-me a perguntas idiotas sobre Hermann Hesse. Senti-me gozado.
Conhece o rosolio?, perguntei-lhe, já alguma vez o provou?.
Creio que não, disse ele, o que é?.
É um licor italiano que agora raramente se encontra, bebia-se nos
salões burgueses do século XIX, é um licor adocicado e pegajoso. Hermann
Hesse faz-me pensar no rosolio. Quando regressar a Itália mando-lhe uma
garrafa, se é que ainda se encontra.
Ele olhou para mim sem perceber se aquilo era ingenuidade ou
insolência. Naturalmente era insolência, não era isso que pensava de Hesse.
Acho que não gostaria, disse secamente. Eu sou abstémio, e além
disso detesto coisas doces”. Dobrou o guardanapo e disse: Vamos tomar o chá?, .
Passámos para as poltronas junto à estante e o criado entrou com a
bandeja como se estivesse à espera atrás da cortina.
Com açúcar?”, perguntou-me o meu anfitrião, servindo-me o chá.
Não, obrigado, respondi, eu também não gosto de coisas doces.
Seguiu-se um longo e embaraçoso silêncio. O meu anfitrião estava de
olhos fechados, imóvel, por momentos pensei que tivesse adormecido. Tentei
calcular a sua idade, sem sucesso. Tinha um rosto velho, mas muito liso. Reparei
que usava sandálias de tiras, sem meias.
O senhor é gnóstico?, perguntou-me de repente, mantendo os olhos
fechados.
Creio que não, disse eu. E depois acrescentei: Não, não sou, tenho
apenas alguma curiosidade.
Ele abriu os olhos e olhou para mim com malícia, ou com ironia.
Até onde chega a sua curiosidade?
Swedenborg, disse eu, Schelling, Annie Besant: um pouco de todos, .
Ele pareceu mostrar interesse e eu especifiquei: A alguns cheguei por vias
indirectas, por exemplo Annie Besant. Traduziu-a Fernando Pessoa, é um grande
poeta português, morreu desconhecido em trinta e cinco.
Pessoa”, disse ele, com certeza.
Conhece-o?, perguntei.
Alguma coisa”, disse ele, como o senhor conhece os outros.
Pessoa declarava-se gnóstico, disse eu, rosa-cruz, escreveu uma série
de poesias esotéricas intituladas Passos da Cruz.
Nunca as li, disse o meu anfitrião, mas conheço alguma coisa da sua
vida.
Sabe quais foram as suas últimas palavras?.
Não”, disse ele, quais?.
Dêem-me os meus óculos, disse eu. Era muito míope e quis entrar no
outro lado com os óculos-.
O meu anfitrião sorriu e não disse nada. Poucos minutos antes tinha
escrito um bilhetinho em inglês, nas suas notas pessoais usava frequentemente o
inglês, era a sua outra língua, fora criado na África do Sul. Consegui fotocopiar
esse bilhetinho, a caligrafia é muito vacilante, naturalmente, Pessoa estava na
agonia, mas é decifrável. Quer que lhe diga o que escreveu?.
O meu anfitrião abanou a cabeça como fazem os indianos quando
estão de acordo.
“I know not what tomorrow will bring”. Que inglês tão esquisito, disse
ele.
Sim, disse eu, “que inglês tão esquisito.
O meu anfitrião levantou-se devagar, fez-me sinal para ficar sentado
e atravessou a sala.
Queira desculpar-me um minuto, disse, saindo por uma porta do
fundo, por favor não se incomode, . Fiquei sentado a olhar para o tecto. Já devia
ser muito tarde, mas o meu relógio estava parado. O silêncio era absoluto.
Pareceu-me ouvir o tic-tac de um relógio, noutra sala, mas talvez fosse o ranger
da madeira ou a minha imaginação. O criado entrou sem dizer uma palavra e
retirou a bandeja. Começava a sentir um ligeiro mal-estar que, somado ao
cansaço, me provocava uma sensação de incómodo, uma espécie de
indisposição. Final mente o meu anfitrião voltou e antes de se sentar estendeu-me
um pequeno envelope amarelo. Reconheci imediatamente a letra de Xavier. Abri
o envelope e li este bilhete:
Caro mestre e Amigo, as circunstâncias da vida não me permitem
voltar a passear ao longo das margens do Ady ar. Tornei-me uma ave nocturna e
prefiro pensar que assim o quis o meu destino. Recorde-me tal como me
conheceu. Seu X. A data dizia: Calangute, Goa, 23 de Setembro.
Olhei para o meu anfitrião com ar estupefacto. Ele estava sentado e
observava-me com curiosidade, pareceu-me.
Então já não está em Bombaimn, disse eu, está em Goa, no Fim de
Setembro estava em Goa.
Ele fez um gesto com a cabeça e não disse nada.
Mas porque foi para Goa?, perguntei. Se está ao corrente de alguma
coisa, diga-me.
Ele cruzou as mãos sobre os joelhos e falou-me com suavidade. Não
sei, disse, não conheço a vida que leva o seu amigo, não o posso ajudar lamento
muito. Talvez as transformações da sua vida não lhe tenham sido propícias, ou
talvez ele próprio assim tenha querido, nunca se deve tentar saber demasiado das
aparências dos outros”. Fez um sorriso tímido e deu-me a entender que não tinha
mais nada a dizer-me sobre o assunto. Você ainda fica em Madrasta?”
Não”, disse eu, fiquei três dias, parto esta noite, já tenho bilhete para
um autocarro de longo curso”.
Pareceu-me que nos seus olhos perpassava um ar de reprovação.
É o motivo da minha viagem”, senti necessidade de explicar. Vou
consultar um arquivo de Goa, tenho de fazer um estudo. Tinha de lá ir de
qualquer modo, mesmo que a pessoa que procuro estivesse noutro lugar”.
O que é que visitou aqui?”, perguntou.
Estive em Mahabalipuram e em Kanchipuram”, disse, visitei os
templos todos”.
Dormiu lá?”.
Dormi num hotelzito do estado, muito económico, foi o que
encontrei”.
Conheço-o”, disse ele. E depois perguntou-me: De que é que gostou
mais?”.
De muitas coisas, mas talvez do templo de Kailasantha. Tem qualquer
coisa de penoso e mágico”.
Ele abanou a cabeça.
É uma estranha definição, disse. Depois levantou-se com lentidão e
murmurou: Acho que é tarde, ainda tenho muitas coisas para escrever esta noite,
permita-me que o acompanhe”.
Levantei-me e ele precedeu-me pelo longo corredor até à porta da
entrada. Parei um momento com ele no átrio e apertámos a mão. Quando ia a
sair, disse-lhe boa noite.
Ele sorriu e não respondeu. Depois, antes de fechar a porta, disse-me:
Cega, a Ciência é inútil que leva a palavra. Louca, a Fé vive o sonho
do seu culto. Um novo deus é só uma palavra. Não procures nem creias: tudo é
oculto.
Desci os poucos degraus e dei alguns passos na alameda de seixos.
Depois percebi de repente e voltei-me rapidamente: eram versos de um poema
de Pessoa, só que mos tinha dito em inglês, por isso não os reconhecera
imediatamente. O poema chamava-se Natal. Mas a porta já estava fechada e o
criado, ao cimo da alamedazinha, esperava-me para fechar também o portão.
VII
O autocarro atravessava uma planície deserta e raras aldeias
adormecidas. Depois de um troço de estrada montanhosa com curvas apertadas
que o motorista enfrentou com uma desenvoltura que me parecera excessiva,
deslizávamos agora por rectas enormes, tranquilas, na silenciosa noite indiana.
Tive a impressão que era uma paisagem de palmeiras e arrozais, mas o escuro
era demasiado profundo para poder dizê-lo com certeza e a luz dos faróis
atravessava rapidamente os campos apenas durante uma ou outra sinuosidade da
estrada. Segundo os meus cálculos, Mangalore não devia estar longe, se o
autocarro tinha gasto o tempo previsto no horário de percurso. Em Mangalore
esperavam-me duas soluções: uma espera de sete horas pela ligação com o
autocarro de Goa, ou um dia no hotel para o autocarro do dia seguinte.
Não sabia bem o que fazer. Durante o trajecto tinha dormido pouco e
mal, e estava bastante cansado; a ideia de um dia em Mangalore não me atraía
particularmente. De Mangalore o meu guia dizia que, situada junto ao mar de
Oman, a cidade não conserva praticamente nada do seu passado. É uma cidade
moderna e industrial, com um plano urbanístico racional e um aspecto anónimo.
Uma das poucas cidades da Índia em que não há mesmo nada que ver”.
