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Eugen Drewermann

O Essencial
é· Invisível
Uma leitura psicanalítica
de O Principezinho
Tradução do francês de
MARIA FILIPE RAMos RosA

Circu}Octeleitores
Título do original alemão:
DES EIGENTLICHE IST UNSICHTBAR
DER KLEINE PRINZ TIEFENPSYCHOLOGISCH GEDEUTET
Capa:
JOÃO ROCHA

Prólogo

Inúmeros são os nossos contemporâneos que consideram


O Princípezinho de Antoine de Saint-Exupéry um dos livros­
-chave das suas vidas. Este conto poético serviu-lhes de refúgio
nas horas de solidão, de lenitivo para as decepções, de fonte de
esperança no desamparo. Tornou-se o indispensável compa­
nheiro dos caminhos sem fim dos seus desejos e aspirações, e a
sua tristeza contida foi um quente e acolhedor abrigo num
mundo cada vez mais frio.
Será o eterno sonho da infância perdida que torna o Prin­
cipezinho tão reconfortante e tão simpático? Sem dúvida. Mas
não só. É preciso acrescentar-lhe a arte da ironia com que o
autor nos liberta do peso absurdo do mundo das «pessoas cres­
cidas» e permite que recuperemos o fôlego e nos recolhamos
no deserto do humano. O Principezinho devolve-nos sobretu­
do alguma confiança no carácter incondicional do amor; pro­
mete-nos e encarna para nós um universo onde -o homem des­
cobre novamente a preocupação e a responsabilidade para com
o próximo, e mostra-nos como se constrói um laço de amor
!fJ Copyright 1984, Verlag Herder, Freiburg im Breis&au, Alemanha
Impresso e encadernado para Círculo de Leitores
que nem mesmo a morte conseguma romper: é um cântico à
por Tilgráfica, SA amizade e à camaradagem, traduzido em imagens de fascinante
Luoar do Bairro - Ferreiros, Braga
"'
em Julho de 2001
simplicidade e beleza.
Número de edição: 4781 Não admira, pois, que o Principezinho de Sainr-Exupéry
Depósito legal número 166 184/01
ISBN 972-42-2539-9
se tenha tornado a personagem ideal, o sonho da humanidade.
A sua visão do reino da inocência infantil, a sua forma de verI
as estrelas a tilintar pelo céu como sinos falam-nos do planeta
invisível de uma estranha rosa. Este horizonte dilata o coração
E esta dimensão chega a ultrapassar a que ele próprio lhe con­
ferira, qualquer que fosse a altura da sua visão do nosso mun­
do. O seu conto tem o poder e o valor de uma invocação pro­
e devolve-nos a profundidade do sonho que pensávamos perdi­ fética - mas até a mensagem dos maiores profetas acabava
do no meio do deserto do quotidiano. Sem querer, sentimo­ sempre num desmentido: à tempestade da sua voz sucedia a
-nos invadidos por um sentimento quase maternal que nos faz doce brisa de uma palavra divina (1 R, 19, 20), suscitando
desejar que o Principezinho continue a viver feliz, bem prote­ a bondade em lugar da severidade. O Principezinho não volta­
gido, no seu universo de estrelas. Quase nos esquecemos que, rá a esta terra enquanto não estivermos prontos para resolver e
na obra de Saint-Exupéry, ele «morre>> neste mundo por um ultrapassar as contradições que o aniquilaram: pois é aqui, nes­
tempo indeterminado; agrada-nos sonhar com o escritor que te mundo, que ele devia viver. Este é o objectivo essencial do
soube encarnar na vida a personagem do seu herói, e facilmen- presente ensaio, a um tempo teológico e psicanalítico: levar a
te concordamos com a afirmação de boa parte dos seus biógra­ perseguir na vida os sonhos suscitados pelas palavras, as ima­
fos segundo a qual o seu companheiro e amigo Antoine mais gens e os símbolos do célebre conto de Saint-Exupéry.
não fez do que deixar para a posteridade um auto-retrato na
pessoa do seu herói.
Com efeito, é indispensável aprofundar os traços autobio­
gráficos do Principezinho do ponto de vista psicanalítico, ainda
que se corra o risco de assim destruir o «mito» de Saint-Exu­
péry - está fora de questão passar por cima das contradições
que constelam a vida e a obra do escritor, como se fosse preci­
so protegê-lo de si próprio, atribuindo os seus erros às condi­
ções da época -, pois só uma reflexão objectiva nos oferece de
facto a oportunidade de conhecer o escritor de forma mais
aprofundada e verdadeira - em O Principezinho mais do que
em qualquer outro dos seus livros.
Na sua obra, muitos são os traços que nos permitem com- �
Preendê-lo, mais do que fazer-nos acreditar no que diz. Se o �

nosso retrato, tão pouco conforme à imagem do escritor que i



até hoje reinou na literatura, pudesse conduzir o leitor a afas-
tar-se dele com um sentimento de amor desiludido ou de sim- !
patia ferida, desde já o avisaríamos. Não poderemos nunca �
compreender as preocupações e as teses de um escritor - mes­
mo com a estatura de um Saint-Exupéry - se não pressentir­
mos, ou melhor, se não tivermos fé e confiança numa dimen-
w
são da realidade portadora de amor, confiança e consolação. i

6 I
,
Introdução

Quem procura interpretar O Príncipezínho corre sempre o


risco de se transformar em «embandeiro». Porque é próprio do
«embandeiro» crescer e engrossar a ponto de destruir o planeta
secreto da felicidade, de desenraizar o mundo da infância e
abalar o universo do sonho. Em suma: minar o solo sagrado
que permitiria a uma rosa afirmar-se na sua beleza. O que fará
qualquer interpretação- e com maioria de razões a psicanalí­
tica - para além de destruir a linguagem da poesia? Assassina­
-lhe o carácter imediato e substitui-lhe a reflexão; contraria-lhe
o calor e a profundidade do sentimento em proveito de hipó­
teses e abstracções intelectuais; disseca e dilui na análise o que,
na sua densidade, a perspectiva simbólica unia. «Se desejas
compreender os homens, não é preciso ouvi-los falar.»1
Porquê, então, uma interpretação psicanalítica de O Prínci­
pezinho? Porque não deixar simplesmente que as imagens ofe­
reçam o seu significado?
Porque, é preciso que se diga, a verdadeira obra literária
consiste em exprimir uma realidade complexa através de um
simbolismo que implica vários níveis de leitura. Só apelando
simultaneamente à intuição e à análise reflectida se pode de
facto compreender a sua linguagem.
É verdade que a decomposição dos elementos de uma ima­
gem poética ou religiosa próxima do sonho pode destruir a sua

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força imaginativa e impulsiva ao suscitar um divórcio intelec­ circunstanciais, as evidências do homem, que marcaram a obra
tual que provoca a atenuação do sentimento imediato. Mas o do escritor francês. É certo que «O criador evade-se sempre da
inverso também é verdadeiro. Pode destituir-se um texto poéti­ sua criação. E o rasto que ele deixa é lógica pura»4; porém,
co ou um sonho da sua realidade e da sua eficácia tratando-o se se quer uma criação realmente eficaz, é preciso perguntar
como se faz habitualmente de manhã quando se acorda: recor­ qual é a imagem do homem que nela vive e, por conseguinte,
dando as mensagens oníricas da noite, sorri-se com alguma in­ qual é o homem que nela se reflecte. O que torna necessária a
quietação ou troça-se delas com alívio ao verificar que afinal interpretação de uma obra de arte não é uma tendência arrai­
tudo não passou de um sonho2; ou, então, vai-se contá-lo aos gada de tudo dissecar (psico)logicamente, mas o desejo de uma
amigos em forma de adivinha, sem se conseguir reconhecer ne­ confirmação existencial.
le e sem dar o mínimo valor ao que se viu. Finalmente, os pró­ Outra razão se vem juntar à precedente. Milhões de pes­
prios sonhos podem ser utilizados para fugir à realidade. Da soas já leram O Principezinho e haverá ainda milhões a lê-lo.
mesma forma, para os intelectuais, o mundo da poesia pode Se, dentro de alguns séculos, se procurar os raros instantâneos
funcionar como uma droga, e se a leitura de uma verdadeira significativos capazes de resumir as imensas bibliotecas de uma
obra literária não conduz o leitor a interrogar-se sobre si mes­ época em que ainda se escreviam livros, um pouco como hoje
mo, então não responde à sua verdadeira intenção. recorremos à poesia de Dante para ter uma ideia da Idade Mé­
É portanto inevitável interpretar uma narrativa poética e dia ou à de Shakespeare para entender a época isabelina, pode
seria injusto ser tratado por «embandeiro» simplesmente por­ pensar-se que os dois únicos textos a reter como essenciais e
que se quis compreender a verdade expressa numa ficção literá­ característicos dos nossos séculos de conflitos sangrentos e de­
ria. É claro que aquele que procura destrinçar a verdade exis­ vastadores seriam O Castelo de Franz Kafka e O Principezinho
tencial de um texto segue numa direcção bem diferente do de Saint-Exupéry.
estudioso das ciências da literatura: onde este se preocupa antes Quanto a O Castelo, não há qualquer dúvida: este romance
de mais em analisar os procedimentos que permitem a trans­ forneceria uma das chaves para a compreensão da crise actual
posição da vida em obra de arte, aquele aplica-se a descrever a da humanidade. Em nenhum outro lugar conseguiríamos en­
própria realidade que se exprime na obra literária (ou plástica). contrar uma descrição que evocasse melhor o absurdo e a alie­
Já não se trata de avaliar o valor artístico do texto, mas a sua nação, o dilaceramento interior e a solidão, o desamparo e a
verdade psíquica e existencial. Se, falando da análise, o próprio desorientação do nosso modo de vida5. As idades passadas dei­
Antoine de Saint-Exupéry declara que «a lógica situa-se ao ní­ xaram-nos o seu retrato em mitos e contos, sagas e lendas; o
vel dos objectos, e não ao nível do laço que os liga uns aos ou­ romance de Kafka é por seu lado um anticonto que chega a
tros»3, é portanto indispensável ver em que medida se pode re­ subverter as metáforas da esperança, as imagens de cidade, de
conhecer a obrigação do «laço», da visão expressiva, da criação castelo, de reino e de missão, para transformá-las em símbolo
poética para além da lógica. A obra literária de Saint-Exupéry é de infelicidade e fornecer-nos assim o horror de um universo
toda ela de teor visionário; deve ser compreendida como uma sem horizonte possível, porque inelutavelmente submetido à
espécie de missão da humanidade. Não menos importante é administração de uma burocracia glacial, absurda e inatacável.
tentar descobrir as experiências e os conhecimentos, os temas Ninguém parece então mais apto a fornecer um contrateste­
e as motivações, os acontecimentos e as impressões pessoais ou munho desta visão desesperada das coisas que o autor desse an-

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ti-«castelo» que é a Cidadelcf>; e se não quisermos ler esta volu­
mosa obra que Saint-Exupéry só nos pôde deixar em forma
fragmentária, veremos pelo menos em O Principezinho, nascido
na mesma época, um verdadeiro breviário da esperança, o va­
de-mécum do amor. Se fosse necessária uma prova de que até
o nosso tão perturbado século era capaz de produzir um conto
de valor intemporal, este livro surgiria como o mais apto a for­
necê-la.
Sondar este pequeno escrito e o seu mundo psíquico equi­
vale assim a colocar a questão de saber em que medida existe -
ou pode ainda existir, neste século desumano- uma esperan­ A MENSAGEM
ça credível para o homem. É certo que vivemos no coração de
um deserto que não pára de crescer, e o problema reside por­
tanto em descobrir que fonte nele se esconde e onde é que ela
se encontra. É na companhia de Saint-Exupéry que tomaremos
o caminho das estrelas ou da cisterna, para ver que luz, na noi­
te, e que água, no meio das dunas, conseguiremos encontrar.
Vamos tentar compreender a mensagem que nos deixou para
podermos verificar a sua dimensão.
1. O menino-rei: uma redescoberta
quase religiosa

É espantoso ver que sempre que os poetas têm algo de es­


sencial a dizer vão beber à fonte do mundo das imagens reli­
giosas. É o caso de Saint-Exupéry em O Principezinho.
Por todo o lado, as narrativas populares contam-nos histó­
rias de filhos de reis vindos de lugares escondidos para se apre­
sentar aos homens, seres capazes de ver tudo com olhos novos.
Estes arquétipos possuem uma manifesta dimensão religiosa.
Mas a linguagem de Saint-Exupéry torna-se ainda mais clara­
mente religiosa quando se põe a falar do filho de um rei que
nos vem visitar de um planeta longínquo; conta-nos que este
menino ficou pouco tempo no nosso mundo e que se prepara­
va para morrer, pois precisava de voltar à luz das estrelas. No
entanto, a sua vinda não foi em vão, porque, desde então, es­
peramos o seu regresso e as estrelas não brilham da mesma ma­
neira na escuridão das noites. O mundo não mudou desde que
o Principezinho o pisou; mas é possível vê-lo com os seus
olhos, e muitas das coisas que considerávamos sérias nos pare­
cem agora ridículas, enquanto muitas das que eram ridículas
tornaram-se sérias; o que era importante parece-nos mesqUI­
nho e o que era inconsistente tornou-se importante, porque re­
descobrimos toda uma parte da humanidade a que tínhamos
renunciado, em particular o sonho, a esperança, o amor.
Que ligação poderá existir entre a religião e a figura do

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menino-rei senão o facto de que o nosso coração deve desco­ bre a qual vem repousar a bem-aventurança divina, desde que
brir a sua origem e a nossa vida é destinada a repartir, de que se sai ba acolhê-la (Mt 5, 3); «criança» é aquele que se mantém
temos de renascer no quadro de um mundo onde os animais constantemente voltado para um mundo mais doce, mais mi­
se exprimem, onde as flores falam e as estrelas cantam, como sericordioso, mais pacífico e globalmente mais justo (Mt 5,
em O Principezinho? 5 -9). Uma «criança» deste género não se deixa cegar nem pelo
O Novo Testamento não esclarece verdadeiramente o que poder, nem pela reputação, nem pela «carreira», nem pelo di­
Jesus queria dizer quando declara aos seus discípulos: «Se não nheiro dos «grandes», porque sabe que só os «pequenos» po­
voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no rei­ dem perceber e acolher o que é humanamente verdadeiro e o
· ·

no dos céus» (Mt 18, 3). Mesmo que evitemos projectar na in­ que serve a paz (Mt 11, 25).
Este sentimento de confiança torna possível uma abertura
fância uma visão romântica sublime1, é preciso pelo menos di­
sem limites. As distinções morais entre o bem e o mal, tão im­
zer que ela se caracteriza por duas atitudes fundamentais que,
portantes no universo adulto, pouco valor têm aos olhos da­
religiosamente falando, impedem a infância de alguma vez ne­ quele que conhece o domínio aparente do medo e da solidão e
gar o seu verdadeiro ser: a confiança e a fidelidade. que sente no mais profundo do seu ser que só pode ser bom
De um ponto de vista religioso, a «criança» é o enigmático aquele que vive no dom e na felicidade do amor. É assim que,
símbolo de uma vida conduzida pela confiança inabalável na no Novo Testamento, ouvimos Jesus proclamar que Deus faz
bondade fundamental deste mundo. A sua existência não expe­ brilhar o Sol e cair a chuva tanto sobre os bons como sobre os
rimenta qualquer necessidade de se assegurar contra aquela an- ' maus (Mt 5, 45). Ele, o infinito, debruça-Se profundamente
gústia que molda e deforma completamente a existência adulta. �
sobre todos os homens, grandes ou pequenos, e não há ne­
Quando um homem tem medo é porque receia ser «pe- · nhum que não viva da sua graça.
queno»; a angústia que o assalta leva-o a tornar-se sempre Na claridade da manhã, na esplanada do Templo, uma
maior, mais «adulto», até ao momento em que acaba por ultra­ «criança» deste género, Jesus, podia suscitar o milagre de fazer
passar a sua medida tornando-se literalmente «mau». Por ou­ com que um grupo de homens, já armados de pedras para lin­
tras palavras, ele fica inchado de importância2, quando na rea­ char em nome da justiça uma rapariga culpada de adultério,
lidade acaba por se tornar quase irreal atrás da sua eterna · renuncie por momentos à sua intenção, suspenda o julgamento
fachada de como se3 de grandes palavras e grandes gestos. e se atreva a considerar o seu próprio coração4. É também nes­
«Qual de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um te sentido que Fedor M. Dostoievski traça na pessoa do prínci­
pe Muichkine um retrato semelhante de um maravilhoso me­
só côvado à duração de sua vida?», admoestava docemente Je­
nino que se opõe aos preconceitos que conduziram uma aldeia
sus, no seu Sermão da Montanha (Mt 6, 27); mas o que vive
suíça a vilipendiar e condenar como desonrada Maria, uma ra­
na angústia não conseguiria alcançar esta verdade. «Criança» é pariga moribunda; ele consegue fazer entender às crianças da
aquele que ap rendeu a renunciar a este mundo de aparências aldeia, que imitando até aí os adultos se riam dela e lhe atira­
criadas por adultos que suam de angústia, esses «crescidos» cu� vam com lama, o que podiam significar a bondade sem restri­
jos discursos e gesticulações só servem para propagar o medo; 1 ção e a compreensão sem limites5. O amor deste tipo de
«criança» é aquele que, de cerra forma, sabe começar de novo a

I
«crianças» é universal - não exclui nenhum daqueles que pre­
.
vida, levado por uma mdestrunvel coragem da verdade - so- cisa de ajuda, humano ou animal, importante ou vulgar.

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Para os «adultos», as diferenças sociais contam bastante, e; deveria ter subsistido, mas que sobrevive apenas em esboço.
nada 'é para eles mais importante do que saber que casa é que; No entanto, por muito romântica que nos pareça agora a im­
fulano construiu, que carro conduz e de que talher se serve pa-i pressão por ele deixada, este principezinho de sonho não faz
ra comer peixe ou lagosta. Um «menino», como era Jesus, não� ainda ressoar as grandes verdades religiosas, e não podemos
tem a menor preocupação em saber se os discípulos lavaram as 1 deixar de sentir simpatia humana pela sua crítica do universo
mãos antes de comer; o que, aos seus olhos, permite decidir da� dos adultos, que idolatram números e aparências. No fundo,
personalidade de alguém é o que se passa no seu coração, os � bastante involuntariamente, este conto grandioso, a mais mara­
pensamentos e sentimentos que ele abriga (Me 7, 1-13).-� vilhosa narrativa deste nosso século xx, é como que uma prova
É também uma criança deste género que Georges Bernanos i da impossibilidade em que nos encontramos de recuperar esse
descreve na pessoa do seu «pároco de aldeia», o qual devolve à; passado longínquo em que o sonho vinha em nossa ajuda e os
condessa de Chamai, sob a forma de um profundo sentimento_ contos se realizavam.
de apaziguamento em Deus, o filho que ela perdera, quando; Enquanto as fantasias populares grandiosas nos contavam
esta, inconsolável, não cessava de se debater contra esse Deus6.i co mo os adultos podiam ter a experiência do renascimento,
Religiosa é uma «criança» que, na sua confiança em Deus, I simbolizado num dos seus filhos, ou como as crianças podiam
venceu o medo humano e que, no seu coração, deu então lu-� salvaguardar as suas particularidades ao mesmo tempo que en­
gar a algumas verdades simples. Aquele que, ao longo da vida, � frentavam o risco de crescer, O Principezinho descreve-nos um
acreditou em Deus como num pai é uma «criança», no sentido] encontro sem integração, uma recordação sem síntese, uma vi­
religioso; é como um irmão ou uma irmã cuja bondade total-. são sem perspectiva.
mente desinteressada nada pretende, nada sujeita. E se a elaZ A história começa com uma descrição da forma como os
nos dirigimos como a um «príncipe» ou a uma «princesa» { adultos podem destruir tudo na criança, antes mesmo de esta
porque, na sua presença, sentimos que somos convidados a· começar realmente a viver; e esta narrativa que, a acreditar no
sentarmo-nos à mesa de um rei eterno, tornando-nos assim autor, é dedicada a um adulto dirige-se contudo à criança que
hóspedes de um reino invisível, enquanto uma luz celestial esse adulto já foi. Não há dúvida que ela exorta todas as crian­
vem evocar da forma mais viva a nossa origem. «Ü Reino dos ças deste mundo a recusarem-se a confiar na vaidade das pes­
céus é comparável a um rei que preparou um banquete nupcial: soas crescidas e a manter a simplicidade de coração. Mas não
para seu filho», declarava Jesus no Novo Testamento, para des­ dá a ver que a «pessoa crescida» ainda pode ter a sorte de mu­
crever a nossa vocação profunda (Mt 22, 2). dar completamente e de se encontrar a si mesma recuperando
Se tivermos tudo isto em conta, O Principezinho de Saint­ a sua infância original; e mostra-nos ainda menos como o
-Exupéry recorre incontestavelmente a temas extraídos do ima­ Principezinho poderia inaugurar o seu reino secreto nesta ter­
ginário religioso; privado do cenário simbóli�o e espirit��l do ra. Pelo contrário, no final, por fidelidade à sua Rosa, o Princi­
cristianismo, a personagem não existma e sena mesmo Ill!ma­ pezinho regressa ao seu minúsculo planeta, enquanto o Avia­
ginável; e no entanto ela existe apenas sob a forma de sombra dor caído do céu tem de retomar a sua existência de «pessoa
fugidia de uma luz religiosa outrora resplandecente, e a tristeza , crescida», roído de desejo e mais triste que nunca, mas tão in­
e a melancolia, aquela atmosfera de pôr do Sol e de solidão capaz como antes de transpor a personagem do Principezinho
que a envolve, são como uma recordação de alguma coisa que para a sua vida pessoal.

lR 19
É verdade que o próprio cristianismo dizia do «menino­ do, acompanhado, cultivado, que não viria a ser ele? Quando
-rei»? que, ao descer a este mundo, seria perseguido, banido e nos jardins nasce uma rosa nova por mutação, todos os jardi­
finalmente morto; também ele falava da espera e do regresso �
neiros se emocionam. Isolam-na, cultivam-na, favorecem-na.
do enviado divino cuja figura já conhecemos e cuja mensagem Mas para os homens não há jardineiro. Mozart menino será
escutámos. Todavia, religiosamente falando, o «menino divi­ como os outros marcado pela máquina de bater ferro. Mozart
no» é o símbolo de um género de existência fundamentalmen- ; construirá as suas mais elevadas alegrias com música apodreci­
te renovada e salva, ao passo que o Principezinho nos apresen- ; da, no fedor dos cafés-concertos. Mozart está condenado. Vol­
ta uma aspiração ideal a uma vida que não é nunca vivida; não ' tei à minha carruagem. Dizia para comigo: esta gente não sofre
passa da antítese simbólica do universo inumano das «pessoas com a sua sorte. E não é caridade o que me atormenta aqui.
crescidas». Enquanto a religião nos conta um sonho tornado Não se trata de nos enternecermos sobre uma chaga eterna­
realidade, e podemos então, devemos mesmo, em cada instan­ mente reaberta. Os que a têm não a sentem. O que aqui é feri­
te, tornar de novo real, Saint-Exupéry entretém-nos com um •
do, lesado, não é o indivíduo, é qualquer coisa como a espécie
sonho que nunca tomou realmente forma e cuja concretização , humana. Não acredito na compaixão. O que me atormenta é o
não conseguimos encarar. O «menino-Deus» da religião encar- , ponto de vista do jardineiro. O que me atormenta não é esta
na uma vida que venceu a morte, ao passo que o Principezi- ; miséria, onde, no fim de comas, as pessoas se instalam tão
nho remete para uma infância que não pôde aceder à vida; o ·.
bem como na preguiça. Gerações de orientais vivem na porca­
que ele nos apresenta não é o ressurgimento, mas antes a des­ ria e gostam disso. O que me atormenta não o curam as sopas
truição de uma disposição do coração do homem, da vocação a aos pobres. Não são estas covas, estas bossas, esta fealdade que
que poderia responder se uma geada precoce não tivesse vindo •
me atormentam. É Mozart, assassinado um pouco em cada um
aniquilar os primeiros rebentos primaveris. destes homens. Só o Espírito, soprando sobre a argila, pode
Mais do que qualquer comentário, é uma nota biográfica criar o Homem.»8
extraída de Terra dos Homens, onde Saint-Exupéry emprega O Principezinho, «Mozart assassinado», recordação nostál­
pela primeira vez a imagem do «principezinho de lenda», que gica e esperança dorida de uma vida que poderia ter sido gran­
nos indicará em que sentido devemos entender este símbolo. de se não o tivéssemos impedido, embrutecendo-a e bestiali­
Trata-se da cena final da descrição de uma viagem de com­ zando-a em germe, numa sociedade que, em vez de acordar a
boio, onde o escritor medita sobre os companheiros de viagem. sensibilidade espiritual, abafa os sentimentos num sistema de
«Sento-me em frente de um casal. Entre o homem e a mu­ terror organizado: à laia de produtividade artística e de realiza­
lher, o filhito lá ajeitara um buraco menos mau, e dormia. Ao ção do sonho imaginário, o alarido do divertimento e o nivela­
virar-se no sono, o seu rosto, sob a lâmpada, apareceu-me. mento do consumo de massas; à laia de música, de escuta do
Que rosto adorável! Daquele par nascera uma espécie de fruto canto das esferas celestes e das coisas, a pateada electrónica; à
dourado. Daquele gado pesado nascera este prodígio de encan­ laia de literatura, de poesia, de ternura e de amor, torrentes de
to e de graça. Inclinei-me para a sua fronte lisa, sobre o suave palavras cheias de cinismo, de dissecações linguísticas das lógi­
trejeito da boca. E disse para comigo: cá está um rosto de mú- � cas glaciais; à laia de pintura e de contemplação das formas es­
sico, cá está Mozart menino, cá está uma bela promessa de vi- Í condidas no universo das coisas, a venda em hasta pública de
da. Os principezinhos das lendas não eram diferentes: protegi- 1 uma beleza deformada e prostituída; à laia de oração e de des-
') () I 71
coberta silenciosa do sagrado, a perversão das palavras e a des­
truição sistemática da alma. Deixemos enfim de ver no músi­
co, no poeta, no pintor, no padre as encarnações por
excelência da capacidade humana de aperceber e de exprimir!­
É a vez do racional, do operatório, do prático! Não! O Princi­
pezinho de Saint-Exupéry não nos deixa de forma alguma ver
como as «pessoas crescidas» poderiam viver. Limita-se a quei­
xar-se que nos tornámos «crescidos». O pecado original teve_
lugar e não há qualquer perspectiva de regresso ao paraíso. Em_
contrapartida, já ganhámos muito ao tornarmo-nos capazes de 2. As pessoas crescidas: retrato da solidão
uma certa nostalgia e da redescoberta do que se encontra es­
condido no fundo de nós, do que gostaria de viver. É preciso
compreender o Principezinho como imagem psíquica do que Se seguíssemos o Principezinho, ou melhor, se chegássemos
em nós foi morto antes de viver, como símbolo que lembra o' realmente de outra estrela, com os olhos novos de uma «crian­
que foi perdido, como retrato eterno do que não foi vivido e ça» , e nos aproximássemos deste mundo quotidiano a que tan­
que no entanto deveria ser vivido a qualquer custo. to nos habituámos que chega a provocar náuseas, descobri-lo­
Mas quem são os assassinos de Mozart? Quem são os filis­ -íamos como uma galeria de retratos da vaidade, da nulidade,
teus que assassinam a alma e sufocam a humanidade? Só uma da incapacidade total de amar seja quem for para além de si
resposta é possível: são aqueles que consideramos frequente­ mesmo - caleidoscópio de egocentrismo desconchavado onde
mente como «pessoas crescidas», os que se erigiram a si pró­ cada um mora no seu planetazinho particular, a anos-luz dos
prios em normas, com a sua insensibilidade, o seu cinismo e outros homens, de toda a humanidade. Com o pretexto de po­
desespero; os que admiramos porque chegaram ao ponto de der transformar tudo em números, cada figurante toma-se por
nada mais esperar da vida, de nada mais ansiar; os que estão um «homem sério», fazendo-se de «forte» e «importante» pe­
mortos no meio da própria vida, porque estão literalmente rante os outros1 , quando na realidade não passa de uma «es­
«acabados», porque acabaram com tudo o que não era «adulto» ponja» que tudo absorve sem no entanto mudar interiormente.
como eles. Assim, a primeira coisa que se descobre, ao longo da viagem
planetária do Principezinho, é o triste espectáculo desse Rei
solitário a envelhecer, que vê súbditos em todos os outros ho­
mens, desejando subjugá-los com as suas ordens, aconteça
o que acontecer. Apesar de ser minúsculo, o manto de arminho
que o cobre ocupa rodo o seu pequeno universo - universo
que nunca procurou de facto conhecer. Tornando-se por um
I monarca universal cuja vontade rege tudo o qu e o rodeia, não

I
tem na realidade a menor ideia do mundo reaF. A sua relação
com os humanos limita-se a arranjar uma forma de os utilizar,

23
no quadro da sua vontade de poder fictício. Depressa se perce­ no próprio momento em que exibe a sua «sabedoria», este Rei
be que os «princípios» da sua razão prática são completamente só consegue proferir insanidades. Este exercício do poder é
abstractos e estranhos ao homem. Por outro lado, este Rei simplesmente uma forma de mascarar a sua impotência. Que­
aprendeu que a autoridade se deve apoiar na razão, e que por-,; rendo representar o papel de pessoa sensata e bondosa, não
tanto não lhe seria possível ordenar senão o que já estava pre-·: passa na verdade de um déspota cruel que sente prazer em
visto pela ordem natural das coisas; o que faz com que se deva·-�: mergulhar as pessoas no terror para torná-las toda a vida de­
considerá-lo um rei infinitamente melhor e mais sábio que al pendentes da sua «graça».
maioria das «pessoas crescidas» deste mundo, que sofrem de se- - Um dos traços de carácter destes monarcas senis é o facto
nilidade precoce e se mantêm congeladas no seu poder: quan­ de passarem o tempo a julgart a condenar, a tomar providên­
cias; e é impossível corrigi-los: a sua couraça de preconceitos é
do estas nos convidam a tornarmo-nos um dos seus «súbditos»,
impenetrável. Nem mesmo o Principezinho tem algo a dizer a
apetece ter connosco O Principezinho e citar-lhes a passagem-'
um tal Rei que em tudo manda, e é com tristeza que verifica­
relativa ao Rei: «Se eu ordenasse a um dos meus generais que
mos que este conto não faz nunca a mais pequena alusão à for­
se pusesse a voar de flor em flor como as borboletas, ou que : ma como uma destas «pessoas crescidas» poderia mudar em
escrevesse uma tragédia, ou que se transformasse em gaivota e : seu próprio benefício. A incapacidade de diálogo, o isolamento
se o meu general não executasse a ordem recebida, de quem : psíquico, o gueto narcisista são nelas absolutos - é a priori
era a culpa: minha ou dele? [ ...] Se o general não obedecesse,· absurda qualquer tentativa de conversa e, mesmo quando nos
não seria por culpa do general. Mas por minha culpa.»3 afastamos, elas conseguem ainda fazer desta ruptura forçada
É verdade! Que ilusão querer transformar em poetas e coo-_ uma forma de exaltar triunfalmente a sua importância: quando
quistadores do céu gente sem gosto, gente terra-a-terra: neste _·
o Principezinho, irritado com as aborrecidas tolices do Rei, pe­
ponto, estamos em total acordo com o Rei. E, no entanto, é •·
de autorização para se retirar, ainda tem tempo de o ouvir no­
este mandamento contranatura que incessantemente ouvimos· meá-lo seu «embaixador». Mas que outra mensagem poderia
repetir sob as pompas e as solenidades de uma etiqueta augus- · ele levar senão a de que esta vida consagrada ao poder não é
tamente aborrecida, e sob o disfarce de mandamentos divinos digna de ser vivida, e que, de qualquer forma, ela é de todas a
que exigem obediência servil. Mas pior que ordenar a um ge­ menos própria para atingir a felicidade? «Se alguém quiser ser
neral que execute um «serviço» de «borboleta» é exigir que al-­ o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos»
guém dotado de sensibilidade, com a graça e a beleza da «bor­ (Me 9, 35): do ponto de vista das «crianças», este seria o único
boleta», entre na formatura. Ora, é precisamente o que o Rei comunicado a trazer ao mundo do planeta do Rei. Mas tal de­
tenta fazer com o Principezinho. É certo. - segundo parece ter claração significaria o fim de todos os «reis», e não poderíamos
percebido - que só se pode ordenar aquilo que o súbdito é esperá-la do Principezinho. Podemos passar em silêncio diante
capaz de fazer; mas nem por isso ele renuncia à sua pretensa dos «reis». Não podemos mudá-los.
omnipotência, não deixando de modo algum que as coisas si­ Mas há pior. Os «reis» gostam que se reconheça a sua posi­
gam o seu rumo natural. Pelo contrário, agarra-se ao seu ab- i ção e o seu papel. Sentem-se orgulhosos do cargo que detêm.
surdo decreto nomeando o Principezinho «juiz», simplesmente i Mais desagradáveis são aqueles vaidosos que cultivam a imperti­
"
para que condene à morte o velho rato do seu planeta. Assim, nência de se apresentarem como superiores e preferíveis aos

