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podemos admitir sem susto que Bakhtin tratou de levar a efeito o mesmo tipo de
amálgama tentado por políticos, economistas e sociólogos russos, para não falar em
filósofos alemães, com a diferença que, enquanto o campo daqueles era o da ética,
ou da razão prática, para já começar a falar na língua de Kant, o campo de Bakhtin é
o da estética. Mais ainda: para todos (e neste todos podemos incluir até Plekhanov)
o maior desafio era apresentar a teoria — do conhecimento, ética ou estética — em
sistema. Nessa tarefa a contribuição dos filósofos neo-kantianos alemães foi
inestimável mas, não podendo nos deter neste capítulo, passemos imediatamente
ao trabalho de Bakhtin.
Uma única proposição, logo no início do ensaio, já contém todas as
informações que nos interessam. Dando início às restrições aos desenvolvimentos
teóricos do período no campo da crítica literária — previamente caracterizado como
extremamente sério e relevante, é bom não esquecer —, Bakhtin diz o seguinte:
“sem uma concepção sistemática do campo estético, tanto no que o
diferencia do campo do cognoscível e do ético, como o que o liga a eles na
unidade da cultura, não se pode separar o objeto submetido a um estudo de
poética — a obra de arte literária — da massa de obras escritas com
palavras, mas de um outro gênero” (Bakhtin, 1988:15).
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Professora no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP.
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Com estes resultados, mais os que aparecem numa obra intermediária, não
por acaso chamada Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785, na
Crítica da Razão Prática Kant vai tratar da ética, da moral e dos costumes, da vida
em sociedade, como já se disse. Para isso, precisou definir o ser humano como um
ser dual que ao mesmo tempo tem parte com o mundo dos fenômenos, na medida
em que é um animal como outro qualquer, e com o mundo das coisas-em-si, já que
é dotado de uma razão que faz dele um ser livre. Enquanto fenômeno, o ser
humano é sujeito como os demais fenômenos às leis da natureza (portanto não é
livre para voar, por exemplo), mas enquanto ser dotado de razão ele é livre e pode
até, como de fato acontece, contrapor-se às próprias leis da natureza (como o
provam os desenvolvimentos da ciência aplicada). Por isso o mundo dos seres
humanos explora a natureza e se constrói sobretudo em contraposição a ela. É
nesta dualidade que se apóiam os descendentes de Kant quando fazem a oposição
entre natureza e cultura, a distinção entre ciências da natureza e ciências humanas,
bem como o argumento básico da crítica ao positivismo, na medida em que este
transpõe os métodos das ciências naturais para as ciências humanas. Para um neo-
kantiano, a maior falha do positivismo consiste em diminuir o ser humano à
condição estrita de ser da natureza.
Como a liberdade é coisa-em-si, supra-sensível, o que dela conhecemos são
apenas as suas manifestações, sendo que a superior é a sua própria regra, qual seja,
o imperativo categórico: só devo agir quando a regra desse ato for passível de
universalização. Para dizer o mesmo de outro modo, qualquer ação que eu pratique
deve ser julgada por essa regra e ela só será considerada uma ação livre,
desinteressada, se eu não estiver reivindicando (ou praticando) um privilégio, pois
privilégios por definição não podem ser universais. Somente as ações livres são
autônomas, as interessadas são heterônomas. Autonomia é então sinônimo de
liberdade. Como se vê, para Kant liberdade é de saída uma questão política (contra
o absolutismo) radicalmente democrática. Tão radical que nem a burguesia, em
cuja intenção o filósofo formulava este problema, foi capaz de garanti-la na prática.
Finalmente, na primeira parte da Crítica da Faculdade do Juízo vamos
encontrar os desdobramentos que mais interessam a Bakhtin: a validade (mas não
a verdade, que é do âmbito da ciência) dos juízos de gosto e a autonomia da arte.
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claro o que é o belo: símbolo do moralmente bom (já sabemos que o valor moral
máximo é a liberdade). Assim, nas considerações finais sobre o problema, Kant
afirma que “a verdadeira propedêutica para a fundação do gosto é o
desenvolvimento de idéias morais e a cultura do sentimento moral” (Kant, 1993:
199). Adaptando essas formulações à nossa língua, devidamente ampliada com as
lições de Bakhtin, poderíamos dizer que, ao contrário do que comumente afirmam
os paladinos da “arte-pela-arte”, a crer em Kant a arte é tanto mais autônoma
quanto mais retira seu conteúdo da esfera moral ou política, quanto mais mergulha
nos valores morais, sendo que, nunca é demais repetir, a liberdade é o maior de
todos, acima (ou ao lado) do qual só se encontra a fé em Deus.
Depois dessas considerações necessariamente sumárias, parece possível sem
muito esforço decifrar um ou dois teoremas kantianos do ensaio de Bakhtin.
Primeiro exemplo: a obra literária está orientada sobre um valor além do material
ao qual se prende e ao qual está substancialmente ligada, obrigando a admitir um
momento do conteúdo que permitiria interpretar a forma de modo mais
substancial. Sabendo que esse conteúdo provém primordial, mas não
exclusivamente, da esfera ética e que a arte, neste sentido, tem conteúdo até
quando é abstrata, não é difícil saber o que pode ser mais substancial num
momento histórico dado. Ainda a este respeito, cabe lembrar que para Bakhtin os
três domínios separados por Kant — cognitivo, ético e estético — constantemente
passam uns para os outros.
Nosso segundo exemplo — a distinção entre objeto estético (obra de arte) e
obra prática (qualquer ação política, ou ato da vida cotidiana, até um discurso) —
também ajuda a entender um teorema de importância fundamental na reflexão
bakhtiniana sobre os gêneros literários. Para Bakhtin, ao contrário da obra prática,
que por isso mesmo é prosaica, a obra de arte se compõe ou se estrutura com vistas
à exposição, ou configuração, completa de um fim livremente determinado pelo
artista. Uma vez determinado o fim (obviamente ético) ou, o que é o mesmo, uma
vez idealizada a obra, o artista lhe deu uma forma arquitetônica e a sua
composição técnica terá em vista, por isso mesmo, a constituição de um todo
acabado. Por isso ele afirma que as formas composicionais, ou momentos de
organização do material, podem ser (e são) tecnicamente avaliadas (a começar pelo
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BIBLIOGRAFIA