Ainda estava a fazer as minhas conjecturas sobre a decisão a tomar,
quando o autocarro parou. Não podia ser Mangalore, estávamos em campo
aberto. O motorista desligou o motor e alguns passageiros desceram. A princípio
pensei que era uma breve paragem para satisfazer as necessidades dos
passageiros, mas passados quinze minutos pareceu-me que a paragem se
prolongava insolitamente. Além disso, o motorista tinha-se abandonado
tranquilamente sobre o encosto do assento e parecia dormir. Esperei mais um
quarto de hora. Os passageiros que não se tinham apeado dormiam
pacificamente. O velho de turbante à minha frente tirara de uma cesta uma
longa tira de tecido e estava a enrolá-la com paciência, alisando com cuidado as
pregas a cada volta do pano. Sussurrei-lhe ao ouvido uma pergunta, mas ele
virou-se e olhou para mim com um sorriso vazio, dando-me a entender que não
percebia. Olhei para fora pela janela e vi que à beira da estrada, num largo de
areia havia uma espécie de barracão com uma luz frouxa.
Parecia uma garagem feita de tábuas. À porta estava uma mulher, vi
que alguém entrava.
Decidi pedir explicações ao condutor. Custava-me acordá-lo, guiara
muitas horas, mas talvez fosse melhor informar-me. Era um homem gordo que
dormia de boca aberta, toquei-lhe no ombro e ele olhou-me com ar confuso.
Porque estamos parados?, perguntei. Isto não é Mangalore, .
Ele endireitou-se e alisou o cabelo.
Não senhor, não é.
E então porque estamos parados?,
É apenas uma paragem”, disse ele, estamos à espera de uma ligação.
A paragem não estava prevista no programa do meu bilhete, mas já
me tinha habituado a certas surpresas da Índia. De modo que me informei sem
mostrar espanto, apenas a título de curiosidade. Era o autocarro para Mudabiri e
Karkala, soube. Tentei uma réplica que me pareceu lógica.
Os passageiros que vão para Mudabiri e Karkala não podem esperar
sozinhos, sem nós esperarmos com eles?
Nesse autocarro há pessoas que apanham o nosso para irem para
Mangalore, respondeu-me o motorista calmamente. É por isso que estamos à
espera.
Voltou a estender-se no assento, dando-me a entender que gostaria de
continuar a dormir. Voltei a falar-lhe com tom resignado.
Quanto tempo vamos estar parados?
Oitenta e cinco minutos, respondeu com uma exactidão que não
percebi se era educação britânica ou uma forma de requintada ironia. E depois
continuou: De qualquer modo, se está cansado de esperar no autocarro, pode
descer, aqui ao lado há uma sala de espera.
Decidi que talvez fosse melhor desentorpecer um pouco as pernas
para iludir o tempo. A noite estava suave e húmida com um intenso aroma de
ervas. Dei uma volta ao autocarro, fumei um cigarro encostado à escadinha
posterior e depois dirigi-me para a sala de espera. Era uma barraca baixa e
comprida, com uma luz a petróleo pendurada à porta. Na ombreira da porta
havia uma imagem em gesso colorido de uma divindade que desconhecia.
Dentro havia uma dezena de pessoas sentadas em bancos ao longo das paredes.
Duas mulheres, de pé junto à entrada, falavam animadamente. Os poucos
passageiros apeados do auto carro tinham-se espalhado pelo banco circular ao
centro, à volta de um pilar ao qual estavam colados folhetos de várias cores e um
manifesto amarelecido que podia ser um horário ou um anúncio do governo. No
banco do fundo estava sentado um rapaz de uns dez anos, de calções e sandálias.
Tinha consigo um macaco agarrado aos seus ombros, com a cabeça escondida
no seu cabelo, e as mãozinhas enlaçadas à volta do pescoço do seu dono, numa
atitude de afecto e temor. Além da lâmpada a petróleo à porta, havia duas velas
sobre um caixote de embalagem: a luz era muito frouxa e os cantos da barraca
estavam às escuras. Fiquei alguns momentos a olhar para aquela gente que não
parecia dar por mim. Achei estranho aquele menino só naquele lugar com o seu
macaco.
Embora na Índia seja frequente encontrar crianças sozinhas com
animais, e imediatamente pensei num menino que me era querido e no seu modo
de abraçar um boneco antes de adormecer. Talvez fosse aquela associação de
ideias que me impeliu até ele e sentei-me a seu lado. Ele olhou para mim com
dois olhos belíssimos e sorriu-me, e também eu lhe sorri; e só então me apercebi
com repugnância de que o pequeno ser que trazia às costas não era um macaco
mas um ser humano. Era um monstro. Uma atrocidade da natureza, ou uma
terrível enfermidade tinham atrofiado o seu corpo distorcendo formas e
dimensões. Os seus membros eram contorcidos e alterados, sem outra ordem e
medida que a de um atroz grotesco. Também a cara, que agora descortinava
entre os cabelos do seu portador, não tinha escapado à devastação da
deformidade. A pele áspera e as rugas profundas como feridas davam-lhe aquele
aspecto simiesco que juntamente com as suas feições tinham provocado o meu
equívoco. De humano, restavam naquela cara os olhos: dois olhos pequeníssimos,
agudos, inteligentes, que se moviam inquietos em todas as direcções como se
estivessem assombrados pela ameaça de um grande perigo, pelo medo.
O rapaz saudou-me cordialmente e eu também lhe dei as boas-noites
e não fui capaz de me levantar e ir-me embora.
Para onde vais? perguntei-lhe.
Vamos a Mudabirin, disse ele sorrindo, ao templo de Chandranathe.
Falava um inglês razoável, sem hesitações.
Falas bem inglês”, disse-lhe, quem to ensinou?”.
Aprendi na escola”, disse o rapaz com orgulho. Andei lá três anos”.
Depois fez um gesto movendo lentamente a cabeça e teve uma expressão de
desculpa. Ele não sabe inglês, não pôde ir à escola.
Claro, disse eu, compreendo.
O rapaz fez uma carícia nas mãos que lhe apertavam o peito.
É o meu irmão”, disse em tom afectuoso, tem vinte anos”. Depois
voltou a assumir a expressão de orgulho e disse: Mas conhece as Escrituras, sabe-
as de cor, é muito inteligente.
Eu tentei manter uma atitude despreocupada, como se estivesse um
pouco distraído e imerso nos meus próprios pensamentos para dissimular a falta
de coragem para olhar a pessoa de quem ele estava a falar.
O que é que vocês vão fazer a Mudabiri?, perguntei.
São as festas”, disse ele, os jainas vêm de toda a Kerala, há muitos
peregrinos nestes dias”.
Vocês também são peregrinos?.
Não”, disse ele, nós vamos de templo em templo, o meu irmão é
Arbantn.
Desculpa, disse eu, Mas não sei o que isso significa, .
Arbant é um profeta jainan, explicou o rapaz pacientemente. Lê o
karma dos peregrinos, ganhamos muito dinheiro.
Então é adivinho.
Sim, disse o rapaz com candura, vê o passado e o futuro”. Depois fez
uma associação de ideias profissional e perguntou-me: queres conhecer o teu
karma ? São cinco rupias.
De acordo, disse eu, pergunta ao teu irmão.
O rapaz falou docemente ao irmão e este respondeu-lhe sussurrando,
olhando para mim com os seus olhitos inquietos.
O meu irmão pergunta se te pode tocar na testa”, transmitiu-me o
rapaz.
O monstro fez um gesto de assentimento com a cabeça, esperando.
Claro que pode, se é necessário”.
O adivinho estendeu a mãozita contorcida e apoiou o indicador na
minha testa. Ficou assim alguns instantes, fixando-me intensamente. Depois
retirou a mão e segredou algumas palavras ao ouvido do irmão. Seguiu-se uma
curta discussão agitada. O adivinho falava com veemência, parecia contrariado e
irritado. Quando terminaram a discussão, o rapaz virou-se para mim com ar
aflito.
Então, perguntei eu, posso saber?”.
Lamento muito, disse ele, o meu irmão disse que não é possível, tu és
um outro”.
Ah sim”, disse eu, então quem sou?
O rapaz voltou a falar com o irmão e este respondeu-lhe rapidamente.
Isso não importa, transmitiu-me o rapaz, é apenas may ay.
E o que é may a?”.
É a aparência do mundo”, respondeu o rapaz, mas é apenas ilusão, o
que conta é o atma.
E o atma, o que é?, .
O rapaz sorriu da minha ignorância. “The soul, disse, a alma
individual.
Uma mulher entrou e foi sentar-se no banco em frente de nós.
Transportava um cesto com uma criança a dormir. Eu olhei para ela e ela fez um
rápido sinal com as mãos erguidas diante da cara, em sinal de respeito.
Julgava que dentro de nós havia apenas o karma, disse eu, a soma das
nossas acções, do que fomos e do que seremos.
O rapaz voltou a sorrir e falou ao irmão.