24 25
zendo: [ ... ] que vestiremos? Os pagãos, esses sim, afadigam-se
outros pelo simples facto de existirem. No desejo de serem
admirados e aplaudidos, também eles se vêem ime�iatamente .
com tais coisas» (Mt 6, 31 ss.), dizia Jesus no seu Sermão da
emparedados num mundo de solidão sem piedade. E impossí­ Montanha, lembrando assim que todos os homens podem pos­
vel viver muito tempo com alguém que só tem uma pergunta suir uma beleza mais inalienável que a dos pássaros ou dos lí­
a fazer: «Irão felicitar-me pela minha aparência e importância? rios dos campos, e que o seu valor não reside na elegância dos
Saberão dar o justo valor às minhas opiniões, apreciar os meus.· seus fatos ou da sua gravata. Mas qual é a «pessoa crescida»
pontos de vista?» Este indivíduo reduz os outros a meros espe­ que consegue entender esta mensagem de «criança»?
lhos que lhe permitam considerar-se a si mesmo com compla­ Apesar de tudo, ainda que em vão, o Vaidoso anda de cer­
cência. As verdadeiras «pessoas crescidas» não conseguem su-: ta forma à procura de relações humanas. Basta ultrapassar um
portar-se se não forem as maiores e só se encontram c?m os escalão suplementar na escala da decepção, do narcisismo e da
outros na condição de poderem pavonear-se e empertigar-se pungente desmesura, para desembocar no planeta do Bêbedo.
diante deles, para passarem aos seus olhos como as mais belas,; Poder-se-ia dizer que este encarna a vaidade destruída; é al­
as mais inteligentes, as melhores. Para este tipo de «pessoas1 guém que já não suporta o seu próprio olhar e que, em vez de
crescidas», qualquer contacto com um terceiro transforma-se� realizar um trabalho interior e procurar as razões que o levam
em impiedosa concorrência a fim de saber quem obterá o favorl a odiar-se, prefere esquecer-se de si mesmo. Existe um certo
do público. No entanto, e aqui reside o paradox?, talvez P?�sa. nível de autodesprezo em que o indivíduo se sente quase obri­
achar-se divertidos durante algum tempo os capnchos narcisis­ gado a comportar-se da forma mais indigna possível4. A decep­
tas daquele que, no desejo de ser admirado, se instala diante ção de não poder atingir a grandeza sonhada conduz ao deses­
do seu espelho, mas depressa se descobre o carácter terrivel­ pero por fraquezaS e transforma-se em lastimável satisfação de
mente monótono deste insuportável egocentrismo, desta total chorar com pena de si próprio6. Já nada há a esperar dos ou­
falta de interesse que o vaidoso tem pelos outros, e torna-se tros - como poderiam ainda ter piedade de alguém tão infeliz
desde logo impossível dar-lhe aquilo de que afinal ele está mais e inconsistente que se perdeu a si mesmo e se confessa perdi­
ávido: atenção, estima, reconhecimento. do7? Assim, o Bêbedo agarra-se a uma coisa morta como a um
Tal como o Rei, sedento de autoridade e louco pelo poder, fetiche, como se, em lugar dos homens, ela possuísse o poder
devia descobrir a sua total impotência, o Vaidoso está necessa­ de lhe devolver a vida, ou pelo menos de o proteger do olhar
riamente votado a recolner apenas rejeição e desprezo da sua dos outros e, sobretudo, da sua piedadeS. O círculo vicioso de­
busca narcisista de reconhecimento e admiração. E no entanto pressa se fecha, então, e o que era um remédio contra o des­
extrairá daqui tanto ensinamento quanto o Rei. A frustração prezo de si próprio transforma-se cada vez mais em causa es­
não faz senão reavivar a ambição, levando-o, mais do que nun­ sencial de uma dependência crescente e de um desdobramento
ca, a esperar encontrar aquele que o irá felicitar sem reservas, da consciência, levando portanto a um encadeamento sem fim
a ele, o incomparável. Mas, de todas as vezes, está condenado a de baixezas humilhantes. Em vez de contactos humanos, já só
descobrir que a atitude de concorrência apenas lhe vale a ini- . resta o gozo narcisista da embriaguez, e o esquecimento mo­


mizade e o rancor secreto do próximo e que, inevitavelmente, I

:;
mentâneo de si, que deveria permitir ao Bêbedo abafar o senti­
acaba por provocá-lo com a forma como se apresenta e �om a � mento de desprezo, apenas lhe serve para duplicar o peso da
.
erficialidade das suas encenações. «Não vos preocupeiS, dr- sua miséria a ponto de torná-la insuportável. Pode acontecer

27
que certos viandantes, como o Principezinho, se encham de fontes têm afixado um preço.»11 ((E a pradaria tornar-se-á len­
piedade perante o espectáculo desta escravidão. Mas como aju- .! tamente uma paisagem sem vida - sem cães-da-pradaria, sem
dar alguém que se exaspera à mínima palavra, à mínima expli- S texugos, sem raposas, sem coiotes. Os grandes predadores ali­
cação, à mínimq. atenção que se lhe dá? Se subjectivamente se .i mentavam-se naturalmente de cães-da-pradaria. Hoje só muito
agarra a todo o custo à imagem de «crescido» e de «adulto» raramente vês uma águia. A águia-de-cabeça-branca é o símbo­
que tem de si mesmo, objectivamente conduz-se de forma in­ lo deste país. Podes vê-la na vossa moeda, mas a vossa moeda
fantil, incapaz de fazer mais que suplicar que o deixem em paz. mata-a. Quando um povo começa a aniquilar o seu próprio
Ao fim e ao cabo, a vida de alguém assim assemelha-se à da- -� símbolo , não se pode dizer que esteja no melhor caminho.»12
As afirmações do índio tatanga Mant vão no mesmo senti­
quele homem do Evangelho que escondeu o seu ((talento» com ',
medo de ter de prestar contas, e se mostra definitivamente in- ;· do: ((Há muitas coisas absurdas na vossa civilização. Vocês, os
capaz de fazer qualquer coisa do lodaçal da sua existência . ·
Brancos, correm atrás do dinheiro até possuírem tanto que já
não têm tempo de viver para gastá-lo. Pilham as florestas, o
(Mt 25, 14-30). ·-�
solo, desperdiçam os combustíveis naturais como se depois de
Uma vez deixadas estas três pessoas fechadas no gozo nega- .•�
vocês não houvesse outra geração a necessitar deles.»13 Inde­
tivo de si mesmas, o Principezinho desembarca em três outros ,
p endentemente do tom ((ecológico», que não era totalmente es­
planetas ocupados por personagens que, a seu modo, perten- ·•
tranho a Saint-Exupéry14, mas que não encontra expressão di­
cem ao género dos grandes solitários. Na verdade, de grande só ; recta em O Principezinho, estas críticas que as ((crianças da
possuem a solidão, e a única coisa assinalável nestes habitantes ..·

natureza» apontam à nossa ((cultura» tocam com efeito no pro­


é a incapacidade de compreenderem o que é a verdadeira gran- •·
blema que o Principezinho considera absolutamente aberrante
deza. O alcoólico, ao arruinar-se a si próprio, apresentava o re- ·.
em algumas ((pessoas crescidas»: a tendência furiosa para tudo
trato de um homem de apetites procurando fechar-se na sua_ transformar em cifrões.
loucura inalando o mundo inteiro. A cobiça, por sua vez, é · Pode dizer-se que o valor do dinheiro reside no facto de
uma forma inversa de sede que, parecendo mais perspicaz, é na· constituir um meio de troca universal. Ora, esta propriedade,
realidade igualmente absurda: consiste em ver o universo como já de si bastante abstracta, conduz facilmente à crença supersti­
uma enorme loja, com o risco de arruinar todo o planeta9• ciosa de que ele permite adquirir seja o que for, desde que o
É sem dúvida nesta altura, em que o debate se refere essen­ desejemos. Facilmente esquecemos que o que é verdadeiramen­
cialmente à relação das ((pessoas crescidas» com a natureza, que te desejável não são as coisas venais, mas, para usar a expressão
é preciso escutar todas as ((crianças da natureza», se queremos de Saint-Exupéry, ((o que liga» espiritualmente as coisas - é
apreender a actualidade da crítica do Principezinho de uma impossível, por exemplo, comprar um amigo ao mercador15.
cultura assente nos (megócios», no (ducro» e no marketing. O perigo do dinheiro, portanto, consiste em que, sendo um
((O homem branco dá de facto provas de uma arrogância mero meio de troca, ele acaba por parecer resumir todo o valor
repugnante», declara, por exemplo, o xamã sioux Tahca-Ushte, possível, como uma coisa em si. O comércio com o dinheiro já
«quando se sobrepõe a Deus e afirma: "Deixarei viver este ani­ não significa então ((usufruir» das coisas que, evidentemente,
mal, porque me traz dinheiro" ou: "Tenho de me desembara- � ele permite comprar, mas, sim, fazer tudo para possuí-lo na
çar deste; não é rentável, pois poderei lucrar mais com o lugar maior quantidade possível, a fim de poder comprar (mas não
que ele ocupa".»10 ((Para o branco, cada palhinha e todas as comprar de facto) o mais possível.

IR 29
É assim que se define o homem de dinheiro, o capitalista: si mesmo e do mundo - e assim se vai autodestruindo. Mas o
aquele que renuncia a desfrutar pessoalmente do seu dinheiro cobiçoso, pelo contrário, transformando o mundo inteiro em
para, com muito dinheiro, fazer mais dinheiro ainda. Para droga tóxica capaz de responder à sua sede, destrói e desertifica
uma «pessoa crescida» deste género, nada parece ficar fora de • rudo. «Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e
alcance; graças áo seu dinheiro, ela habitua-se a transformar · perder a sua alma?» (Me 8, 36). Quem pretenda e possa com­
tudo em propriedade privada: montanhas, lagos, bosques, de- · prar tudo com dinheiro tem primeiro de se vender a si mesmo
sertos e costas, estepes e mares; tudo, inclusive as diversas espé- � de corpo e alma, e quanto mais rico se torna, mais empobrece17•
cies de animais e plantas, pertence àquele que é capaz de pagar Mas não dá por isso. A existência daquele cujo vício egocêntrico
o preço médio, tendo em conta o benefício financeiro que o tornou incapaz de dialogar, aprender e discernir revelou-se «inú­
possuidor destes «bens a vender»16 deve normalmente poder til», no sentido mais profundo do termo, totalmente parasitária.
retirar deles. Então, porque não começar a comprar a Lua e as A esse, o Principezinho nada tem a dizer; para o Homem de
estrelas? Basta simplesmente ser suficientemente busy e quick Negócios, o seu aparecimento apenas significa uma incómoda
para preceder os eventuais concorrentes - e não é só o espaço perda de tempo, e nada mais lhe resta fazer senão esquivar-se
que se pode comprar, mas também o tempo. E quanto mais o . o mais depressa possível.
dinheiro impregna e devora a existência, mais adquire o estatu- '
to de realidade viva. Se ele é o melhor meio de ganhar mais di­ Até aqui, todos os «habitantes dos planetas» tinham em co­
nheiro ainda, a sua lógica triunfa verdadeiramente quando se mum viverem sob uma espécie de hipnose, em busca de objec­
compreende que nada mais se pode comprar de precioso a não tivos precisos que, por muito absurdos e insensatos que fos­
ser cada vez mais dinheiro; passa a ser claro que o seu verda­ sem, pareciam, subjectivamente, possuir alguma utilidade. Mas
deiro valor é a possibilidade de adquirir sempre mais dinheiro o Principezinho não devia ser poupado ao espectáculo grotesco
através do dinheiro. de «pessoas crescidas» capazes de transformar em loucura nar­
Desde logo, o génio do Homem de Negócios acaba por in­ cisista até o dever e a fidelidade.
Slfflar uma alma de dinheiro: este deixou definitivamente de O exemplo por excelência é o do Acendedor de Candeei­
ser apenas um meio de troca para se obter determinado objec­ ros: um homem que, como todos os que o precedem nesta ga­
to; tornado a única coisa importante, passa a reger a totalidade leria de puras caricaturas do humano, não tem nome nem ros­
do mercado humano; multiplica-se a si mesmo nos bancos, go­ to, mas apenas uma profissão, uma situação com a qual toda a
verna parlamentos, nomeia imperadores, papas e reis, é infini­ sua vida inextricavelmente se confunde. Trata-se de alguém
tamente mais poderoso que os poderosos - não há nada que que, à pergunta: «Quem és tu?», deveria, para ser correcto, res­
não possa vir a ser propriedade sua. «É bastante poético», pen­ ponder: «Eu sou o meu trabalho.» Para este homem, pouco
sa o Principezinho a propósito desta capacidade do dinheiro de importa o que faz, o sentido que isso possa ter e o objectivo
tudo animar e conferir omnipotência; mas trata-se apenas da que serve. A única coisa que conta é cumprir as instruções de
fantasia de um louco, da alucinação de um sonhador em que serviço, qualquer que seja o seu significado. Há muito que pas­
não acreditaríamos se não acabasse por se impor em todo o la­ sou a época em que ainda era possível adaptar às circunstâncias
do como a única verdadeira realidade. Com a sua sede de ál­ as directivas da «ligação dos candeeiros» - entretanto, a rota­
cool, o Bêbedo pode chegar a intoxicar-se para se esquecer de ção do planeta tornou-se cada vez mais acelerada. Mas que im-

30 31
porta a um «empregado» em «serviço», a uma «pessoa crescida» :­ surda que não dá tréguas - um círculo vicioso impossível de
aprisionada na sua função tradicional, se as instruções de tra- i quebrar, mais uma vez. Neste pequeno planeta onde reinam a
balho - neste caso, a sua visão do mundo - envelheceram ·�; co nsciência do dever e a letargia, a sobrecarga de trabalho e
inexoravelmente? Em vez de reflectir, de pensar e ousar corrigi- ·� a p reguiça da alma, é impossível criar qualquer espécie de co­
-las, este «funcionário» afadiga-se a correr cada vez mais de- ·�• munidade, de troca, de vida a dois.
pressa atrás do comboio do mundo; porque «serviço é serviço» ·:; Há a salientar que o trabalho do Acendedor de Candeeiros
e «é preciso cumprir o seu dever»: «Ü mundo pertence a quem � poderia muito naturalmente constituir uma tarefa plena de ro­
se levanta cedo!» mantismo e de poesia, um universo cheio de sonhos melancó­
Só havia uma solução para escapar a este inferno do dever, ! licos e de ternos crepúsculos; mas a forma como ele cumpre o
e o Principezinho tenta propô-la: o Acendedor de Candeeiros seu (<serviço» não lhe permite suportar ninguém perto de si.
devia experimentar permitir-se seguir o curso do Sol sonhando Encerra-se numa monotonia enfadonha, num monólogo de
com a beleza do pôr do Sol; devia atrever-se a descobrir o ' gemidos e de lamentos entediantes. «Olhai para as aves do céu:
«tempo de viver», para além do «tempo de serviço»18 - o seu Não semeiam, nem ceifam, nem recolhem em celeiros [ . . ]. .

planeta seria demasiado pequeno para tal. Mas é em vão. ·� Não vos inquieteis, portanto [ ... ]» (Mt 6, 26, 34): é o que gos­
A existência desta ((vítima do serviço» reduz-se a passar cada vez ' taríamos de poder dizer a todos os acendedores de candeeiros
mais depressa das fadigas da profissão para um sonho impossí­ desta terra. Mas logo nos viriam trazer a prova da impossibili­
vel de repouso: ((dormir», ((apagar», ((fechar tudo»! E é num rit­ dade de ((aplicar» esta doutrina ao seu serviço; ela está aliás em
mo sempre mais acelerado e mais esgotante que o homem perfeita consonância com as instruções.
cumpre a sua tarefa - é um drogado, incapaz, como todas as É necessário também estabelecer uma clara distinção entre
((pessoas crescidas», de aprender, mudar e, sobretudo, conciliar a fúria de trabalho do Acendedor de Candeeiros e a paixão do
os desejos com os actos e os actos com os desejos. Apesar de Bêbedo oti a ((extrodeterminação»19 do Vaidoso do segundo
cumprir na perfeição o seu dever, abomina o que faz. Não foi planeta. A actividade do primeiro - o serviço - é objectiva­
a vocação que o levou a escolher o seu trabalho, queixa-se da­ mente mais penetrada pelo espírito, e se acaba por cumpri-la
quela tarefa, amaldiçoa o destino; a ideia que faz da vida, a sua com tanta falta de espírito e de alegria, não deixa de manter
visão do mundo, transforma-o em perpétua vítima das circuns­ um certo reflexo de entrega, responsabilidade e coragem - is­
tâncias prescritas pelo dever, e a hiperactividade mascara-lhe o to é, disposições de natureza absolutamente espiritual. Mas
seu próprio segredo: no frenesi de tanta actividade, ele não acontece que certas pessoas, no desejo de serem ((grandes»,
passa afinal de um homem sem vontade, um preguiçoso que conseguem transmutar a vida mais livre, a do espírito, em exis­
afugenta o trabalho, um mandrião que não consegue repousar tência separada da realidade e da experiência, em montra de lá­
porque na verdade não pretende de modo nenhum repousar. pis bem afiados, em amálgama superficial de noções etéreas
Se por acaso se dedicasse de facto ao seu trabalho, depressa que nada revelam senão a fátua pretensão a um saber enciclo­
descobriria a medida, o objectivo e os limites a impor-lhe e re­ pédico e a um saber-fazer universal - reino de fachada, mais
conheceria nele parte integrante de uma existência em pleno fantástico que o do Rei déspota alienado no seu sonho de om­
desenvolvimento e que poderia assumir, em vez de a sentir co­ nipotência.
mo um peso que carrega às costas, como uma calamidade ab- Para descrever este último tipo de (in)humanidade, Saint-

32 33
-Exupéry recorre ao Geógrafo - aquele que «desenha o mun­ da viagem, as provisões de bordo tornaram-se tão escassas que
do». Com a fisionomia perfeita do pensador casêiro, do teórico _
­ foi preciso escolher entre o regresso à América do Su� e a con­
do tinteiro, embrulhado na toga das ocasiões solenes, ele dis- � •. tinuação da viagem a caminho - presumível - da India, pa­
ringue admiravelmente o mundo do pensamento e o da expe- § ra o melhor e para o pior. Ele continuou, lançando-se no mais
riência, o nível da «lógica», como Saint-Exupéry gosta de dizer, --� vasto deserto marítimo do mundo, enfrentando a tortura das
.
e o da existência, a importância do saber e a exactidão da ciên- calmarias, acreditando contra todas as esperanças. Este é o des­
cia. A verdadeira vida, a que se passa lá fora, parece-lhe perda cobridor, o explorador. O professor, pelo contrário, não faz
de tempo, mera brincadeira, e considera como infinitamente _, mais que catalogar e cartografar um saber estrangeiro no qua­
mais válida a experimentação a que submete a vida do que a • dro de uma existência à parte.
experiência da própria vida. É certo que esta apenas poderia , No mundo da teologia, houve um Sõren Kierkegaard a de­
atrapalhá-lo, porque se especializou em julgar o trabalho dos ; nunciar com furor a forma mentirosa como se tinha transfor­
outros. Ver com os próprios olhos, experimentar e aprender é. mado a palavra de Deus em doutrina, colocando a questão
por si seria algo de insuportável para alguém cuja existência é ; de saber como era possível anunciar a «Boa Nova da Salvação»
tão activa e absorvente como a do Sábio. Enroupado na atitu- : de um Jesus pobre, desprezado e abandonado à morte e conti­
de aristocrática do entendedor, ele prefere, ou melhor, «reserva- ; nuar a levar uma vida de rico, estimado e bem-visto pelo mun­
-se» a arte do julgamento. O valor moral de um homem? Ele > do21. Também Friedrich Nietzsche ironizava a propósito dos
sabe bem qual é. O que é ou não válido? Ele o dirá! O que é historiadores, esses homens mais importantes que Alexandre
científico e o que é indigno desse nome? É a sua especialidade! Magno, pois, enquanto este fazia a História ao ganhar a bata­
Sem se aperceber, esta mania de julgar tudo, esta redução da lha de Gaugamela, o historiador acrescenta ainda à história dos
experiência ao simples registo dos dados da experiência dos ou­ seus feitos um significado22. E poderíamos continuar: enquan­
tros condena-o ao estado de perpétuo faminto de uma realida­ to os maiores poetas, pintores, músicos viveram muitas vezes
de em relação à qual se mantém aliás impermeável, fechado em condições difíceis, transtornados, à beira da loucura, expos­
como está no gueto da sua especialização metodológica. Ele, tos à incompreensão dos seus contemporâneos, após a sua
que só vive por procuração, exalta a sua vida de parasita falan­ morte depressa se vê florescer uma tese que vem demonstrar
do da ciência do eterno, mas a abstinência quase metafísica do como foram «realmente» grandes os Baudelaire, os Tchaikovski
efémero impede-o de descobrir seja o que for de vivo e real. e os Van Gogh, tese que garante ao professor uma carreira de
Longe dele qualquer pensamento de aventura ou de risco! Im­ rendimentos seguros. Existem desses espíritos grosseiros para
pensável a ideia de que a verdade não pode crescer senão onde quem basta pregar uma «fé» sem «obras» e uma visão do mun­
alguém arriscou perder a vida semeando-a como um grão. do sem experiência do mundo: assim edificam a vida, a exis­
Note-se bem a diferença! tência sobre a areia (Mt 7, 26) . Os relatos originais dos explo­
O explorador Fernão de Magalhães20, que partira em busca radores e dos inventores do mundo permitem então erigir um
de uma passagem que permitisse atravessar a América do Sul, «bazar de ideias»23 onde não se discute senão o valor mercantil
ao perceber que a gigantesca baía do rio da Prata era apenas a das frases e onde o lugar de origem de u m tapete artisticamen­
foz de um rio, decidiu então arriscar enfrentar os gelos da Ter­ te tecido determina por si só o preço que o mercador de ideias
ra do Fogo e avançar por um mar desconhecido. A certa altura deseja obter.

34 35
No fundo, também os Geógrafos são Homens de Negó­ ta: a angústia da impotência, da nulidade, da insignificância;
cios; também são Bêbedos e Acendedores de Candeeiros da .··•angústia de que só um amor suficientemente forte poderia li­
moda; também são os Reis da ilusão, e quanto mais se tenta . bertá-los, devolvendo-lhes a fé no valor da existência, permi­
descrever-lhes a vida real, com a sua poesia, interioridade e .· · tindo-lhes assim descer do seu pretenso trono.
amor, mais a desprezam como algo sem importância e demasia­ - Seria necessário identificar, por detrás da gesticulação
do mesquinho para que mereça atenção. É preciso de facto lou­ do Vaidoso, por detrás do sofrimento arroz que suporta até du­
var a Deus por ter escondido as verdades «aos sábios e aos en­ vidar de si, a sua incapacidade de se reconhecer a si mesmo,
tendidos», para revelá-las apenas aos «pequeninos» (Mt 1 1 , 25). . bem como o medo mortal do desprezo: era bom que pudesse
Assim termina a «viagem cósmica» do Principezinho, a sua descobrir nos próprios olhos o espelho da sua beleza, para pôr
volta ao horizonte da inumanidade, e a impressão que deixa é fim à busca de reconhecimento através do aplauso dos outros.
a de uma hilariante tristeza. Todas estas «pessoas crescidas» são - Teríamos de compreender como, por detrás da sede
de tal forma grotescas, singulares e bizarras que vale a pena ex­ inextinguível do Bêbedo que aspira ao esquecimento e à auto­
pô-las aos olhos de uma criança para pôr em evidência sem destruição, se esconde o desejo desesperado de concretizar en­
qualquer disfarce o carácter, por assim dizer, negativamente fim alguma coisa que lhe permitisse pôr fim a essas monstruo­
poético das suas vidas. Se de facto as «pessoas crescidas» são as­ sas pretensões e recuperar a autoconfiança, o que lhe devolveria
sim, mais vale ser criança e não crescer mais. a dignidade e o respeito por si mesmo, rompendo finalmente a
Mas quem virá salvar estas «pessoas crescidas» da sua cadeia suicidária das suas frustrações.
«grandeza»? Como libertá-las? É esta realmente a questão es­ - Seria preciso sentir a angústia do Homem de Negócios
sencial. Se seguirmos o Principezinho, é impossível ajudar perante a perspectiva de uma vida exterior precária, entregue à
qualquer uma delas, e a razão desta impossibilidade é precisa­ pobreza, para compreender como só uma confiança capaz de o
mente a mesma da sua infelicidade. A solidão, o isolamento, o prepa-rar contra a obsessão da morte estaria em condições de
egocentrismo, a fantástica capacidade de se lançarem como devolver à sua vida a riqueza e a plenitude, libertando-o da
loucos em perseguição da felicidade só as podem conduzir à avidez de bens materiais.
infelicidade. O permanente monólogo, a monomania, a total - Experimentando o medo do Acendedor de Candeeiros
incapacidade de escutar o outro ou de aprender com ele algu­ de se sentir a mais, injustificado, se se afastar por pouco que
ma coisa evidenciam a impossibilidade de os humanizar. Mas é seja das instruções que balizam o seu caminho, compreendería­
precisamente no limite da influência que se poderia ter sobre mos a necessidade de transformar esse medo de liberdade, esse
eles que reside o interesse de O Principezinho. Pois não basta terror do caos e a fuga de si mesmo em reafirmação profunda
pintar uma galeria de horrores, tão realista quanto grotesca, do de si e em vontade de recuperar a sua própria vida aceitando
círculo vicioso e dos constrangimentos que encerram estas assumi-la; o seu abatimento sob o peso do dever cederia peran­
«pessoas crescidas»; o mais importante é compreender as razões te uma escolha deliberada, permitindo um justo equilíbrio en­
da monstruosa deformação dos seus traços. tre tarefa a cumprir e desejo de repouso.
- O que valia a pena fazer seria elucidar a angústia de ca­ - Se soubermos desvendar nos traços do Geógrafo o me­
da um destes monarcas que reinam isoladamente no seu plane- do da realidade, da profundidade do sentimento, da altura do

36 37
entusiasmo, da largura do desejo, a fobia de tudo o que não é •· Não há então nada a fazer, nada a esperar deste mundo de
exactamente definível, do vago, do transitório, conseguiremos «pessoas crescidas»? Graças a Deus, não é o caso. Desenvolven­
talvez fazer-lhe ver que o imutável e o eterno se reflectem nas · do uma espécie de doutrina do deserto, Saint-Exupéry decide
realidades efémeras sem importância aparente, nas trivialidades' extrair lições da privação; para ele, é uma forma de esperança,
do quotidiano, e, em lugar de lhe fornecer uma simples infor­ apesar do desespero.
mação, poderíamos ensinar-lhe, até mesmo a ele, a arte de vi­
ver24.
Todos estes mártires do eu beneficiariam em redescobrir e
trazer à luz do dia um pouco da infância perdida, em voltar a
ter confiança no seu reino escondido, uma parte do Principezi�
nho. Quanto a este, seria preciso que entrevisse sob a máscara
das caretas e das deformações o lugar que lhe permitisse reen�
contrar-se a si mesmo presente no coração do que à primeira
vista lhe parece tão distante de si. Só assim conseguiria restabe­
lecer a aliança com as «pessoas crescidas». Não se contentaria
então apenas em deplorar os vícios e as máscaras dos adultos:
do verdadeiro confronto poderia resultar a purificação e a, cura
dos adultos.
De tudo isto, nem uma palavra de Saint-Exupéry. Ele, que
tanto reclamava e louvava o compromisso, o esforço, o sacrifi­
cio de si a favor de uma grande tarefa comum, não conseguia
ver nas «pessoas crescidas» uma tarefa, mas apenas criaturas
perdidas. O Principezinho limita-se a achar todos estes infeli­
zes «muito estranhos» e a virar-lhes as costas, como se eles não
sofressem já bastante; ele despreza-as em vez de as ajudar, re­
signa-se em vez de se preocupar, ataca-as em vez de as libertar.
E não é por acaso: ele próprio não tem nada de uma persona­
gem religiosa; não encarna a renovação de uma existência vota­
da a si mesma, mas apenas ilustra a recordação nostálgica de
uma realidade prematuramente destruída. É portanto inevitá­
vel que os adultos só apareçam sob a forma de máscaras endu­
recidas e rígidas, sem que alguma vez seja feita alusão a qual­
quer possibilidade de síntese entre os dois pontos de vista.

38
rnern m orre de sede. Ah! General, só há um problema, um só
p roblema no mundo. Restituir aos homens uma significação
espiri tual , inquietações espirituais. Fazer chover sobre eles
qualquer coisa que se pareça com um canto gregoriano. Se eu
tivesse fé, era mais que certo que, passada esta época de "job
necessário e ingrato", já só poderia suportar Solesmes. Não lhe
parece que já não se pode viver de frigoríficos, de política, de
balanços e de palavras-cruzadas? Não podemos mais. Não se
p ode viver mais tempo sem poesia, sem cor, nem amor. [ ... ]
3. A sabedoria do deserto e a busca do amor Dois milhões de homens já só ouvem o autómato, já só com­
preendem o autómato, convertem-se em autómatos.»5
«Os laços de amor que ligam o homem de hoje quer aos
A terra calcorreada pelo Principezinho ao longo da sua via-·
seres quer às coisas são tão pouco densos que o homem já não
gem interplanetária está repleta de «pessoas crescidas», mas é sente a ausência como antigamente. [ .. ] Pode-se perfeitamente
.

ao mesmo tempo, e talvez por isso, um «deserto», um lugar de · trocar os frigoríficos. E a casa também, se ela for apenas um
solidão1, uma sequência de montanhas aguçadas e salgadas2 conjunto. E a mulher. E a religião. E o partido. Nem sequer se
pode ser infiel: a que é que uma pessoa seria infiel? Longe de
onde o eco das vozes humanas acaba por se fundir em queixa •

quê e infiel a quê? Deserto do homem.»6


surda e monótona3: já não é um vale de vida, mas um vale de
«[ ... ] Hoje consegue-se que o homem se deixe ficar tran­
morte. Na linguagem de Saint-Exupéry, «deserto» significa, an­ quilo, conforme o meio, à força de bisca ou de brídege. É es­
tes de mais, deserto dos homens. Não é um ponto do espaço, pantoso como nos encontramos castrados a preceito. É assim
mas uma situação de absurdo, de empedernecimento do hu­ que somos finalmente livres. Cortaram-nos os braços e as per­
mano, de acumulação de coisas frívolas e vãs. Basta ler a céle­ nas, a seguir deram-nos liberdade para andarmos. Mas eu
bre «Carta ao General "X"» para perceber a que ponto essa odeio esta época em que, sob um totalitarismo universal, o ho­
sufocação, essa ressumação da alma no meio de todas as vaida­ mem se converte em gado manso, polido e tranquilo. Querem
des, essa «turvação» de todos os impulsos do coração são real­ que nós tomemos isso como um progresso moral! O que odeio
mente para ele o problema central, o que explica os seus actos, no marxismo é o totalitarismo a que conduz. O homem, no
a sua tristeza e sofrimento. E passamos a citar alguns textos: marxismo, aparece definido como produtor e consumidor, o
«Sinto-me hoje profundamente triste - e triste em pro­ problema essencial é o da distribuição. O mesmo acontece nas
fundidade. Sinto-me triste por causa da minha geração, vazia quintas-modelo. O que odeio no nazismo é o totalitarismo que
de toda a substância humana, geração que só conheceu o bar, ele se arroga pela sua própria essência. [ . . . ] Mas onde é [ . . . ]
as matemáticas e os Bugatti como forma de vida espiritual e se que nós vamos parar, nesta época de funcionalismo universal?
entrega hoje a uma acção estritamente gregária, que j á não tem


O homem autómato, o homem térmita, oscilante entre o tra­
cor alguma. Não sabem reparar nisso.»4 balho em cadeia segundo o sistema Bedeau e a bisca.. . O ho­
«Odeio a minha época com todas as minhas forças. O ho- mem castrado do seu poder criador e que, do fundo da sua al-

4n LÍ 1
deia, nem sequer já sabe criar uma dança nem uma cançao; gura deste desejo. «Ü deserto»: não é apenas o lugar da errân­
O homem que se alimenta de cultura confeccionada, de cultu­ cia e da confusão, da inversão e do despojamento; é também o
ra standard como os bois se alimentam de feno. O homem dé de uma impiedosa verificação e confirmação, o dos profetas e
hoje é isto.»7 exploradores9, fornalha da mutação mística, morada de refúgio
Saint-Exupéry conhece bem - e teremos oportunidade de: e de autenticidade, verdadeiro «jardim de Alá», como os Ára­
voltar a referi-lo mais adiante - o fundo social de todo este': bes chamam ao Sara.
desenraizamento provocado por um prazer asfixiante de consu�: Quando fala do deserto, Saint-Exupéry refere-se em pri­
mir; ele aponta e deplora a destruição da tradição, o fosso cria� m eiro lugar ao do Norte de África, onde esteve. Ele sabe mui­
do entre ciência e humanidade, entre saber e criação, e sobre­ to bem com que vigor misterioso aquele modela o homem,
tudo não deixa de denunciar e conjurar a perda de valo res roendo todo o supérfluo, a casquinha, o excesso de gordura,
substituída pela superprodução em série de mercadorias cuja decapando-o com jactos de areia, como um alquimista.
simples acumulação destitui logo de qualquer interesse. Para se compreender esta capacidade formadora do deserto
«Há duzentos milhões de homens na Europa que não têm} é necessário observar as caravanas carregadas de sal que regres­
sentido e gostariam de nascer. A indústria arrancou-os à lin�{ sam do Chade, caminhando milhares de quilómetros. Não é
guagem das classes camponesas e encerrou-os em guetos enor·.C pelos anos que os homens contam a idade, mas pelo número
mes, semelhantes a estações de escolha, atravancadas de filas d�� de viagens que fizeram - vinte é já um número muito eleva­
vagões enegrecidos. Gostariam de ser despertados, do fundo;' do -, e se tivessem de contar as fadigas da caminhada, teriam
das cidades operárias. Outros há, apanhados nas engrenagens; primeiro de falar da tensão da vontade necessária para realizar
de todas as profissões, a quem estão interditas todas as alegrias o percurso, lutando dia após dia contra a areia, contra o vento,
do pioneiro, as alegrias religiosas, as alegrias do sábio. Acredi-: contra a sede, contra o esgotamento a ultrapassar para atingir
tou-se que para os fazer progredir bastava vesti-los, alimentá., determinada cisterna absolutamente vital; contariam o calor vi­
-los, satisfazer todas as suas necessidades. E pouco a pouco se brante dos dias, o frio cortante das noites, o sentimento de não
consolidou neles o pequeno-burguês de Courteline, o político passarem de um minúsculo ponto, totalmente impotente no
de aldeia, o técnico fechado à vida interior. Se é certo que os; seio desta imensidão sem limites, sob a cúpula cinzento­
instruem bem, é mais certo ainda que os não cultivam. Bem -azulada do céu e a abóboda cintilante das estrelas, sem ne­
mesquinha opinião tem da cultura quem acredita que ela re� nhum outro ruído para além do assobio do khamsin e do grito
pousa na memória de fórmulas. Um mau aluno do curso de agudo dos camelos. No deserto, os homens têm a perfeita
Matemática sabe mais das leis da natureza do que Descartes e consciência de como estão entregues ao poder da natureza, co­
Pascal. Mas será ele capaz dos mesmos movimentos do espíri­ mo se toda a paisagem quisesse ensinar-lhes a confiarem-se a
to? Todos sentem, mais ou menos confusamente, a necessidade Deus, ensinar-lhes o «islão»1 0 . Mas é precisamente a privação e
de nascer.»8 o despojamento que fazem com que cada gota de água, cada
Esta queixa extraordinariamente viva e cheia de expectativa sopro de vida mereçam a entrega total e se tornem infinita­
impotente remete uma vez mais para o símbolo religioso da re­ mente preciosos. O deserto ensina a dar às coisas o seu justo
novação da vida, para a «criança», para um novo começo, e é valor e, para Saint-Exupéry, é a última oportunidade que se
em pleno deserto que Saint-Exupéry descobre a mais pura fi- oferece ao homem de poder permanecer humano no seio da

