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Parte 5

GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS.


INTERFACES SETORIAIS
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

DESENVOLVIMENTO REGIONAL E GESTÃO DE RECURSOS


HÍDRICOS. O CENÁRIO NA BACIA DO RIO TUBARÃO, SC

Héctor Raúl Muñoz


Ismael Pedro Bortoluzzi

1. Introdução

As experiências de intervenções visando o desenvolvimento regional,


planejadas setorialmente e implementadas sem suficiente articulação entre
os setores e atores envolvidos, têm deixado marcas preocupantes no cenário
dos recursos hídricos da Bacia do Rio Tubarão e Complexo Lagunar, no sul
de Santa Catarina, com influência direta na qualidade de vida da população.
O novo cenário, que haverá de emergir da implementação da Política Nacional
de Recursos Hídricos e do correspondente Sistema de Gerenciamento,
constitui-se em uma esperança positiva pelos rebatimentos integradores sobre
as atividades antrópicas que visam o desenvolvimento regional.
A Bacia do Rio Tubarão e Complexo Lagunar associado merece lugar
de destaque no contexto catarinense. Identificada no sistema estadual como
"Região Hidrográfica do Sul Catarinense - RH9", constitui-se num espaço de
integração entre os rios, o complexo lagunar do litoral centro-sul e o próprio
litoral. De fato, hidraulicamente interligados, a Bacia do Rio Tubarão e o
Complexo Lagunar - conjunto de 8 lagoas que possuem ligação com o oceano
e o sistema fluvial - constituem um só sistema flúvio-estuarino.
Com mais de 5.600 km 2, abrigando 21 municípios, a região tem sido
cenário de importantes atividades agrícolas, industriais e de mineração.
Historicamente, a bacia tem sido fornecedora de recursos e riquezas. Em
contrapartida, tem sido receptora de despejos e resíduos, configurando hoje
uma situação ambiental crítica, traduzida na degradação dos ecossistemas
naturais e no prejuízo à qualidade de vida de setores significativos da
população. Um dos indicadores mais expressivos desta situação é constituído
pela degradação dos seus recursos hídricos.
A bacia apresenta conflitos de diversos tipos: atividades setoriais
exercidas predatoriamente; atividades setoriais em conflito com outras; e a

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Desafios da Lei de Águas de 1997

disputa do mesmo recurso para fins diferentes. Consumidores urbanos,


rizicultores, pescadores, mineradores e mineiros, além de suinocultores, entre
outros, representam interesses legítimos que devem ser compatibilizados no
marco das disponibilidades e capacidade de suporte dos ecossistemas naturais.

Figura 1 - SC - Região Hidrográfica RH9 do Rio Tubarão e Complexo Lagunar Sul

2. Síntese do cenário ambiental

Situada, parcialmente, na Bacia Carbonífera Catarinense, classificada


como a 14ª área crítica nacional, no sentido de necessidade de controle
ambiental, a RH9 faz parte do sistema hidrográfico mais degradado de Santa
Catarina, em decorrência dos impactos causados pela exploração do carvão
mineral, agrotóxicos usados nas lavouras de arroz irrigado, emissões das
fecularias, ausência de sistemas de esgotos sanitários, dejetos da suinocultura
e pesca predatória, entre outros fatores. Conseqüência da degradação tem
sido uma sensível diminuição da produtividade pesqueira, especialmente no
conjunto das lagoas Imaruí, Mirim e Santo Antônio, da qual dependem mais
de 10.000 famílias da região.

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Pescadores artesanais e população abastecida pelas águas do Rio D'Una,


um dos afluentes ao sistema lagunar, têm sido protagonistas de acirradas
discussões com os rizicultores, em virtude do rio estar sendo utilizado como
escoadouro de descargas poluentes, inviabilizando seu acesso a todos os
usuários e prejudicando, na opinião dos pescadores, a produção pesqueira local.
"Historicamente, a bacia vem incorporando externalidades decorrentes
do processo de desenvolvimento regional. Esse, incorporando diferentes
formas de atividades econômicas, engendrou estruturas que hoje
comprometem, em escala sem precedentes, os próprios mecanismos
de controle da qualidade de vida e ambiental desenhados após a
Conferência de Estocolmo, a partir dos princípios do desenvolvimento
sustentável". (SDM/UNISUL, 1998)

A respeito do Complexo Lagunar, o “Diagnóstico Ambiental do Litoral


de Santa Catarina” elaborado pelo Projeto de Gerenciamento Costeiro, registra:
"O trecho que compreende os ambientes da borda leste das lagoas de Santo
Antônio e do Mirim, incluindo as zonas urbanas de Imbituba e Laguna,
apresentam-se com vulnerabilidade alta e crítica e usos de forte impacto
ambiental, com problemática socio-econômica desfavorável, sendo
classificada no seu conjunto em termos de Qualidade Ambiental como áreas
Ruim e Crítica. A borda oeste, entretanto, apresenta condições ambientais
mais favoráveis com usos mais compatíveis com os sistemas naturais existentes
e remanescentes da cobertura vegetal original, mais preservados e de menor
densidade populacional" (PROGERCO, 1997).
Boa parte dos conflitos assinalados são seqüelas das intervenções
passadas que visavam o desenvolvimento regional, na visão da época,
planejadas e implementadas sob uma visão de ganhos setoriais e
imediatistas, alheias ao conceito de gestão ecologicamente correta,
baseado na ética da solidariedade.

3. Algumas experiências de planejamento na bacia

Diversas são as experiências de planejamento para o desenvolvimento


regional que têm atingido a região hidrográfica em pauta. As primeiras,
historicamente registradas, corresponderam aos planos de colonização com
imigrantes europeus, de diversas origens, e à construção da Estrada de Ferro
Dona Teresa Cristina, iniciada em 1874 para dar escoamento à produção de
carvão mineral (Piazza, 1982). Este recurso está na base do crescimento
econômico regional. Diversas intervenções, em nível federal e estadual, fo-

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ram planejadas e implementadas tendo como eixo a questão da exploração do


carvão. O decreto 20.089, de 9 de junho de 1931, que estabelecia a
obrigatoriedade de consumo de carvão nacional em quantidade equivalente a
10% do que era importado, percentual aumentado para 20% em 1940, é
exemplo disto. Na década de 1940, como conseqüência da Segunda Grande
Guerra Mundial, estabeleceu-se um relacionamento especial com os Estados
Unidos, que teve rebatimentos no consumo de carvão através da implantação
da Companhia Siderúrgica Nacional - CSN. O início das atividades da CSN
na Bacia do Tubarão ocorreu no ano de 1943, com a construção do Lavador
de Capivari. Em 1954 foi criada a Comissão Executiva do Plano do Carvão
Nacional - CEPCAN, diretamente vinculada à Presidência da República, com
funcionamento estabelecido até 31.12.1960. Mas, a partir de 1961, as suas
atividades foram continuadas pela Comissão do Plano de Carvão Nacional -
CPCAN, até 31.12.1970. Estas entidades tiveram marcante atuação na região.
Fruto desta atuação foram, entre muitos outros, o início da implantação do
que hoje é o Complexo Termelétrico Jorge Lacerda e o Projeto da Indústria
Carboquímica Catarinense - ICC.
Em 1976, no âmbito do Processo de Planejamento do Sul de Santa
Catarina, conduzido pelo Ministério do Interior, a Fundação Educacional do
Sul de Santa Catarina - FESSC elaborou Termos de Referência para um Plano
de Ações. A proposta incluía Programas Vertebradores ou Indutores, dentre
os quais a industrialização a partir dos recursos minerais, a melhoria do nível
de produtividade do setor primário e a ativação do turismo. E Programas e ou
Projetos Complementares, nas áreas econômica, social, de saúde, físico-
territorial e institucional. Entre os programas econômicos, além dos referentes
à exploração mineral e indústrias derivadas, registraram-se programas de:
estímulo à fruticultura, abastecimento e ensilagem, florestamento e
reflorestamento, estudo técnico e mercadológico para hortigranjeiros,
desenvolvimento de gado leiteiro, estudo de criação de animais de pequeno
porte, estudo de viabilidade técnico-econômica de projetos de desenvolvimento
agrícola e recuperação de terras da Bacia do Rio Tubarão. Interessante observar
a preocupação no resgate das atividades agropecuárias e florestais na região.
Interessante é, também, registrar entre os programas físico-territoriais a
regularização das bacias hidrográficas para uso múltiplo dos recursos hídricos;
solução para o porto pesqueiro de Laguna e estudo das reais potencialidades
ictiológicas da região; estudo de programa de preservação dos interesses
turísticos face ao impacto da industrialização; e o estudo de preservação do
meio ambiente e controle da poluição, entre outros programas.
Quase paralelamente, a Superintendência de Desenvolvimento da
Região Sul - SUDESUL (1975), mediante contrato com a empresa PLANISUL,

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desenvolveu o Plano Industrial do Sul de Santa Catarina, cujo principal


desdobramento foi o detalhamento da implantação da Indústria Carboquímica
Catarinense - ICC em Imbituba e a disponibilização da área onde hoje está
para ser implantada a Zona de Exportação.
Propostas de intervenção para o desenvolvimento ocorreram também por
parte do Departamento Nacional de Obras de Saneamento - DNOS,
especificamente após a grande enchente de 1974. Em 1976, o DNOS apresentou
um Plano de Aproveitamento Múltiplo dos Recursos Hídricos da Bacia do Rio
Tubarão. Este plano previa a dragagem do Rio Tubarão entre Laguna e a cidade
de Tubarão, associada à construção de diques de contenção; a construção de três
barragens no Rio Tubarão, destinadas ao controle de enchentes, regularização de
vazões e irrigação das várzeas. Posteriormente, foi acrescentado ao plano o projeto
de uma barragem no Rio D'Una, para abastecimento da indústria siderúrgica que,
na época - década de oitenta -, cogitava-se instalar em Imbituba.
A dragagem e os diques de contenção foram realizados entre 1978 e
1981. As barragens no Rio Tubarão não foram priorizadas e deixaram de ser
construídas face à falta de recursos. A barragem do Rio D'Una chegou a ser
licitada, mas, em definitivo, não foi construída devido à inviabilidadade do
projeto da Siderúrgica de Imbituba.
Os planos mencionados deram origem a diversas intervenções visando
firmar o desenvolvimento na bacia.
Mais recentemente, em 1991, o governo estadual, em articulação com
o governo federal, lançou um programa para retomada do desenvolvimento
da região sul de Santa Catarina, denominado Programa de Recuperação da
Qualidade de Vida da Região Sul de Santa Catarina - PROVIDA. O programa
visava encontrar saídas para os complexos problemas apresentados pelo
cenário sócio-ambiental do momento. Este cenário era caracterizado pela
existência de milhares de desempregados, decorrente da perda de mercados
do carvão catarinense e, também, pelos efeitos evidentes e prejudiciais da
gritante degradação ambiental provocada, principalmente, pela exploração,
transporte e uso do carvão mineral. O programa prevê projetos de recuperação
das áreas degradadas e obras consideradas necessárias à retomada do
desenvolvimento da região sul do estado, entre as quais obras hidráulicas,
marítimas e de saneamento; projetos viários; atividades de dragagem,
drenagem, serviços e obras estruturais diversas; e a aquisição dos equipamentos
necessários. No seu conjunto, o programa implica investimentos de mais de
380 milhões de dólares americanos (SC, PROVIDA, 1994). Na época do seu
lançamento gerou uma ampla expectativa. Mas a recessão econômica vivida

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pelo país nos últimos anos tem sido, entre outros, um fator limitante para a
implementação dos projetos e obras previstas
Em 1991, no âmbito de atividades do PROVIDA, o governo estadual
celebrou convênio com a companhia Docas do Rio de Janeiro, administradora
do Instituto Nacional de Pesquisas Hidroviárias - INPH, que previa um
conjunto de ações para o "Monitoramento Ambiental do Complexo Lagunar
da Região Sul de Santa Catarina". O plano de trabalho do INPH incluía estudos
e levantamentos na orla marítima, nas bacias e no interior do complexo lagunar,
contando para sua execução com a participação da Universidade Federal -
UFSC e da Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. A partir dos
dados hidráulico-sedimentológicos, meteorológicos, físico-químicos e
biológicos obtidos nos estudos, o INPH fez um conjunto de recomendações
"para a melhoria da qualidade de vida no complexo lagunar Sul-Catarinense"
(INPH, 1995). As recomendações foram agrupadas em três conjuntos
complementares entre si: aspectos hidráulicos; defesa do Complexo Lagunar
frente às áreas já degradadas; e aspectos físico-químicos e biológicos. Porém,
devido a restrições financeiras do Estado, os estudos não tiveram continuidade
e as medidas recomendadas não têm sido implementadas. Há, entretanto, no
presente, sinais que apontam para a retomada destas ações, mediante uma
ação coordenada das entidades de governo e a sociedade civil organizada.

4. Comentários sobre algumas das intervenções para o desen-


volvimento regional

4.1 Sobre a exploração do carvão

Conforme já salientado, a extração e beneficiamento do carvão mineral


configuraram-se, desde o início deste século, como atividades econômicas
primordiais no sul de Santa Catarina. O carvão esteve na base do surgimento
e desenvolvimento de outros setores econômicos, tais como a geração
termelétrica e a indústria cerâmica (Santos, 1997). Do ponto de vista
econômico o carvão representou crescimento e geração de riqueza.
Culturalmente, representou a necessidade de construir colégios para os filhos
dos funcionários das empresas estatais que se estabeleciam na região. Estes
colégios foram bem aproveitados pelas populações locais. Muitas
personalidades com destaque no mundo da cultura e da política regional e,
inclusive, nacional, estudaram nestas instituições de ensino. O deslocamento
da cidade líder da região de Laguna para Tubarão iniciou-se por esse processo
de aproximação para obtenção de emprego nas estatais relacionadas com o

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carvão, Usina Termelétrica, Estrada de Ferro Dona Teresa Cristina e Lavador


de Capivari da CSN, e consolidou-se pela passagem da BR101 (SDM/
UNISUL, 1998). A Universidade local na região - UNISUL - é fruto da visão
e liderança dos seus mentores e do apoio inconteste de pessoas ligadas às
estatais do carvão. Entretanto, simultaneamente a estes fatores de progresso,
o setor carbonífero encontra-se na raiz dos sérios problemas de degradação
ambiental que atingem a região. Estes problemas são causados, principalmente,
pelos rejeitos piritosos resultantes da extração e beneficiamento do carvão.
Acumulados a céu aberto, dão origem a uma paisagem de esterilidade "lunar",
onde nada vive. Por outro lado, terminam acidificando e poluindo os corpos
de água, estendendo a degradação às áreas de jusante, com reflexos até
mais de cem quilômetros de distância.
"A economia do carvão, sob a ótica da ciência econômica, gerou
riquezas, empregou numerosa mão-de-obra, trouxe o progresso para
boa parte da região, porém, jamais criou um processo de desen-
volvimento irreversível e autosustentado -
Mais ainda, boa parte das atividades (empresas estatais ligadas à
extração, beneficiamento e ferrovia) apenas comprovaram uma
tendência universal, ao implantar atividades mineral exportadoras, em
autêntico regime de economia de enclave, sem gerar um processo de
uso racional do solo e de desenvolvimento regional" (SDM/AMREC/
UNESC, 1997).
Os grandes problemas ambientais relacionados com o desenvolvimento
da exploração do carvão advêm, entre outros fatores, da desarticulação e da
assimetria de poder no conjunto de forças intervenientes no processo. Essas
forças estão constituídas por três categorias básicas. Por uma parte, os
pescadores e pequenos agricultores, que tinham as suas águas contaminadas
sem que pudessem fazer qualquer questionamento, pela própria incapacidade
cultural e técnica para avaliar a situação. Por outra, as Carboníferas ou
Empresas mineradoras de carvão que, com poder suficiente para definir os
rumos políticos regionais, representavam a força predominante. Finalmente,
as populações que não tinham envolvimento direto com a exploração do carvão
mas que, indiretamente, beneficiavam-se economicamente com ela. Este grupo
poderia ter servido de contrapeso à força das mineradoras. Mas muitos dos
seus integrantes sonhavam em ser um dia funcionários de uma das estatais do
carvão ou da Rede Ferroviária Federal. Assim, a grande maioria da
população nunca tomou realmente consciência das graves questões sócio-
ambientais envolvidas na exploração do carvão na região e os pescadores
e pequenos agricultores foram os prejudicados diretos. Com certeza estes
atores nunca falaram a mesma linguagem ou sequer participaram unidos,

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através de seus representantes, de qualquer planejamento do desen-


volvimento regional.
A relação das carboníferas com o poder central, tanto do Estado quanto
da União, era tal que determinava a política local e regional. É sintomático,
neste sentido, que a CELESC, a estatal de Santa Catarina no setor elétrico,
não tenha se desenvolvido na área de geração de energia hidrelétrica, apesar
da existência de potenciais hídricos que possibilitavam empreendimentos com
custos de geração de energia bem mais baratos que os correspondentes à
geração termelétrica.
A poluição passou como um mal necessário e, não havendo clima para
ouvir as vozes que avisavam sobre as possibilidades de problemas, os
agricultores, os pescadores e a própria população de Tubarão, Laguna e
Capivari de Baixo não têm tido voz para impor as medidas de controle que
seriam prudentes. O passivo ambiental regional está representado na
diminuição da pesca e na deterioração da saúde pública, prejudicada pela
contaminação do ar, das águas e dos solos.
As concentrações de metais nos sedimentos das lagoas evidenciam uma
das origens da diminuição da qualidade e quantidade de pescado, que usa as
lagoas da foz do Rio Tubarão em seu ciclo vital. É possível correlacionar as
evidências de crescimento de metais pesados no sedimento das lagoas de
Santo Antônio e Imaruí com a mineração de carvão e, pela sua vez, com o
encarecimento do tratamento das águas pela CASAN. Com efeito, o pH baixo
e a presença de metais como o ferro divalente e o manganês divalente, exigem
oxidação prévia na Estação de Tratamento, antes de disponibilizá-las à
população, em Tubarão.
Figura 2 - Crescimento de metais pesados no Material de Fundo das Lagoas de Santo Antônio=LSA,
Imaruí=LI e Miriam=LM*

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Por outra parte, o uso de água contaminada na irrigação de arroz, a


longo prazo, pode criar dificuldades aos produtores daquela cultura
importante na planície próxima à foz do Rio Tubarão. A história mostra
que os agricultores nem sempre puderam preservar suas propriedades
quando houve perda de qualidade nos córregos e rios onde seus animais se
dessedentavam (SUDESUL/MAGNA, 1979).

4.2 Sobre o crescimento de empreendimentos agrícolas

Diversas têm sido as propostas de planejamento agrícola e de


diversificação da produção regional. Entre as principais encontradas está a
produção de abacate e a implantação de uma fábrica de extração de óleo. A
proposta foi elaborada com auxílio da Associação de Crédito e Assistência
Rural do Estado de Santa Catarina - ACARESC, em 1975. Mas, entre o plantio
e os procedimentos para implantação da fábrica, sofreu descontinuidade. O
resultado foram plantações de abacateiros sem mercado, nem para a extração
de óleo, nem para o consumo direto. Nem a exportação foi incentivada, nem
a educação para o consumo ainda verde, como se faz na Europa, foi alvo de
interesse e preocupação. É difícil saber como ficaram os agricultores que
acreditaram nesse empreendimento ou na Companhia Catarinense de Álcool
- CCA, que conforme os seus idealizadores compraria aipim ou mandioca
para produzir álcool combustível. A fábrica foi construída com recursos do
Pró-álcool, mas funcionou como produtora de álcool por pouco tempo. Pouco
mais funcionou produzindo amido de mandioca, mas não teve sucesso.
Entretanto, seria injusto apontar o conjunto destas iniciativas como fracasso
absoluto. Certamente, houve e há fabricantes de farinha de mandioca que se
fortaleceram como empresários, que aumentaram sua produção e que se
mantiveram no mercado. Potencialmente poluidoras, essas indústrias têm sido
criticadas pela liberação de águas com cianeto, embora poucas vezes detectado,
e pelo consumo de oxigênio dissolvido pelos seus efluentes (SUDESUL/
MAGNA, 1979).
Outro setor que teve apoio institucional foi a suinocultura. Esta atividade
foi incentivada em uma ótica que não percebeu a magnitude do seu impacto
sobre os recursos hídricos. E se a percebeu foi omissa em relação a medidas
preventivas. A maioria das pocilgas foi instalada excessivamente próxima de
cursos de água, como aliás aconteceu com as fecularias, as já citadas fábricas
de farinha e amido. O hábito de extrair água para manutenção e limpeza das
instalações, devolvendo-a carregada de detritos diretamente aos cursos naturais,

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instalou-se de forma generalizada. Esta prática generalizou-se sem que,


paralelamente, tivesse sido desenvolvida uma infra-estrutura para tratamento dos
efluentes assim gerados; e sem contar com uma organização institucional em
condições de educar e fiscalizar os proprietários e empreendedores. O resultado
se manifesta nos altos teores de nutrientes, matéria orgânica e contaminação
biológica de rios e lençóis de água (SDM/UNISUL, 1998).
A rizicultura é outra atividade agrícola de crescimento regional signi-
ficativo. As obras de drenagem efetuadas nas planícies baixas da bacia
enxugaram amplas áreas, que se tornaram aptas aos grandes empreendimentos
agrícolas representados pelos plantadores de arroz. Paralelamente aos aspectos
positivos que a atividade representa, ela também gera conflitos pelo menos
em três frentes. Por uma parte, há as disputas pelos volumes de água
disponíveis, pois a cultura de arroz irrigado é voraz no consumo de água. De
fato, no conjunto dos aproximadamente 13.400 hectares irrigados, o consumo
de água durante o ciclo da cultura - novembro a fevereiro - é da ordem de 1,17
milhões de m3/dia (SC, 1997). Esta grande demanda é causa de sérias
disputas entre os próprios rizicultores e, por outra parte, conflitua com os
interesses de outros usuários. No município de Imaruí, por exemplo, os
pescadores queixam-se de uma alegada diminuição de volume de água da
Lagoa Mirim como conseqüência do consumo das águas afluentes pela
rizicultura (PROGERCO, 1997).
A segunda frente de conflito dos rizicultores está na relação com os
pescadores, que os acusam de envenenar as águas com agrotóxicos, alterando
a quantidade e qualidade (sabor) dos peixes e interferindo na procriação do
camarão. Porém, talvez não haja sequer pesquisa suficiente para afirmar qual
a origem real do problema. Alguns dos fatores a serem pesquisados são o uso
destes agrotóxicos, o derrame de águas das quadras de plantio direto com
excesso de material em suspensão, o derrame de águas de fim de colheita,
com contaminantes possivelmente relacionados com os ácidos húmicos dos
solos orgânicos das vargens e com os adubos e águas utilizadas. De especial
interesse seria pesquisar a influência da composição dos efluentes das pilhas
de óxido de ferro da ex-ICC, em Imbituba, transportados por veiculação hídrica
até o complexo lagunar.
A questão da salinização das lagoas é também um ponto que diferencia
claramente as posturas de pescadores e rizicultores. Enquanto os primeiros
brigam para garantir a salinização de lagoas como Imaruí e Camacho/Garopaba
do Sul, os rizicultores temem pela salinização dos canais e de suas terras
como conseqüência de qualquer ligação adicional das lagoas com o mar (SDM/
UNISUL, 1998).

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4.3. Sobre o turismo

O fomento do turismo consta entre os programas vertebradores do


desenvolvimento regional nos Termos de Referência do Processo de
Planejamento do Sul de Santa Catarina, conduzido pelo Ministério do Inte-
rior através da SUDESUL, já referenciado anteriormente. Entretanto, a
exploração do turismo tem tido muito pouco planejamento territorial. De fato,
as iniciativas neste campo não respondem a um plano diretor de ocupação do
território, apresentando-se, em grande medida, como simples conseqüência
da implantação de infra-estruturas (acessos e energia elétrica) e de
disponibilização de lotes para construção de moradias.
Entre as situações de exploração turística e lazer de veraneio que exigem
planejamento urgente estão aquelas localizadas nas áreas de restinga, entre as
lagoas e o Oceano Atlântico. Estas áreas são constituídas por areais entre dois
corpos de águas salgadas. Embora tenham boa capacidade de armazenamento de
água doce, apresentam sérias possibilidades de contaminação. Essa contaminação
advém da prática de instalar, nas residências de beira de praia, um sumidouro
para os esgotos num lado da casa e uma ponteira para puxar água do outro.
Enquanto o número de residências de verão for pequeno e o período de uso
restrito, os efeitos da contaminação do lençol freático não serão sentidos. Mas, a
longo prazo, as conseqüências se manifestarão com intensidade proporcional ao
nível de agressão correspondente (SDM/UNISUL, 1998). Esse fenômeno poderá
repetir-se nas questões das águas termais e em relação à instalação não planejada
de vilas e povoações.
Por outro lado, alguns empreendimentos turísticos que exploram a
beleza cênica de cursos de água com cascatas ou praias de água doce esbarram
na qualidade das águas provenientes de áreas com intensa atividade de suino-
cultura ou residencial. Acontece que essas atividades turísticas, representadas
por empreendimentos tipo Pesque-Pague e restaurantes próximos de
cachoeiras, são uma opção alternativa de lazer para o turista que busca as
praias e as termas. Mas, nas condições descritas, a sobrevivência deste tipo
de atividade depende da gestão ambientalmente correta das outras atividades
antrópicas praticadas nas redondezas e na bacia, à montante. É urgente, neste
sentido, encontrar mecanismos de gestão participativa para o encaminhamento
de soluções para este tipo de problema. Com maior razão ainda, quando
constata-se que muitos dos freqüentadores e investidores na compra de terrenos
e construção de residências de praias são os mesmos que estão agindo rio acima.
Em síntese, as atividades turísticas desenvolvidas no litoral ou no inte-
rior da bacia em questão, via de regra, vêm se desenvolvendo de forma rápida,
desordenada e dissociada da preocupação ambiental (PROGERCO, 1997),

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gerando situações problemáticas, com reflexos na qualidade dos recursos


hídricos ou provocadas pela falta de qualidade destes.
"As edificações, tanto de turismo convencional como de veraneio,
privatizam orlas, ocupam ambientes frágeis (dunas, costões,
promontórios) e provocam poluição ambiental generalizada"
(PROGERCO, 1997)

5. Expectativas no cenário da Política Nacional de Recursos Hídricos

5.1 Os novos entendimentos

O propósito deste artigo não é o de apresentar uma relação completa de


todas as intervenções resultantes de planos para o desenvolvimento regional,
experimentadas na Bacia do Rio Tubarão e Complexo Lagunar. Tampouco os
de comentá-los exaustivamente entrando no difícil caminho de esgotar a
avaliação das suas contribuições efetivas para o desenvolvimento preconizado.
O que tentamos salientar é a ausência de planejamento integrado e de
mecanismos indutores da coordenação e articulação de ações, tanto para avaliar
os efeitos intersetoriais das intervenções pensadas, quanto para implementar
aquelas já decididas em nivel institucional ou individual. Esta realidade se
reflete negativamente nas disponibilidades quanti-qualitativas dos recursos
hídricos da bacia que, por sua vez, constituem-se em indicadores indiretos da
qualidade de vida da população. Neste sentido, a gestão de recursos hídricos,
pautada nos princípios que norteiam a política nacional sobre o tema, tem o
potencial de reverter as práticas usuais de gestão setorial até agora predomi-
nantes na região. Potencial, este, que só poderá ser efetivado se a política for,
de fato, implementada. Acontece, justamente, que o país vive um intenso
processo de discussão que visa este objetivo. Discute-se a regulamentação da
lei 9.433/97 para vê-la de fato implementada. A percepção da existência de
vontade política para que isso seja uma realidade gera expectativas pelos
rebatimentos que a lei nacional haverá de ter na gestão dos recursos hídricos
estaduais e, em conseqüência, na Bacia do Rio Tubarão e Complexo Lagunar.
Os planos experimentados na Bacia do Tubarão foram idealizados em
uma ótica que identificava desenvolvimento com crescimento econômico e
cuja implementação era efetivada no imaginário do infinito, em termos de
disponibilidade e capacidade de recuperação dos ecossistemas. Embora esta
prática ainda continue, hoje os entendimentos são outros. A alarmante
degradação ambiental planetária tem-nos tornado mais conscientes que os
recursos naturais são limitados e que os ecossistemas - como os seres vivos -

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têm capacidade de suporte limitada. E que, portanto, os recursos naturais


renováveis, além de finitos, são vulneráveis. Por outro lado, foram necessários
anos de discussões e reflexões para concluir o óbvio: o atributo da
sustentabilidade é inerente ao conceito de desenvolvimento. Só há
desenvolvimento real quando há eqüidade social, resultante de um processo
distributivo de uma economia ativa, mas praticada com respeito à capacidade
de suporte dos ecossistemas. É numa sociedade com este entendimento que
aparece a lei da Política Nacional de Recursos Hídricos. Lei que incorpora
princípios básicos da Declaração de Dublin sobre Recursos Hídricos e
Desenvolvimento Sustentável (1992) e cuja promulgação representa a
culminação de um processo de discussões iniciadas em 1984, com as primeiras
reuniões de Órgãos Gestores de Recursos Hídricos. A política assume que os
recursos hídricos se constituem em bens públicos, vulneráveis, finitos e
necessários a múltiplos usos; dotados, por escassos, de valor econômico. E
proclama, entre os seus pilares básicos, o princípio da gestão descentralizada
e participativa (Princípio da Subsidiaridade). Define a bacia hidrográfica como
a unidade básica de planejamento e gestão. Estabelece entre os seus
instrumentos de gestão as figuras dos planos de recursos hídricos, assim como
a outorga e a cobrança pelo uso destes recursos, a ser exercida pelo poder
público em concordância com este plano. Define um sistema de gestão acorde
com o princípio da subsidiaridade; e registra, entre as diretrizes para sua
implementação, a necessidade de articulação com a gestão dos setores usuários,
assim como com a gestão ambiental, do uso do solo e o gerenciamento costeiro.

5.2 O potencial dos instrumentos

Dentre os instrumentos da política nacional de recursos hídricos consta


a figura - importantíssima, diga-se desde já - dos Planos de Recursos Hídricos,
que deverão ser estabelecidos por bacia hidrográfica, por estado e para o
país. Trata-se de planos diretores, de longo prazo, com horizontes de
planejamento compatível com o período de implantação de seus programas e
projetos. Outro instrumento previsto é o da Outorga de direitos de uso dos
recursos hídricos. Mas este não é independente do anterior. De fato, conforme
a lei, toda outorga estará condicionada às prioridades de uso estabelecidas no
referidos planos. E como a cobrança pelo uso do recurso está atrelada,
justamente, à obtenção da outorga do direito de uso, fica evidente, por efeito
de vínculo, a tremenda força potencial do instrumento Plano de Recursos
Hídricos. Por outra parte, há uma outra dimensão de fundamental importância
em relação a este instrumento. É que sua aprovação dá-se não em um gabinete

269
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

de tecnocratas, mas no Comitê de Bacia, assembléia de participação das forças


vivas atuantes na respectiva bacia. O comitê é a célula básica da efetivação
do caráter participativo e descentralizador que permeia a nova política de
recursos hídricos. Trata-se, portanto, de uma peça fundamental no arcabouço
do sistema de gestão dos recursos hídricos. Peça que se constitui em um
instrumento de democracia participativa, que haverá de complementar àqueles
próprios da democracia representativa. Neste ponto, é oportuno citar um dos
Princípios mais importantes de Declaração de Dublin:
"O desenvolvimento e a gestão da água devem ser baseados na
participação dos usuários, dos planejadores e dos que tomam decisões
políticas, em todos os níveis" (Declaração de Dublin, 1992).
Em síntese, tanto pelo seu caráter vinculante com a Outorga de direitos
de uso, como pela sua gênese através do Comitê de Bacia, o Plano
constitui-se numa peça chamada a ter grande relevância no gerenciamento
dos recursos hídricos.
Os planos de recursos hídricos não devem ser confundidos com os
planos regionais de desenvolvimento social e econômico. Mas, certamente,
constituem-se em elos de ligação entre os diversos planejamentos setoriais e
elementos indutores da sustentabilidade nas práticas antrópicas.
Embora a lei seja explícita em limitar a competência dos comitês de
bacias aos assuntos referentes aos recursos hídricos, as interfaces destes com
as atividades praticadas pelo homem são de tal magnitude que seria
ingenuidade imaginá-los como instrumentos setoriais no sentido clássico. Na
realidade, a gestão dos recursos hídricos é um dos temas ditos transdisciplinares,
pois permeia praticamente todas as atividades humanas. Como estabelecer
um plano de metas a respeito dos recursos hídricos, ignorando as atividades
antrópicas desenvolvidas na bacia? Como estabelecer um plano sem considerar,
por exemplo, as relações intersetoriais da gestão de recursos hídricos com a
gestão do uso do solo e do saneamento ambiental?
Relacionado com o anterior, é importante salientar que a lei estabelece,
também, o enquadramento dos corpos de água como instrumentos da política.
Trata-se do enquadramento segundo os usos prioritários previstos para os
respectivos corpos de água. Na realidade, o enquadramento é uma ferramenta-
chave para a definição do plano de recursos hídricos, pois a discussão de usos
preponderantes para os diversos corpos de água e os custos, prazos e
compromissos associados, permite decidir qual o cenário que a sociedade
deseja atingir. Neste sentido, é importante enfatizar que o enquadramento
deve ser entendido como meta a ser alcançada e não, necessariamente, como

270
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

situação presente dos corpos de água. Todavia, na realidade atual de diversos


estados do país, "a aplicação do enquadramento está ocorrendo como se o
corpo de água estivesse na condição de classe em que foi enquadrado, e que
essa classe deve ser mantida" (Barth, 1999). Em termos práticos, os efeitos
deste critério de aplicação têm-se constituído, em muitos casos, em entraves
à melhoria ambiental, pela impossibilidade de obter licenciamento para
empreendimentos tais como estações de tratamento de esgotos urbanos, porque
os efluentes lançados, mesmo se constituindo em evidente melhoria para os
corpos receptores, "não podem conferir ao corpo de água receptor
características em desacordo com o enquadramento do mesmo"(Barth, 1999).
Da mesma forma, cenários definidos como metas, sem tomada de
conhecimento de sua viabilidade técnica e econômica, correm o risco de con-
verter-se em simples declarações de propósitos, bem intencionados mas irreais
e, pelo mesmo, podem comprometer o prestígio, o poder de influência e até a
própria vida do respectivo comitê. E, em conseqüência, a viabilidade dos
planos e programas por ele estabelecidos. Vale salientar, nesta linha de
raciocínio, a preocupação a respeito do estabelecimento de metas realistas,
adequadas às condições locais e baseadas na avaliação de custos e benefícios,
registrada no relatório do Banco Mundial sobre a Gestão dos Problemas da
Poluição no Brasil (1998), que de certa forma já delineia um propósito de não
financiar projetos atrelados a enquadramentos irrealistas.
Assim, para que o processo de enquadramento corresponda a uma
tomada de decisão consciente e realista, é imprescindível a função dos técnicos.
A eles cabe subsidiar o comitê com propostas alternativas com os corres-
pondentes custos econômicos e ambientais de cada uma delas, como também
auxiliá-lo nas decisões de alternativas para definição de prazos para atingir as
metas pretendidas.

5.3 Interfaces da gestão

Todas as atividades econômicas, sejam do setor primário, secundário


ou de serviços - como as de saneamento básico -, requerem água, seja como
insumo, como meio de refrigeração ou como meio de descarte de resíduos. E
como todas precisam de outorga e esta é vinculada ao Plano, fica automatica-
mente estabelecido um nexo entre a gestão de recursos hídricos e a gestão de
atividades setoriais, intermediadas pelo Plano de recursos hídricos da bacia.
De fato, definido participativamente o cenário final pretendido, as diversas
atividades produtivas presentes na bacia - mineração, rizicultura, suinocultura,
fecularias, como também as de saneamento básico - deverão ajustar suas

271
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

atividades e procedimentos aos requerimentos do programa de metas


estabelecido pelo Comitê de Bacia para atingir o objetivo final acordado.
Assinalamos já que no caso das Bacia do Rio Tubarão e Complexo
Lagunar há um passivo ambiental muito significativo. Aqui, portanto, o comitê
da bacia tem como assunto prioritário a definição de um programa de metas
de despoluição, em cuja discussão e compromissos de implementação tem
que participar todos os usuários, agentes institucionais e população da bacia.
Por outro lado, o comitê está chamado a ter papel preponderante no
encaminhamento de soluções para os conflitos entre rizicultores e pescadores.
Os problemas produzidos pelo setor de mineração são, fundamentalmente,
de degradação qualitativa dos corpos de água. Portanto, um programa de metas
de despoluição e de medidas preventivas para o futuro, definidas segundo o cenário
referencial (enquadramento) aprovado, participativamente, no Comitê Tubarão,
deverá tender a resolver este problema. Há que prever, é claro, muita discussão
para estabelecer o plano de metas e, com certeza, haverá que dividir os
compromissos a serem assumidos pelos mineradores em dois grandes blocos.
Aqueles que se referem a ações no presente e no futuro; e aquelas referentes ao
passivo ambiental já existente. É conhecida a posição dos mineradores, no sentido
de considerar que a responsabilidade da degradação é, em boa medida, da União
e que, portanto, é a ela que corresponde financiar a recuperação. Se não houver
acordo a respeito do financiamento dos programas de despoluição, será impossível
estabelecer um programa realista, pois a identificação clara das fontes de
financiamento faz parte da viabilidade de qualquer projeto, programa ou plano
de metas.
Já a questão da rizicultura, como assinalado em item anterior, apresenta
três áreas de conflito. A questão da disputa pelo mesmo recurso com outros
setores que também implicam em uso consuntivo e, especialmente, entre os
diversos produtores do arroz, deverá ser resolvida através do instrumento da
outorga. É importante lembrar, neste sentido, que a outorga implica no
conhecimento das disponibilidades naturais, por uma parte, e das parcelas já
comprometidas, por outra. Isto é, a entidade outorgante, para exercer esta
função com propriedade, tem que dispor de estudos que lhe permitam conhecer
as vazões nos diferentes cursos de água da bacia; e de um cadastro de usuários
que permita saber onde, em que períodos do ano e quanto destas vazões estão
já sendo extraídas. Não pode outorgar-se direito de uso sem saber se o
correspondente curso de água oferece, ou não, as quantias requeridas. E em
caso que as ofereça, saber quais as medidas ou as obras de engenharia
necessárias para disponibilizar a água nos períodos que os usuários a requerem.
É a partir deste conhecimento objetivo que deverão ser feitas as conversações

272
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

e os acertos entre os diferentes usuários, para dirimir suas diferenças. E, no


caso de impossibilidade de atender todas as demandas na forma requerida
pelas partes, é o comitê da bacia que terá que definir as atividades a serem
prioridades, se não forem aquelas já priorizadas na lei (consumo humano,
dessedentação de animais e vazão ecológica). Tudo isto não é tarefa fácil
nem simples. Requer suporte técnico e negociação política. Mas, conforme o
princípio da subsidiaridade, tem que ser feito e decidido na própria bacia.
No caso do conflito pela deterioração qualitativa das águas, da qual
são acusados os rizicultores, suinocultores e fecularias, parece claro que um
programa de metas setoriais, acorde com o cenário referencial definido como
objetivo final pelo comitê da bacia, deveria se constituir no caminho de solução
do problema. Tampouco esta é tarefa fácil ou simples. Por uma parte, pelos
interesses econômicos em jogo. E, por outra, porque boa parte deste problema
está ligada à poluição difusa. Provavelmente haverá que estabelecer
compromissos em nível de cooperativas de produtores, pois dificilmente será
possível estabelecer as contribuições individuais dos pequenos produtores.
Além do mais, será necessário um mecanismo de fiscalização permanente
para verificação dos compromissos assumidos pelas partes. Mas, de qualquer
forma, há aqui, nos instrumentos e mecanismos definidos na lei de recursos
hídricos, um caminho para encontrar a solução do problema. Caminho que
implica num envolvimento da FATMA, EPAGRI, Núcleo de Apoio
Técnico, cooperativas, sindicatos de produtores e demais participantes
diretos no assunto.
A divergência de posições quanto ao tema da salinização implica na
necessidade urgente de estudos e levantamentos do comportamento
hidrodinâmico do complexo lagunar. Estudos específicos, como os iniciados
em 1991 pelo INPH, que permitam tomar decisões sobre a base de
conhecimentos objetivos. Certamente, é dever do Comitê da Bacia, no mínimo,
pronunciar-se sobre a prioridade dos respectivos estudos. Ainda sem recursos
financeiros próprios para administrar, o Comitê Tubarão não pode contratar
diretamente estes estudos. Mas, certamente, pode pressionar politicamente e
mobilizar a opinião pública para que as entidades de governo responsáveis
pela área disponibilizem recursos para isso.
Problemas como os apontados ao comentar o estímulo à produção
abacateira e da companhia do álcool, não são próprios do comitê de bacia.
Mas a prática do planejamento participativo poderá de auxiliar indiretamente,
para incentivar discussões mais abrangentes, visando o sucesso de iniciativas
similares no futuro.