O monstro olhou para mim com os seus olhitos agudos e fez o sinal de
dois com os dedos.
Oh não, explicou o rapaz. Há também o atma, está com o karma mas
é uma coisa distinta.
E então se eu sou outro, queria saber onde está o meu atma, onde está
agora”.
O rapaz traduziu para o irmão e seguiu-se uma cerrada conversa.
É muito difícil de dizer, transmitiu-me depois, ele não é capaz.
Experimenta perguntar-lhe se dez rupias o ajudariam”, disse eu.
O rapaz disse-lhe e o monstro fixou-me no rosto com os seus olhitos.
Depois pronunciou algumas palavras dirigidas a mim, muito rapidamente.
Diz que não é uma questão de rupias”, traduziu o rapaz, não estás aqui,
não é capaz de dizer-te onde estás, .
Fez-me um belo sorriso e continuou: mas se quiseres dar-nos as dez
rupias aceitamo-las igualmente.
Claro que tas dou”, disse eu, mas pelo menos pergunta-lhe quem sou
agora”.
O rapaz fez de novo um sorriso indulgente e depois disse: mas isso é
apenas o teu may a, de que te serve sabê-lo?
Certo, disse eu, tens razão, não serve de nada”. Depois tive uma ideia
e disse: pede-lhe que tente adivinhar”.
O rapaz olhou para mim estupefacto.
Adivinhar o quê?.
Adivinhar onde está o meu atmay, disse, não disseste que é um
adivinho?.
O rapaz transmitiu-lhe o meu pedido e o irmão respondeu-lhe
brevemente.
Diz que pode tentar, traduziu, mas não garante.
Não tem importância, que tente mesmo assim, .
O monstro fixou-me com muita intensidade, longamente. Depois fez
um gesto com a mão e eu esperei que ele falasse, mas não falou. Os seus dedos
moviam-se ligeiros no ar desenhando ondas, depois fez uma concha com as
mãos como para recolher água imaginária. Sussurrou algumas palavras.
Diz que estás num barco, segredou-me por sua vez o rapaz. O monstro
fez um gesto estendendo as palmas das mãos para a frente e ficou imóvel.
-Num barco, disse eu. Pergunta-lhe onde, depressa, que barco é?
O rapaz encostou o ouvido à boca do irmão.
Vê muitas luzes. Não vê mais nada, é inútil insistires.
O adivinho assumira de novo a sua posição inicial, com a cara
escondida entre os cabelos do irmão. Peguei em dez rupias e entreguei-lhas. Saí
para a escuridão da noite e acendi um cigarro. Detive-me a olhar para o céu e
para a orla escura da vegetação à beira da estrada. O autocarro de Mudabiri já
não devia estar longe.
Terceira Parte

VIII
O guarda era um velhote de rosto enrugado e cordial, com uma coroa
de cabelos brancos que sobressaíam na sua pele cor-de-azeitona. Falava um
português perfeito e quando lhe disse o meu nome fez-me um grande sorriso
abanando a cabeça, como se estivesse muito contente de me ver. Explicou-me
que o senhor Prior estava a dizer a missa da tarde e que me pedia para o esperar
na biblioteca. Entregou-me um cartão onde li: Seja benvindo a Goa. Vou ter
consigo à biblioteca às 18, 30. Se precisar de alguma coisa, Teotónio está à sua
disposição. Padre Pimentel.
Theotónio acompanhou-me subindo a escada a conversar. Era falador
e desenvolto, vivera muito tempo em Portugal, em Vila do Conde, disse, onde
tinha parentes, gostava dos bolos portugueses, especialmente de pão-de-ló.
A escada era de madeira escura e levava a uma grande galeria mal
iluminada, com uma mesa comprida e um mapa-mundo. Nas paredes havia
quadros com figuras em tamanho natural, homens graves de barbas, enegrecidos
pelo tempo. Theotónio deixou-me à porta da biblioteca e voltou a descer
velozmente como se tivesse muito que fazer. A sala era ampla e fresca com um
penetrante cheiro a fechado. As estantes tinham torcidos barrocos e embutidos de
marfim, mas em mau estado, pareceu-me. Havia duas mesas compridas com
pernas torneadas e algumas mesas baixas junto às paredes, com bancos de igreja
e velhas poltronas de palha. Dei uma olhadela à primeira estante da direita, vi
alguns livros de patrística e algumas crónicas do século XVII da Companhia de
Jesus, peguei em dois livros ao acaso e sentei-me na poltrona junto à porta da
entrada. Sobre a mesa ao lado estava um livro aberto, mas não reparei nele,
folheei um daqueles em que tinha pegado, a Relação do novo caminho que fez
por Terra e por mar, vindo da Índia para Portugal, o Padre Manoel Godinho da
Companhia de Iesu. O cólofon dizia: Em Lisboa na Officina de Henrique Valente
de Oliveira, Impressor del Rey N. S. , Anno 1665. Manoel Godinho tinha uma
visão pragmática da vida, o que não contrastava de modo algum com a sua
função de guardião da fé católica naquele enclave da Contra-Reforma cercado
pelo panteão hindu. A sua narração era precisa e circunstanciada, sem
cerimónias nem retórica. Não gostava de metáforas nem comparações, aquele
padre; tinha um olho estratégico, dividia a terra em zonas favoráveis e
desfavoráveis e concebia o Ocidente cristão como o centro do mundo. Tinha
chegado ao fim do longo preâmbulo dedicado ao Rei, quando, sem saber porquê,
tive a sensação de não estar sozinho. Talvez tenha ouvido um leve ranger ou uma
respiração; ou talvez, com mais probabilidade, tive simplesmente a sensação que
se experimenta quando um olhar nos fixa. Levantei os olhos e olhei em volta. No
sofá, entre as duas janelas, no outro extremo da sala, a mancha escura, que
quando eu entrara me parecera um vestido atirado para as costas da cadeira,
virou-se devagar, exactamente como se estivesse à espera do momento de ser
olhado, e fixou-me. Era um velho com um rosto comprido e escalavrado e a
cabeça coberta por um chapéu de forma indistinta.
Seja benvindo a Goa”, disse em voz baixa.
- Cometeu uma imprudência em vir de Madrasta, a estrada está cheia
de bandidos.
Tinha uma voz muito rouca e por vezes arfava. Olhei para ele
estupefacto. Pareceu-me estranho que usasse a palavra bandidos, e ainda mais
singular que conhecesse a minha proveniência.
E a paragem nocturna naquele lugar horrível não lhe deu certamente
nenhum conforto, acrescentou. É jovem e empreendedor, mas muitas vezes tem
medo, não daria um bom soldado, provavelmente seria vencido pela cobardia.
Olhou-me com indulgência. Não sei porquê, senti um grande
embaraço que me impediu de responder. Mas como sabia ele da minha viagem?,
pensei. Quem o tinha informado?
Não se preocupe, disse o velho como se adivinhasse os meus
pensamentos. Tenho muitos informadores.
Pronunciou a frase num tom quase ameaçador, e isto causou-me uma
curiosa impressão. Estava mos a falar português, lembro-me, e as suas palavras
eram frias e apagadas, como se entre elas a sua voz houvesse uma remota
distância. Porque falava daquela maneira, pensei, quem poderia ser ele? A
grande sala estava na penumbra e ele encontrava-se no outro extremo, longe de
mim uma mesa escondia da minha vista parte do seu corpo. Tudo isto,
juntamente com a surpresa, me impedira de observar o seu aspecto. Mas agora
reparei que usava um chapéu triangular de pano. a barba longa e grisalha varria-
lhe o peito coberto por um colete bordado com fios de prata. Pelo ombros tinha
um capote preto, largo, à moda antiga, com as mangas tufadas. Leu certamente
a surpresa na minha cara, arredou a cadeira e saltou para o meio da sala com
uma agilidade insuspeitável. Usava botas altas com uma dobra na coxa e uma
espada à cintura. Fez um gesto teatral um pouco ridículo, descrevendo um grande
arco com o braço direito que depois levou ao peito e exclamou com voz
tonitruante:
Sou Afonso de Albuquerque, Vice-rei das Índias!
Só nesse momento me dei conta de que era louco. Dei-me conta disso
e ao mesmo tempo pensei curiosamente que ele era mesmo Afonso de
Albuquerque, e tudo isto não me causou espanto: provocou-me apenas uma
indiferença cansada, como se tudo fosse necessário e inelutável.
O velho observava-me com ar receoso, desconfiado, com olhitos
cintilantes. Era alto, majestoso, soberbo. Percebi que estava à espera que eu
falasse; e eu falei. Mas as palavras saíram-me sem eu querer, sem controlo da
minha vontade.
Você parece-se com Ivan o Terrível, disse eu, ou melhor, parece-se
com o actor que o representava.