47 43
sua própria vida desertificada. «Como os homens do deserto
ra da natureza simultaneamente benevolente e consternadora
ou dos mosteiros não possuem nada, sabem muito bem donde da morte, desse inevitável veneno da serpente, no solo do de­
lhes vêm as alegrias e é-lhes assim mais fácil salvar a própria . serto. É como se toda a perturbação das «pessoas crescidas»
fonte do seu fervor.» 1 1 apenas visasse adormecer a angústia perante a morte, e todo o
Assim, a salvação consistiria em conduzir o s homens a sen- : esforço acabasse afinal por reforçar a aflição, pelo facto de nada
tirem o mais intensamente possível a «desertificação» da sua vi­ mais ter valor. Vistos superficialmente, os objectos nada têm
da espiritual, até acordarem uma energia do desejo capaz de fa- ; de duradouro; nada contêm que faça lamentar o seu carácter
zer explodir a carapaça de gordura cujo sobreconsumo envolve •
efémero; e na medida em que se reduz tudo a este nível, nada
e sufoca o coração. Caminhar para a fonte conta mais do que .·
resta que mereça ser chorado. A serpente da morte pode por­
beber, pois é a falta que dá à água o seu valor essencial; e, em tanto trazer outro ensinamento: nada mais é o que é no uni­
contrapartida, a «fonte» confere ao «deserto» o seu segredo e a verso dos mortais; mas quanto mais lucidamente nos apercebe­
sua beleza. Para Saint-Exupéry, é evidente que os homens não .· mos a que ponto as coisas são contingentes por natureza, mais
querem apenas saber do que viver, mas querem a todo o custo .. estas readquirem uma densidade surpreendente e um carácter
perceber para o que é que vivem, porque é muito mais impor- . .·
insubstituível.
tante para querer viver; e este objectivo, que dá um sentido à . É de facto diante da morte que os seres e os acontecimen­
existência, não é nunca uma coisa, mas o sentido que liga as tos mais merecem que se lhes preste atenção; e, inversamente,
coisas - algo de invisível, que só os «olhos do coração» conse­ se rodas as coisas são mortais, então superioridade ilusória, vai­
guem ver, como explica, recorrendo à palavra bíblica (Ep 1 , 18). dade, ter e saber murcham. A morte relativiza tudo aquilo a
É precisamente por isso que, à imagem das antigas profecias, o . que, na nossa desmesura, nos queríamos agarrar para nos sen­
deserto aparece como o lugar da cura e da salvação, com a di­ tirmos seguros e confere-nos a graça de uma sabedoria tranqui­
ferença de que ele não encontra aí o Santo, mas só o Principe­ la, diríamos mesmo de uma última tranquilidade, quando a
zinho. terra se torna demasiado pesada para se carregar. Há sempre
Compreende-se agora que, antes de percorrer o «deserto» - uma última porta que abre para a morte, esse misterioso poder
esse mundo que é a antítese do da pretensa felicidade de con­ da serpente, sempre pronto a desvendar o enigma do espírito,
sumir, esse lugar de uma possível mutação -, o Principezinho a pôr fim à solidão do coração e a curar as dores do corpo13•
tenha primeiro de encontrar a Serpente da Morte. A simbólica Quem o descobre penetra inevitavelmente no fundo das coisas;
cristã estabelece a equivalência entre a marcha para a verdade e a vida readquire forma mais uma vez.
a morte, a descida aos abismos do mundo subterrâneo12. Assim,
aquele que visita o «deserto» deve aprender a aceitar a morte, Em muitos contos, o herói, em busca da verdade, chega a
a finitude da existência, o limite da vida terrestre, com tudo o uma zona fronteiriça entre o interior e o exterior, entre a su­
que isso inevitavelmente comporta de angustiante e reconfor­ perfície e as profundezas, entre o aquém e o além, onde en­
tante ao mesmo tempo. contra animais que vêm em sua ajuda, falam com ele e lhe
Para escapar ao mundo enganador das «pessoas crescidas», mostram o bom caminho no antimundo da sua consciência.
com a sua superficialidade, o seu delírio e o seu carácter des­ Em O Principezinho, é à Raposa que cabe este papel, o mesmo
truidor de valores, é antes de mais necessário ter uma ideia da- que se encontra nos contos populares, como por exemplo
n'O Ganso de Ouro de Grimm14. Há também uma longa carreira p oderâ extraí-lo do interior. É o coração que confere ao outro
0 seu valor e significado. Essa é precisamente a lição da Rapo­
na história religiosa: a raposa-europeia situa-se claramente na ·
sequência de Anúbis,_ o deus egípcio com cabeça de chacal, 0:: sa, o conteúdo da sua introdução mágica no universo do amor.
fiel companheiro de Isis quando, lavada em lágrimas, parte pa- ' No essencial, a Raposa não vem ensinar nada de novo ao
ra o delta do Nilo à procura dos membros dispersos do seu ir- ··• Pri ncip ezinho. As lições que lhe dá apenas servem para muni­
mão e esposo bem-amado, Osíris15. O segredo de Anúbis con­ -lo contra o perigo da realidade exterior mostrando-lhe em que
siste no conhecimento mágico da reanimação, função que' consiste a sua riqueza interior e o carácter único da Rosa. Tra­
parece caber à Raposa de O Principezinho, pois, na fronteira d0 { ta-se de tornar plenamente consciente, e assim fortificar, o que
além do deserto, o seu conselho vem realmente salvá-lo. ele já intuíra no seu planeta. Aí, só por acaso, descobrira a Ro­
Com efeito, mal o Principezinho chega à terra e se aproxi- • sa, como um feliz achado. Ela crescera de repente no seu mun­
ma do mundo dos homens, imediatamente se vê posto em do, e foi sem o notar, pelo simples facto de, bem ou mal, ter
questão. Ninguém conseguiria viver sem algo a que se consa- · suportado os seus humores, admirado a sua beleza e protegido
grasse, que fosse para si único, belo, precioso. Até então, no · a sua susceptibilidade, que se criara um laço interior de con­
seu pequeno planeta, a Rosa constituía para o Principezinhó .· fiança e de familiaridade. Tinham-se ligado um ao outro sem
esse tesouro. Considerara-a incomparável durante tanto tem-�; querer, duma forma natural. Sem saber, o Principezinho tinha
po - nunca pudera confrontá-la com mais nada - que a vira: . aprendido o segredo �a amizade. Como lhe explica a Raposa, a
como um milagre único. Ora, eis que calha passar por um jar- , amizade consiste precisamente nesse paciente processo de
dim cheio de rosas e é forçado a uma dolorosa comparação .• aprendizagem progressiva e nessa descoberta recíproca da con­
que ameaça abalá-lo profundamente.
·
fiança que acontece quando dois seres são «cativados» um pelo
Quando se desmorona aquilo em que acreditámos como ··. outro. No amor, como em tudo o que possui valor para o ser
algo absoluto, quando o que se reverenciou e amou aparece su­ humano, é absurdo pretender «poupar» tempo, como o fazem
bitamente como um exemplar entre outros pertencentes a uma as «pessoas crescidas», e querer colher frutos antes de florirem e
espécie de indivíduos multiplicáveis à vontade, quando aquilo amadurecerem. A pressa, a insistência, a precipitação só lhe po­
a que nos dedicámos de alma e coração parece de repente esva­ dem causar dano, pois os mais tímidos e sensíveis, os mais pu­
ziar-se de valor pelo simples facto da sua abundância, não só dicas e apaixonados dos enamorados precisam de um longo
nos decepcionamos como podemos sentir-nos completamente tempo de aproximação que lhes permita desfazerem-se de qual­
quer receio do «caçador» e habituarem-se progressivamente à
eerdidos e órfãos - ficamos sem saber onde fixar o coração.
E o que acontece ao Principezinho quando se descobre diante presença do outro, entregando-se-lhe de dia para dia um pou­
de cinco mil rosas. Num instante tudo é posto em questão: o co mais. Não se pode comprar o afecto, a confiança, a ternura
problema de saber se a sua Rosa é única determina o sentido ou a elevação da alma que possibilita a presença do outro, da­
do mundo, a alegria, a esperança, o amor, a confiança, o passa­ quele que se ama. Mas pode descobrir-se a pouco e pouco a
do e o futuro; a única coisa que lhe interessa agora é saber o linguagem dos seus olhos, as suas expressões, os seus gestos -
que torna a sua Rosa única: este carácter não poderá constituir tudo aquilo que faz com que se inaugure uma relação infinita­
uma qualidade objectiva, pois não se trata de uma propriedade mente preciosa e única, de valor incomparável. Nos sinais secre­
exterior, mas depende de uma visão da alma e portanto só se tos do seu rosto, pode ver-se a cintilação da sua alma e, em cada

4h 47
olhar que nele se detém, pode-se fazê-la flamejar de luz nos que a ela conduz, e o mundo inteiro é contagiado pela enfei­
seus próprios olhos. Pode entrar-se progressivamente no senti­ tiçante magia do seu amor. Quanto mais longa é a busca d o
do das suas palavras, das palavras que, a princípio, não têm o outro, essa maturação da confiança que resulta de se ser «cati­ _
mesmo signifiGado para os dois amantes, porque remetem para vado», mais a relação se enriquece com a comunhão e as re­
mundos diferentes de recordações; mas se se souber entender cordações de tudo o que se viveu em comum, e a poesia da
essas alusões, elas tornam-se caminhos que conduzem ao cora­ ternura das coisas funde-se com o rosto e o ser do outro, como
ção do amado. Quanto melhor se aprende a falar a língua do se o universo fosse afinal um imenso campo de forças cujas li­
outro, mais facilmente se abrem as portas de um castelo secre­ nhas levam ao coração da amada. A magia simbólica do amor
to que dão acesso a quartos cheios de tesouros e jóias. confe re um novo colorido aos objectos, mesmo àqueles que até
Assim, o mistério da intimidade confiante parte do desejo en tão nos eram indiferentes, como o campo de trigo que nada
de saber sempre mais sobre o outro, de descobri-lo, de conhe­ dizia à Raposa. Sob o efeito do amor, aquilo que antes se jul­
cê-lo, e à medida que se começa a conhecê-lo vai crescendo o gava perigoso, feroz, animal torna-se de repente «doméstico»,
desejo de ir mais longe no incomensurável, de desvendar, de «afável»: a raposa, que simboliza psicanaliticamente o incons­
compreender mais profundamente o seu mistério. O pudor ciente, deseja com ardor ser cativada17.
inicial transforma-se em curiosidade. O tímido afastamento dá No entanto, não são tanto os objectos situados no espaço,
lugar à aspiração cada vez maior de aproximação interior. De mas é sobretudo a experiência do tempo que o amor vem
uns breves olhares de soslaio passa-se a mergulhar nos olhos do transformar num anel mágico que se gira ao ritmo da despedi­
outro como num mar imenso, e o ser amado vem cada vez da, da espera e do encontro, como uma bracelete adornada.
mais povoar as noites e os sonhos. É como se agora o mundo No amor, o tempo que separa os momentos das descobertas
inteiro estabelecesse uma relação simbólica com o outro, como parece muitas vezes prolongar-se indefinidamente e a felicidade
se a alma se difundisse pelo universo e se prolongasse nas coi­ do encontro vem de repente detê-lo, antes de chegar a separa­
sas como num corpo capaz de a exprimir e tornar presente: o ção com a promessa de um novo encontro o mais breve possí­
mundo torna-se sagração do amor, sinal da feliz proximidade vel. Aquilo que, sem amor, se vê como monotonia vazia, contí­
do ser amado; porque agora já não se consegue olhar para as nua repetição e eterno retorno do mesmo transforma-se em
nuvens no céu sem as encarregar de dizer-lhe bom dia; não se felicidade e em obrigação para aquele que ama. Precipitando
consegue ouvir murmurar os ribeiros sem aí encontrar a sua incessantemente os apaixonados um para o outro, o desejo cria
voz; à noite, as estrelas brilham como os seus olhos, a Via Lác­ o ciclo da festa, com a sua fase de preparação, marcada pelo
tea tem os reflexos dourados do seu cabelo e as flores dos cam­ aprofundamento e pelo fervor, e a fase de concretização, onde
pos estendem-se como um tapete aos seus pés. a espera é recompensada. Não há amizade que não se submeta
É com esta poesia que os xamãs descrevem a terra em às leis de tal cerimonial, da sacralização ritual do tempo vulgar,
contos de encantar: contam como as árvores, as pedras e os para que a presença se dê interiormente.
animais lhes falam daquela que amam infinitamente, das A infelicidade das relações puramente exteriores, das ami­
montanhas de vidro, da deusa do céu, do centro secreto do zades de uma noite, dos casais em que o amor se extinguiu, de
universo16. Cada viagem representa para eles uma etapa a ul­ todos os contactos onde só conta a aparência e a carreira do
trapassar, cada lugar de repouso é uma estação do caminho outro, mas nunca a pessoa, vem da sua inevitável deterioração
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pela rotina do tempo. Como se este não passasse de um imen­ «Adiantei consideravelmente no conhecimento da felicida­
so relógio cujas engrenagens vêm esmagar, com a precisão das de e passei a considerá-la como problema no dia em que soube
leis do seu mecanismo, todo o entusiasmo, surpresa, fantasia e ver nela o fruto da escolha de um cerimonial criador de uma
alegria, desfazendo todas as relações que não são de amor em alma feliz e não um presente estéril de objectos vãos.))19
fios de «noitadas)), de «meetingS>> ou de «happeningS>>. Só o O que, em termos muito semelhantes, a Raposa descreve
amor tem o poder de impedir que os encontros de todos os ao Principezinho, falando do cerimonial do amor, da regulari­
dias degenerem em quotidianidade, o poder de preservar do dade das suas obrigações, da estrutura da sua lei, não lhe diz
hábito e da mediocridade a entrega ao outro; e só ele salva a re­ em si nada de novo; mas permite-lhe agora tomar consciência
gularidade da rotina, a repetição do vazio interior, a sólida aco" · do que fazia quando varria todas as manhãs os «vulcões)) do
modação do invisível torpor. Só ele é capaz de devolver a juven� seu planeta e arrancava os rebentos de «embondeiros)) , traba­
tude, de transformar em novo. O amor liberta o que ainda não lhos que têm de ser sempre retomados, mas que impedem a ir­
pudera desabrochar, modela o que esperava tomar forma, resgata. rupção do magma escaldante do interior do planeta, ou seja,
à sua prisão o que se encontrava preso no tecido da angústia e ; do mundo do instinto, e que afastam as ervas daninhas cuja
,
do medo; confere o dom de uma curiosidade sempre renovada� multiplicação poderia ser fatal - descrição simbólica de uma
diante do outro, da alegria face ao seu ser. Sacralizando o tempo · higiene mediante a qual o eu se esforça por negociar inteligen­
em rito, o amor é a única força capaz de travar o tédio. . . temente com os seus próprios afectos: todos estes exercícios de
No pensamento de Saint-Exupéry, esta ideia de uma arqui-· treino no caminho do amor fazem ver o que, sem dar por isso,
tectura temporal e espiritual da vida, no meio do «deserto dos o Principezinho aprendeu antes de mais na sua relação com a
homens)), opondo-se à vacuidade de um tempo que se escoa Rosa, ao dedicar-se-lhe: que o valor dos objectos e dos homens
no areal do nada tem um papel considerável. Tal como afirma está ligado ao tempo que se lhes consagrou.
o Caide da Cidadela: «Da mesma maneira que a catedral é um
Isto vale para as coisas que encontramos no mundo, e é es­
certo arranjo de pedras iguaizinhas umas às outras, mas distri­
sa a lição que Saint-Exupéry espera da experiência do «deser­
buídas segundo linhas de força cuja estrutura fala ao espírito,
to)): ele queria que se compreendesse bem como o valor da
assim existe um cerimonial das minhas pedras. E a catedral po­
água está ligado à caminhada sob as estrelas em direcção ao
de ser mais ou menos bela. Da mesma maneira a liturgia do
meu amo é um certo arranjo de dias no essencial iguaizinhos poço. Não é o consumo mas sim o empenhamento, a dádiva
uns aos outros, mas distribuídos segundo linhas de força cuja de si, a constância que produzem o homem; só a aceitação das
estrutura fala ao espírito. [ ... ] Também há um cerimonial dos exigências deste deserto é susceptível de devolver ao mundo a
traços do rosto. [ ] Há um cerimonial da minha aldeia, por­
. . .
sua unidade. «Repara no milagre)), diz o príncipe da Cidadela,
que aí temos um dia de festa, ou o dobre a finados, ou a hora «se aquele que eu mando juntar à tua caravana ignora a tua
das vindimas, ou a parede a construir juntos, ou a comunidade linguagem, não participa dos teus medos, das tuas esperanças e
na fome [ .. ] . Não há nada neste mundo que não seja essen­
.
das tuas alegrias, se ele se limita a fazer os mesmos gestos que
cialmente cerimonial. Que podes esperar de uma catedral sem os condutores das tuas montanhas, esse homem apenas encon­
arquitectura, de um ano sem festas, de um rosto sem propor­ trará um deserto vazio. Passará toda a travessia da interminável
ções [ . . . ] ? Que havias tu de fazer dos teus materiais ao deus­ planície a bocejar. Só sentirá tédio, um imenso tédio. Nada do
-dará?)) 18 meu deserto transformará esse viajante. O poço não terá passa-

50 51
do para ele de um buraco pouco profundo, que foi preciso li- ·.· superficial da vida. A imagem da fonte e da sua água evoca
bertar da areia. Nem admira que não tivesse conhecido o ini­ ao mesmo tempo o renascimento, a purificação, o regresso à
migo, porque o meu deserto é essencialmente invisível: nada origem , a profundidade e a fecundidade. Em suma, significa
mais que um punhado de grãos passeados pelos ventos, embo­ 0 despojamento definitivo de tudo o que nos encobre, o con­

ra bastem eles para transfigurar tudo no espírito daquele que se sentimento na morte, o regresso às estrelas, e o Principezinho
encontra ligado, da mesma maneira que basta o sal para trans- · sabe-o .
figurar um festim. Basta eu mostrar-te as regras que regem o .·

meu deserto para ele assumir tal poder e tal domínio a teus
olhos que, apesar de tu seres banal, egoísta, tíbio e céptico,
posso ir arrancar-te aos arrabaldes da minha cidade e impor-te
uma só travessia do deserto, para fazer explodir em ti o ho­
mem [... ] . E, mesmo que eu me tenha limitado a fazer-te parti­
cipar da linguagem do deserto, ele ter-te-á feito germinar e
crescer como um Sol.»20
Assim, tal como o Principezinho, descobre-se que «a água ··

também pode ser boa para o coração»21• No momento em que


se está prestes a morrer de sede, como aconteceu com Saint­
-Exupéry segundo o que descreve em Terra dos Homen?-2,
quando se esgotam todos os recursos, até mesmo a questão da
sobrevivência física perde sentido, e a única coisa que ainda
conta é saber porque se vive e porque se morre.
É aqui que, de forma muito própria, Saint-Exupéry deixa
entrever uma singular unidade do amor e da morte: as duas
realidades exigem do homem o mesmo empenhamento, a mes­
ma decisão existencial, e deixam igualmente ver o homem na
sua verdade nua; se no amor todas as coisas do mundo se
transformam em sacramentos, tornando-se presença simbólica
do amado, na presença da morte transformam-se em símbolos
da espessura e da profundidade da existência. Na Bíblia, as
«águas do repouso»23 são já a imagem de uma vida em que de­
sapareceu a inquietação relativa à pura sobrevivência e em que
se aprendeu a mitigar a sede numa fonte mais profunda; da
mesma forma, na linguagem das religiões e dos contos, as
«águas da vida»24 são um símbolo frequente de renascimento
interior, que permite que os homens se desfaçam da sua visão

52
0 sentido da existência2. Vendo bem, a morte é como o fecho
da abó bada, o resumo de todas as regras que permitem que o
amor se propague no meio da vida.
Pode ser-se levado a conjurar o amor para evitar a tristeza
da sua precariedade, tal como o propõe a sabedoria budista.
O que não o conhece não terá de sofrer perante a morte3: lição
aparentemente lúcida, mas que retira à vida o seu sentido,
a sua lei, o seu laço interno. Não há, obviamente, amor sem a
4. Do amor e da morte: uma janela tristeza da despedida desta terra, mas é no entanto a única rea­
para as estrelas lidade capaz de nos propor uma resposta para o enigma da
morte.
E é, com efeito, uma resposta de amor que traduz este es­
O encontro com a Raposa acabou por trazer ao Principezi- ··. tranho cerimonial do tempo a que tudo se submete e que exige
nho um conhecimento novo essencial: «Sou responsável pela . de todos uma obediência absoluta. É exactamente ao fim de
um ano que o Principezinho tem de se preparar para morrer.
minha rosa.»1 Tudo o que Saint-Exupéry procura exprimir so- ·•
O ciclo do tempo é inexorável e exige que os acontecimentos
bre o amor, a vida e a morte, recorrendo à sua paleta de sím- ·
ocorram no momento certo: a morte chega na sua hora, tal co­
bolos religiosos, atinge aqui o seu auge: o sentido das coisas
mo o pôr do Sol. Não devemos portanto fugir dela, mas tentar
não reside nelas próprias, mas no «laço» que as liga, e esse laço
conhecer o ponto em que nos espera, para lhe obedecer e ir ao
desfaz-se quando há confusão das relações e das responsabilida­
seu encontro, não obstante o medo. Só assim ela deixa de ser
des. Mas, para o Principezinho, isso significa que tem de des­ criatura de terror. A serpente mortalmente venenosa é de certa
pedir-se do mundo e, com um forte sentimento de culpa, re­ forma um símbolo natural de renovação e de renascimento -
gressar à Rosa que abandonou, um regresso que, para ele, forma um círculo que vai do começo ao fim, e é apenas a par­
significa a morte. É chegado o momento: ele respondeu à me­ tir desta ciclidade do tempo que o indivíduo pode ver a sua
dida da sua passagem pela terra. fragilidade ganhar sentido inserindo-se no curso do todo4.
O que se passa quando alguém que amámos desaparece? O ciclo da natureza não conhece a morte: apenas faz renovar
É impossível alguma vez compreender de facto o acontecimen­ os portadores e os actores d� vida, dispostos em certos pontos
to que vem romper brutal e irremediavelmente o estreito laço nodais do ciclo do tempo. E no quadro deste ritual do tempo
da amizade: diante dos nossos olhos, desaparece aquele por que se define então o sentido da vida humana, tal como o en­
quem teríamos feito tudo na vida; no meio de uma conversa, a tendiam muito bem os Maias da América Central ao represen­
sua palavra expira nos seus lábios e, em lugar da beleza radian­ tar cada dia como um Deus que pela manhã pega numa tarefa
te e da expressão viva, encontramos de repente apenas frio e ri­ definida, carregando-a até à noite, altura em que volta a pousá­
gidez. De nada adiantam as explicações dos médicos so ? re a -la para que, na manhã seguinte, outra divindade venha apa­
morte; ela não deixa de escapar ao nosso entendimento. E cla­ nhá-la5. Assim, a morte do indivíduo permite à roda girar, e o
ro que é possível descrever certas condições que a tornariam todo mantém-se em movimento graças ao carácter transitório
aceitável como um elemento inerente à vida, devolvendo assim de cada um dos seus elementos.

54 55
Graças ao cerimonial d? tempo, a morte recebe um pri­ meio de ensaio de uma vida superior. Ele que pode a qualquer
meiro esboço de sentido. E o que Saint-Exupéry declara em instante reconhecer nos gestos do corpo a expressão da alma,
Terra dos Homens: «0 que dá sentido à vida dá também um ele que procura entrever nas coisas e nos «factos» a interiorida­
sentido à morte. Esta é doce quando vem na ordem natural de de u ma significação espiritual, ele que está em condições de
das coisas, quando o velho camponês da Provença, no termo transformar todos os objectos envolventes em símbolos do es­
do seu reinado, lega aos seus filhos o seu lote de cabras e de pírito, é também capaz de considerar a morte como o símbolo
oliveiras, para que eles os transmitam, por sua vez, aos filhos de uma última espiritualização e deixa então de se revoltar
dos seus filhos. Morre-se apenas por metade, numa linhagem contra ela. Segundo Saint-Exupéry, a morre dá ao amor o po­
camponesa. Cada existência cede por sua vez como uma vagem .. der de se desprender do seu primeiro lugar de manifestação, de
que liberta as suas sementes [ ... ]». «Não se morria na quinta. maneira que se pode encontrá-lo em todas as coisas, como pa­
La mere est morte, vive la mere!»6 no de fundo do mundo, percebendo-o agora como um miste­
Vista nestes termos, a morte perde o carácter assustador de rioso eco das esferas, como uma música inaudível que continua
absurdo repentino: encontra por si própria o seu lugar no a fazer-se ouvir na linguagem do desejo. Já não se saberá decer­
grande todo, colocando-se ao seu serviço. É por isso que pode to reconhecer a estrela do Principezinho com os olhos da car­
dizer-se que o Principezinho não morre: apenas volta para a - ne, pois é apenas um grão perdido no universo; mas, precisa­
sua Rosa e, porque chegou o momento, prepara-se para esse mente por isso, a sua luz comunicar-se-á a tudo o que brilha
regresso. nas noites de tristeza, trazendo-lhes uma resposta. E é precisa­
Ao mesmo tempo, permanece o sofrimento de se perder mente porque já não se pode ver nem ouvir o Principezinho
aquele que vai morrer: para quem fica, a morte mata a alegria; que o seu riso continuará a ecoar nas cordas mais finas do co­
é uma ladra que rouba o sorriso aos lábios, um anjo em cha­ ração, as que ligam a tristeza e a esperança. A cor dos campos
mas na fronteira do paraíso, no início da expulsão. Se aquele de trigo já não será a mesma, pois estes lembrarão agora a ca­
que morre acaba por se vergar ao inevitável, para os outros, pa­ beleira dourada do Principezinho; também terá mudado o gos­
ra todos os que acompanham o ente querido até ao «muro», to da água, depois de se ter caminhado com ele no deserto até
para o proteger o mais prolongadamente possível contra o ve­ ao poço; e as noites brilharão mais claras à janela, cheias da re­
neno da «serpente», a morte não deixa de significar decepção cordação de uma felicidade distante.
suprema, sinistro ultraje a todos os sentimentos7, brutal e ab­ Este é o ponto último a que nos conduz a mensagem de
surdo acto de violência. O amor ergue-se com firmeza contra a Saint-Exupéry, com toda a sua sensibilidade e a sua inteligên­
morte; recusa-se a aceitá-la; procura arrancar aos seus braços cia do mistério do amor e da morte, presente no coração da vi­
aquele que vai morrer para o esconder, como se quisesse fazer da do homem. Ora, esta conclusão de O Principezinho, onde
da sua alma, do seu corpo, uma capa mágica capaz de ocultá­ nos revela mais intensamente o seu sentimento da vida, a sua
-lo dos olhares da «serpente». Vã tentativa, no entanto, tendo visão poética do mundo, do amor e da morte, é também o que
em conta o nosso destino terrestre. o livro tem de mais enigmático.
Ora, é justamente o amor que consegue também provocar É certo que o mundo inteiro tem outra aparência, con­
a reconciliação com a morte. Porque só ele sabe que nesse ins­ soante se sabe feliz ou não aquele que se ama acima de tudo;
tante o corpo não passa de concha exterior, simples invólucro, torna-se paraíso se é mensageiro da sua alegria, ou torna-se in-

56 57
ferno se só nos fala da sua dor, e isso sem a mais pequena hi� dade, mas apenas a oportunidade de não perder de vista o so­
pótese de correcção. É verdade que a felicidade do amor con­ n ho duma humanidade original e de, no meio do deserto hu­
siste em estarmos certos da felicidade daquele que amamos ­ mano, nunca trair os valores, apesar de todos os fracassos,
e percorreremos mil caminhos para encontrar a «fonte» da sua apesar da finitude. «Porque o amor é forte como a morte, a
alegria, sabendo que a busca comum e o caminho percorrido paixão é violenta como o sepulcro. Os seus ardores são chamas
em conjunto nos unirão muito mais profundamente que o de fogo, os seus fogos são fogos do Senhor» (Cant VII, 6).
próprio momento da fruição; e, ao invés, cada momento de A verdade de Saint-Exupéry aproxima-se desta afirmação do
plenitude extrairá o seu valor infinito da dor com que atraves­ Antigo Testamento. Mas o que é feito da tristeza do amor pe­
sámos juntos o «deserto». E, no entanto, porque é que Saint­ rante a morte?
-Exupéry tem tanta dificuldade em reconhecer que o amor não Esta é a questão que realmente importa colocar a Saint­
deseja só a fidelidade, mas a unidade, não só o caminhar, mas -Exupéry. Para fazer jus ao amor pessoal, não bastaria transfor­
a duração, não só a aspiração ao que permanece inatingível, mar a pessoa amada em puro símbolo nem apelar a uma me­
mas a plenitude eterna? Porque insiste em negar o carácter in­ lancólica poesia do mundo para mitigar a dor da perda
finito da vida na amizade, ele que, mais que qualquer poeta da daquele que se amou acima de tudo. É decerto um ganho po­
nossa época, soube louvar-lhe o valor infinito? der abrir a janela e ficar a velar ao longo de noites privadas de
Em regra, é errado aplicar à poesia critérios que são da or­ sonhos! O que não se alcançou já, se ainda existem seres capa­
dem da verdade religiosa. Mas Saint-Exupéry entendeu a sua zes de fazer renascer o riso, pelo desejo ou pela recordação que
obra como uma profecia e concebeu a sua mensagem como úl­ se tem deles; e é já muito se, mais uma vez, se puder escutar
timo bastião a propor a uma humanidade ameaçada. Deve en­ na noite as «Vozes inauditas» das estrelas, segundo a palavra do
tão perguntar-se se as convicções resistem à prova da vida. 51 19, 4. Mas que resposta nos resta na vida durante o tempo
Além disso, o seu conto apela de tal forma a códigos marcada­ em que o Principezinho é apenas uma figura de sonho que re­
mente religiosos que se torna em absoluto necessário verificar gressou ao seu planeta distante por fidelidade a uma flor que
se o texto remete efectivamente para conteúdos cristãos ou de­ nós, diferentemente dos românticos, procuramos em vão na
les se demarca. Finalmente, O Principezinho esclarece a questão terra? Sem dúvida que, de certa forma, ele nos ensina a redes­
essencial para a qual a religião tenta encontrar uma resposta: a cobrir o carácter precioso das coisas e a aceitar como fazendo
do sentido da morte e, face a ela, da possibilidade do amor. parte da vida a majestade da morte, o ritmo da precariedade.
É certamente aqui, onde tudo se joga, que Saint-Exupéry pro­ Mas o desejo não é a esperança, o sonho não é a realidade vivi­
curava verificar a ambição da sua mensagem, confrontando-a da, o caminho não é o fim, e trata-se afinal de acreditar no va­
com as condições e as descobertas da sua vida. lor objectivo da expectação da amizade, da certeza do amor e
Se a leitura de O Principezinho agrada a tanta gente é por­ da subjectividade extrema da paixão.
que, numa linguagem repleta de imagens, a sua conclusão pa­ Se é possível amar infinitamente pelo menos uma pessoa e
rece ir ao encontro da fé habitual da religião na imortalidade se é ela a única razão por que vale a pena viver, não existe
da pessoa humana. Enganadora aparência! O céu estrelado de maior esperança nem mais forte reivindicação do amor que a
Saint-Exupéry só metaforicamente se relaciona com o céu dos da imortalidade. O amor cria a pretensão de que a pessoa cuja
crentes; o itinerário do Principezinho não promete a imortali- dignidade e valor incomparável se descobriu, e na qual se con-

58 59
centrou toda a felicidade do mundo, viverá para sempre e que morte ser outra coisa que não adeus e passagem para, ao seu
a sua morte não será mais que um adeus provisório8• Quando lado , lá ir preparar uma morada eterna e esperar aquele que ela
é realmente grande, o amor tem a força duma prova metafísica deixou para trás1 1 ?
e a sua linguagem repercute sem cessar o inesquecível poema Mais instruído que qualquer outro povo em matéria de
Annabel Lee, em que Edgar Allan Poe canta a morte da sobri- . eternidade, os Egípcios viam a morte como um «desembarque»
nha e noiva bem-amada, Virgínia. O poeta passou semanas a na margem da imortalidade12; ao lado da deusa Ísis, mergulha­
fio junto do seu túmulo, antes de regressar a casa e soçobrar, da em tristeza, o seu deus chacal, Anúbis, não só encarnava a
física e psicologicamente9• Citaremos aqui apenas as duas últi­ «fidelidade» do amor, mas anunciava ainda a ressurreição do
mas estrofes, que, mais do que qualquer outro texto da litera- .·· amado. Quando alguém morre, pensavam, o seu corpo mergu­
tura mundial, traduzem a tristeza e a esperança do amor diante · . lha no reino do deus Osíris, mas, tal como um pássaro, a sua
da morte: alma eleva-se aos céus, ao reino do Sol, em direcção à armada
das estrelas; a alma era pintada com a forma de um ser alado
Mas o nosso amor era mais que o amor com rosto de homem, o Ba-pássaro, e, para tornar tudo mais
De muitos mais velhos a amar,
explícito, acompanhavam-no muitas vezes com o hieróglifo do
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá de cima, insenso, cujo sentido é «O que deus faz»13, como se a ascensão
Nem demónios debaixo do mar da alma para o céu fosse uma oração e um canto de louvor, à
Poderão separar a minha alma da alma semelhança do cheiro do insenso, cuja verdadeira natureza se
Da linda que eu soube amar. revela quando os seus grãos se consomem em oferenda.
Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos É sobretudo desta esperança fundamental do amor, a de
Da linda que eu soube amar; que nos encontraremos um dia, que advém a fé na imortalida­
E as estrelas dos ares só me lembram olhares de. Do mesmo modo que, na terra, todos os objectos do mun­
Da linda que eu soube amar;
do se transformam em símbolos da beleza e da presença da­
E assim stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado, quele que amamos do fundo do coração, também o amor se
No sepulcro ao pé do mar, traduz pela convicção de que, inversamente, a alma do outro é
Ao pé do murmúrio do mar. 1 0 capaz de significar e de resumir nela mesma tudo o que existe.
Ao morrer, aquele que amamos não poderia retirar-se para
Com efeito, o amor é tão «exigente», tão pouco «sensato», uma esfera irreal e inatingível, como uma luz que se reflectisse
tão «novo», tão «romântico», tão absoluto, que precisa a todo em tudo sem se tornar ela mesma fonte de luz, conforme
o custo de acreditar na vida eterna para não perder a fé em si Saint-Exupéry dá a entender se acreditarmos nas palavras do
mesmo. O amor nunca deixa de acarinhar o ser amado com Principezinho; na verdade, depois de um breve período de se­
palavras ternas, e se a claridade da Lua e a luz das estrelas lhe paração, o amor continua a esperar e a desejar novas descober­
recordam o brilho dos seus cabelos e o fulgor do seu olhar, ele tas. Foi neste sentido que Ankhesenamon («ela vive por Amon>>)
quer acreditar que continua vivo, para lá do mundo estelar, e mandou escrever num amuleto do túmulo de T utankhamon
que tornará a vê-lo; se, aos seus olhos, a amada é como um («imagem viva do deus Amon»), seu marido, este incontestável
mar que o transporta para a outra margem, como poderia a voto: «Eu amei-te, nobre Tutankhamon, e é grande a minha

60 61
dor por teres partido. Mas esquece que o tempo é tempo, pois nação do Principezinho, poder-se-ia dizer; por conseguinte, pa­
depois do tempo voltaremos a ver-nos.» Sem esta esperança ab­ ra ele a ressurreição dos mortos era um dado absolutamente
soluta de eternidade e de imortalidade, o amor morreria de certo do amor, enquanto que para Saint-Exupéry o Principezi­
facto antes do tempo. É portanto justo achar a morte menos nho apenas exprime o sonho de uma existência tal como a de­
aterradora do que o dilaceramento voluntário dos que ficam na veríamos realmente viver, mas que, na verdade, é prematura­
terra, como faz Eichendorff: mente destruído. Todos os símbolos religiosos, em particular
os da eternidade, da imortalidade, da sobrevivência do amor,
É preciso chamar à morte separação,
transformam-se assim em memória nostálgica duma esperança
Pois quem sabe para onde vamos,
perdida - postulados humanos que já nem força têm para
-

A morte é curta separação


Antes de depressa nos revermos. 1 4 produzir do interior a realidade a que apelam.