273
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Mesmo a questão da construção ou não das barragens de controle de


enchentes planejadas pelo ex-DNOS constitui-se em tema a ser discutido em
nível do comitê. É através deste fórum que a comunidade regional deve pronunciar-
se sobre a prioridade destes empreendimentos ou de suas alternativas.
É claro que sem disponibilidade de recursos próprios será muito difícil
ao Comitê Tubarão converter em realidade as medidas e obras por ele
priorizadas. Muito deverá auxiliar neste sentido, a implementação do
instrumento da cobrança pelo uso dos recursos hídricos que, segundo a lei,
deve reverter em recursos "carimbados" para financiamento do plano de
recursos hídricos da própria bacia. Interessante é, também, observar neste
sentido que o projeto de lei 1.617/99, de criação da Agência Nacional de
Águas - ANA, recentemente submetido à apreciação do Congresso Nacional,
prevê que esta agência conte com recursos financeiros advindos da geração
hidrelétrica, que serão destinados à implantação e fortalecimento do sistema
nacional de gerenciamento dos recursos hídricos. Isto é, os comitês de bacias
poderão ter na ANA uma das possíveis fontes complementares de
financiamento do correspondente plano da bacia. De qualquer forma, a
implementação da cobrança pelo uso da água, bem finito e com valor
econômico, requererá, previamente, estudos que deverão ser amplamente
discutidos no comitê e uma campanha de esclarecimentos a respeito do caráter
desta cobrança.
Saliente-se, por outra parte, que o instrumento da cobrança, pelos seus
impactos econômicos nas atividades dos usuários, deverá provocar atitudes
mais prudentes quanto ao uso da água, tanto em termos de extração como de
uso para lançamento e diluição de esgotos e outros resíduos.

5.4 Observação sobre o Comitê Tubarão

O Comitê Tubarão, aqui referenciado, foi criado em outubro de 1997,


com base na lei estadual 9.748/94. Foi o resultado de um processo de
mobilização social liderado pela Associação de Municípios da Região de La-
guna - AMUREL, com sede em Tubarão, ancorado na conscientização a
respeito da poluição das águas na bacia. Em agosto de 1998 os participantes
no I Seminário de Recursos Hídricos da Bacia do Rio Tubarão e Complexo
Lagunar, representando mais de 50 associações e entidades regionais,
assumiram, dentre outros, os seguintes compromissos:
• "Apoiar as ações do Comitê Tubarão para a preservação do meio
ambiente e o desenvolvimento da Região Hidrográfica RH9 - do Rio

274
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

D'Una, Rio Tubarão e Complexo Lagunar, de modo a proporcionar e


garantir a qualidade das águas.
• Cumprir com as decisões do Comitê, para que sejam executados os
planos de melhoria da qualidade das águas.
• Desenvolver esforços para despoluir rios e lagoas a fim de melhorar a
produção pesqueira e a qualidade das águas a disposição da população".
Lamentavelmente, após uma notória movimentação inicial, o Comitê
Tubarão não tem conseguido responder às expectativas que gerou. Uma das
causas que explica, parcialmente, esta situação, é a ausência de regulamentação
e conseqüente falta de implementação dos instrumentos de outorga e cobrança
previstos na lei estadual. Sem o suporte do exercício do poder de outorga por
parte do estado e sem recursos próprios para contratar estudos, o comitê tem
um poder de atuação muito limitado. Mas, para o futuro imediato, há a
expectativa de aproveitar a regulamentação da lei federal 9.433/97. Por ora,
um subsídio de interesse às funções do comitê é constituído pelo estudo
"Diagnóstico dos Recursos Hídricos e Organização dos Agentes da Bacia do
Rio Tubarão"(1998), coordenado pela UNISUL na condição de Núcleo de
Apoio Técnico do Comitê Tubarão, executado com recursos do MMA/SRH e
do Estado de Santa Catarina através da Secretaria de Desenvolvimento Urbano
e Meio Ambiente - SDM.
Mesmo com as limitações apontadas, o Comitê Tubarão tem um vasto
espaço de ação em nível de coordenação e mobilização. De fato, está sendo
pressionado por segmentos da população local para assumir efetivamente, no
mínimo, a função de fórum de discussão e encaminhamento de soluções para os
problemas existentes com os recursos hídricos da bacia. Particularmente ativos têm
sido os habitantes dos municípios diretamente vinculados ao complexo lagunar.
Conforme anteriormente apontado, o complexo lagunar em pauta é
constituído por um conjunto de 8 lagoas que possuem ligação com o oceano,
sendo que as de Imaruí, Mirim e Santo Antônio, totalizando 183,9 Km2 são as
maiores delas. Como já dito inicialmente, o sistema é altamente degradado
em decorrência dos impactos causados pelas atividades mencionadas nos itens
anteriores, pela ausência de sistemas de esgotos sanitários e pelas práticas
predatórias dos pescadores, entre outros fatores. Conseqüência da degradação
tem sido uma sensível diminuição da produtividade pesqueira, especialmente
no conjunto das lagoas Imaruí, Mirim e Santo Antônio, da qual dependem
mais de 10.000 famílias da região.
Debates sobre a situação enfrentada pelo complexo lagunar têm sido
promovidos pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembléia

275
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Legislativa de SC e pela Sociedade Amigos da Lagoa do Imaruí - SALISC. É


sintomático que os representantes da população atingida estejam reivindicando
o desmembramento do Comitê Tubarão para constituir um comitê separado
que, a juízo deles, os representaria melhor. Esta atitude deveria constituir-se
num claro alerta aos dirigentes do Comitê Tubarão no sentido de retomar
uma atitude dinâmica, pró-ativa, respondendo as expectativas daqueles que
mobilizaram-se para criá-lo. Cabe salientar, por oportuno, que a situação atual
das lagoas decorre das atividades desenvolvidas em toda a bacia e que,
dificilmente, portanto, a solução dos problemas poderá equacionar-se só no
âmbito local.
Um aspecto a levar em conta, nos assuntos referentes especificamente
ao complexo lagunar, é a existência do Plano Nacional de Gerenciamento
Costeiro - PNGC, instituído mediante a lei 7.661/88. Entre outros objetivos,
a lei estabelece que o plano "visa orientar a utilização racional da zona costeira,
de forma a contribuir para elevar a qualidade de vida da população e a proteção
de seu patrimônio natural, histórico, étnico e cultural". No âmbito deste
programa nacional, o litoral catarinense foi motivo de levantamentos que
conduziram a um diagnóstico ambiental (PROGERCO, 1997). Este diagnóstico
fornece subsídios para os zoneamentos que deverão ser detalhados em nível
de municípios e para a discussão do plano estadual de gerenciamento costeiro
com os seus correspondentes instrumentos, dentre os quais o monitoramento.
Ora, nos documentos que tratam do tema, o gerenciamento costeiro é entendido
como sinônimo de planejamento e gestão integrada, descentralizada e
participativa. Portanto, a participação da comunidade é peça básica. Por outro
lado, seria absurdo imaginar um plano de gerenciamento costeiro no complexo
lagunar supondo que o seu comportamento independe do que acontece na
bacia, a montante. A própria lei 9.433/97 estabelece, entre as diretrizes para
sua implementação, "a integração da gestão das bacias hidrográficas com a
dos sistemas estuarinos e zonas costeiras" (art. 3, parágrafo VI). Neste sentido,
seria interessante pensar num colegiado representativo da população do
complexo lagunar para gerir os assuntos referentes ao gerenciamento costeiro
que, de alguma forma, fosse vinculado ao comitê de bacia. Iniciativas neste
sentido poderiam ser exploradas pelo Comitê Tubarão.

6. Conclusões

A problemática hoje existente com os recursos hídricos da bacia do


Rio Tubarão e Complexo Lagunar constitui-se num claríssimo exemplo das
relações de interdependência que existem entre a forma de praticar diversas
atividades setoriais e a disponibilidade quanti-qualitativa dos recursos hídricos.

276
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Por outro lado, a gestão destes recursos, nos moldes propiciados pela política
nacional, haverá de produzir profundos impactos na gestão das ditas atividades
setoriais, seja em função do Plano de Recursos Hídricos, a ser aprovado no
comitê da bacia, seja em função dos rebatimentos causados pelo cobrança do
uso deste recurso natural, escasso, finito e vulnerável, até agora considerado
como se infinito fosse.
Neste contexto, o Comitê Tubarão está chamado a ter um papel de
máxima relevância no desenvolvimento regional na bacia. A adoção de um
plano de despoluição dos recursos hídricos da bacia e do estabelecimento de
metas setoriais para atingí-lo deverá ter rebatimentos praticamente em todas
as atividades desenvolvidas na bacia. E o seu papel de fórum de negociações
entre usuários e agentes sociais da bacia haverá de servir para o enca-
minhamento de soluções dos diversos conflitos hoje existentes.
Mesmo num cenário pessimista, sem um plano definido no curto prazo,
a outorga e cobrança, se exercidas, de fato, pelo poder público, a partir de um
sistema de informações adequado e atualizado, constituem-se em instrumentos
de gestão com potencial para induzir mudanças nas práticas de gestão setoriais.
Em síntese, a expectativa de implementação efetiva da política nacional
dos recursos hídricos e seus efeitos indutores na política estadual de Santa
Catarina configura-se numa injeção de ânimo, pelos rebatimentos integradores
que são previstos sobre as atividades desenvolvidas no sul do estado e, em
particular, na Bacia do Rio Tubarão e Complexo Lagunar.
Bibliografia

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277
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

MINISTÉRIO DO INTERIOR/SUDESUL/ PLANISUL - “Proposta


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MINISTÉRIO DO INTERIOR/DNOS/SONDOTÉCNICA -
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da Bacia do Rio Tubarão, Santa Catarina”. Tubarão, 1976.
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1979.
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Florianópolis, 1991
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SANTA CATARINA - Diagnóstico dos Recursos Hídricos e
Organização dos Agentes da Bacia Hidrográfica do Rio Tubarão - SC, SDM/
UNISUL Tubarão, 1998.

278
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Perfil curricular dos autores

Héctor Raúl Muñoz Espinosa – hrmunoze@th.com.br – é graduado


em Ciências Físicas (U. del Norte, Chile, 1962). Hidrólogo (CEH,
Espanha, 1967). Mestre em Recursos Hídricos (IPH da UFRGS, 1972).
Especialização em Geografia/Desenvolvimento Regional (UFSC, 1993).
Exerceu funções técnicas e gerenciais nas áreas de recursos hídricos e
meio ambiente da ELETROSUL (1976-99). Consultor da UNESCO e
PNUD com missões em Brasil, Moçambique e Caribe. Foi diretor de
Gestão Ambiental e Recursos Naturais na SDM/SC e coordenador do
projeto “Administração das Bacias Hidrográficas de SC”. Atualmente é
consultor em gestão de recursos hídricos e professor na Universidade
do Sul de Santa Catarina - UNISUL.

Ismael Pedro Bortoluzzi – ismael@unisul.rct-sc.br - é licenciado


em Química (UFSM, 1971) com Especialização em Química Inorgânica
(FURB, 1976) e Mestre em Metalurgia Extrativa (Programa de Pós-
graduação em Engenharia da UFRGS, 1984). Atualmente em fase de
conclusão do doutorado na Universidade de Santiago de Compostela.
Professor e pesquisador na Universidade do Sul de Santa Catarina –
UNISUL, desde 1975. Autor de diversos estudos e trabalhos referentes
à qualidade das águas e ao meio ambiente do sul de SC. Foi coordenador
do “Diagnóstico dos recursos hídricos e organização dos agentes da bacia
do rio Tubarão, SC” (1998).

279
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

RECURSOS HÍDRICOS E DESENVOLVIMENTO URBANO

Ricardo Toledo Silva

1. Introdução

Este trabalho explora as relações entre as políticas urbana e de recursos


hídricos, com vistas à abertura de canais efetivos de cooperação e integração
entre os dois sistemas institucionais. Esta relação é particularmente importante
nos casos de bacias intensamente urbanizadas, nas quais - como no caso de
São Paulo - a interação com processos específicos de uso e ocupação do solo
urbano é determinante da sustentabilidade dos sistemas hídricos. É feita uma
análise das possíveis causas que têm determinado o distanciamento entre os
diferentes sistemas setoriais de planejamento e gestão, tanto do ponto de vista
urbano / regional, como dos recursos hídricos. Explora-se a hipótese de que
os agentes do desenvolvimento urbano e regional têm pouca motivação para
uma atitude cooperativa com o uso sustentado dos recursos hídricos devido à
dificuldade de visualização dos possíveis benefícios tangíveis que essa atitude
poderia trazer. O relacionamento de caráter estritamente normativo entre esses
sistemas institucionais não se tem mostrado eficaz, como fica claro pelos
resultados das leis de proteção a mananciais. Hoje, porém, a organização
institucional do Estado regulador pode trazer novas potencialidades para um
controle mais democrático e participativo das políticas públicas a partir de
um maior peso relativo do lado da demanda no processo decisório. Na
conclusão são mostrados alguns caminhos para uma maior articulação entre
esses sistemas, a partir de novas figuras institucionais abertas em ambos.

2. Antecedentes

A relação entre a estruturação urbana e as obras públicas de engenharia


hidráulica sempre foi, no Brasil, muito importante. São marcantes dessa
importância os projetos de Saturnino de Brito para grandes cidades brasileiras
nas primeiras décadas deste século, como por exemplo os planos de Santos,
de Recife, de Curitiba e de várias cidades médias em diferentes estados. Brito
(1918) enumerava como serviços próprios de melhoramentos municipais, em
sus planos de conjunto, os seguintes:

280
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

a) traçado da cidade, saneamento e aformoseamento;


b) edifícios públicos e particulares;
c) iluminação;
d) força e tração elétrica;
e) estradas municipais e intermunicipais;
f) navegação interior, canais;
g) exploração das quedas d'água;
h) saneamento rural, proteção das águas;
i) proteção e exploração das matas;
j) obras contra as secas e inundações.
Fora esses, ele mencionava ainda os serviços de pontes e calçamentos,
assistência pública e outros, em uma visão que remetia à competência local a
quase totalidade das estruturas definidoras dos sistemas regionais e urbanos.
Alguns dos planos de urbanismo sanitarista de início deste século exerceram
influência decisiva na estruturação futura das cidades para onde foram
concebidos, como no caso de Santos e São Vicente, cujos traçados urbanísticos
se desenvolveram a partir dos canais de drenagem. As arquiteturas
institucionais da época contemplavam uma articulação equilibrada entre os
poderes públicos investidos de autoridade sobre a organização das cidades -
os Municípios - e aqueles com responsabilidade sobre o desenvolvimento de
sistemas setoriais de infra-estrutura, em sua maioria representados por órgãos
ou entidades estaduais ou mesmo federais.
O caráter local que caracterizou a maior parte dos serviços públicos e
dos sistemas de infra-estrutura anteriores à década de 30 foi sendo rapidamente
superado pela escala cada vez mais ampla da organização dos grandes sistemas
de infra-estrutura, especialmente de energia elétrica. A expansão da base
geradora por aproveitamento hídrico teve como desdobramento a ampliação
das áreas de abrangência dos serviços, tanto no território como em sua
complexidade funcional. Os sistemas passavam a abranger não só o
fornecimento de energia elétrica, mas vários serviços públicos direta ou
indiretamente associados àquele pelo lado da demanda, como iluminação
pública transporte público urbano (bondes elétricos) ,e pelo lado da oferta, como
controle de inundações, abastecimento de água e esgotamento sanitário. Dessa
maneira, a tecnologia e a gestão dos serviços evoluíam para uma escala regional
de organização e os sistemas públicos de controle deveriam fazer o mesmo.
O decreto 24.643, de 1934 - Código das Águas -, foi a primeira grande
peça reguladora dos usos da água no Brasil, com jurisdição nacional. Os
estudos iniciais do Código remontam a 1907, quando o professor Alfredo
Valladão, a convite do Governo, apresentou à então Subcomissão do Código

281
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

das Águas da Câmara dos Deputados seu primeiro projeto sobre o assunto
(Valladão, 1933). A versão final aprovada em 1934 continha, além de
dispositivos gerais e abrangentes sobre o uso das águas, uma última parte - o
Livro III, de título Forças hidráulicas, regulamentação da indústria
hidroelétrica - que definia em detalhe condições específicas para o
aproveitamento energético das águas.
O Código das Águas constituiu um inegável avanço da regulação pública
sobre o uso das águas, especialmente ao se levar em conta que, na época em
que foi promulgado, flagrantes abusos vinham sendo praticados pelas grandes
empresas estrangeiras que exploravam os serviços públicos no Brasil em re-
gime de oligopólio. No entanto, ao aprofundar de maneira assimétrica o
detalhamento da regulamentação para uso energético das águas, o Código
contribuiu para que, na prática, a lógica energética viesse a preceder as demais
no processo decisório sobre o uso dos recursos. Dentro desse quadro, os usos
urbanos das águas e as interferências marcantes que os grandes sistemas
estruturais de aproveitamento hídrico tinham sobre as cidades tiveram um
peso cada vez menor no processo decisório real sobre as águas. Os conflitos
mais notórios entre aproveitamento energético e irrigação tiveram, em que
pese a hegemonia da lógica energética, maior destaque e importância na
regulamentação posterior ao Código das Águas do que aqueles
relacionados às cidades.
A enorme autonomia de que gozavam os concessionários de energia
elétrica na definição das grandes estruturas hidráulicas para aproveitamento
energético praticamente neutralizava a eficácia que pudessem ter os tímidos
instrumentos administrativos de política urbana com respeito à ordenação do
território das cidades. Os Municípios sempre puderam, dentro de suas
competências, agir sobre licenciamento de edificações, uso do solo e serviços
urbanos de uso local. No entanto, os instrumentos legais de que se utilizavam
eram isolados e limitados. Por outro lado, os sistemas de aproveitamento
energético das águas envolviam decisões marcantes sobre as estruturas
regionais e urbanas, dentro das competências delegáveis aos concessionários
nos termos do próprio Código das Águas, que em seu art. 151 estabelecia
que, "para executar os trabalhos definidos no contrato, bem como para explorar
a concessão", o concessionário teria os seguintes direitos:
a) utilizar os terrenos de domínio público e estabelecer as servidões
nos mesmos e através das estradas, caminhos e vias públicas, com
sujeição aos regulamentos administrativos;
b) desapropriar nos prédios particulares e nas autorizações preexistentes
os bens, inclusive as águas particulares sobre que verse a concessão
e os direitos que forem necessários, de acordo com a lei que regula

282
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

a desapropriação por utilidade pública, ficando a seu cargo a


liquidação e pagamento das indenizações;
c) estabelecer as servidões permanentes ou temporárias exigidas para
as obras hidráulicas e para o transporte em distribuição da energia
elétrica;
e) construir estradas de ferro, rodovias, linhas telefônicas ou telegráficas,
sem prejuízo de terceiros, para uso exclusivo da exploração;
f) estabelecer linhas de transmissão e de distribuição. (decreto 26.643
/34, art. 151).
O poder de fato encerrado nesses direitos derivados que se outorgava
às concessionárias de energia elétrica, em nome do objetivo de exploração do
uso energético das águas, excedia em muito, no plano dos efeitos, sua
finalidade específica.
No caso de São Paulo, até a década de 50, o poder do sistema
institucional de energia elétrica estendeu-se a múltiplos serviços - em que
pese alguns recuos importantes, como os transportes públicos urbanos
municipalizados - e seu domínio sobre as grandes obras hidráulicas da região
da capital foi o principal definidor da estrutura urbana do que viria a mais
tarde constituir a Região Metropolitana de São Paulo. O primeiro grande
reservatório de abastecimento de água de São Paulo - Guarapiranga, de 1906
- foi de fato construído com o objetivo de regularizar a vazão do Rio Pinheiros,
afluente do Tietê a montante da usina de Santana de Parnaíba. Secundariamente
teria também a finalidade de abastecimento urbano. Mais tarde, em 1927,
seria construída a barragem da Billings, que inicialmente suplementava o
papel de regularização do sistema Guarapiranga em direção à foz do Pinheiros.
Um pouco depois, o reservatório Billings passaria a deixar de cumprir esse
papel e a ter suas águas exportadas em conduto forçado para a vertente oceânica
em direção a Cubatão, aproveitando o desnível favorável ao aproveitamento
energético serra abaixo. Conforme apontado por Nucci (1993), essa derivação
de águas tornava mais agudo o problema de escassez na região de São Paulo
e que mais tarde - já em fins da década de 40 - seria agravado com a reversão
de toda a Bacia do Alto Tietê para a vertente oceânica, sempre privilegiando
o objetivo de aproveitamento energético em Cubatão. Completando essa
concepção, o Sistema Cantareira, que importa água derivada da Bacia do
Piracicaba na Região de Campinas, passaria, a partir da década de 60, a suprir
grande parte das necessidades de água para abastecimento urbano da
metrópole. Ainda que concebido para abastecimento urbano, a lógica do
Sistema Cantareira também era energética, pois as águas importadas da Bacia
do Piracicaba, depois de utilizadas no abastecimento urbano, seriam lançadas
na Bacia do Alto Tietê e agregariam uma vazão próxima a 30 m 3/s a ser

283
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

canalizada através do Pinheiros em direção à vertente oceânica. A alternativa


a esse sistema, para suprir as necessidades de abastecimento da metrópole,
seria a captação no próprio Tietê a montante da Penha, já considerada por
Saturnino de Brito em 1926 como sendo a mais econômica, a que mais
preservava a qualidade das águas do Tietê e a mais adequada a um crescimento
urbano ordenado (Nucci, 1993: 25).
São marcantes, ao longo desse predomínio da lógica energética na
estruturação hídrica de São Paulo, as ações de desenvolvimento urbano que
tiveram lugar nas faixas desapropriadas em nome da operação do Canal do
Pinheiros, dando origem aos bairros mais nobres e às zonas de expansão
urbana mais disputadas da cidade. São também marcantes os conflitos da
lógica energética de armazenar ao máximo os excedentes hídricos para suprir
as necessidades na estação seca, contra as crescentes demandas de capacidade
de reserva para controle de inundações na cidade que se urbanizava rápida e
desordenadamente. Esse processo gerou uma crescente assimetria de poder e
de eficácia dos instrumentos utilizados em seu exercício quando comparados,
por um lado, à gestão setorial dos recursos, e, por outro, à gestão de corte
urbano ou regional do conjunto de seus efeitos. Essa assimetria só viria a ser
de alguma forma reconhecida no arcabouço institucional brasileiro a partir
da instituição das regiões metropolitanas pela lei complementar 14, de 1973.
As entidades metropolitanas seriam criadas para organizar as políticas e os
serviços de interesse comum, para cuja harmonização os Municípios vinham
se mostrando incapazes.
É também importante registrar que, nessa época, a hegemonia da lógica
energética na gestão dos recursos hídricos começaria a ser também questionada
em vários foros profissionais. Em São Paulo já se havia instituído, desde
início da década de 50 o DAEE - Departamento de Águas e Energia Elétrica,
com uma visão de aproveitamento múltiplo dos recursos. Os problemas de
irrigação, drenagem e abastecimento urbano no Estado se agravam e a entidade,
que em seus primeiros anos de funcionamento havia se concentrado em formar
quadros, passaria a ter uma atitude cada vez mais pró-ativa. Na esfera federal,
a criação do Plano Nacional de Saneamento Básico - Planasa, como principal
programa do Sistema Financeiro do Saneamento, promoveria a reestruturação
dos serviços de água e esgoto em um sistema de grandes companhias estaduais,
tornando-os interlocutores de peso no debate sobre o uso da água.
No plano da integração com as políticas urbanas, entretanto, essa
reestruturação dos serviços públicos em grandes sistemas nacionais liderados
por empresas estatais - modelo inspirado na reforma administrativa do decreto-
lei 200 - não contribuiria para melhorar o quadro de descontrole. Ao contrário,
a maximização da eficiência pela lógica de cada setor e a escala cada vez

284
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

mais abrangente de suas organizações territoriais tornaram os interlocutores


locais ainda mais desaparelhados para fazer valer seus planos específicos
diante das ambiciosas metas setoriais. As entidades metropolitanas criadas
pela lei complementar 14, que teriam essa função coordenadora no âmbito
das principais concentrações urbanas, que então já se mostravam extremamente
complexas, não conseguiriam de fato exercê-la.
Uma série de razões pode ser evocada para explicar a incapacidade das
entidades metropolitanas em exercer o papel de coordenação ampla para que
foram criadas. Cada um dos casos tem particularidades próprias e seria
incorreto afirmar que as entidades metropolitanas implicaram em fracasso
completo. De maneira geral, os problemas das entidades metropolitanas
referem-se à sustentação política de suas ações, uma vez que da forma como
criadas ficaram identificadas muito mais como parte da estrutura do Governo
estadual do que como entidades de ação administrativa cooperada entre o
próprio estado e os Municípios integrantes da Região Metropolitana. Outro
problema comum a todas é sua instituição na forma de entidades pára-estatais
de direito privado, incompetentes para assumir funções públicas inerentes ao
poder concedente de serviços comuns para as quais, em teoria, estariam
capacitadas em nome de suas funções originais de coordenação. Não obstante,
registraram-se avanços nas capacidades de documentação, mapeamento e
articulação legal e operacional de políticas específicas e, no caso de São Paulo,
na proposta de uma legislação pioneira de proteção aos mananciais. Esta,
ainda que tenha tido problemas em sua aplicação, teve o mérito de estabelecer
os princípios de uma gestão ambiental estratégica sobre diferentes políticas
urbanas e setoriais, com vistas à sustentabilidade de longo prazo dos recursos
hídricos para abastecimento metropolitano. Outras entidades metropolitanas
e o Governo do Distrito Federal também estabeleceram normas restritivas à
expansão urbana em áreas de proteção a mananciais de água, em que pese
problemas generalizados na aplicação das mesmas.

3. Aberturas institucionais atuais

Hoje, as figuras de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e


micro-regiões estabelecidas pela Constituição federal de 1988 e a instituição
da Política Nacional de Recursos Hídricos, acompanhada pela criação do
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos nos termos da lei
federal 9.433 de 1997, abrem novos caminhos institucionais para a articulação
entre as políticas de recursos hídricos e de desenvolvimento urbano, em
princípio mais adequados que as figuras autoritárias e fortemente setoriais do
modelo precedente.

285
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

No entanto, mais do que no modelo anterior, é necessária a organização


ativa da sociedade em torno dos objetivos de um desenvolvimento urbano
sustentado, criando motivações reais a uma atitude cooperativa por parte dos
diferentes agentes envolvidos. O controle social das políticas públicas em
geral, no modelo de oferta estatal que hoje mostra-se superado, era quase que
exclusivamente centrado na estrutura decisória da oferta, na qual o Estado
era automaticamente identificado como único e legítimo representante do
interesse público. Hoje esta identidade já não é automática e os vários interesses
dos grupos sociais afetados pelas políticas públicas devem ser clara e
diretamente representados nos foros de decisão. O Estado regulador
contemporâneo, ao não dominar mais os movimentos da oferta pela via do
financiamento estatal direto, cria um relativo enfraquecimento do lado da
oferta diante do lado da demanda e isso abre, para o segundo, um maior espaço
no processo decisório dessas políticas (ver Guy e Marvin, 1996).
No Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos previsto
na lei federal 9.433 de 1997, as figuras dos comitês de bacias hidrográficas
refletem essa abertura para um novo alinhamento dos agentes envolvidos nas
políticas públicas, com maior espaço relativo para o lado da demanda. Há
que se recordar, porém, que dentro do próprio lado da demanda mantém
assimetrias importantes no que respeita a força relativa dos agentes
representados - por exemplo, grandes consumidores x usuários de baixa renda
- e que o espaço institucional aberto representa apenas um potencial de
participação. Se este potencial não for aproveitado e os agentes da sociedade
civil não assumirem uma atitude de participação ativa, o controle social não
terá lugar e, nesse caso, o modelo contemporâneo poderá resultar mais excludente
que o anterior.
Do ponto de vista da organização da política urbana, não se verificou
até o momento o mesmo progresso institucional do sistema de recursos
hídricos. A Constituição federal estabeleceu os princípios da política urbana
e as figuras inovadoras de regionalização já citadas, ampliando as competências
dos Estados federados e dos Municípios. No entanto, a legislação
complementar federal relativa aos instrumentos da política urbana não foi até
hoje aprovada, em que pese o primeiro projeto de lei sobre a matéria ter sido
apresentado anteriormente à promulgação da Constituição federal, em 1983
(o PL 775 da Câmara dos Deputados). Em que pese a ausência de um arcabouço
normativo nacional, várias iniciativas de Estados e Municípios já progrediram
no sentido de criar entidades administrativas metropolitanas, de aglomeração
urbana ou de micro-regiões, em muitos casos pautadas por dispositivos das
constituições estaduais que prevêem estruturas decisórias mais democráticas
e equilibradas no que respeita a participação dos Municípios.

286
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

No debate que se abre hoje acerca dos planos de bacia em áreas


intensamente urbanizadas, é possível antever perspectivas concretas de uma
articulação entre os processos decisórios de política de recursos hídricos e de
desenvolvimento urbano.

4. Principais interações

A estruturação dos planos de bacia hidrográfica no Estado de São Paulo


tem evidenciado de forma crescente as interações entre os processos de
desenvolvimento urbano e de gestão dos recursos hídricos. Em estudo recente
desenvolvido por pesquisadores da Universidade de São Paulo para o Comitê
da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, várias interações importantes emergiram,
a começar pela própria interpretação de informações demográficas. A seguir
são relatadas algumas delas, não tanto pelo interesse do caso em si mesmo,
mas pela aproximação das lógicas de gestão urbana e de recursos hídricos.
É fato conhecido o declínio das taxas de crescimento demográfico na
Região Metropolitana de São Paulo a partir da década de 80. As taxas médias
de crescimento são relativamente baixas e em si mesmas sugeririam que os
principais processos de degradação dos mananciais de superfície, na periferia
geográfica da Região, estariam também em declínio. Uma análise mais
detalhada dos movimentos demográficos, entretanto, mostra que as taxas
médias relativamente baixas resultam da combinação de decréscimos absolutos
de população em áreas centrais mais nobres com altas taxas de crescimento
localizadas nos bairros periféricos de menor renda. Na Figura 1, observa-se a
localização relativa do crescimento.
A distribuição da renda é mostrada na Figura 2, evidenciando-se a
concentração de pobreza nos bairros periféricos. A distribuição do emprego -
medido em postos de trabalho por 100 habitantes - segue tendência inversa à
da renda, no sentido de que as oportunidades de emprego concentram-se
próximas aos locais de habitação das faixas de renda média e alta (Figura 3).
Uma série de elementos de dinâmica urbana pode ser detectada a partir
da análise dessas informações. Primeiro, que o processo de expansão da
mancha urbana se dá a partir de um movimento centrífugo da população de
menor renda, agravando as difíceis condições de expansão dos serviços urbanos
para localizações cada vez mais distantes. Segundo, que o padrão de
localização relativa do emprego obriga a uma grande mobilidade da população
de menor renda em busca do trabalho, forçando uma necessidade de ampliação
da oferta do sistema viário e de transportes. Essas duas tendências combinadas

287
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Figura 1: Região Metropolitana de São Paulo. Crescimento demográfico 1991-96.

Fonte: IBGE. Contagem de População, 1996.

Figura 2: Região Metropolitana de São Paulo. Distribuição de Renda.

Fonte: Metrô - SP. Pesquisa de Origem e Destino, 1997.

Figura 3: Região Metropolitana de São Paulo. Distribuição do Emprego.

Fonte: Metrô - SP. Pesquisa de Origem e Destino, 1997.

288
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

contrastam com o padrão de crescimento suburbano de grandes cidades


americanas e de algumas européias, nas quais se observa a formação de novos
centros de localização periférica, com relativa autonomia no que respeita a
oferta de empregos. O relativo decréscimo da população em áreas centrais,
associado à localização predominantemente central dos novos empreendimentos
imobiliários licenciados pela prefeitura, revela uma outra face perversa do
crescimento metropolitano: as novas áreas construídas pelo mercado
imobiliário destinam-se basicamente à modernização e substituição do estoque
construído existente para os estratos de renda mais alta , enquanto a enorme
expansão periférica que ocorre sobre as áreas de proteção a mananciais se dá
de forma espontânea, com construções que não atendem as posturas
urbanísticas e de edificações válidas nas áreas centrais. À irregularidade da
ocupação de área protegida soma-se a precariedade dos padrões de ocupação
urbana e de edificação, resultando em ocupações extremamente agressivas -
do ponto de vista ambiental - aos mananciais metropolitanos.
Não se trata apenas da poluição concentrada devido às cargas de esgoto
lançadas aos mananciais, mas principalmente dos processos de poluição difusa
associados à exposição descontrolada de solos de alteração - tanto em obras
viárias como de edificações - e à expansão desordenada de um modelo de
transporte sobre pneus que satura todo o sistema viário da metrópole e
reproduz, para cada vez mais longe, o mesmo padrão caótico de expansão da
malha urbana. Cabe questionar, diante dessas evidências, a eficácia da
legislação restritiva à ocupação de mananciais. A expansão periférica da cidade
ocorre porque as áreas mais centrais são objeto de disputa acirrada entre os
diferentes segmentos do capital imobiliário, levando a uma escalada de preços
de terreno. É inviável para uma família pobre comprar ou alugar uma habitação
nas maioria da áreas urbanas regulares da metrópole. Por outro lado, a
irregularidade da ocupação da zona protegida dá origem a uma série de
precariedades que ameaçam ainda mais o sistema ambiental. A saída está
provavelmente na formulação de um novo pacto social urbano, dentro do
qual se reconheçam formas adequadas de urbanização nas zonas protegidas e
se criem estímulos à descompressão da demanda habitacional.
A nova legislação de proteção e recuperação dos mananciais do Estado
de São Paulo (lei estadual 8.966/97) abre caminho para esse novo pacto e é
consentânea com a forma de organização do sistema institucional de recursos
hídricos no que respeita a participação dos municípios e de entidades da
sociedade civil no processo de gestão de cada sub-bacia. O sistema de
planejamento e gestão previsto naquela lei privilegia as Áreas de Proteção e
Recuperação dos Mananciais - APRM como unidades de gestão e as vincula
ao Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos - SIGRH, "...

289
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

garantida a articulação com os Sistemas de Meio Ambiente e Desenvolvimento


Regional" (art. 5o).
Dentro desse arcabouço institucional é possível redirecionar e integrar
políticas-chave como habitação, saneamento, sistema viário e transporte
urbano, a partir de uma avaliação ambiental ampla de seus impactos,
revalorizando o papel da gestão metropolitana. As interferências são muitas
e, para ficar nas mais evidentes, relacionamos as que seguem:
• Concentração de população (habitação informal) e poluição
concentrada e difusa sobre os mananciais de superfície por força da
expulsão das áreas centrais mais nobres;
• Padrões urbanísticos e normas de edificações voltados à absorção de
águas pluviais;
• Avenidas de fundo de vale e aumento de áreas sujeitas a inundações;
• Lixo e suas interferências sobre os serviços de drenagem e de
saneamento básico;
• Edificações (posturas) e padrões de consumo de água de abastecimento
público;
• Transporte urbano de massa (sobre trilhos ou corredores fechados de
ônibus) com elementos estruturantes de acesso e expansão, em
contraposição à simples expansão da malha viária;
• Inibição de obras viárias em áreas de expansão periférica, inclusive
mediante oferta alternativa de braços de transporte de massa;
• Incentivo ao adensamento de áreas centrais como descompressão de
demanda à expansão periférica;
• Expansão descontrolada da mancha urbana e baixa pressão do sistema
de abastecimento de água nas periferias, potencializando ocorrências
de contaminação cruzada;
• Legislação urbanística restritiva e expulsão da população pobre para
as periferias.
As interferências exemplificadas mostram casos de efeitos positivos
ou negativos, resultados de processos espontâneos ou induzidos. Não importa
muito neste momento classificá-las, mas indicar que existem e que envolvem
esferas de decisão diferenciadas. Muitas das ações de âmbito metropolitano
implicam superposição com competências dos Municípios e por isso é
necessário que se criem condições de cooperação ativa entre os agentes do
processo. A simples imposição normativa de limites tem se mostrado pouco
eficaz porque a fiscalização não é e nunca será suficiente para obrigar o
cumprimento da lei quando os benefícios relativos ao custo da restrição não
forem minimamente apropriáveis pelos que pagam esse custo.

290
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

5. Conclusões. Perspectivas de uma nova cooperação

A evolução mais recente do sistema normativo em todo o mundo tem


acolhido novas formas de cooperação que incluem a participação direta de
entidades representativas dos agentes envolvidos. O sistema de gestão dos
recursos hídricos, da forma como conceituado hoje no Brasil, já contempla
essa possibilidade e o sistema de gestão urbana poderá vir a fazê-lo.
Não se trata de reeditar o laissez-faire, como em muitas das formulações
institucionais pós-90, que enxergam no mercado virtudes redistributivas e de
justiça social jamais demonstradas. Trata-se de reconhecer claramente a
existência de interesses conflitantes e de abrir oportunidades para o debate
aberto dos mesmos, com vistas a soluções de compromisso que todos
respeitem. A regulação ambiental baseada exclusivamente no jogo de mercado
é inviável porque, embora os efeitos conjuntos dos processos envolvidos
afetem a cada membro da coletividade, não existe benefício individualmente
tangível advindo da atitude de poupar o ambiente (ver Viscusi et al., 1995).
Por outro lado, a simples negação da existência de interesses conflitantes
mediante a imposição de normas pouco realistas de controle ambiental leva a
um estado generalizado de desobediência, em alguns casos mais deletério ao
ambiente que se quer preservar do que a própria ausência de normas.
A experiência já acumulada no Brasil em gestão urbana e de recursos
hídricos permite visualizar as perspectivas de uma nova cooperação
institucional que venha a capitalizar os acertos e a evitar os erros do passado.
O excessivo formalismo e a dualidade das relações entre Estado federado e
Município acabaram por criar impasses de difícil resolução no manejo dos
sistemas ambientais em escala urbana. A existência da norma mais ampla é
por si mesma indicadora de que o equilíbrio ótimo para preservação ou
aproveitamento de recursos naturais, do ponto de vista do conjunto, não reflete
necessariamente a soma dos ótimos de cada uma das partes - os Municípios.
Como os processos decisórios são baseados em uma relação dual entre as
esferas envolvidas, freqüentemente chega-se a impasses insolúveis.
Por exemplo, na definição de áreas de expansão urbana para ocupação
habitacional de baixa renda, é do maior interesse de cada Município promover
a ocupação das áreas mais periféricas e de menor preço, a despeito de estarem
ou não contidas em zona de proteção ambiental de jurisdição metropolitana
ou regional. Nesse sentido, não existe benefício internalizado pelo Município
para inibir a ocupação. A eventual imposição de penalidades aos Municípios
não conformes é dificultada pela deficiência da fiscalização e apuração de
responsabilidades objetivas, a par de sua ineficácia quanto à possível reversão
dos processos de ocupação não conforme.

291
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

No novo arcabouço institucional que se venha a criar com participação


ativa de entidades da sociedade civil, os impasses poderão ser resolvidos
exatamente pela presença da terceira parte, que além de desempatar os conflitos
poderá exercer, juntamente com a outra parte vencedora, a fiscalização sobre
a efetiva observância do acordado por todos, inclusive os que foram voto
vencido. Isto não significa que cada uma das partes do sistema tripartite seja
internamente uniforme. Cada uma delas tende a refletir suas divergências
internas e estas tenderão a ser grandes entre as entidades que vierem a formar
a parte da sociedade civil. Longe de ser um inconveniente, esta pluralidade é
a garantia de estabilidade para as políticas que venham a emergir desses foros.
A abertura do sistema institucional de recursos hídricos a essa formação tri-
partite é inovadora e alinhada com um novo papel das organizações da
sociedade civil nas políticas públicas. O sistema institucional de política ur-
bana no Brasil, ainda em muito influenciado pelos instrumentos de
planejamento e controle do Estado desenvolvimentista, poderá ganhar nova
vida em uma associação com o de recursos hídricos. Reciprocamente, este,
ainda em fase de estruturação, poderá abeberar-se da experiência acumulada
na aplicação dos instrumentos de política urbana, que, a despeito das muitas
frustrações sofridas em seu percurso, nem de longe correspondem ao fracasso
absoluto que os arautos da "desregulamentação" pretendem ter havido.