Ele não disse nada e levou a mão ao ouvido. Estava a referir-me a um
velho filme, expliquei. Veio-me à memória um velho filme”. E enquanto eu dizia
isto, no seu rosto vislumbrou-se um clarão, como se uma chama brilhasse ali
perto numa lareira. Mas não havia nenhuma lareira, a sala estava cada vez mais
escura, talvez fosse o último raio do sol que se estava a pôr.
O que é que veio cá fazer?”, gritou de repente. O que é que quer de
nós?.
Nada, disse eu, não quero nada. Vim investigar o arquivo, é a minha
profissão, esta biblioteca é quase desconhecida no Ocidente. Procuro crónicas
antigas.
O velho atirou o amplo capote para o ombro, exactamente como
fazem os actores de teatro quando estão para se defrontar em duelo.
É mentira!, berrou com veemência, veio por outro motivo!
A sua violência não me assustava, não tinha medo que ele me
agredisse: e contudo senti-me estranhamente subjugado, como se ele tivesse
descoberto uma culpa que tinha escondida dentro de mim. Baixei os olhos de
vergonha e vi que o livro aberto em cima da mesa era Santo Agostinho. Li estas
palavras: Quo modo praesciantur futura. Era apenas uma coincidência ou
alguém queria que eu lesse aquelas palavras? E quem, a não ser o velho?
Dissera-me que tinha os seus informadores, foram palavras suas, e isto pareceu-
me uma coisa lúgubre e sem saída.
Vim procurar Xavier, confessei, é verdade, ando à procura dele.
Ele olhou para mim com ar triunfante. Agora havia ironia no seu rosto
e talvez mesmo desprezo.
E quem é Xavier?”.
Aquela pergunta pareceu-me uma traição, porque senti que quebrava
um acordo tácito, que ele sabia quem era Xavier e que não devia perguntar-mo.
E eu não queria dizer-lho, também sentia isso.
Xavier é meu irmão, menti.
Ele pôs-se a rir ferozmente e espetou o indicador na minha direcção.
Xavier não existe”, disse, é apenas um fantasma.
Fez um gesto abarcando a sala. Estamos todos mortos, ainda não
percebeu? Eu estou morto, e esta cidade está morta, e as batalhas, o suor, o
sangue, a glória e o meu poder: está tudo morto, nada serviu para nada.
Não, disse eu, sempre fica alguma coisa.
O quê?, perguntou ele. A recordação? A memória? Estes livros?
Deu um passo na minha direcção e eu senti uma grande repugnância,
pois já sabia o que ele ia fazer, não sei como, mas sabia-o. Empurrou com a
ponta da bota um pequeno embrulho que estava a seus pés, e vi que era um rato
morto. Ele fez rebolar o animal pelo chão e disse com sarcasmo:
Sou este rato?. Voltou a rir e o seu riso gelou-me o sangue. Eu sou o
flautista de Hamelin!, gritou.
Depois a sua voz tornou-se afável, chamou-me professor e disse-me:
desculpe se o acordei”.
Desculpe-me se o acordei, disse o Padre Pimentel.
Era um homem dos seus cinquenta anos, de físico robusto e expressão
franca. Estendeu-me a mão e eu levantei-me estremunhado.
- Muito obrigado”, disse-lhe, estava no meio de um pesadelo”.
Ele sentou-se na poltrona ao meu lado e tranquilizou-me com um
gesto.
Recebi a sua carta, disse, o arquivo está à sua disposição, pode ficar o
tempo que quiser, calculo que esta noite durma cá, já lhe mandei preparar o
quarto.
Theotónio entrou com o tabuleiro do chá e um bolo que me pareceu
pão-de-ló.
- Obrigado, disse eu, agradeço a sua hospitalidade, mas esta noite não
fico, vou para Calangute e já aluguei um carro, queria tentar saber alguma coisa
sobre uma pessoa. Voltarei daqui a alguns dias.
IX
TUDO pode acontecer na vida, até dormir no hotel Zuari. Na altura
poderá parecer-nos um acontecimento não particularmente feliz; mas na
recordação, como sempre nas recordações, purificada das sensações físicas
imediatas, dos cheiros, das cores, da vista daquele bicharoco debaixo do
lavatório, a circunstância perde os contornos e a imagem melhora. A realidade
passada é sempre menos má do que efectivamente foi: a memória é uma
falsária espantosa. É-se desonesto mesmo sem querer. Hotéis como este já
povoam o nosso imaginário: já os encontrámos nos livros de Conrad ou de
Maugham, em certos filmes americanos baseados nos romances de Kipling ou
de Bromfield: quase nos parece familiar.
Cheguei ao hotel Zuari uma noite, já tarde, e foi uma escolha forçada,
como muitas vezes acontece na Índia. Vasco da Gama é uma vila
excepcionalmente feia do estado de Goa, escura, com vacas que andam pelas
ruas, gente pobre vestida à ocidental, herança da permanência portuguesa, e
portanto com um ar de miséria sem mistério Os pedintes abundam, mas não há
aqui templo ou lugares sagrados, e estes pobres não pedem e nome de Vishnu e
não oferecem bênçãos e fórmulas religiosas: são taciturnos e atónitos, como
mortos.
No hall do hotel Zuari há um grande balcão semi circular atrás do qual
está um recepcionista gordo sempre a falar ao telefone. Regista o cliente a falar
ao telefone; entrega-lhe a chave a falar ao telefone e, de madrugada, quando a
primeira claridade anuncia que se pode finalmente renunciar à hospitalidade do
quarto, lá está ele a falar ao telefone em voz baixa, monótona, indecifrável. Com
quem estará sempre a falar o recepcionista do hotel Zuari?
Há também um enorme dining-room, no primeiro andar do hotel
Zuari, conforme o letreiro por cima da porta: mas nessa noite estava às escuras e
sem mesas e eu jantei no pátio, um pequeno pátio com buganvílias e flores muito
perfumadas e mesas baixas com banquinhos de madeira e uma luz muito frouxa.
Comi lagostins do tamanho de lagostas e doce de manga, bebi chá e uma espécie
de vinho que sabia a canela; tudo por uma quantia correspondente a trezentos
escudos, o que muito me animou. Em volta do pátio erguia-se a varanda para a
qual davam os quartos e por entre as pedras do pátio corria um coelho branco.
Havia uma família indiana a jantar numa mesa do fundo.
Ao lado da minha mesa estava uma senhora loura com idade
indefinida, de uma beleza murcha. Comia com três dedos, à moda indiana,
fazendo bolinhas perfeitas de arroz que ensopava no molho. Pareceu-me inglesa
e era-o. Tinha um olhar de louca, mas só de vez em quando. Depois contou-me
uma história que não me parece oportuno relatar. Pode mesmo ter sido um sonho
mau. De resto, o hotel Tuari não é propício a sonhos cor-de-rosa.
Era carteiro em Filadélfia, aos dezoito anos já trotava pelas ruas com
a mala a tiracolo, sempre, todas as manhãs, de Verão quando o asfalto é um
melaço e de Inverno quando se escorrega na neve gelada. Assim durante dez
anos, a levar cartas. Tu não imaginas quantas cartas distribuí, milhares. Eram
todos senhores, nos envelopes. Cartas de todas as partes do mundo: Miami, Paris,
Londres, Caracas. Bom-dia, senhor. Bom-dia, senhora. Sou o carteiro.
Levantou o braço e apontou um grupo de jovens na praia. O sol estava
a pôr-se, a água cintilava. Pescadores, ao nosso lado, preparavam um barco.
Eram homens seminus com um pano à cintura.
- Aqui somos todos iguais”, disse, não há senhores, . Olhou para mim
com uma expressão maliciosa. Tu és um senhor?”
O que é que achas?
Olhou para mim duvidoso.
Mais logo te dou a resposta.
Depois indicou as pequenas barracas de folhas de palmeira que se
erguiam à nossa esquerda, apoiadas às dunas.
Nós vivemos ali, é a nossa aldeia, chama-se Sunn.
Sacou de uma caixinha de madeira com mortalhas e mistura e
enrolou um cigarro.
Fumas?
Normalmente não, disse eu, mas agora fumo, se me deres um”.
Preparou também um para mim e disse:
Este tabaco é bom, dá alegria, tu és alegre?
“Ouve, disse eu, estava a gostar da tua história, continua a contar.
Bem, disse ele, num dia ia por uma rua de Filadélfia, estava muito
frio, andava a entregar o correio, era de manhã, a cidade estava coberta de neve,
é tão feia Filadélfia, percorria ruas enormes, depois meti por um beco longo e
escuro, apenas um raio de sol que conseguira romper através do nevoeiro que o
iluminava ao fundo. Eu conhecia aquele beco, ia lá levar o correio todos os dias,
era uma rua que terminava no muro que circundava uma fábrica de automóveis.
Bem, sabes o que vi naquele dia? Adivinha.