Nem mesmo a morte poderá separar aqueles que se amam;


porém, a destruição do amor seria pior do que a morte. Tudo
depende portanto de se considerar ou não as expectativas e os ·

desejos do amor e da amizade como provas desta verdade:


aquele que eu amo não poderá morrer, voltaremos a encontrar­
-nos.
O fim do Principezinho está contudo bastante afastado
desta visão das coisas. Só aparentemente lembra a atitude de
um Novalis perante o desaparecimento prematuro de Sofia,
em quem venerava a encarnação visível da razão universal.
É no momento em que o Principezinho parte ao encontro da
sua Rosa que melhor se nota a diferença de princípios entre a
simbólica religiosa e a metáfora poética. Quando Saint­
-Exupéry observa as estrelas à noite, não pensa realmente na
vida eterna e indestrutível do amor; para ele, o percurso do
Principezinho representa apenas a exaltação do seu rosto num
ideal transcendente que o homem só furtivamente poderia en­
contrar na terra, e apesar de sonharmos com o seu regresso
aqui em baixo nunca poderemos esperá-lo verdadeiramente.
Pelo contrário, quando se encontrava dia após dia no túmulo
da bem-amada, Novalis via no amor, cuja experiência fizera
aqui em baixo, uma mensagem da eternidade, como o começo
do Reino dos Céus15. Aos olhos dos seus contemporâneos, ele
próprio aparecia como uma criança admirável e pura, a encar-

62
QUESTÕES E ANÁLISES
É preciso reflectir um instante na forma como, em Saint­
-Exupéry, esta dissolução simbólica da linguagem religiosa em
pura «cifra» poética ou símbolo enigmático é a inevitável con­
sequência do enfraquecimento constante da religião na nossa
época. Com efeito, ele próprio sofreu bastante com o declínio
das figuras significativas do passado, e a sua poesia visa funda­
mentalmente devolver-nos essa velha linguagem numa nova
forma póetica, contradizendo assim o canto fúnebre de Frie­
drich Nietzsche em Assim Falava Zaratustra1 • Se lhe parecia
impossível retomar as antigas imagens com o seu velho senti­
do, porque mantém esta ambivalência em relação à simbólica
religiosa tradicional? Haverá na vida e na personalidade do au­
tor razões que não são só de natureza cultural, mas muito mais
de natureza psicológica?
Efectivamente, não só no plano religioso, mas também, e
sobretudo, no das profundezas da psique, O Principezinho
é mais uma alusão nostálgica a uma verdade perdida que uma
representação ou mesmo uma nova apresentação desta. Consi­
derada do ponto de vista psicanalítico, a própria linguagem
simbólica de Saint-Exupéry explica-nos a causa de tal ruptura;
e, depressa o veremos, são essas mesmas razões que im p e de m
O Principezinho de acabar como deveria acabar qualquer «ver­
dadeiro» conto. Pois como admitir, psicologicamente falando,

67
a sua conclusão: um Aviador «caído do céu» (o eu do narra­ Raposa, mas o seu único efeito visível na história é um senti­
dor) que caminha em direcção à «fonte» com o Principezinho mento de dor e de vazio, assim como a vaga ideia de que o
para logo se ver separado dele? De acordo com a lógica normal Principezinho poderá um dia regressar à terra.
de um conto, a narrativa devia prosseguir contando-nos como, . Esta conclusão da narrativa de Saint-Exupéry é de tal for­
junto da fonte, mora uma mulher misteriosa que espera a sua ma estranha que se deve apesar de tudo perguntar o que impe­
libertação2; descrever-nos-ia depois o perigo que ele teria de dirá o Principezinho de pôr em prática na terra a sua mensa­
correr para encontrar a amada enfeitiçada: seria necessário pas­ gem de amor e fidelidade. Segundo o autor, é realmente por
sar por estranhas portas, enfrentar perigosas aves de rapina de fidelidade à Rosa que ele deixa a terra para regressar ao seu pe­
guarda ao palácio escondido, empreender a seguir uma intrépi­ queno planeta solitário. Que Rosa será esta então, para lhe
da viagem de regresso, antes de poder pensar em desposar a provocar tantos sentimentos de culpa por tê-la deixado e para
feérica princesa em recompensa dos seus esforços3. A partir ·
que sinta ainda tanta ansiedade só de pens�r no perigo que ela
deste tema arquetípico podem, é claro, desenvolver-se infinitas·
correria se a ovelha não tivesse açaime? E no mistério desta
variações e modulações. No entanto, para que o final de ... Rosa que se deve procurar a razão da sua estranha melancolia e
O Principezinho fosse psicologicamente satisfatório, seria pelo até da vontade de morrer que se afirma de forma tão intensa
menos necessário que deixasse entrever como amor e fidelidade no fim da narrativa.
se podem conjugar e ser vividos na realidade, aqui, nesta terra.
Não haveria verdadeira mutação do Aviador «caído do céu» se
o confronto com a imagem das suas profundezas, neste caso o
Principezinho, não o preparasse para o encontro com a mulher
encantada e encantadora que ele poderia amar acima de tudo.
É neste sentido que Anthony Quino, na sua autobiografia The
Original Sin, narra a profunda crise interior que lhe fez desco­
brir toda a sua carreira de actor como uma enorme mentira;
foi então que conheceu um jovem que só o deixou depois de
ter conseguido despertar nele a capacidade de amar4•
Porém, em O Principezinho, Saint-Exupéry descreve as coi­
sas de forma muito diferente. Fala-nos de uma grave crise: o
« Ícaro», que partira à conquista do céu, cai e também ele en­
contra o seu segundo eu na pessoa duma criança, mas o livro
não nos fornece a mais pequena pista da forma como este en­
contro muda o Aviador (o eu próprio) , modificando os seus
planos e objectivos. Pelo contrário, Ícaro continua incansavel­
mente a reparar o seu avião, e é no momento em que consegue
consertá-lo que o Principezinho morre. Não há dúvida de que
escutou e transmitiu a lição que o Principezinho recebeu da

68
1. O segredo da Rosa

O Principezinho comporta fundamentalmente um único


mistério central, em relação ao qual tudo o resto não passa de
mera roupagem, consequência ou reacção, e este mistério é o
que se vê florir na imagem da Rosa misteriosa. É ela que susci­
ta a esperança bem como a tristeza diante de cada «pôr do
Sol», e é ela que leva a descobrir como o amor está condenado
à insaciabilidade de um puro desejo. Sempre presente por de­
trás de todas estas maravilhosas desigualdades, destas rupturas
e contradições que marcam o pensamento e a obra de Saint­
-Exupéry, ela acaba por adquirir uma forma mágica quase in­
quietante. É certo que só os olhos do psicanalista conseguem
reconhecê-la, mas torna-se então claro e evidente: o seu misté­
rio é o da mãe.
Num certo sentido, pode ler-se toda a história de O Princi­
pezinho como uma recordação de infância codificada, como
uma espécie de sonho regenerador pessoal. Saint-Exupéry es­
creveu este texto, que lhe trouxe reputação mundial, num mo­
mento em que sentia apenas vazio e decepção e se encontrava
perdido num deserto interior, em que a sua ascensão ardente
e m direcção às estrelas, a sua capacidade de olhar as coisas do

alto e a sua visão do mundo tinham atingido definitivamente


um limite. O Aviador tinha «caído». No coração desta crise
existencial, os seus pensamentos voltaram-se para o passado, li-

71
gando-o ao momento em que os fios se haviam embaraçado, ' nostalgia, só tem sentido na medida em que vem estilhaçar e
para esclarecer a imagem que tinha de si mesmo e que corria 0 corrigir a estreiteza da perspectiva adulta do Aviador «caído>>
risco de se perder no desconhecido. É então que o Aviador en­ que se tornou insustentável. Se há . alguma. coisa qu� nos obn­
contra a «criança» que não pôde nunca viver nele e com ela gue a interrogarmo� nos sobre � crzança Sa1? t-Exup�ry, e� vez
mergulha em recordações e imagens simbólicas que mostram do adulto, são preCisamente as Imagens da mtroduçao do hvro.
como vivera o Principezinho antes de encontrar as «pessoas Na anamnese ou rememoração psicanalítica, presta-se
crescidas» e de ter de se tornar também ele adulto. Cada uma grande atenção às «recordações-ecrãs»2 simbolicamente codifi­
destas indicações merece a nossa maior atenção, pois todas elas cadas, que resumem numa única cena aqueles dados biográfi­
projectam a sua luz sobre este ou aquele pormenor da infância cos da infância que frequentemente se estendem por muitos
de Saint-Exupéry, que doutra forma ficaria por esclarecer. anos. É um pouco com isto que parece que teremos de lidar
Saint-Exupéry recorda-se muito bem da infância: em crian­ nesta visão de criança: uma enorme serpente que engole viva a
ça sonhara pintar as suas fantasias e visões; mas tinham-no im­ sua presa, no calor asfixiante de um clima tropical. E certo que
pedido de desenhar o seu mundo interior impondo-lhe em vr:z não conseguiríamos extrair uma certeza absoluta sobre deter­
disso a «geografia», a descrição do mundo exterior1 • Leonardo minado estado psíquico a partir de um único símbolo. Mas, ao
assassinado, portanto. O que é desde logo um destino lastimá­ depararmos com esta imagem de pesadelo logo nas primeiras
vel. Que gostaria então de ter desenhado esta criança? Questão p áginas do livro, quase nos vemos forçados a pensar que a ser­
mais importante ainda que o próprio interdito de pintar, pois pente não pode significar senão a mãe3• A presa que ela engole
mergulha em camadas muito mais profundas do que a simples viva seria naturalmente o seu filho - um enorme «bebé ele­
oposição global entre razão e sentimento, consciente e incons­ fante» que nunca teve direito a ser criança, pois, mal nasceu,
ciente, adaptação à vida corrente e liberdade artística. teve de ser suficientemente «grande e forte» para satisfazer com
É curioso observar como a maioria dos leitores de O Prin­ toda a sua existência a fome de amor e de vida que atormenta­
cipezinho não vê no elefante engolido pela serpente senão uma va a mãe. Mas é fatal que as «pessoas crescidas» não possam
imagem divertida e tranquilizadora, o que decerto corresponde entrar nesta visão das coisas: de cada vez que Saint-Exupéry
à intenção explícita do narrador. Mas se o lermos simbolica­ pinta a sua enorme jibóia com o elefante que engoliu, os adul­
mente, este conto diz-nos mais sobre a história de Saint­ tos só conseguem ver um «chapéu», e foi exactamente assim
-Exupéry do que todas as biografias, na medida em que estas que ele teve de ver a sua própria infância desde o princípio:
se referem sobretudo ao grande escritor, o crítico da cultura, o um universo bem «enchapelado», protegido de todos os lados,
companheiro e piloto, como se a criança Saint-Exupéry nunca perfeitamente abrigado; mas o que a criança vê em segredo, do
tivesse existido. Com efeito, a sua obra literária arrisca-se a dei­ interior, é uma prisão para a vida toda, um estado embrionário
xar-nos ver apenas o que há nela de grande e de acabado e fa­ sem fim, um nascimento sempre posto em questão.
zer-nos esquecer depressa o Principezinho, a personagem em É ao pintar a jibóia que pela primeira vez a «criança» perde
segundo plano que ilustra todas as potencialidades recalcadas e a confiança no mundo das «pessoas crescidas» . Não consegue
a vida sufocada. A leitura do livro deveria pelo menos impedir fazer-se entender: elas sorriem e troçam da sua tragédia infan­
que sucumbíssemos à facilidade. Porque o aparecimento desta til, porque são incapazes de «ver com o coração» ; nem por um
personagem de criança, transfigurada pela recordação e pela momento supõem que o que lhes parece «bem protegido» é no

72
fundo aterrador, e, mesmo que chegassem a ter uma imagem signação que o tolheu em criança: diante das «pessoas crescidas»
radiográfica do «processo de digestão» da serpente (mãe), con­ rem de se ser razoável. O facto de se restringir a um modo de
siderariam essa visão de «floresta virgem» o produto de uma expressão artística reconhecido e suficientemente codificado
imaginação febril e tortuosa, pelo que, como forma de higiene para se fazer compreender e se tornar interessante assemelha-se
psíquica, lhe imporiam o dever de se ocupar do «mundo real». já bastante a uma vingança das «pessoas crescidas».
Assim, cedo se encobrem as angústias infantis com o man­ A economia feita através desta via é evidente: Saint­
to da adaptação meramente racional ao dever: desde logo se -Ex upéry não precisa de regressar aos verdadeiros temas e trau­
afirma o carácter contraditório de uma verdadeira vida dupla, mas de infância e sobretudo evita o conflito decisivo com a
sacudida entre uma ardente vontade de realizar alguma coisa e «serpente»: já não é necessário enfrentar o «dragão», como
uma nostalgia regressiva, carácter que atravessará toda a obra
aco ntece tantas vezes nos contos4. Porém , esta vantagem é pa­
posterior de Saint-Exupéry.
ga com um violento sentimento de culpa, uma agressividade
O que poderá fazer uma criança que sofre mas não o deve
recalcada, bloqueios consideráveis, com a resignação, a solidão,
mostrar, que gostaria de se exprimir mas está destinada à in­
a angústia e finalmente com a tendência para se desprezar pro­
compreensão em nome da razão superior, que se sente sufocar ·
fundamente pela própria fraqueza e para desprezar os outros
junto de um muro invisível mas a quem se repete constante.:.
pela sua ilusória grandeza. Auto-ironia, amargura ou fuga pelo
mente que imagina de mais e que seria melhor entreter-se com
sonho em nada resolvem os conflitos psíquicos: apenas os eter­
coisas «razoáveis»? Uma coisa é certa: não se pode desencorajar
a criança Saint-Exupéry ao ponto de a fazer negar o sentimen­ nizam. Mas é também a pressão do sofrimento, da sensibilida­
to original de ter razão. Mas o trabalho de destruição foi de tal de e da fantasia que, em certas circunstâncias, cria aquela espé­
maneira forte que provocou importantes recalcamentos e de­ cie de homens a quem, neste planeta, devemos o melhor da
formações. É por isso que se fica com a impressão de que ele nossa cultura: artistas e sacerdotes, sonhadores e visionários,
nem sequer nota aquilo que nos revela através do símbolo da poetas e exploradores do além, nos quais a recordação do Prin­
serpente-elefante. Pelo contrário, parece considerá-lo um jogo cipezinho não poderia morrer. A personagem é a fonte secreta
puramente estético, o que nos traduz o seu dilema permanen­ da sua criação literária, mas é também o símbolo de uma liga­
te: a expressão quase artística substituiu os sentimentos verda­ ção extremamente ambivalente com a mãe.
deiros, e o complicado problema da sua relação de criança com Basta seguir as recordações do Principezinho do planeta da
a mãe apenas subsiste na forma generalizada e abstracta da re­ Rosa para obter toda uma série de informações codificadas so­
lação das crianças com os adultos, uma vez exposto, sem qual­ bre o comportamento de Saint-Exupéry em relação à mãe e
quer comentário e portanto admitido, que uma criança, em que vêm completar o símbolo da jibóia. Não quer dizer que se
vez de poder exteriorizar imediatamente os seus sentimentos, possa pura e simplesmente identificar o Principezinho com a
só o deve fazer na forma codificada de símbolos. Saint­ criança que foi Saint-Exupéry! Mas é difícil contestar que tudo
-Exupéry considera a sua própria infância de forma indirecta e o que o Principezinho conta sobre o seu «planeta» traduz as
«artística» como um dado adquirido, pelo que até pode ironi­ suas vivências psicológicas de infância e, em particular, as re­
zar a propósito de si mesmo, transformando a sua «grandiosa cordações da mãe. Este planeta representa uma época muito
carreira de artista» em fábula, e isso apenas para mascarar a re- anterior àquela, na terra, em que o Principezinho aprende a

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descobrir toda a galeria das «pessoas crescidas» deste mundo, Cabe, é claro, à própria criança fazer a pergunta e respon­
àquela em que cria realmente raízes no mundo exterior; todo der e: o comportamento da mãe parece de tal modo contra­
-lh
este período está portanto marcado pela doce melancolia dos ditóri o, perturbador e ambivalente que simplesmente não se
ocasos, pela solidão bem ordenada de um vulcão que ele varre . pode entender. Capital para a reflexão do Principezinho é o
com todo o cuidado, e pela atenção, algo tardia, mas muito in­ pressuposto intocável de que a própria mãe é de facto uma Ro­
tensa, que dá à Rosa. sa, um resumo de beleza, charme e graça; não subsiste qual­

Apesar de incompleto, o retrato que o Principezinho faz da quer dúvida quanto à su� «verdadeira» natureza. Mas se ela ro­
_
Rosa é um condensado de afabilidade, afectação e egocentris­ de ser tão completamente outra, deve ter razões bem preCisas,
mo pretensioso. No entanto, as primeiras informações que so­ e é dever da criança descobri-las.
bre ela nos dá referem-se à sua própria confusão, à forma co­ A resposta mais fácil de conceber para o problema essencial
mo se sente desarmado diante dela. E ainda assim é pouco o do Principezinho seria a que propõe o Aviador: é por maldade
que diz, tão grande é o receio de poder prejudicá-la com o que que as rosas deixam crescer os seus espinhos5• Se assim fosse, a
disser. Mas seria minimizar as suas reflexões {{infantis» se se mãe seria responsável pelas suas surtidas agressivas e a criança
quisesse ver nelas apenas considerações de sabedoria popular: teria por seu lado o direito, e de certa forma mesmo o dever,
{{Não há rosa sem espinhos!» Se de facto se vir a {{ovelha», a de se defender e de se mostrar resolutamente {{má». Mas é pre­
Rosa e os {{espinhos» como simples objectos ou puras metáfo- . cisamente desta possibilidade que o Principezinho se resguarda
ras retiradas da natureza, não se poderá compreender o que fa­ mais do que convém, e é como se assim quisesse exprimir a
zem aqui, a não ser considerá-los mais uma vez como um bom raiva com que antes a mãe acolhera as suas próprias invectivas:
exemplo da {{curiosa» imaginação de uma criança {ánocente». « Estás a confundir tudo . . . a misturar tudo!»6 Com efeito, se ele
Mas não restam dúvidas! Trata-se de descrever o conflito e a ousasse revelar as suas dúvidas sobre o carácter bom e irre­
ambivalência de uma relação humana essencial, e o carácter preensível da mãe, toda a simbiose entre os dois ficaria em
aparentemente anódino desta descrição apaga-se quando se perigo. Tem então de procurar explicações que a livrem de
percebe que a pessoa de que fala esta criança, mesmo se de for­ qualquer suspeita. Se não, ficaria imediatamente incluído na
ma codificada, é aquela que ela ama acima de tudo, e que não categoria das maldosas <{pessoas crescidas», tão abominavel­
pode ser senão a mãe - todas as outras hipóteses não teriam mente insensíveis, superficiais e vaidosas. Deixaria de ser o
qualquer correspondência com a situação do Principezinho: a «querido principezinho» de sua mãe, a criança de ouro, o filho
da sua infância. Se se estabelecer a relação entre a pergunta
do rei que o próprio Saint-Exupéry desenhou, com a sua gi­
que coloca e a mãe, imediatamente se detecta um extraordiná­
gantesca espada que baixa delicadamente e o seu manto azul
rio sinal de alarme e se compreende o que leva o problema a
adquirir aos seus olhos um valor infinito: porque é que a rosa forrado de vermelho no qual a mãe o esconde como no seu
tem espinhos?, ou, por outras palavras, porque é que uma mãe, ventre, ela, a rainha do céu vinda de outro planeta - a exacta
globalmente tão amorosa e digna de ser amada, pode ser tão contrapartida, a réplica positiva da gigantesca jibóia7 -, uma
«espinhosa» e «agressiva», e possuir tantas «farpas». Ela, que imagem que deve parecer o mais «terna>> possível, mas cuja
é aliás tão «bela» que apetece passar o tempo a dar-lhe festas e conservação sai cara: ele tem de defendê-la constantemente
mimos, quando menos se espera pode «ferir» de forma sur­ contra as suas próprias observações, e a amnistia geral que lhe
preendentemente deslocada. Porquê? concede pelos seus espinhos equivale a afirmar de uma vez por

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todas que ela é «apenas» fraca, sem maldade, desarmada e per­ No planeta do Principezinho, há toda uma série de perigos
dida. Compete-lhe portanto, a ele, Principezinho, velar por po ssíveis e, no entanto, nenhum deles se confirma. Os «em­
ela, abrigado no manto da sua rainha, ser o combatente valo­ bandeiras»? Por outras palavras, o risco de o Principezinho se
roso capaz de lutar para protegê-la e defender a sua honra - tornar demasiado orgulhoso, impertinente ou pretensioso foi
duplo papel duma extrema exigência, em que, para preservar o conjurado há muito tempo, pela monda quotidiana. O tigre?
seu amor, a criança, de protegida, passa a protectora, em que Não é provável que ele exista nalguma parte do planeta nem
tem afinal de fazer de esposo. que o próprio Principezinho se torne demasiado agressivo ou
brutal 1 1 • Não se verifica a existência de qualquer perigo, a não
Temos portanto de supor que os relatos do Principezinho ser que - depois de uma longa separação - ele regresse ao
relativos ao planeta da Rosa são, nos seus mais pequenos por­ planeta com a sua «ovelha».
menores, recordações codificadas da infância de Saint-Exupéry. O símbolo da «ovelha» é também ele bastante ambíguo e
Facto singular é a Rosa só relativamente tarde aparecer no pla­
só tem sentido se associado à relação de Saint-Exupéry com a
neta. Até aí, o Principezinho vivia manifestamente numa uni­
mãe - caso contrário, tornar-se-ia absurdo. Porque o Princi­
dade sem falhas com a mãe, e, nesse contexto, as imagens esfé­
pezinho sabe, obviamente, que uma «ovelha» é tão «burra» que
ricas do planeta, tal como o escritor as desenha, parecem
pode «Comer» uma Rosa. Por que diabo teima então em levar
fantasmas de bebés simbolizando a sua necessidade de ser pro­
uma para o seu «planeta»? Porque tem de ser o Aviador a dese­
tegido e amado8. Nesta época, a mãe não existe ainda numa
nhá-la, quando ele próprio o poderia fazer? E como é que um
verdadeira relação a dois, mas já é preciso respeitar de forma
simples desenho devoraria uma Rosa? É evidente, dir-se-á, que
muito precisa certas exigências de limpeza anal e de ordem: a
limpeza do vulcão9. Só num segundo momento, a mãe surge estas perguntas são típicas de «pessoas crescidas», e poder-se-ia
na forma de Rosa, a um tempo desprotegida e repleta de espi­ responder que, para uma criança, o desenho de uma ovelha é
nhos, e há várias razões para pensar que o que se esconde por de facto uma ovelha, mas com isto apenas negamos o carácter
detrás deste acontecimento, que durante anos determinará a insólito da cena: não o explicamos. A verdade é que, para po­
vida do Principezinho, é a morte do pai, que ocorreu quando der continuar a viver junto da mãe, o Principezinho tem de
Saint-Exupéry tinha apenas quatro anos1 0 - aliás, uma idade deslizar para o papel da «ovelha». Em caso de conflito seria ele,
do desenvolvimento psíquico subsequente à resolução do com­ e nunca ela, a declarar-se culpado. Para permanecer «inocente»
plexo de Édipo em que as relações, as ambivalências e os con­ como um cordeiro, tem de transformar-se em animal: assim,
flitos entre um rapaz e a mãe imprimem um cunho particular de cada vez que não compreender a mãe, com os seus «espi­
na personalidade nascente, determinando rodo o comporta­ nhos», as suas pretensões, será devido à sua própria «burrice»;
mento posterior. A partir daqui, é em todo o caso fácil de en­ de cada vez que ela o magoar, ele saberá que foi por causa da
tender o clima reinante no planeta da Rosa: a melancolia e a sua impertinência e do seu descaramento - e é por isso que a
solidão, a exclusividade e a admiração cheia de ternura com «ovelha» precisa tanto de um «açaime»: este deve impedi-la de
que o Principezinho se entrega à Rosa, bem como a imensidão comer a Rosa, do mesmo modo que a «jibóia» comera o «ele­
do seu sentimento de ser responsável por ela e de ter de «pro­ fante» 1 2 • Esta «inversão» do pensamento de uma criança exige
tegê-la». A única questão que resta é saber porque (ou contra o da sua parte um esforço considerável que a partir de agora a
quê) precisa a Rosa de se defender ou de ser defendida. impedirá definitivamente de ser simplesmente uma «criança».

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lmpor-lhe-á uma responsabilidade em que a maioria dos adul­ lher, e por muito vaidosa e pretensiosa que lhe pareça, não
tos falham. Em contrapartida, Saint-Exupéry soube realmente deixa de suscitar nele um fascínio que se pode considerar sen­
conduzir a bom termo, até um certo limite, esta pequena obra­ sual e uma admiração estupefacta. Também esta impressão jo­
-prima da infância: conseguiu absorver desmesuradamente o ga fortemente a favor da ideia de que o desabrochar da Rosa
pensamento de uma criança, a fim de poder permanecer o me­ está estreitamente ligado à experiência de Saint-Exupéry du­
nino de sua mãe. Ele pede ao Aviador que «desenhe» ao Prin­ rante a primeira fase do desenvolvimento da sua sexualidade
cipezinho uma «ovelha», uma ovelha «sem chifres»13, capaz infantil.
de proporcionar à mãe uma dupla alegria: não se tornar apesar Porém, o dilema particular que a relação mãe-criança colo­
de tudo demasiado velho, ou seja, não tomar uma atitude me­ ca na sua vida não é essencialmente de ordem sexual. Há sem
lancólica, triste, doentia, de pessoa crescida, e dever acima de dúvida nos seus escritos suficientes descrições da mulher fatal,
tudo a sua existência de sonho ao simples facto de permanecer com traços lascivos e desprezíveis, a um tempo sedutora e an­
protegido na «caixa», longe da vigilância materna. O pesadelo gustiante, e estas imagens só a custo serão compensadas pelo
da jibóia que devora o elefante transforma-se, na cena seguin­ estereótipo da mulher-mãe17; seria aliás inútil procurar na sua
te, em desejo explícito, em necessidade clara e nítida, e o único obra um único lugar onde houvesse mais que um esboço de
problema que se mantém é saber como açaimar o «focinho» da diálogo entre homem e mulher. O essencial, no entanto, pelo
«ovelha» - um único momento de distracção poderia ser fatal menos tendo em conta a impressão deixada pel' O Principezinho,
para a Rosa14• Esta passa a ser a maior inquietação e a maior não é a temática edipiana propriamente dita, mas, do lado da
angústia do Principezinho, a que ele deve consagrar toda a sua mãe, a tonalidade bastante depressiva de rodos os seus impul­
atenção. A horrível possibilidade, sempre ameaçadora, de ma­ sos, das suas mais estranhas e incompreensíveis expectativas, e,
tar a frágil Rosa, a pobre mãe, com uma simples palavra desa­ do lado do Principezinho, a invasão contínua do sentimento
jeitada é afinal pior do que a sua própria morte, pois, com ela, de culpa e a abundância das censuras que se faz a si mesmo.
seria como se o mundo inteiro morresse e rodas as estrelas se A Rosa gosta de tomar o pequeno-almoço mal acorda, e o
apagassem15. Graças a Deus que existe em Saint-Exupéry uma Principezinho deve pôr-se imediatamente ao seu serviço, com
última instância que coloca o Principezinho em segurança e o o «regador de água fresca». Ela vai-lhe dando instruções num
consola: a Rosa não se encontra realmente em perigo; mas só tom extremamente grave, aristocrático, afectado - cada acto
na condição de ter cuidado com a ovelha e de lhe colocar um de insubordinação parece um verdadeiro atentado à sua majes­
«açaime»: uma única «burrice» saída da sua boca e seria a mor­ tade. Esta singularidade da Rosa choca ainda mais se nos lem­
te da Rosa. brarmos que Saint-Exupéry permite ao seu Principezinho apro­
As nossas descrições posteriores da Rosa apenas virão con­ veitar todas as ocasiões propícias para troçar da vaidade oca e
firmar em pormenor a justeza desta reconstrução edipiana do das pretensões absurdas das «pessoas crescidas». É só aqui, a
mundo do Principezinho. Quando aparece, ao «nascer do Sol», propósito da Rosa, que o mínimo esboço de crítica lhe morre
tal Nefertem - o deus egípcio «que sobe dos caniçais»16 -, a nos lábios, abafado em germe. Como evitar a impressão de que
Rosa apresenta-se em rodo o seu esplendor e, com uma lenti­ ele não faz mais que projectar violentamente nas «pessoas cres­
dão sedutora, procede à sua toilette da manhã. O Principezi­ cidas» que o rodeiam uma boa parte do desprezo que deveria
nho descobre pela primeira vez a beleza da mãe enquanto mu- desde o princípio votar-lhe a ela? Mas submete-se à censura do

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«açaime» - um deslocamento da crítica que, ao garantir a cretizável, mas que adquire um carácter desmesurado e totalitá­
protecção da mãe, apenas serve para prolongar o sentimento de rio: o amor incondicional. O que ela tenta reprimir antes de
culpa do filho em relação a ela. m ais é a possibilidade de ver surgir a seu lado alguma coisa
A Rosa mostra-se particularmente sensível às «correntes de que pudesse igualá-la, ou mesmo ultrapassá-la, e de ca�a vez
ar», poder-se-ia dizer às variações atmosférias, e isto adquire que ela imagina o Principezinho a dar atenção a outra cnatura
quase as proporções de uma tragicomédia quando o Principezi­ m ostra-se pronta a reinsuflar-lhe o sentimento de culpa de po­
nho tem de lhe arranjar um «biombo», uma «redoma», para tencial assassino. De nada serve ao Principezinho perceber que
protegê-la do frio. Para evitar que a mãe se constipe ou se in­ os depressivos ataques de tosse da Rosa, ou seja, as suas censu­
comode, a criança deve velar por ela garantindo-lhe constante­ ras de ser «frio», sem «amor», «infiel» e «ingrato»21, não passam
mente um espaço fechado, sem que no entanto compreenda afi nal, mais uma vez, de um meio de ver assegurado o seu po­
por que razão tem de ser assim. É certo que a Rosa procura der e a sua influência; ele não se sente menos culpado por isso,
justificar essa sensibilidade explicando-lhe a sua origem singu­ e este sentimento envenena profundamente a relação com a
lar, mas ele nota que se trata apenas de uma astúcia com o ob­ mãe, dada a sua intensidade e proximidade.
jectivo de deixá-lo ficar mal. No entanto, nem sequer contra Para continuar a viver com uma tal Rosa-mãe, prossegue o
isso pode objectar: tem de se adaptar aos seus humores e um Principezinho, só teria uma solução: evitar levar muito a sério
simples acesso de tosse é o suficiente para lhe infligir remorsos os seus propósitos; devia simplesmente ignorá-los, ou ver neles
e o sentimento de ter falhado18• A imagem da jibóia e do ele­ apenas um capricho. Em lugar de lhes dar importância, me­
fante, cujo significado parecia de início tão vago, ganha agora lhor seria que só se lembrasse da delicadeza e do encanto que
todo o sentido. emanavam dela. Devia ter percebido que as censuras e as de­
Assim, estabelecidas as condições - a mãe tem sempre ra­ pressões eram uma forma de exprimir a sua «ternura» e o seu
zão, mesmo quando se engana; quem contradiz a mãe é uma «amor»22. Todavia, para poder sentir tudo isto, seria necessário
«ovelha»; cada desacordo é para ela uma ofensa mortal -, as relacionar-se com ela livremente, com toda a independência.
dificuldades do Principezinho com a sua Rosa são a priori in­ Nenhuma criança, por muito tempo que permaneça como tal,
solúveis. No planeta da Rosa, por mais voltas que se dê, não se seria capaz de fazê-lo, e é por isso que o Principezinho resume
conseguirá nunca ultrapassar o sentimento de que, não obstan­ a tragédia da sua relação com a Rosa nestas palavras comoven­
te toda a boa vontade, nada do que se faça será bem feito; e tes: «Mas eu era jovem de mais para saber amar.»23 Nunca se
ela, a pobre Rosa, não só tem «espinhos», como verdadeiras sente tanto a necessidade de ser amado pela mãe e de amá-la
«garras de tigre»19: ela ameaça deixar-se morrer, chantagem como na infância; quando se tem por mamã uma Rosa, em
destinada a confundir mortalmente o Principezinho20. Para quem só pode ver-se uma «pura contradição» - tal como Ril­
uma criança, não pode haver pior acusação do que ouvir que o ke, referindo-se à mãe, mandou escrever no seu próprio túmu­
seu comportamento insatisfatório contribuiu para a morte da lo à guisa de epitáfio24 -, o dever de amar é a longo prazo
mãe; seria preferível ver-se impedido do direito de viver do impossível de cumprir; em cerras circunstâncias, resta apenas
q ue fazer q ualquer coisa susceptível de lhe valer est a censura. fugir como de um perigo mortal . É o que faz o Pri n cipezinho,
Mas, mais uma vez, para escapar à ameaça de morre, a Rosa para afinal vir a descobrir mais uma vez que mesmo na fuga, e
exige do Principezinho algo que não é nem definível nem con- j ustamente por causa dela, apenas experimenta um senrimenro