Bibliografia

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de 1934”. Decreta o Código de Águas.
BRASIL, República Federativa do. - “Lei 9.433, de 8 de janeiro de
1997”.
BRITO, F.S.R. (1918) - “Notas para o Congresso dos Prefeitos de
Pernambuco”. In: Brito, F.S.R (1944), Obras Completas, vol. XX, Urbanismo.
Imprensa Nacional, Rio de Janeiro.
GUY, S.; MARVIN, S. (1996) - “Transforming urban infrastructure
provision - the emerging logic of demand side management”. Policy Studies,
17, 2, 137-147.
NUCCI, N.L.R. (1993) - “Aproveitamento dos Recursos Hídricos na
Região Metropolitana de São Paulo”. In: São Paulo (Estado), Secretaria do
Meio Ambiente, Política e Gestão dos Recursos Hídricos no Estado de São
Paulo. Série Seminários e Debates. Secretaria do Meio Ambiente,
Coordenadoria de Educação Ambiental. São Paulo.

292
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

SÃO PAULO, Estado - “Lei Estadual 9.866/97”. Diretizes e Normas


para a proteção e recuperação das bacias hidrográficas dos mananciais de
interesse regional do Estado de São Paulo.
VALLADÃO, A. (1933) - “Exposição de motivos apresentada pelo
professor Alfredo Valladão justificando o anteprojeto que organizou para
exame da Subcomissão do Código das Águas”. Diário Oficial da União,
28.08.1933.
VISCUSI, W.K.; VERNON, J.M.; HARRINGTON JR., J.E. (1995) -
“Economics of regulation and antitrust”. The MIT Press. Cambridge, Massa-
chusetts.

Perfil curricular do autor

Ricardo Toledo Silva – ritsilva@usp.br – é arquiteto, Mestre, Doutor


e Livre Docente pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Pós-graduado pelo Politecnico di Torino (Itália) e pelo Bouwcentrum
(Holanda). Professor Associado da FAUUSP e Coordenador do Núcleo
de Pesquisa em Informações Urbanas da USP. Tem coordenado convênios
de pesquisa com a União federal na área de saneamento e assessorado
entidades federais, estaduais e municipais em política e serviços urbanos.
Foi pesquisador da Divisão de Edificações do IPT (São Paulo), Secretário
de Desenvolvimento Urbano do Ministério da Habitação, Urbanismo e
Meio Ambiente e Secretário-Geral Adjunto do Ministério da Habitação
e do Bem-Estar Social.

293
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

GESTÃO DA DRENAGEM URBANA

Rubens Terra Barth

1. Introdução

Este artigo apresenta alguns conceitos de medidas de controle,


planejamento e do estágio atual da drenagem, incluindo recentes avanços da
área, com o intuito de evidenciar formas de melhoria da gestão da drenagem
urbana, entendendo-se gestão de uma forma ampla, envolvendo, além dos
aspectos físicos, os legais, os institucionais e econômico-financeiros.
Apresentam-se, inicialmente, as características principais das medidas
de controle usuais na drenagem urbana, identificando os mecanismos de
gerenciamento que podem orientar a aplicação de cada uma destas medidas.
Comentam-se, a seguir, algumas das características do estágio atual da
drenagem urbana em grandes cidades, tomando-se com exemplo o caso da
Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), onde existem sérios problemas
de inundações, identificando as principais deficiências encontradas. Os
recentes avanços no tratamento dos conceitos de macrodrenagem na RMSP
também são apresentados, uma vez que representaram uma mudança na forma
de encarar os problema da drenagem.
São apresentados, então, os conceitos principais dos planos diretores
de drenagem urbana, que são mecanismos da gestão da drenagem, como
também são apresentados os escopos de dois planos diretores recentes e
comentadas algumas de suas características nas áreas de elaboração e
implementação, com o intuito de identificar sugestões para medidas de
aprimoramento das deficiências e limitações encontradas.
Ao final do artigo são apresentadas sugestões para a melhoria do
desempenho da drenagem urbana, em consonância com a gestão dos recursos
hídricos prevista na lei 9.433/97 .

2. Medidas de controle na drenagem urbana

As medidas de controle das águas superficiais de uma bacia hidrográfica


na drenagem urbana são aquelas que pretendem conciliar as necessidades de

294
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

expansão urbana com as funções que os dispositivos naturais de uma bacia


exercem no ciclo hidrológico, ou seja, a capacidade de transporte e
armazenamento dos canais, a capacidade de retenção das depressões, a
permeabilidade do solo e a cobertura vegetal (infiltração e retenção), o
armazenamento das várzeas, etc.
São utilizadas nesse controle um sem-número de medidas para resolver
e prevenir os problemas de qualidade e quantidade das águas superficiais. O
desafio principal é encontrar, para uma bacia hidrográfica em particular, a
melhor opção do elenco de medidas ditas estruturais e não-estruturais.
As medidas estruturais são as que, tipicamente, envolvem a execução
de estruturas públicas de grande e médio porte , dependendo de um trabalho
de planejamento de extenso a médio prazo e necessitando de projeto e
aprovação formal do Estado, Município e demais entidades envolvidas. Essas
medidas dependem da contratação de empreiteiras e requerem quantias de
moderadas a grandes, além do estabelecimento de procedimentos de
manutenção e a alocação de verbas para tal.
As medidas não-estruturais, usualmente, não envolvem grandes
estruturas, podendo ser tomadas rapidamente, por indivíduos ou por
associações e entidades privadas e, por vezes, requerem pequeno
investimento. Por outro lado, o controle do uso do solo, que é uma das medidas
não-estruturais mais importantes, depende de legislação e de fixação de normas
e critérios técnicos sobre construção de edificações, uso e parcelamento do
solo urbano.
Em geral, as medidas não-estruturais tendem a ser mais adequadas para
as áreas não desenvolvidas e as estruturais a áreas já urbanizadas. Ou seja, as
não-estruturais tendem a ser preventivas, enquanto as estruturais tendem a
ser mitigatórias.
Nas Tabelas 2.1 e 2.2, a seguir, são indicadas as principais medidas
estruturais e não-estruturais a serem consideradas.

295
Tabela 2.1 - Medidas estruturais típicas, conceitos adaptados de Walech (1986) e Maksimovic (1999)

296
Desafios da Lei de Águas de 1997
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Tabela 2.2 - Medidas não estruturais típicas. Conceitos adaptados de Walech (1986) e Maksimovic (1999)

Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:


Interfaces Setoriais
297
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
Tabela 2.2 - Medidas não-estruturais típicas ( Continuação )

298
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

3. Macrodrenagem da RMSP

Em sua vivência profissional, o autor teve a oportunidade de constatar


o estado em que se encontram a maioria das bacias dos córregos urbanos na
Região Metropolitana de São Paulo (RMSP).
Na Tabela 3.1, a seguir, tem-se uma compilação dos problemas mais
freqüentemente encontrados em bacias urbanizadas e em desenvolvimento.
Tabela 3.1 - Problemas em bacias urbanas

Permeia este quadro geral de falta de coordenação, de planejamento e


aplicação de conceitos equivocados de tratamento da drenagem urbana, uma
falta de investimentos crônica para planejamento, projeto e implantação de
medidas estruturais e não estruturais.
Este quadro geral das sub-bacias dos afluentes dos principais cursos
d’água conduziu a inundações sistemáticas na Região Metropolitana de São
Paulo, em especial dos seus cursos d’água mais importantes.
De acordo com levantamentos da Emplasa, em 1983, por conta dessas
deficiências, ocorreram na cidade de São Paulo 420 pontos de inundação,
atingindo uma área de 22,7 km2 e 76.400 habitantes. Em 1997, de acordo com
levantamentos do IPT, existiam disseminados na mancha urbana cerca de
500 pontos de inundação.
Nos últimos anos tem-se disseminado no meio técnico a idéia de que é
necessária uma nova mentalidade de combate as inundações.
Na Tabela 3.2, a seguir, são apresentadas as principais conclusões de
três documentos elaborados por entidades distintas, o que pode ser encarado
como o culminar de um processo de amadurecimento no tratamento da
drenagem urbana na RMSP.

299
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Tabela 3.2 - Comparação dos Conceitos

O documento produzido sob os auspícios da Câmara Municipal de São


Paulo foi elaborado no período de abril a setembro de 1995, a partir de
seminários, para os quais foram convidados especialistas das áreas de
Urbanismo, Drenagem Urbana, Legislação, Defesa Civil, o público em
geral e presidentes de associações de bairro. Esse documento tem um
caráter essencialmente informativo e apresenta o consenso entre os
participantes acerca das causas, conseqüências e medidas mitigadoras
necessárias ao combate às inundações da RMSP.

300
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

O relatório da Prefeitura de São Paulo foi elaborado no período de


dezembro de 1994 a fevereiro de 1996, por um grupo inter-secretarial,
coordenado pela Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, a partir de uma
decisão do prefeito em aderir aos conceitos de desenvolvimento sustentado,
advindos da ECO 92, ocorrida no Fórum Global, realizado em Manchester,
Inglaterra, em 1994. Esse documento aborda o Desenvolvimento Urbano e
Social, a Qualidade Ambiental e a Estrutura Econômica e Administrativa do
Município. A questão da Drenagem Urbana foi inserida no item da qualidade
ambiental e o tratamento dado à questão foi no sentido de identificar as causas,
os objetivos a serem alcançados e propor ações de combate às inundações.
Os documentos do DAEE analisados foram elaborados no período de
outubro de 1993 a dezembro de 1995 por um consórcio de empresas de
consultoria de engenharia e é mais geral, denominando-se: Plano Integrado
de Aproveitamento e Controle dos Recursos Hídricos das Bacias Alto Tietê,
Piracicaba e Baixada Santista (HIDROPLAN). Esse plano teve por objetivo
identificar os usos da água, os conflitos existentes e propor uma série de
medidas estruturais e não-estruturais para contornar os problemas e atender
as demandas. Um dos problemas apontados diz respeito às inundações da
RMSP. Neste aspecto, constam do plano um diagnóstico das causas das
inundações, a proposição de obras mitigatórias e a consecução de uma série
de medidas não-estruturais.
Tem-se, a seguir, uma comparação dos aspectos considerados mais
relevantes desses trabalhos.
O conjunto de medidas propostas nos três documentos representa uma
mudança de ênfase, passando-se de um conjunto de medidas estruturais,
mitigadoras, para um enfoque que considera um amplo leque de medidas
estruturais e não-estruturais.
Algumas das medidas previstas são importantes na gestão dos recursos
hídricos. São elas:
• controle do uso do solo na bacia hidrográfica como um todo, uma vez
que os principais problemas da drenagem urbana estão associados à
forma descontrolada com que foi feita a ocupação do solo, causando as
erosões e conseqüente assoreamento das várzeas dos rios e córregos
na RMSP, e os problemas graves de inundação nas suas várzeas
invadidas;
• a necessidade de modificar a forma de encarar a drenagem urbana,
considerando um amplo leque de medidas não somente estruturais no

301
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

combate às inundações, o que significa que as medidas que vêm sendo


tomadas para o combate às inundações (em geral a simples canalização),
têm sido, em alguma medida, ineficazes;
• a necessidade de realização de testes em bacias-piloto para
verificar a eficiência de medidas que preservem ou aumentem a
capacidade de retenção, infiltração e armazenamento de águas pluviais,
tais como poços filtrantes, reservatórios de retenção e cisternas, pisos
e pavimentos permeáveis, etc., o que contribuiria para o estabelecimento
de critérios necessários à elaboração de dispositivos legais e
regulamentos tais como desincentivos à impermeabilização do solo e
incentivos tributários para manutenção de áreas permeáveis;
• a questão principal levantada com relação à legislação em vigor,
no que concerne ao disciplinamento do uso e ocupação do solo e
preservação das várzeas e das áreas de preservação permanente ao longo
dos cursos d’água, diz respeito à sua aplicabilidade devido às
implicações sociais extremamente graves (além da modernização e
adequação da legislação, para evitar ocupação desordenada e irracional
das áreas sujeitas a inundação que hoje ocorre, são necessárias medidas
para resolver os problemas de habitação e a questão social associada às
invasões das várzeas).
Uma última questão e talvez a mais importante diz respeito à
enorme demanda por medidas de mitigação, requerendo grandes investimentos.
Além das verbas obtidas através de financiamento, é necessário obter uma
fonte de receita que cubra os custos das medidas de mitigação. A cobrança
pelo uso da drenagem urbana parece ser, portanto, uma medida necessária.

4. Planejamento. Planos de macrodrenagem

Como conseqüência natural do processo de conscientização descrito


no item anterior, conduziu-se um processo de planejamento da drenagem ur-
bana, que é descrito a seguir.
Algumas observações correlacionando a inter-relação do planejamento
urbano, dos recursos hídricos e da drenagem são oportunas. Segundo Krafta
(1999), os modelos de decisão emergentes na gestão urbana indicam a direção
da pluralidade de agentes decisórios, com o enfraquecimento do Estado como
agente condutor das políticas urbanas, tornando os planos elaborados pelo
Estado, com caráter normativo, mais ou menos rígidos, francamente incapazes
em operar no contexto político atual.

302
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Esta também é a visão do planejamento dos recursos hídricos presente


na lei 9.433/97, que é fruto de um intenso debate e amadurecimento de
princípios de planejamento, que coincidem com tendências da prática
internacional, deixando a entender que estamos no caminho certo.
Na Tabela 4.1, a seguir, é traçado um paralelo entre os vários tipos de
planejamento.
Tabela 4.1 - Comparação do Planejamento Sectorial

Integrando a gestão da drenagem urbana, os seus planos diretores


devem constituir-se em um conjunto abrangente de medidas estruturais e
não-estruturais, com a finalidade de combater e mitigar os problemas causados
pelas inundações em uma determinada área.

4.1 Princípios para a elaboração de planos diretores de drenagem


urbana

Planos diretores de drenagem urbana devem ser necessariamente


elaborados sob medida para uma determinada bacia hidrográfica, mas a
experiência demonstrou que, se forem seguidos alguns princípios
fundamentais, as chances de sucesso aumentam significativamente. A seguir,
são apresentados alguns dos pontos fundamentais para a elaboração de um
plano diretor de drenagem urbana.

303
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

A unidade de planejamento a ser adotada é a bacia hidrográfica, que é


a unidade afetada pelo ciclo hidrológico. No caso de se ter uma bacia
abrangendo vários Municípios, admite-se subdividi-la, desde que as medidas
de planejamento não afetem a bacia do outro Município a jusante ou a montante
da área de interesse. Esse princípio está firmemente estabelecido na Política
Nacional de Recursos Hídricos.
As condições de escoamento dos corpos d’água receptores, dos pontos
de vista de quantidade e qualidade, dependem grandemente do uso do solo,
já que, para uma dada precipitação, a taxa do escoamento superficial e a
contribuição concentrada e difusa de poluentes estão intrinsecamente ligadas
ao seu uso. As condições de erosão também dependem grandemente das
condições do uso do solo, bem como a sua conseqüência, o assoreamento das
áreas baixas, em especial dos rios, córregos, canais, galerias, etc. Portanto, a
consideração das características atuais do uso do solo e a orientação para a
sua ocupação futura devem ser um princípio de fundamental importância
na elaboração de planos diretores de drenagem urbana.
Durante o processo de elaboração do plano, deve-se prever uma intensa
interação com a comunidade para se obter apoio para a implementação das
medidas propostas, pois a experiência tem demonstrado que um plano diretor
que não prevê essa interação não obtém apoio para a sua implementação.
Esse princípio, de participação de todos os atores interessados, está
consubstanciado na formação dos Comitês de Bacia.
As soluções a serem adotadas nos planos diretores devem incorporar
os recentes avanços da drenagem urbana moderna, considerando não só os
aspectos quantitativos, mas também os de qualidade de água.
Para possibilitar a utilização de medidas não-estruturais e não-
convencionais no Brasil, deve ser feita uma capacitação tecnológica séria e a
adaptação das medidas às condições brasileiras. Essas medidas, apesar de
constarem de inúmeros textos técnicos e, mesmo, de planos, não têm sido
adotadas, por deficiências de comunicação e, fundamentalmente, por serem
consideradas medidas de segunda ordem, uma vez que existe uma enorme
demanda reprimida das medidas estruturais.
É fundamental, portanto, que sejam alocados recursos necessários ao
desenvolvimento de tecnologia autóctone, para adequar as medidas não-
estruturais e não-usuais à realidade brasileira, identificando a sua eficiência e
custos de implantação e manutenção. Estes fatores constituem uma necessidade
para se passar, efetivamente, da teoria à pratica.

304
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

4.2 Uma visão geral dos planos diretores de drenagem urbana

Um plano diretor é composto de duas etapas básicas, que são: o processo


a ser seguido para se chegar com sucesso ao produto e o produto, isto é, o
plano diretor. O plano diretor,
propriamente dito, é composto Figura 4.1 - O Processo para a elaboração de um plano
de uma série de documentos diretor, segundo Helveg e Grigg ( 1985 ) apud Walech
contendo recomendações para a ( 1989 ).
adoção de medidas estru-turais
e não-estruturais. Também deve
fazer parte um plano de
implementação, definindo quem
são os res-ponsáveis, como e
quando os elementos devem ser
imple-mentados.
Além de um produto úni-
co, o plano diretor deve ser
encarado como um processo,
que deve seguir uma meto-
dologia apropriada para se
chegar à consecução do plano
desejado. Na Figura 4.1, tem-
se indicado o processo de
elaboração de um plano diretor.
A formulação de alter-
nativas é o passo mais impor-
tante na elaboração de um plano
diretor. Essa fase é um esforço
criativo e sistemático, onde as
alternativas são elaboradas
conceitualmente, analisadas e,
se promissoras, desenvolvidas.
As alternativas estudadas
devem ser: conceitualmente
consistentes (atendem aos
objetivos); tecnicamente exe-
qüíveis (deve ser efetuado um
pré-dimensionamento);
economicamente viáveis (deve

305
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

ser verificado se os benefícios superam os custos); ambientalmente aceitáveis


(devem ser determinados os impactos negativos e positivos); viáveis
financeiramente (deve ser verificado se a alternativa pode vir a ser
financiada); legalmente aceitáveis e adminis-trativamente possíveis (deve ser
verificado se existem barreiras legais ou administrativas intransponíveis);
politicamente aceitáveis (deve ser avaliado o seu potencial de aceitabilidade
política).
Exemplos de critérios de julgamento das alternativas são: os custos
de construção; o benefício econômico líquido; a razão benefício/ custo; o
grau de prevenção dos danos; o grau de utilização da várzea; o grau de
agressividade ao meio ambiente; o grau de atendimento à comunidade; o nível
de atendimento geral dos objetivos; etc..
Os custos e benefícios são quantificados monetariamente, através do
valor de mercado dos bens e serviços relacionados a cada um. Os custos
podem ser facilmente obtidos através da quantificação das obras e serviços
envolvidos. Para a definição dos benefícios do controle das inundações é
feita uma simulação do mercado do controle das inundações. A simulação
consiste na verificação de quanto os indivíduos atingidos estariam dispostos
a pagar para prevenir os danos que as inundações provocam. Essa quantia
seria, no máximo, igual ao dano esperável na área.
A correta avaliação dos danos de uma inundação é uma tarefa que se
constitui em uma das principais dificuldades para a utilização da análise
benefício-custo no planejamento de medidas de controle de inundações. Isso
decorre do grande número de fatores que afetam os danos, cuja importância e
magnitude variam para cada área afetada, dificultando uma avaliação
abrangente e precisa de todos os danos resultantes.
Diferentes abordagens e detalhes dessa metodologia são encontradas
em James and Lee (1971), Tucci (1993) e Barth (1997). Deve-se ter em
mente que esta metodologia carece de adaptação à realidade brasileira,
sendo uma linha de pesquisa a ser desenvolvida.
Escolhida a alternativa mais apropriada, considerando entre outros os
custos e benefícios econômicos, no plano diretor deve ser indicado o que
deve ser feito, quando, quem tem a responsabilidade de o implantar e como
ele deve ser implantado, incluindo o financiamento.
De todos os passos de um plano diretor, a sua implementação é a que
traz mais incertezas. Algumas características, dentre outras, do processo de
desenvolvimento do plano, colaboram para a sua implementação. São elas: a
clareza nos objetivos e critérios; a sua qualidade técnica; o grau de

306
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

envolvimento das diversas entidades e o público conseguido durante o processo


de elaboração do plano diretor; a coordenação entre o Governo e as entidades
envolvidas, etc.

4.3 Exemplos de planos diretores de drenagem urbana

4.3.1 Plano do Município de Santo André

No Município de Santo André, o início do processo de mudança da


gestão da drenagem urbana ocorreu devido à magnitude dos problemas
existentes, ao esgotamento da capacidade de investimento da administração
direta, à necessidade de uma maior eficiência na aplicação de recursos,
integrando a drenagem ao sistema de saneamento da cidade e de criar
instrumentos e alternativas para a obtenção de recursos para implantação e
manutenção dos sistemas de drenagem.
Para conseguir equacionar os problemas existentes, foi proposta uma
mudança institucional que
destinou ao SEMASA, órgão Figura 4.2 - Principais etapas de desenvolvimento do Plano
responsável pelo saneamento Municipal de Santo André.
ambiental do Município, a
drenagem urbana, através da
lei 7.469, de 22/02/97 (Marcon,
1999).
Com essa mudança
institucional foram viabiliza-
dos os recursos para a elabo-
ração do Plano Municipal de
Drenagem do Município de
Santo André, que foi desen-
volvido em um período de
12 meses a um custo de
cerca de R$ 1 milhão, inclu-
indo o cadastramento de
todas as galerias, canais e
córregos do Município.
As atividades previs-
tas no edital foram agluti-
nadas nas etapas indicadas na

307
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Figura 4.2, encontrando-se o plano atualmente em fase de implementação.


Pode ser considerado que, em linhas gerais, o escopo proposto segue as
características previstas na elaboração de planos desta natureza, lembrando-
se ainda que foram feitas apresentações e consultas à comunidade para colher
subsídios e divulgar o plano, o que é uma das características mais importantes
para viabilizar a sua implementação.
Verificou-se no processo de diagnóstico realizado que as demandas
por medidas estruturais eram significativas e que as medidas não-estruturais,
que são medidas mais aplicáveis a áreas com desenvolvimento urbano
incipiente, teriam aplicação limitada, já que somente 15% da área das bacias
hidrográficas estudadas tem alguma área livre e várzeas desocupadas.
Para a avaliação econômica simplificada das alternativas de mitigação
das inundações consideradas utilizou-se a fórmula de James, apud Tucci (1993).
Em vários dos casos analisados os danos evitados justificavam medidas de proteção
para uma vazão de 10 anos de período de retorno, comparável com um plano
desenvolvido para a região central da cidade de Fort Collins (1993), EUA.
Entre as atividades não-estruturais previstas no plano destacam-se: a
preservação das várzeas ainda existentes dos córregos, o controle da erosão
de encostas e assoreamento dos córregos e a educação ambiental.Com relação
a este último item, durante o ano de 1999, realizou-se um trabalho de educação
ambiental nas escolas de segundo grau, com enfoque em drenagem ur-
bana. (Vaz Jr., 1999).
Algumas características do Município e do Plano, baseadas em um
seminário apresentado por Marcon (1999), são listados a seguir: extensão do
município - 174,38 km2; população - 662 mil habitantes; orçamento munici-
pal de 1999 - R$ 524 milhões; orçamento do SEMASA em 1999 - R$ 89,8
milhões (saneamento, drenagem e meio ambiente); investimentos anuais em
operação e manutenção da rede de drenagem - R$ 3,44 milhões; investimentos
previstos em drenagem urbana no período 1997-2000- R$ 26,0 milhões; total
de investimentos previstos no plano diretor - R$ 60,0 milhões.
Para viabilizar os investimentos em drenagem no Município estão sendo
feitas as seguintes propostas de obtenção dos recursos: a cobrança de
contribuição de melhoria; a utilização de recursos tributários e a obtenção de
financiamentos.
Os recursos para a operação e manutenção da rede de drenagem estão
sendo obtidos de uma taxa de drenagem, atribuída segundo o seguinte critério:
a partir do total mensal gasto com operação e manutenção da rede de drenagem
é cobrada do usuário do sistema uma taxa que é proporcional à contribuição

308
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

volumétrica média mensal de cada imóvel ao sistema. A contribuição


volumétrica mensal do imóvel ao sistema é obtida através da chuva média
mensal, levando em conta as áreas permeáveis e impermeáveis do imóvel. O
valor dessa taxa mensal para um imóvel típico é de cerca de R$ 1,00.

4.3.2 Plano de macrodrenagem da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê

A Região Metropolitana de São Paulo, RMSP, que pertence à Bacia


Hidrográfica do Alto Tietê, possui 38 Municípios, dos quais 19 são conurbados,
correspondendo a uma área de 8.053 km2 , representando 3,2% da área do Estado,
e é responsável por 25% da renda nacional e 65 % da Paulista.
Essa área é assolada por inundações, sistematicamente, devido a várias
questões, entre outras: invasão das várzeas; capacidades inadequadas das
canalizações, galerias, bueiros; pontilhões sobre córregos com altura
insuficiente; critérios inadequados de projeto da drenagem superficial; uso e
parcelamento do solo inadequados, causando erosões e assoreamentos;
poluição dos córregos e rios.
Para solucionar estes problemas está sendo elaborado o Plano Diretor de
Macrodrenagem da Bacia do Alto Tietê, cujas características foram definidas a
partir de termos de referência elaborados pelo Departamento de Águas e Energia
Elétrica de São Paulo (DAEE), com a participação da Câmara Técnica de
Drenagem do Comitê de Bacia do Alto Tietê. Trata-se de um conjunto de diretrizes
que constituem o consenso da comunidade técnica, estando de acordo com os
preceitos das leis Estadual e Federal de recursos hídricos.
Na análise da Figura 4.3 verifica-se que o fluxograma das atividades
principais previstas nesse plano, cujo desenvolvimento está a cargo do
consórcio Enger-Promon-CKC, é bastante avançado e as expectativas de
desenvol-vimento do plano são promissoras.
Por iniciativa conjunta do DAEE, Comitê da Bacia da Alto Tietê e
Câmara Técnica de Drenagem, para ajuste dos rumos do plano, levando em
conta o interesse dos vários grupos sociais e instituições, têm sido feitas
reuniões, seminários e workshops que têm contribuído para a coleta de
subsídios e divulgação do plano, o que, segundo a prática internacional, são
elementos importantes para conseguir apoio para a viabilização da
implementação de um plano de macrodrenagem.
Após 12 meses de trabalhos, foi efetuada a coleta e a análise de todas
as informações disponíveis acerca do sistema de drenagem existente na RMSP
e realizado o diagnóstico hidráulico-hidrológico do trecho do Rio Tietê

309
310

Desafios da Lei de Águas de 1997


Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Figura 4.3 - Plano de Macro Drenagem do Alto Tietê. Fluxograma das atividades principais. ( Canholi, 1999 )
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

compreendido entre a barragem da Penha e barragem Edgard de Souza.


Também foram estudados os rios Aricanduva e Pirajuçara, estando em
andamento o diagnóstico hidráulico - hidrológico do Rio Tamanduateí.
(Canholi 1999).
Dentre as ações recomendadas para a mitigação das inundações nas
bacias estudadas, uma vez que as deficiências das drenagens existentes são
importantes, destacam-se as ações estruturais.
Além das medidas estruturais, foram previstas em cada bacia
estudada a implementação de uma série de medidas não-estruturais, em
especial para a bacia do Rio Aricanduva, que foi eleita como bacia
experimental. Para o trecho em desenvolvimento dessa bacia, dentre outras
medidas, estão sendo propostos: o controle da ocupação da várzea e o
controle da impermeabilização de áreas acima de 1.000 m2.
O mecanismo que está sendo cogitado para implementar estas ações
é a necessidade de obtenção de outorga junto ao órgão responsável pela
gestão dos recursos hídricos no Estado de São Paulo, o DAEE.
Importante medida não-estrutural em curso é a elaboração de um plano
de emergência para o combate às inundações no período de dez-1999/março-
2000, que inclui sistema de alerta e demais medidas de convivência com as
inundações. Esse plano, que conta com a participação de representantes do
Estado, do DAEE e das prefeituras da RMSP, mais afetadas pelas inundações,
deve colaborar para mitigar as conseqüências das inundações, além de colaborar
para dar um maior suporte para a elaboração e implementação do plano.
Como os investimentos a serem feitos para a mitigação das inundações
são vultosos, levando-se em conta que o Estado tem capacidade de
investimento limitada, torna-se necessário o estudo de mecanismos para cobrir
o custos dessas obras.

5. Propostas de implementação de uma gestão eficaz, integrada à


gestão dos recursos hídricos

Como pode ser visto nos capítulos anteriores, alguns dos problemas
principais encontrados na drenagem urbana dizem respeito à questões ligadas
à capacitação tecnológica, à falta de planejamento, à falta de padrões para a
execução de projetos e obras, aos problemas institucionais, à legislação e
fiscalização e, em especial, à questão de falta de verbas para a implementação
de medidas de mitigação das inundações.

311
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

A seguir são feitas propostas, que representam o consenso havido


entre os técnicos acerca de possíveis formas de melhorar a gestão da
drenagem urbana, que vão ao encontro das diretrizes gerais de ação
propostas na lei 9.433/97.

5.1 Treinamento e capacitação tecnológica

De acordo com análise realizada, é primordial realizar uma reciclagem


dos conceitos tradicionais da drenagem urbana, substituindo o conceito de
rápido escoamento das cheias para jusante pela contenção do escoamento na
fonte, a regulamentação do uso do solo, a utilização da várzea para usos
compatíveis com a sua característica de área sujeita a inundações, etc.
Para viabilizar a adoção dos novos conceitos, já universalmente aceitos
pela comunidade técnica, é necessário ampliar-se a comunidade atingida,
abrangendo também os fiscais das prefeituras, os responsáveis pelo
planejamento, o projeto e as obras de drenagem; o ensino dos conceitos
mais modernos da área na graduação das escolas de engenharia, arquitetura,
etc., a instituição da educação ambiental nas escolas de 1o e 2o graus, a
realização de campanhas de esclarecimento e conscientização ambiental.
Como as decisões finais são, em geral, tomadas por administradores e
políticos, é necessária a realização de seminários para a exposição e discussão
do problema.

5.2. Arranjo institucional e formas de financiamento

A instituição do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos


Hídricos, prevista na Constituição Federal de 1988, ensejou a elaboração dos
sistemas Estaduais e Federal de gerenciamento de recursos hídricos, tendo
sido promulgadas as leis de vários Estados e da União. No caso da União, foi
discutida no Congresso Nacional e aprovada a lei no 9.433, de 8/01/97.
De acordo com a legislação em vigor no Estado de São Paulo, a unidade
de planejamento e gerenciamento é a Bacia Hidrográfica e os Comitês de
Bacias Hidrográficas são o fórum tripartite Estado, Municípios e sociedade
civil, responsáveis pela aprovação dos planos de bacias hidrográficas. De
acordo com a legislação, haveria, então, a necessidade de articulação entre
Estado, Municípios e comunidade para elaborar os planos e fazer cumprir as
suas diretrizes, inclusive no que concerne às inundações. Havendo dificuldade
em uma articulação espontânea, seja por falta de vivência ou experiência

312
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

nesse tipo de processo, seja por outras questões, o caminho para o acordo da
forma de articulação mais adequada, para atender aos interesses de todos os
participantes é a negociação política.
Para a RMSP, dentro de suas atribuições, o Comitê da Bacia do
Alto Tietê propôs o estabelecimento da Câmara Técnica de Drenagem, da
qual participariam todos os órgãos e entidades, estaduais, municipais e
privadas, que de alguma forma atuam na problemática das inundações na
Região Metropolitana e de outros Municípios.
Esse, na opinião do autor, parece ser o princípio correto para a questão
da gestão na drenagem urbana, que pode ser estendida a qualquer bacia
hidrográfica brasileira. Nessa Câmara Técnica deveria ser criado um órgão
técnico permanente, formado de profissionais experientes, para assessorar a
Câmara Técnica na análise, estudo das alternativas e escolha das medidas
mais indicadas ao tratamento da drenagem de uma área específica. No
Brasil, isso é particularmente importante, pois, com as mudanças de
Governo, existe a tendência de serem alterados os componentes das
Câmaras Técnicas, prejudicando a continuidade das medidas. Além disso,
o horizonte de planejamento tende a ficar limitado à vigência do mandato
do Executivo e com a continuidade do trabalho dos assessores técnicos
não seria perdida a memória dos estudos anteriores, o que, em conjunto
com a experiência acumulada, contribuiria para direcionar o tratamento
da drenagem urbana da melhor forma.
A título de exemplo, a cidade de Denver, Colorado (EUA), criou o
“Urban Drainage and Flood Control District”, que vem há mais de 20 anos
adquirindo experiência e tecnologia e administrando a parte técnica da
drenagem urbana da cidade, com um sucesso considerável, tornando-se um
exemplo de excelência a ser seguido.
Com os conceitos de cobrança do uso dos recursos hídricos e aplicação
“preferencial” da receita obtida com essa cobrança na bacia de origem desta
receita, a drenagem urbana consegue outra fonte para cobrir os custos de
planejamento, projeto , obras e operação.
Entretanto a aplicação do princípio Usuário Pagador, estabelecido
pela lei federal 9.433/97 e pela lei 7.633, de 30/12/91, à drenagem urbana
não é imediata, dependendo ainda de estudos técnicos e jurídicos
aprofundados.
Em especial, no caso paulista, a cobrança ainda depende de lei em
tramitação na Assembléia Legislativa. No texto em discussão consta que a

313
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

fixação dos valores a serem cobrados pela utilização dos recursos hídricos
considerará usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água
existente em um corpo d’água, semelhantemente ao que estabelece a lei 9.433/
97. Estipula, ainda, que a fixação dos valores a serem cobrados terá por base
o volume captado, extraído, derivado, consumido, e a carga dos efluentes
lançados nos corpos d’água. Embora isto abra caminho para a cobrança relativa
à drenagem urbana, ainda há muito que avançar no campo institucional e
jurídico, antes que isso se torne viável.
Outras fontes possíveis para o custeio dessas atividades seriam as que
vêm sendo estudadas pelo Município de Santo André, que são: a cobrança de
contribuição de melhoria; a utilização de recursos tributários, a obtenção de
financiamentos e a instituição de uma taxa de drenagem para conseguir os
recursos para a operação e manutenção.
Os critérios para a cobrança dessas taxas e tarifas devem ser
definidos nos próximos anos e são uma linha de pesquisa importante na
área de drenagem urbana.

5.3 Elaboração de planos e projetos

O planejamento, projeto e execução de obras de drenagem urbana, em


um passado recente, padeciam de uma certa falta de critérios e conceitos
sólidos para a o tratamento em alto nível tecnológico dessas atividades.
Nos últimos tempos, vêm sendo publicados livros em português,
bastante atualizados, com elementos para planejamento e projeto de
dispositivos de drenagem urbana. Importantes complementos destes
livros, no entender do autor, seriam manuais de drenagem urbana,
elaborados nos moldes, por exemplo, dos manuais feitos para Fort Collins
e Denver, EUA.
Um passo importante seria a normatização dos processos de projeto
e execução de estruturas de drenagem urbana, de acordo com padrões
mínimos de qualidade.
A melhoria do padrão tecnológico no planejamento e projeto em
drenagem urbana depende do desenvolvimento de tecnologia autóctone. Para
tal é necessário viabilizar recursos para pesquisa, entre outras, nas áreas de
hidrologia urbana, de medidas de retenção na fonte e infiltração, incluindo
os aspectos de eficiência e custos de construção e manutenção desses
dispositivos e na área de danos das inundações, procurando-se adaptar a
metodologia existente à realidade brasileira.

314
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Bibliografia

BARTH R.T. - Planos Diretores de Drenagem Urbana: Proposição de


Medidas para a sua Implementação. Tese de Doutorado. Escola Politécnica
da Universidade de São Paulo. 1997.
CALHOLI A.P. - “Plano diretor de Macrodrenagem da Bacia do
AltoTietê. Estruturação Geral e Resultados Iniciais”. Comitê da Bacia
Hidrográfica do Alto Tietê. Worhshop Urbanização e Inundações. Agosto
de 1999.
CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Comissão Especial de
Estudos sobre Enchentes - “Relatório Final”. Setembro de 1995.
COPLAENGE - “Plano Municipal de Drenagem do Município de Santo
André. Medidas Não-Estruturais”. 1999.
DAEE. Consórcio Hidroplan - “Plano Integrado de Aproveitamento e
Controle dos Recurvos Hídricos das Bacias do Alto Tietê, Piracicaba e Baixada
Santista. Ações não-estruturais”. Setembro de 1995.
JAMES; L.D. LEE; R.R. - Economics of Water Resources Planning.
MacGraw Hill Book Co. 1971.
KRAFTA. R. - “Tendências da Expansão Urbana e Densificação de
Grandes Centros Urbanos”. In: Seminário Soluções definitivas para área de
drenagem urbana. International Business Communications. São Paulo 1999.
MAKSIMOVIC. C. - International Workshop on non Structural Flood
in Urban Areas. São Paulo, 1988.
MAKSIMOVIC. C. - Macro Drainage Master Plan For Upper Tietê
River Basin. Report On Visit To São Paulo. December 1998.
MARCON H. - “Viabilização de Projetos na Área de Drenagem Ur-
bana”. In: Seminário Soluções definitivas para área de drenagem urbana.
International Business Communications. São Paulo. 1999.
PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Secretaria do Verde
e Meio Ambiente - Agenda 21 Local. Compromisso do Município de São
Paulo. 1996.
RESOURCE CONSULTANTS & ENGINEERS. A KLH Enginnering
Group Company - Old Town Master Basin Plan for the City of Fort Collins. 1993.
SANTOS A . R. - “Erosão e Assoreamento”. In: Workshop Urbani-
zação e Inundações. Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê. Agosto
de 1999.

315
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

TUCCI C. E. M. (organizador) - Hidrologia, Ciência e Aplicação.


ABRH-EDUSP. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1993.
URBONAS, B. - Upper Tietê Watershed. Macro-Drainage Master
Plan Observation And Initial Recommendations. December 1998.
VAZ JR. S. N. - “Experiências práticas de Santo André”. In: Workshop
Urbanização e Inundações. Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê.
Agosto de 1999.
WALECH. STUART. G. - Urban Surface Water Management. J. Willey
& Sons Valparaiso. Indiana, EUA, 1989, 517p.

Perfil curricular do autor

Rubens Terra Barth – rtbarth@mandic.com.br – formado pela


Escola de Engenharia da Universidade Mackenzie em 1978. Doutorado
na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo em 1997. Trabalha
nas áreas de estruturas hidráulicas, geração de energia hidrelétrica e
drenagem urbana. Participou da elaboração do Plano Municipal de
Drenagem do Município de Santo André. Participa da elaboração do
Plano de Macrodrenagem da Bacia do Alto Tietê

316
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

PROJETO “ÁGUA NAS ESCOLAS”

Neroaldo Pontes de Azevedo

1. Uma introdução óbvia

Tudo começou com algumas constatações óbvias: a seca é recorrente


no Nordeste, sem água não se pode viver, as escolas precisam de água
para o seu funcionamento, as escolas não podem fechar as suas portas,
por falta de água.
Embora evidentes, talvez valha a pena, para situar a questão que nos
ocupa, retomar algumas observações conhecidas.
“O direito à água é um dos direitos fundamentais do ser humano:
o direito à vida, tal qual é estipulado no art. 3º da Declaração Universal
dos Direitos Humanos”. Esse é um trecho do art. 2º da Declaração
Universal dos Direitos da Água, que pode ser, aqui, complementado
com o art. 10: “O planejamento da gestão da água deve levar em
conta a solidariedade e o consenso, em razão de uma distribuição desigual
sobre a terra”. (Infran 1992)
A água, origem da vida, é condição básica para que a vida permaneça.
Tal afirmação é tão verdadeira quanto a constatação de que a região do Brasil
que detém o menor volume de água é o Nordeste, embora seja ela a segunda
em termos de população.
A produção ficcional da nossa literatura tem tomado a seca como um
dos seus temas preferidos, ora numa postura exótica, ora numa atitude
denunciante. Para ficar com a segunda, pode-se lembrar o relato de Graciliano
Ramos, em Vidas secas, do insucesso do sertanejo Fabiano e de sua família,
numa luta solitária que os leva a um eterno recomeço, em seguidas fugas
provocadas pela seca.
Os estudos científicos têm se multiplicado, as propostas de solução
para a convivência com a seca não têm sido poucas, compromissos políticos
têm sido anunciados, as soluções nem sempre têm sido as mais adequadas. A
cada ano, quase a ironizar das providências adotadas, a estiagem aparece
como se fora uma surpresa.