Não faço ideia, disse eu.
Adivinha.
Desisto, é demasiado difícil.
O mar, disse ele. Vi o mar. Ao fundo do beco ; havia um belo mar azul
com ondas encrespadas de espuma e uma praia arenosa e palmeiras. Que te
parece, hem?
Curioso, disse eu.
O mar, tinha-o visto apenas no cinema ou nos postais que vinham de
Miami ou de Havana. E aquele mar era parecido, um oceano, mas sem
ninguém, com a praia deserta. Pensei: trouxeram o mar a Filadélfia. E a seguir
pensei: é uma miragem como se lê nos livros. O que é que tu pensarias?
A mesma coisa-, disse eu.
Claro; só que o mar não pode chegara Filadélfia. E as miragens
acontecem no deserto, quando o sol está a pique e tens muita sede. E naquele dia
estava um frio dos diabos, estava tudo cheio de neve suja. Assim, aproximei-me
devagarinho, atraído por aquele mar, com vontade de mergulhar nele, embora
estivesse frio, porque aquele azul era um convite e as ondas cintilavam, o sol
iluminava-as.
Fez uma breve pausa e puxou uma fumaça. Sorria com ar ausente e
distante, revivendo aquele dia.
Era uma pintura. Tinham pintado o mar, aquelas almas do diabo. Em
Filadélfia às vezes fazem isso, é uma ideia dos arquitectos, pintam no cimento
paisagens, vales, bosques e coisas no género, assim não te parece tanto que vives
numa cidade de merda. Estava a dois passos daquele mar no muro, com a minha
mala a tiracolo, no fundo do beco, o vento redemoinhava e por baixo da areia
dourada rodopiavam folhas secas, papéis, um saco de plástico. Praia suja, em
Filadélfia. Olhei para ele um momento e pensei: se o mar não vai ter com
Tommy, Tommy vai ter com o mar. Que achas?
- Conhecia outra versão-, disse eu, mas a ideia é a mesma
Pôs-se a rir: Isso mesmo, disse ele. E então
sabes o que fiz? Adivinha.
Não faço ideia.
Adivinha.
Desisto, disse eu, é demasiado difícil. Abri o caixote do lixo e deitei lá
a minha mala: Fica aí quietinha, correspondência. Depois fui correr aos correios
centrais e pedi para falar com o director. Preciso de três meses de ordenado
adiantado, disse-lhe, o meu pai tem uma doença grave, está no hospital, veja
estes atestados médicos.
Ele disse: primeiro assina esta declaração. Eu assinei e recebi o
dinheiro.
Mas o teu pai estava realmente doente?
Claro que estava, tinha um cancro. Mas, de qualquer modo, morria na
mesma, ainda que eu continuasse a levar a correspondência aos senhores de
Filadélfia.
É lógico, disse eu.
Trouxe apenas uma coisa, disse ele, adivinha-,
Na verdade é demasiado difícil, é inútil, desisto.
A lista telefónica”, disse ele com satisfação.
A lista telefónica?
Exacto, a lista telefónica de Filadélfia. Foi toda a minha bagagem, é
tudo o que me resta da América.
Porquê?, perguntei-lhe. A coisa começava a interessar-me.
Escrevo postais. Agora sou eu que escrevo aos senhores de Filadélfia.
Postais com um belo mar e a praia deserta de Calangute, e por detrás escrevo
muitos cumprimentos do carteiro Tommy. Cheguei à letra C. Claro que salto os
bairros que não me interessam e escrevo sem selo, a multa paga-a o destinatário.
Há quanto tempo estás aqui?”, perguntei-lhe.
Quatro anos”, disse ele.
A lista telefónica de Filadélfia deve ser extensa”.
Sim, disse ele, é enorme. Mas de qualquer modo não tenho pressa,
tenho a vida toda”.
O grupo na praia tinha feito uma grande fogueira, alguém começou a
cantar. Quatro pessoas separaram-se do grupo e aproximaram-se, traziam flores
no cabelo e sorriam para nós. Uma rapariga trazia pela mão uma menina de
cerca de dez anos.
A festa vai começar, disse Tommy, vai ser uma grande festa, é o
equinócio.
Qual equinócio qual história”, disse eu, o equinócio é a vinte e três de
Setembro, estamos em Dezembro”.
Enfim, uma coisa parecida”, replicou Tommy.
A menina deu-lhe um beijo na testa e depois foi-se embora com os
outros.
Não se pode dizer que sejam muito novos”, disse eu, parecem pais de
família.
São os primeiros que chegaram”, disse Tommy, os Pilgrims. Depois
olhou para mim e disse: Porquê, tu és como?”
Como eles”, respondi.
- Estás a ver?”, disse ele. Preparou outro cigarro, partiu-o ao meio e
deu-me metade. Que motivo te trouxe aqui?”, perguntou.
Procuro um tipo que se chama Xavier, às vezes podia ter passado por
estas bandas”.
Tommy abanou a cabeça. Mas ele fica contente de tu o procurares?
“Não sei.
Então não o procures.
Tentei fazer-lhe uma descrição pormenorizada de Xavier. Quando
sorri parece triste, concluí. Uma rapariga separou-se do grupo e chamou-nos.
Tommy chamou-a por sua vez e ela veio até junto de nós.
É a minha companheira, explicou Tommy. Era uma lourita deslavada
com olhos absortos e duas trancinhas infantis apanhadas no alto da cabeça.
Caminhava balançando-se, um pouco insegura. Tommy perguntou-lhe se
conhecia um tipo desta maneira e daquela, conforme a minha descrição. Ela
sorriu incongruentemente e não respondeu coisa alguma. Depois estendeu-nos as
mãos docemente e sussurrou:
Hotel Mandovi.
- Está a começar a festa-, disse Tommy, anda também.
Estávamos sentados na borda de um barco de aspecto muito primitivo,
com um tosco balancim como os catamaran.
Talvez vá ter com vocês mais logo, disse eu, -estendo-me um bocado
no barco e durmo um sono.
Enquanto se afastava não resisti e gritei-lhe que se tinha esquecido de
me dizer se eu também era senhor. Tommy parou, levantou o braço e disse:
adivinha.
Rendo-me, disse eu, é demasiado difícil.
Peguei no meu guia e acendi alguns fósforos. Encontrei-o quase
imediatamente. Davam-no como, a popular top range Hotel, com um restaurante
respeitável. Localidade Panaji, ex- Nova Goa, no interior. Estendi-me no fundo
do barco e pus-me a olhar para o céu. A noite estava verdadeiramente
magnífica. Segui as constelações e pensei nas estrelas e no tempo em que as
estudava e nas tardes passadas no planetário. De repente lembrei-me delas como
as tinha aprendido, segundo a classificação da intensidade luminosa: Sírio,
Canopo, Centauro, Vega, Capela, Artur, Oríon. E depois pensei nas estrelas
variáveis e no livro de uma pessoa querida. E depois nas estrelas extintas, cuja luz
ainda continua a chegar até nós, e nas estrelas de neutrões, na fase final da
evolução, e no débil raio que emitem. Disse em voz baixa: pulsar. E quase como
se tivesse sido acordada pelo meu sussurro, como se tivesse accionado um
gravador, chegou até mim a voz nasal e fleumática do professor Stini que dizia:
quando a massa de uma estrela agonizante é superior ao dobro da massa solar, já
não existe estado da matéria capaz de deter a concentração, e esta procede até
ao infinito; já não sai mais nenhuma radiação dessa estrela, que se transforma
assim num buraco negro.
XI
SÃO tão estranhas as coisas. O hotel Mandovi chama-se assim porque
foi construído mesmo à margem do rio. O Mandovi é um rio grande, calmo, com
um enorme estuário orlado de praias quase marinhas. À esquerda fica o porto de
Panaji, porto fluvial para pequenos barcos, com vagões carregados de
mercadorias, dois embocadouros desconjuntados e uma plataforma enferrujada.
Quando cheguei, como se estivesse a sair do rio, mesmo pela bordinha da
plataforma, estava a nascer a Lua. Tinha um círculo amarelo à volta e era cheia
e avermelhada. Pensei: lua vermelha, e instintivamente pus-me a assobiar uma
velha canção. A ideia ocorreu-me como um curto-circuito. Pensei num nome,
Roux, e logo a seguir nas palavras de Xavier: tornei-me uma ave nocturna; e
então tudo me pareceu evidente, até mesmo estúpido, e depois pensei: por que
não me lembrei disto mais cedo?