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reforçado de culpa. Não lhe resta nenhum meio de escapar à rem orso e uma enorme tristeza, e é a própria Rosa que tem de
vingança invisível da serpente e às garras de tigre desta mãe. pressioná-lo para pôr fim ao doloroso «adeus». A sua «permis­
Assim, mal o Principezinho passa do protesto mudo à pre­ são» e mesmo o seu desejo de que encontre a felicidade, inde-
paração da sua partida, a Rosa mostra-se surpreendentemente . p endentemente dela, ligam-no mais solidamente à pobre Rosa
corajosa e desinteressada, como nunca o foi. É verdade: ela do que até então o tinham feito todas as censuras e reservas
amou o Principezinho mais do que tudo, ela deseja tanto vê-lo mais explícitas: não poderá agora deixar de se sentir perseguido
feliz25, e não era este o resultado que esperara de todas as suas pela dúvida de saber como ela está, e se sofre. Terá a partir de
dores de cabeça e discussões. No entanto, agora que ele tenta agora de fornecer uma justificação para a sua decisão e encon­
separar-se dela, seria quase um alívio continuar a ouvir as suas trar de facto no estrangeiro felicidade e sucesso, sob pena de
queixas e censuras - pelo menos, retrospectivamente, isso acrescentar uma nova dor à sua Rosa, quando a generosidade
constituiria de certa forma uma desculpa e uma j ustificação da sua renúncia lhe foi já tão penosa; e mesmo a felicidade que
para a cruel decisão de deixá-la só -, em vez da «suavidade possa vir a obter será envenenada pelo sentimento de falha,
calma»26 que mostra justamente nesse momento e que só po­ por tê-la comprado ao preço do pranto, talvez até da vida da
derá funcionar como uma nova censura. Será efectivamente es­ sua Rosa.
se o efeito. A Rosa, que até aí soubera tão bem fazer recair Pode verificar-se a justeza de todas estas análises subjacen­
unilateralmente todo o peso da culpa no Principezinho, mos­ tes história do Principezinho, se se proceder ao exame lógico
à
tra-se de repente capaz de reconhecer que também ela é res­ das notas - aparentemente dispersas mas no seu conjunto
ponsável pelo trágico falhanço da relação e de se culpar final­ bastante esclarecedoras - relativas ao planeta da Rosa, sobre­
mente a si própria, e não apenas o Principezinho27• No tudo se se interpretar o seu valor simbólico numa perspectiva
entanto, não só este acto de arrependimento chega demasiado psicanalítica. Descobre-se então no livro o relato codificado de
tarde, como é combinado de forma tão hábil que vem retirar uma infância muito pouco «cor-de-rosa», uma espécie de ajuste
toda a legitimidade à tentativa do Principezinho. Quando se de contas com uma mãe-rosa amável e dolorosa que, de forma
prepara para voltar-lhe as costas, ele, que sempre se sentiu cul­ semiconsciente ou totalmente inconsciente, não deixou nunca
pado pelas suas «burrices», acaba por experimentar um senti­ de marcar e influenciar o seu autor; é como se ele procurasse
mento de culpa mais forte do que nunca, pois é nesse preciso encontrar a solução justa e equitativa para um perpétuo dile­
momento que a mãe decide mostrar-se gentil, desinteressada, ma. É certo que tudo isto se faz de forma etérea e codificada,
humilde e sobretudo cheia de compreensão para com a sua como se devêssemos apenas entrever as coisas, mas nunca no­
atitude. Com efeito, ela percebe muito bem que não pode meá-las. Saint-Exupéry sublinha por diversas vezes que o seu
haver borboleta sem lagarta28; dito de outra forma, ela aceita Principezinho não traz solução para as questões que se lhe co­
o afastamento do Principezinho como uma etapa obrigatória, locam29, o que é realmente verdade numa primeira abordagem.
comparável à da crisálida, e tolera toda a sua dureza com uma Mas precisamente porque O Príncipezínho tem por tema o
paciência e uma compaixão comoventes. Como podia o Prin­ mistério da mãe, o qual se manifesta através de sentimentos
cipezinho deixar de se sentir culpado, se despreza o sacrifício de culpa, angústias e conflitos ambivalentes sempre impossíveis
que a Rosa faz com tanta grandeza e tanta bondade e man­ de exprimir, é preciso recorrer a uma concretização simbólica que
tém o seu plano de fuga! Com efeito, ele sente um profundo esconda à consciência o que ela não pretende ver, mas que, ob-

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.::-·

jectivamente, acaba por dizer mais do que seria possível confes­ seu Principezinho as inquietações, os sentimentos de culpa, as
sar à luz do dia. É afinal enquanto personagem simbólica, en­ angústias e as obrigações que experimentou em relação à mis­
quanto imagem, que o Principezinho, pela sua mera existência, teriosa Rosa, não sendo esta outra senão a sua mãe. É que, fe­
responde a todas as perguntas consideradas relevantes em psi­ lizm ente, conhecemos as Cartas que lhe escreveu ao longo de
canálise. Toda a arte consiste em fazer as perguntas «certas», ou m ais de vinte anos. Ora, mesmo admitindo que um meridio­
seja, em simpatizar com os sentimentos de que nos dá conta nal possa recorrer a um estilo mais delicado e poético que o de
de forma a não considerar um único pormenor como supér­ qualquer criança, adolescente ou adulto do nosso país, não dei­
fluo, heterogéneo ou contraditório. Assim, esta obra, a mais xa de causar surpresa verificar até que ponto estas cartas reflec­
célebre e a mais importante de todas as que escreveu, diz-nos tem constantemente os mesmos sentimentos de inquietação,
mais sobre a maravilhosa criança, tão profundamente ferida, tris teza, desejo de protecção, responsabilidade, dependência e
que foi o próprio Saint-Exupéry, do que todas as biografias ou pretensa fidelidade em relação à mãe - isto durante vinte
monografias relativas ao imortal escritor admirado por milhões anos, e sem que o tempo de formação, a profissão, o casamen­
de leitores. to ou a guerra alterem seja o que for. Ora, são exactamente es­
tes mesmos sentimentos que o Principezinho expressa ao des­
No entanto, poder-se-ia ainda objectar, será que todas estas crever a sua relação com a Rosa. Para que seja mais fácil obter
tentativas psicanalíticas de reconstrução e de interpretação não uma imagem do laço que uniu Saint-Exupéry à mãe durante
assentam em preconceitos e pressupostos teóricos insuficiente­ roda a vida, o melhor será citar alguns excertos desta corres­
mente fundados? Não se estará talvez, «mais uma vez», a mer­ pondência, sempre com a indicação da data. A primeira carta
gulhar algo de humanamente grandioso na lama dos «fantas­ foi escrita aos vinte e um anos e a última aos quarenta e qua­
mas edipianos»? O que garante, ao fim e ao cabo, a justeza tro. Entre as duas decorre metade da vida do escritor. Ora, du­
deste tipo de interpretações? rante todo este tempo, a sua relação com a mãe permanece
Até aqui, sublinhemo-lo, tudo o que dissemos sobre a rela­ inalterada e inalterável: suplicante e respeitador, arrependido e
ção do Principezinho com a Rosa foi exclusivamente baseado mortificado, desejoso de protecção e de proteger, sedento de li­
na leitura do livro - sem recorrer a quaisquer outras informa­ berdade e de regressar a casa. Uma relação permanentemente
ções biográficas e autobiográficas. Aliás, importa lembrar que carregada de tal ambivalência que oferece o mais significativo e
numerosas passagens da narrativa seriam puramente acidentais, impressionante comentário das «dificuldades» e das «responsa­
incompreensíveis ou apenas ridículas se não fosse possível mos­ bilidades» do Principezinho para com a sua Rosa. Se não, veja­
trar a sua ligação interna: elas só se tornam inteligíveis e coe­ mos:
rentes quando se desvenda o seu sentido a partir de uma pro­ Mamã, estou a reler a sua carta. Parece-me tão triste e tão cansada - e
blemática central única. Este critério da coesão e do acordo ainda por cima censura o meu s i lêncio. Eu escrevi, mamã! Parece-me triste
interno é um argumento com peso suficiente para estabelecer a e fico preocupado consigo [ . . .] Um beijo do tamanho do meu amor, para si,
justeza das interpretações que propusemos. m i n ha mamãzi n ha 511 ( 1 92 1 )
No entanto, para aqueles que vêem a psicanálise com cep­ Também sonho muito consigo c lembro-me de uma data d e coisas suas do
ticismo e dúvida, dispomos de outro meio para justificar a tempo em que eu era menino. E o coração dilacera-se-me por tê-la magoado
nossa hipótese de que Saint-Exupéry projectou realmente no tanras vezes. - Acho-a rão requinrada, se soubesse, mamã, e a mais subtil das

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«mamãs» que eu conheço. E merece tanto ser feliz e também não ter um rapa­ nada poder fazer por s i que isso m e tornou aborrecido e triste e não soube ser
gão sujo que grunhe e grita o dia todo. O que diz, mamã?31 ( 1 92 1 ) cerno. - Mas diga, minha mamãzinha, que povoou a minha vida de doçura
como mais ninguém poderia fazê-lo. E que é a mais «refrescante>> das lembran­
Preciso tanto de si como quando era pequenino. O s ajudantes, a disciplina ças, a que mais me anima. E o mais pequeno objecto seu aquece-me o cora­
militar, o curso de táctica, tantas coisas secas e azedas. Imagino-a a arranjar as ção: a sua camisola, as suas luvas, é o meu coração que protegem.36 ( 1 927)
flores da sala e começo a odiá-los, aos ajudantes. - Amanhã, de avião, vou fa­
zer pelo menos cinquenta quilómetros na direcção de casa para imaginar que Em Mans, quando estávamos deitados, às vezes a mamã cantarolava lá em
vou ter consigo. - Como fui alguma vez capaz de a fazer chorar? Quando baixo. Isso chegava até nós como ecos de uma grande festa. Assim me parecia.
penso nisso, sinto-me tão infeliz. Fiz com que duvidasse da minha ternura. A « melhor» coisa, a mais serena, a mais amiga que alguma vez conheci foi o
E no entanto se a pudesse imaginar, mamã. - A mamã é o que há de melhor fogãozinho do quarto de cima de Saint-Maurice. Nunca nada me tranquilizou
na minha vida. Esta noite tenho saudades de casa como um miúdo! Pensar canto quanto à existência. Quando acordava à noite, ele ronronava como um
que aí a mamã anda e fala, e que poderíamos estar juntos, e que não aproveito pião e fabricava sombras amigáveis na parede. Não sei porquê, pensava num
a sua ternura, e que também não sou um apoio para si. - É verdade que esta caniche fiel. Este fogãozinho protegia-nos de tudo. Às vezes, a mamã subia,
noite estou triste e choro. É verdade que a mamã é a única consolação quando abria a porta e encontrava-nos envolvidos num agradável calor. Ouvia-o ronro­
estou triste. Quando era miúdo e regressava com a minha velha pasta às costas nar a roda a velocidade e voltava a descer. Nunca tive outro amigo assim. -
a soluçar por ter sido castigado, lembra-se, em Mans? - só abraçando-me O que me ensinou a imensidão, não foi a Via Láctea, nem a aviação, nem o
conseguia fazer-me esquecer de tudo. A mamã era um apoio todo-poderoso mar, mas a segunda cama do seu quarto. Era uma sorte maravilhosa estar

contra os vigilantes e os prefeitos. Tinha-se o sentimento de estar em seguran­ doente. Tínhamos vontade de adoecer, alternadamente. Era um oceano sem li­
ça em sua casa, estava-se em segurança em sua casa, era-se totalmente seu, era mites a que a gripe dava direito. Também havia uma chaminé viva. - Quem
bom. - Pois bem, agora é a mesma coisa, é a mamã o refúgio, é a mamã que me ensinou a eternidade foi a menina Marguerire. - Não tenho a certeza de
sabe tudo, que faz esquecer e, quer se queira quer não, a gente sente-se um ra­ ter vivido depois da infânciaY ( 1 930)
pazinhoY ( 1 922)
Chorei ao ler a sua carrinha tão sensata, quando chamei por si no deserto.
Estou tão triste por vê-la sofrer [ ...] Bem sei que deveria ter toda a con­ Tinha-me revoltado contra a partida de rodos os homens, contra este silêncio,
e chamei a minha mamã. - É terrível deixar para trás alguém que precisa de
fiança em si e contar-lhe os meus males, para que me consolasse como quando
eu era menino e lhe relatava rodos os meus desgostos. Sei que ama o grande nós como Consuelo (a mulher de Saint-Exupéry] . Sente-se a imensa necessida­
diabrete do seu filho.33 ( 1 923) de de voltar para proteger e abrigar, e arrancam-se as unhas nesta areia que nos
impede de cumprir o nosso dever, e poderíamos mover montanhas. Mas era de
Abdico de tudo nas suas mãos, é a mamã quem falará aos poderes superio­ si que eu precisava; cabia-lhe a si proteger-me e abrigar-me, e chamei por si
res e tudo correrá bem. Sou como um rapazinho agora, refugio-me ao pé de com um egoísmo de cabritinho. - Foi um pouco por Consuelo que regressei,
si.34 ( 1 923) mas é por si, mamã, que se regressa. A mamã, tão frágil, sabia-se a tal ponto
anjo da guarda, e forte, e sábia, e tão cheia de bênçãos, que é a si que lhe reza­
Não recebo carta sua há já um mês. E no entanto escrevi bastante, e isso mos, a sós, à noite?38 ( 1 936)
magoa-me. Teria sido tão bem acolhida aqui uma palavra sua, porque a minha
mamãzinha é a grande ternura do meu coração. É quando estou longe que ve­ Desejo tanto poder abraçá-la dentro de alguns meses, minha mamãzinha,
jo que as amizades são um refúgio, e uma palavra sua, uma lembrança sua cu­ minha velha mamã, minha terna mamã, no cantinho do fogo da sua lareira, e
ram a minha melancolia.35 ( 1 927) dizer-lhe tudo o que penso, conversar consigo contradizendo-a o menos possí­
vel [ . ] escutar o que rem para me dizer, a mamã que teve razão em rodas as
..

A mamã é o bem mais doce do mundo [ ] . Minha pobre mamãzinha que


...
coisas da vida. - Minha mamãzinha, gosto muito de si:39 ( 1 943)
está tão longe. E penso na sua solidão [ ...] Quando eu voltar, poderei ser um
filho como sonho ser e convidá-la para jantar e fazer-lhe rodas as vontades, Encontramos nesta última carta uma vez mais o problema
pois quando veio a Toulouse, foi tão grande a tristeza e a pena que senti por da ((ovelhinha» e do seu ((açaime», o da Rosa que tem sempre

88 89
razão em tudo pelo simples facto de que deve ter razão; além
disso, estas cartas são uma clara ilustração da importância que
Saint-Exupéry dava às ideias de dever e de fidelidade e docu­
mentam bem até que ponto dependia sentimentalmente da
«atmosfera» de bem-estar e do perfume exalado pela Rosa do
seu pequeno «planeta». Continua a ser evidente a forma como
toda a vida se manteve ligado a uma mãe cujas censuras me­
lancólicas lhe causam incessantes sentimentos de culpa e um
firme propósito, garantindo-lhe ao mesmo tempo a protecção
toda-poderosa da sua sensibilidade contra um mundo exterior 2. O segredo de Ícaro
tão desprovido de amor.
Vemos assim confirmadas as impressões relativas à nossa
análise de O Principezinho. Torna-se claro que é aqui que se A dependência infantil da mãe explica apenas um dos as­
encontra de facto o lado secreto de Saint-Exupéry, sempre es­ pectos da atitude de Saint-Exupéry, a sua face oculta. O outro,
condido do mundo exterior, mas que no seu livro se revela - visível aos olhos de todos e o mais admirado, é o do Aviador,
mesmo se de forma codificada - mais nitidamente do que em do pensador superior, audacioso, partindo à conquista do céu,
qualquer outra das suas obras: uma relação nunca resolvida e o do escritor, do crítico literário e do companheiro. Ora,

insolúvel com a mãe, com tudo o que ela comporta de ambi­ quando se louva o Aviador1 facilmente se esquece que é a par­
valência, exigências e sentimentos de culpa. Por outras pala­ tir deste papel que o autor propõe um ponto de vista que vem
vras, só é possível compreender o mistério central do Principe­ completá-lo, e mesmo salvá-lo: o do Aviador malogrado - é
zinho, o segredo da Rosa, relacionando-o com a mãe. assim que começa a narrativa. Para compreender exactamente
a simbólica desta personagem, deve-se portanto perguntar o
que anima o Aviador, ou, então, o que o impede aparentemen­
te de viver. Obtém-se assim uma espécie de imagem invertida
da personagem do Principezinho, e só o aprofundamento do
contraste e da tensão entre estas duas figuras permite entender
a um tempo a personagem e a obra do escritor, a sua verdadei­
ra estatura e a sua verdade. Só no interior da polaridade Avia­
dor-Principezinho se pode compreender por que razão as pro­
posições «proféticas» da sua «mensagem» nunca conseguiram
ultrapassar o horizonte melancólico dos desejos irrealizáveis e
se mostram de facto incapazes de tomar forma de garantia
tranquila.
Em psicanálise (como na crítica marxista da sociedade)
continua a reinar a tendência para interpretar as ideias espiri-

91
ruais como epifenómenos, como superstruturas de certos co m­ vés da simbólica da Rosa3, que esconde tanto quanto revela.
plexos psíquicos (ou de conflitos socioeconómicos). Pressupõe­
Este estado de coisas obriga por si só a concluir que o único
-se portanto que há um laço estritamente determinado entre a amor verdadeiro e contínuo que Saint-Exupéry alguma vez co­
«base» e a «superstrutura», como se os conteúdos espirituais
nheceu desde a infância foi o da Rosa e que nunca foi capaz de
fossem eles mesmos o «produto» de processos fundamentais in­
sentir consideração e amor por si senão no papel de crian�a
conscientes. É impossível negar que determinadas teorias e vi­
«fiel» , ainda não corrompida pelo mundo das «pessoas cresci­
sões da existência constituem ideologizações e racionalizações das», ao mesmo tempo que hesita pudicamente confessar, aos
que vêm mascarar e justificar realidades psíquicas (ou sociais) outros como a si mesmo, a importância da sua ligação à mãe.
que não se domina e que não se suporta. Mas, mesmo quando A narrativa de Saint-Exupéry denuncia ainda mais. O Prin­
se pretende - e é ainda um condicionalismo ideológico - cipezinho, que só ama a sua Rosa, chega a este mundo porque
explicar todas as convicções espirituais como algo de impró­ ela o expulsou do seu, pelo facto de ele ter ignorado as suas
prio, derivado, mascarado, não deixa de ser difícil generalizar exigências, e esta mesma contradição parece ainda bastante ca­
esta hipótese. Na verdade, não é a partir do conteúdo espiri­ racterística da sua pessoa. Acontece que os seus pensamentos e
tual em si que se poderá estabelecer um complexo psíquico (ou sentimentos não nascem apenas do laço que o une à mãe, com
social), mas são os absurdos, as rupturas de ideias e as contra­ rudo o que isso pode comportar de conservador, mas também
dições interiores que conduzem a uma convicção espiritual: são do medo que experimenta perante a perspectiva de vê-la enla­
eles que permitem entrever o complexo capaz de sustentar cer­ çá-lo como a serpente. Só assim se pode compreender o c�rác­
tos poritos de vista. Não é no espírito em si, mas nas suas in­ .
ter por princípio inacabado de tudo o que faz, a sua mqweta­
suficiências, deformações e caricaturas que se deve desvendar as ção espiritual, a vontade de dominar o desejo, a exaltaçã� da
consequências dos condicionalismos e dos recalcamentos psí­ dádiva e do sacrifício, bem como a aspiração à morte, particu­
quicos. Em relação à obra de Saint-Exupéry, isso significa que larmente nítida no fim da vida - uma forma de fusão com a
se pode compreender e apreciar de forma positiva a amplitude mãe impossível nesta vida, mas que sempre o atraiu, uma solu­
da visão espiritual da sua «mensagem» sem por isso fugir à ção literalmente «Utópica» de rodos os problemas e que fica ex­
questão de saber o que pôde em certa medida impedi-lo de pressa no regresso do Principezinho ao planeta da Rosa. Para
confiar nela o bastante para conferir outro sentido, que não o frisar bem esta relação, é em todo o caso indispensável con­
poético (metafórico), à herança religiosa que noutros lugares frontar esta narrativa com a totalidade da sua obra e da sua
defende tão apaixonadamente. . biografia, onde a fuga à mãe aparece como o tema central sem­
Nenhum leitor de O Principezinho pode deixar de ficar pre presente.
surpreendido com isto: muito estranhamente, rodo o discurso Saint-Exupéry entrou para a História como o poeta d�
que aí é defendido sobre o amor e a fidelidade não nos descre­ aviação, título plenamente merecido. O seu trabalho não foi
ve nunca uma verdadeira afeição senão a que liga o Aviador e uma mera profissão temporária, um simples emprego, mas
o Principezinho - portanto, sob uma forma quase «grega» de uma necessidade que dominou e marcou toda a sua vida. Foi
homossexualidade, de «pederastia>>, onde o Principezinho tem ele que o salvou das suas piores depressões4, vindo responder
o papel de Eros, o deus-criança2, princípio de um desejo sem na perfeição ao seu desejo de engajamento, à sua sede de ac­
fim. Não é nunca referido o amor de uma mulher, senão atra- tuar verdadeiramente. Foi ele que lhe permitiu aquele contacto
92 91
tão desejado com os companheiros que, como o escritor, se da mãe e, fugindo dos braços que o sufocariam, procura-o nos
sentiam «ligados» por servirem um mesmo dever5. Voar, com «companheiros», num grupo de homens unidos por uma tarefa
todas as relações que isso implica, representava para ele o mun­ co mum.
do masculino oposto ao da mãe. O Principezinho que nele A biografia de Saint-Exupéry esclarece efectivamente que o
morava, e que corria o risco de permanecer eternamente o be- ·
seu desejo de «companheiros» e de «amigos» se manteve insa­
bezinho da sua mãe, acabrunhado por sentimentos de culpa e tisfeito, estando muito mais ligado à necessidade de fugir da
de dependência, toda a vida se esforçou desesperadamente, tal Rosa do que a uma vivência real de proximidade e de laços
como o Aviador, por dar provas de independência e virilidade, humanos. Como todas as pessoas marcadas pela experiência in­
A luta contra os carinhos maternos, a busca de afirmação fantil de fusão com a mãe e cuja inteligência e sensibilidade to­
viril, a aspiração a uma comunidade de companheiros, a pro­ maram assim a forma de uma angústia inconsciente da mu­
cura constante de missões «verdadeiras», duras e exigentes atin­ lher7, ele vivia a sua emotividade, a capacidade de reflexão e o
gem muitas vezes um nível indubitavelmente marcado pelo sentido estético como tentações, como uma forma inquietante
masoquismo. E assim confessa numa das suas «cartas de guer­ de opressão, aplicando todas as suas forças em escapar ao mun­
ra»: «0 que quis antes de mais era o que não queria. A lama. do da mãe e alcançar um ideal tão «masculino» quanto possí­
A chuva. Os reumatismos na herdade. Os serões parados. vel; é com esta aspiração que faz os verdadeiros amigos. De
A melancolia de toda a inquietação dos dez mil metros. O me� forma similar, Friedrich Nietzsche, por quem Saint-Exupéry
do também. É claro. Tudo aquilo que se pede dos homens. sentia uma profunda admiração, tentara libertar-se do «ma­
E isso, para ser homem com os homens e voltar a viver com os triarcado» da juventude através de um «super-homem» imagi­
meus semelhantes, porque se me separo deles já não valho na­ nário, da filosofia do «acto»8; e, mais recentemente, Jean-Paul
da. Desprezo de tal maneira os espectadores, os que não arris­ Sartre esforçava-se por fugir da prisão materna estabelecendo o
cam nada na sua actividade.»6 postulado da liberdade absoluta, definindo a existência huma­
Não saberíamos exprimir melhor o desejo de escapar en­ na como «paixão inútil», procurando assim colocar-se como
fim ao gueto de uma existência mimada, de fachada, para po­ um em-si e um para-si semelhantes a Deus9• Em particular, o
der ser simplesmente um semelhante entre os semelhantes, ódio sartriano do «burguês», a vã tentativa de pertencer ao
Os «homens» - são aqueles que se recusam a vegetar num «proletariado», o inconsequente flirt com os operários da Re­
mundo artificial de prazeres vazios e conceitos ocos, são aque­ naulr, por exemplo10, e a permanente insatisfação em relação a
les de quem se espera a «vida», a «acção», o «sacrifício». Saint­ si próprio traem motivações, métodos e objectivos extraordina­
-Exupéry identifica naturalmente o «real» e o «humano» com o riamente semelhantes à vã busca de «companheiros» e de ho­
«esforço» e o «sacrifício»; e o carácter evidente desta equação mens «verdadeiros» que foi a do nosso autor.
deve-se sem dúvida à unidade de uma existência mimada pela No entanto, na sua vida, a perpétua fuga da mãe articula­
mãe, à castração ameaçadora e ao ódio latente de si mesmo. -se de forma menos «revolucionária» do que nos casos de
A vida «simples», contemplativa, «especulativa» , que noutras Nietzsche e de Sartre. Os sentimentos de culpa e a angústia
circunstâncias constituiria um ideal desejável e recomendável, é em relação à mãe sufocaram nele qualquer veleidade de insur­

recusada e desprezada como uma perigosa forma de preguiça. reição e impediram-no também de alguma vez pôr em questão
O que ele reclama afinal é um substituto do amor ambivalente quer o culto ilimitado e a admiração que lhe votava, quer a sua

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pessoa, quer os ideais ou os val ores que ela representava. à «mãe-serpente». Todos os símbolos confirmam o que negam
. e sign ificam ao mesmo tempo o que renegam. O «avião» é
O confluo entre uma cega tendência regressiva e o desejo an­
gustiante de seguir em frente conduziram-no a uma expressão tam bém um símbolo materno e, numa passagem de Piloto de
simbólica traduzida pela necessidade apaixonada de «voar». T0_ Guerra em que se descreve a si mesmo no assento de piloto co­
dos os seus biógrafos estão de acordo em afirmar que este dese­ rno uma criança no seio da mãe, torna-se evidente que tem
jo acabava por se tornar uma droga, uma droga que frequente­ perfeita consciência disso: «Toda esta confusão de tubos e de
mente o impedia até de admitir os limites e as leis da cabos se tornou rede de circulação. Sou um organismo anexo
aerodinâmica, e que acabou por adquirir um carácter devora­ ao avião. O avião fabrica o meu bem-estar, quando faço rodar
dor' ' · Tudo ind�c� que esta «sobreavaliação» do voo se alicerça tal botão que aquece progressivamente as minhas roupas e o
. rneu oxigénio [ ... ]. E é o avião que me alimenta. Tudo isto me
no sonho s1mbohco de voar, portanto no mais fundo de si
mesmo12, na tentação de escapar de forma fantástica à «terra­ parecia desumano antes do voo. E agora, amamentado pelo
-mãe» e ao seu «peso», na ilusão de uma independência sem li­ p róprio avião, sinto por ele uma espécie de ternura de menino
mites e de uma liberdade desembaraçada de todos os laços e de de leite.» 1 5
todas as constrições, no sentimento de uma superioridade ver­ Saint-Exupéry vai ainda mais longe quando compara deta­
tiginosa e de uma omnipotência quase divina, na embriaguês lhadamente a chegada da alimentação no cockpít da sua máqui­
da aventura, da audácia e da prova, no sentimento místico de na com a amamentação do bebé: «Basta apertar de vez em
fusão com o todo, na expectativa da façanha significativa. quando, com a ponta dos dedos, um tubinho de borracha liga­
Não faria muito sentido criticar a paixão de Saint-Exupéry do à máscara, para sentir se continua bem insuflado. Se há lei­
pelo voo lembrando que a elevação no espaço, por si só, não te no biberão. E biberona-se suavemente.»16
tem nada a ver com a grandeza de alma e a maturidade huma­ Assim, quanto mais se esforça para escapar à mãe mais se
na. «Voar» constitui um símbolo arquetípico, um sonho da hu­ sente interiormente ligado a ela, e este conflito entre a aproxi­
mani�a�e que traduz todas as aspirações ligadas ao espírito, à mação e o afastamento, entre a dependência e a liberdade, en­
supenondade do homem em relação à natureza. Poderíamos tre a segurança e a ruptura constitui, em termos psicanalíticos,
citar, por exemplo, o mito da serpente emplumada dos índios o fundo latente de todo o seu pensamento. Tal como Friedrich
da América Central em que o espírito domina a matéria e, im­ Nietzsche e Jean-Paul Sartre, embora de forma menos conse­
pulsionado pelo sopro divino, o terrestre se eleva ao céu 13. Os quente, Saint-Exupéry coloca o acto no lugar da felicidade, o
contos e sagas populares incessantemente nos falam da forma caminho em lugar do fim, a acção em lugar do ser e a vontade
como um homem se transformou em pássaro, para escapar a em lugar da razão, e nesta medida pode descrever-se o seu pen­
certas formas de dependência14, e da aspiração à liberdade, samento como uma única «elevação» espiritual em que a fuga
à inteligência e ao poder; ou seja, a recusa da dependência dos da mãe dá 1 ugar ao regresso a ela 17.
factos e a vontade de ultrapassar as complicações sentimentais
e � � úvida de si concretizam-se sempre no símbolo do pássaro É difícil captar, numa primeira leitura, toda a reflexão filo­
(dt_vmo) ou do homem-pássaro. Este é o universo psíquico do sófica que Saint-Exupéry quis propor através dos ensinamentos
. da Raposa e do Principezinho. Para isso, é necessário recorrer à
Avtador Samt-Exupéry.
E no entanto, dentro do seu «avião», não consegue escapar verdadeira lente de aumentar que é a Cidadela. Através deste

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livro pode compreender-se a importância e a radicalidade do se pode resumi-lo nesta fórmula geral incontestável: «Ü senti­
seu combate, o esforço empreendido, a luta constante e a ul­ do das coisas não reside na provisão arrecadada que os sedentá­
trapassagem perpétua de si mesmo, que encarou como um de­ rios consomem, mas no calor da transformação, da marcha, ou
ver sagrado em reacção contra as suas tendências regressivas. do desejo.»20
E é assim que o Caide do deserto afirma: «Chegou a altura de A tendência para assim absolutizar a sua crítica, em si mais
te falar da grande luta contra os objectos. [ ... ] Mas esses mes­ do que justificada, daqueles que se limitam a «fruir», dos que
mos diamantes iam cair no meio do luxo como missanga inú­ se deixam corromper pela facilidade do consumo, parece re­
til. E os que os adquiriam mostravam-se-me infelizes, amargu­ pousar muito menos na sua percepção da ascensão das massas
rados e divididos. Não é de um objecto que tu precisas, mas na nossa época do que na impressão guardada de uma _mãe
de um deus. [ ... ] Se o objecto tem algum sentido é o de te di­ que lhe deu tudo, mas que por isso mesmo tudo minou. E em
latar. E o que te dilata é a conquista e não a posse dele. [ ] ... reacção contra tal que vai perseguir o ideal de um pai ausente,
Mais rico é aquele que se esfola durante o ano nos rochedos e o mundo da «exigência» masculina21 . O próprio amor parece­
queima uma vez por ano o fruto do seu trabalho para dele ti­ -lhe perigoso quando (e porque) conduz a uma simples toma­
rar o brilho da luz, do que aquele que todos os dias recebe, da de posse. Ao dar a palavra ao Caide da Cidadela, ouvimos
vindos de outra parte, frutos que não exigiram nada dele.»18 mais uma vez o tom grave de uma crítica, bem fundamentada,
Sente-se nitidamente como Saint-Exupéry tenta com todas às formas burguesas do casamento misturado com o tom estri­
as forças lutar contra a forma como o estragaram, contra o mi­ dente do medo edipiano do amor, redução à escravatura, ne­
mo materno, e aí aplica toda a energia do desprezo que tem cessariamente carregada de conteúdos sádicos: «Ü vosso amor
por si mesmo. Já nenhum objecto parece possuir qualquer va­ tem na base o ódio, porque vos quedais na mulher ou no ho­
lor, desde o momento em que é produto de uma gratuitidade mem de que vós fazeis as vossas provisões. Começais a odiar,
maternal, e a alegria de o consumir - a qual combate como o como os cães que rondam à volta da gamela, todo aquele que
vício essencial do nosso tempo - ou a destruição de todos os namora a vossa refeição. Vocês chamam amor a esse egoísmo
valores pelos vendedores de pílulas contra a sede19 dificilmente da refeição. Apenas o amor vos é concedido, converteis mais
provocariam tal exasperação se ele não tivesse aí identificado uma vez esse dom livre (o mesmo fazeis com as vossas falsas
um perigo cujos traços descobriu no mais profundo de si mes­ amizades) numa servidão e numa escravatura e no mesmo ins­
mo: compreendeu que tudo o que a mãe, na sua bondade asfi­ tante em que vos amam começais a sentir-vos prejudicados.
xiante, lhe tinha dado lhe era fundamentalmente sonegado, E a infligir, para melhor dominar, o espectáculo do vosso sofri­
porque se encontrava desvalorizado, privado de sentido. Para mento. É verdade que sofreis. E é precisamente esse sofrimento
ele, só aquilo de que se sentiu a falta, o que se desejou com que me desagrada. Em que é que vós quereis que eu o admi­
paixão, o que se conquistou pelo próprio esforço, o que se pro­ re?»22
duziu com o trabalho pode ter um significado, possui grandeza Levada à letra, esta visão das coisas apenas reflecte a sua
e é causa de enriquecimento. Singular lição cuja evidência nos pura angústia de ter de aceitar seja o que for, de receber uma
escaparia se não estivéssemos a par desse l ado da sua vida que dádiva - portanto um receio expl ícito da própria carência.
foram os cuidados asfixiantes e o amor ansioso prodigalizados E é precisamente este o ponto em que tudo o que pode haver
pela mãe. Esta ideia domina a tal ponto o seu pensamento que de justo na visão de Saint-Exupéry sofre, devido ao seu medo,