317
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

2. A água e a escola: uma visão preliminar

Se a seca atinge os indivíduos, ela não é menos ingrata com as


instituições. Em 1998, a União dos Dirigentes Municipais de Educação -
UNDIME - entidade surgida há quase quinze anos, em Pernambuco, avaliou
que a seca ameaçava 16 mil escolas localizadas nos nove estados do Nordeste,
em Minas Gerais e Espírito Santo.
A avaliação tomava por base o conhecimento de que essas escolas não
tinham um sistema de captação e armazenamento de água. E as notícias
começaram a confirmar o fechamento de escolas, o crescimento das
dificuldades no processo ensino-aprendizagem, o aumento acelerado da evasão
escolar, motivado particularmente pelo êxodo rural. Sem água, como ficaria
a merenda? Sem água, como saciar a sede de alunos que, em muitos casos,
andavam quilômetros a pé para chegar à escola? Sem água, como
equacionar o problema da insalubridade? Sem água, como manter a escola
aberta? Era a constatação de mais uma ameaça à escola pública, elemento
que se soma ao conjunto de indicadores de profundas desigualdades regionais.
Não há que se atribuir tudo que é insucesso à falta de água, é evidente.
“Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que
comer na terra de Canaã”, denunciava José Américo de Almeida, em 1928,
no romance A bagaceira, apontando no brejo paraibano o papel da estrutura
social, de responsabilidade do homem no processo de desigualdades.
É bom ressaltar os avanços obtidos no Nordeste, na área da educação
básica. mas as disparidades persistem. Relatório produzido pela presidente
do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), Maria
He- lena Guimarães de Castro, constata: “O atual perfil do ensino fundamental
no Nordeste apresenta grande semelhança com o observado no Sul e Sudeste
no final dos anos 80. Um atraso de pelo menos uma década no desenvolvimento
educacional da região. Essa diferença, contudo, poderá ser superada num
prazo mais curto, pois a dinâmica da mudança vem se dando de forma mais
acelerada no Nordeste” (Castro, 1999).

3. Escola aberta: uma proposta

No estado berço da UNDIME, em Pernambuco, precisamente por uma


iniciativa da seção estadual da entidade, surge uma proposta de movimento,
cujo objetivo era minimizar as conseqüências nefastas da seca na vida das
escolas. A campanha tinha no nome sua proposta: Escola aberta. Preconizava-

318
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

se um estudo sobre as formas de convivência da escola com o clima semi-


árido, levando-se essa questão para o interior das salas de aula, permeando o
próprio desenvolvimento das estruturas curriculares. Solicitava-se ao
Ministério da Educação um maior aporte de recursos para a merenda, com a
possibilidade de se oferecer duas refeições ao dia para os alunos como forma
de mantê-los na escola. Sugeria-se a adoção de providências para que as escolas
ameaçadas pelas secas recebessem equipamentos capazes de captar água.
A UNDIME nacional juntou-se às propostas da UNDIME/PE, discutiu-
as e a questão foi levada ao Ministério da Educação, por intermédio do então
Projeto Nordeste, com o apoio expressivo do UNICEF. No documento que a
UNDIME fez chegar ao Projeto Nordeste, lia-se, entre outras preocupações:
“É comum verem-se escolas saqueadas pela população faminta ou fechadas,
quando não funcionando com baixíssima freqüência ou sem alimentos para
alunos e professor.”

4. Algumas providências encaminhadas

O MEC ampliou de 0,13 centavos para 0,20 por aluno/dia o repasse


para a merenda das escolas dos Municípios atingidos pela seca. A medida
durou um semestre, estendendo-se até o mês de dezembro de 1998. Rendeu
alguns dividendos.
Programou-se e foi realizado um seminário, com apoio do Projeto
Nordeste e colaboração da UNDIME e do UNICEF, intitulado “Escola e
Convivência com a Seca”, em Juazeiro, Bahia, entre os dias 9 e 11 de setembro
de 1998. Foram apresentadas tecnologias e experiências desenvolvidas por
instituições públicas e organizações não-governamentais, que possibilitam
encontrar soluções para minimizar os prejuízos causados pelo prolongado
período de estiagem ao processo ensino-aprendizagem. Estão em curso,
embora lentamente, estudos para produção de textos adequados à realidade
do semi-árido.
A iniciativa, a primeira do gênero, teve entre outros objetivos, o de
levantar sugestões para facilitar a gestão escolar nas unidades localizadas na
região do semi-árido no período de estiagem, o de construir propostas de
intercâmbio entre organizações não-governamentais, instituições públicas e
rede municipal de ensino, para introduzir no currículo escolar tecnologias de
convivência com a seca, bem como o de divulgar o conteúdo a todos os
Municípios atingidos pela seca. O seminário, que teve a coordenação técnica
do professor Arlindo C. Queiroz, então vice-presidente da UNDIME região
Nordeste e presidente da UNDIME/PE, contou com a presença de 57

319
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

participantes inscritos. Estiveram presentes, entre outros, representantes da


SUDENE, secretarias Estaduais dos Estados de Minas Gerais, Piauí e Bahia,
UNDIMEs estaduais, ONGs e Universidades.
A UNDIME nacional esteve representada por seu presidente e o Projeto
Nordeste, por seu diretor geral, o sr. Antônio Emílio Marques Sendim, que,
junto com os representantes do UNICEF/PE, Jacques Schwarestein e Maria
Mirtes Cordeiro Rodrigues, acompanharam todos os trabalhos. A Secretaria
de Educação de Juazeiro, através de sua titular, a professora Estelita Dias
de Souza Silva e sua equipe, ofereceu todas as condições para a realização
do seminário.
Uma visita à Escola Municipal Rural de Massaroca, no Município de
Juazeiro, permitiu verificar-se como a questão da convivência com o semi-
árido é levada em consideração no dia-a-dia da escola, que mantém estreito
relacionamento com a comunidade.
A visita ao IRPAA (Instituto Regional da Pequena Agropecuária
Apropriada), também no Município de Juazeiro, proporcionou um contato
com tecnologias apropriadas para capacitação, armazenamento e uso
adequados da água, numa região que tem, em média, oito meses sem chuva.
Paralelamente a tudo isso, acertou-se no Ministério da Educação que o
Projeto Nordeste financiaria um programa que pudesse dotar as escolas
públicas do Nordeste, atingidas pela seca, de um módulo básico para melhoria
das condições sanitárias locais e viesse a diminuir os problemas decorrentes
da falta de água. Uma pesquisa, de responsabilidade do Exército, fez o
levantamento das escolas, com mais de 20 alunos, que funcionavam em prédio
público. A elas se destinaria o programa
Para viabilizar o projeto, o MEC decidiu assinar convênio com a
SUDENE, detentora de conhecimentos na área. Com o apoio do 1º Grupamento
de Engenharia de Construção do Exército, foram definidas as dimensões do
programa, agora denominado “Água na Escola”. O módulo básico (19,30 m 2)
compunha-se de dois banheiros, uma cozinha, uma cisterna de 5.000 litros e
uma bomba manual, num valor orçado em R$ 5.460,00. Ficou prevista a
implantação de 2.133 módulos, em duas fases. Para a primeira fase, o MEC,
pelo Projeto Nordeste, alocou R$ 2.643.000,00 para a compra de material e a
SUDENE, R$ 2.167.674,07, correspondentes à mão-de-obra. A projeção para
a segunda fase foi de R$ 6.839.325,93. Na primeira fase seriam beneficiadas
881 escolas. As frentes de trabalho colaborariam nesta tarefa.
Não foram definidas fontes de recursos para a segunda fase, temendo-
se hoje pela continuidade do programa.

320
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

5. Uma avaliação?

Ainda é cedo para se avaliar a repercussão dessas medidas, seja porque


o programa ainda está em implantação, seja porque foi reduzida a amplitude
do atendimento, ou também porque só uma pesquisa específica poderá dar
conta da correção ou não das providências adotadas.
Também deve-se dizer que outras iniciativas, por intermédio de
prefeituras, Estados, organizações não-governamentais vêm acontecendo,
como soluções ou eventualmente como paliativos. Cisternas são construídas,
carros-pipas são utilizados, a merenda é redimensionada. E em 1999 a estiagem
se reapresenta, provocando o êxodo rural, o abandono de casas, a evasão de
alunos das escolas. A experiência não deixa de provocar soluções. Segundo
reportagem do jornal Correio da Paraíba, do dia 17 de outubro deste ano de
1999, o Município de Santa Luzia, no sertão da Paraíba revive o problema da
seca. A secretária de Educação, Maria Raimunda, apontando as dificuldades
decorrentes da falta de chuva, diz que 10 das 24 escolas estão sendo abastecidas
com água de cacimbas, que podem secar, se não chover. Ela afirma que “a
merenda foi alterada em função da seca. Para não provocar fuga de alunos e
aumentar a evasão, e ao mesmo tempo assegurar uma dieta nutritiva, as
merendeiras estão distribuindo frutas, biscoitos e comidas que não absorvam
muita água no preparo e na limpeza dos utensílios”. Mas ela acrescenta, a
propósito do processo ensino-aprendizagem, que “os conteúdos estão sendo
repassados de uma forma contextualizada, ou seja, a seca é uma realidade
presente nas aulas, os assuntos são interligados de forma crítica, inserindo na
aprendizagem toda a problemática social e econômica”.
Creio caber, aqui, uma reflexão de ordem pessoal. A presidência da
UNDIME, o cargo de secretário municipal de Educação em João Pessoa ou
mesmo a minha formação profissional, como professor de literatura, não me
dão credenciamento para abordar, de um ângulo técnico, a questão da água.
Mas, sem dúvida, minha consciência de cidadão e o exercício da tarefa de
educador me trazem sensibilidade para reconhecer os esforços que vêm sendo
realizados e, sobretudo, me dão a certeza da necessidade de soluções mais
adequadas para o problema da água, nas escolas do Nordeste.
A construção de uma escola no semi-árido não pode prescindir de
equipamentos que levem em consideração a questão da água, sob pena de
condená-la a dificuldades reais de funcionamento, quando não, ao próprio
fechamento.
As discussões sobre currículo precisam levar em consideração o espaço
em que a escola está inserida e têm que pensar na convivência com a seca

321
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

como uma realidade da região Nordeste. Isso significa também que a escola
deve ter com a comunidade uma relação de compromisso, para não se
apresentar como um elemento estranho à paisagem humana da região.
A formação de professores não pode esquecer as profundas diferenças
regionais e, dentro das regiões, as diferenças entre a zona rural e a zona ur-
bana. Não se trata, evidentemente, de oferecer formação de segunda categoria,
senão de ofertar formação adequada. Assim, também, os procedimentos
avaliatórios têm que ser repensados ou, deve-se dizer, reavaliados. A tendência
atual de se proceder a avaliações genéricas, que não levam em conta a realidade
da região, os seus limites e as potencialidades, tende a induzir a generalidades
no processo de ensino-aprendizagem.

6. Um epílogo

Federico Mayor, diretor-geral da UNESCO, num artigo intitulado “Por


uma ética da água” (Mayor, 1999), em que aborda o risco sério proveniente
da escassez de água doce, em escala planetária, faz, entre outras, uma reflexão
importante, que pode nos servir de conclusão desse texto: “A tecnologia só
pode oferecer parte da resposta. É um aspecto, certamente capital, mas par-
ticular, da crise global provocada pela adoção de um modelo de
desenvolvimento baseado no crescimento que esquece, na sua obsessão
macroeconômica e tecnológica, os fatores sociais, humanos e ambientais”.

Bibliografia

INFRAN, GEORGE - Histoire de l’eau. Paris, 1992.


CASTRO, Maria Helena Guimarães de. - “As desigualdades regionais
no sistema educacional brasileiro”. Brasília, INEP/MEC, 1999.
MAYOR, Federico - “Por uma ética da água”. Brasília, Notícias
UNESCO, nº 9, maio de 1999.

322
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Perfil curricular do autor

Neroaldo Pontes de Azevedo - sedec@funape.ufpb.br - nasceu em


São Caetano, Município do agreste pernambucano, em 1945. Licenciado
em Filosofia (Olinda) e Teologia (Roma). Mestre em Letras pela
Universidade de Toulouse, França, onde também lecionou. Doutor em
literatura brasileira pela Universidade de São Paulo - USP, tem livros e
artigos publicados no Brasil e Exterior. Professor da Universidade Federal
da Paraíba, da qual foi reitor. É Secretário Municipal de Educação e
Cultura de João Pessoa e presidente da União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação – UNDIME.

323
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

POLÍTICA DE RECURSOS HÍDRICOS: EFICIÊNCIA DE


GERAÇÃO DO SETOR ELÉTRICO

Raquel Scalia Alves Ferreira


Carlos Alexandre Cernach Silveira
Lidia Mejia
Marcos Aurélio Vasconcelos Freitas

1. Introdução

As fontes hídricas são abundantes, mas freqüentemente mal distribuídas


na superfície do planeta. Em alguma áreas, as retiradas são tão elevadas em
comparação com a oferta que a disponibilidade superficial desta água está
sendo reduzida e os recursos subterrâneos rapidamente esgotados.
Tal situação tem causado sérias limitações para o desenvolvimento de
várias regiões, restringindo o atendimento às necessidades humanas e
degradando ecossistemas aquáticos. Levantamentos realizados pela
Organização Mundial de Meteorologia indicam que um terço da população
mundial vive em regiões de moderado a alto stress hídrico, ou seja, com um
nível de consumo superior a 20% da disponibilidade d'água. Exemplificando,
tem-se o caso do Brasil, que possui em seu território 13,8% de toda a reserva
de água doce do mundo, mas 80% dessa água encontram-se na região
Amazônica, ficando os 20% restantes circunscritos ao abastecimento das áreas
do território onde se concentram 95% da população. Mesmo tendo grande
potencial hídrico, a água é objeto de conflitos em várias regiões do País.
Considerando o consumo mundial d'água, este cresceu mais de 6 vezes
entre 1900 e 1995, mais do que o dobro da taxa de crescimento da população,
e continua a crescer rapidamente com a elevação de consumo dos setores
agrícola, industrial e residencial (WMO, 1997).
Crescimento demográfico e desenvolvimento sócio-econômico são
freqüentemente acompanhados de um rápido aumento na demanda de água,
especialmente nos setores industrial e doméstico.
A progressão da demanda mundial de alimentos tem efeito direto no
aumento do uso da água no setor agrícola. Atualmente, a agricultura é

324
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

responsável por cerca de 70% do consumo mundial de água. O crescimento


das áreas de lavoura irrigada será responsável pela maior parcela de acréscimo
de consumo neste setor nos próximos 25 anos.
Muito do aumento projetado na demanda de água ocorrerá nos
países em desenvolvimento, onde o crescimento populacional aliado à
expansão industrial e agrícola será ainda maior. Todavia, o consumo per
capita continuará a ser muito mais elevado nos países industrializados
(ver Tabela 2.1).
A situação é bem pior nos países em desenvolvimento. A escassez de
água tem sido intensificada e a saúde humana, gravemente afetada pela
aceleração da contaminação de recursos d'água potável, especialmente em
regiões de urbanização intensa.
Desta forma, na mesma proporção que fontes d'água potável são
reduzidas, a competição por elas tem aumentado, conseqüência imediata da
expansão de áreas urbanas e de novas demandas agroindustriais. Exemplos
bem sucedidos, como nos lugares onde sistemas de cobrança e controle do
uso d'água ocorrem, mercados de recursos hídricos podem operar transferindo
recursos entre compradores e vendedores; usuários e gestores; beneficiados e
atingidos; agregando valor monetário ao bem "água" e, conseqüentemente,
sinalizando a uma maior possibilidade de valorização e racionalidade em
seu uso.
O aumento populacional interfere direta e indiretamente no
desenvolvimento do setor elétrico, pois desde a produção de alimentos
até a sua industrialização a energia elétrica está envolvida. Como o Brasil
apresenta cerca de 62,5 GW de potência hidrelétrica instalada, e isto
equivale a 97% da capacidade de geração de energia elétrica do País, a
dependência deste setor com os recursos hídrico é extremamen-
te delicada, no sentido de sua gestão e sustentabilidade (Secretaria de
Energia, 1999).
Para atender o crescimento atual da demanda de energia elétrica, o
setor elétrico necessita instalar a cada ano de 3 a 4 GW de potência, evitando
assim racionamentos futuros. Isto corresponde em média a 200.000 ha de
área inundada/ano.
Desta forma, o setor elétrico também se torna responsável pela
manutenção destes recursos, na tentativa de diminuir o impacto dos múltiplos
usuários, bem como o impacto destes na geração hidrelétrica, diante da grande
aptidão que o País possui na hidreletricidade.

325
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

2. Breve histórico do setor elétrico

Os primeiros registros da história da hidreletricidade no Brasil são dos


últimos anos do Império, quando o crescimento das exportações do País,
principalmente de café e de borracha, culminaram com a modernização da infra-
estrutura, tão necessária à produção e ao transporte de mercadorias.
A modernização dos serviços de infra-estrutura abrangiam, também,
serviços públicos urbanos como linhas de bondes, água e esgoto, iluminação
pública e a produção e distribuição de energia. Com o aumento das atividades
industriais e da urbanização, o investimento na área de energia elétrica, ainda
muito tímido, passou a ser bastante atrativo.
Nos primórdios, há relatos de pequenas usinas com pouca potência
destinadas a usos privados em moinhos, serrarias e algumas tecelagens. A
grande concentração dessas usinas ocorreu em Minas Gerais, expandindo em
direção sudeste até chegar a São Paulo.
Em 7 de setembro de 1889, às véspera da Proclamação da República,
foi inaugurada a primeira usina hidrelétrica de maior porte destinada ao serviço
público. A usina de Marmelo-0, com uma potência instalada de 250 KW, foi
construída no Rio Paraibuna com o objetivo de fornecer eletricidade para
iluminação pública da cidade de Juiz de Fora/MG.
O excedente da energia gerada pelas usinas hidrelétricas era aproveitado
em pequenas redes de distribuição implantadas por seus proprietários. Estas
pequenas redes foram se expandindo pela regiões vizinhas, chegando a motivar
o aumento de potência de muitas usinas.
A evolução do parque gerador instalado sempre esteve intimamente
atrelada aos ciclos de desenvolvimento nacional. Os períodos de maior
crescimento econômico implicavam num aumento da demanda de energia e,
conseqüentemente, na ampliação da potência instalada. Igualmente, as épocas
recessivas afetaram diretamente o ritmo de implantação de novos
empreendimentos.
Em síntese, entre 1880 e 1900, o aparecimento de pequenas usinas
geradoras deveu-se basicamente à necessidade de fornecimento de energia
elétrica para serviços públicos de iluminação e para atividades econômicas
como mineração, beneficiamento de produtos agrícolas, fábricas de tecidos e
serrarias. Neste mesmo período, a potência instalada aumentou
consideravelmente, com o afluxo de recursos financeiros e tecnológicos do
exterior para o setor elétrico. Predominando o investimento hidrelétrico,
multiplicaram-se as companhias de geração, transmissão e distribuição de

326
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

energia elétrica nas pequenas localidades. As duas primeiras companhias de


eletricidade sob controle de capital estrangeiro, que tiveram importância na
evolução do serviço elétrico, são a Light e a AMFORP, instaladas nos dois
centros onde nasceram a industria nacional, São Paulo e Rio de Janeiro.
Até a virada do século predominou a geração de energia elétrica através
de centrais termelétricas. Em 1901, com a entrada em operação da
Hydroelétrica de Parnahyba (atual Edgar de Souza), primeira usina hidrelétrica
da Companhia Light (com potência instalada inicialmente de 2.000 KW),
este quadro mudou em favor da geração hidrelétrica. No ano de 1907, a Light
iniciou a produção de energia elétrica para a cidade do Rio de Janeiro com a
entrada em operação da usina hidrelétrica de Fontes, no Ribeirão das Lajes,
que, em 1909, era uma das maiores usinas do mundo em operação, com uma
potência instalada de 24.000KW.
A partir da década de 20 se fez necessária a ampliação do parque gerador
no intuito de atender aos constantes aumentos de consumo de energia elétrica
demandados pelo desenvolvimento do setor industrial. Durante essa década, a
capacidade geradora instalada foi duplicada, sendo que em 1920, dos 475,7 MW
instalados, cerca de 77,8% já eram de origem hídrica. Na segunda metade da
década de 20, as empresas AMFORP e Light assumem o controle acionário da
maior parte da empresas de energia elétrica atuantes no país. Assim, em 1930,
praticamente todas as áreas mais desenvolvidas do País e também aquelas que
apresentaram maiores possibilidades de desenvolvimento, caíram sob o monopólio
dessas duas empresas, restando, fora de seus alcances, apenas poucas áreas,
inexpressivas, tais como os Estados das regiões Norte e Nordeste. No interior
destes Estados continuaram operando numerosas empresas de porte reduzido,
muitas mantidas pelas prefeituras, as quais atendiam o pequeno consumo local.
A mudança de Governo na década de 30 trouxe uma nova forma de
administrar os recursos hídricos, que passaram a ser considerados como de
interesse nacional. O Estado passa a intervir neste setor diretamente, assumindo
o poder concedente dos direitos de uso de qualquer curso ou queda d'água
com a assinatura do Código das Águas de 1934. Depois de 1934, com a
instituição do novo regime de concessão para exploração de energia
hidrelétrica, o ritmo de implantação de aproveitamentos hidráulicos cresceu
consideravelmente. Também neste período foi criado o Conselho Nacional
de Águas e Energia Elétrica (CNAEE), órgão federal responsável pela
tarifação, organização, controle das concessionárias, interligação entre as
usinas e sistemas elétricos. Ainda na década de 30, os governos federal e
estadual passam a ser acionistas e proprietários das empresas geradoras e
distribuidoras.

327
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Ao final da década de 30, com a deflagração da Segunda Guerra Mundial


em 1939, o País passa por uma crise no setor elétrico devido à falta de
investimentos estrangeiros e à baixa produção de equipamentos para centrais
hidrelétricas. Assim, no período seguinte, de 1939 a 1947, há apenas um
registro de ampliação do parque gerador, o de Ribeirão das Lages. O
crescimento da capacidade instalada só foi retomada após o término da Grande
Guerra, com a criação da CHESF em 1945, com a finalidade de promover o
aproveitamento hidráulico do Rio São Francisco.
É importante salientar que, até o final da década de 50 início de 60, a
maioria das barragens era constituída com a finalidade exclusiva de geração
de energia hidrelétrica, não considerando os demais usos.
A década de 50 inaugura um longo período, caracterizado por
empréstimos recebidos do Banco Mundial, que favoreceram a implantação
de grandes empreendimentos nacionais e binacionais nas décadas seguintes.
Já a década de 60 é marcada pela reformulação dos órgãos federais,
pela criação do Ministério das Minas e Energia (MME) e das Centrais Elétricas
Brasileiras SA (ELETROBRÁS). O Grupo ELETROBRÁS era formado por
quatro empresas controladas de âmbito regional: FURNAS, CHESF,
ELETROSUL e ELETRONORTE e por duas empresas de âmbito estadual
LIGHT e ESCELSA. A criação destes órgãos, aliada aos estudos
hidroenergéticos desenvolvidos a partir de 1962, executados pelo grupo de
trabalho CANAMBRA, consolidou a estruturação do setor elétrico.
Durante a década de 70, o setor elétrico sofreu uma certa resistência
por parte dos setores usuários dos recursos hídricos, além das pressões
desencadeadas a partir de 1972 em favor da preservação ambiental, tendo
como referência a Conferência Mundial do Meio Ambiente e do Bem Estar
Social, que contribuiu decisivamente para instalação de um novo setor de
gerenciamento de recurso hídricos do País.

2.1 Potencial hidrelétrico brasileiro

O Brasil possui a maior disponibilidade hídrica do planeta, ou seja:


13,8% do deflúvio médio mundial. A produção hídrica em território nacional
é de 182.170 m3/s, o que equivale a um volume anual de cerca de 5.744 km3.
Levando-se em consideração as vazões produzidas na área das bacias
Amazônica, Paraná, Paraguai e Uruguai, que se encontram em território
estrangeiro, estimadas em 76.580 m3/s, essa disponibilidade hídrica total atinge
258.750 m3/s (WRI, 1998).

328
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Tabela 2.1 - Informações básicos sobre bacias hidrográficas brasileiras

O potencial hidrelétrico brasileiro conhecido, referente a janeiro de


1998, é de aproximadamente 260 GW, dos quais encontram-se em operação
cerca de 24%, existindo portanto ainda um percentual de potencial hidrelétrico
a ser aproveitado. Hoje, o Brasil possui instalado cerca de 64,5GW, entre
hidro e termeletricas (Eletrobrás, 1999).

Gráfico 2.1 - Potencial hidrelétrico instalado e existente no Brasil

Diante do grande potencial a ser explorado, e considerando a demanda


devido ao crescimento populacional e desenvolvimento do País, que está
calcado nos setores agrícola e industrial (os maiores consumidores de água e
energia), o Brasil vem apresentando um quadro de crescimento de oferta de
energia, como é representado no Gráfico 2.2.

329
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Gráfico 2.2 - Potência instalada atual e projeções futuras.

Observa-se no Gráfico 2.2 o incremento de potência instalada


total em hidrelétricas e termelétricas. Segundo o Plano Decenal 1999-2008,
existe uma perspectiva de crescimento da participação da geração termelétrica.
Acompanhando o crescimento da economia brasileira das últimas
décadas, principalmente nos anos 80, os sistemas de geração e transmissão
nacional tiveram que aumentar a oferta de energia com a qualidade e a
confiabilidade necessárias ao desenvolvimento do País.
Nos anos 80 e 90, houve uma redução acentuada no ritmo de
construção, inclusive com a paralisação de diversas obras de hidrelétricas.
Isso se deveu a um declínio na capacidade de endividamento externo do País
e, consequentemente, das possibilidades de financiamento do Governo.
Observa-se no Gráfico 2.3 períodos em que não houve crescimento
expressivo, como é o caso das décadas de 20 à 40. O maior crescimento do setor
está entre as décadas de 60 e 70, como demonstra a inclinação da reta deste
período. Cabe ressaltar que, durante as duas últimas décadas, a inclinação da reta
é menor, consolidando uma queda na taxa de crescimento da potência hidrelétrica
instalada e da área inundada. Isto provém do desenvolvimento de novas tecnologias
no setor hidrelétrico, recessão econômica, bem como da consolidação outras
fontes alternativas. Este decréscimo é reflexo da grande potência instalada na
década de 70, que consolidou o setor hidrelétrico.
Apesar da elevada participação da fonte hidráulica no sistema elétrico
nacional, as enormes distâncias entre os diversos centros de consumo
estimularam a geração térmica em áreas isoladas, com carência de bons
potenciais hidráulicos e distantes das redes de transmissão de energia. Somente

330
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Gráfico 2.3 - Crescimento, por década da potência instalada, área inundada e energia firme.

a partir da interligação das regiões do País antes isoladas, e devido ao elevado


preço internacional do petróleo observado nas décadas de 70 e 80, o
crescimento na geração térmica passou a ser cada vez menor, até se tornar
negativo em 1984. As condições hídricas favoráveis do território brasileiro,
juntamente com a escassez de recursos energéticos minerais fósseis, como o
gás natural, o carvão e derivados do petróleo, levaram a investir maiores
recursos na implantação de usinas hidrelétricas, necessitando de barragens
que ocasionam inundações de grandes áreas, como mostra o Gráfico 2.4. No
entanto, a concentração de esforços na construção de grandes hidro elétricas
permitiu a consolidação da tecnologia e da experiência nacional na engenharia
de barragens reconhecida internacionalmente. Graças ao desenvolvimento
desta tecnologia, o Brasil promoveu a expansão da indústria pesada, o que
lhe permitiu um elevado índice de nacionalização dos equipamentos utilizados
pelo setor elétrico, possibilitando assim a redução nos custos de produção de
energia, tendo em vista que os equipamentos de centrais térmicas a carvão,
gás e nucleares têm sido importado em sua maior parte.

331
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

A partir da década de 80, a variável ambiental foi sendo introduzida


nos novos termos e parâmetros do setor elétrico, devido a pressões do comércio
internacional e dos movimentos ambientalistas, que geraram regulamentações
ambientais como a Política Nacional de Meio Ambiente (1981). Colocou-se
em discussão um novo padrão técnico-científico, baseado na proposição do
desenvolvimento sustentável, onde a exploração dos recursos naturais exigia
novos critérios de investimento e tecnologia, a fim de atender as necessidades
das gerações presentes sem o comprometimento das gerações futuras.
Segundo o Plano Decenal 1999 a 2008, a participação das hidrelétricas
no total da capacidade instalada no sistema brasileiro deverá diminuir,

Gráfico 2.4 - Evolução da área inundada pelo setor elétrico

passando de 97% em 1999 a somente 80,9% em 2008, o mesmo percentual


praticado em 1930. Esta taxa decrescente deve-se basicamente à manutenção
de um programa nuclear e ao advento de gasodutos como o Bolívia-Brasil e o
da Argentina-Brasil, permitindo um aumento na oferta de gás natural, ao longo
do horizonte decenal de planejamento (Gráfico 2.2).
A carência de recursos financeiros, principal fator de desaceleração na
taxa de crescimento do setor elétrico conforme o Gráfico 2.4, bem como a
implantação de novos instrumentos de controle social e ambiental presentes
na Constituição Federal de 1988, trouxeram o grande desafio de resolver a
questão dos impactos sócio-ambientais dos empreendimentos, considerando
a necessidade de ampliação da matriz energética brasileira.

332
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

A partir de 1994, novas diretrizes do Governo federal foram


estabelecidas, começando-se pela retomada das obras paralisadas, em
associação com a iniciativa privada.
Paralelamente, estabeleceu-se um novo arcabouço institucional do setor
elétrico, voltado para a competitividade e para um setor essencialmente
privatizado.
Em 1997, surgiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, com
dispositivos inovadores, que ressalta a necessidade de integração de recursos
hídricos com a gestão ambiental e a articulação com a gestão do uso do solo,
bem como a articulação dos diferentes níveis de planejamento.
Consolidando a necessidade de viabilização dos usos múltiplos dos
recursos hídricos, está sendo considerado o projeto de lei da criação da Agência
Nacional de Águas. Esta agência será responsável pela outorga e cobrança
dos recursos hídricos, principais ferramentas para a sua gestão. Com esse
intuito, o setor elétrico, de acordo com a lei 7.996 de 1989, que institui os
royalties e a compensação financeira, vem pagando pela utilização deste
recurso para geração de energia elétrica.
Diante dos obstáculos existentes devido aos impactos ambientais, existe
uma tendência de crescimento de centrais hidrelétricas até 30 MW, com
pequeno lago de até 3 km2 (PCH), uma vez que o licenciamento é mais simples,
não há licitação e sim uma autorização. Além disso, estes empreendimentos
requerem menores investimentos em transmissão, por estarem próximos ao
mercado consumidor e pelo menor tempo de viabilização e implantação do projeto.

3. Eficiência de geração do setor elétrico

Para quantificar o real impacto do setor elétrico nos recursos hídricos,


em relação à área de inundação, considerou-se dois índices, um de eficiência
de potência instalada, no qual dividiu-se a potência instalada pela área
inundada, numa escala decenal, conforme mostra o Gráfico 3.1.
O índice de eficiência demonstra quanto um quilômetro quadrado
inundado pode gerar de potência (MW inslatado/km2), ou seja, quanto maior
o índice, maior a eficiência de geração hidrelétrica da década.
Observa-se no Gráfico 3.1, 4 períodos distintos:
• Primeiro período: de 1900 a 1910. Caracterizado por um bom índice em
função dos pequenos empreendimentos a fio d'água, sem reservatório.

333
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

• Segundo período: de 1920 a 1940. Caracterizado por um índice menor


que os das décadas anteriores, em função do aumento dos reservatórios
dos empreendimentos hidrelétricos.
• Terceiro período: 1950. Caracterizado pela melhoria do índice, devido
à evolução dos equipamentos hidráulicos, reflexo dos investimentos
tecnológicos provenientes da Segunda Guerra Mundial e dos
inventários realizados em todas as bacias hidrográficas. (Ex.:
CANAMBRA).
• Quarto período: de 1960 até os dias atuais. Caracterizado pela redução
do índice, em relação à década de 50, em função dos empreendimentos
hidrelétricos com grandes reservatórios de regularização.
No entanto, este período apresenta uma melhoria crescente no índice
de eficiência de geração em função da evolução técnica dos equipamentos de
geração, da repotenciação dos empreendimentos já existentes e dos estudos
de aproveitamentos hidráulicos e ambientais.
O segundo índice seria o de eficiência de geração, no qual divide-se a
energia firme (GWh) pela área inundada, conforme o Gráfico 3.2.

Gráfico 3.1 -Índice de eficiência de potência instalada, no decorrer do século

Considerando que este índice depende da área inundada, da vazão e da


altura de queda, características intrínsecas às regiões brasileiras, algumas
regiões podem apresentar uma aptidão maior para geração hidrelétrica.

334
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Gráfico 3.2 - Índice de eficiência de geração elétrica, no decorrer do século

Tabela 3.1 - Índice de eficiência de geração e de potência instalada, por décadas, e parâmetros utilizados

Na Figura 3.1 representa-se a divisão do Brasil conforme a bacia


hidrográfica dos rios de maior porte encontrados em seu território.
Considerando esta divisão, o Gráfico 3.3 demonstra o índice de
eficiência de potência instalada para cada bacia.
O Gráfico 3.3 apresenta um baixo índice de eficiência de potência
instalada e de geração na Bacia Amazônica (1). Isto talvez indique uma baixa
aptidão física da região, que apesar de possuir grande disponibilidade hídrica,
apresenta um relevo pouco movimentado. Já as bacias Atlântico Leste (5) e

335
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Atlântico Sul e Sudeste (8) apresentam altos índices devido às grandes quedas,
características da região litorânea. Cabe ressaltar que a Bacia do Rio Paraná e
Paraguai (6) apresenta um índice acima da média nacional e é nesta região que
estão localizados os principais reservatórios de regularização do sistema interligado.
A diferença existente entre os índices de eficiência de geração e
de potência instalada, de cada bacia, deve-se às características do relevo, as
peculiaridades ambientais, sociais e culturais, bem como características de
cada empreendimento.

Figura 3.1 -Divisão geográfica das bacias brasileiras

Gráfico 3.3 -Índice de eficiência de potência instalada e de geração atual por cada bacia hidrográfica

336
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Em média, o Brasil apresenta um índice de eficiência de potência


instalada da ordem de 1,7 MW/km2. Diante da necessidade de crescimento
do setor elétrico, demandada a partir do crescimento populacional e do
desenvolvimento industrial do País, seria necessário a construção de duas
hidrelétricas do tamanho de Itaparica, que possui uma área inundada de
aproximadamente 830 km2, por ano. Desta forma seriam inundados cerca
de 166.000 ha. Em 3 anos teríamos que inundar o equivalente à área do
Distrito Federal.
Estes valores podem melhorar se considerarmos a política de
repotenciação de hidrelétricas, na qual os equipamentos são substituídos,
favorecendo a geração, sem incremento na área de inundação. Isto mudará o
cenário da Bacia Amazônica (1) a partir da implantação da segunda etapa de
Tucuruí, na qual não se modificará a área inundada e praticamente será gerado
o dobro da energia atual, favorecendo o parque industrial da região.
Atualmente, os empreendimentos hidrelétricos inundam aproximada-
mente 36.000 km2 considerando os leitos dos rios, o equivalente 80% da área
do Estado do Rio de Janeiro.
No mundo, existem hoje mais de 800.000 represas. Aproximadamente
45.000 estão classificadas como grandes represas, com uma altura de dique
de mais de 15 metros. Entre 1970 e 1979 foram construídas mais de 5.415
represas em todo mundo, mais do que o construído até os anos 50. Mas, desde
então, o ritmo de construção vem diminuindo, isto devido às exigências cada
vez mais rigorosas em relação aos impactos sócio-ambientais, das agências
de financiamento internacionais. Entre 1980 e 1989 foram construídas 4.427
novas represas, o que representa um retrocesso no ritmo de construção .
Esta é a tendência observada nos anos 90. (Comitê Internacional de
Barragens, 1999)
Os cenários mundiais das décadas são coincidentes com o cenário
brasileiro, que apresentou a maior implementação do setor hidrelétrico a partir
da década de 50, com diminuição nos anos 80.
Não obstante os impactos ambientais que os reservatórios venham a
causar, é importante destacar também as vantagens dos mesmos para a
viabilidade do uso múltiplo, tais como:
• Regularização dos regimes hidrológicos;
• Garantia dos volumes de espera para prevenção de cheias;
• Criação de novas condições para exploração (pesca, irrigação,
turismo).

337
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Apesar dos reservatórios do sistema hidrelétrico brasileiro terem sido


projetados somente para geração de energia elétrica, o Código de Águas (1934)
já estabelecia a harmonização com outros usos, através do artigo 143:
"Em todos os aproveitamentos de energia hidráulica serão satisfeitas
exigências acauteladoras dos interesses gerais:
• Da alimentação e das necessidades das populações ribeirinhas;
• Da salubridade pública;
• Da navegação;
• Da irrigação;
• Da proteção contra as inundações;
• Da conservação e livre circulação do peixe;
• Do escoamento e rejeição das águas."
Entre os usos conflitantes dos reservatórios estão o abastecimento de
água, a irrigação, a recreação, a regularização de vazão mínima para o controle
da poluição, a navegação e a geração de energia hidrelétrica, onde os benefícios
se maximizam com o armazenamento de volumes d'água, que garantam vazões
e/ou níveis exigidos pelo uso, e o controle de cheias, que se beneficia com a
criação de volumes vazios, objetivando laminar o volume de água afluente.
Estes conflitos seriam de menor importância se o uso do recurso hídrico
fosse mínimo, mas quando ele aproxima-se do máximo, como no caso da
geração de energia hidrelétrica, os conflitos de uso podem adquirir grandes
proporções (NEMEC, 1986).

4. Considerações finais

Diante destes aspectos, o setor elétrico, apesar de apresentar uma tendência


crescente de utilização de termelétricas e outras fontes alternativas, continuará
tendo um significativo investimento na geração hidrelétrica nos próximos anos.
Isso vem a fortalecer a gestão do uso desta fonte renovável de energia, que é o
recurso hídrico, no qual o Brasil é extraordinariamente privilegiado.
Para preservar e garantir o acesso a suas reservas e corpos hídricos,
nos diversos pontos do território brasileiro, às gerações atuais e futuras, o
Brasil deverá promover uma gestão eficiente, que busque implantar uma
equalização interregional e inter-temporal da água. Um bom conhecimento
das necessidades de seus diversos usuários e da capacidade de oferta e
renovação de suas fontes naturais é fundamental para a definição dos principais
marcos regulatórios e da capacidade de suporte (retirada) de cada bacia
hidrográfica.

338
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Bibliografia

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(CDROM, versão 1.0), ANEEL, Brasília.
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ELETROBRÁS, Rio de Janeiro.
ELETROBRÁS/MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA, 1999 - SIPOT-
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NEMEC, J., 1986 - Hydrological Forecasting. Water Science and Tech-
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SILVEIRA, C. A. C., MEJIA, L., FERREIRA, R. S. A., GUILHON, L.
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WORLD RESOURCES INSTITUTE-WRI, 1998 - World Resources
1998-1999. Environmental Change and Human Health. Oxford University
Press, Oxford.

339
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Perfil curricular dos autores

Raquel Scalia Alves Ferreira - raquels@aneel.gov.br - é bacharel


em engenharia agronômica pela UnB (1997); mestranda em Engenharia
Agronômica, especialização em solos e recursos hídricos pela FAV/UnB.
Consultora técnica pela OMM/ANEEL.

Carlos Alexandre Cernach Silveira – cernach@aneel.gov.br - é


engenheiro eletricista pela EFEI (1991) e mestre em engenharia, UFRGS
(1996). Engenheiro da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL.

Lidia Mejia – lidia@aneel.gov.br – é licenciada em estudos sociais


(1993) e geografia pela UNICEUB (1999); pós-graduanda em
instrumentos jurídicos, econômicos e institucionais para gestão dos
recursos hídricos pela ABEAS, com finalização no segundo semestre de
2000.Técnica em geoprocessamento na ANEEL.