Entrei no hotel e dei uma vista de olhos em volta. O Mandovi é um
hotel do fim dos anos cinquenta, com ar já velho. Talvez tenha sido construído na
época em que os portugueses ainda estavam em Goa. Não sei bem em quê, mas
pareceu-me que mantinha um traçado ao gosto fascista da época: talvez devido
ao enorme átrio mais próprio de uma sala de espera de uma estação de caminho
de ferro ou devido àquela mobilia impessoal e deprimente, de estação de correio
ou de ministério público. Atrás do balcão estavam dois empregados, um vestia
uma libré às riscas e o outro um casaco preto um pouco usado e um ar
importante. Dirigi-me a este e mostrei-lhe o meu passa porte.
Queria um quarto.
Ele consultou o registo e anuiu.
Com varanda e vista para o rio, precisei.
Sim senhor, disse o empregado.
O senhor é o director?, perguntei, enquanto ele preenchia a minha
ficha.
Não senhor, respondeu, o director está ausente, mas seja para o que
for pode dirigir-se a mim”.
Ando à procura de Mister Nightingale, disse.
Mister Nightingale já deixou o hotel, disse com naturalidade, partiu há
algum tempo.
Sabe para onde foi?, perguntei, tentando também eu manter um tom
de naturalidade.
“Normalmente vai a Bangkok, disse, Mister Nightingale viaja muito, é
um homem de negócios.
Bem sei, disse eu, Mas podia ser que já tivesse regressado.
O empregado levantou os olhos da ficha e olhou para mim com ar
perplexo.
Não sei dizer-lhe, senhor-, respondeu educadamente.
Pensei que no hotel alguém me pudesse dar na informação mais
concreta; ando à procura dele por causa de um negócio importante, vim de
propósito da Europa.
Vi que ficou impressionado e tentei tirar partido desse facto. Saquei
duma nota de vinte dólares e meti-a debaixo do passaporte.
Os negócios ficam caros, disse, é desagradável fazer uma viagem em
vão, percebe?
Ele pegou na nota e restituiu-me o passaporte.
Agora Mister Nightingale vem cá muito raramente, disse. Aparentou
um ar mortificado. Sabe-, acrescentou, o nosso hotel é bom, mas não pode
competir com os hotéis de luxo.
Só talvez nesse momento se apercebeu de estar a falar de mais. E
apercebeu-se também de que eu apreciava o seu falar de mais. Foi só um olhar,
mas bastou.
Tenho de tratar um negócio importante com Mister Nightingale, disse,
com a nítida sensação de que aquela torneira se tinha fechado.
De facto tinha.
- Não trato dos assuntos de Mister Nightinle - disse gentilmente, mas
com firmeza. Depois continuou num tom profissional: -Quantos dias vai o senhor
ficar?
Só esta noite, disse eu.
Ao dar-me a chave perguntei-lhe a que horas abria o restaurante.
Respondeu-me solicitamente que abria às oito e meia e que podia jantar à lista ou
ao buffet, que seria colocado no meio da sala.
O buffet é só de comida indiana, precisou.
Agradeci e peguei nas chaves. Quando já estava no elevador voltei
atrás e fiz-lhe uma pergunta inócua.
Penso que Mister Nightingale jantava no hotel, quando estava aqui-.
Ele olhou para mim sem perceber muito bem,
Claro, respondeu com orgulho, o nosso restaurante é um dos melhores
da cidade.
Os vinhos na Índia são muito caros, são quase todos importados da
Europa. Beber vinho, mesmo num bom restaurante, é sinal de um certo prestígio.
Até o meu guia o dizia: pedir vinho implica a intervenção do maitre.
Fiz pontaria no vinho.
O maitre era um gorducho com olheiras e cabelos cheios de
brilhantina. A sua pronúncia de vinhos franceses era desastrosa, mas fez o que
pôde para ilustrar as características de cada marca. Tive a impressão de que
improvisava um tanto, fiz de conta que não percebia. Fi-lo esperar um bom
bocado, estudando a lista. Sabia que me estava arruinar, mas agora seria o último
dinheiro gasto com este objectivo: peguei numa nota de vinte dólares e coloquei-
a dentro da lista, fechei-a e entreguei-lha.
É uma escolha difícil, disse, traga-me o vinho que Mister Nightingale
escolheria.
Ele não acusou o toque. Afastou-se com calma e voltou com uma
garrafa de Rosé de Provença. Abriu-a com cuidado e serviu-me dois dedos para
provar. Provei e não me pronunciei. Ele também permaneceu impassível. Senti
que chegara o momento de jogar a minha cartada. Bebi mais um gole e disse:
Soube que Mister Nightingale só se interessa por produtos de primeira
qualidade, o que e é que acha?”.
Ele olhou para a garrafa com olhos inexpressivos.
Não sei, senhor, depende dos gostos”, respondeu com ar desenvolto.
A verdade é que também sou de gosto exigente, disse eu, só compro
produtos de primeira qualidade.
Fiz uma pausa para dar mais ênfase ao que estava a dizer e ao mesmo
tempo para parecer mais confidencial. Sentia-me como u filme e quase estava a
gostar do jogo. A tristeza havia de vir depois, sabia-o.
Produtos muito requintados, disse por fim, sublinhando a palavra, e em
quantidade substancial.
Ele olhou novamente para o meu copo inexpressivamente e continuou
a esquivar-se.
Deduzo que não gostou do vinho, senhor”.
Não me agradou nada que subisse a parada. As minhas finanças
estavam a esgotar-se, mas já agora valia a pena ir até ao fim. E depois tinha a
certeza que o Padre Pimentel podia emprestar-me algum dinheiro. Assim,
aceitei o desafio e disse: Traga-me a lista, tentarei escolher uma marca melhor.
Ele abriu-me a lista sobre a mesa e eu meti-lhe outra nota de vinte
dólares. Depois indiquei um vinho ao acaso e disse:
Acha que Mister Nightingale gostaria deste?
Sem dúvida, respondeu solícito.
-Tenho uma grande vontade de lho perguntar a ele, disse eu, o que me
aconselha?
-No seu lugar, procuraria um bom hotel na costa, disse ele.
Na costa há muitos hotéis, é difícil acertar exactamente naquele que
interessa”.
Os melhores são só dois, respondeu, é impossível enganar-se, o Fort
Aguada Beach e o Oberoi. Ambos estão magnificamente situados, com uma
praia encantadora e palmeiras que se estendem até ao mar. Tenho a certeza de
que ambos serão do seu agrado.
Levantei-me e dirigi-me para o buffet. Havia uma dezena de
tabuleiros em cima da estufa a álcool, tirei comida ao acaso, debicando daqui e
dali. Parei junto da janela aberta com o prato na mão. A lua já ia bem alta e
reflectia-se no rio. Agora ia chegando a melancolia, como tinha previsto.
Apercebi-me de que não tinha fome. Atravessei a sala e dirigi-me para a saída.
Ao sair, o maitre fez-me uma ligeira vénia.
Mande-me servir o vinho no quarto, disse, prefiro bebê-lo na varanda.
XII
Desculpe a banalidade da frase, mas tenho a impressão de que a
conheço”, disse eu.
Levantei o meu copo e toquei o dela, pousado no balcão. A rapariga
sorriu e disse:
também eu tenho a mesma impressão, você parece-se estranhamente
com um senhor com quem, hoje de manhã, vim de táxi de Panaji.
Também me pus a rir.
Pois bem, é inútil dissimular, esse homem sou eu.
- Sabe que fazer a viagem a meias foi uma ideia excelente?
acrescentou com sentido prático. Os guias dizem que na Índia os táxis são
económicos e, pelo contrário, custam os olhos da cara”.
- Depois aconselho-lhe um guia de confiança, afirmei com
autoridade. O nosso táxi fez um percurso fora da cidade e o preço triplica. Eu
tinha um carro alugado, mas tive de o deixar porque era muito caro. De qualquer
modo a maior vantagem para mim foi fazer o percurso com uma companhia tão
agradável.
Alto”, disse ela, não se aproveite da noite tropical e deste hotel entre
palmeiras. Sou vulnerável aos elogios e deixar-me-ia cortejar sem opor
resistência, não seria leal da sua parte.
Também ela ergueu o copo e pusemo-nos a rir de novo.
A magnificência proclamada pelo maitre do Mandovi pecava por
defeito. O Oberoi era mais do que magnífico. Era um edifício branco em meia-
lua que repetia exactamente a curva da praia sobre a qual se erguia uma enseada
abrigada por um promontório a Norte e por um paredão de rochedos a Sul. A sala
principal era um enorme espaço aberto que se prolongava pela esplanada, da
qual estava separado apenas pelo balcão do bar, que podia ser utilizado dos dois
lados. Na esplanada, as mesas postas para o jantar estavam ornamentadas com
flores e luzes. Um piano escondido algures no escuro, tocava em surdina músicas
ocidentais. Pensando bem, era tudo excessivamente para turista de luxo, mas
naquele momento isso não me desagradava. As primeiras pessoas ocupavam já
as mesas da esplanada. Disse ao empregado para nos reservar uma mesa de
canto, em posição discreta e um pouco na penumbra, depois propus outro
aperitivo.