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de exageros e do defeito da generalização do seu problema à do outro para encontrar o inteiro desenvolvimento da sua pró­
humanidade. Se é verdade que o «amor» causa sofrimento , pria pessoa. Mas, temendo a saturação que um único acto de
pois reivindica um direito absoluto sobre o outro, que é engo­ amor asfixiante poderia provocar, Saint-Exupéry insiste tanto
lido como uma «refeição», não se pode negar que consiste tam­ na oferenda de si e no empenhamento com vista à felicidade
bém em necessitar absolutamente do outro tal como do ar que do outro que isso acaba por tornar-se quase numa autodádiva
respiramos, para se ver completada uma falha ligada à própria auto-suficiente, numa irradiação de si em todas as direcções, à
finitude e imperfeição. Mas Saint-Exupéry recusa-se por prin­ semelhança do Sol. Distinguindo assim exageradamente o acti­
cípio a reconhecer que possa existir em si o mais pequeno ele­ vismo no seio de todas as relações humanas, acaba por fazer
mento de dependência, de aliança e de necessidade do outro. declarar ao Caide da Cidadela: «A pena do amor é sempre
De todas as vezes que a questão desta falha recíproca é coloca­ amor.»24
da, ele volta a deparar-se com a imagem caricatural do egoís­ Para aquele que procura viver desta ideia, a máxima vem
mo primitivo, do pensamento pretensioso, da preguiça parasi­ apelar afinal à substituição da experiência da felicidade do
tária, como se a situação reactivasse um sentimento infantil de amor pela exigência de uma tensão constante. Decerto que a
culpa perante a ideia de estar a «utilizar» o outro para seu pró­ Raposa do Principezinho não se engana: «Foi o tempo que
prio benefício, bem como uma angústia profunda diante do perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importan­
monstro de preguiça que é o embrião no ventre, onde não faz te.»25 Mas, no seu radicalismo absoluto, Saint-Exupéry confun­
mais que deixar-se transportar. de causa e efeito: o valor da Rosa não depende da soma de
Dado este fundo de angústia, até as ideias cristãs de amor cuidados e de sacrifícios que se lhe consagrou - é o inverso:
ao próximo e de perdão lhe parecem perigosas - como o pa­ nenhuma inquietação, nenhum sacrifício parece demasiado
reciam a Nietzsche -, declarando-as amolecedoras e decaden­ grande quando se ama realmente alguém. Só através do amor
tes: «Não começarei por pregar o perdão nem a caridade. Por­ se aprende de facto a conhecer o outro, mas, para o amar de
que poderiam ser mal compreendidos e não passarem de verdade tem de se aprender a descobrir e a sentir o valor abso­
respeito pela injúria ou pela úlcera. Mas pregareis a maravilho­ luto «com o coração». O Principezinho poderia com toda a
sa colaboração de todos através de todos e através de cada justiça declarar às cinco mil rosas do jardim: «Vocês são belas,
um.»23 mas vazias.»26 Porém, a transposição desta metáfora para o
Opondo de forma quase unilateral o facto de dar e o de amor humano seria falsa. Quando se trata do homem, é cho­
acolher, o de gratificar e o de receber, Saint-Exupéry cai inevi­ cante operar uma ruptura entre o interior e o exterior, entre a
tavelmente no perigo de fazer do amor uma ideia-limite, de beleza e o espírito, entre «a graça e a dignidade»27; pois forçar­
desvalorizá�lo como pura utopia. Para aquele que ama, a ama­ -se a fazer o papel de um homem que, na contenção do seu
da é como o ar que respira, como o mar que o transporta, co­ amor, poderia e deveria conferir valor e conteúdo a uma mu­
mo a luz que o aquece, e aquele que nega o carácter de neces­ lher semelhante a um recipiente vazio é roçar perigosamente o
sidade do amor destrói o seu sistema circulatório, que consiste desprezo ou, o que vem dar ao mesmo, roçar uma pura sobre­
numa permanente troca entre procura e descoberta, entre espe­ compensação de certos fantasmas de impotência. O essencial
rança e concretização, entre dádiva e dever. O amor vive da no amor não consiste em enriquecer o outro de significado
perpétua referência ao outro: cada um dos apaixonados precisa graças a uma certa dose de esforços; ele manifesta-se sobretudo

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pela arte de haurir o valor absoluto do outro e de ajudá-lo a decisão voluntarista, com todo o constrangimento prometeico,
desenvolver-se plenamente; pode então nascer o sentim ento bastante problemático, que implica, fá-lo correr o risco de so­
paradisíaco de reconhecimento pela sua existência. Não somos çobrar numa ideologia próxima do fascismo - ele, cujos sen­
nós que devemos conferir ao outro o seu conteúdo interior e 0 timentos e pensamento, de inegável humanidade e nobreza,
seu valor; mas é a beleza, o charme e a distância infinita da parecerem aliás tão opostos ao horror fascista. Porque é preci­
amada que conferem um novo centro ao mundo, remagneti­ samente a trágica aura do empenhamento e do fracasso, é a
zam o seu campo de forças e lhe restituem a sua perspectiva afirmação de Nietzsche: «Aspiro eu, porventura, à felicidade?
fundadora de sentido. Até a arte de «cativar» acabaria por so­ Eu aspiro à minha obra!»30, é este pathos de um accionismo e
çobrar na pura monotonia se a alma da amada não fosse ela de um voluntarismo pretensamente criador de sentido e funda­
mesma semelhante ao oceano que, em cada maré, traz à praia dor de valores que acabam na realidade por desvalorizar todas
as mais raras conchas e cujas vagas contam histórias de pérolas as coisas, todos os homens e cada indivíduo, reduzindo-o a
preciosas ou de maciços de corais ainda inexplorados no mais matéria bruta, pedra de construção de uma muralha ciclópica.
profundo dos mares. Descoberta do mistério infinito, alarga­ Em Voo Nocturno, onde já é manifesta toda a ambivalência
mento da alma a um sentimento oceânico de unidade e de do pensamento de Saint-Exupéry, Riviere está perfeitamente
eternidade: assim se pode descrever a verdadeira forma da aspi­ consciente de que a prestigiosa abertura da linha da Patagónia
ração do amor, e aqui reside exactamente o oposto da utopia ao correio aéreo pode exigir enormes sacrifícios em vidas hu­
nostálgica de Saint-Exupéry. man�s, e isto em total contradição com os interesses das mu­
Quando este fala de esforços, de constância e de responsa­ lheres e dos filhos e dos seus respectivos direitos sobre maridos
bilidade ao descrever o problema do amor, precisaria no fundo e pais31 • Mas de que serve este reconhecimento abstracto dos
de poder passar da decepção face à insuficiência humana para direitos das «mulheres» e dos «filhos», se logo a seguir se lhes
a experiência de todas as coisas. Para o nosso autor, não há na­ opõe as «pretensões» dos «homens» e das «pessoas crescidas»?
da, nem imagem no espaço, nem cerimonial no tempo, que Os conflitos podem tornar-se verdadeiramente trágicos quando
possua em si sentido e valor; ele apenas anseia, mediante um se é conduzido a assumir responsabilidades por algo de que
voluntarismo ascético, imprimir à força o cunho do sentido e ninguém gostaria de ser alguma vez responsável - de que só
do valor neste «material» sem vida. No amor, a liberdade pró­ haveria que pedir desculpa32• Mas tragédias deste género ape­
pria à descoberta do sentido deforma-se então em obrigação de nas poderiam emanar de uma dialéctica da própria moralidade
conferir um sentido pela acção e pelo sacrifício28. E é por isso e não, como em Saint-Exupéry, de um dualismo metafísico
que o Caide declara: «E a minha coacção é para te ajudar. dos sexos, a menos que se queira chamar «trágica» à própria
Obrigo os meus sacerdotes ao sacrifício, muito embora esses ambivalência testemunhada pelas contradições, carregadas de
sacrifícios já não tenham porventura sentido. Obrigo os meus angústia, na sua busca de virilidade e de humanidade. A «recla­
escultores a esculpir, mesmo que eles duvidem de si próprios. mação masculina» segundo a qual seria dever do homem afir­
Obrigo as minhas sentinelas a dar os cem passos sob pena de mar-se por uma atitude de ruptura, de luta e de acção só é
morte, de contrário vê-las-íamos já de si mortas, j á de si sepa­ compreensível se se conceber «vi rilidade, como a antítese de
a

radas do império. Eu salvo-as mercê do meu rigor.»29 uma atitude oposta, «feminina», a evitar, e que se define como
Quer Saint-Exupéry queira quer não, a sua «filosofia» da «conservadora», «protectora», «estática». No final de Voo Noc-

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turno já nem sequer importa a meta cuja concretização merece­ devoção que, na sua obra, Saint-Exupéry emprega o vocábulo
ria o sacrifício de vidas humanas: «Vitória. . . derrota . . . estas pa­ tradicional «Deus»; mas, tendo examinado o que lhe parecia
lavras não têm qualquer sentido. A vida está abaixo destas vazio ou santo na religião que herdou, verte nesta um novo
imagens e prepara já novas imagens. Uma vitória enfraquece conteúdo, por vezes exactamente contrário ao sentido do anti­
um povo, uma derrota acorda outro. A derrota que Riviere so­ go, muito mais próximo do ateísmo dum Nietzsche ou dum
freu é talvez uma escaramuça que torna próxima uma verda­ Sartre do que da imagem bíblica de Deus. Esta nova visão ali­
deira vitória. Só o acontecimento em marcha conta.»33 menta-se no essencial da angústia da morte por asfixia nos bra­
Este dinamismo da História permite ao fim e ao cabo jus­ ços de um Deus «maternal».
tificar tudo, inclusive a mística do nacional-socialismo. Se 0 Quando fala de Deus, é assim, na maioria das vezes, no
movimento da História precisa de vítimas humanas para se sentido do princípio da autotranscendência humana, da ultra­
afirmar num vaivém de derrotas e de vitórias, já não é possível passagem de si, da recusa da tranquilidade - no interior, seio
escapar a uma ideologia da História como esta, terrível, dos de perturbações, no exterior, cume dos cumes, para lá da mon­
Astecas da América Central, pela qual justificavam os seus san­ tanha a escalar; e defende-se com violência contra qualquer
grentos ritos de sacrifício: é preciso alimentar os deuses com vontade de estabelecer uma relação entre as representações hu­
carne humana para manter o dinamismo da era do «quádruplo manas de Deus - sejam elas da Bíblia, onde Deus aparece co­
movimento», que nasce da antítese entre a terra e o ar e entre mo uma «pessoa» cheia de «bondade», como um «Pai» - e o
o fogo e a água - símbolos originais das oposições entre o ho­ Deus absoluto, para além do homem. Não podemos deixar de
mem e a mulher34. Todas as formas de barbárie são possíveis, lhe dar razão quando afirma que é preciso encontrar os funda­
ou mesmo necessárias, se se aceita a repetição desta mitologia mentos do ateísmo moderno na humanização da noção de
da História. Na realidade, a mística do «sangue» e do «sacrifí� Deus (Nietzsche teria dito: na filosofia do cordeiro35). No en­
cio» é injustificável, e as hecatombes de que os deuses necessi­ tanto, este protesto contra as falsas seguranças da imagem cris­
tam para se manter são demasiado horríveis, em nada dignas tã de Deus condu-lo a renunciar globalmente às esperanças do
de admiração. Mas para se demarcar deste universo mistifica­ cristianismo. «Sempre que tu fraquejares na fé em Deus», ad­
dor, seria necessário primeiro libertar a experiência do amor, o verte o Caide da Cidadela, «se em vez de manifestares o desejo
mistério da mulher, do seu carácter de angústia obsessiva, sem de que Deus te apareça à maneira de um transeunte que te fi­
por isso o destituir do seu fascínio e do seu charme. E a ques­ zesse uma visita, o que na melhor das hipóteses te proporcio­
tão capital consiste afinal em saber como é possível entender o naria o encontro com um ser parecido contigo, um teu seme­
carácter «feminino» e «maternal» do fundamento original co­ lhante afinal, que não só não te levaria a parte alguma como
mo lugar de uma segurança não devoradora, como lugar da vi­ até acabaria por fechar-te na sua solidão, se em vez de quereres
da eterna. Trata-se afinal de saber em que Deus ou em que não a expressão da vontade divina mas feira e espectáculo, o
imagem de Deus acreditar. que quando muito te daria um prazer vulgar de feira (mas co­
mo reconhecer que o é?) acompanhado de uma viva decepção
Muito diversamente de Nietzsche ou de Sartre, que se de Deus, se em vez de pretenderes que qualquer coisa desça até
opunham à fé cristã no Deus-homem, desejando substituí-la junto de ti e passe assim pela humilhação de te visitar tal como
pela do super-homem, do homem-deus, é com parcimónia e és no andar em que estás, o que em última análise te deixaria

1 04 1 05
sem mais resposta do que a por mim obtida quando tive a des­ onde se poderia encontrar alguma coisa, mas simplesmente um
façatez de pedir contas a Deus, se em vez de tudo isso, meu sítio onde se pode descobrir que a peregrinação, a passagem da
amigo, despenderes o esforço da ascensão e subires a esse andar sua própria fronteira, é em si sem limites38. Porque, vendo
onde já não há coisas, mas laços divinos que as ligam, abrir-se­ bem, o que está em causa nesta «escalada», nesta «errância»,
-re-ão generosamente os impérios espirituais e deslumbrar-re- não é senão um objectivo a atingir; como em Sartre, o esforço
-ão essas aparições que são para o coração e para o espírito, e contínuo para se ultrapassar a si mesmo é no fundo nele uma
não para os olhos e para a inteligência.»36 fuga diante do sentimento da sua própria insignificância; é
Nada mais contraditório, sem dúvida, à ideia cristã de «re­ p ortanto na solidão total, quer em relação a «Deus» quer aos
velação» de Deus ao homem ou da encarnação de Deus no ho­ homens, que ele prossegue o seu caminho. «Glacial, Senhor, é
mem. Para Saint-Exupéry, não existe um Deus que venha ao por vezes a minha solidão», confessa o Caide da Cidadela. «No
encontro do homem para apiedar-se da sua miséria num mun­ meio do deserto do abandono cheguei a pedir um sinal. Mas
do de angústia e de desespero. Só há uma possibilidade para o tu iluminaste-me um dia, por meio de um sonho. Fiquei a
homem: a de se elevar até «Deus». Na linguagem do Caide: compreender que todo o sinal é vão. É que, se tu fosses da mi­
«Se eu desejasse ensinar-te Deus, começaria por te mandar tre­ nha ordem, não me obrigarias a crescer. E que haveria eu de
par às montanhas, até o cume de estrelas representar uma au­ fazer de mim, Senhor, tal como sou?»39
têntica tentação para ti. Para que as fontes te encantassem, Em Saint-Exupéry, esta vergonha perante a sua própria pe­
mandar-te-ia morrer de sede nos desertos. Depois mandar-te-ia quenez, esta constante insatisfação de si, esta angústia perante
seis meses britar pedra, para que o sol do meio-dia te aniqui­ a sua falta de «virilidade», este «complexo de castração», para
lasse. A seguir dir-te-ia: aquele que o sol do meio-dia esvaziou recorrer a Freud, ocultam-se certamente sob as vestes de uma
está na posse do segredo da noite vindoura; ele que trepe até linguagem quase religiosa de quem não acredita em nada para
ao cume de estrelas e mate a sede no silêncio das divinas fon­ poder tudo criar, e que não quer descansar em nada do que
tes. E tu acreditarás em Deus.»37 descobriu, para descobrir a sua grandeza na «elevação».
Para Saint-Exupéry, <<Deus», ou a fé em «Deus», só poderia E, no entanto, estaríamos a interpretar erradamente Saint­
resultar da experiência que o homem reclama para si, e porque -Exupéry se, ao mesmo tempo, em rodas as suas declarações
as coisas só revelam o seu valor mediante o empenho e o sacri­ mais radicais - que muitas vezes devem ser entendidas como
fício do homem, também «Deus» não poderia ser senão o resu­ meras antíteses -, não reconhecêssemos o seu contrário: sob
mo da realidade que o homem encontra quando se nega a si o peso da angústia e do desprezo que sentia por si próprio, esse
mesmo. Este «Deus» não responde a nenhuma das perguntas homem que, com uma determinação impiedosa, tentava esca­
do homem - não passa de um princípio que põe em questão par à essência «maternal» do mundo deixava-se ao mesmo tem­
rodas as seguranças humanas, rodas as maneiras de ser satisfei­ po fascinar pela recordação nostálgica do mundo da mãe. Foi
to. De certa forma, este Deus é como a Caaba de Meca, é ver­ profundo o seu sofrimento perante a destruição dos valores
dade que sem anjo Gabriel e sem mensagem do profeta Mao­ tradicionais da infância, e toda a sua aspiração foi sobretudo
mé: é apenas uma pedra negra, que não seria nada sem as de natureza conservadora. Não é possível penetrar no seu pen­
mãos que a tocam, sem o suor dos rostos, sem as preces dos samento e na sua obra, e muito menos nos seus propósitos so­
peregrinos que teriam atravessado o deserto - não um lugar bre «Deus», se se ignorar esta perpétua contradição que o leva-

1 06 1 07
va a negar precisamente o que mais desejava e a avançar em dam ental em oposição às suas outras convicções respeitantes a
primeiro lugar em direcção ao que logo a seguir procurava por «D eus» .
todos os meios evitar. O mesmo Saint-Exupéry que via em De uma só vez, assim, esses «nómadas» e «apátridas» que
«Deus» o princípio de uma auto-ultrapassagem constante, de ele louvava como os ciganos da existência tornam-se os bárba­
uma inquietação crónica, pode sem hesitações afirmar que ele ros de quem tem de se proteger. A partir de agora, é a conser­
é também garante da imortalidade. Depois de encorajar o ho­ vação e não a ruptura que passa a ter valor, porque a angústia
mem justo a uma elevação sem fim, a uma perpétua errância, diante do abismo é demasiado ameaçadora.
pode passar imediatamente para a ideia deste «Deus» como lu­ Contradições semelhantes são observáveis, por exemplo, na
gar e pátria da humanidade. E mal acaba de celebrar o valor obra de Friedrich Nietzsche,' cujo parentesco espiritual com
absoluto da acção, do sacrifício, do empenhamento e de decla­ Saint-Exupéry é cada vez mais óbvio. Elas procedem da mesma
rar a dinâmica da história como a resposta última a rodas as fonte: a angústia diante da mulher. Também ele, depois de ter
perguntas, vê-se submerso pelo desejo de duração e de solidez. fustigado rodas as ideias de duração e de eternidade como falsi­
Quando faz o seu Caide dizer: «Eu, que sou servidor de Deus, ficações platónico-cristãs da História e do mundo, procurou
tenho o gosto da eternidade. Odeio o que muda. Estrangulo portanto no conceito do movimento cíclico, do eterno ;eror­
aquele que se levanta pela calada da noite e lança aos quatro no, uma forma de se aproximar mais da noção de ser41• E fácil
ventos as suas profecias, como a árvore que, tocada pela se­ ver que também Saint-Exupéry aspira incessantemente a esse
mente dos céus, estala e rebenta e abrasa com ela toda a flores­ mundo do qual tanto quer escapar e que o «dinamismo» da
ta. Todo eu me encho de medo quando Deus remexe. Ele, o sua visão do mundo procede no fundo de um «tradicionalis­
imutável, que permaneça firme na eternidade! Porque há um mo» desiludido. Mas enquanto Nietzsche se forçava a aceitar
tempo para a génese, mas há um tempo, um tempo beatífico, esta situação de apátrida tentando elevar-se sempre mais alto
para o costume! É preciso pacificar, cultivar e polir. Sou aquele na solidão42, Saint-Exupéry não deixa nunca de sonhar com o
que tapa as fendas do solo e esconde aos homens os traços do que perdeu. No momento do supremo desafio espiritual,
vulcão. Sou a relva sobre o abismo. [ . ] É por isso que goza da
.. quando os «super-homens» de Nietzsche se preparavam para
minha protecção aquele que, passadas sete gerações, volta a transformar toda a Europa no seu Walhalla43, Saint-Exupéry
pregar na carena do barco ou na curvatura do escudo, disposto não tinha outra resposta para o desastre do seu tempo senão
a encaminhá-las por sua vez para a perfeição. Pode contar com chorar a destruição dos valores da sua infância, sem qualquer
a minha protecção aquele que herda do avô cantor o poema perspectiva de salvação. Restava-lhe apenas um ardente desejo
anónimo e, ao dizê-lo por sua vez, e ao enganar-se por sua vez, de morrer, essa natureza de «Saint-Ex», como na brincadeira
lhe ajunta o seu sumo, o seu desgaste, a sua marca. Amo a lhe chamavam os seus camaradas, e como abertamente confes­
mulher prenhe ou a que dá de mamar, amo o rebanho que se sa na «Carta ao general "X"»: «É-me completamente indiferen­
perpetua, amo as estações que se sucedem. Porque eu cá sou, te ser morto na guerra. Daquilo que amei, que ficará? Falo
antes do mais, aquele que mora. Ó cidadela em que moro, tanto dos seres como dos costumes, das entoações insubsti­
prometo salvar-te dos projectos da areia, e hei-de bordar-te de tuíveis, de uma certa luz espiritual. [ .. ] Quero lá saber das coi­
.

clarins tudo à volta. Mandá-los-ei tocar na guerra contra os sas que subsistirem. Aquilo que vale é um certo arranjo das
bárbaros!»40, temos a impressão de estar a ouvir um voto fun- coisas. A civilização é um bem invisível, porque incide, não so-

1 08 1 09
bre as coisas, mas sobre os laços invisíveis que ligam as coisas «criança», remeteu-a definitivamente para o reino da utopia,
umas às outras, desta maneira e não daquela. Disporemos de não sem aliás solicitar ao leitor que lhe indicasse o caminho
perfeitos instrumentos de música distribuídos em série, mas para a solução, caso ele encontrasse o Principezinho - um
que será feito do compositor? Ralo-me lá de ser morto na apelo manifesto à ajuda, mas que vem demasiado tarde. Nesta
guerra! [ ... ] Mas, se eu regressar vivo deste ''job necessário e in­ terra, continuaremos (e havemos de querer continuar) a encon­
grato", só se me porá um problema: o que é que se pode, 0 trar o Aviador. O Principezinho morreu, viva o Caidé5. Uma
que é que se deve fazer aos homens?»44 dicotomia dilacerante que levanta mais questões do que apre­
No fim da vida, Saint-Exupéry procurou responder a esta senta soluções.
pergunta, a mais importante de todas, com uma dupla resposta
que, mais do que resolver, vinha em definitivo expor a contra­
dição da sua existência: o Principezinho regressa à sua Rosa,
enquanto o Aviador caído do céu parte de novo pelos ares -
uma «conclusão» que não o é, um final que não esclarece nada.
As tendências regressivas e progressivas presentes no coração da
sua vida sobrevivem sem se reconciliar, sem mediação. A opor­
tunidade que poderia ter residido na catástrofe que se desenha­
va, a de ver o Principezinho e o Aviador fundirem-se numa
unidade viva, decididamente falha. Em vez disso, é de certa
forma a dinâmica do complexo de Édipo que o guia: o regres­
so ao mundo da mãe e, preço inevitável a pagar por tal, a mor­
te. Perante um mundo que se desloca, Saint-Exupéry sonha
com a infância, e é realmente à letra que é preciso entender o
desejo que formula na sua última, e já citada, carta à mãe: pre­
feria acima de tudo precipitar-se nos seus braços para poder re­
presentar de novo a seu lado o papel do Principezinho; voltaria
a ser o seu menino grande, sem as «burrices» da infância - a
«ovelha» não tiraria o «açaime» -, e, ao fim de muitos anos,
teria idade suficiente para estar à altura da Rosa e fazer-lhe jus­
tiça. É um sonho maravilhoso, mas que equivale afinal a uma
resignação e a uma capitulação definitivas perante a vida. No
entanto, ele era suficientemente orgulhoso para se lançar uma
última vez no combate pela sua virilidade adulta. É também
neste sentido que se pode interpretar a morte do Principezi­
nho: o escritor procurou uma última vez dominar a sua aspira­
ção regressiva; em vez de integrar em si a personagem da

1 1o
l A sua aversão a todas as complicações da «lógica», da razão analí­
tica, obriga-o a um intuicionismo da evidência imediata que o
impede de abordar concretamente os problemas e de verificar
de forma argumentada as soluções propostas. Propõe-nos, é
certo, algumas «fotos aéreas» tiradas de muito alto e de incon­
testável valor, mas isso não substitui a exploração do terreno
«ao rés do solo». A despeito dos sortilégios poético-simbólicos,
o seu pensamento mantém-se fundamentalmente abstracto não

nos permitindo portanto interpretar a realidade histórica nem


3. Entre a «Cidadela>) e a Jerusalém celeste dar-lhe sentido. No entanto, a fuga do concreto, o «medo do
contacto» que sente face ao real, a forma como transforma
uma síntese espiritual em puro raciocínio não têm a ver com
Reflectimos sobre O Principezinho para descobrir em que falta de claridade mental ou com uma falha de lógica, mas an­
medida se pode ler este conto - um dos mais importantes do tes com uma ambivalência profunda da sua visão espiritual.
século :xx - como um sonho que vem sarar a ferida da nossa Do ponto de vista psicológico, ele não pode atingir aquilo a que
consciência, como o caminho que nos conduz da obscuridade aspira. Aprendeu a temer o que ama e a evitar o que poderia
do espírito à luz, como o lugar onde a alma se encontra a si proporcionar-lhe apoio e calma; deve assim fugir do que so­
mesma. O balanço da nossa pesquisa não chega a dar lugar à nha, negar o que mais deseja e, inversamente, deve afirmar
esperança e à confiança. o que nega, procurar o que o ameaça, confrontar-se com o que

Se se confrontar este texto de Saint-Exupéry com a sua an­ o contradiz - guerra sem tréguas, mito heróico em que a «ser­

títese que é O Castelo, ele surge sem dúvida como um verda­ pente» asfixiante da infância se transforma em libertadora que
deiro oásis no deserto e, em comparação com a paisagem per­ salva da velhice trazendo a morte. Esta é a ambivalência que
dida na neve do romance de Kafka, a sua «cidadela» parece um marca tudo o que deveria estar psiquicamente unido; daí a
jardim luxuriante. O escritor propõe-nos uma crítica penetran­ tristeza nostálgica, feita de ternura e de amor infantis, e o con­
te do nosso mundo, colocando-o radicalmente em questão, e, trolo prometeico de si, feito de dureza e de solidão «masculi­
em jeito de profecia, abre-nos perspectivas grandiosas. Acres­ nas». Num esforço desesperado, Saint-Exupéry opõe então ao
cente-se que ele apresenta tudo isto de forma sedutora e com deserto humano, que se alastra, uma mentalidade de constran­
uma consumada arte poética. Este texto devolve-nos a cons­ gimento, de vontade criadora dos valores e exigência de acção
ciência de valores que temos de salvar se queremos que o ho­ oposta ao mundo da felicidade. Mas conseguirá o grande Cai­
mem sobreviva - e testemunha-o o vigoroso esforço do seu de proteger as suas muralhas do trabalho de destruição do
autor para fixar de novo às suas bases uma humanidade pro­ tempo? Resistirá a «cidadela» à pressão do deserto?
fundamente abalada. M as também está presente o essencial: a A s ua maior preocupação era vencer o niilismo da nossa
força da síntese. época, opondo-lhe a força de uma visão transcendente, uma
De um ponto de vista filosófico, Saint-Exupéry mostra-se arquitectura que postulasse o humanismo. É em relação a este
incapaz de dominar a «situação metafísica do nosso tempo»1• objectivo que deve ser j ulgada a sua obra - nenhuma outra

1 12 1 13
medida estaria à sua altura. Mas é necessário dizê-lo então com -Exupéry é como que uma prova do inevitável dilema para que
clareza: enquanto a essência do mundo e o fundamento do ser conduz esta tentativa: enquanto no fundo de nós mesmos sen­
permanecerem dissimulados pela angústia, como acontece na timos crescer o desejo de um mundo menos cansativo, mais
sua vida e obra, não poderá haver transcendência da existência protegido, mais pequeno, onde bastasse simplesmente ser, ve­
humana para dar um sentido ao mundo. A questão essencial mos crescer a divergência entre o mundo da «criança» e o
não consiste em saber como poderão os homens, marcados pe­ mundo das «pessoas crescidas», entre a aspiração a ser e a pre­
la experiência da sua pequenez e pelo ódio por si mesmos, ad­ tensão de fazer, entre o desejo de sermos acolhidos com a nos­
quirir uma certa solidez e encontrar algum valor e dignidade sa fraqueza e a exigência de nos afirmarmos pelos nossos actos
esforçando-se por desenhar o seu próprio retrato em areia sol­ e pela nossa grandeza.

ta, mas sim saber como poderão ter confiança na justificação Para sair deste círculo vicioso feito de aspirações e de lutas,
da sua existência, uma confiança ainda mais profunda do que de «descida à mãe» e «ascensão às estrelas», só há um caminho.
a angústia perante a sua insignificância, e portanto capaz de Deveria bastar acreditarmos no que a Bíblia nos diz logo nas
lhes devolver tranquilamente a medida do seu ser. Não é o ter­ primeiras páginas sobre a criação do homem. No princípio, foi
ror ascético do dever, da acção, da responsabilidade e do sacri­ o próprio Deus que deu forma ao pó da terra e lhe insuflou o

fício que faz surgir o homem «verdadeiro»; pelo contrário, a seu sopro (Gn 2, 7). Nada haveria a temer deste fundo «mater­
ideologia do «super-homem», do «homem-deus», do «Dédalo» nal» do mundo que dá forma aos seres; pois o que nos marcou
contradisse-se mais do que nunca durante este século. Ne­ com a sua insígnia seria ao mesmo tempo o que nos há-de le­
nhum constrangimento, nenhuma força poderia libertar-nos var, o que nos deu forma é o que em nós reina, o que nos con­
do ódio e do desprezo que sentimos por nós próprios, nem al­ firmou no nosso ser é o que nos mantém no ser e o que é hu­
guma vez salvaram alguém do cinismo latente que comporta mano não é para superar mas para descobrir. Uma vez liberto
qualquer tentativa prometeica de fazer surgir em nós e nos ou­ da angústia edipiana feita de tendência incestuosa, de homos­
tros um homem novo, ou seja, melhor e maior. sexualidade, de obsessão da virilidade e de complexo de castra­
Em princípio, esta é a única questão essencial da existência ção, o Caide poderia verdadeiramente tornar-se o «principezi­
humana: como apaziguar a angústia de não passarmos de pó, nho» e teria então a força necessária para salvar o «deserto»,
para retomar a expressão da Bíblia (Gn 3, 1 9)2? Se o homem para impor uma trégua à «desertificação».
não consegue ver nas mãos que o extraíram do barro senão al­ Esta herança da religião, tal como a exprime o Principezi­
go de terrível que o veio enlaçar e sufocar, deve então consa­ nho, é ainda legítima, e Saint-Exupéry estava muito próximo
grar todas as suas forças para se libertar delas. Nada mais resta da seguinte verdade: em cada homem, o rosto de Deus espera
fazer do que tentar fugir desta dependência ameaçadora opon­ brilhar3; em cada homem, vale a pena encontrar a obra de arte
do-lhe a nossa própria exigência, o mesmo é dizer: a imagem da forma divina, e cada homem, seja ele Leonardo da Vinci,
que fazemos de nós mesmos. A ideia de nos deixarmos moldar Mozart, Shakespeare, qualquer um de nós, traz no fundo de si
por outro é assustadora, e recusamo-nos com violência a ser­ uma imagem, uma música, uma palavra de eternidade que não
mos apenas uma massa amorfa e sem vontade; daí o esforço es­ se poderá exprimir senão nele, cantar senão nele, tocar senão
gotante para dar forma à cinza que é a existência, a fim de lhe nele. Vale a pena mergulhar no mais profundo do ser amado
devolver o valor de um diamante. Mas o exemplo de Saint- para captar esta realidade eterna e indestrutível que, tal como

1 14 1 15
as estrelas do céu, brilha no fundo dos seus olhos e vem reflec­
fo rma e plenitude; pois é através da «permuta», e não em si
tir-se no claro espelho de um mar tranquilo. Não é nem a «ac­ mesmos, que podem encontrar o seu «valor», porque fazem
ção», nem o «rigor», nem a «violência», nem a «Vontade» - parte do «nÓ», são pedra d � pi�âm ide, ornamento �o co re.
.
f
não é o Miguel Ângelo do bloco de mármore -, mas sim a Nesta «cidadela», amar alguem s1gmfica antes de ma1s faze-lo
arte da contemplação paciente, da escuta plena de compreen­ emergir como homem mediante o despojamento e o sacrifício
são, da unidade na ternura e da ressonância espontânea do co­ e reforjá-lo como membro de um «império».
ração que suscita no «jardim» da humanidade o seu mais belo Inversamente, quando, um milénio e meio antes da Bíblia,
desabrochar. Não se trata nem de «transformar» nem de «mo­ os antigos Egípcios dos oásis do Nilo olhavam para o céu, era
dificar>>, mas de deixar amadurecer e trazer à luz do dia. o seu pequeno mundo que viam no exército das estrelas, um
Há tanto a descobrir naquele que se ama! Só os olhos do mundo elevado ao infinito, ao coeficiente da eternidade. As ca­
amor o podem fazer; e este reconhecimento cheio de respeito banas e os palácios do Velho Cairo5 continuavam a crescer no
pelo ser amado transforma cada momento que se passa a seu firmamento, como para transformar em jóia o vestido de noite
lado em templo de contemplação e de oração. Não são as da deusa do céu Nut. Depois, de manhã, nas montanhas do
«obrigações» que unem os humanos uns aos outros; o que os coração a leste do Cairo, via-se uma vez mais erguerem-se os
liga para sempre é a ressonância que pode haver entre as suas companheiros da noite, as crianças de cabeça de babuíno
almas, essa onda vibrante de felicidade, essa vaga arrebatada da do deus da Lua Tot cantar o irromper da vida, o aparecimento
amizade que com uma força irresistível as conduz ao céu. Não do sol-nascente, nas suas ruidosas preces6. Mais uma vez, nas
é preciso criar um «navio» ou construir um «templo»4 para m argens do Nilo celeste, os escravos voltavam a descer à fonte,
fundar o valor de uma pessoa; basta entrar na alma do ser que os vendedores dirigiam-se ao mercado, as crianças à escola, e
se ama como num santuário onde se está perto de Deus. Com todos irradiavam o esplendor imperecível do Sol, carregado de
a aproximação deste ser sente-se o luminoso calor da divindade uma dignidade infinita e de um significado eterno; em cada
que brota a jorros através da rosácea e abrem-se de par em par um deles brilhava a promessa da eternidade, porque tudo na
as portas que dão para as margens da eternidade - como na terra não era senão o espelho do céu, prelúdio da felicidade, e
crença egípcia, a barca do Sol encontra-se j á pronta sobre a a magia do amor lançava já as pontes entre o «aqui em baixo»
margem, e basta deixar-se levar pelo fluxo do amor até àquele e o além, entre a morte e a eternidade.
mundo a que chamamos o «Outro», o «além», porque nele, pa­ É nesta mesma linha que o Novo Testamento propõe a sua
ra além do espaço e do tempo, e diferentemente do que se pas­ fé, retomando e confirmando estas imagens na sua visão da Je­
sa aqui em baixo, os corações dos que se amam podem e de­ rusalém celeste: «E vi a cidade santa, a nova Jerusalém, que
vem confraternizar e unir-se para sempre. descia do céu, de junto de Deus, bela como uma esposa que se
As paredes e as muralhas da «cidadela» no deserto são ataviou para o seu esposo» (Ap 2 1 , 2). As imagens das nossas
construídas nas areias movediças da História e as suas torres esperanças mais não fazem que reflectir-se nos espelhos desse
erguem-se orgulhosamente sobre a poeira móvel . O sopro do mundo. E no entanto, no amor, pode agora descobrir-se a pro­
vento do deserto vem varrer as ruas e secar com o seu bafo messa e o anúncio da pátria eterna. Quando estamos fel izes,
ardente os corações e as bocas dos homens sedentos. Como não partimos com violência à conquista do céu, mas é o céu
numa forja, funde os seus rostos até conseguir dar-lhes nova que parece então descer à terra para banhar com a sua bênção

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tudo o que une os apaixonados. Quando o mundo inteiro as­
sim se ergue para cantar, revelando-se nesse cântico de ternura,
é uma parte desta terra que se transforma numa parte do céu.
E se já para nós, que não passamos de simples mortais, cada
palavra de amor é inesquecível, como negar que o próprio
amor é uma prova da eternidade do ser que amamos? Quando
o mundo inteiro se transforma em hino de amor imortal, sen­
te-se que o próprio Deus começa a falar-nos. «E ouvi outra
grande voz», declara o vidente de Patmos, «que saía do trono e
que dizia: "Eis aqui o tabernáculo de Deus entre os homens''»
NOTAS
(Ap 21, 3). Não podemos ver Deus com os olhos da nossa fi­
nitude, mas senti-lo-emos agir no coração como o poder do
amor, e reconhecê-lo-emos aqui na terra nos olhos da pessoa
amada. Porque iremos rever-nos. Isto nos ensina o amor, que é
o próprio Deus.
Estará aqui a resposta aos desafios do nosso século? Segura­
mente não será assim tão simples. Mas só a partir daqui é
que o nosso pensamento se acalma, encontrando uma unidade
que permite ver-nos da forma mais integràl. Talvez em breve,
no fim da vida, nos questionemos sobre o que é que teremos
feito contra a miséria do nosso tempo, quando não fizemos
grande coisa. Talvez nos perguntem contra que slogans e erros
da nossa época nos opusemos, e teremos de reconhecer que es­
távamos séculos atrasados, inconsistentes na nossa reflexão,
perdidos diante das perguntas que nos faziam. Mas se nos per­
guntarem por que razão exactamente vivemos neste mundo,
esperamos pelo menos poder responder que nos esforçámos
por ver o mundo com os olhos do amor7; que encontrámos o
Principezinho no meio do deserto do nosso próprio coração;
que, nesta vida, ele deu-nos olhos semelhantes a janelas abertas
para a eternidade; que juntos subimos para a barca que nos
conduz à outra margem. Os antigos Egípcios tinham razão:
aos olhos daquele que ama, o mundo inteiro não é senão o
véu, o reflexo, a sombra da eternidade8.