Marcos Aurélio Vasconcelos Freitas – mfreitas@aneel.gov.br – é


bacharel em geografia pela UERJ (1983); mestre em Ciências em
Engenharia Nuclear e Planificação Energética pela COPPE/UFRJ (1988)
e doutor em Ciências em Economia do Desenvolvimento e do Meio
Ambiente pela Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales – EHESS,
Paris – França. Superintendente de Estudos e Informações Hidrológicas
da ANEEL e professor do programa de pós-graduação de Planejamento
Energético da COPPE/URFJ.

340
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

POLÍTICA DE RECURSOS HÍDRICOS E INDÚSTRIAS:


A QUESTÃO DA COBRANÇA
- responsabilidade ambiental compartilhada e atendimento a
interesses patrimoniais individuais, coletivos e difusos -

Emilio Yooiti Onishi


Maria Christina Napolitano

1. Considerações iniciais

No momento em que se trata da implantação da Agência Nacional de


Águas e em que se cogita a possibilidade de cobrança pelo uso da água, chama-
se a atenção para a ausência de um enfoque gerencial e institucional, o que
poderá vir a comprometer os objetivos visados: a proteção dos recursos hídricos.
Da mesma forma, a falta de transparência pode vir a dificultar a
negociação com os segmentos envolvidos, sobretudo, o setor industrial.
Em alguns Estados, como São Paulo, o Governo já se mobiliza, para
tomar a dianteira na cobrança pelo uso da água. Mas, isto sem antes fazer
uma revisão e atualização técnica, jurídica, administrativa das atuais normas,
regulamentos e procedimentos para autorização de uso dos recursos hídricos,
tanto para a derivação da água, como para a descarga de efluentes, não só
industriais, mas urbanos e outros, levando em conta que os mecanismos de
outorga ou licenciamento devem tornar-se o principal instrumento de
negociação periódica entre a autoridade hídrica regional e os usuários da água.
Será necessário fazer a revisão do cadastro de usuários, de modo que
se documente a situação de direito e de responsabilidade de cada um, bem
como a criação de uma fonte de dados primários, indispensáveis para o
planejamento e gestão, tanto da demanda, como da oferta de água, numa
determinada Bacia Hidrográfica.
Embora possa estar previsto que os usuários terão acesso aos cadastros
de contribuintes, não está assegurado nenhum canal de comunicação acessível,
para dirimir dúvidas e dar informações técnicas aos interessados.
Há necessidade de se preverem termos de ajustes e de compromissos,
além de consórcios de usuários.

341
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Por todos estes motivos, somado o fato de que a água é essencial no


processo produtivo e que sua cobrança irá onerar ainda mais este processo, o
setor industrial paulista opõe-se a esta cobrança - e tem fortes razões para tal.
Independentemente de maior aprofundamento jurídico sobre o tema
(desde incursões por dispositivos da Constituição Federal e Constituições
Estaduais até dispositivos do Código de Defesa do Consumidor), impossível
o Governo cogitar a cobrança, sem a consideração prévia de uma série de
questões, da maior importância.
Entre os objetivos para a cobrança, não se têm discernido aqueles de maior
abrangência e significado, o que leva a crer que a imposição de uma
contraprestação a ser paga - configurando a retribuição do uso de um bem público,
visa, antes, maior arrecadação para equilíbrio dos cofres públicos, do que a
verdadeira proteção dos recursos hídricos para as presentes e futuras gerações.
É assim que a cobrança pelo uso da água só deveria ser implantada,
depois que se obtivesse:
a) a cooperação para uma "gestão patrimonial negociada" de recursos
naturais;
b) envolvimento e participação de todos os atores e segmentos sociais
envolvidos;
c) acesso a novas tecnologias e a interface entre as várias disciplinas,
bem como entre as várias esferas e órgãos do Governo, com o povo,
comunidades, empresas, centros de pesquisa e universidades e entre
as presentes e as futuras gerações;
d) a visão de planejamento, no tempo e no espaço, para se alcançar a
proteção das Bacias Hidrográficas contra impactos negativos.
Nas tramitações para se tratar do assunto, não ficam claros, nem o
consenso e a participação conjunta, nem a visão de escala espácio-temporal.
Assim, por exemplo, entre outros, deveriam ser previstos artigos que
versassem sobre:
• Decisão, a critério do Comitê de Bacia Hidrográfica, a respeito do
percentual do valor arrecadado para aplicação em outra Bacia;
• Previsão de arbitragem, no caso de conflito de interesses entre os
Comitês envolvidos, tanto quanto à decisão de executar a obra, como
de rateios entre bacias;
• Necessidade de os programas, projetos, serviços e obras hidráulicas e
de saneamento serem submetidos à consideração pública;

342
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

• Direito à informação, direito este garantido a todos os atores e


segmentos sociais, com previsão de prazo, para manifestação da
comunidade e outros setores envolvidos;
• Cálculo do quantum a ser cobrado, a ser conhecido e reconhecido por
todos, segundo parâmetros iguais, devendo ser questionada seriamente
a questão quanto ao "consumo segundo o tipo de utilização da água" e
"a finalidade a que se destina", levando-se em conta, por exemplo, que
o setor industrial, é gerador de empregos;
• Auditoria patrimonial da política pública sobre recursos hídricos, que
surgiria não só como uma operação "multi-atores", mas também como
uma "comunidade de identificação e de resolução de problemas". Ao
viabilizar-se uma auditoria contrastada (interna/externa; macro-
sistêmica/micro-sistêmica) ficaria possibilitada a intervenção de
"auditores patrimoniais", formados no campo das ciências exatas,
considerados imprescindíveis à compreensão da realidade natural dos
problemas relacionados ao meio e aos recursos hídricos, bem como
aqueles formados no campo das ciências operacionais e gerenciais,
necessários ao esforço de compreensão da realidade dos problemas de
ação, e à prática da própria auditoria patrimonial. Isto se dá através da
aprendizagem de um protocolo exigente, visto como a garantia de um
nível suficiente de "qualidade".
E assim por diante.

2. Implicações técnicas, gerenciais e jurídicas

Além das questões, acima levantadas, outras deverão ainda ser


abordadas na etapa de discussão prévia de leis sobre este tema, destacando-se
as seguintes:
• Identificação dos bens e recursos naturais a serem protegidos (por
exemplo, efeitos de ecotoxicidade, riscos à saúde que podem, ou não,
causar moléstias e endemias, proteção do hábitat aquático e dos aspectos
de bem-estar). Um dos pontos importantes é a manutenção de uma
cobertura vegetal, que é essencial para a conservação dos recursos
hídricos, limitando a possibilidade de erosão do solo e minimizando a
poluição dos cursos d'água por sedimentos. Assim, a recomposição
das matas ciliares faz parte integrante de qualquer projeto de
recuperação de corpos d'água.

343
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

• Superposição legislativa (por exemplo, verificação de qual legislação


já trata da proteção da água e de sua qualidade, nos níveis federais,
estaduais e municipais), o que deverá ficar bem claro.
• Simultaneidade de: cobrança pelo uso da água X concessão ou
permissão para explorar os recursos hídricos. Ou seja, atos adminis-
trativos, através dos quais, são exercidos o controle e a fiscalização
sobre os referidos recursos, além da outorga do direito de uso, para
fins de utilização no abastecimento urbano, industrial, agrícola, geração
de energia elétrica e outros, além do lançamento de efluentes nos corpos
d'água. Em São Paulo, por exemplo, existem interfaces importantes, a
serem consideradas: as da cobrança pelo uso da água e da privatização
de companhias, como a Companhia Energética de São Paulo - CESP.
• Lacuna entre os níveis de dotação de verbas e a execução de programas
nacionais e estaduais de água limpa.
• Adequação do estabelecimento de prazos, em textos legais, com o
propósito de assegurar o cumprimento de cronogramas, pelos
respectivos órgãos e setores, e de contribuir para a elaboração
(igualmente adequada) de programas e regulamentos de controle da
água.
• Absorção do conceito de poluição causada por uma multiplicidade de
agentes e usos (sinergia - fenômeno que ocorre quando a interação de
duas causas provoca um efeito total maior do que a soma do efeito das
duas, agindo separadamente).
• Previsão de proteção do ecossistema como um todo, em vez de tão
somente da Bacia Hidrográfica.
• Cumprimento efetivo do pagamento pelo uso da água, por todos os
usuários e setores, incluindo as empresas estatais, dentro do princípio
do usuário-pagador.
• Discussão e consenso sobre o critério para o cálculo do quantum e da
relação custo X benefício.
• Possibilidade de participação dos setores envolvidos "pagantes", no
controle da destinação das verbas arrecadadas e direito de informação
dos contribuintes.
• Consideração do princípio poluidor-pagador (distinto do usuário-
pagador), com caráter de sanção, para fase separada, com o objetivo
de fazer com que todos aqueles que deterioram as águas contribuam
para sua recuperação.

344
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

• Consideração da possibilidade de interface e de composição entre a


cobrança pelo uso da água e o reuso da água.
• Absorção de novas tecnologias já disponíveis, com perspectivas de
convênios com organismos e entidades nacionais e internacionais.

3. Gestão patrimonial negociada de recursos hídricos

Tendo em vista que os recursos hídricos são patrimônio comum, a


gestão dos mesmos constitui um domínio privilegiado de aprofundamento de
métodos de mediação "patrimoniais".
O sucesso e desenvolvimento já alcançados em outros domínios, como
o administrativo-empresarial, autorizam a falar, atualmente, de um verdadeiro
gerenciamento do patrimônio natural.
Com seus defeitos e virtudes, a gestão da natureza tornou-se, de certo
modo, uma "escola de gestão da qualidade", um campo privilegiado para a
ação realizada em comum, visando a busca de excelência.
A principal meta do enfoque patrimonial consiste em oferecer subsídios
para se resolver, positivamente, os problemas complexos envolvidos na gestão
da natureza, de forma satisfatória, tanto para o homem, individualmente,
enquanto pessoa, como para a sociedade, enquanto comunidade de pessoas
físicas e jurídicas.
A experiência de alguns países mostra que a mudança é possível. Para
que isto ocorra, efetivamente, torna-se necessária a adoção de uma concepção
renovada do processo de mudança, ao lado de novas démarches de intervenção,
de novos papéis e de novas atividades e funções.
É certo que os riscos de fracasso existem.
Mas o empreendimento pesquisa-ação embutido, por exemplo, na
auditoria, sugerida acima, e complementado pelo momento da apresentação
de suas conclusões, surge como uma ocasião de ampliação, de aprofundamento
e de enriquecimento da ação.
O conceito de "soluções negociadas" e de "gestão patrimonial
negociada" desenvolveu-se, na França, a partir de meados da década de 70,
através de uma corrente original de pensamento centrada na idéia de "gestão
patrimonial negociada de recursos naturais" (De Montgolfier & Natali, 1987).
A doutrina elaborada está baseada nos seguintes argumentos:

345
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

a)A qualidade dos recursos naturais depende do processo de evolução


de meio ambiente; e a gestão de alguns deles, como os recursos
hídricos, depende da gestão de outros. Na medida em que estes
recursos estão submetidos aos mais diferentes tipos de reações
imprevisíveis, um dos principais critérios de absorção ou de
adaptação reside na proteção da variedade de composição do meio.
Paralelamente, a gestão dos recursos deve levar em conta a
manutenção da variedade de potencialidades de uso, o que pressupõe
a existência de um fator de segurança a ser incorporado.
b) A preocupação de legar às gerações futuras um patrimônio natural,
em processo dinâmico de evolução, na medida em que o mesmo
deve evoluir justamente com seu(s) titular(es). Este constitui o
objetivo principal do trabalho de gestão, ao lado de outros objetivos
mais clássicos. Cabe ao Estado representar os interesses das gerações
futuras, se outros atores não o fizerem de maneira espontânea.
c) De um modo geral, a solução institucional não pode ser encontrada
na tentativa de fazer com que a Administração assuma diretamente
o trabalho de gestão, pois, a qualidade do meio ambiente depende
de comportamentos e de usos cotidianos de um número elevado de
pessoas, bem como de interdependências que se criam entre elas,
nas diversas oportunidades. Muito freqüentemente, a Administração
direta pelo Estado consegue apenas provocar o desinteresse e a falta
de responsabilização das populações locais, sem que o Estado
disponha de capacidade de informação e de resposta adequada à
solução de problemas marcados por especificidades, que
caracterizam o nível local. O objetivo da intervenção do Estado
dever-se-ia traduzir, portanto, e prioritariamente, no estímulo ou no
desenvolvimento de uma consciência patrimonial, junto aos atores
implicados na dinâmica de evolução do meio ambiente ou de um
recurso natural, mas respeitando a liberdade e a responsabilidade
destes atores.
d) Tipo de gestão exigido pelos problemas ligados à degradação do
meio ambiente e dos recursos naturais, entre eles, os recursos
hídricos, se bem que existam formas de gestão patrimonial que
decorrem da responsabilidade de um titular único (pessoa pública
ou privada), constitui uma gestão patrimonial de "bens comuns",
implicando uma pluralidade de atores que descobrem, cada um deles,
um interesse patrimonial pelo mesmo recurso ou pelo mesmo espaço,

346
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

para além dos recortes jurídicos estabelecidos através de direitos


de propriedade. É a chamada "função social" da propriedade que,
entre nós, consta da Constituição Federal (art. 5º, inciso XXIII).
e) Considera-se que o motor deste tipo de gestão reside na organização
de um processo de negociação entre os atores envolvidos. Estes
últimos irão definir, cada qual em função de seus próprios interesses
patrimoniais e de forma consensuada, as regras e os instrumentos
de gestão a serem acionados, bem como as regras de atualização
destes regimes de gestão. O sucesso desta negociação, que não exclui
- ao contrário - as fases de conflito, depende da elaboração de uma
linguagem comum, da definição de um local e de procedimentos de
negociação indutores de acordos. Um dos pontos de apoio para a
superação das fases conflitantes reside na invenção de soluções
positivas susceptíveis de deslocar o quadro inicial de referência, no
qual as oposições foram cristalizadas. Em caso de êxito, a negociação
produz um benefício mútuo para todas as partes envolvidas: o reforço
da identidade e da autonomia dos diversos atores envolvidos, que
decorre do processo, constitui o critério último de uma boa gestão.
f) A adoção de um quadro de referência e de um procedimento
explícitos de negociação; a mobilização de conhecimentos sobre
meio ambiente, não só por parte de técnicos e experts no assunto,
mas também, de atores locais; a elaboração de previsões e de cenários
capazes de simular as evoluções possíveis; a implementação de
abordagens "multicritério", levando em conta os diversos pontos de
vista representados pelos diferentes atores. É assim que este processo
de negociação reorganiza e racionaliza as formas tradicionais de
gestão, freqüentemente pouco claras e pouco coerentes.
g) Os meios a serem mobilizados para se assegurar a gestão e o controle
são diversificados: regulamentos, instrumentos financeiros,
incentivos, meios de informação. Mas, sua eficácia depende,
fundamentalmente, do fato de que eles resultem de uma negociação
que promova a associação das partes envolvidas, bem como da
maneira pela qual se insiram num conjunto de comportamentos
efetivos de gestão. Em conseqüência da ausência de uma tal adesão
preliminar, a abordagem regulamentar clássica tem sido, quase
sempre, ineficaz. Ou seja, pouco apta a ser aplicada, tornando-se
rapidamente defasada relativamente à evolução das práticas e das
técnicas, mantendo-se confinada entre os extremos da impotência

347
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

(caso se apresente como muito geral) e da paralisia (caso insista no


excesso de detalhes).
No fundo, esta nova abordagem destaca a idéia de atores autônomos e
responsáveis, cuja identidade e capacidade de adaptação resultam da gestão
refletida de relações patrimoniais estabelecidas com os recursos naturais e
com o habitat.
Ela destaca também a relação de negociação explícita entre estes atores,
mas sob a perspectiva de uma gestão comum ou mesmo comunitária.
Ela não elimina, entretanto, o papel de administrações estatais,
incumbidas não só de fazer valer seus interesses próprios, mas também,
enquanto meta-atores, de organizar ou facilitar a instalação e o desenvolvimento
das negociações.
Torna-se surpreendente reconhecer que este modelo, longe de se
constituir em alavanca de um posicionamento do Estado, no sentido de assumir
diretamente a responsabilidade pelo patrimônio natural, procura viabilizar a
relação de negociação simétrica entre diferentes atores, que se sentem
comprometidos, com a evolução de um lugar ou de um recurso natural.
Isto só se torna possível, se pressupormos que todos estes atores sejam
portadores de uma visão e de interesses patrimoniais, mesmo se tais interesses
forem diferenciados.
Esta hipótese fundadora permite integrar duas condições: uma
preocupação patrimonial compartilhada, que deve permitir o reconhecimento
mútuo; e uma diferença de interesses que legitima e alimenta a negociação.
Nesta figura, a hierarquização induzida pela noção de patrimônio,
reputada como interiorizada por cada um dos atores, alicerça uma tendência
de desierarquização das relações sociais e o estabelecimento de relações
contratuais simétricas.
Existem, nesta descrição, numerosos indícios, que atestam que a "gestão
patrimonial negociada dos recursos naturais" representa uma figura de
"compromisso" pela qual se busca estabelecer um novo princípio de
legitimidade no espaço público: ativação, sobretudo, da "cidade doméstica"
(ética da gestão e da transmissão patrimonial, utilização de saberes locais
informais) e, secundariamente, da "cidade cívica" (reconhecimento, na
qualidade de sujeitos legítimos em posição de igualdade, de todos aqueles
que se vêem como portadores de um interesse patrimonial), e demarcação
formal da relação constitutiva da "cidade mercantil" (o acordo resulta de um
processo de negociação mutuamente rentável), estando o conjunto consolidado
e enquadrado pela visão "industrial" (mobilização dos recursos da ciência

348
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

para adquirir uma informação objetiva, produtora de previsibilidade e de


controle, e emprego de métodos racionais de aconselhamento de processos
decisórios, visando a valorização, bem como a proteção da potencialidade
em termos de recursos naturais).
Não deve surpreender, portanto, que possamos efetuar várias leituras
deste tipo de gestão, e, sobretudo, que não possamos decidir de maneira
categórica entre elas.
Será que podemos vislumbrar potencialmente na gestão patrimonial da
natureza um novo princípio fundador de uma ordem de justificação bem
constituída?
No estágio atual de formulação desta abordagem, nossa resposta é
negativa, devido aos obstáculos práticos e teóricos relacionados, seja com a
estrutura de argumentação, seja com as provas de justificação e o modo de
coordenação propriamente dito.
No que diz respeito a este, podemos visualizar a organização de uma
negociação entre atores, assumindo uma posição de importância central.
As condições de sua implementação são evidentes: locais físicos e
institucionais para encontros, um contexto organizado para o desenrolar da
negociação que disponha da anuência das partes e, sobretudo, atores bem
identificados, reconhecendo-se mutuamente, como legítimos e capazes e
dispostos a se engajar num processo de gestão.
Podemos notar aqui duas fraquezas:
• Inicialmente, uma fraqueza de ordem prática. A sensibilidade difusa
da opinião pública, tal como ela se reflete nas sondagens, ou as práticas
de envolvimento pessoal exercidas por usuários dispersos e não
organizados não configuram uma base suficiente; é ainda necessário
que surjam mediadores ou atores reconhecidos como representantes
ou porta-vozes de seus interesses, dispondo de um poder real de gestão;
• Em seguida, uma fraqueza de ordem teórica. Como identificar atores,
que disponham de prerrogativas legítimas para tomar parte nos
processos de negociação e de gestão, considerando-se que o discurso
patrimonial pretende não se ater aos direitos de propriedade já
estabelecidos? Toda pessoa que descobrisse para si um interesse
patrimonial, relativamente aos recursos e ao meio ambiente, este
interesse teria que ser considerado. Esta visão pode certamente encontrar
algum fundamento doutrinário nos princípios gerais do direito brasileiro

349
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

(art. 225, da Constituição Federal: o meio ambiente é bem de uso comum


do povo; art. 2º, I e art. 3º, V, da lei 6.938/81). Mas ela carece, por
outro lado, de uma localização precisa no direito atual; quando se trata,
por exemplo, de tornar reconhecidos os direitos de reparação de danos
ambientais, os critérios apresentam-se como extremamente restritivos,
centrados na noção de propriedade (Martin, 1989). Os casos de aplicação
da démarche de gestão patrimonial faz pensar que seriam os atores
concretamente envolvidos num processo conflitivo, tendo adquirido
na prática o poder de bloquear uma decisão ou um projeto, aqueles
com os quais conviria estabelecer a negociação. Mas, esta posição
"realista" não nos parece justificável, o que nos conduz a um outro
aspecto do problema.
Do ponto de vista da coerência do discurso de justificação, certas
dificuldades podem surgir.
Estas dificuldades decorrem da assimetria radical das gerações presentes
e das gerações futuras, em nome das quais o patrimônio deveria ser gerido.
Se nos ativermos numa análise mais profunda, não se legitimaria um
raciocínio, que implicasse um sacrifício das gerações presentes em benefício
de gerações futuras, na medida em que estas últimas não poderiam oferecer
uma contrapartida equivalente.
Evocando a análise do famoso jurista, John Rawls (1978), sobre este
ponto, parece que esta ausência de reciprocidade nas relações entre pessoas
estaria em contradição com um dos axiomas constitutivos de uma "cidade"
ou seja o axioma da "dignidade comum".
Todavia, o argumento do sacrifício ilegítimo poderia ser utilizado, no
sentido oposto, em benefício das gerações futuras, desde que se trate não de
conceder um capital indiferenciado e em expansão, mas de definir as regras
de uso de "bens" não substituíveis e não reprodutíveis pelo homem, se bem
que potencialmente renováveis através de processos naturais (espécies,
ecossistemas e, talvez, atualmente, climas). Ou seja, bens que as gerações
atuais têm o poder de destruir de maneira irreversível, sendo que seria lícito
utilizá-los e geri-los, de maneira a transmiti-los às gerações seguintes.
Estas dificuldades não foram ainda solucionadas e se torna necessário,
sem dúvida, que nos resignemos a ver a retórica do patrimônio natural e do
desenvolvimento sustentável permanecer ainda por um certo tempo no estágio
de compromisso em formação.

350
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Podemos mesmo indagar se nos será possível algum dia construirmos


uma "cidade de sustentabilidade ecológica".
Se não quisermos considerar como legítima apenas uma "ordem" em
que a geração atual esteja voltada unicamente para a satisfação de seus próprios
interesses, talvez seja necessário tomar consciência da assimetria da relação
intergeracional e questionar o modelo da "cidade", visto como modelo geral
de legitimidade.
Também é necessário reconhecer, no âmbito de uma sociedade, dois
tipos legítimos de discurso: aquele que é pronunciado em nome dos direitos
legítimos de seu proponente; e aquele que é pronunciado por "porta-vozes"
de interesses ou de direitos não presentes de forma direta na sociedade, quer
se trate daqueles associados às gerações futuras ou daqueles relativos a outras
espécies que não a espécie humana.
Esta maneira de ver a questão pode aliás se inscrever no movimento
geral de universalização, que constitui o motor da busca de legitimidade.

4. Obstáculos a serem vencidos antes da cobrança pelo uso da água

Desde a Conferência das Nações Unidas, sobre Águas, em 1977, já se


mencionavam várias recomendações, visando a eficiência de utilização da
água, defendendo-se a adoção de escalas de tarifas, que refletissem o custo
econômico real.
Neste sentido, também se pronunciou a Declaração de Dublin, em
janeiro de 1992.
A aceitação pelos Governos e pela sociedade como um todo de que a
água é um bem econômico, com um valor que reflita seu uso mais produtivo,
é um pré-requisito para a administração sustentável dos mananciais.
Mas, é imprescindível que a adesão a este princípio seja acompanhada
por um compromisso público transparente de uma locação eqüitativa dos
mananciais disponíveis.
Abaixo, transcreve-se, como doutrina, as considerações que Veiga da
Cunha e outros (in "A Gestão da Água - Princípios Fundamentais e sua
Aplicação em Portugal", Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, citado
por Maria Luiza Machado Granziera, in "Direito de Águas e Meio Ambiente",
p. 32 e segs.) fazem acerca da questão da cobrança pelo uso da água, nas
Bacias Hidrográficas:

351
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

• "as formas de intervenção das administrações de bacia hidrográfica,


para condicionar o comportamento dos utilizadores com vista a
conseguir uma efetiva gestão de recursos hídricos, correspondem
fundamentalmente à aplicação de sistemas de normas e/ou taxas por
rejeição de afluentes e à aplicação de taxas por consumo de água;
• na aplicação de sistemas de taxas, é muito importante que os
respectivos quantitativos unitários sejam corretamente fixados por
forma a favorecer a interiorização de deseconomias internas e a não
introduzir distorções econômicas;
• na prática, para controlar o lançamento de efluente, impõe-se,
normalmente, um certo compromisso entre o sistema de taxas (em geral
proporcionais à carga poluente lançada), mais adequado à maximização
dos benefícios que a coletividade pode recolher da utilização da água,
e o sistema de normas (cuja violação é punida com multas) justificável
quando se pretendem fixar certos padrões mínimos de qualidade
impostos, sobretudo, por razões de preservação da saúde pública ou do
ambiente;
• os quantitativos unitários devem, em princípio, ser dependentes do
tipo de efluente, do local de rejeição, e do caudal do cursos de água
receptor; como a aplicação de um sistema de taxas com estes requisitos
levanta problemas complexos, é necessário, na prática, procurar um
compromisso entre a solução teoricamente ideal e uma solução prática
que possa ser aplicável de forma eficiente;
• os quantitativos unitários devem ser sempre muito mais elevados que
os das taxas, por forma a desencorajar radicalmente o desrespeito das
normas;
• as taxas a pagar por consumo de água devem ser proporcionais às
quantidades consumidas, sendo de admitir, em certos casos, tarifas
progressivas ou regressivas; as tarifas progressivas têm lugar quando
se pretende contrariar o desperdício de água e parecem corresponder a
uma fórmula que haverá cada vez mais tendência para utilizar; as tarifas
regressivas podem ser utilizadas em casos excepcionais de regiões em
que interesse estimular o aumento dos consumos, para permitir
economias de escala nas obras que seja necessário realizar;
• na definição dos sistemas de taxas, deve-se procurar ter em conta
todos os custos e benefícios, mesmo os de avaliação difícil ou subjetiva,
como sejam os ligados às utilizações recreativas ou aos valores do
ambiente;

352
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

• para poder colocar em prática as disposições anteriormente referidas,


as administrações de Bacia Hidrográfica devem promover a instalação
de sistemas adequados de controle da utilização das águas e dispor de
autonomia e de meios que lhes permitam tomar medidas imediatas para
fazer respeitar as normas que estabelecem;
• as administrações de Bacia Hidrográfica devem empreender realização
de obras coletivas sempre que elas conduzam a economias em relação
a medidas tomadas isoladamente nos diversos locais de rejeição de
efluentes ou de captação de águas."
A Agenda 21 recomenda que o recurso hídrico seja cobrado, levando-
se em conta seu custo marginal, observando-se as realidades locais.
É assim que, em nosso entender, a definição dos instrumentos técnicos,
jurídicos e gerenciais, necessários à implantação da cobrança, deve ater-se à
realidade brasileira, ainda que se inspire em exemplos de outros países, até
porque, felizmente, nosso maior problema não é a quantidade, mas a qualidade
dos recursos hídricos.
Assim, modelos de outros países podem servir de inspiração, mas não
necessariamente serem tomados como totalmente adequados à realidade
brasileira ou ao Estado de São Paulo.
De qualquer forma, a cobrança deve ser criteriosamente planejada e
negociada para evitar distorções.
Existem critérios a serem reconhecidos e adotados para a cobrança.
Para cobrança pelo uso ou derivação, serão considerados a disponibilidade
hídrica local, o grau de regularização assegurado por obras hidráulicas, a
vazão captada em seu regime de variação, o consumo efetivo e a finalidade a
que se destina. Para a cobrança pela diluição, transporte e assimilação de
efluentes, serão considerados a classe de uso em que for enquadrado o corpo
d'água receptor, o grau de regularização assegurado por obras hidráulicas, a
carga lançada e seu regime de variação, ponderando-se, entre outros, os
parâmetros orgânico-físico-químicos dos efluentes e a natureza da
atividade responsável por eles.
Como se nota, é muito importante, para a cobrança do uso da água, a
classificação das águas e dos efluentes (Maria Luiza Machado Granziera,
ibidem, p. 34), como importante é a consideração da cobrança, dentro de um
contexto - o nosso contexto histórico, social e cultural - ainda que tenhamos
que complementar nosso conhecimento com o de outros países.

353
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

O que não é certo, é se descartar a realidade em que vivemos.


Até agora, os Projetos de Lei, pelo menos em São Paulo, sobre cobrança
pelo uso da água, não têm permitido elaborar, adequadamente, a interseção
entre seus conteúdos e os da Lei Federal e da Lei Estadual sobre Política de
Recursos Hídricos, bem como não abarcam sequer os pontos técnicos e
gerenciais mais importantes da questão, quanto à organização do Sistema de
Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Tudo isso, em nosso entender, comprometerá o sucesso do verdadeiro
objetivo: proteção dos recursos hídricos.
Outros aspectos merecem ênfase, como a adoção da Bacia Hidrográfica
como unidade econômica de gestão - de onde decorre a descentralização na
administração - o que é certo, mas não suficiente, pois, traz como
conseqüência não levar em consideração o ecossistema como um todo. Isto
sem contar as indagações sobre a competência de tributar.
Por se tratar de uma novidade, insiste-se sobre a necessidade de
implantação dos instrumentos jurídico-institucionais adequados, que darão o
embasamento de sua implementação.
É digno de nota, ainda, o entendimento da água, considerando-se os
aspectos quantidade/qualidade, além da consideração das águas subterrâneas.
Sua regulamentação deve levar em conta, basicamente, a necessidade
de um processo de ajuste e de adaptação gradual ao novo modelo institucional
de gestão de águas, de forma que lei e regulamento possam ser aplicados com
a tão necessária efetividade.
Outro ponto a considerar é a negociação nas decisões a serem tomadas,
com a participação e representatividade do setor empresarial, junto ao Governo,
centros de pesquisa, Universidades e comunidades locais, embora, muitas
delas, de pequenas localidades e pequenos empreendimentos agrícolas estariam
dispensadas de "pagar" pelo uso da água, com o que o setor industrial, desde
logo, discorda.
A descentralização administrativa ocorrerá, de fato, com a criação de
entidades para gestão local de recursos hídricos, nas quais participarão
segmentos das populações interessadas.
Isto pode propiciar a efetividade e legitimidade das decisões adotadas,
com a certeza de que aqueles que seriam diretamente afetados por qualquer
projeto, no que se refere a águas, tenham participado e mesmo opinado sobre
o mesmo, para que, na sua execução, os custos e benefícios estejam em

354
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

equilíbrio, não só entre os participantes, mas em relação aos usos do recurso


compartilhado, sem deixar de lado a proteção do meio ambiente.
No entanto, legislar parece ser o desafio menor.
O problema não é a falta de normas.
O processo legislativo é fundamental, mas só quando reflete um
amadurecimento dos segmentos envolvidos.
Seu ajuste às realidades nacionais, regionais e locais, sob uma visão de
escalas espácio-temporais, é de vital importância. Da mesma forma, uma
estrutura institucional destinada a fazer cumprir a norma.
Não deve ficar descartado o princípio de que a água não tem fronteiras;
é bem comum, que impõe cooperação internacional.

5. Considerações finais

Como se nota, é grande o papel que os recursos hídricos possuem de


via de negociação política, entre países, entre Estados, entre Municípios e
sobretudo, entre Governo e empresários, com a finalidade de definir as formas
de aproveitamento múltiplo e compartilhado das águas.
Este exercício parece-nos a forma mais adequada de proteger as águas,
sem que estas deixem de cumprir a função vital de atender o homem em suas
necessidades e atividades.
A estrutura básica institucional deve fundamentar-se no planejamento
e gerenciamento ambiental, com base jurídica, com relação à propriedade e
utilização dos recursos naturais, ou seja, solo, subsolo, água, vegetação e
assim por diante.
A garantia constitucional dos direitos humanos básicos, a liberdade de
pensamento, de crença, de expressão e organização e as ordens básicas entre
o poder do Estado, os direitos e responsabilidades individuais são essenciais
ao processo social de busca de harmonia.
Reconhece-se que leis e regulamentos sobre a proteção dos recursos
hídricos são indispensáveis.
Mas, é essencial a capacidade institucional e operacional de
implementação em nível local.
A autonomia local tem um forte e importante papel, do ponto de vista
de interesses locais. Instituições legais para lidar com reclamações de

355
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

comunidades e usuários locais, para ordenar as queixas sobre ações


administrativas e para promover "arbitragens" para soluções de conflitos em
relação ao desenvolvimento e o meio ambiente devem ser estabelecidas.
A existência de leis impositivas e regulamentos estritos não garante
necessariamente sua efetiva implementação.
O planejamento e o processo de decisão política no desenvolvimento
do plano ecológico-econômico, em nível nacional, regional e local, são as
chances mais importantes e efetivas para se buscar a harmonia entre
desenvolvimento e meio ambiente.
Os estudos de impacto ambiental, o exercício de se ouvir o público e a
divulgação de informações são efetivos instrumentos institucionais para
encorajar a participação e cooperação pública.
A divisão de recursos e a distribuição dos riscos/custos/benefícios en-
tre os indivíduos, organizações, Estados e países interessados são fatores cruciais
para a harmonia apropriada entre o desenvolvimento e o meio ambiente.
A responsabilidade social das empresas, em termos de custos de
administração ambiental, relações com Governo, comunidade, relações
internacionais e desenvolvimento econômico sustentável, em complementação
ao serviço para os clientes e usuários, ocorrerá, naturalmente, com a
contrapartida de uma gestão patrimonial negociada, entre todos estes segmentos.
A aproximação inter-setorial, inter-departamental, inter-ministerial entre
o Governo Federal, Estadual e local é essencial na busca de harmonia entre o
desenvolvimento e o meio ambiente.
A Administração ambiental é freqüentemente um setor pequeno e fraco
dentro do sistema administrativo tradicional, mantido por políticos e grupos
de interesse.
Organizações de comunidade e organizações não-governamentais para
ações internacionais relacionadas com o meio ambiente também têm um
importante papel no equilíbrio de interações de poder entre o público, o
Governo e a indústria, no processo de planejamento e decisão do
desenvolvimento e meio ambiente.
A comunicação de massa tem freqüentemente o papel decisivo de
influenciar decisões políticas, assim como o de criar um público bem informado.
A ciência e a tecnologia desempenham um importante papel na
identificação dos problemas, na avaliação e determinação das inter-relações
entre o desenvolvimento e o meio ambiente e também na solução das
dificuldades para alcançar a harmonia entre eles.

356
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Entretanto, a ciência e a tecnologia têm os potenciais dos dois gumes da


espada: "prós" e "contras" a harmonia, em várias situações sociais e políticas.
A diferenciação de papéis entre ciência, administração, política e o
judiciário deve ser apropriadamente orientada e observada.
Reconhece-se que a prevenção é bem menos onerosa que o
tratamento posterior.
Mas, a precaução, também, há de ser buscada, na medida em que se
reconhece que a questão do desenvolvimento e meio ambiente não escapa de
várias incertezas científicas.
Esta é a razão da grande diversidade de percepção, compreensão e
julgamento das mesmas matérias relacionadas ao desenvolvimento e meio
ambiente.
Além disso, há também políticas e interesses conflitantes, em relação
ao desenvolvimento e ao meio ambiente, seja entre indivíduos, seja entre
empresas e governos, particularmente, para lidar com a harmonia entre o
desenvolvimento e o meio ambiente.
É importante reconhecer que matérias ambientais e de desenvolvimento
estão fortemente ligadas a assuntos sociais, culturais e políticos, no estágio
de desenvolvimento histórico de nosso país.
Concluindo, a gestão dos recursos hídricos deverá efetivar-se, após um
amplo processo de negociação entre as partes envolvidas, partes estas
legitimadas através de mediadores, de maneira a refletir não só os
conhecimentos técnicos e científicos, como também, os princípios que o
norteiam, as adaptações à realidade ambiental e à estrutura jurídico-
institucional em vigor em nosso país e nos diversos Estados da Federação.
Existem sérias lacunas e descontinuidades a serem preenchidas, antes
das tomadas de decisão e antes de sermos empurrados, a esmo, para frente, seja
em nome da proteção dos recursos hídricos, seja em nome da sustentabilidade.
Se os recursos hídricos são importantes, outros recursos o são, igualmente,
quais sejam, a manutenção de um sistema jurídico coerente, em que possamos
delinear com clareza as regras do jogo; a credibilidade de instituições às quais
possamos recorrer, quando nos sentirmos lesados; a abertura de canais de
informação; o controle sobre aquilo que é nosso, seja em termos de dinheiro
público, seja em termos de riquezas naturais, sobretudo quando existem fortes
perspectivas de investimentos estrangeiros, no setor de saneamento público.
Não tem sido esta a política cultural em nosso país.

357
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Ao contrário, tem havido uma cultura de rupturas, que não acompanha


o processo dinâmico de evolução da sociedade e dos recursos naturais, nem
harmoniza seus vários segmentos e interfaces.

Perfil curricular dos autores

Emilio Yooiti Onishi – eonishi@uol.com.br – é engenheiro


metalurgista pela Escola Politécnica da USP, engenheiro sanitarista pela
Faculdade de Saúde Pública da USP e “Master of Science” em Engenharia
Ambiental pela University of Cincinnati – USA. Exerceu funções de:
Gerente de Controle de Poluição Ambiental na CETESB; Assessor do
Diretor Industrial na COSIPA; Gerente Corporativo de Meio Ambiente
na PHILIPS do Brasil; e Chefe do Departamento de Meio Ambiente na
FIESP. Atualmente é Diretor da LANDMARK - Engenharia Ambiental
Ltda.

Maria Christina Napolitano - cdma@fiesp.org.br – é formada em


Direito pela USP. Mestre em Ciências Ambientais pela Universidade
Estácio de Sá – UNESA/RJ. Pós-graduada em Direito Ambiental e em
Perícia e Auditoria Ambiental pela UNESA/RJ. Doutoranda em Direito
na Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP. Ex -Técnica em Pesquisas
Ambientais da Confederação Nacional da Indústria – CNI. Consultora
técnico-jurídica junto ao Departamento de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável da FIESP. Diretora da ECOGREEN –
Assessoria Ambiental Ltda.