Desde que não seja alcoólico, disse a rapariga E depois continuou no
seu tom de brincadeira; parece-me que você está a ir depressa de mais. O que
lhe faz crer que aceito o seu convite para jantar?
Para dizer a verdade, não tinha qualquer intenção de a convidar”,
confessei inocentemente, as minhas pobres economias estão quase no fim e cada
um paga a sua conta. Jantamos simplesmente na mesma mesa, estamos sós e
fazemos companhia um ao outro, parecia-me lógico.
Ela não disse nada e limitou-se a beber o sumo de fruta que o
empregado nos servira. E depois não é verdade que não nos conhecemos,
continuei, conhecemo-nos esta manhã.
Nem sequer nos apresentámos, objectou ela.
É uma lacuna que se pode remediar facilmente, disse eu, chamo-me
Roux.
Eu chamo-me Christine, disse ela, e depois acrescentou: não é um
nome italiano, pois não?
Que importância tem isso?”.
De facto, nenhuma”, concordou ela. E depois suspirou: a sua corte é
verdadeiramente irresistível.
Admiti que não tinha qualquer intenção de lhe fazer a corte, que tinha
partido com a ideia de um jantar desportivo, com uma conversa amigável de
igual para igual. Em suma, qualquer coisa deste género. Ela olhou para mim com
um ar fingida mente suplicante, continuando no seu tom de brincadeira e
protestou:
Oh não, faça-me a corte, por favor, diga-me coisas gentis, fale-me de
coisas bonitas, tenho uma terrível necessidade de tudo isso.
Perguntei-lhe donde vinha. Ela olhou para o mar e disse:
De Calcutá. Fiz uma breve paragem em Pondicherry para uma
estúpida reportagem sobre os meus compatriotas que ainda ali vivem, mas
trabalhei um mês em Calcutá.
O que é que fazia em Calcutá?
Fotografava a abjecção, respondeu Christine.
Que quer dizer com isso?
A miséria”, disse ela, a degradação, o horror, chame-lhe como quiser.
Porque o fez?”.
É o meu ofício, disse ela, pagam-me para isso-. Fez um gesto que
podia significar resignação à profissão da sua vida, e depois perguntou-me: Já
alguma vez esteve em Calcutá?
Abanei a cabeça.
Não vá lá”, disse Christine, nunca cometa um erro desses.
Pensava que uma pessoa como você achasse que na vida é preciso
ver o mais possível.
Não, disse ela convicta, é preciso ver o menos possível”.
O empregado fez-nos sinal de que a nossa mesa estava pronta e
conduziu-nos até à esplanada. Era uma bela mesa de canto como eu tinha pedido,
junto aos arbustos da sebe, um pouco à parte. Perguntei a Christine se podia
sentar-me à sua esquerda, de modo a poder ver as outras mesas. O empregado
era muito solícito e discretíssimo, como sabem sê-lo os empregados dos hotéis do
tipo do Oberoi.
Preferíamos cozinha indiana ou barbecue? Não queria influenciar,
naturalmente, mas os pescadores de Calangute hoje tinham trazido cestas de
lagostas, estavam ao fundo da esplanada prontas a serem comidas, ali onde se via
o cozinheiro com o barrete branco e o reflexo das brasas ao ar livre.
Aproveitando a sua sugestão, percorri com o olhar a esplanada, as
mesas, os comensais. A luz era bastante difusa, em cada mesa havia velas, mas
com um pouco de concentração era possível distinguir as pessoas.
Disse-lhe o que faço, disse Christine, e você, o que faz? Se é que tem
vontade de me responder.
Bem, suponhamos que estou a escrever um livro, por exemplo.
Que tipo de livro?”.
Um livro”.
Romance?”, perguntou Christine com olhos astutos.
Uma coisa parecida”.
Então é um romancista, disse ela com uma certa lógica.
Nem tanto”, disse eu, seria só uma experiência, a minha profissão é
outra, procuro ratos mortos.
O que é que disse? ! “.
Estava a brincar”, disse eu. Vasculho velhos arquivos, procuro
crónicas antigas, coisas sepultadas pelo tempo. É essa a minha profissão, eu
chamo-lhes ratos mortos.
Christine olhou-me com indulgência e talvez com uma pontinha de
desilusão. O empregado chegou solícito, trazendo-nos tigelinhas cheias de molho.
Perguntou-nos se queríamos vinho e nós dissemos que sim. A lagosta chegou
fumegante, chamuscada só na carapaça, com a polpa salpicada de manteiga
derretida. Os molhos eram picantíssimos, bastava uma gota para incendiar a
boca. Mas depois o fogo apagava-se logo e o palato enchia-se de aromas
deliciosos e insólitos: era possível reconhecer o gengibre e depois especiarias
desconhecidas. Salpicámos cuidadosamente a nossa lagosta e levantámos os
copos. Christine confessou que já se sentia um pouco alegre, e porventura
também eu, mas não me dava conta disso.
Conte-me o romance, vamos”, disse ela a certa altura, estou cheia de
curiosidade, não me faça sofrer”.
Mas não é um romance”, protestei eu, é um bocado aqui outro ali, não
há sequer uma verdadeira história, são apenas fragmentos de uma história. E
depois não o estou a escrever, eu disse suponhamos que estou a escrever”.
Era evidente que ambos tínhamos uma fome terrível. A carapaça da
lagosta já estava vazia e o empregado veio logo, solícito. Encomendámos outras
coisas, à sua escolha. Coisas leves, especificámos, e ele anuiu com ar
competente.
Há alguns anos publiquei um livro de fotografia, disse Christine. Era a
sequência de um rolo, ficou muito bem impresso, como eu gostava, reproduzia
até os dentes da película, não tinha legendas, só fotografias. Começava por uma
fotografia que considero a melhor coisa que fiz durante a minha carreira, depois
lha mando se me deixar a sua direcção, era uma ampliação, a fotografia
reproduzia um jovem preto, só o busto; uma camisola com uma frase
publicitária, um corpo de atleta, no rosto a expressão de um grande esforço, as
mãos no ar em sinal de vitória: está evidentemente a cortar a meta dos cem
metros, por exemplo-. Olhou para mim com ar um pouco misterioso, esperando
que eu dissesse alguma coisa.
E depois, perguntei eu, onde está o mistério?
A segunda fotografia”, disse ela. Era uma fotografia em corpo inteiro.
À esquerda está um polícia vestido de marciano, traz um capacete na cara, botas
altas, empunha uma espingarda, os olhos ferozes sob a viseira feroz. Está a
disparar para o preto. E o preto vai a fugir com os braços no ar, mas já está
morto: um segundo depois de eu fazer clic já estava morto”. Não disse mais nada
e continuou a comer.
Conte-me o resto, disse eu, já agora complete o conto”.
O meu livro chamava-se África do Sul e tinha uma única legenda sob
a primeira fotografia que lhe descrevi, a ampliação. A legenda dizia: Méfiez-vous
des morceaux choisis. Fez uma ligeira careta e continuou: Nada de textos
escolhidos, por favor, conte-me a substância do seu livro, quero saber a ideia”.
Tentei reflectir. É difícil dizer o conceito de um livro. Como poderia ter
sido o meu livro. Christine olhava para mim implacável, era uma rapariga
obstinada.
Por exemplo, no livro eu seria um tipo qualquer que se perde na
Índia”, disse rapidamente, a ideia é esta”.
Não, não”, disse Christine, não chega, não se livra com essa
facilidade, a substância não pode ser simplesmente essa”.
A substância é que neste livro eu sou um tipo que se perde na Índia”,
repeti, digamos assim. Há outro que anda à minha procura, mas eu não tenho
nenhuma intenção de me deixar encontrar. Vi-o chegar, segui-o praticamente dia
após dia. Conheço as suas preferências, as suas impaciências, os seus
arrebatamentos, as suas generosidades e os seus medos. Tenho-o praticamente
sob controlo. Ele, pelo contrário, não sabe quase nada de mim. Tem algumas
vagas pistas: uma carta, testemunhos confusos ou reticentes, um bilhetinho muito
geral: sinais que laboriosamente tenta fazer encaixar.
Mas quem é você?”, perguntou Christine, no livro, quero dizer”.
Isso não é dito”, respondi, sou alguém que não quer deixar-se
encontrar, portanto não faz parte do jogo dizer quem sou.
E esse que o procura e que você parece conhecer tão bem”,
perguntou ainda Christine, esse conhece-o?”
Dantes conhecia-me, suponhamos que fomos grandes amigos, em
tempos. Mas isto passava-se há muito tempo, fora da moldura do livro”.
E ele, porque anda à sua procura com tanta insistência?”