1 18
Introdução

1 Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela, rrad. Ruy Belo, Lisboa, Editorial


Aster, s/d, cap. 1 47, p. 384.
2 Um pouco como o final do Sonho de Uma Noite de Verão de Shakespea-
re, acto V, cena I.
3 Cidadela, cap. 1 25, p. 342.
4 Ibid., cap. 78, p. 240.
5 F. Kafka, O Castelo. C. Cate compara a solidão deste <<castelo>> à do Prin­
cipezinho no seu planeta, estreitamente relacionada com a experiência do afas­
tamento de Deus, o que Saint-Exupéry já referira nos seus Carnets a propósito
da obra do padre Serrillanges, Les Sources de la croyance en Dieu <<Demasiado cedo
privados de Deus, numa idade em que ainda precisamos de refUgio, temos de lu­
tar pela vida como homenzinhos solitários» (cf. C. Cate, Saint-Exupéry, labou­
reur du ciel, trad. do inglês de P. Rocheron e M. Schneider, Grasset, 1 973,
p. 438).
6 Para uma primeira introdução à Cidadela v. Luc Estang, Saint-Exupéry
par lui-même, Paris, Seuil, 1 958, pp. 139 ss. R. M. Alberes diz muito justa­
mente de O Principezinho: <<A maioria das vezes viu-se neste livro apenas um
conto encantador, um desses contos de que se diz que, sendo feitos para as
crianças, seduzem ainda mais os adultos [ ... ] . O principezinho torna-se aqui o
símbolo da vida, com tudo o que ela possui de gracioso•• ( Saint Exupéry Paris,
- ,

Albin M ichel, 1 96 1 , p. 1 62).


- Y. !e Hir mostra a importância que Saint-Exupéry dá aos pormenores
das imagens dos contos; por exemplo, quando, em O Principezinho, põe o Rei
a dizer: «Aproxima-te para que te veja melhor» ( O Principezinho, trad. Alice
Gomes, Lisboa, Editorial Aster, s/d, p. 37), reroma uma frase do Lobo de
O Capuchinho Vermelho; ou quando o Principczinho declara ao Vaidoso: «Tem
um chapéu muito engraçado» (ibid. , p. 42), faz a mesma pergunta que o Ca-

1 1 1
puchinho Vermelho à Avó, ou melhor, ao Lobo (Fantaisie et mystique dans «Le 3 O Principezinho, pp. 39-40.
Petit Prince» de Saint-Exupéry, Paris, 1 954, pp. 22-23). 4 Como afirma F. M. Dostoievski: <<Sabei que há um limite na vergonha
que o homem sente perante a sua inferioridade, e que, passado este limite, ele
tem uma extraordinária alegria no reconhecimento da sua fraqueza e da sua
1. O menino-rei: uma redescoberta quase religiosa nulidade>> (0 Idiota, vol. II, III Parte, cap. VI, p. 1 1 4).
5 S. Kierkegaard opõe o desespero por fraqueza ao desespero por desafio:
1 Pense-se no exemplo proposto por E. T. A. Hoffmann na novela Das O Desespero Humano {Doença até à Morte), trad. Adolfo Casais Monteiro,
fremde Kind, in Die Serapions-Brüder, Winkler, 1 963. 4.a ed., Porto, Liv. Tavares Martins, 1 957, pp. 87- 1 22. A este respeito, v.
2 Em alemão, a palavra <<maU>> (bose) tem como raiz bhou (inchado); sobre E. Drewermann, Strukturen des Biisen, t. III, pp. 487-492.
a etimologia desta palavra e a forma como a maldade provém da angústia, v. 6 Assim, Ibsen conclui a sua peça O Pato Selvagem com um comentário de
E. Drewermann, Strukturen des Bosen, t. III, p. LXXXVI -LXXXVI I I . Rellings relativo ao gozo narcisista que experimenta Hjalmar Ekdal ao chorar a
3 A ideia de «fachada em "como se"» vem de G. Ammon, «Psychodynamik morte da filha (Acto V) .
des Suizidgeschehens>>, Handbuch deer dynamischen Psychiatrie, t. I, Munique, 7 Cf. I parte, cap. I I d e Crime e Castigo, onde Dostoievski descreve admi­
1 979, p. 779. ravelmente o desespero do bêbedo Marmeladov.
4 Jn 8, 1 - 1 1 . 8 Sobre o carácter fetichista da paixão, v. E. Drewermann, <<An der Gren­
5 Fédor Dostoievski, O Idiota, trad. Carlos Babo, Alexandre Babo, Porto, zen des Lebens>>, in Psychoanalyse und Moraltheologie, Mainz, 1 984, t. III.
Livraria Latina, 1 943, vol. I, I Parte, cap. VI, pp. 8 5-97. 9 Cf. a descrição da forma como o Ocidente cristão despojou a criatura de
6 Georges Betnanos, Didrio de Um Pdroco de Aldeia, trad. João Gaspar Si­ todos os direitos, in E. Drewermann, Der todliche Fortschritt, Ratisbona, 1 983,
mões, Lisboa, Editora Ulisseia, 1 955, pp. 1 55-168. pp. 90- 1 1 0.
7 Do ponto de vista psicológico, bem como do teológico, o <<menino­ 10 ]. Lame Deer e R. Erdoes, Tahca Ushte. Medizinmann der Sioux, Muni-
-Deus>> é uma imagem arquetípica que assinala a união dos contrários, do que, 1 979, p. 1 39.
consciente e do inconsciente, e indica o lugar do que ainda não foi vivido mas 11 Jbid., p. 92.
que desperta para uma nova vida. Cf. C. G. Jung e K. Kerenyi, Das gottliche
1 2 Jbid., p. 50.
Kind in mythologischer und psychologischer Beleuchtung, Amesterdão/Leipzig,
l3 K. Recheis e G. Bydlinski, Weisst du, dass die Baüme reden. Weisheit der
1 940. Note-se que, ainda hoje, na cultura nepalesa de Kumâri, encarnação de
Indianer, Viena/Friburgo/Basileia, 1 983, p. 83.
Taleju, deusa da protecção, se adora um menino-deus. Cf. P. Koch e H. Steg­
14 Cf. Terra dos Homens, p. 1 1 6: Saint-Exupéry admira a sabedoria do fe­
müller, Geheimnisvolles Nepal. Buddhistische und hinduistische Peste, Munique,
neco, que nunca come todos os caracóis de um mesmo cacto para não pôr em
1 983, pp. 1 03- 1 14. Cf. <<Mythes et croyances au Népal», Mythes et croyances
perigo a sobrevivência das suas presas. Cf. E. Drewermann, Der todliche Forts­
du monde entier, Lidis-Brépols, 1 985, p. 148.
chritt, p. 83-85.
8 Antoine de Saim-Exupéry, Terra dos Homens, trad. Artur Parreira, Lis­
boa, Editorial Aster, s/d [ 1 975], pp. 1 56- 1 57. 15 O Principezinho, p. 69.
1 6 K. Marx declarava que a fixação do preço do solo, a renda e portanto o
calor do solo se desenvolviam com o mercado dos produtos do solo, e assim,
2. As pessoas crescidas: retrato da solidão consoante o crescimento da população não agrícola, variavam as necessidades e
a procura quer de comida quer de material bruto.
1 O Principezinho, p. 29. Y. Le Hir descreve precisamente as «pessoas cres­ 17 A imagem da «venda da alma» é recorrente em muitós contos. Veja-se,
cidas>> como «todos aqueles que perderam a frescura do coração, a espontanei­ por exemplo, o conto de Grimm, A Menina sem Mãos. E. Drewermann e In­
dade das impressões e dos julgamentos: os que já só conhecem uma ordem gritt Neuhaus, Das Madchen ohne Hande. Grimms Marchen tieftnpsychologisch
material de valores e em quem morreu o sentido desin teressado da beleza e da gedeutet, r . I , Olren/Friburgo, 1 98 1 , pp. 3 1 -32.
poesia, (op. cit. , pp. 27-28). 1 8 A ideia de «duraçáo reaL> desempenha um papel importante na filosofia
2 Segundo a bipartição epistemológica de A. Schopen hauer, na sua obra de H. Bergson, Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência ( 1 889) . Em
principal, O Mundo como Vontade e Representação, trad. M. F. Sá Correia, Por­ Matéria e Memória (1 896) , acusa a física de construir um esquema ideal abs­
to, Rés, s/d [ 1 987] . tracto do tempo como algo retalhável até ao infinito, esquema que resulta de

1 22 1 23
I

"m' wlidifi"çiio ' d< om• di,i;ão g"' n,d, têm , "' com , ,,];d,de. É
ta solidificação do devir que encontramos pontos de apoio que nos permitem
""_ I 7 Um Smtido P"' ' Vu/,, p. 1 98.
8 !erra dos Homens, pp. 1 49- 1 50.
agir �obre a matér!a. De facto, a física quântica permitiu ultrapassar esta geo- 9 E assim que a Bíblia n:ostra Moisé� , Elias, João Baptista e Jesus no deser-
_
metna do tempo mtegrando-o na teoria da relatividade geral de Einstein . V. to em busc� da v�rdade dlVlna. Y. Le H Ir pensa, com razão, que, em O Princi­
_
I pezznho, o Simbolismo dos pormenores é suficientemente transparente e consti­
sobre este assunto o pensamento de L. de Broglie respeitante à visão moderna
da física e a ideia bergsoniana do tempo e do movimento em Matéria e Luz. rui uma iniciação à vida espiritual. «0 deserto não é apenas o símbolo de uma
I 9 A noção de <<extrodeterminação» remonta a D. Riesmann, La Foule soli- etapa da vida interior; na sua realidade material, é também o quadro privile­
ta�re, rrad. do inglês, Paris, Arthaud, 1 964, PP· 1 4 1 ss. A pessoa <<extrodeter-gi�do do encontro de Deus, no silêncio e na solidão» (op. cit. , pp. 48-49) . In­
_
felizmente, Le H1r não desenvolve as suas observações relativas aos outros sím­
mmada>> é aquela para quem a sua própria actividade só tem sentido se corres-
ponder às expectativas dos outros. Riesmann opõe a extrodererminação à bolos, decerto por falta de conhecimentos psicanalíticos sobre a matéria.
10
P a Maomé, <<islão>> significa <<submissão>>, e aí reside para ele a essência
introdeterminação e à determinação tradicional (cf. p. 23). _ �!"
20 Stefan Zwei , �ernão de Magalhães, trad. Maria de Castro Henriques da reiigiao (Alcorão, II, 1 1 2, 1 2 8 ... ). Cf. L. Gardet, Connaitre !'islam, Paris,
�. 1 958.
Osswald, Porto, Civilização, 1 975. I I Cidadela, cap. 1 38, p. 368.
2 I A propósito de um cristianismo funcionarizado e burocratizado, Kierke- I 2 A arquitectura cristã conservou esta simbólica no baptistério, construído
gaard emprega os termos <<assumo criminal>>, <<recolagem» e «falsários>>. Cf. So-
ren Kierkegaard, <<Difflcultés de ma tâche>>, in L 1nstant, in Oeuvres completes, à entrada da igreja. Entra-se no santuário como se se descesse à fonte do mun­
do, ao mar ocidental, para morrer para a visão superficial do <<mundo>> e renas-
trad. P. H. Tisseau, Ed. De !'Orante, t. XIX, pp. 1 68-1 69.
22 �riedrich �ietzsche, <<Da Utilidade e dos Inconvenientes da História pa-
cer para um mundo rejuvenescido pela verdade das profundezas. Encontramos
este tema em vários contos, em particular em Frau Ho!le; v. E. Drewermann e
ra a V1da>>, Conszderações Intempestivas, trad. Lemos de Azevedo, Lisboa, Edito-
Ingritt Neuhaus, Frau Ho!!e. Grimms Miirchen tiefenpsychologisch gedeutet,
ria! Presença, 1 976, pp. 1 1 7- 1 24. Nietzsche fala da «vaidade>> do historiador,
t. III, Olten/Friburgo, 1 982, pp. 32-35 , 49.
do seu <<espírito limitado>>, da banalidade e da estreiteza de espírito que ele ca- I 3 Sobre a simbólica da serpente, ser da contingência, da passagem entre o
mufla sob a designação de «objectividade>>, e isso para se poupar a ter de atri-
dia e a noite, entre a claridade e as trevas, entre a terra e o mar, entre a cons-
buir profundidade aos dados empíricos parafraseando-os para lhes conferir for-
ciência e a inconsciência, entre o bem e o mal, entre o ser e o nada, v. E. Dre-
ça e beleza.
wermann, Stmkturen des Bosen, t. I , pp. LXV-LXVI, e t. II, p . 69- 1 1 1 . Acerca da
23 Cidadela, cap. 1 50, p. 39 1 .
24 E� Temor e Tremor: Kierkegaard designa a ,<fé» como uma confiança morte como última graça da natureza, v. E. Drewermann, Psychoana!yse und
Mora!theologie, t. III.
<<nesta vida>>; sobre o conceito de fé como <<duplo movimento do infinito>> em
Kierkegaard, v. E. Drewermann, Strukturen des Bosen, t. III, PP· 497-504.
I4 E. Drewermann e lngritt Neuhaus, Der go!den Vogel. Grimms Miirchen
tiefenpsychologisch gedeutet, t. III, pp. 39-40.
I ) Sobre o mito de Osíris em Plutarco, v. G. Roeder, Urkunden zur Reli­
gion des A!ten Ag;ypten, lena, 1 9 1 5 , pp. 1 5-2 1 . Sobre a figura de Anúbis, v. H .
3. A sabedoria do deserto e a busca do amor
W. Haussig, Worterbuch der Mythologie, t . I, Gotter und Mythen im vorderen
1 Orient, Estugarda, 1 965, pp. 334-336.
O Principezinho, p. 60.
16 A propósito das viagens dos xamãs ao além, v. H. Findeisen e H .
2 Jbid., p. 64.
Gehrts, Die Schamanen. jagdhe/fer und Ratgeber, Seelenfahrer, Künder und Hei­
3 Jbid.
ler, Colónia, 1 983, pp. 1 1 2- 1 25 (sobre a árvore dos xamãs e a ascensão aos
. 4 Antoine de Sainr-Exupéry, <<Carta ao General "X"», in Um Sentido para a
céus) e 226-244. O mesmo esquema é identificável n'A Bola de Cristal de
Vzd�, trad. Ruy Belo, Lisboa, Editorial Aster, s/d, p. 1 94.
Grimm; v. E. Drewermann e lngritt Neuhaus, Die Kristalkuge!. Grimms Mar­
' Ibid., p. 1 95 .
. 6 Jbid., p . 1 97 . Com efeito, a imagem d o deserto evoca a palavra de
chen tiefonpsychologisch gedeutet, t. VI , O!tcn/Friburgo, 1 98 5 .
1 7 Como o urso, no conto Rosa Vermelha e Neve Branm. Cf. E. Drewer­
N Jetzsche: «O deserro alastra: Ai daquele que contém em si deserros!>>, in «En­
mann, La parole qui guérit, rrad. J .-P. Bagot, Éd. du Cerf, 1 99 1 , p. 1 09.
tre Filhas do Deserto>>, Assim Falava Zaratustra, trad. Paulo Osório de Castro ' 1 18
Cidadela, cap. 125, pp. 340-34 1 .
Lisboa, Círculo de Leitores, 1 996, p. 358.

1 25
1 ?4
1 9 Ibid. , cap. 1 38, p. 367. Hieroglyphs, Oxford, 1 957, p. 568; mnj «desembarcar», escrito com o deter­
20 Ibzd., cap. 1 35, p. 359.
=

minante de um homem deitado no solo ou de uma múmia, significa morrer.


2 1 O Principezinho, p. 77. 13 Jbid., p. 563, 576.
22 Terra dos Homens, pp. 1 2 1 - 1 35. 14 ]. V. Eichendorff, Ausgewiihlte Werke, ed. P. Srapf, Wiesbaden, r. I,
23 Ps 23, 2. p. 265.
.
·

. .
24 Cf. o como de Grimm A Agua da Vida, cujo conteúdo e estrutura se re­ !5 Num poema, <<A Julien», Novalis escreve: «E com mdescnnvel alegna I
. ,

petem em O Ganso de Ouro (v. n. 1 4). Pode notar-se o paralelismo com Ez I que sou teu companheiro para a vida. I E é com profunda emoção I que me
47, 9, no Amigo Testamento, ou com a mulher no poçQ de Jacob Oo 4, 1 -42) regozijo pelo milagre da rua criação - que tão profundamente nos achámos
e o paralítico na piscina de Bersaida Qo 5, 1 -9), no Novo Testamento. esposos I eu a tua, tu a minha, I eu que te escolho única entre rodas, I e esta
única que me escolhe I eis o que devemos a este ser de doçura I que c_heto de
amor nos escolhe. I Oh! Veneremo-lo com fidelidade, I e fiquemos asstm fun­
4. Do amor e da morte: uma janela para as estrelas didos num único ser, I se o seu amor eterno nos move, I nada poderá alguma
vez romper a nossa aliança. I A seu lado, poderemos com roda a segurança I
1 O Principezinho, p. 74. _
transportar a carga da vida, I e alegres devolver-nos a segurança: I o seu remo
2 Cf. E. Drewermann, «0 Suicídio, Última Graça da Natureza», in Psy­ começa agora I e se remos de desaparecer, I nos seus braços reencontrar-nos­
choanalyse und Moraltheologie, t. III. -emos» (Novalis, Werke, Munique, 1 9 8 1 , pp. 84-85) . Sobre a relação de No­
3 É assim que, no palácio da rica burguesa Visaka Migaramata que acaba valis com Sophie von Kühn, de treze anos de idade, v. O. Berz, Novalis?.Im
de perder a filhinha, o Buda explica: «O mal, o sofrimento, a dor que existe Einverstandnis mit dem Geheimnis, Friburgo, 1 980, p. 1 3 .
sob rodas as formas neste mundo só sobrevêm se conhecermos o amor. Se não
tens nada que ames, o sofrimento não to tirará. Os mais felizes, os que menos
sofrem aqui em baixo são aqueles que não amam nada. Se aspiras a um estado Questões e análises
de vida de pura impassibilidade, descobres então que não amas nada no mun­
do» (Udana, VIII, 8). 1 Acerca do parentesco de Sainr-Exupéry e Nietzsche, v. Luc Esrang, op.
4 Cf. E. Drewermann, «Von der Geborgenheit im Ring der Zeio>, in cit. , pp. 36-37, 1 04- 1 1 3. I. Frenzel assinala a semelhança que existe ent�e a
Strukturen des Biisen, t. I, pp. 378-389. biografia de Nietzsche criança e os dados psíquicos da infância de Samr­
_ _
5 Sobre a estrutura e filosofia do calendário maia, v. J . E. S. Thompson, -Exupéry, tal como os reconstituímos aqui (Friedrich Nzetzsche m selbstzeugms­
Die Maya. Aufitieg und Niedergang einer lndianerkultur, Essen, 1 975, pp. 256- sen und Bilddokumente, Hamburgo, 1 966, pp. � - 1 6) .
2 Cf. por exemplo o s contos d e Grimm A Agua da Vida o u A Luz Azul.
-259 (ed. orig.: The Rise and Fali of Maya Civilization, Oklahoma, 1 954).
Parece um preconceito arreigado dos discípulos de Jung quererem ler a qual­
W. Cardan, Popol Vuh. Mythos und Geschichte der Maya, DüsseldorfiColónia,
quer preço as narrativas de natureza lendária como <<narrativas de integração».
1 962, pp. 1 82- 1 89.
6 «A mãe morreu, viva a mãe!» (eirado em francês no original alemão) O Principezinho termina com a separação da criança e do aviador, e Luc Es­
tang tem razão ao declarar que <<O Principezinho ficou na areia e aí desapare­
ceu para dar lugar a uma nova personagem: a do � rande Caide, construtor da
(NT) . Terra dos Homens, pp. 1 52- 1 53.
7 Cf. em particular Albert Camus, O Mito de Sísifo, rrad. Urbano Tavares _
Cidadela» (Saint-Exupéry par lui-même, p. 29). Pelo contráno, A. Hetmler che­
Rodrigues, Lisboa, Livros do Brasil, sld, pp. 26-27.
aa a afirmar que é preciso ver no <<regresso a casa» do Principezinho <<o cume
8 Cf. sobretudo G. Marcel, <<Esquisse d'une phénoménologie et d'une mé­
raphysique de l'espérance,», in Homo viator, Paris, Aubier, 1 944, pp. 39 ss.
da integração do eu», que mostra <<o caminho da vitória sobre a angústia e da
descoberta do tu perante a morte» (<<"Der kleine Prinz" von A. de Samt­
9 W. Lennig, Edgar Allan Poe in Selbstzeugnissen und Bilddokumenten, -Exupéry: Medirarionen des Weges personaler Reifung», Selbsterfahnmg un�
Hamburgo, Rowohlr, 1 959, pp. 1 38- 1 39, 1 48-1 50. Gfaube. Gruppendynamik, Tiefenpsychologie und Meditationen als Wege zur relz-
1 0 Edgar Allan Poe, «Annabel Lee», rrad. Fernando Pessoa, in Poe, i\hl la r
­
giosen Praxis, M un i q ue, 1 976, p. 246). .
mé, Pessoa, Annabel Lee, Ulalume & O Coruo, Lisboa, Hiena Edirora, 1 993. .l Sobre o semido psicana lítico deste esquema, v. E. Drewerm ann, <<Dte
1 1 ]o 1 4 , 1 -4.
Warhei t der Formen. Von Traum, Mythos, IvLirchen, Sage und Legenden» , in
1 2 A. Gardiner, Egyptian Grammar being an !ntrodurtion to the Study of Tiefenpsychologie und Exegese, r . I , OlreniFriburgo, 1 984, p. 1 98 .

1 26 1 27
7 Ibid., p. 9.
4 Anthony Quinn conta a fuga do grande actor que falhou: «Meu filho,
s Do ponto de vista psicanalítico, pode interpretar-se a forma arr�do�dada
ajuda-me ... Ajuda-me, ou afogamo-nos os dois.» O «filho» desaparece, en­
do «planeta>> como uma imagem do seio materno; em todo o caso, so assim se
compreende que o Principezinho não sofra nunca de fome nem �e sede, facul­
quanto que o actor descobre o amor (Mon péché origine!, ] . P. Taillandier,
1 990, pp. 344-345). Esta partida do filho corresponde aqui à integração pes­
dade que conserva ainda em «terra», para grande espanto do A:1ador. Por d:­
soal, ao passo que em Saint-Exupéry o Principezinho surge como um visitante
trás desta ausência de necessidade, pode pensar-se numa oralidade sobreali­
estrangeiro, extremamente simpático é certo, mas afinal incómodo para o
mentada que vem ainda sublinhar o carácter minúsculo da sua �er:onagem e o
Aviador; ele não contribui em nada para a reparação do <<motor>>. A sua partida
tamanho relativamente grande do planeta. Mas sobretudo a s�IIdao gela a do ?
Principezinho no seu planeta só se torna compreensível se se v1r nela o Slm?o­
constitui uma verdadeira cisão, uma mistura de regressão do líbido e de disso­
ciação do eu.
lo oral de uma mãe que é tudo e que significa tudo antes mesmo de ter s1do
..
reconhecida como entidade autónoma.
9 A «limpeza» d o «vulcão>> é uma actividade manifestamente «anal»; não se
I. O segredo da Rosa deve porém interpretar as «irrupções» possíveis da «cratera>> ap:nas como «p�r­
.
1 O Principezinho, p. 10. carias» mas também como a simbolização dos impulsos agress1vos da pnmma
fase d� oposição. Abordando a questão do ponto de vista psicopatológico, é
2 Sobre esta noção, v. E. Drewermann, Tiefenpsychofogie und Exegese, t. I,
preciso acrescentar aos sentimentos neuró�icos de culpa oral traços �e compul­
pp. 350-368.
são violenta - uma imagem da personalidade que se pode descobnr em cada
·3 Para uma análise da unidade simbólica da «serpente» e da «mulher>>, v.
Éric Newmann, Die grasse Mutter. Eine Phenomenofogie der weiblichen Gestaf­ linha do autor, em particular na Cidadela. R. Zeller vê no «vulcão>> o «am� n> e
a «esperança», mas esta interpretação não tem qualquer f�nda�ento (�a Vze se­
tung des Unbewussten, Olten/Friburgo, 1 974, p. 1 34- 1 45 . Sobre a unidade da
crete de Antoine de Saint-Exupéry ou la Parabole du Petzt Prmce, Pans, 1 950,
terra, da Lua, da mulher, da serpente e da fecundidade, v. tb. E. Drewermann,
pp. 93 ss.).
Strukturen des Bosen, t. II, pp. 69-87. A. Heimler vê acertadamente na simbó­ Io
Na sua cronologia, Luc Estang menciOna o facto de, em 1 904, a ma� , as
. _

lica da serpente um «pesadelo de infância». Mas compromete logo esta intui­ .


três filhas e os dois filhos terem deixado a casa de Lyon, e de Antome partilhar
ção ao associar-lhe de forma arbitrária uma criança abandonada a si mesma,
então a sua existência entre dois castelos, o da tia e o da avó materna (op. cit.,
que «chama pela mãe>> à noite. É exactamente o contrário. A interpretação de
p. 5). Cf. P. Chevrier, Saint-Exupéry, Paris, 1 958. Nenhum dos seus biógrafos
Heimler é ainda mais aberrante quando cai numa abstracção generalizante
se interessa pelos conflitos psíquicos de Saint-Exupéry resultantes desta mu­
diagnosticando na jibóia um certo «estar no mundo», e logo a seguir a «corrida
dança. R. Zeller fala, é certo, da sua «solidão» (op. cit., p. 34): «esteve se�pre
ao armamento» e a «Concorrência comercial» (op. cit., p. 200).
sozinho» (ibid., p. 25) - o mundo inteiro faz finalmente eco ao «estou so» do
4 Cf. por exemplo o conto Os Dois Irmãos ou, numa versão alterada, A Bo­
Principezinho (ibid., p. 63). Mas, como os re�tantes biógrafo�, a�alisa o pro­
la de Cristal (E. Drewermann e Ingritt Neuhaus, Die Kristafkugef. Grimms . .
_ do ps colog1co,
blema apenas do ponto de vista fenomenologJCo e nao � o que
Miirchen tiefenpsychofogisch gedeutet, t. VI).
leva também a confundir causas e efeitos: ela exalta a sua soiidao como «neces­
5 O Principezinho, p. 28. Como a maioria dos biógrafos, M. de Crisenoy
sidade de imensidão» (ibid., p. 34) e fala mesmo da confiança do Aviador na
pensa que a Rosa do Principezinho remete para o tempo do primeiro noivado
sua solidão espiritual (ibid., p . 3 1 ) . Quando salientam as relações biográficas e
de Sainr-Exupéry: «Saint-Exupéry, que encontrou palavras inesquecíveis para a
psicológicas do Principezinho e da Rosa, os �utr?s bió�rafos supõem que esta
amizade, não falará nunca do amor. E, no entanto, quinze anos mais tarde,
rosa evoca lembranças do rompimento do pnme1ro n01vado. Cf. por exemplo
apaixona-se por uma rosa, uma flor coquette e bem difícil de compreender>>,
Luc Estang, op. cit., p. 36. No entanto, este r�conhece também que se deve
Antoine de Saint-Exupéry, Poete et aviateur, Spes, s/d. Mas se a relação entre .
ver no planeta da Rosa a infância e não a n01va de Samt-Exupe_ � (zb�d. , p.
Bernis e Genevieve, em Courrier du Sud, é sem dúvida decalcada da experiên­
3 1 ) . Ao que se deve acrescentar que só houve um� m ulher na sua vida, a qual
cia de fracasso do seu primeiro amor, a «revelação da vida espirituab de Saint­ .
rearessa constantemente: a mãe. Afinal, os seus pnme 1 ros amores de J UVentude
-Exupéry que esta in terpretação de O Princzjezinho nos propõe (ibid. , p. 1 80)
nã o é de todo satisfatória, porque não torna minimamente compreensível o re­
� ;
ap nas servem para lhe recordar com fo �ça essa figura, e pod mesmo procu­
rar-se a origem do insucesso dos seus noivados numa ambivalenCia semelha nte
gresso daquele (da criança Exupéry) para a Rosa. _
à q ue caracteriza a relação com ela (cf. n. 3 do capítulo 2, «Ü Segredo de lca-
6 O Principezinho, p. 28 .