358
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS


E A AGRICULTURA IRRIGADA

Josefa Salete Barbosa Cavalcanti

1. Introdução

“Mais do que antes, então, natureza é algo feito. Para alguns isto
representa o fim da natureza (McKibben, 1989, in Braun e Castree,1998),
uma resposta enraizada firmemente num moderno realismo no qual a natureza
é vista como externa à sociedade: a sua outra. Desta perspectiva a natureza
deve ser protegida contra sua destruição pelos humanos e as linhas de batalha
devem ser marcadas para preservar seu caráter puro. Para outros, o
relacionamento da humanidade com a natureza, em todas as suas permutações,
é inevitável e inerentemente subversivo do dualismo natureza-sociedade. Vista
desta perspectiva, a intervenção humana na natureza não é assim não natural
nem algo a temer ou criticar. Isto não descarta limitadas ações humanas em
situações específicas, mas dessa perspectiva o que está em jogo não é preservar
os últimos vestígios da natureza pura, ou proteger a santidade do natural,
mas construir perspectivas críticas que focalizem a atenção em como naturezas
sociais são transformadas, por quais atores, em benefício de quem, e com
quais conseqüências sociais e ecológicas.” (Braun e Castree,1998 :4)

2. A gestão da água. Um espaço de contestação

Neste artigo estou estimulada a contribuir com o debate que se


estabelece em torno do que prevê a lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997 que
institui a Política Nacional e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento dos
Recursos Hídricos, a partir de uma das suas interfaces, a irrigação. Para isto,
examino casos nos quais a gestão desses recursos e as cobranças sobre os
seus usos estão sendo objeto de contendas para que, ao apontar processos
sociais que emergem das interações entre a água e a agricultura, em situações
atuais, possa subsidiar a implementação dos instrumentos previstos na lei.
Isto será feito com e a partir de referências empíricas sobre modos de

359
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

apropriação e usos dos recursos hídricos na agricultura orientada para


exportação. Tal estratégia analítica me permite fazer uma associação entre
processos sociais que são gerados nos contextos de irrigação em geral e
delinear caminhos para novas formas de gestão que sejam capazes de
impedir, minimizar, prevenir e administrar tensões que venham a emergir
na dinâmica da imple-mentação da lei.
É interessante ponderar que as tensões e conflitos que se desenvolvem
nas áreas irrigadas têm origem no fato de que as populações que dependem
da irrigação no Brasil são também dependentes da terra para a sua reprodução.
Entretanto, ao contrário do que acontece nas suas relações com a terra, elas
desconhecem o valor econômico da água ou raramente o incluem nos cálculos
dos custos de produção
Essa incapacidade de reconhecimento do valor dos recursos naturais
está também presente nas análises sobre o desenvolvimento agrícola, as quais
pouco têm realçado o valor e os custos dos recursos hídricos nas atividades
produtivas. Nessas análises, o entendimento das relações entre capital e
trabalho como aquelas capazes de gerar produtos para a subsistência e a
reprodução das populações e garantir a circulação de bens nos mercados
minimizam, pela ênfase sobre a terra, o lugar dos recursos hídricos na
composição dos “recursos naturais” necessários aos empreendimentos
dessa natureza.
As análises clássicas sobre o desenvolvimento agrícola se detiveram
na repercussão sócio-econômica de tipos específicos de controle do capital
sobre o trabalho atentando, ora para o tamanho do empreendimento, ora para
o tipo de exploração de uns sobre os outros, segundo a lógica das unidades
produtivas. Nelas há questionamentos sobre os usos e abusos da terra, do
trabalho e do trabalhadores, mas pouco sobre o caráter limitado e perecível
da natureza. Geralmente, como afirma Goodman (1999), enfatiza-se a segunda
natureza, uma de suas interfaces – a agricultura gerando, por conseguin-
te, uma noção vaga do valor e vulnerabilidade de recursos que são, por
razões políticas ou epistemológicas, relegados a um plano inferior de
reconhecimento social .
Essa tendência a desconsiderar a natureza e a sua construção social,
enquanto valor econômico primordial, tornou-se uma ameaça para a
sustentabilidade de qualquer projeto de desenvolvimento. Em assim dizendo
não estou, todavia, definindo a quem cabe arcar com os ônus dos seus usos;
este é um tema para definição social de agentes e sociedades envolvidas.
Estou, sim, tentando refletir sobre problemas que surgem a partir das práticas
e dessas formas particulares de apreensão da realidade.

360
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

No Brasil, por exemplo, a terra tornou-se mercadoria de elevado valor


e fora do alcance da grande maioria da população, sendo, por isso, fonte
permanente de conflitos. Já a água, embora tenha sido sempre objeto de disputa
nas áreas e regiões de seca, pela escassez e contestação da privatização de
reservatórios construídos com recursos públicos, não foi regulamentada quanto
aos usos e formas de acesso. Neste aspecto, a lei aqui em análise constitui um
fato novo, embora requeira um redimensionamento quanto aos seus possíveis
usuários, para que não sejam penalizados e excluídos dos seus benefícios as
mesmas faixas de população, historicamente, privadas do acesso à água e aos
outros recursos .

3. Interesses locais e globais na gestão dos recursos hídricos

3.1 Irrigação e agricultura de exportação

No mundo contemporâneo os usos e controles dos recursos “naturais”


são, simultaneamente, objetos de interesses locais e globais. Cavalcanti(1997)
chama a atenção para o modo como a globalização dos sistemas agro-
alimentares tem influenciado em regiões produtivas particulares, sublinhando
que a ênfase no atendimento aos padrões externos de consumo tem produzido
efeitos especiais sobre o desenvolvimento das áreas irrigadas. Para citar alguns:
a irrigação contribui para acentuar as vantagens comparativas regionais pela
possibilidade que oferece à multiplicação dos tempos e formas de uso dos
recursos implicados, pelos quais as mercadorias chegam aos mercados segundo
a demanda, mesmo fora dos tempos considerados “naturais” de produção.
Entretanto, essa ênfase nos mercados deve ser monitorada para prevenir os
desgastes ambientais que provoca. Marsden, Cavalcanti e Ferreira Irmão (1996)
chamam a atenção para a crescente vulnerabilidade dos terrenos irrigados,
provocada pelo stress do incremento do trabalho e das inovações tecnológicas.
A literatura sobre a globalização dos alimentos (Goodman e Watts,
1997; Bonanno, et al. 1994) tem analisado modos como a produção de
mercadorias passa a ser gerida por um padrão de qualidade externamente
definido, por exigências de que devem conter referências sobre as condições
locais e do modo como a qualidade dos vários meios de produção nelas se
incluem. Mesmo assim, os controles sobre os usos da natureza são ainda
tênues.
A incorporação da natureza no conjunto das construções sociais é um
fato recente. A natureza e a natureza da construção desses recursos vêm
merecendo, sob uma nova ótica, a atenção de distintos campos do

361
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

conhecimento (Ver, Braun e Castree,1998). Igualmente é possível que as


mudanças no consumo venham influenciando a diversificação dos usos da
natureza e do consumo de produtos mais naturais, exóticos e saudáveis; do
mesmo modo, contribuem para a intensificação das relações entre regiões,
via novas formas de lazer, criando situações de encantamento e de riscos para
os seus usuários e para as bases ambientais, como bem afirma Marsden (1997):
“As demandas externas sobre a qualidade dos produtos alimentícios, sem
atentar para as condições ambientais e do trabalho nas quais esses são produzidos,
tendem a desvalorizar as condições ambientais e, assim, exacerbar a sua
vulnerabilidade. Os processos levam a novos padrões de desenvolvimento
ambiental desigual, pelos quais diferentes regiões intensificam ou desintensi-
ficam suas agriculturas e o uso e oferta de água.” (Marsden, 1997:322)
Mas é possível afirmar que os requerimentos quanto à qualidade dos
produtos e o reforço dos limites aos usos do meio ambiente e de condições
saudáveis de produção podem auxiliar os produtores na luta pela melhoria da
qualidade nos usos dos recursos naturais, na qual a regulação dos recursos
hídricos são da maior importância. Assim, as populações locais podem
encontrar aliados em parcelas de exigentes consumidores globais de suas
mercadorias. Na fruticultura de exportação, os locais de cultivo, de trabalho e
de embalagem dos produtos são inspecionados pelos possíveis compradores.
Igualmente, a crescente preocupação com a qualidade do meio ambiente está
sendo incluída entre os requisitos de qualidade dos produtos.
Nas áreas recentes de irrigação1, é facilmente observável como,
originalmente, o valor econômico dos recursos hídricos foram pouco
reconhecidos nos custos dos meios de produção. Para os produtores do Vale
do São Francisco, por exemplo, a água usada nas suas plantações seria um
componente natural, próprio da irrigação, que não era incluída nos custos da
sua produção. Apesar de pagarem uma taxa de utilização da irrigação, eles a
esta se referiam como relativa “à eletricidade que proporcionava a chegada
da irrigação aos seus campos”; como, numa das falas dos nossos informantes:
“Por que pagar por um recurso que existe em abundância?”
Entretanto, desde 1997, pelo menos, a cobrança das taxas e a
implementação das penalidades respectivas pelo não pagamento das taxas de
1
O Vale do São Francisco é aqui restrito à região formada pelo pólo de irrigação Petrolina(PE)/Juazeiro(BA).
Com uma área irrigada de mais de 70.000 ha, com potencial para mais de 100.000 ha, a região destaca-se
pela produção de frutas para exportação. Os dados aqui apresentados são resultados de uma pesquisa
realizada a partir de 1993, com apoio do CNPq. A abordagem metodológica utilizada inclui trabalho de
campo no qual, além do estudo de fontes secundárias, foram usadas técnicas qualitativas de entrevistas
com informantes-chave, análise de histórias de vida e observação das atividades diárias de colonos,
grandes produtores, trabalhadores e trabalhadoras foram utilizadas, juntamente com o uso de material
secundário colhido junto às principais instituições da região.

362
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

água, que na prática resultaram no corte da água, tornaram-se foco de disputas;


isto porque, no mesmo período, foram também atualizadas as normas que
definiam a titulação dos lotes sob controle dos colonos e de outros produtores,
tornando visíveis dois aspectos inerentes à gestão da atividade irrigada: a) a
vinculação das taxas de água aos seus usos, implicando na atribuição de um
preço e b) a descentralização da administração das áreas irrigadas, antes
restrita ao Estado, através de suas agências governamentais.
Nesse momento dramático de tentativas de redução do apoio do governo
federal à prática da agricultura irrigada, claramente evidenciada pela retirada
da CODEVASF das ações diretas de assistência técnica aos produtores, via
criação de distritos de irrigação, aos quais caberia participar na gestão e no
pagamento dos custos da assistência técnica, emergiram situações conflituosas.
Os confrontos entre agentes governamentais e produtores tornaram
claras, para os segundos, a necessidade de mediadores e de constituição de
uma categoria para resolver os impasses criados quanto aos seus distintos
objetivos, contribuindo para a formação da categoria irrigantes, que, segundo
comentaram os produtores da região, deveria defender os interesses dos
usuários da irrigação. Este fato tornou-se relevante para o estabelecimento
de alianças entre os setores públicos e privados na gestão dos recursos,
mesmo porque, apesar de mais de 20 anos de irrigação, os produtores do Vale
não haviam constituído uma categoria social identificada como usuária da
irrigação e dos seus benefícios. Subsidiados ou endividados que ficaram pelas
estratégias desenvolvimentistas adotadas para o setor agrícola, os colonos e
outros produtores do Vale somente se aperceberam de que não tinham
capacidade organizada para lutar pelos seus interesses quando foram amea-
çados do corte da água em seus lotes. A contestação ao modo como foram
implementadas as normas deu visibilidade a problemas que podem surgir
na implementação das novas formas de gestão e controle da água nas
regiões irrigadas. O detalhamento deste caso nos oferece caminhos para
compreensão do processo.

4. Os usos da água e a gestão ambiental

Planejada e desenvolvida através de ações do Estado brasileiro, sob o


impacto da modernização dos anos 1970, a região do Vale do São Francisco
apresenta, atualmente, condições excepcionais de produção geradas sob
impulso da irrigação e das novas demandas do mercado global (Cavalcanti,1997).
O desenvolvimento recente da fruticultura e seus índices significativos de
crescimento em quantidade e em qualidade, conforme avaliação dos seus

363
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

principais compradores da Europa e dos Estados Unidos, tornaram, esta,


uma região especial no contexto do semi-árido nordestino. A possibilidade
de uso e controle das águas, criada com a construção das obras hidrelétricas
- Sobradinho, por exemplo - e a expansão dos esquemas de irrigação, apoiados
por recursos públicos e financiamento de agências internacionais de fomento,
dinamizaram a economia regional, com crescimento do emprego e de
atividades que se destacaram enquanto elementos de atração de migrantes de
distintas origens. Os municípios de Petrolina(PE) e Juazeiro(BA) tornaram-
se exemplares (UFPE-PIMES,1991) ao dobrar sua população no período de
1960 a 1990 (FIBGE,1991, Cavalcanti, 1996a).
A expansão das atividades frutícolas para mercados e nichos de
mercados encontrou na irrigação o meio para garantir facetas de sua
competitividade. Movidos pela necessidade de oferecer mercadorias em tem-
pos e espaços distintos, os produtores do Vale encontram na irrigação o recurso
para potencializar as características edáficas e climáticas da região para
competir com uma produção just in time, resguardados os limites do tempo e
disponibilidade tecnológica.
Entretanto, a necessidade de produzir e os artifícios tecnológicos usados
para gerar produtos com padrão de qualidade, num tempo particular, tem
estimulado os agentes produtivos a interferir diretamente no meio ambiente,
principalmente, nos recursos terra e água para melhorar a competitividade dos
produtos, face às vantagens comparativas da região, no que diz respeito às
condições climáticas e baixa remuneração da mão de-obra (quando comparada
a outras regiões produtoras mundiais). Essas ações podem, entretanto, pôr em
risco esses mesmos recursos e as suas populações. Um fato observado na
produção de mangas no Vale do São Francisco revela como, para aproveitar as
oportunidades e janelas de mercados, os processos produtivos são induzidos ou
retardados pelo uso de inovações tecnológicas, gerando resultados sociais e
ambientais contraditórios: por um lado, as quantidades e qualidades dos
produtos são atingidas e mercados são conquistados; por outro lado, crescem
os riscos de contaminação da água e de salinização dos solos, por
superexploração ou práticas e usos inadequados de esquemas de irrigação.
Nessa perspectiva, é possível afirmar que com a irrigação a produção
se expande, criam-se riqueza e trabalho, mas também acentua-se a
vulnerabilidade dos agentes produtivos, particularmente dos trabalhadores,
que passam a conviver perigosamente com tóxicos e ambientes poluídos,
gerados por práticas produtivas que deixam de calcular os riscos sócio-
ambientais nos seus custos e benefícios.

364
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Essas questões são especialmente relevantes no momento em que o


controle das áreas irrigadas e os gastos relativos à infra-estrutura, administração
e estratégias de comercialização dos produtos tendem a passar, gradualmente,
do Estado aos produtores (colonos, empresários). Isto vem acontecendo no
Vale do São Francisco, em meio a tensões entre os agentes envolvidos. Com
consultorias próprias, os atuais Distritos de irrigação vêm experimentando
um lento e gradual processo de privatização, que ocorre, apesar das resis-
tências e conflitos vividos pelos distintos atores sociais, na tentativa de dar
continuidade às suas atividades, num contexto em que o apoio do Estado fica
reduzido ao financiamento das instituições gestoras desses empreendimentos,
como também num tempo em que se ampliam as exigências dos mercados
quanto à qualidade e competitividade do setor.
Nesta situação é necessário esclarecer que, embora plenas de ambigüidade,
o caráter dessas ações do Estado merece ser compreendido e talvez redefinido,
para reduzir as incertezas do setor. De 1996 a 1997 surgiram rumores de que a
principal agência de coordenação e planejamento do desenvolvimento do Vale
do São Francisco, a CODEVASF, seria desativada. Esses rumores eram
sustentados, também, pela implementação das estra-tégias de privatização dos
perímetros, terceirização das tarefas próprias da assistência técnica e extensão
rural. Os requisitos de titulação dos lotes e reforço à cobrança das taxas de água
surgiram como a gota d’água que faltava para a eclosão de um movimento de
protestos de atores sociais que reclamavam a manutenção de subsídios às
atividades do setor e a redução dos preços pagos pelos insumos, particularmente
aqueles relativos à energia e à água.
Dois movimentos sinalizaram os problemas vividos naquela área de
irrigação: o movimento dos trabalhadores por salário, com uma paralisação
de 3 dias que incluiu, também, em sua pauta, a reivindicação de se ausentarem
dos locais de trabalho nas horas seguintes à pulverização dos campos, por
medo de intoxicação; o outro, dos irrigantes inadimplentes, mobilizados con-
tra as penalidades que lhe seriam impostas pelo não pagamento da conta da
água dos seus lotes. Para os propósitos deste artigo, passo a analisar o
movimento dos irrigantes.

5. O movimento dos irrigantes2

5.1 Um pequeno histórico

Inconformados quanto às respostas recebidas dos representantes da


CODEVASF e da administração do distrito de Irrigação Nilo Coelho às suas

365
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

demandas, os irrigantes, como se autodenominaram, organizaram uma


lista de reivindicações que, posteriormente, levaram a Brasília e ao Congresso
Nacional:
1) Titulação; 2) assistência técnica; 3) resolver o problema do paga-
mentos das taxas K1 e K2 da água; 3) financiamento e subsídios na energia;
4) formação do sindicato dos irrigantes.
Há que se reconhecer que os colonos irrigantes, embora tivessem
conhecimento das exigências para titulação e privatização dos seus lotes,
assustaram-se com os cálculos dos juros sobre o valor esperado. Além do que,
não acreditavam na interferência direta do Estado no setor. Realmente, o papel
do Estado no desenvolvimento regional estava sendo revisto.
A nova proposta de desenvolvimento sustentável atribuiu à CODEVASF
o principal papel na condução das novas políticas para o setor nos próximos
30 anos. Face às novas ações, revitaliza-se, pois, a CODEVASF, que passa a
assumir a liderança do novo projeto para a bacia do São Francisco, com obras
de incremento de vazão, com canais e reservatórios interligados, abastecidos
a partir do rio nos três reservatórios existentesm - Sobradinho, Itaparica e
Xingó (Brasil, 1996:31) -, além de ter a responsabilidade sobre grande número
de projetos de irrigação (Brasil, 1996a:45).
Observa-se, pois, que ao lado de ações para reduzir a presença do
Estado surgem, paradoxalmente, outras para legitimar a presença desse agente.
Os mecanismos utilizados não diferem, praticamente, dos anteriores. Isto é,
constituição de novos perímetros irrigados, embora com uma forte preocupação
ambiental, que fez falta nas experiências prévias, e com um novo perfil de
produtores mais empreendedores, que são legitimados, já na proposta, para
atuar na região. É assim que o Estado assume sua proposta neoliberal, de
definir o público alvo de suas ações, de acordo com as perspectivas de mercado,
embora retenha algum espaço para produtores familiares. Anteriormente,
privilegiavam-se lotes de colonos e de empresas, numa dicotomia que atribuía
a uns a diversidade de cultivos e a outros a sua especialização. O sucesso ou
insucesso de cada um desses empreendimentos dependia das suas trajetórias
e interações com as políticas e práticas econômicas do setor (Cavalcanti,1999 a).
É também um fato que a realidade atual é diferente daquela do final da
década de 60; as exigências dos mercados são outras e padrões de qualidade
se impõem sobre a produção em suas diferentes fases, exigindo dos produtores
formas de gestão adequadas à busca de competitividade do setor. Produtores
2
Nesta parte do trabalho estamos usando parte da análise do material empírico incluído num outro artigo
(Cavalcanti, 1999b).

366
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

mais capacitados, tecnicamente, passam a ser incluídos entre os que terão


acesso aos novos lotes. Na prática, a nova proposta tenta acompanhar,
refletir e interferir nos processos sociais em curso na região, como, por exe-
mplo, uma diferenciação interna entre produtores (Cavalcanti, 1995), pelos
quais ex-colonos passam os seus lotes a produtores com mais recursos
financeiros, mais preparação educacional ou tecnicamente mais quali-
ficados para atuar no setor.

5.2 As condições de produção e o caráter da mobilização

“As regiões frutícolas orientadas para exportação na América do Sul


convivem com ambientes sociais e produtivos diversos. Entretanto, é possível
afirmar que há uma certa complementaridade inicial de áreas de sequeiro
com vales irrigados e produção extensiva/intensiva associada às necessidades
de colonização de áreas novas e emprego de mão-de-obra que não se mantêm
porque a expansão das atividades mais dinâmicas aprofunda a heterogeneidade
e assimetria nas formas de uso da tecnologia, trabalho e recursos naturais,
distinguindo-se na sua relação com outros tipos de exploração econômica. É
assim que são delineados modelos de apropriação do espaço, do meio ambiente
e do trabalho que se baseiam num padrão de qualidade das mercadorias que
se destinam ao mercado global.” (Cavalcanti e Bendini, 1999)
Desde o início dos projetos de irrigação do Vale do São Francisco, os
colonos e outros que tiveram acesso aos lotes desenvolveram as suas atividades
considerando sucessos ou fracassos como algo de competência individual.
Eles conviviam num terreno para cujo cultivo a provisão do Estado garantia
campos irrigados e assistência técnica, pelo menos. Sabiam que os lotes que
lhes foram atribuídos no início necessitariam ser regularizados por um processo
de titulação, num prazo de vinte anos. As normas que definiam as formas de
acesso aos lotes e à irrigação estavam também indicadas. Alguns deles tiveram
também acesso a financiamentos bancários, mas, sem sucesso no
empreendimento agrícola, foram à bancarrota.
Apesar desses fracassos explicados pela ineficiência individuais no
uso dos recursos conseguidos, havia entre todos a expectativa de que o que
lhes havia sido aportado pelo Estado continuaria anos afora, de modo que
não acreditavam na implementação das normas a priori definidas. Foi somente
quando a cobrança da taxa de água3 passou a ser usada como meio para definir os
que permaneceriam nos lotes – e 72% dos usuários estavam inadimplentes–,
3
A taxa de água é referente à energia paga para transportar a água aos canais de irrigação, e também
administração do distrito de irrigação.

367
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

que eles decidiram se organizar para obter a liberação dos pagamentos devidos.
Além do mais, a implementação das normas de controle dos pagamentos
ocorreu num ano complicado, como afirma um dos técnicos, em que “a praga
da mosca branca acabou com grande parte da produção de tomate e de outras
culturas; também houve flutuação de preços das mercadorias”. Esse era o
quadro geral da situação crítica dos colonos, pequenos produtores do Vale.
Todos esses pontos contribuíram para unir os colonos na busca de uma solução
para os seus problemas mais imediatos. Pelas tentativas, sem sucesso, de
encontrar um espaço comum, seja como produtores ou como trabalhadores
rurais, chegaram a se identificar como irrigantes.4
Em 1997 houve uma mobilização para criação do sindicato dos
irrigantes. Tal movimento começou com um protesto dos colonos produtores
contra uma determinação dos administradores do projeto Nilo Coelho, que
consistia em cortar a água usada na irrigação dos lotes. O primeiro problema
a resolver foi o da identidade dos participantes. Inicialmente, tentaram se
apoiar no sindicato dos trabalhadores, mas não puderam, como descreve um
dos nossos informantes: “Porque o sindicato dos trabalhadores é só dos
trabalhadores”. Depois, no sindicato patronal. Mas não se enquadravam
também nessa categoria.
A idéia de usar o termo irrigantes objetivava agregar todos os membros
do Distrito, que havia sido formado para possibilitar a transição do apoio da
CODEVASF- Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco,
instituição de planejamento e administração do Vale do São Francisco, à
autogestão dos produtores locais. Uma das normas do seu regulamento era
aquela que definia sanções para os que não pagassem os débitos relativos ao
uso da água para irrigação e que, na primeira tentativa de implementação, foi
contestada pelos produtores, dando origem ao movimento dos irrigantes.

5.3 A organização da resistência e das alianças. Formas de governança


na gestão dos recursos hídricos

A expansão da agricultura do Vale foi estimulada pelos novos requisitos


e regulações dos mercados, pelos quais padrões de qualidade e competitividade
4
A literatura tem indicado como a produção e distribuição dos alimentos é, na atualidade, uma arena de
disputas no contexto da globalização. Numa rápida observação de grupos que se constituem no contexto
da produção e consumo de alimentos, por exemplo, podemos apontar: grupos e associação de produtores
(Cavalcanti, 1997), sindicatos e associações de trabalhadores (Bendini e Péscio, 1996, Bendini e Cavalcanti,
1996), grupos e associações de consumidores (Marsden et al., 1998), além de representantes das modernas
cadeias de alimentos que se definem mais objetivamente nas ações pontuais de supermercados. Neste
caso, a constituição da categoria irrigantes objetivava reunir todos os que dependiam da irrigação fossem
colonos, pequenos, médios ou grandes empresários.

368
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

passaram a ser as principais referências para produtores e trabalhadores. Essa


nova condição do mercado tem requerido mercadorias específicas em tempos
e formas definidas. São bem sucedidos aqueles que dominam o saber e o
poder de oferecer ao mercado produtos de qualidade. Assim, o que poderia
ser considerado um pequeno movimento de irrigantes passou a expressar outros
aspectos relevantes da exclusão dessa categoria social, que tem, inclusive,
dificuldade de se fortalecer na busca de um projeto comum.
Nessa conjuntura, os irrigantes acham difícil reconhecer quem são os
seus aliados ou os seus opositores. Sendo assim, dirigem a sua frustração e a
sua desesperança contra os que conhecem mais de perto, ou seja, as agências
de planejamento estatal e o poder local. Eles protestaram, segundo seu
entendimento, contra a sua exclusão dos benefícios do desenvolvimento da
região. A longa pauta de reivindicações indica uma questão que poderia ser
pouco notada, não fora o contexto de desenvolvimento do Vale: a necessidade
de competir nos mercados, de se criar câmaras para a discussão dos problemas
referentes à produção destinada aos mercados locais e regionais, a exemplo
das câmaras da manga e da uva, formadas pelos produtores que estão
competindo nos mercados globais. A busca de um rótulo, de uma marca
própria, sinaliza a necessidade de participar, numa situação em que eles deixam
de compartilhar, plenamente, as vantagens comparativas oferecidas pelo Vale
do São Francisco.
Entretanto, os distintos problemas que afligem os colonos e a percepção
que cada um tem, segundo as características de sua unidade de produção,
ciclo de vida familiar e recursos disponíveis, impediram a coesão do
movimento, que não recebeu o apoio de todos. A pauta de reivindicações
tentava incluir os vários problemas enfrentados pelos produtores, no sentido
de formar uma agenda comum, entre esses:
• Revisão do valor dos lotes. O valor dos lotes, à época da titulação,
considerado exorbitante por aqueles que não fizeram o pagamento no
tempo definido, foi acrescido de correção monetária. Como informa
um dos participantes do movimento: “Um lote de R$ 18.000,00 chegou
a uma dívida de R$ 60.000,00. Com o protesto, eles dilataram o prazo
para pagamento em vinte vezes e eliminaram a correção monetária”.
• Assistência técnica. Elemento muito importante, mas, segundo um
informante: “Quem não faz um projeto para o Banco não tem
assistência”.
• Fortalecimento das associações dos donos de lotes. Segundo um
informante: “Cada núcleo tinha uma associação que está quase
morrendo. Hoje as associações estão desativadas. Desse modo, pediu-

369
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

se aos políticos que tudo o que viesse para o Distrito passasse pela
associação”. É importante registrar que, na constituição da comissão
de mobilização, participaram outras instituições que estão presentes
na vida diária da região, como as Nações Unidas, através do PNUD –
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e SEBRAE –
Serviço Brasileiro de Apoio à Pequena Empresa. Sob a orientação dos
sindicatos dos trabalhadores e patronal, fez-se um estudo das condições
sócio-econômicas gerais. Assim, constatou-se que 72% dos colonos
estavam inadimplentes, sendo que alguns tinham mais de vinte contas
atrasadas, com valores acima de R$ 15.000,00.
• Melhoria da estrada de acesso, porque “se há problema na entrada
do lote, a máquina (do Distrito) vai lá. A máquina sempre existiu e faz
parte do custo fixo, desde o começo do Distrito. Antes o Distrito escoava
o produto; este é um direito que já temos”. Há uma taxa de
administração, estradas etc. e a assistência técnica, parte de um convênio
com a CODEVASF.
• Criação das câmaras de produtos, a criação das câmaras de banana,
goiaba, de outras frutas e do selo tudo para exportar. Um outro ponto
acordado pelos participantes do movimento foi que aqueles que “não
têm perfil para a agricultura deveriam ser retirados do lote, com
indenização.
Segundo um dos membros da comissão, “aqui, agora, chegou a hora do
tudo ou nada. Ou se organiza ou não ganha nada. Eu sou um dos sofredor; já
fui contribuinte de três anos depois o meu lote salinizou; quando fizeram o
dreno fiquei com 4,8 ha; produzo banana e côco; deu um vento, caiu 50% da
produção de banana”.
Para um dos técnicos do Nilo Coelho, o movimento visava impedir o
corte da água anunciado para aqueles que estavam inadimplentes há mais de
vinte meses. Por isso, eles fizeram até uma passeata para destituir o conselho
de administração do Distrito. Realizaram a eleição, mas perderam.
Esse movimento contribuiu para afirmação de uma identidade – de
irrigantes em confronto com os poderes constituídos, representados pela
CODEVASF e o poder local. Segundo um colono, 42 anos, colono proprietário
de 6 ha irrigados:
“Irrigantes, o grupo que se mobilizou para ver se adquiria mais
investimentos e convívio melhor na sociedade. Eles estavam oprimidos
por falta de investimento no projeto. Há os individualistas; os
inadimplentes. Os inadimplentes se juntaram, formaram um. Só 25
estavam em dia e não tinham condição de segurar”.

370
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

“Primeiro foi um movimento para mexer com o Nilo Coelho completo.


Fechamos a ponte por uma hora e meia. Tinha mais de trezentos
irrigantes; tratores, máquinas, carros. Fizeram uma comissão para falar
com o presidente da CODEVASF, que marcou de cumprir com as tarefas
e não cumpriu. Nesse tempo, o ministro da Agricultura não deu cartaz
ao movimento”.
O discurso desse informante delineia as estratégias usadas pelos
produtores para se constituírem enquanto categoria; nesse percurso, revelam-
se os confrontos e oposições que expressam as marcas da diferença e a
dificuldade de constituição de novas formas de governança:
“Aí a gente começou; teve um movimento com a FETAG - Federação
dos Trabalhadores na Agricultura, com a CONTAG - Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. Fizeram um movimento
que durou oito dias, com duas mil pessoas. Quando saímos do Nilo
Coelho com trezentas pessoas, o povo começou a acreditar. Teve as
negociações com a prefeitura; não resolvia nada por aqui. A gente
começou a arrecadar dinheiro para ir a Brasília.
Em Brasília, reunimos quatrocentas pessoas. Chegamos lá; fomos ao
alojamento do SESI- Serviço Social da Indústria , com apoio da FETAG
e CONTAG; invadimos a CODEVASF; antes tentamos negociar a pauta.”
Essa pauta incluía estas questões: 1) titulação; 2) assistência técnica;
3) o problema do K1 e K25 da água; 4) financiamento e subsídio na energia;
5) sindicato dos irrigantes. Ao falar da situação dos “irrigantes”, o nosso
informante comenta ainda:
“Nos bancos não somos vistos com valor. Hoje eles não têm cadastro;
existe sempre um empecilho; o pequeno não tem vez, quem tem é o
empresário. Queremos comprar a terra, mas que compre terra com preço
justo, que possa pagar.
Houve pressão da CODEVASF: ou os colonos faziam a assinatura da
compra do imóvel ou eram despejados. Queríamos que os bancos
dessem condições de trabalho digno e justo. Por incrível que pareça, o
Banco resolveu financiar os que estavam na miséria. Não soubemos
como. Em Brasília, a CODEVASF [prometeu que] ia estudar os 130
casos; caso por caso e dar parecer. Ainda [todavia] nesses trinta dias a
CODEVASF não pôde fazer.
A terra é muito importante pela sobrevivência. É o meio de convívio
para mim; tenho amor à terra. Não troco por nenhuma metrópole. Aqui
5
K1 e K2 são índices incluídos na conta da água, que contempla o uso do bem e taxas administrativas.

371
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

é o meu lazer. O trabalho é um lazer. O sindicato dos irrigantes não vai


prosseguir porque existe política infiltrada no perímetro para
beneficiar políticos.
No momento a gente está prestando atenção às atitudes do governo
para se mobilizar. Pretendem se transformar num sindicato forte para
se aliar à FETAG e à CONTAG, que são fortes. Sem eles não tem jeito
nada em Brasília. Fomos considerados pela FETAG”.
Esse informante não estava inadimplente; não tinha débitos. Perguntado
porque se juntou aos outros, assim respondeu: “Porque existia cabeça que
pensava coisas distintas, vandalismo. Como conselheiro, vi que não era por
aí, que podia fazer as coisas, com reunião chegava a Brasília. Aqui não vai
haver mais vandalismo, aprenderam a construir”.
A mobilização dos irrigantes revela aspectos importantes dos processos
sociais em curso no contexto da agricultura de exportação. A formação da
categoria e da identidade de irrigante resultou da luta de pequenos produtores
contra as ameaças à sua sobrevivência: contra as formas de expropriação dos
seus meios de produção e contra a sua exclusão dos mercados mais competitivos.

6. Considerações finais

Como analisados, os processos sociais em curso na região objeto de


estudo indicam alguns pontos que merecem ser abordados :
a) Nas condições atuais, o reconhecimento do valor econômico dos
recursos hídricos é algo ainda problemático para as populações usuárias.
b) Que a gestão desses recursos deve ser precedida de uma análise das
condições sócio-econômico-ambientais, a produção agrícola e a
reprodução social das populações locais;
c) Que apesar das dificuldades de formação de alianças e de estratégias
usadas para se legitimarem, os movimentos atuais de resistência ao
afastamento do Estado da provisão e gestão dos recursos hídricos
têm um potencial político que deve ser considerado enquanto base
para as formas de governança a serem instituídas nos novos contextos
de utilização da água e do meio ambiente. Do mesmo modo, as alianças
de produtores e consumidores longínquos podem ser estimulantes para
construir bases mais sustentáveis de desenvol-vimento, sob a mediação
de instituições várias e, principalmente, das representações políticas e
profissionais dos agentes produtivos e do Estado.

372
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

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Desafios da Lei de Águas de 1997

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Perfil curricular da autora

Josefa Salete Barbosa Cavalcanti - cavalcanti@npd.ufpe.br - é


professora do Departamento de Ciências Sociais da UFPE, atuando
junto aos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e em Antropologia.
Mestre em Antropologia Social, Museu Nacional- UFRJ; Ph.D. Faculty
of Economic and Social Studies, Department of Sociology, University
of Manchester; Pós-doutorado: Department of Rural Sociology. Uni-
versity of Wisconsin-Madison, Estados Unidos, e no Department of
City and Regional Planning da Cardiff University. Dedica-se ao estudos
da Sociologia da Agricultura. Área de interesse de suas pesquisas e
publicações: globalização e agricultura, mudanças sociais, processos de
trabalho e relações de gênero na fruticultura.

374
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

SANEAMENTO E RECURSOS HÍDRICOS: OS DESAFIOS DA


INTEGRAÇÃO E A URGÊNCIA DA PRIORIDADE

Dilma Seli Pena Pereira


Luiz Antonio de Andrade Baltar

1. Introdução

A interface entre as questões relacionadas ao meio ambiente - em espe-


cial à gestão dos recursos hídricos - e os serviços de saneamento é tema
freqüente de debate há mais de uma década. As reflexões apresentadas neste
artigo, no entanto, resultam sobretudo do processo de discussão desse tema,
que se iniciou no âmbito do Governo federal em 1992, no contexto da
preparação do Programa de Modernização do Setor Saneamento e do Programa
Qualidade das Águas, ambos financiados pelo Banco Mundial. Os autores
deste artigo participaram desse processo –Dilma Pereira desde o seu início e
Luiz Baltar a partir de 1994 –, no qual estiveram envolvidos, num primeiro
momento, profissionais como Francisco Lobato, Tobias Jerozolimski, Ricardo
Araújo, Bruno Pagnocheschi, Oscar Cordeiro, Carlos Velez e, posteriormente,
Ricardo Toledo, Nelson Nucci, Emerson Emerenciano e Marcos Thadeu
Abicalil, e outros. O debate estendeu-se a todo o Setor Saneamento, em
inúmeras conferências, seminários, Workshops e reuniões de trabalho. Este
artigo procura sistematizar as discussões havidas no período de 1992 a 1998.
Em relação a esse processo de discussão, os autores gostariam de fazer uma
menção especial ao trabalho de Francisco Lobato, sobretudo no que se refere
ao esforço inicial de construção da base conceitual para o tratamento da gestão
dos recursos hídricos e da sua interface com os serviços de saneamento básico.

2. Base conceitual

O saneamento, stritu-senso, compreende ações relacionadas com o


abastecimento de água tratada, com esgotamento sanitário e com a coleta e
disposição final de resíduos sólidos. Em sua conceituação mais ampla,
abrange também o tratamento e a disposição de outros efluentes, a
drenagem e a vigilância sanitária, integrando, portanto, ações e serviços

375
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

necessários ao provimento de condições de salubridade ao meio físico e ao


bem-estar da população.
Os problemas ambientais causados pela ausência dos serviços de
saneamento inserem-se, de modo complexo, nas relações entre as sociedades
e seus respectivos espaços geográficos, incorporando aspectos culturais e
históricos. Resultam do padrão de apropriação que o homem faz do meio
ambiente enquanto “recurso”, o que exige um conjunto de regras, no âmbito
da Política Ambiental do País, a qual deve incluir a explicitação de conflitos
e de estratégias de resolução em face das políticas de desenvolvimento
econômico e social. As avaliações dos impactos dessas políticas sobre o meio
ambiente e a decisão política tempestiva quanto às medidas mitigadoras ou
normativas necessárias, associadas à capacidade empreendedora do Estado
de transformar as limitações do uso de recursos naturais em oportunidades
de investimentos sustentáveis, conformam o padrão de apropriação do
recurso ambiental.
Por outro lado, o estabelecimento de limites admissíveis às atividades
humanas de apropriação de recursos ambientais requer o conhecimento/
mapeamento destes recursos e o seu monitoramento constantes. Esses limites
são um reflexo do conceito e da estratégia da sociedade em relação ao meio
ambiente, assim como da disponibilidade dos recursos ambientais, em
quantidade e qualidade. A disponibilidade, de acordo com Lobato (1993),
pode ter como determinante de seu potencial ou como condição limitante: a
capacidade de suporte do substrato natural; a dinâmica dos processos e
fenômenos do meio físico; a disponibilidade de recursos naturais finitos; e as
condições necessárias à reprodução dos processos biológicos próprios a cada
espaço territorial.
O conceito de limite relaciona-se, sobretudo, à perspectiva do
desenvolvimento econômico sustentável numa visão abrangente, assegurando
no longo prazo a reprodução da sociedade. Sem dúvida, o estabelecimento de
limites para o uso sustentado de cada recurso não é uma tarefa trivial,
principalmente ao se considerar as inter-relações e sinergias nas cadeias
reprodutivas e as pressões antrópicas a que os recursos estão sujeitos. Depende
em grande medida da estrutura institucional de cada setor.
O conceito de limite do uso dos recursos ambientais, sobretudo dos
recursos hídricos, considerados sob o ponto de vista das ações de saneamento,
remete o foco, com maior ênfase, para as características dos processos de
urbanização, resultantes da dinâmica da industrialização e dos padrões
de exploração agrícola, inerentes ao modelo de desenvolvimento
econômico adotado.

376
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

De fato, quer na sua conceituação mais restrita – saneamento básico -,


quer na exploração mais abrangente do termo, os problemas de saneamento
surgem relacionados com a dinâmica local dos recursos hídricos e sempre
como demandas ou como conseqüências da concentração continuada da
população sobre uma mesma porção de território - dinâmica das águas x
dinâmica da urbanização - (Lobato, 1997).
Embora as limitações impostas pelos recursos ambientais sejam até
bastante previsíveis, nem sempre se concretiza a conciliação do binômio
apropriação/reprodução. Os processos de industrialização e urbanização sem
a definição e a observância desses limites acarretam uma série de
constrangimentos à própria reprodução social.
Nas grandes cidades, nas aglomerações urbanas e nas regiões
metropolitanas, por exemplo, ocorrem problemas relativos à disponibilidade
de recursos hídricos, em face da ausência de adequadas medidas de
gerenciamento desses recursos e de proteção de mananciais de abastecimento,
muitas vezes comprometidos pela expansão de suas malhas urbanas e pela
deficiência nos serviços de coleta e tratamento de resíduos líquidos e sólidos.
São recorrentes, também, os problemas relacionados com a ocupação
de áreas de risco, sujeitas ao deslizamento de encostas ou a inundações,
oriundas da urbanização de várzeas e fundos de vale. Grandes centros urbanos,
com elevada freqüência, enfrentam problemas com loteamentos irregulares,
num processo de contínuo avanço sobre áreas, muitas vezes impróprias à
ocupação e desprovidas de infra-estrutura adequada, entretanto ocupadas, com
alta densidade populacional.
Os quadros ambientais de maior gravidade costumam ter como
característica a sobreposição de vários desses problemas, inter-relacionados
em seus fatores de origem. Esta observação encerra um elemento conceitual
importante: as questões ambientais vinculadas ao saneamento não se
configuram, portanto, como uma tipologia de projetos setoriais, mas ocorrem
sobre espaços geográficos determinados, nos quais se observa uma conjugação
crítica de problemas interdependentes, cuja combinação obedece a uma grande
variedade de nuances, estabelecidas em função do histórico de ocupação,
características geofísicas e dinâmica econômica, entre outros fatores.
As interfaces dos serviços de saneamento, sobretudo os de
abastecimento de água e de esgotamento sanitário, com a dinâmica do recurso
água, sugerem a predominância lógica das bacias hidrográficas enquanto
unidades preferenciais de planejamento. Em conseqüência, os problemas
relacionados com a oferta de águas de boa qualidade e com a poluição hídrica

377
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

constituem-se, muitas vezes, em vetores de organização e de priorização das


intervenções no saneamento ambiental urbano. Um dos fatores mais restritivos
a essa abordagem tem sido a falta de instrumentos adequados de planejamento
do desenvolvimento urbano sustentável, cujo principal desafio é a integração
do conjunto das ações setoriais que se realizam no mesmo espaço.
O desenvolvimento da infra-estrutura urbana brasileira seguiu, sempre,
a lógica “passiva” do atendimento às demandas emergentes. Deve-se
reconhecer que mesmo esta tarefa tem representado um desafio relevante, em
face da velocidade e característica do crescimento urbano do País.
Conceitualmente, porém, importa considerar que, como conseqüência, são
menores as experiências acumuladas no sentido de utilizar de modo “ativo” a
oferta adequada e estratégica de equipamentos urbanos para induzir o
ordenamento espacial das atividades econômicas, das populações, das cidades
e, portanto, do próprio território nacional.
As organizações do Estado, para atender à lógica exposta, ocorrem,
então, no sentido da melhor eficiência na instalação de infra-estrutura (uma
vez pressionadas pela demanda) e bastante menos na sua operação e
manutenção ou na aferição da eficácia e da efetividade dos serviços.
De fato, constata-se que as instituições públicas têm se estruturado
sem estímulos à internalização de conceitos como o de desenvolvimento
sustentável, bem como à sua instrumentalização adequada.
Especificamente no que concerne ao setor de saneamento, a
responsabilidade pela oferta hídrica, centrada sempre na capacidade de
investimento do “governo-construtor”, acabou por descaracterizar este recurso
ambiental enquanto insumo e fator de produção e reprodução social e
econômica. A maioria dos agentes privados, na medida em que contam com a
garantia do fornecimento público de água, a preços (tarifas públicas) que, por
vezes, não traduzem todos os custos operacionais, e/ou não recuperam as
elevadas inversões necessárias à expansão física dos sistemas, relegam a
segundo plano a sua importância na composição de seus custos industriais.
Desta forma, a oferta de água, limitada apenas a seu aspecto de bem
indispensável para o consumo humano, descompromete a sociedade e os
agentes econômicos com práticas conservacionistas, com preocupações
relacionadas à economia de recursos naturais (finitos). Por outro lado, retira
do Poder Público a faculdade de utilizar sua oferta como fator de indução da
localização espacial das atividades e da população.
Não obstante, em alguns casos torna-se necessário a adoção de subsídio
aos custos reais da oferta de água, por receitas fiscais do Estado, para fazer

378
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

face a condições físicas adversas, muitas vezes associadas a um nível de renda


insuficiente. Nesses casos, é indispensável a administração rigorosa desses
subsídios e a sua utilização exclusiva para atendimento às populações
comprovadamente carentes de recursos e dentro dos limites das necessidades
de saúde pública.