Quem sabe”, disse eu, é difícil sabê-lo, isso nem mesmo eu que estou
a escrever o sei. Talvez procure um passado, uma resposta para qualquer coisa.
Talvez queira agarrar qualquer coisa que em tempos não soube ver. De certo
modo anda à procura de si próprio. Quero dizer, é como se, ao procurar-me, se
procurasse a si próprio: nos livros acontece muitas vezes assim, é literatura”. Fiz
uma pausa como se fosse um momento crucial e disse confidencialmente: Sabe,
na realidade há também duas mulheres”.
Ah, finalmente”, exclamou Christine, agora o assunto começa a
tornar-se interessante!”
- Infelizmente não, continuei, porque elas também estão fora da
moldura, não pertencem à história.
Que chatice, disse Christine, mas nesse livro está tudo fora da
moldura? É capaz de me dizer o que é que está dentro da moldura?
Há um tipo que procura outro, já lhe disse, há um tipo que anda à
minha procura, o livro é o seu andar à minha procura.
“Então conte-me um pouco melhor!
Está bem”, disse eu, começa assim: ele chega a Bombaim, tem a
direcção de uma espelunca onde eu morei em tempos e põe-se à procura. E lá
conhece uma rapariga que em tempos me conheceu e esta informa-o de que eu
adoeci, que fui para o hospital, e depois que tinha contactos com gente do Sul da
Índia. Assim ele vai à minha procura ao hospital, que se revela uma falsa pista, e
depois deixa Bombaim e começa uma viagem, dando sempre a desculpa de ter
de me procurar, mas na realidade viaja por motivos pessoais, o livro é
basicamente isto: a sua viagem. Encontra uma série de pessoas, naturalmente,
porque nas viagens encontram-se pessoas. Chega a Madrasta, caminha pela
cidade, pelos templos dos arredores, numa associação de estudiosos encontra
algumas hábeis pistas minhas. E finalmente chega a Goa, onde de qualquer modo
tinha de ir, por motivos pessoais.
Christine estava agora a seguir-me, concentrada, chupava um
pauzinho de hortelã-pimenta e olhava-me.
A Goa”, disse, logo a Goa, interessante. E aqui o que é que acontece?
Aqui têm lugar muitos outros encontros, continuei, ele vagueia um
pouco por aqui e por ali, e depois uma tarde chega a uma vila e ali percebe tudo.
Tudo o quê?”
Bem”, disse eu, ele não me encontrava também por uma razão muito
simples, eu tinha mudado de nome. E ele consegue descobri-lo. No fundo não era
assim tão difícil de descobrir, porque era um nome que tinha a ver com ele em
tempos. Só que esse nome eu tinha-o mudado e camuflado. Não sei como
conseguiu adivinhá-lo, mas de facto conseguiu, talvez tenha sido por acaso.
E que nome é?.
Nightingale”, disse eu.
Lindo nome”, disse Christine, continue.
Bem, ali consegue evidentemente saber onde me encontro, fazendo
crer que tinha um negócio importante a tratar comigo: alguém lhe diz que estou
num hotel de luxo na costa, um lugar do tipo deste.
Oh, lá lá!”, disse Christine, aqui tem de me contar muito bem, estamos
dentro do cenário.
Exacto, disse eu, como cenário adopto este.
Suponhamos que está uma noite como esta, quente e perfumada, hotel
muito fino, à beira-mar, grande esplanada com mesas e velas, música em
surdina, empregados que vão e vêm solícitos e discretos, comida seleccionada,
naturalmente, com cozinha internacional. Eu estou numa mesa com uma bela
mulher, uma rapariga como você, com aspecto de estrangeira, estamos do lado
oposto àquele em que nos encontramos agora, a mulher está voltada para o mar,
eu, pelo contrário, olho para as outras mesas, estamos a conversar amavelmente,
a mulher ri de vez em quando, vê-se pelos ombros, exactamente como você. A
certa altura. . . . Calei-me e olhei para a esplanada, passando o olhar por todas as
pessoas que estavam a jantar nas outras mesas. Christine partira o pauzinho de
hortelã-pimenta, tinha-o ao canto da boca como um cigarro, com ar atento.
A certa altura?, perguntou. O que é que acontece a certa altura?
A certa altura vejo-o. Está numa mesa ao fundo, do outro lado da
esplanada. Está sentado na mesma posição que eu, estamos frente a frente. Ele
também está com uma mulher, mas ela está de costas e não posso saber quem é.
Talvez eu a conheça ou pense conhecê-la, faz-me lembrar uma pessoa, ou até
duas pessoas, tanto podia ser uma como a outra. Mas assim de longe, à luz das
velas, é difícil ter a certeza e, além disso, a esplanada é muito grande,
exactamente como esta. Ele provavelmente diz à mulher para não se voltar,
olha-me durante um grande bocado, sem se mexer, tem uma expressão
satisfeita, quase sorridente. Talvez também ele julgue reconhecer a mulher que
está comigo, faz-lhe lembrar uma pessoa, ou até duas pessoas, tanto podia ser
uma como a outra”.
Em suma, o homem que anda à sua procura conseguiu encontrá-lo,
disse Christine.
Não exactamente”, disse eu, não é exactamente assim. Procurou-me
tanto que agora que me encontrou já não tem vontade de me encontrar, perdoe-
me o jogo de palavras, mas é mesmo assim.
E eu também não tenho vontade de ser encontrado. Ambos pensamos
exactamente a mesma coisa, limitamo-nos a olhar um para o outro.
E depois? disse Christine, que mais acontece?.
Acontece que um de nós dois acaba de beber o café, dobra o
guardanapo, compõe a gravata, suponhamos que está de gravata, com um gesto
chama o empregado, paga a conta, levanta-se, afasta educadamente a cadeira à
senhora que está com ele e que se levanta com ele, e vai-se embora. Chega, o
livro está terminado.
Christine olhou para mim duvidosa.
Parece um final um pouco insípido para uma novela”, disse, pousando
a chávena na mesa.
É verdade, também me parece”, disse eu, pousando também a minha
chávena, mas não encontro outras soluções.
Fim do conto, fim do jantar”, disse Christine os tempos coincidem”.
Acendemos um cigarro e eu fiz sinal ao empregado.
Oiça, Christine”, disse eu, desculpe-me se mudei de ideias; gostava de
lhe oferecer este jantar, penso que tenho dinheiro que chegue”.
De modo nenhum”, respondeu ela, o nosso acordo era muito explícito,
jantar de camaradagem e de igual para igual”.
Por favor”, insisti, aceite-o como uma desculpa por tê-la maçado
tanto”.
Mas eu diverti-me muitissimo, protestou Christine, insisto em
pagarmos a meias.
O empregado aproximou-se de mim e segredou-me qualquer coisa ao
ouvido, depois foi-se embora com o seu passo de veludo.
É inútil discutirmos, disse eu, o jantar é grátis, oferece-o um cliente do
hotel que deseja permanecer anónimo.
Ela olhou-me com espanto.
Será um seu admirador”, disse eu, alguém mais galante do que eu.
Não diga disparates, disse Christine. Depois assumiu um fingido ar de
ofendida. Não é leal”, disse, já tinha tudo combinado com o empregado.
Os corredores que levavam aos quartos tinham alpendres de madeira
brilhante, como um claustro que dava para o escuro da vegetação que crescia
atrás do hotel. Devíamos ser dos primeiros a retirar-nos, os clientes tinham ficado
quase todos nas cadeiras de repouso da esplanada a ouvir música.
Caminhávamos lado a lado, em silêncio, ao fundo da galeria esvoaçava uma
borboleta nocturna.
Há qualquer coisa que não me quadra no seu livro, disse Christine, não
sei bem o que é, mas não me quadra.
“Eu também acho”, respondi.
Oiça, disse Christine, você está sempre de acordo com as críticas que
eu faço, é insuportável”.
Mas é que estou mesmo convencido delas”, afirmei, a sério. Deve ser
um pouco como aquela sua fotografia, a ampliação falseia o contexto, é preciso
ver as coisas de longe. Méfiez-vous des morceaux choisis”.
Quanto tempo vai ficar?, perguntou-me.
Parto amanhã.
Tão depressa?
Os meus ratos mortos estão à minha espera, disse eu, cada um tem o
seu trabalho”. Tentei imitar o gesto de resignação que ela tinha feito ao falar do
seu trabalho. Também a mim me pagam para isto”.
Ela sorriu e meteu a chave na fechadura.

Fim
Nocturno Indiano
Antonio Tabucchi
Romance

Tradução de Maria Emília Marques Mano


Quetzal
Lisboa/1989
Titulo da edição original: Notturno indiano
Capa e arranjo gráfico: Rogério Petinga
1984, Sellerio editore, via Siracusa 50, Palermo
Direitos reservados para a publicação em Língua portuguesa:
Quetzal Editores
Lisboa

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