3. O saneamento e a urbanização no Brasil

3.1 A concentração urbana

No Brasil, uma das conseqüências do crescimento urbano de forma


rápida e concentrada foi a emergência do fenômeno metropolitano. Na década
de 70, por meio de emendas constitucionais, foram criadas, pela União, nove
Regiões Metropolitanas: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife,
Salvador, Fortaleza, Belém, Curitiba e Porto Alegre. Após 1988, a competência
para criar e institucionalizar as Regiões Metropolitanas passa aos Estados da
Federação, de acordo com o que dispõe o artigo 25 da Constituição Federal.
Foram então criadas, ou estão em processo de criação, dezoito regiões,
integradas por 244 municípios que abrigavam, em 1996, aproximadamente
54,5 milhões de pessoas, ou seja, cerca de 33% da população total do Brasil
(conforme ilustra o Quadro 1).
As elevadas e crescentes taxas de urbanização observadas nas últimas
décadas1 promoveram o agravamento dos problemas urbanos, em função do
crescimento desordenado e concentrado, da ausência ou carência de
planejamento, da demanda não atendida por recursos e serviços de toda ordem,
da obsolescência da estrutura física existente, dos padrões ainda atrasados de
sua gestão e das agressões ao ambiente urbano.
De fato, todas as regiões metropolitanas, sem exceção, têm deficiência
nos serviços de coleta dos esgotos domésticos e, principalmente, em seus
tratamento e disposição final. No que tange aos resíduos sólidos, parte
significativa do lixo urbano acaba sendo depositada diretamente no meio
ambiente, à beira de rios e córregos. Mesmo nas cidades com sistemas
adequados de coleta de lixo, são comuns os problemas de destinação final,
decorrentes da oferta insuficiente de áreas e equipamentos. Como
conseqüência, essas áreas enfrentam problemas de preservação dos mananciais
de abastecimento de água.2
1
Nas cidades brasileiras ocorreu um acréscimo absoluto de 82,6 milhões de habitantes urbanos, entre
1940 (taxa de urbanização de 31,2%) e 1985 (taxa de urbanização de 72,7%). Esse crescimento foi
potencializado, mais recentemente, por um incremento expressivo do produto industrial, da ordem de
10,4% a. no período 1971/1987.
2
A esse respeito, ver o documento "Avaliação do Quadro Ambiental das Regiões Metropolitanas - Situação

379
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Quadro 1 - Regiões Metropolitanas - Quantidade de Municípios e População

De outra parte, as transformações na dinâmica do desenvolvimento


econômico promoveram mudanças no processo de urbanização e na localização
espacial das cidades, ao mesmo tempo em que contribuíram para reforçar a
heterogeneidade econômica e social dos espaços econômicos e das cidades,
tornando ainda mais complexo o estabelecimento dos limites à apropriação e
Atual e Recomendações para a Ação do Governo", elaborado pelo IPEA, sob a coordenação de Paulo
Pitanga e realizado no âmbito do Programa de Modernização do Setor Saneamento - PMSS.

380
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

reprodução dos recursos ambientais. Neste processo transformatório mais


recente destacam-se algumas características: i) saldo migratório negativo nas
pequenas cidades brasileiras em todas as regiões; ii) aumento do peso relativo
das cidades não-metropolitanas com população entre 50 e 800 mil habitantes
no total da população urbana, passando de 24,4% em 1970 para 29% em
1996; e iii) aumento da participação da população metropolitana no conjunto
da população brasileira, de 29% em 1970 para 33,4% em 1996. Essas duas
categorias de cidades representam mais de 60% da população urbana do País.
Esse processo de urbanização acelerada e concentrada ocorre em um
quadro regulatório ambiental e de prestação de serviços essenciais urbanos,
complexo ou inexistente, em especial no que se refere ao saneamento básico.
Resulta daí, uma grave situação ambiental, da qual fazem parte:
• o comprometimento de mananciais com redução da disponibilidade
hídrica para o abastecimento público;
• o constrangimento de atividades que utilizam a água como insumo
produtivo e mesmo de outras atividades tais como o turismo,
desestimulado pela degradação dos ambientes naturais e construídos;
• a transformação de rios e córregos em ambientes agressivos do ponto
de vista estético e propícios à proliferação de vetores de transmissão
de doenças - a qual ocorre também nas estruturas construídas para a
drenagem urbana - em conseqüência de lançamentos concentrados de
esgoto sanitário, sem qualquer tratamento;
• a recorrência de enchentes no meio urbano com elevado ônus social;
• a degradação de áreas de interesse para a manutenção de níveis
adequados de qualidade do meio ambiente urbano em decorrência da
remoção da cobertura vegetal.

2.2 O acesso a serviços de saneamento.

Indicadores nacionais
Considerando a totalidade da população nacional, os índices de
atendimento dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário
no Brasil estão ainda muito distantes da universalização pretendida e
necessária. Em que pesem os incrementos verificados na oferta dos serviços
nas últimas décadas, persiste uma demanda não atendida, especialmente nos
estratos sociais de mais baixa renda, nos menores Municípios, nas pequenas
localidades e na área rural.

381
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Os índices nacionais de atendimento pelos serviços de abastecimento


de água alcançaram, segundo os dados da PNAD (Pesquisa Nacional por
Amostragem Domiciliar) 1996, 77,6%, enquanto que os domicílios que
dispunham de alguma solução para o destino de seus esgotos sanitários
representavam 63,7%. Desta forma, existiriam ainda no País mais de 8 milhões
de domicílios não atendidos por redes de abastecimento de água e mais de 14
milhões sem solução adequada para os esgotos. Deve-se considerar que, nas
áreas rurais, nas pequenas cidades e nas periferias de cidades médias em que
os domicílios disponham de área para a infiltração de efluentes, as fossas
sépticas podem ser soluções adequadas à disposição final dos esgotos. Não se
pode desprezar, no entanto, a imprecisão da informação do usuário sobre o
tipo de fossa disponível, nem sempre do tipo séptica, do que resulta,
provavelmente, um déficit maior do que o indicado na pesquisa do IBGE.
Para a apresentação de uma visão panorâmica dos déficits, considerou-
se na elaboração do Quadro 2, inserido adiante, para as áreas urbanas, os
valores correspondentes ao acesso a redes de coleta e, para as áreas rurais,
tanto o acesso a essas redes quanto a fossas sépticas. Resulta, segundo esse
critério, a necessidade de atendimento com serviços de esgotamento sanitário
a mais de 22 milhões de domicílios (aproximadamente 57% do total).

Quadro 2 - Défit dos Serviços de Água e Esgotos no Brasil - 1996.

Déficit e renda familiar


A distribuição do atendimento guarda claros sinais de iniquidade so-
cial, com os déficits concentrando-se nos segmentos populacionais de mais
baixa renda. Segundo os dados de 1996, dos 9,4 milhões de domicílios com
renda familiar mensal de até 2 salários mínimos, apenas 5,4 milhões estavam
ligados às redes públicas de abastecimento de água, ou seja, 42,5% dos
domicílios neste segmento de renda não estavam atendidos. Esses 4,0 milhões
de domicílios não atendidos representavam 45% do total dos domicílios
brasileiros não ligados às redes públicas de abastecimento de água.
Nas áreas consideradas rurais a disparidade é ainda maior, pois apenas
14,9% dos 3,5 milhões de domicílios com renda mensal até 2 salários mínimos

382
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

estavam atendidos, representando um déficit, neste segmento de renda, de


cerca de 3,0 milhões de famílias. Embora em proporção inferior à média
nacional, os índices de atendimento de água nas áreas urbanas também
apresentam fortes desigualdades sociais. Cerca de 1,0 milhão de famílias com
renda mensal até 2 salários mínimos não estavam atendidas por redes de
abastecimento de água, representando 17,4% das famílias neste segmento de
renda e 35,7% de todas as famílias urbanas não atendidas.
Quadro 3 - Déficit em Abastecimento de Água
Famílias com renda até 2 salários mínimos.

Analisando o acesso aos serviços de abastecimento de água pelas


famílias com renda superior a 10 salários mínimos, em 1996, verifica-se que
os índices de atendimento se aproximam da universalização, com o déficit de
apenas 4,1%. Esses dados demonstram que o acesso aos serviços de
saneamento não se relaciona somente à qualidade de vida e à saúde da
população, mas também serve para distinguir os pobres dos não-pobres.

Déficit, nível de urbanização e poluição hídrica

O déficit dos serviços é também diferenciado em função das


características e grau de urbanização dos Municípios, sendo menor nas áreas
consideradas urbanas. Nestas áreas, o déficit dos serviços, registrado pelo
IBGE na PNAD 1996, é de 8,9% para abastecimento de água, representando 2,8
milhões de domicílios não abastecidos. Em esgotamento sanitário há um índice
de atendimento muito inferior, com um déficit urbano de coleta de esgotos da
ordem de 51%, ou seja, cerca de 16,4 milhões de domicílios nas cidades,
considerando-se como padrão de atendimento o acesso a redes de coleta.
O percentual do volume de esgotos coletados que recebe algum tipo de
tratamento é estimado em pouco mais de 20%. A baixa cobertura em
esgotamento sanitário, especialmente o tratamento dos efluentes, faz com
que este déficit se constitua no maior problema ambiental dos grandes centros
urbanos do País. que abrigam aproximadamente 60 milhões de pessoas
(representavam mais de 60% da população urbana em 1996). O impacto dessa
baixa cobertura de esgoto sanitário reflete-se na poluição hídrica das bacias
situadas nas regiões metropolitanas e aglomerados urbanos, conforme já referido.

383
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Nas áreas rurais – incluídos povoados e vilas - os índices de atendimento


são ainda menores, mesmo considerando que, muitas vezes, as soluções
individuais possam ser consideradas adequadas 3 . Os dados da PNAD 1996
(ver Quadro 2) mostram índices de cobertura dos serviços nas áreas rurais de
apenas 19,8% para abastecimento de água e 18,2% para esgotamento sanitário
(neste caso, considerando redes coletoras e fossas sépticas). Estes percentuais
indicam que 6,0 milhões de domicílios rurais não estavam ligados às redes de
abastecimento de água e 6,1 milhões não dispunham de redes coletoras de
esgotos ou não contavam com fossas sépticas. Assim, o déficit de água nas
áreas rurais representaria cerca de 68% do déficit total do País.
A relação do déficit de água com o tamanho das cidades está refletida
no Quadro 4, abaixo, que foi elaborado considerando a população urbana da
Contagem de 1996 e as percentagens de atendimento do Censo de 1991.
Estimados dessa forma e considerando três faixas de população, observa-se
que as quantidades de pessoas não atendidas são da mesma ordem de grandeza
nas três faixas, mas o maior déficit em termos proporcionais concentra-se nos
Municípios com população urbana inferior a 20 mil habitantes – eram, em
1996, mais de 4.138 municípios (83% do total) onde residiam cerca de 24
milhões de pessoas (19% da população urbana). Nestes Municípios, segundo
dados do Censo do IBGE de 1991, 22% dos habitantes das áreas urbanas não
tinham acesso aos serviços de abastecimento de água, ou aproximadamente
5,2 milhões de pessoas. Por outro lado, nas cidades maiores há uma quantidade
semelhante de não-atendidos (5,1 milhões) para um total de residentes de
cerca de 58 milhões de pessoas, ou seja, um déficit em termos percentuais
de apenas 8,8%.

Quadro 4 - Déficit urbano de água segundo o tamanho dos municípios.

3
Como exemplo, as soluções de abastecimento de água por poços ou pequenas nascentes, uma vez realizada
a desinfecção adequada, para atendimento domiciliar em áreas rurais, assim como a disposição dos esgotos
em fossas sépticas, pode constituir uma alternativa apropriada de saneamento básico para essas localidades.

384
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Déficit por regiões


As desigualdades regionais também estão caracterizadas nas carências
dos serviços de saneamento básico. O déficit de atendimento das populações
urbanas pelos serviços de abastecimento de água, verificado nas regiões mais
pobres, especialmente o Norte e o Nordeste do País, mas também no Centro-
Oeste, é muito maior do que o das regiões Sul e Sudeste. Em termos de coleta
de esgotos sanitários, os déficits são maiores e mais generalizados, sendo
também elevado na região Sul.
Quando computados os domicílios com fossa séptica, além daqueles
ligados a redes coletoras, a situação do déficit da região Sul é expressivamente
modificada, reduzindo-se o índice de 65,91% para cerca de 24% de domicílios
não atendidos, enquanto que nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste os
valores do mesmo indicador mantém-se próximos de 50%. Na região Sudeste,
incluídas as fossas sépticas, o déficit urbano de esgotamento sanitário seria
da ordem de apenas 11%, segundo os dados da PNAD 1996
Quadro 5 - Distribuição Regional dos Déficits Urbanos em Saneamento - 1996

O Quadro 6 apresenta os indicadores de cobertura nas áreas consideradas


rurais, onde se verifica que o déficit apresenta distribuição mais uniforme,
sendo os índices de atendimento, em geral, baixos, tanto para o abastecimento
de água quanto para esgotamento sanitário. Em relação aos serviços de água,
e em termos de percentuais, os valores do déficit para todas as regiões
aproximam-se da média nacional, sendo o Sudeste a única região cujo valor é
menor do que essa média.
Em esgotamento sanitário, ao contrário das áreas urbanas, o déficit
nacional se aproxima daquele verificado em água, sendo que apenas as regiões
Sudeste e Sul têm indicadores melhores do que a média nacional.
Diferentemente do Quadro 5 - déficits urbanos –, estão indicados no Quadro
6 os dados referentes aos domicílios ligados a redes de coleta e aos que dispõem

385
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

de fossas sépticas, uma vez que, nas áreas ditas rurais, soluções isoladas do
tipo fossa séptica são, em geral, adequadas.
Em resumo, os dados e índices apresentados acima permitem afirmar
que o acesso aos serviços essenciais de saneamento no Brasil caracteriza-se
pela desigualdade - baixo nível de atendimento à população de menor renda,
principalmente nas regiões menos desenvolvidas e nos menores Municípios -
e por um nível de cobertura dos serviços de esgotamento sanitário,
generalizadamente baixo. A necessária universalização dos serviços passa,
forçosamente, pelo atendimento prioritário dessas demandas, sendo a
superação deste desafio uma tarefa complexa, dado o nível de renda da
população onde se concentra maior parte do déficit.

Quadro 6 - Distribuição Regional dos Déficits Urbanos em Saneamento - 1996

4. A gestão dos recursos hídricos e os serviços de saneamento

4.1 Aspectos legais e institucionais

A gestão dos recursos hídricos e a prestação de serviços públicos de


saneamento envolvem responsabilidades do Poder Público Federal, Estadual
e Municipal e, também, da sociedade.
Segundo a Constituição Federal, compete à União instituir o sistema
nacional de gerenciamento de recursos hídricos (art. 21, XIX) e legislar
privativamente sobre águas (art.22). Mas, é competência executiva comum a
todos os entes federados proteger o meio ambiente e combater a poluição
(art.23, VI). O artigo 24 define competências legislativas concorrentes
atribuídas à União, aos Estados e ao Distrito Federal, incluindo entre elas a
definição de responsabilidade por dano ao meio ambiente e, portanto, aos
4
Dados referentes somente ao Estado do Tocantins; por isso não estão indicados déficits percentuais. Não
há dados disponíveis relativos à cobertura dos serviços nas áreas rurais dos seguintes Estados: Roraima,
Acre, Amazonas, Rondônia, Pará e Amapá.

386
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

recursos hídricos. O inciso XIX do art. 21 está regulamentado pela lei 9.433,
de 8 de janeiro de 1997.
No que se refere aos serviços públicos, a Carta Magna define como
responsabilidade do poder público (art. 175) a sua prestação direta ou mediante
delegação, estabelecendo também, explicitamente, a competência do município
para a prestação dos serviços de interesse local (art. 30). O já referido processo
de urbanização que se verifica no País criou aglomerados de Municípios, por
conurbação, envolvendo na maioria dos casos uma cidade pólo e várias
periféricas, constituindo as regiões metropolitanas.
Nesses aglomerados, inevitavelmente, os serviços assumem
complexidade tal que, na maioria das vezes, extrapolam os limites municipais
acrescentando à problemática da prestação dos serviços um novo conceito - o
do interesse comum -, que não elimina o local mas a ele se acrescenta. Esta
questão é tratada no § 3º do art 25 da Constituição Federal, que atribui aos
Estados Federados a competência para criar tais regiões, “para integrar
a organização, o planejamento e a execução das funções públicas de
interesse comum”.
Prestar serviços públicos que atendem integradamente a mais de um
Município significa executar uma função pública de interesse comum. Mas o
fato da Carta Magna não ser tão explícita, no art. 25, no que tange
especificamente à prestação de serviços públicos, como o é quando trata do
interesse local (art. 30), tem gerado uma longa polêmica acerca da titularidade
sobre os serviços de interesse comum. Tanto assim que, desde 1996 está no
Congresso Nacional projeto de lei que trata das diretrizes nacionais para a
prestação dos serviços de saneamento, cuja tramitação enfrenta evidentes
dificuldades relacionadas à titularidade sobre os serviços que atendem a mais
de um Município.
Em que pesem os esforços que têm sido feitos na tentativa de definir a
titularidade dos serviços de interesse comum, o fato é que a gestão dos recursos
hídricos encontra-se em um estágio mais avançado do que a regulação dos
serviços de saneamento, tanto no que se refere às responsabilidades, definidas
na Constituição, quanto em relação à legislação regulamentadora. Agrava
essa defasagem o fato de que existe toda uma cultura de supervalorização das
estruturas públicas que prestam os serviços, em detrimento daquelas que os
deveriam regulamentar e controlar.
No que se refere à participação da sociedade há, em relação ao meio
ambiente, uma consciência da sua importância, mais difundida do que em
relação ao controle sobre a prestação dos serviços públicos.

387
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

4.2 Os aspectos físicos e o âmbito do planejamento

Não há dúvidas de que a unidade de planejamento e de atuação em se


considerando o recurso natural água é a bacia hidrográfica. Também é certo
que os serviços de abastecimento público de água potável e de esgotamento
sanitário são usuários dos recursos hídricos e, portanto, devem submeter-se à
regulamentação definida no sistema de gerenciamento desses recursos,
incluindo o pagamento devido como contrapartida a esse uso, tanto para
consumo, quanto para a diluição de efluentes.
É, portanto, no nível do usuário x gestor dos recursos que se dá a inter-
face entre a gestão dos recursos hídricos e a prestação dos serviços de água e
esgotos. Definida a quantidade passível de exploração, o serviço de
abastecimento de água inicia-se com a captação do recurso natural (água bruta)
para transformá-lo em produto (água tratada), que é transportado, via
canalizações, e distribuído a consumidores determinados, aos quais se cobra
um preço (tarifa pública) que deve incluir o valor econômico do recurso e os
custos do processo industrial. Trata-se de serviço público do tipo uti singuli
ou individual, pois tem usuários determinados e utilização particular e
mensurável para cada destinatário (Meirelles, 1990).
Os serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário,
propriamente ditos, são do interesse de cada conjunto de pessoas ao qual os
sistemas físicos correspondentes atendem, não tendo o funcionamento desses
sistemas relação direta com outros segmentos da população, mesmo que
habitantes de uma mesma bacia hidrográfica. Na maioria dos casos caracteriza-
se o interesse predominantemente local e, assim, a competência municipal
em relação a esses serviços.
Portanto, diferentemente da gestão dos recursos hídricos, e respeitadas
as suas regras e limitações, a prestação dos serviços de saneamento deve ter
por unidade de planejamento não a bacia hidrográfica, mas a área de
abrangência dos sistemas físicos capazes de resolver, de forma a mais
econômica possível, o problema do acesso de toda a população aos serviços.
Mesmo em relação aos serviços de esgotamento sanitário, de cuja
inexistência ou ineficácia podem resultar transtornos a populações de jusante
não servidas por eles, a definição de competências e a unidade de planejamento
deve ser a mesma do serviço de água. No entanto, o serviço deve ter
características e, por conseqüência, custos tais que o submetam às restrições
definidas na gestão dos recursos hídricos, esta sim, responsável pela garantia de
que as populações situadas águas abaixo sejam protegidas dos efeitos negativos

388
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

de um serviço que atende outro segmento de população na mesma bacia


hidrográfica.
Por outro lado, uma circunstância comum a grandes cidades e regiões
metropolitanas mostra a distinção entre os problemas de gestão do recurso
hídrico e da prestação de serviço de água, bem como a necessidade de
articulação para resolvê-los adequadamente. É o caso da utilização de água
de diferentes bacias para atendimento de um mesmo serviço de abastecimento
de água. Neste caso, qual seria a unidade de planejamento e decisão que
resolveria isoladamente os problemas?
É evidente que a delimitação de todas as unidades de planejamento
aqui referidas ressalta a necessidade de articulação inter-setorial, regional e
nacional de toda a atividade de planejamento. Tal articulação deve considerar
o princípio geral da precedência: do planejamento do uso do recurso natural
sobre o dos serviços (saneamento, energia, etc) e o do consumo humano
sobre os demais usos.
Uma tal conformação física dos serviços de saneamento, associada à
realidade complexa da urbanização e à multiplicidade de atribuições de
competência, confere à regulamentação da prestação desses serviços uma
dependência da articulação e cooperação entre os entes federados ainda maior
do que em relação à gestão dos recursos hídricos. Não se deve desprezar,
também, a dificuldade que resulta da falta de consenso entre as pessoas e
entre as instituições envolvidas com os temas aqui referidos, e mesmo entre
decisores políticos – governadores, prefeitos e legisladores - sobre a distinção
existente entre gestão de recursos hídricos e prestação de serviços de
saneamento e, mais ainda, sobre a dependência desta em relação àquela.
Ainda no que se refere aos aspectos físicos, da interface entre os dois
segmentos da política pública, é importante mencionar a relação entre a
eficiência operacional dos prestadores de serviços e o consumo de água. Com
efeito, segundo os dados do Sistema Nacional de Informações sobre
Saneamento – SNIS, cujos diagnósticos vêm sendo editados pelo Programa
de Modernização do Setor Saneamento – PMSS, ocorrem perdas totais (água
não contabilizada ou perda de faturamento) de até 50%.
Uma parcela desse desperdício decorre efetivamente de perdas na rede
e de consumos acima do necessário, esses últimos, sobretudo, em face do
descontrole na medição e cobrança. O controle dessa parcela da perda pode
representar uma redução importante do consumo do recurso natural – a água
bruta. Não seria exagero admitir a possibilidade de que tal controle produza
uma redução de consumo entre 10% e 20%.

389
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Tome-se, por exemplo, os dados do Diagnóstico dos Serviços de Água


e Esgotos de 1997, do SNIS, onde se verifica que o volume produzido por
domicílio atendido no Estado do Rio de Janeiro é da ordem de 51m3 por mês,
enquanto a média das companhias estaduais de saneamento da região Sudeste
é de 37 m3 por mês e no nível nacional é de 31 m3 por mês. A redução do valor
estadual para o correspondente a toda a região significaria uma economia
equivalente a cerca de 1,35 milhão de m3 por dia, ou seja, o necessário para
abastecer mais de 3 milhões de pessoas.

5. Regulamentação, regulação e controle

A gestão descentralizada dos recursos hídricos, com participação do


Poder Público, dos usuários e das comunidades, está prevista na legislação
pertinente (lei 9.433/97), da mesma forma que as diretrizes gerais, os
instrumentos e as estruturas para o seu exercício.
Mesmo antes da vigência dessa lei, esforços do Poder Público, de
agentes econômicos e da sociedade em geral já vinham sendo empreendidos,
no sentido de implementar, em determinadas bacias e em alguns Estados,
sistemas de gestão de recursos hídricos. A despeito das dificuldades próprias
do que é novo, é necessário apoiar essas iniciativas e fortalecer os instrumentos
e estruturas que estão sendo gerados. E essa é a tarefa de todos.
É evidente que o Sistema de Gerenciamento dos Recursos Hídricos é
parte importante da regulamentação da prestação dos serviços de saneamento,
uma vez que trata do insumo fundamental da produção dos referidos serviços.
Da mesma forma, a regulamentação dos direitos do consumidor, relativamente
mais avançada do que a dos recursos hídricos, interessa à prestação dos
serviços, pois a sociedade usuária é consumidora. No entanto, sob o ângulo
da regulação econômica da atividade de prestação dos serviços, sobretudo os
de saneamento, o País está, praticamente, na estaca zero.
Os serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário são
prestados em regime de monopólio, pois não tem sentido econômico duas
redes competirem pelos usuários de uma mesma localidade. Assim, é
necessário que existam instrumentos de regulação e controle para que o
interesse público, necessariamente envolvido na atividade, seja assegurado.
A exigência da regulação e controle públicos é reforçada pela
possibilidade de delegação da prestação dos serviços a agentes privados. Tal

390
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

delegação não significa que o serviço seja privatizado, mas apenas a sua
prestação o é. Quando delegado “o serviço continua sendo público ... e sempre
sujeito aos requisitos originários e sob regulamentação e controle do Poder
Público que os descentralizou” (Meirelles, 1990)
A prestação dos serviços por ente privado torna mais nítida a existência
de três tipos de agentes que têm interesses conflitantes: (i) o usuário, que
deseja o melhor serviço pelo menor preço; (ii) o Governo, que pretende a
realização de um bom serviço com o máximo de aprovação da população
usuária, inclusive no que se refere ao preço; (iii) e o prestador dos serviços,
que tem por objetivo cumprir as suas obrigações contratuais, que devem incluir
a satisfação dos usuários, obtendo o maior lucro possível.
Uma vez que esses conflitos existem, objetivamente, é necessário que
se viabilize a sua mediação, sobretudo para que se assegure o interesse do
usuário, a parte mais fraca em termos de organização, entre os envolvidos.
Sendo o Governo um dos agentes com interesse na atividade, carece das
condições necessárias para exercer o papel de árbitro. Por outro lado, a
responsabilidade pelos serviços, mesmo delegados a prestador privado, é
do Poder Público e, portanto, o órgão responsável por tal mediação tem
que ser público.
Vista sob outro ângulo, a clareza e a estabilidade das regras e dos
instrumentos de mediação dos conflitos são fatores de segurança para os
empreendedores privados que se habilitem para concorrer a concessões de
serviços públicos. Por esta razão, a menos que conte com a possibilidade de
obter vantagens por meio de procedimentos ilegítimos, o que não é admissível,
interessa também ao agente privado a existência de instrumentos eficazes de
mediação de conflitos.
Havendo controle público que, de um lado, assegure o interesse dos
usuários e, de outro, a atração de empreendedores particulares, a participação
privada na prestação de serviços pode contribuir para ampliar a capacidade
de investimento e mesmo para introduzir novos instrumentos de eficiência
operacional. No entanto, sem transparência e sem controle público – do Poder
Público e da sociedade – tal participação envolve riscos, maiores para os
usuários do que para os outros dois agentes envolvidos. Nesse sentido, é
importante referir que, em relação a serviços que já contam com prestadores
privados no País – energia elétrica e telecomunicações, por exemplo -, em
que pese o esforço realizado no âmbito da União para a sua regulação, ainda
há muito o que evoluir em termos de controle público.

391
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

6. Desafios da integração

No que tange às interfaces entre os sistemas de gestão de recursos


hídricos e de prestação de serviços de saneamento, importa destacar que os
serviços de água e esgotos, em termos nacionais e sob o prisma da quantidade
de água demandada, são usuários relativamente discretos. No entanto, na
medida em que a complexidade desses serviços é potencializada pelas
concentrações urbanas, eles constituem, localmente, grandes problemas para
a gestão dos recursos hídricos.
A legislação pertinente a esses recursos estabelece a prioridade para o
consumo humano - e não poderia ser de outra forma. Sendo finito o recurso e
havendo diversos usos possíveis e desejáveis, é necessário ordená-los
utilizando, inclusive, a cobrança pelo seu uso, com base no valor econômico
que, por sua vez, incorpora-se ao preço do produto água tratada e ao do serviço
de esgotamento sanitário. Assim, em termos de Política Pública, é necessário
estabelecer regras e critérios em relação ao uso do recurso natural água que
sinalizem o seu valor econômico e desestimulem os desperdícios, mas não
inviabilizem o pagamento, pelos usuários, dos custos dos serviços de
abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgotos sanitários.
É evidente que a cobrança pelo uso do recurso natural não é o único
instrumento de controle dos desperdícios, havendo outros, inerentes à própria
estrutura das tarifas a serem cobradas pela prestação dos serviços; mas a in-
terface acima referenciada destaca a importância da articulação entre os dois
sistemas de regulação e gestão.
Por outro lado, a gravidade da situação ambiental de grandes centros
urbanos no Brasil e a velocidade com que prossegue a degradação exigem
que se atribua prioridade à resolução dos problemas de esgotamento sanitário
e de destinação adequada do lixo urbano. A resolução desses problemas
contribui para a preservação dos recursos hídricos, em especial os mananciais
que abastecem de água esses centros.
Esses serviços de coleta e tratamento de resíduos (líquidos e sólidos)
têm externalidades ambientais que ultrapassam os limites das áreas de sua
influência direta. Por isso, é razoável que o financiamento dos investimentos
necessários para viabilizá-los, sobretudo no que se refere à implantação de
estações de tratamento, conte com outros recursos além das tarifas - por
definição, devidas pela prestação efetiva de um determinado serviço. Com
efeito, uma parte desses custos pode e deve ser repartida com outros segmentos

392
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

da população da mesma bacia hidrográfica, além dos usuários diretos do


serviço, pois não são os seus únicos beneficiários.
Uma dessas fontes de financiamento é a cobrança pelo uso da água,
cuja administração cabe ao sistema de gerenciamento de recursos hídricos.
Portanto, também na definição da destinação dos recursos financeiros
arrecadados com essa cobrança, é necessária a articulação entre os responsáveis
pela gestão dos recursos hídricos, cujo âmbito de atuação é, geralmente, re-
gional, e os que respondem pelos serviços de saneamento, que envolvem
interesses, via de regra, predominantemente locais.
No que se refere especificamente à regulação e controle da prestação
dos serviços de saneamento, o primeiro grande desafio é definir regras claras
e estáveis para o tratamento das questões relativas aos serviços públicos de
interesse comum que, como já visto, ocorrem em um número de situações
relativamente pequeno, mas envolvem uma parcela expressiva da
população urbana nacional.
Por outro lado, é necessário construir uma nova forma de controle sobre
a prestação de serviços, a qual deve ser transparente, estável e exercida por
entidade pública, no entanto o mais independente possível do Governo, para
que possa efetivamente arbitrar os conflitos de interesses, legítimos e
inevitáveis.
A autonomia possível do ente responsável pelo controle sobre a
prestação dos serviços, geralmente organizado sob a forma de agências
reguladoras, não retira do governante a capacidade de definir políticas, nem a
responsabilidade do poder concedente em relação aos serviços. No entanto,
as repercussões das decisões relativas à Política Pública sobre as condições
definidas para a prestação dos serviços devem ser analisadas pela agência,
cabendo-lhe propor as devidas alterações nessas condições para manter o
equilíbrio da atividade.
Para essa desejável autonomia e estabilidade, bem como para a
transparência das ações da agência reguladora, são condições essenciais: (i) a
participação organizada e institucionalizada da sociedade; (ii) mecanismos
democráticos de designação dos dirigentes; e (iii) autonomia financeira,
vinculada a receitas próprias, independentes do orçamento público.

393
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

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394
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Perfil curricular dos autores

Dilma Seli Pena Pereira – dilmapp@mpo.gov.br - Mestre em


Administração Pública - FGV/EAESP. Técnica em Planejamento e
Pesquisa do IPEA, desde 1977. Participou da elaboração e implantação
da Política Urbana executada pela CNPU/SEPLAN. Desde 1985 dedica-
se ao planejamento e execução de Programas e Projetos Federais na
área de Saneamento Básico. Foi coordenadora, no IPEA, do Projeto de
Modernização do Setor Saneamento. Diretora de Saneamento da
SEPURB/MPO (1995-1999). Atualmente é Diretora de Investimentos
Estratégicos do Ministério do Planejamento – SPI/MP.

Luiz Antonio de Andrade Baltar – baltar@torricelli.com.br -


engenheiro civil (UFPE, 1966). Foi engenheiro da Companhia de Águas
e Esgotos do Nordeste. Ex-Gerente de Projetos da Acqua-plan Estudos
Projetos e Consultoria. Foi Diretor da Empresa de Obras de Pernambuco,
vinculada à Secretaria de Saneamento e Obras do Estado. Foi
Coordenador do Gerenciamento do Programa de Modernização do Setor
Saneamento, da SEPURB/MPO (1995-97) e Assessor da Diretoria de
Saneamento da SEPURB (Jul a Dez 1998). Consultor independente desde
janeiro de 1999.

395
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

INTERFACES DA GESTÃO DE RECURSOS


HÍDRICOS E SAÚDE PÚBLICA

Albertino Alexandre Maciel Filho


Cícero Dédice Goes Júnior
Jacira Azevedo Câncio
Léo Heller
Luiz Roberto Santos Moraes
Mara Lúcia Carneiro
Silvano Silvério da Costa

1. Introdução

Os recursos hídricos determinaram sempre a existência humana, a


instalação ou a migração das populações em áreas do planeta e o surgimento
ou desaparecimento de civilizações. Portanto, a saúde humana está
definitivamente relacionada à disponibilidade de recursos hídricos, que são
necessários à sua relação positiva com o meio ambiente, sendo o homem
produto e produtor das condições ambientais.
O uso adequado dos recursos hídricos permitiu que civilizações se
abastecessem de alimentos e exportassem o excedente, criando riqueza e
associando a água à boa qualidade de vida. Por outro lado, o uso inadequado
destes mesmos recursos com o aparecimento de doenças transmitidas por
vetores fez declinar grupos humanos e tornar inabitável grandes áreas
potencialmente produtivas. Como caso histórico tivemos o abandono de
grandes áreas produtivas no sul da Espanha, quando da expulsão da civilização
árabe e seu domínio de técnicas de irrigação por inundação, em decorrência
de grandes epidemias de malária com a proliferação de mosquitos
transmissores da doença.
A saúde sempre esteve relacionada às questões do uso da água, como
bem e como risco. Observando a ocorrência de grande número de infecções
e mortes maternas associadas aos partos, Semmelweis, nos primórdios da
medicina, recomenda que os médicos ou parteiras lavem as mãos antes de
cada atendimento, o que reduz brutalmente os indíces de morbidade e
mortalidade. Em Londres, Broad Street, em meados do século passado, Snow
estuda a ocorrência de casos de Cólera, associa com a água de consumo da

396
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

população local proveniente de poço e determina medidas de controle da


doença através do controle da água consumida. Quando da tentativa de abertura
do Canal do Panamá, obra de engenharia rasgando um canal de navegação
ligando o Atlântico ao Pacifico em áreas insalubres e infestadas de mosquitos
transmissores de doenças, a saúde teve de intervir diretamente, prioritariamente
e predominantemente no controle das condições ambientais adversas mais
do que no tratamento direto de tais enfermidades. Sem uma ação conjunta de
controle ambiental e da saúde das populações expostas aos riscos não teria
sido possível realizar aquele grande empreendimento.
No Brasil do inicio do século, com a expansão das relações do comércio
mundial, o Rio de Janeiro teve de adotar radicais medidas de controle ambiental
para manter viável o funcionamento da capital da República, no controle de
doenças com fortes e determinantes fatores ambientais: Febre Amarela e
Malária, através de intervenções do sanitarista Osvaldo Cruz. Em determinadas
ocasiões, os navios mercantes que chegavam ao Rio de Janeiro não podiam
prosseguir viagem ou retornar aos seus portos de origem em decorrência da
morte de suas tripulações.
Hoje, com a expansão e as modificações dos processos produtivos, o
crescimento da população, a ocupação de todos os nichos ecológicos, as
migrações e urbanização descontrolada e desestabilizante, cresce a capacidade
humana de modificar e deteriorar o meio ambiente criando as condições
para que tenhamos graves riscos, doenças e agravos a saúde, convivendo
doenças de períodos diferentes: aquelas ditas do mundo industrializado
(cardiovasculares, stress etc) e aquelas do nosso passado, como homem
(cólera, dengue, febre amarela etc).

2. Impactos do uso da água sobre a saúde

2.1 Generalidades

2.1.1 Usos múltiplos integrados

São muitos os usos da água: para o consumo humano, para a


dessedentação de animais, para a irrigação na agricultura, para os processos
industriais, para a geração de energia, para o lazer, para a navegação,
além de outros.
O uso da água como produto fundamental e imprescindível à saúde das
populações humanas deve ter prioridade sobre os demais, conforme garantido
pela legislação em vigor.

397
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

O artigo 1º da lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997 (Lei das Águas) (1),


inciso III considera que "em condições de escassez, o uso prioritário dos
recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação dos animais".
O Código de Águas, de 1934 - decreto 24.643, de 10 de julho de 1934,
e Legislação Complementar, através do TÏTULO II- artigo 36 - parágrafo 1º -
já preconizava que "Quando este uso depender de derivação, será regulado,
nos termos do Capítulo IV, do Título II, do Livro II, tendo, em qualquer
hipótese, preferência a derivação para o abastecimento das populações.

2.1.2 Uso nobre da água - bem natural limitado e de valor econômico

A água doce e limpa é um recurso limitado. Mais de 97% da água da


terra é salgada e encontra-se nos mares e oceanos. Aproximadamente dois
terços da água disponível encontra-se distribuída em geleiras e calotas polares.
A água doce representa menos de 1% do total da água da terra e distribui-se
na atmosfera, lagos, rios, riachos, terras úmidas e água subterrânea (2).
Do ponto de vista econômico, o abastecimento de água visa, em primeiro
lugar, aumentar a vida média das populações através da redução da
mortalidade; aumentar a vida produtiva do indivíduo, quer pelo aumento da
vida média, quer pela redução do tempo perdido com doença. Visa também
facilitar a instalação de indústrias, inclusive as de turismo, e conseqüentemente
o progresso das comunidades. Por último, facilita o combate a incêndios (3) .
Os outros usos (dessedentação de animais, agricultura através da
irrigação, geração de energia, lazer, navegação, além de outros), por sua vez,
agregam grande valor econômico à água pela natureza da lógica produtiva.
O desafio de encontrar rumos para um desenvolvimento sustentado
forneceu o ímpeto - ou mesmo imperativo - de um maior empenho político de
percepção de que a água, além de elemento essencial à vida, é um recurso
econômico valioso e exerce papel fundamental no equilíbrio dos ecossistemas.
Foi percebido, também, que a solução de um problema local de abastecimento
ou de uso e proteção do capital ecológico necessita estar apoiada numa visão
holística da bacia hidrográfica (4) .

2.2 Importância da água para a saúde

Informações importantes correlacionando algumas doenças e o


abastecimento de água no país (5) . "Como exemplo do que se pode obter

398
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

com a melhoria no abastecimento de água e destino adequado dos dejetos, na


redução da morbidade, tem-se (6) :
• redução de 80% a 100% nos casos de febre tifóide e paratifóide;
• redução de 60% a 70% nos casos de tracoma e esquistossomose;
• redução de 40% a 50% dos casos de disenteria bacilar, amebíase,
gastroenterites, infecções cutâneas, etc.
Algumas doenças infecciosas e parasitárias já representaram a princi-
pal causa de mortalidade, mas a sua redução tem sido significativa. Tais
resultados vêm sendo atribuídos a muitos fatores, entre eles a ampliação dos
serviços de saneamento, principalmente o aumento do número de domicílios
abastecidos com água.
Com relação à morbidade verifica-se, também, que a diarréia não tem
mais um valor considerável entre as principais causas de internações. Elas
representavam 8,6% do total das internações em 1992 e 5,8% no total do país.
Nas Regiões NO e NE correspondiam, em 1996, a 9,3% e 8,6%, respectivamente.
No entanto, quando se verifica que 14,2% das internações hospitalares
realizadas em 1996, no sistema público de saúde, correspondem a crianças
menores de cinco anos, as doenças infecciosas e intestinais representaram,
em 1996, 20,9% do total das internações no país. Na Região Norte, 31,4% e,
no Nordeste, 26,4%. Em menores de um ano, as principais causas são a pneu-
monia (28,2%), a diarréia (21,8%) e as afecções perinatais (16,4%).
Também registra-se que as diarréias, doenças tipicamente relacionadas
à falta de saneamento, têm estado sempre entre as principais causas de
internações, considerando todas as idades, como demonstra o Gráfico 1
referente ao período de 1986 a 1996.
No Brasil, a principal endemia transmitida por vetores, que têm a água
como criadouro, é hoje a malária, com cerca de 450 mil casos registrados em
1996, dos quais 99,4% na Amazônia, onde residem aproximadamente 19
milhões de pessoas, 12, 3% da população brasileira (7) .
Embora a mortalidade por malária tenha decrescido 60% entre 1988 e
1995, com os coeficientes específicos reduzidos de seis para um caso por 100
mil habitantes, as principais razões que determinam o aparecimento e a
persistência do problema no Brasil são:
• as características da região, com seus criadouros naturais, como as
florestas alagadas, as lagoas marginais próximas aos rios principais;

399
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

• a migração desordenada de populações para as áreas urbanas, rurais e


de atividades extrativas, tais como mineração;
• a abertura de estradas;
• o desmatamento e a construção de barragens, represas e perímetros
irrigados que levam muitas vezes ao armazenamento inadequado de
águas paradas, principais criadouros do vetor.

Gráfico 1 - Principais causas de internação hospitalar, Brasil, 1986-1996

Outra endemia que merece destaque é a esquistossomose, cuja área


endêmica abrange 17 Estados da Federação, do Pará até Santa Catarina, pois,
além de ser endêmica em todo o Nordeste e em dois Estados da Região Sudeste
(ES e MG), encontra focos nos Estados do PA, PR, SC e no DF. Em1997
foram contabilizados 7.300 exames positivos, com 25 milhões de pessoas
expostas ao risco de adoecer. Apesar do trabalho intenso de diagnóstico e
tratamento dos casos, as ações de prevenção e controle, que incluem,
principalmente, o levantamento das condições das moradias e o modo como a
população elimina seus dejetos, as ações educativas, e a implantação de
soluções para o destino adequado dos dejetos, através de melhorias sanitárias
domiciliares e manejo ambiental, ainda não puderam ser estendidas a toda
área endêmica (8) .

400
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

A incidência de dengue tem, nos últimos anos, aumentado no país. Em


1998 foram registrados 536.507 casos da doença. Em 1999, 154.655 casos
foram registrados até o mês de Setembro.
O mosquito Aedes aegypti, principal vetor da doença, está totalmente
adaptado ao ambiente doméstico, industrial e comercial, encontrando aí todas
as condições para o seu desenvolvimento. Parte deste desenvolvimento ocorre
na água acumulada em recipientes utilizados para armazenamento no
domicílio, como caixas d'água, barris, pneus usados, calhas entupidas, vasos
e pratos para plantas e vidros, latas e potes descartáveis que podem reter água
relativamente limpa (9) .
Não apenas o dengue, como as demais arboviroses, são doenças cuja
eliminação do vetor ou a diminuição do contato entre o ser humano, o vetor e
o patógeno depende das condições ambientais.
Com relação à cólera, desde sua introdução, em 1991, até 1998, foram
registrados no Brasil 163.099 casos e 1.922 óbitos. Foram confirmados 4.133
casos em 1999 e, até setembro do ano em curso, praticamente o agravo já
chegou a todos os municípios onde predominam as precárias condições de
saneamento (10) .
As condições sanitárias precárias aliadas à não disponibilidade de oferta
de água (quantidade e qualidade) são fatores que contribuem de forma marcante
para a permanência da cólera e outras doenças entéricas na Região NE, que
sempre concentra o maior número de casos anualmente.
Pode-se afirmar, também, que a maioria das infeções causadas por
bactérias é decorrente da contaminação da água pelos dejetos. A contaminação
das águas dos sistemas de abastecimento por esgotos sanitários tem sido
demonstrada epidemiologicamente na literatura especializada, com a
ocorrência de epidemias, muitas vezes de grandes proporções (11) .
A leptospirose, no Brasil, ocorre todos os meses do ano, atingindo níveis
epidêmicos nos meses em que se registram índices pluviométricos elevados.
Além do contato urina do roedor/homem, vários fatores interagem entre si
para que ocorra o caso humano da doença. Dentre eles, a ocorrência de
enchentes, ligadas às aglomerações urbanas de baixa renda, à precariedade
das condições de moradia, saneamento, educação e higiene que contribuem
para o aparecimento de casos de leptospirose humana.
No período de 1985 a 1997, foram notificados no Brasil 35.403 casos
da doença. A letalidade variou de 6,7% (1996) a 20,7% (1987), numa média
de 11,1%. O coeficiente de incidência no país variou de 1,1% (1993) a 3,5%
(1996) no mesmo período. A Região Sudeste notificou 39,5% dos casos

401
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

observados de leptospirose humana, a Região Nordeste 34,4%, a Região Norte


15,2%, a Região Sul 9,9% e a Região Centro-Oeste, um dos casos.
Apesar de ocorrer tanto em áreas rurais como urbanas, é no meio urbano
que a leptospirose ocorre de forma mais severa, devido principalmente à
presença de Rattus norvegicus, portador clássico da Leptospira icterohaemorraghiae,
que é a mais patogênica ao homem, habitando os esgotos e galerias e
disseminando a bactéria através de sua urina.
A hepatite tipo E, tem o seu mecanismo de transmissão através do
vírus que, em muitos aspectos, tem comportamento semelhante ao vírus da
hepatite tipo A (Modo de transmissão fecal-oral, período de transmissibilidade,
e está presente em áreas com deficiência de saneamento básico) (12).
No Brasil, a média de notificação de casos de hepatites nos últimos
quatro anos é de 50.000 casos, dos quais a maior porcentagem se refere à
hepatite do tipo A, seguida da hepatite dos tipos B e C."
As informações sobre a situação do saneamento e algumas relativas a
contaminantes no Brasil (5), merecem ser também relembradas.
"A oferta de serviços públicos de saneamento está restrita ao atendimento
da população urbana. Dados de 1997(13) indicam que 77,7% dos domicílios
existentes no país estavam conectados à rede de abastecimento de água.
Quando se verifica a cobertura nos domicílios urbanos, encontra-se
um percentual de 91,2% e apenas 19,5% nas áreas rurais. A distribuição por
regiões mostra coberturas de domicílios urbanos elevadas nas Regiões Sudeste
(95,5%) e Sul (94,4%) e percentuais inferiores nas demais, sendo 86,0% no
Nordeste, 82,7% no Centro-Oeste e 69,6 % no Norte.
Com relação à qualidade de água de abastecimento, a informação mais
recente é da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico - PNSB, realizada
pelo IBGE em 1989(14), onde se verifica que 83,4% do total das cidades
servidas por sistemas públicos de abastecimento de água apresentavam alguma
forma de tratamento, desde o convencional até a simples desinfecção.
Do total dos domicílios incluídos na PNAD - Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (13) realizada em 1997, 40,7% eram providos de
rede coletora de esgoto e 21,7% de fossa séptica. A fossa séptica é considerada
também uma solução adequada para o destino dos dejetos, onde a rede coletora
não tenha sido uma alternativa técnica viável.
Em números absolutos, significa dizer que temos 37,1 milhões de
pessoas sem abastecimento de água de boa qualidade, 62,2 milhões de
pessoas sem rede de esgotamento sanitário e 52,1 milhões de pessoas
sem uma coleta regular de lixo.

402
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Estudos sobre poluentes químicos específicos, tais como agrotóxicos


nos ambientes domésticos e atividades agrícolas e mercúrio nas atividades de
mineração, revelam uma contaminação do homem e do meio ambiente em
que ele vive e trabalha. Situação similar se verifica em áreas industriais, onde
os poluentes e efluentes contaminam o ar, o solo e águas ampliando seu risco
para além de seus ambientes de trabalho, tal como o problema do benzeno.
Nas regiões sujeitas a queimadas, além da poluição atmosférica, o solo perde
sua fertilidade exigindo o uso intensivo de agroquímicos que, por sua vez,
poluem as águas e contaminam a cadeia alimentar.
As ocorrências de desastres naturais no Brasil são caracterizadas
por eventos tais como inundações, desmoronamento, incêndios e secas,
que afetam principalmente populações de baixa renda, habitando áreas
de urbanização precária.
É importante ressaltar que, em relação aos acidentes envolvendo
substâncias químicas (incêndios, explosões e vazamentos), cerca de 90% das
vítimas imediatas são os trabalhadores e cerca de 90% dos acidentes ligados
às emissões ambientais atingem corpos de água, solo e ar.
Ainda em relação a acidentes ambientais, dados referentes ao Estado
de São Paulo (15) indicam aumento progressivo do número de ocorrências
desde 1978, com 215 registros em 1995, e 398, em 1996. A maioria dos
acidentes notificados no período 1978-96 teve origem durante transporte
rodoviário (39%) e marítimo (12%), seguindo-se as localizações em postos
de abastecimento de combustíveis (8%), domicílios (8%) e indústrias (6%).
As classes de produtos químicos mais envolvidas nesses acidentes foram os
líquidos inflamáveis (41%), corrosivos (14%) e gases (11%).
Os agravos relacionados a acidentes e outras formas de contaminação
da água, estão associados aos mananciais utilizados, podendo comprometer
a qualidade da água consumida."
Muitas atividades e empreendimentos têm sido desenvolvidos e têm
gerado, posteriormente, efeitos secundários indesejáveis à saúde das
populações envolvidas ou circunvizinhas a esses empreendimentos e ao meio
ambiente, criando em algumas ocasiões problemas sanitários novos e, em
outras, agravando a incidência de enfermidades existentes (16) .
O Setor Ambiental tem usado instrumentos como os Estudos de Impacto
Ambiental (EIA) para avaliar os efeitos e conseqüências de atividades que
importem impacto ao meio ambiente. A Resolução CONAMA 001/86 dispõe

403
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

sobre diretrizes desses estudos e relaciona o impacto na saúde decorrente de


diversas atividades. O artigo 1º define o impacto ambiental como "qualquer
alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente,
causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades
humanas que, direta ou indiretamente, afetam a saúde, a segurança e o bem-
estar da população; as atividades sociais e econômicas; a biota; as condições
estéticas e sanitárias do meio ambiente; e a qualidade dos recursos ambientais".
Entretanto, tem-se detectado a ausência das análises de impacto à saúde,
nas avaliações e estudos realizados nas diferentes atividades potencialmente
degradadoras do meio ambiente, sendo necessário uma ação do setor saúde
no sentido de complementar essas análises de impacto ambiental com estudos
de impacto à saúde (16) .

2.2.1 Abastecimento de água

Para manter boa saúde, é necessário consumir aproximadamente 2,5


litros de água (16) por dia. Além de água para ingestão, necessitamos dela
para a preparação de alimentos, para a higiene pessoal e dos domicílios, para
lavagem de roupas e utensílios, para descarga de aparelhos sanitários, para
rega de jardins e para lavagem de veículos (3). A água não é somente essencial
para nossa saúde física, é também vital para o nosso bem-estar mental e so-
cial, ajuda-nos a relaxar e a alegrar a vida (17).
A quantidade de água consumida por uma população varia conforme a
existência ou não de abastecimento coletivo, a proximidade de água do
domicílio, o clima e os hábitos da população. O consumo per capita das
populações abastecidas com ligações domiciliares varia, com as faixas da
população, de 100 a 300 l/hab./dia (3).
Segundo Heller (1997) (18), o reconhecimento da importância do
saneamento e de sua associação com a saúde do homem remonta às mais
antigas culturas. Ainda de acordo com Heller, existem relatos, do ano 2000
a.c., de tradições médicas, na Índia, recomendando que a "água impura deve
ser purificada, pela fervura sobre um fogo, pelo aquecimento no sol,
mergulhando um ferro em brasa dentro dela, ou pode ainda ser purificada por
filtração em areia ou cascalho, e então resfriada." (USEPA, 1990) (20) E cita
Snow (1990) (21), que em sua histórica pesquisa concluída em 1854
comprovava cientificamente a associação entre a fonte de água consumida
pela população de Londres e a incidência de cólera .

404
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

São várias as maneiras do homem adoecer através do uso da água: da


ingestão direta, da preparação de alimentos, da higiene pessoal, da agricultura,
da higiene do ambiente, dos processos industriais e das atividades de lazer,
que podem ser distribuídos em duas categorias de riscos (3), quais sejam:
• riscos relacionados com a ingestão de água contaminada por agentes
biológicos (bactérias, vírus e parasitos), através de contato direto ou por
meio de insetos vetores que necessitam da água em seu ciclo biológico;
• riscos derivados de poluentes químicos e radioativos, geralmente
efluentes de esgotos industriais ou causados por acidentes ambientais.
O Quadro 1 (22) apresenta a relação das doenças relacionadas com o
abastecimento de água, os agentes patogênicos e as medidas de correção
necessárias.
Em resumo, as medidas para controlar a transmissão de enfermidades
através da água incluem as seguintes (23) :
Abastecimento de água:
• Seleção de fontes não contaminadas, como por exemplo, poços
profundos;
• Tratamento de água bruta, especialmente cloração;
• Adequação de ambientes contaminados por outros mais adequados,
confiáveis e seguros.
• Proteção de fontes;
• Controle da qualidade da água.
Disposição sanitária de excretas:
• Proteção dos sistemas de abastecimento de água;
• Proteção do meio ambiente;
• Apoio às atividades de controle dos sistemas de abastecimento de
água e da disposição de excretas;
• Destruição, disposição, isolamento ou diluição dos resíduos fecais;
Educação sanitária:
• Higiene pessoal;
• Proteção do meio ambiente;
• Apoio às atividades de controle de sistemas de abastecimento de
água e da disposição de excretas.

405
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

2.2.2 Uso nos processos produtivos

As indústrias vêm colocando em riscos cada vez mais crescentes a saúde


das populações situadas próximas a elas ou que utilizem as águas situadas à
jusante das mesmas. Tais riscos e exposições resultam do impacto causado pela
utilização dos recursos hídricos como corpos receptores de efluentes lançados in
natura e pela captação de água que visa o abastecimento de populações e o
suprimento de processos produtivos.
É importante citar a contaminação de cursos d'água através de garimpos,
sobretudo na região Amazônica, que acaba afetando a saúde das populações
através da ingestão, principalmente de peixe contaminado. Ao atingir ambientes
aquáticos, as espécies inorgânicas do mercúrio podem sofrer reações mediadas
principalmente por microorganismos que alteram o seu estado inicial, resultando
em compostos organomercuriais, como o metilmercúrio, mais tóxico que as
espécies inorgânicas. O metilmercúrio é facilmente absorvido por peixes e outros
animais aquáticos (24).

2.2.3 Construção de barragens

Devem ser aqui considerados não só o grupo das barragens para geração
de energia elétrica, como também para armazenamento de água, visando a
utilização por sistemas de abastecimento de água.
Tanto são impactantes tais empreendimentos que a Resolução CONAMA
001/86 exige a realização prévia de EIAs/RIMAs para: "obras hidráulicas para
exploração de recursos hídricos, tais como barragens para fins hidrelétricos, acima
de 10MW, de saneamento ou de irrigação, abertura de canais para navegação,
drenagem e irrigação, retificação de cursos d'água, abertura de barras e
embocaduras, transposição de bacias, diques;” (obras como Tucuruí, Itaipu e
Balbina teriam seus efeitos ambientais analisados a priori e o debate, portanto,
teria ocorrido antes da localização e construção).
São muitos os impactos à saúde humana, decorrentes do enchimento de um
reservatório de acumulação. Dentre eles seriam dignos de nota os problemas diretos,
como os acidentes com animais peçonhentos, a migração de animais silvestres
para áreas urbanas, a proliferação de vetores, além de outros. Vale enumerar também
alguns problemas de saúde indiretos que advêm da interrupção do fluxo de água
dos rios barrados, como a interrupção do fornecimento de água a populações de
cidades, a criação de acúmulos de água nos leitos irregulares dos rios que tiveram
o seu fluxo cortado, criando a possibilidade de proliferação de vetores.

406
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Quadro 1 - Doenças relacionadas com o abastecimento de água

407
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

2.2.4 Uso para irrigação

No Brasil, pouco ou quase nada se tem registrado sobre reuso de


efluentes, tratados ou não. O que não quer dizer que não ocorra de forma
indiscriminada e sem controle (25) , sendo prática corrente o reuso indireto,
pois somente 10% do volume total de esgotos coletados no país são
submetidos a algum tipo de tratamento (26) e o restante é lançado
diretamente nos curso d'água.
São vários os estudos sobre a qualidade de águas de irrigação ou de
hortaliças comercializadas em diversas regiões do país, reforçando os indícios
da prática disseminada de irrigação com esgotos, ao menos de forma indireta;
e o enorme déficit de tratamento de esgotos no país exigirá um esforço
planejado para a superação deste quadro de sérios danos ambientais e de
riscos de saúde pública (25) .
O impacto da irrigação na saúde pode ser sintetizado pelo que se
denomina de "Evidências Epidemiológicas", nas quais destacam-se quatro
grupos possíveis de classificação de risco: a) consumidores de vegetais
contaminados; b) consumidores de produtos de animais que pastam em áreas
irrigadas com efluentes; c) trabalhadores rurais expostos; e d) público residente
nas proximidades de áreas irrigadas com efluentes.
A contaminação de alimentos irrigados não se dá somente através de
microorganismos patogênicos, mas também através dos agrotóxicos utilizados
na agricultura, e no combate a vetores pelo próprio setor saúde. A agricultura
contribui significativamente para a deterioração da qualidade da água, através
da utilização de fertilizantes e agrotóxicos na irrigação (27) .
A propósito, a Resolução CONAMA 20, de 18 de junho de 1986,
estabelece a classificação das águas doces, salobras e salinas do Território
Nacional, segundo seus usos preponderantes, em 9 (nove) classes. Nessa
classificação estão definidos os corpos receptores passíveis de serem utilizados
para a irrigação.

2.2.5 Lazer

As enfermidades originadas por contato com a água transmitem-se


mediante o contato da pele com a água infestada por patógenos ou toxinas,
sendo a mais importante a esquistossomose (23) .
Além disso, a relação de enfermidades transmitidas por contato com a
água, são: Enfermidades Entéricas, Infeções Granulosas da Pele, Ictiotoxismo,

408
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Hirundiases, Leptospirose, Otite, Febre Faringiconjuntival, Meningoencefalite


Amébica primaria, Rinosporidiose, Sinusite, Sarna de Nadadores,
Esquistossomose, Tuberculose, Tularemia, Tripanossomíase Africana (23) .
Da mesma forma que na Irrigação, a Resolução CONAMA 20,
de 18 de junho de 1986, define aqueles corpos receptores passíveis de
serem utilizados para a recreação de contato primário (natação, esqui
aquático e mergulho).
O homem também pode, através de práticas recreacionais, contaminar
a água destinada ao consumo humano.
Existe muita controvérsia, em nível técnico, sobre a conveniência ou
não da permissão de atividades recreativas em lagos ou represas destinadas
ao abastecimento de água potável (28). Um estudo realizado pela CETESB
em 1971-1972, a partir do monitoramento de 3 (três) pontos na represa de
Guarapiranga, um dos mais importantes mananciais supridores do Sistema
Adutor Metropolitano de São Paulo, mostrou que não houve qualquer
comprometimento das concentrações de oxigênio, elevação da demanda
química de oxigênio ou mesmo do número de coliformes fecais. O único
fator que sofreu alteração em relação às condições de montante foi o teor de
óleos e graxas , possivelmente provenientes de barcos a motor e de estaleiros.

2.2.6 Ocupação territorial

Um fator importante que contribui para a poluição e contaminação dos


cursos d'água e que, conseqüentemente, confere risco de agravo à saúde
humana pela água, diz respeito à ocupação dos espaços rurais e urbanos que
são realizadas sem um adequado planejamento visando o equilíbrio entre o
ambiente e a sua utilização.
Como conseqüência de tal ocupação desordenada tem-se a eliminação
da cobertura vegetal, adensando e impermeabilizando o solo, o que impede a
infiltração e recarga dos cursos d'água.Tem-se também a produção e
carreamento de resíduos para os rios, comprometendo a conservação da água
em termos de quantidade e qualidade.

3. O Sistema Único de Saúde - SUS. A gestão da saúde no Brasil

Os princípios gerais que orientam as ações de saúde no Brasil são os da


universalidade de acesso aos serviços em todos os níveis, integralidade das
ações, eqüidade no atendimento e solidariedade no financiamento. Esses

409
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

princípios são previstos na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080, de 1990), que
estabelece a Política Nacional de Saúde e considera que a saúde tem como
fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia,
o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o
transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.
A Organização Mundial da Saúde - OMS define saúde como "um estado
de completo de bem-estar físico, mental, social e não apenas a ausência de
doença ou enfermidade". E a saúde ambiental é definida por esta Organização
como o campo de atuação da saúde pública que se ocupa das formas de vida,
das substâncias e das condições em torno do ser humano, que podem exercer
alguma influência sobre a sua saúde e o seu bem-estar. Ou seja, este é o
campo que trata da inter-relação entre saúde e ambiente.
A gestão da saúde no Brasil é realizada pelo Sistema Único de Saúde
(SUS), definido como o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por
órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração
direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, e, de modo
complementar, pela iniciativa privada, mediante contrato de direito público.
A organização da estrutura do SUS e as principais diretrizes de controle
e gestão do Setor Saúde estão previstos na Constituição Federal de 1988 e em
leis, decretos, resoluções e portarias que compõem o seu arcabouço legal.
Além dos instrumentos legais, existem diversos mecanismos de
integração entre saúde e ambiente, como o registro de produtos e a
regulamentação de padrões de qualidade da água para consumo humano. Em
muitos casos, a própria realidade exige a integração intersetorial, uma vez
que, por exemplo, o custo elevado da remoção de poluentes da água para
consumo requer que os mananciais sejam protegidos; a qualidade do ar depende
de controle de emissões; e o controle de criadouros de vetores de doenças
transmissíveis requer manejo ambiental (29).

4. Aspectos legais e compromissos institucionais

O desafio da gestão dos recursos hídricos e da saúde constituem-se numa


complexa e intrincada construção de inter-relações entre diferentes setores do
conhecimento, da administração pública, dos diferentes setores produ-tivos e das
comunidades e populações, trabalhando com um enfoque sistêmico e holístico,
em todas as áreas do desenvolvimento, no uso do progresso alcança-do pela
ciência e tecnologia, como instrumento de bem-estar e equilíbrio ambiental.
As diferentes áreas do desenvolvimento - educação, ciências, políticas,
legislação, tecnologia - devem atuar de forma integral para possibilitar a

410
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

reversão da tendência entrópica das condições de vida que tendem a limitar e


inviabilizar o desenvolvimento humano, nas diferentes localidades e regiões.
A legislação nas áreas de saúde e meio ambiente, ou particularmente
de recursos hídricos, tem evoluído com o desenvolvimento humano, com a
necessidade de acompanhar os novos paradigmas estabelecidos no mundo
moderno, incorporando em seu arcabouço legal princípios, definições e
salvaguardas, que procuram equilibrar o desenvolvimento humano, a
conservação desses recursos ambientais e da saúde, representados pelo bem-
estar individual e coletivo.
A Constituição Federal de 1988 (CF/88) traz em seu texto princípios
fundamentais e necessários para construção de uma sociedade justa e
harmônica e para integração dos diferentes setores da administração pública,
do setor privado e da coletividade, atribuindo e distribuindo responsabilidades
e competências, direitos e deveres, bem como atribuindo à coletividade um
papel ativo no controle e de co-responsabilidade nas ações que visem a
preservação da qualidade de vida e do meio em que vivemos.
Princípios como o da participação comunitária, organização, prevenção
e proteção ambiental, eqüidade, integralidade, diversidade e descentralização
estão previstos no texto constitucional, aplicados ao Setor Saúde, aos Recursos
Hídricos e à coletividade.
O art. 225 da CF/88 contém princípios fundamentais, tais como o de
co-responsabilidade entre os setores públicos e a coletividade; eqüidade e
sustentabilidade, essenciais à manutenção de um ambiente em que o homem
viva em condições saudáveis e harmônicas. (30)
Os princípios descritos são, também, contemplados na seção do texto
constitucional referente à saúde, que dispõe no art. 196 que a saúde é um
direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação; e no art. 198, que dispõe que as ações do serviço público de
saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, organizada de forma
descentralizada, priorizando as atividades preventivas e com a participação
da comunidade, sendo que esta participação é feita em nível municipal, estadual
e federal, institucionalizada através da criação dos Conselhos Municipais de
Saúde, Conselhos Estaduais de Saúde e Conselho Federal de Saúde, com
participação dos órgãos dos governos e comunidades.
A participação do Setor Saúde nas ações de defesa do meio ambiente e
da saúde também foi contemplada no art. 200, no qual dispõe que ao Sistema

411
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Único de Saúde compete: inciso IV - participar da formulação da política e da


execução das ações de saneamento básico; inciso VI - fiscalizar e inspecionar,
entre outras atividade, a água de consumo humano; e no inciso VIII - colaborar
na proteção do meio ambiente.
A CF/88, de forma abrangente, dispõe no art. 23 que é competência da
União, Estados e Municípios: inciso II - cuidar da saúde; inciso VI - proteger
o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; e no
parágrafo único dispõe que lei complementar fixará normas para a cooperação
entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o
equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
No art. 30, a CF/88 estabelece como competência dos municípios:
prestar, em cooperação técnica e financeira da União e dos Estados, serviços
de atendimento à saúde da população.
A Constituição também apregoa que o desenvolvimento urbano tem
que ser executado pelo Poder Público municipal, tendo como objetivo o pleno
desenvolvimento das funções sociais e a garantia do bem-estar de seus
habitantes (art. 182 - Caput).
Os preceitos constitucionais descritos anteriormente servem como
norteadores das leis ordinárias, que estabelecem normas gerais (art. 24, §1º),
prevêem a peculiaridade da norma estadual (art. 24, §3º) e prevêem o inte-
resse local da norma municipal (art. 30, inciso I).
Portanto, as normas de caráter geral, direcionadas ao setor saúde e ao
setor ambiental, nelas compreendidas os recursos hídricos, com previsão
constitucional, estabelecem assim as diretrizes para que todos os setores e a
população do país caminhem no sentido da busca do desenvolvimento
sustentável e de uma vida saudável para sua população.
Baseadas nestes princípios e diretrizes, as leis ordinárias, lei 8080/90 -
Lei Orgânica da Saúde, lei 6938/81 - de Política Nacional do Meio Ambiente,
lei 9433/97 - Lei de Política Nacional de Recursos Hídricos têm avançado
adotando os princípios de gestão integrada, descentralizada e participativa
das unidades básicas de gestão, tanto no setor saúde, que é o município, como
nos recursos hídricos, que são as bacias hidrográficas, utilizadas como unidades
básicas para o planejamento.
A legislação brasileira tem acompanhado a tendência mundial no
desenvolvimento de princípios e diretrizes que propiciem ações eficientes e
eficazes no combate à destruição ambiental, usada nos modelos tradicionais
de desenvolvimento, onde os recursos naturais são explorados até seu
esgotamento, inviabilizando a coexistência do homem com o meio.

412
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Essa situação e os problemas dela advinda têm sido motivo de


preocupação para os governos em todo o mundo e têm como desdobramento
a realização de reuniões, assembléias, congressos de cúpulas mundiais
iniciadas em 1972, na Suécia, com a Conferência da Nações Unidas sobre
Meio Ambiente Urbano. Esses eventos estabeleceram recomendações de
políticas de controle desses problemas e da promoção de um desenvolvimento
que harmonize o crescimento dos povos com a manutenção dos recursos
ambientais e da saúde, tendo sido mais importantes o encontro de cúpula do
Rio/92, que produziu a Agenda 21, que trata do desenvolvimento sustentável,
e mais recentemente a Conferência Pan-Americana sobre Saúde Ambiental
no Desenvolvimento Sustentável, Washington 1995, onde foi assinada a Carta
Pan-Americana sobre Saúde e Ambiente no Desenvolvimento Humano, que
fixou os princípios de política e estratégias para a participação dos indivíduos
e das comunidades nas ações de Saúde e Ambiente.
A legislação brasileira incorporou em seus preceitos legais essas
preocupações mundiais de proteção e defesa da saúde e do meio ambiente,
buscando instrumentalizar o Poder Público, as instituições privadas e a
sociedade, para que possam promover ações capazes de diminuir os riscos à
saúde, intervir nos problemas sanitários decorrentes de fatores ambientais,
contribuir na proteção e recuperação do meio ambiente e da qualidade de
vida e, sobretudo, agir de forma integrada, quer entre os diferentes setores
públicos, quer com as instituições civis da população.
Vale destacar algumas portarias e resoluções no âmbito dos Ministérios
da Saúde e Meio Ambiente, como a Portaria 036/MS, de 16 de janeiro de
1990, na qual são fixadas normas e padrões de potabilidade da água a ser
destinada ao consumo humano, a ser observada em todo território nacional; a
Portaria 635/BSB, de 26 de dezembro de 1975, que define normas e padrões
a serem seguidos sobre a fluoretação da água dos sistemas públicos de
abastecimento de água, destinada ao consumo humano; e a Resolução
CONAMA 20, de 18 de junho de 1986 que estabelece a classificação das
águas, doces, salobras e salinas do Território Nacional.

5. Interfaces da gestão de recursos hídricos com a saúde

5.1 A gestão de recursos hídricos e a disponibilidade de água em


qualidade e quantidade ao ser humano

Existe uma preocupação que se relaciona com a questão dos usos


múltiplos, conforme abordado no item 2.1.1, e a necessidade da água para

413
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

garantia da saúde, também abordado no item 2.2, em função da necessidade


de disponibilidade de água, em qualidade e quantidade, à população.
A gestão dos recursos hídricos, à luz da nova Lei das Águas (lei 9.433,
de 8/1/97), dos princípios básicos dos países que avançaram na gestão de
seus recursos hídricos (2), onde se destacam a eqüidade no acesso aos recursos
hídricos; a indução ao uso racional da água; a gestão descentralizada e
participativa, onde o que puder ser tratado no âmbito dos governos regionais
e mesmo locais não será tratado em Brasília ou nas capitais dos estados; e
mais, que os usuários, a sociedade civil organizada, as ONGs e outros
organismos possam influenciar no processo da tomada de decisão; tem tudo
para garantir o que o Código de Águas de 1934 já preconizava, que é a
preferência pelo abastecimento das populações.
Ademais, um dos principais instrumentos da lei 9.433, que é o
enquadramento dos corpos d'águas em classes de uso, pode ser um instrumento
de inter-relação entre a gestão da quantidade e da qualidade da água.
Outra preocupação que também surge, quanto à disponibilização da
água de forma adequada à população, tem a ver com o repasse do valor, a ser
cobrado pelo uso da água, ao consumidor final. Parte da população, sobretudo
aquela com baixo poder aquisitivo, em função do eventual aumento das contas
d'água, pode ser impossibilitada de pagar tal conta e, conseqüentemente, vir a
ter o acesso à água impedido.
Essas preocupações devem ser discutidas e consideradas na Gestão
dos Recursos Hídricos, pela importância que se tentou demonstrar neste
capítulo para a saúde da população.

5.2 A gestão do setor saúde e sua inserção na gestão de recursos


hídricos

A lei 9.433, criou alguns instrumentos e organismos que precisam ser


compartilhados pelo Setor Saúde na sua implementação e gestão.
Vale a pena citar o Plano Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema
Nacional de Informações sobre os Recursos Hídricos, como instrumentos. E
o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, os Comitês de Bacias
Hidrográficas e as Agência de Bacias.
O Ministério da Saúde já se encontra representado junto ao Conselho
Nacional de Recursos Hídricos e institucionalmente, o setor deverá estar
representado também nos Comitês de Bacias e nas câmaras técnicas das
futuras Agências de Bacia.

414
Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

A participação do Setor Saúde nos organismos de gestão de recursos


hídricos deverá ser conquistada através da busca da sua representação nesses
organismos, com vistas a interferir na definição de investimentos, a partir de
indicadores de Vigilância Epidemiológica e Ambiental, que evidenciem
prioridades para a prevenção, o combate a doenças e a promoção da saúde
daquela população exposta a riscos ambientais e que demande recursos para
a sua solução.
Já se tem notícia da participação de representantes do Setor Saúde em
Comitês de Bacia no Estado de São Paulo. Todavia, o setor ainda necessita
avançar no sentido de contribuir com tais indicadores, de forma dinâmica,
oportuna e sistemática.

5.3 O Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos e a


questão da territorialidade e a temporalidade

O Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos de que


trata a lei 9.433, de 8/1/97, deve ter na sua concepção duas dimensões
fundamentais, que deverão ser bem avaliadas. São as questões da territo-
rialidade e temporalidade.
É preciso considerar sempre a necessidade de harmonização entre
sistemas que já existem e que estão em fase de detalhamento, e nesse particu-
lar é razoável que se considerem as dimensões adotadas pelos sistemas de
informação no âmbito do SUS e também do Sistema Nacional de Meio
Ambiente (SISNAMA), além de outros.
Essas precauções parecem primordiais para a utilização de bases
geo-referenciáveis e passíveis de cruzamentos de informações ambientais e
epidemiológicas.

5.4 A Vigilância em Saúde contribuindo para a melhoria da saúde da


população

Encontra-se em fase de discussão no Ministério da Saúde o novo


enfoque da Vigilância em Saúde, com a visão de integralidade entre a
Vigilância Epidemiológica (populações), Vigilância Ambiental (fatores
ambientais) e Vigilância Sanitária (produtos e serviços). As duas primeiras
sendo estruturadas no âmbito do Centro Nacional de Epidemiologia da
Fundação Nacional de Saúde, FUNASA/CENEPI e a outra a cargo da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVS.

415
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Quadro 2 - Indicadores de Vigilância da Qualidade da Água de Consumo Humano

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Se, por um lado, a Vigilância Epidemiológica compreende um conjunto


de ações que proporcionam o conhecimento, a detecção ou prevenção de
qualquer mudança em fatores determinantes e condicionantes de saúde indi-
vidual ou coletiva, e tem por finalidade recomendar e adotar as medidas de
prevenção e controle das doenças e agravos, por outro, a Vigilância Ambiental
compreende as mesmas ações, só que em fatores determinantes e
condicionantes do meio ambiente que interferem na saúde do homem.
O Sistema de Informação em Vigilância Ambiental deverá utilizar dados
e informações de todos os sistemas do SUS , como também de outros setores,
como o de recursos hídricos e meio ambiente, e ser alimentado de forma
sistemática pelo nível local, municipal, estadual e federal.
Para a organização desse Sistema de Informação é fundamental a definição
de indicadores. Através da discussão de vários setores, incluindo a saúde e o
meio ambiente, dentre outros, a partir da metodologia adaptada pela OMS
(Organização Mundial de Saúde) (32) para construção de matrizes de causa,
efeito e ações, conseguiu-se identificar alguns indicadores que serão utilizados
na prática da Vigilância Ambiental. Estes indicadores, em última análise, cruzados
com dados dos sistemas do SUS e combinados com outras informações de fora
do Setor Saúde, serão fundamentais para a munição dos representantes do setor
nos organismos criados a partir da nova Lei das Águas.

6. Conclusão

A partir da constatada correlação e importância entre a Gestão de


Recursos Hídricos e a Saúde Pública; dos vínculos institucionais e legais que
o advento da Constituição de 1988 oportunizou; e da necessidade do trabalho
articulado entre os setores de Meio Ambiente/Recursos Hídricos e Saúde,
resta a ambos buscar, de forma sistemática e permanente, tais articulações.
O planejamento das ações de saúde, meio ambiente, saneamento e
recursos hídricos atinentes às bacias hidrográficas deve ser orientado pelos
critérios de salubridade ambiental e epidemiológicos, numa lógica em que o
primeiro é a causa e o segundo, o seu efeito direto.
O movimento em torno da estruturação da Vigilância em Saúde, no
âmbito do SUS, será primordial para a disponibilização e análise de
informações e indicadores que possam balizar tais ações, ao passo que a
gestão participativa e descentralizada dos recursos hídricos propiciará a
oportunidade de o setor saúde participar, contribuindo de forma consistente
na melhoria da saúde das populações residentes nas diversas bacias hidrográficas.

417
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

Cabe aos representantes governamentais e não-governamentais do Setor


Saúde buscar participar efetivamente dos organismos de gestão que a lei
9.433/97 institui, nas suas áreas geográficas correspondentes.
Oportuna também é a busca da participação dos representantes dos
setores de saneamento e meio ambiente nos órgãos colegiados, das esferas
correspondentes, do Sistema Único de Saúde.

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Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997

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E AMBIENTAL-ABES - Catálogo Brasileiro de Engenharia Sanitária e
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de Políticas e a Tomada de Decisão em Saúde Ambiental. Versão Preliminar.
Organização Mundial da Saúde, Genebra (mimeo).

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Parte 5 : Gestão de Recursos Hídricos:
Interfaces Setoriais

Perfil curricular dos autores

Albertino Alexandre Maciel Filho – amaciel@fns.gov.br – é


engenheiro civil (UFPE, 1973); especializado em Saúde Pública,
Epidemiologia e Arquitetura Hospitalar. Atualmente é Coordenador de
Vigilância Ambiental do CENEPI / FUNASA e representante do
Ministério da Saúde no Conselho Nacional de Recursos Hídricos.

Cícero Dédice Goes Júnior - cgoes@fns.gov.br - é engenheiro


agrônomo, com mestrado em Ecologia e Consultor da Coordenação de
Vigilância Ambiental /CNEPI/FUNASA.

Jacira Azevedo Câncio – cancioj@bra.ops-oms.org - é engenheira


civil e sanitarista, com especialização em Saúde Pública e Assessora de
Saúde e Ambiente da OPAS/OMS – Representação no Brasil.

Léo Heller - heller@adm.eng.ufmg.br - é engenheiro civil, com


doutorado em Epidemiologia, Diretor e Professor Pesquisador da Escola
de Engenharia da UFMG.

Luiz Roberto Santos Moraes - moraes@ufba.br - é engenheiro


civil, com doutorado em Epidemiologia e Professor Pesquisador da
Universidade Federal da Bahia.

Mara Lúcia Carneiro Oliveira – maralucia@fns.gov.br - é


engenheira civil, com especialização em Engenharia Sanitária e
Especialista da Coordenação de Vigilância Ambiental /CNEPI/FUNASA.

Silvano Silvério da Costa - sscosta@fns.gov.br - é engenheiro civil


e especialista da Coordenação de Vigilância Ambiental /CNEPI/
FUNASA.

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