1 29
1 28
ro»). Cf a cronologia da infância e juventude de Saint-Exupéry, in P. Kessel, Nietzsche não teria falado de outro modo. V. tb. cap. 38, pp. 149- 1 50. É sur­
La Vie de Saint-Exupéry, Paris, 1 954, pp. 6-27. preendente a frequência com que o chefe da Cidadela refere as «dançarinas, as
1 1 O Principezinho, p. 32. A. Heimler nota justamente que atrás da angús­ cantoras e as cortesãs» (cap. 37, p. 1 46), alertando principalmente contra
tia do Príncipe causada pela sua Rosa se deve reconhecer uma agressão contida a mulher que se «absorve na contemplação de si própria», que «devora sem
contra as flores (op. cit., p. 2 1 1). «A angústia de agressão verbal [oral]>> existe se alimentar» (cap. 1 70, pp. 438-440) - a mulher vampiro potencial. Este
realmente, mas também aqui Heimler usa erradamente esta descoberta quando é o lado angustiante da visão de Saim-Exupéry da mulher como «serpente» ;
interpreta a relação conflitual entre o Príncipe e a Rosa como o conflito entre o «amor» como dever: outra formulação do mesmo sentimento, mas desta vez
o «consciente» e o «inconsciente» (ibid., p. 2 1 4), ainda que considere possível com a aparência de postulado moral. E. A. Racky expõe claramente esta ques­
o facto de ela remeter para uma mulher verdadeira. tão, mas sem se aperceber do problema psicanalítico: «Saint-Exupéry nem se­
12 O Principezinho, p. 30. A. Heimler propõe ver na Ovelha uma outra quer chega à visão moderna de uma camaradagem entre homem e mulher, e
forma da Jibóia que assim se teria disfarçado «pela acção constante do eu» (op. não há uma só referência ao "grande amor". Saint-Exupéry vê a mulher com
cit., pp. 204-205). Mas, independentemente do facto de ninguém saber em um espírito cavalheiresco marcado, com respeito. A mulher é frágil e terna.
que é que consiste esta «acção constante do ew>, esta tipologia simbólica enig­ Não se deve tocá-la com mãos rugosas. Ela não tem a possibilidade de tomar
mática apresenta mais dificuldades do que soluções. O verdadeiro problema da parte da acção nem de viver toda aquela amizade devotada da comunidade dos
<?velha é o da ameaça que ela constitui para a Rosa, portamo o do açaime. homens [sic.� [ ... ] No círculo dos aviadores, Saint-Exupéry acredita poder ul­
E daqui que deve partir a interpretação. trapassar a dificuldade de ir ao encontro dos outros. A amizade dos homens
1 3 O Principezinho, p. 14. cria laços que permitem ao amigo aperceber-se da alegria do amigo» (Die Auf
14 Ibid., p. 29. fassung des Menshen bei A ntoine de Saint-Exupéry, Wiesbaden, 1 9 54,
1 5 Ibid., p. 30. pp. 34-35). Não se poderia exprimir melhor a existência de uma homossexuali­
16 dade latente: «Tu não passas de um degrau na minha ascensão para Deus. Tu
O exacto significado de «Nefertem» é «absolutamente perfeito», «perfei­
tamente belo»; é a <<flor de lótus do nariz de Ra», como dizem os textos das pi­ és feita para seres queimada, consumida e não para reter...», diz o soberano da
râmides. Cf. H. Kees, Der Gotterglaube im Alten Agypten, p. 89. No Novo Im­ Cidadela a propósito de uma mulher que, no meio do seu tédio, acaba por
pério, considerava-se como canónica a tríade formada por Ptah, Sekhemet e desposar (cap. 29, p. 1 30). R. Zeller reconhece decerto a diferença entre estas
Nefertem (ibid., p. 287). perspectivas e a visão cristã, mas declara que, mesmo nesse momento, Saim­
17 Sobre a visão da mulher em Saint-Exupéry, Luc Estang declara: «Ele pa­ -Exupéry soube reconciliar a sua sede de espaço com o amor da mulher
rafraseia, com algumas nuances, o famoso preceito [de Nietzsche] : o homem é (L 'Homme et !e Navire de Saint-Exupéry, Paris, 1 950, p. 89). Uma reconcilia­
feito para a guerra e a mulher para o repouso do guerreiro» (op. cit., p. 37). ção em que a mulher arde como uma feiticeira, para elevar a sua alma ao céu
A acreditar nos seus biógrafos, Saint-Exupéry aplicava estes princípios àquelas no fumo do seu aniquilamento? Acertadamente, D. Anet explica a este propó­
a quem chamava as «suas queridas» (op. cit., 36). Na Cidadela, chega a dizer sito que «o verdadeiro papel que Saint-Exupéry deu à mulher foi o da rapari­
que o amor não passa de um simples símbolo: «Realmente, pode não ser nada ga». Mas em vez de analisar o problema psicológico, o do recalcamento psíqui­
importante o amor dessa esposa que espera pelo regresso do esposo. A mão co de uma criança angustiada, ele chega a declarar com toda a tranquilidade
que se agita antes da partida não passará de sinal de qualquer coisa importan­ que «as raparigas de Saint-Exupéry não absorvem de nenhum modo o destino
te. [ . .. ] como por exemplo a geometria e até esses braços do esposo à volta da dos homens, nem o usam através de um jogo cruelmente irónico, mas fun­
esposa grávida, cheia de um mundo, protegida por eb (cap. 2 1 , p. 1 06) . Para dam-no na sua pureza radiosa, no seu amor silencioso» (Antoine de Saint­
um homem como Saint-Exupéry, o amor da mulher em particular é como -Exupby. Poete, romancier, moraliste, Paris, 1 946, p. 2 1 2), e imediatamente
uma tentação de «repouso>>; «também não se pode repousar em amor que não passa a falar dos «heróis>> entre os homens.
se transforme de dia para dia, como o amor de mãe. Mas tu queres sentar-te 18 O Principezinho, pp. 32-33.
na tua gôndola e tornar-te canção de gondoleiro para toda a vida. Enganas-te 1 9 lbid. , p. 36.
redondamente. Tudo aquilo que não for ascensão ou passagem não rem senti­ 2 l J Ibid. , P· 64.
21 É ó
do nenhum. E, se te dá para parar, só encontrarás aborrecimento, porque a bvio que as «correntes de ar» e as «consti pações» devem ser interpre­
passagem já não tem mais nada para re ensinar. E repudiarás a m ulher, quando tadas de um ponto de vista psicológico. Cf. F. Alexander, Psychosomatische Me­
eras tu que em primeiro lugar te devias repudiar» (cap. 35, pp. 1 43-1 44) . dizin, Berlim, 1 95 1 , pp. 99- 1 04: este autor fala da natureza psicossomática das

131
1 30
dificuldades de respiração e sublinha em particular a forma como as bronqui­
tes respondem antes de mais ao «traumatismo de separação». O carácter mani­ 36 Ibid., pp. 1 77- 1 78.
festamente agressivo da tosse é simplesmente proverbial. 37 Ibid., pp. 208-209. Marguerire foi uma governanta de Antoine.
22 O Principezinho, p. 33. 38 Ibid., pp. 2 1 4-2 1 5 .
23 Ibid. 39 Ibid., p. 220.
24 Ibid. «Rosa, ó contradição pura. Volúpia I de ser o sono de ninguém sob
tantas I pálp�bras>>, diz a inscrição funerária que Rilke compôs para si próprio
(cf. R. M. R}lke, Poemas, vol. I, pre(, sei. e trad. Paulo Quintela, Coimbra, 2. O segredo de Ícaro
, . �a Editora, 1 967, vo!. II, p. 281). «Para Rilke, a rosa, esse antigo sím­
AtlantJ
bolo ocidental da unio mystica, foi ao longo da sua vida motivo de êxtase e de 1 Nomeadamente R. M. Albéres: <<A poesia do avião não é em Saint­
meditação sem fim>> (H. E. Holthusen, Rainer Marie Rilke in Selbstzeugnissen -Exupéry contemplação da natureza, mas contacto com as forças naturais>>
und Dokumenten, Hamburgo, 1 974, p. 1 32). Trata-se do epitáfio de um ho­ (Saint-Exupéry, Paris, Albin Michel, 1 9 6 1 , p. 76). V. tb. R. Delange e
mem que «amando, não pode amar>> (ibíd.), porque a relação com os seus con­ L. Werth, La Vze de Saint-Exupéry, pp. 1 1 1 - 1 26; C. Cate, op. cit., pp. 1 69-
te�po:â�eos interfere desastrosamente com o laço contraditório que o une à - 1 86; L. Wencelius, <<Saint-Exupéry, der Freund», Romania, t. I, Mainz, 1 948,
mae (zbzd., PP· 1 1 - 1 2) . Quando tinha vime e um anos, Rilke conheceu Lou p. 52. Esta apreciação de Saim-Exupéry é em tudo conforme ao mito que ele
�d:eas Salomé, quinze anos mais velha, e esta fê-lo sentir pela primeira vez a próprio criou com manifesto sucesso. W. Kellermann exprime-se de forma se­
fehc1�ade de ser «compreendido e conduzido por uma alma afinada pelo mes­ melhante: <<O aviador tinha pago o seu ethos do combate com a renúncia a to­
mo diapasão, sendo-lhe no entanto superior, e ao mesmo tempo de entrever da a segurança e felicidade [ ... ). Isso valeu-lhe também mergulhar na exaltante
através dela a mãe cuja falta sentia tão cruelmente>> (ibid., p. 33). Lou Salomé solidão da noite cósmica, cuja grandeza o escritor descreve recorrendo às ex­
e Rilke foram amigos dur�nte toda a vida, ao passo que Saint-Exupéry nunca pressões dos contos, das lendas e da religião>> (<<Antoine de Saim-Exupéry», Díe
conheceu tal felicidade. E preciso acrescentar que este se defendia energica­ Sammlung, Gottingen, n.0 2, 1 974, p. 683). Como se a <<técnica» da aviação
mente, sem grande sucesso, da influência amolecedora da mãe e, através dela, não consistisse precisamente em fazer da aventura uma profissão e em apagar
de todas as mulheres, e isto ao preço de uma verdadeira cisão interior, como todo o acaso com a planificação. Esta devia ser pelo menos a <<responsabilida­
veremos. de» do técnico.
25 Ibid., p. 36. 2 Sobre a personagem de Eras, v. R. von Ranke-Graves, Griechische Mytolo­
26 Jbid. gie. Quellen und Deutung (trad. do inglês, The Greek Myths), Hamburgo, 1 960,
27 �bid. A. Heimler assinai� correctamente que o Principezinho está desta p. 1 1 6. Quanto à interpretação de Eras como princípio do desejo de imortalida­
. de do homem, v. Platão, O Banquete, cap. XXVI, 207 a5-208 b6.
vez multo admuado por verificar que a Rosa se culpa a si própria. Mas perde a
razão qu�ndo vê �a declaração desta Rosa uma «franca confissão do amor>> que 3 Cf. n. I O e 1 7 do capítulo I , <<0 Segredo da Rosa». C. Cate esforça-se
. . por descrever em termos românticos o casamento com Consuelo Suncin, a
provocana no PnnCipezmho o medo de se aproximar dela. O perigo do com­
portamento da Rosa está no facto de suscitar nele a ideia de que é culpado por viúva do jornalista argentino Gomez Carillo, mas da sua exposição fica bem
abandoná-la. A proposta de Heimler de interpretar os quatro espinhos da Rosa claro que o grande fascínio do amor tocou-a muito mais a ela do que a ele.
. Nos anos de exílio que se seguiram, Consuelo, <<na sua fantasia surrealista» (op.
como as vigas da cruz e como um amor <<nas quatro direcções da consciência>>
(op. cít., p. 2 1 7) nada rem a ver com o texto. cit., p. 439), ligou-se a um círculo escolhido de amigos surrealistas e só muito
28 O Principezinho, p. 36. dificilmente conseguiu suportar o carácter intransigente do marido. Pode por­
29 Ibid. , p. 93. ramo adivinhar-se como teria sido curra a sua relação, não fosse a morte pre­
30 Antoine de Sainr-Exupéry, Lettres à sa mere, Paris, Gallimard, p. 1 09 .
matura do aviador, e igualmente curta teria sido se ele não tivesse de passar
3 1 lbid., p. 1 1 3.
grande pane do tempo em <<licença» de casal, devido aos seus voos. K. Rauch
32 Ibid., pp. 1 37- 1 38. dá-nos conta de uma prece que Sainr-Exupéry colocou na boca da mulher e vê
3 3 lbid., pp. 1 4 4- 1 4 5 .
nela uma expressão de «confiança pura e simples em Deus ao lado do amor
34 lbid., p . 1 45 .
profundo e puro entre homem e mulher» (Antoine de Saint-ExupéJy. Mensch und
35 Ibid., p. 1 73.
W'erks. Personliche Errinenmgen, Esslingen, 1 954, p. 2 5) . Mas a «prece» é es­
sencialmente um pedido a Consuelo «para que deixe de ver todos aqueles que

1 32
ele despr�a e recusa>> e é ao n:esmo tempo uma declaração de quem quer pa­ se apenas se pretende gerá-los (e gerar-se a si mesmo) através da acção heróica.
recer mu1to forte, q �ando ma1s não faz que tremer. . . «Senhor, rogo-Te que 0 Em Piloto de Guerra, Saint-Exupéry explica em pormenor o seu conflito entre
guardes do medo ac1ma de tudo.» Quanto à imagem que Saim-Exupéry fazia o desprezo de si e a procura de camaradagem: «A função de testemunha sem­
de Deus e da oração, v. n. 37 e 38 deste capítulo. Sobre a forma como Saint­ pre me causou horror. O que sou eu, se porventura não participo? Para ser, te­
-Exupéry descreve a infeliz relação entre Bernis e Genevieve, no Courrier du nho necessidade de participar. Alimento-me da virtude dos companheiros [ ... ] .
Sud, ap �iando-s� ma�ifestamente em recordações autobiográficas do seu amor E embriaga-me a densidade das suas presenças. [. . .] Nada virá a desmoronar
por Lou1se de Vtlmonn, su� noiva na altura (1 922), v. Luc Estang, op. cit., pp. esta fraternidade» (trad. Ruy Belo, 2." ed., Lisboa, Editorial Aster, s/d [ 1 958],
p. 1 73). Isto era o que ele queria. Mas seria ele realmente assim? E. A. Racky
�5-36, 59-60. C. Cate sublmha com toda a justeza a impossibilidade de iden­
nfi�ar a Rosa do Principezinho com Louise, afirmando que esta, dois anos afirma: «No círculo dos aviadores, o laço que liga entre si os homens de acção
ma1s nova que Saint-Exupéry, estava «menos amadurecida para o casamento adquire profundidade mercê de uma amizade ou de uma camaradagem que
do que elen (op. cit., p. 88), o que é exactamente o inverso da causa do fracas­ Saint-Exupéry viveu de forma tão pura que a considera como um valor essen­
so do Pri�cipezi_nho com a sua Rosa. K. Rauch tenta perceber por que razão cial para todos os homens» (op. cit. , p. 28). Mas Luc Estang mostra como estes
_
em _ O Prmczpezmho o mundo da mulher não tem nenhum papel: «Nada é «companheiros» podiam na realidade revelar-se impiedosos para o autor de Voo
ma1s oposto à alma de criança do Principezinho do que o mundo rígido dos Nocturno (op. cit., p. 1 68). Sim, mesmo que ele tivesse encontrado o calor ne­

a u!tos, o dos machos cheios de si mesmos que reinam nos planetas; pelo con­ cessário junto dos seus «companheiros», não estaria em estado de aceitá-lo; em
vez disso continua a aspirar ao que é inatingível: « [ ...] ser mais do que eu mes­
t�ano, ele sente-se em terna harmonia com a sabedoria orgânica das criaturas
s1mples, o mundo dos animais, da raposa, da rosa que ele ama com ternura e mo [ .. .] sentir este amor que sinto pelos meus companheiros, este amor que
pudor e ":enera com fervor, aquela em que se concentra toda a sensÍbilidade fe­ não é um impulso vindo do exterior, que não procura exprimir-se - nunca
minina. E nela que se refugia finalmente quando descobre quão desprovido de - a não ser aquando dos jantares de despedida [ ... ]. O meu amor pelo grupo
calor e de intimidade é o planeta Terra» (op. cit., p. 25). Está certo e bem ex­ não tem necessidade de ser enunciado. Só se compõe de laços» (Piloto de Guer­
pr�sso. _Mas isto mais não faz que �ascarar a contradição que habitava o pró­ ra, pp. 1 7 5 - 1 76). É difícil exprimir melhor a angústia sentida perante um laço
pno �amt-Exupe, � e que o conduzia a opor-se ao mundo circundante; e lança verdadeiro (homossexual) e a forma como o substitui pelo orgulho da renún­
t�mbem uma _cor�m� de fumo no ponto delicado da sua «aspiração>> ao «femi­ cia.
6 «Lettres de guerre à un amin, Le Figaro littéraire, 27 de Julho de 1 957,
mno>>: a amb1valenc1a da relação com a mãe. De nada serve sublimar Saint­
-Exupéry - é necessário, sim, compreendê-lo, para poder entrever a sua gran­ reproduzido em Ecrits de guerre 1939-1945, Paris, Gallimard, p. 67. A. Heim­
deza e os seus limites. ler reconhece no tema do voo um «movimento de desprendime nto da terra­
4 Para uma análise do contexto biográfico do aviador e do tema de « Ícaro», -mãe pelas suas próprias forças» (op. cit., p. 206). Mas como i nterpreta o Prin­
v. Luc Esta?g, op. cit., p. 4 1 -5 1 . «Já nesta altura [ 1 926] é perceptível uma tris­ cipezinho de forma arquetípica, e nunca autobiográfica, não consegue captar o
teza exupenana na sua correspondência. A "mística da linha" libertou-o dela e óbvio: a fuga da mãe. E assim chega à oposição do «celeste» (yang) e do «ter­
tran�formou-a em piedade. Mas, terminada a bela aventura da aviação, a an­ restre» (yin) .
gúsna retoma a sua antiga máscara>> (ibid., p. 1 7 1 ) . 7 Cf. K. Stern, Die Flucht vor dem Weib. Zur Pathologie des Zeitgeistes, trad.
5 A ima�em d e Saint-Exupéry <<amigo>> e <<companheiro» é igualmente con­ do inglês, The Flight from Woman, Salzburgo, 1 968, pp. 1 9 1 - 1 93.
8 Sobre o parentesco entre Saim-Exupéry e Nietzsche, v. Luc Estang, op.
forme ao m1to que desejou e criou. Com efeito, mesmo C. Cate reconhece
que a diferença de idade dos seus companheiros não facilitava a relação huma­ cit. , pp. 37, 1 04-105. Para os dois autores, os indivíduos <mão passam de vias e
na (cf. op. cit., p. 370). Apesar de todos os seus esforços, semia-se sempre mar­ de passagens» (Piloto de Guerra, p. 202). O fim desta «estrada» é o «homem
_
gmal. Sobre esta doutnna _ da <<camaradagem» e da «Comunidade de acçã0,,, cf. individual heróico, são e fone. A concepção heróica vê no homem o herói
Luc Estang, op. cit., pp. 83-96. A quinta-essência desta atitude reside na se­ possível [ . . . ] . O homem de acçáo traz manifestameme os traços do "super­
guinte declaração: <<A experiência mostra qu� amar não é olharmos um para 0 -homem ", (E. A. Racky, op. cit., p. 80) . Co m o afirma Saim-Exupéry: « Co m ­
b a te re i pelo p r i m ado do H o m e m sob re o i n d i víd uo [ . . . ]. Combaterei todo o
�u ;ro,_ mas olh �rmos os dois na mesma direcção» ( Terra elos Homens, p. 1 46) . q ue p reten da su b meter a u m indivíduo ou a uma mass:� a lib e rdad e d o H o­
E obvw qu e Samt-Exupéry confunde aqui amor e camara da ge m , ou se j a . con­
_
fessa que d1fictlmente consegue imaginar um amor difereme da sua p rocura de mem [ . . . ]. Combacerei pelo H omem. Comra os seus i n i m i go s . M as tam bém
contra si mesmo» (Piloto de Guerra, pp. 227-228) . Tai s passagens em
nada di-
camaradagem. O problema é sempre o mesmo: não se pode amar os homens

1 35
1 34
ferem do ((amor do longínquo» de Nietzsche, com toda a sua atitude de des­ explora. Mas por vocação, por paixão. Conseguirão alguma vez os vossos críticos
prezo pelo homem real. literários aperceber-se disto�» (R. Delange e L. Werth, op. cit., p. 1 26) . Com­
9 Sobre a filosofia da liberdade no quadro de uma contingência radical, preenderão, sim, na condição de não acreditarem no mito do <<Aviador» Saint­
v. E. Drewermann, Strukturen des Bosen, t. III, pp. 207-209, 2 1 3-2 1 8, 226- -Exupéry, mas procurando antes compreender o homem que se refugiava no seu
-263. K. Stern analisa a «aversão» à natureza (e a si mesmo) em Sartre como avião para fugir da terra. E o coronel Gelée prossegue: <<Saint-Exupéry não deve
uma manifestação da angústia diante da mulher. Declara: <<A forma como o se­ praticamente nada a ninguém.» É na verdade o que Saint-Exupéry queria ser:
xual foi sempre em Sartre um ressaibo de "visita a uma certa casa", e sempre aquele que dá aos outros sem receber, aquele que se sacrifica pelos outros sem se
acompanhado da desvalorização do feminino, lembra uma espécie de sexuali­ preocupar com a sua própria felicidade, o que procura a grandeza no seu com­
dade pubertária que parece muito característica de certa literatura da geração bate contra si mesmo e contra a mediocridade. K. Rauch salienta: <<Voar signi­
precedente, de Nietzsche a Lenine. Neste contexto, é interessante verificar que ficava para ele ascender a uma nova descoberta do mundo. Subir ao céu -
a única cena de amor de toda a obra de Sartre se encontra em Drôle d'amitié, realizar o sonho primitivo da humanidade, aquele que está presente já nas len­
onde um homem morre nos braços dos seus companheiros. Em Nietzsche co­ das gregas e germânicas - correspondia sentimentalmente a uma exaltação de
mo em Sartre, e também em Saint-Exupéry, apesar das diferenças de tempera­ todas as possibilidades humanas. Sofria por ver o homem quase sempre preso
mento e de acentuação nas respectivas obras, pode descortinar-se a presença da às suas amarras» (<<Antoine de Saint-Exupéry, Weg und Werk», Gesta/ter unserer
mesma estrutura psicológica de pensamento: a tendência accionista para vencer Zeit, Oldenburgo, 1 954, p. 1 55). O mesmo autor descreve a acção de voar co­
a humilhante nulidade do eu, o medo da mulher (da mãe), a redução (homos­ mo uma forma de <<tornar-se uno com a máquina», de seguir em frente sem re­
sexualidade latente) do amor ao ideal da camaradagem, a equivalência (edipia­ serva, de conquistar <<um espaço vital totalmente novo». O que explica sem dú­
na) entre o amor e a morte e, a somar a tudo isto, a mistura asfixiante de pre­
vida a majestade poética de Saint-Exupéry ao descrever os seus voos, uma
tensão psíquica exorbitante e de modos de criança materialmente mimada que
majestade que Jules Roy compara muito justamente à de J. Conrad quando des­
eles foram» (op. cit., pp. 89-1 02). Sobre a infância de Sartre que, como Saint­
creve o mar e as travessias (Passion de Saint-Exupéry, Paris, 1 9 5 1 , PP· 27-36).
-Exupéry, cresceu sem pai numa família <<estrangeira», v. W. Biemel, jean-Paul
13 L. Séjourné vê simultaneamente na <<serpente emplumada» a imagem do
Sartre in Selbstzeugnisse und Bilddokumenten, Hamburgo, 1 964, pp. 7-23: este
nascer do Sol, do céu, do espírito (pássaro) e da matéria, das deusas femininas
autor insiste no hábito de Sartre de <<esconder o seu jogo», de ser sempre <<CO­
da terra, da noite e da morte (a serpente) (Aitmerikanische Kulturen, Frankfurt,
mo deve ser» e de <<ter de se voltar para os outros».
1 97 1 , p. 276).
1 0 Cf. Jean-Paul Sartre, <<L'intellectuel face à la révolution>>, entrevista
de J.-C. Garot, Le Point, Bruxelas, Jan. 1 968, pp. 1 8-23. Sobre a sua mistura
I4 É o caso do conto de Grimm A Bola de Cristal, onde os dois filhos de
de superioridade e de modéstia, v. W. Biemel, pp. 93- 1 02. um mágico são transformados em águia e em baleia. Cf. E. Drewermann e In­
11 Efectivamente, voar era para Saint-Exupéry a justificação para estar no gritt Neuhaus, Die Kristallkugel. Grimms Mdrchen tiefenpsychologisch gedeutet,
mundo; v. Luc Estang, op. cit., pp. 42-43, onde este autor insiste sobretudo t. VI, 1 985.
no jogo depressivo de Saint-Exupéry com a morte, um jogo que, desde a parti­ I S Piloto de Guerra, p. 38.
da da Aeropostal em 1 93 1 , foi o sentimento dominante da sua vida, e que o I6 <<Lemes de guerre a un ami», Écrits de guerre, p. 67.
levou a atitudes quase suicidárias aquando do seu acidente na baía de São Ra­ 17 E. A. Racky (op. cit. , pp. 26-38) insiste na personagem do homem
fael, em 1 933. de acção marcado pelas resistências que o forçam a ultrapassar-se a si mesmo,
12 P. Fedem insiste sobretudo no significado fálico do <<VOO» que, do ponto de tal forma que a sua missão, ou seja, o dever de que está incumbido, leva-o
de vista subjectivo, se pode traduzir sob a forma de sentimento qualitativo de a sentir-se ligado aos seus <<companheiros». <<O objectivo do seu esforço não é a
grandeza masculina, de acção exaltante e de união mística, ou seja, de tudo o felicidade, porque esta é um dom [ .. ] como a beleza» (p. 3 1 ) .
.

que tanto fascinava Saint-Exupéry («Ü ber zwei rypische Traumsensationen», in 1 8 Cidadela, cap. 1 1 2, pp. 3 1 O, 3 1 2. Ou ainda: <<Só aquilo que ofereces e
S. Freud, ed., }ahrbuch der Psychoanalyse, vol. VI, p. 1 28). R. Delange eira o corres o risco de perder existe verdadeiramente», ibid. , cap. 1 90, p. 483.
discurso do coronel Gelée, aquando da morre de Saint-Exupéry: «Aqueles que !9 O Principezinho, pp. 75-76.
2o
só de longe o conhecem podem ver nele tudo o que quiserem: poeta, moralis­ Cidadela, cap. 56, p. 1 88.
21
ta, sábio, mágico. Mas nós, os seus irmãos, sabemos que ele era essencialmente A maior parte dos biógrafos fala da infância globalmente feliz de Saint­
aviador, homem do ar. Não pela vanglória, nem por uma razão social que se -Exupéry, mas sem a descrever. R. Delange nada nos conta dele até aos dez

1 36 1 37
anos, a não ser que aos seis já se iniciara na composição de versos («Antoine de do maU>> e defender contra ele a criança Saint-Exupéry, quando a contradição
Saint-Exupéry)), in R. Delange e L. Wenh, op. cit., p. 1 1 ). K. Rauch refere o está no centro da sua infância, e portanto nele? É grande o risco de não ver no
mesmo, apoiando-se para tal nas informações fornecidas por Simone, irmã de Principezinho senão os seus desejos de criança e os sonhos por concretizar, fa­
Saint-Exupéry, e sobretudo no laço profundo que ligava Antoine a Paula zendo-se assim deste maravilhoso conto urna verdadeira bíblia para gente frus­
Hentschel, a governanta («Antoine de Saint-Exupéry, Mensch und Werb, trada. É necessário na realidade compreender que perigo devia justamente pro­
Gestalter unserer Zeit, Esslingen, 1 958, p. 23) . Mas nenhum destes biógrafos vocar esta «apatia>>, ou seja esta vida mimada de criança privada do pai. Em
considera necessário discutir o pano de fundo psíquico do seu desenvolvimen­ Piloto de Guerra, já com quarenta anos, descreverá a forma como teve de com­
to infantil. M. de Crisenoy conta de passagem corno, na sua procura de ternu­ bater enérgica, mas dificilmente, um dos hábitos de menino mimado: «E esse
ra, Antoine fingia-se doente para ser tratado pelas «religiosas de coifas brancas» saltar do leito era corno se nos arrancassem aos braços maternos, ao seio ma­
(cf. Piloto de Guerra, pp. 44-45), o que no entanto lhe dava ao mesmo tempo terno, a tudo o que, durante a meninice, rodeia de ternura, acaricia, protege
o sentimento de ser excluído pelos seus colegas; mas a aurora nem sequer se um corpo de menino>> (p. 76) . A dificuldade psicológica consiste rnanifesta­
interroga sobre a contradição que se encontra ao longo de toda a sua vida: este rneme em compreender que cerras formas de superprotecção, de mimo, �e
desejo de um amor que ele não encontra nos seus momentos de fraqueza e de amolecimento, podem ter um efeito não menos neurótico que um abuso de n­
que não necessita quando se sente forte. Aparentemente, ninguém se preocupa gor e de dureza. Não poderíamos em todo o caso compreender as tensões que
com a análise séria da arnbivalência e do impasse destas impressões de infância. marcaram desde o início o desenvolvimento de Saint-Exupéry se nos conten­
Em vez disso, são frequentes reflexões corno a de H. G. Nauen: «Saint­ tássemos, corno habitualmente fazemos, em opor o Principezinho ao mundo
-Exupéry deve ter vivido urna magnífica adolescência de sonho, um verdadeiro incompreensível das pessoas crescidas, considerando assim o se� conflito corno
paraíso de inocência e felicidade, urna fonte invisível à qual veio sempre re­ puramente exterior à sua pessoa; chegamos então a fazer do «reJ sol», que tam­
temperar forças, e que nunca lhe permitiu desesperar totalmente nas horas bém ele era, urna verdadeira personagem de lenda, a menos que nos condene­
mais sombrias da sua vida. Ele é o próprio Principezinho corno que caído do mos a urna massa de questões insolúveis. Na realidade, Saint-Exupéry torna
céu neste planeta» («Antoine de Saint-Exupéry: Leben und Werb, Stimmen bem claro em Terra dos Homens como a sua «concepção heróica do homem»
der Zeit, n.0 1 53, 1 953-1 954, p. 1 05). Até Luc Estang, que não deixa de criti­ lhe servia de pretexto para deixar de ser o filhinho da mamã: já chegado a
car a obra de Saint-Exupéry na sua globalidade, considera-o «a mais feliz das meio da sua vida, censura à velha governanta, Sophie, a ansiedade e os cuida­
crianças>>. Ele teve a sorte de «viver numa bela casa, de divertir-se em velhos dos com que ela o cumula: «Sabes sequer que há desertos onde se dorme na
parques, de encantar-se com as histórias de Paula, a governanta tirolesa, de rei­ noite gelada, e sem tecto, menina, sem cama, sem roupa?» (pp. 56-57). E, no
nar no meio da mais maternal das mães e dos mais dedicados irmãos e irmãs>> entanto, não deixa de sonhar com a sua «bela» infância, com a mãe, a gover­
(op. cit., p. 3 1 ) . É verdade: Saint-Exupéry nunca deixou de sonhar com a sua nanta Paula (cf. R. Zeller, La Vie secrête d'Antoine de Saínt-Exupéry ou la para­
infância, e é necessário portanto que os seus lados bons também tenham existi­ bole du Petít Prince, ed. cit., pp. 39-40).
do. Mas nenhum dos seus biógrafos pode ou quer conceber claramente que tal 22 Cidadela, cap. 5 5 , pp. 1 86- 1 87.
infância «maravilhosa>> seja uma armadilha, porque tem o poder de envenenar 23 Jbid., cap. 25, p. 1 1 8 .
com a angústia e a melancolia rodo o resto da vida e, ao mesmo tempo, pro­ 24 Ibid, cap. 1 26, p. 343 . Em Piloto de Guerra, Saint-Exupéry declara com
vocar esse desesperado combate contra a sufocação materna que transformará o uma franqueza desarmante: «A dignidade do indivíduo exige que não o redu­
Principezinho em Caide. ] .-C. Iben vê melhor as coisas, mas sem aprofundar zam à vassalagem mercê das larguezas de outrem» (p. 222) , e inversamente:
psicologicamente: «Para além da acção e do misticismo, há em Saint-Exupéry «Só a quem eu dou alguma coisa me sinto ligado» (p. 1 82) . No entanto, para
o mito da inocência ou da infância reencontrada [ . . . ]. Desde jovem, Saint­ justificar estas ideias, G. Pelissier escreve na sua Introdução à lenura de Cida­
-Exupéry sentia-se "exilado da sua infância", e, nas suas obras, evoca muitas dela: «Quando procuro, já encontrei, porque o espírito não deseja senão o que
vezes com nostalgia estes anos de inquietação em que nos descobrimos cheios possui. Encontrar é ver. E como poderia eu procurar alguma coisa que para
de sonhos, entregues à doce solicitude de alguma fada que dá forma às inúme­ mim não tivesse já sensibilidade?» (Syntheses, n.0 6, 1 95 1 , p. 306) . Mas trata-se
ras coisas invisíveis cuja presença adivinhamos à nossa volra» (Antoine de Saint­ de Pascal (pensamento 5 5 5 , numera çao de Léon Brunschwi g ) e n ã o de Saint­
-Exupély, Éd. Universitaires, p. 8 1 ) . Inversamente, vê no Principezinho, com o -Exupéry, e isto vale ap enas para o desejo que o homem rem de D �us, como
seu desprezo pelas pessoas crescidas, um duplo do próprio Saint-Exupéry. Mas acomece com Pascal. E absolutamente incorrecto aphcar tais afirmaçoes a. rela­
como é que isto não torna evidente a contradição que há entre vencer o «mun- ção entre homens e mulheres. Aliás, com estas palavras, Pascal pretendia trazer

1 38 1 39
pp. 99- 1 00). «Em nome de quê os arrancou à felicidade individual? A primeira
uma certeza à angústia metafísica do homem («Não te inquietes portanto»), lei não é proteger essas felicidades? Mas é ele próprio quem as destrói. E, no
enquanto que o teorema artificial de Saint-Exupéry apenas justifica a angústia entanto, um dia, fatalmente, esvaem-se como miragens os santuários de ouro.
diante de qualquer hipótese de proximidade feminina e o culto de uma «bus­ A velhice e a morte destroem-nos, mais impiedosas que ele próprio. Talvez
ca» pronta ao sacrifício. exista outra coisa qualquer a salvar e mais duradoura, talvez seja para a salva­
25 O Principezinho, p. 72.
ção daquela parte do homem que Riviere trabalha? Se não, a acção não se jus­
26 São as mesmas palavras que se encontram a propósito da «rapariga» nas
tifica>> (ibid., pp. 100- 1 0 1) . Com todo o respeito que se deve a Saim-Exupéry,
cartas a Lucie-Marie Decour. deve dizer-se que este tipo de filosofia roça inevitavelmente o cinismo. H á
27 F. Schiller, « Über Anmut und Würde», in Werke, ed. Tapf, Wiesbaden, também autores que s e j ulgam mesmo obrigados a ultrapassar Saint-Exupéry
t. II, pp. 505, 526. nesta matéria; como declara G. Gehring: «Não, Riviere não é desprovido de
28
E. Racky escreve a propósito de Voo Nocturno: « Riviere quer que o ho­ coração. Ele acredita que a compaixão é qualquer coisa de bom. I nfelizmente,
mem se ultrapasse a si mesmo. Estas ideias chegam-lhe de Friedrich Nietzsche não se trata senão do fim [sic.1 e, para atingi-lo, é necessário opor-se ao mal,
[ ...] O chefe pede aos seus aviadores que se subordinem totalmente a uma onde quer que ele se apresente. E, sobretudo, não cair na fraqueza! [ ...] O su­
obra comum. A obra é mdo e sobreviverá aos homens. Através dela os homens perior comanda os acontecimentos, ainda que seja forçado a vergar os ho­
participam na eternidade. Por ela, Riviere exige o sacrifício, a oferta, a renún­ mens>> (<<Der heroische Humanismus bei Exupéry», Die lebenden Fremdspra­
cia e a morte. Ele não se interroga nunca se a sua terrível exigência vem des­ chen, n.0 2, 1 95 0, p. 1 34). É surpreendente que, cinco anos após a queda do
truir uma felicidade humana. Para o chefe, ou, dito de outra forma, para III Reich, ainda se possa escrever tais coisas na Alemanha. Mas até autores co­
Saim-Exupéry na época de Voo Nocturno, a afirmação "a acção desfaz a felici­ mo J. C. Iben se mostram de acordo com a <<filosofia>> de Riviere: <<0 valor de
dade" era perfeitamente válida. Não é de espantar que certos críticos renham cada passo que dermos será proporcional ao esforço que teremos de fazer para
visto neste jovem escritor um fascista>> (op. cit., pp. 8 1 -82). Racky tenta ate­ sairmos de nós mesmos» (op. cit., p. 28). <<Que motivo invocar para legitimar
nuar esta crítica lembrando que para o escritor «havia qualquer coisa de eterno esta recusa da felicidade terrestre? Há a eternidade, a conquista do absoluto,
no homem>>. E então? Se o homem só se gera pela acção e, para Sainr­ a vitória sobre o medo da morre, a busca de uma divindade [ ...] . Indiferente à
-Exupéry, «não há felicidade, plenitude e paz [ ... ] senão na morte>> (p. 86) ... j ustiça ou à injustiça, Riviere dá alma à matéria humana>> (p. 30). Por conse­
É verdade que, já na Terra dos Homens, o heroísmo tocado de nietzschianismo guinte <<ele [Fabien] não existe>> (p. 3 1 ). «0 que importa para eles [os pilotos]
encontra o seu complemento numa arirude social-cristã de responsabilidade a é o caminho, não o fim a atingir>> (p. 56). É a justo título que, ao contrário,
que chamava também «amor>>. Mas em que subtileza voluntarista e �onrraída H. G. Nauen se interroga: <<O que teria então a vaga visão de Riviere a opor a
não se torna o amor quando Saint-Exupéry declara mais à freme: «E preciso esses campos da vergonha onde se sacrificaram milhões de pessoas a um "fim
começar pelo sacrifício para alicerçar o amor. O amor, depois, solicita outros contestável"?» (p. 1 05). Já em 1 932, Clifton Fadiman falava das <<ideias fascis­
sacrifícios e emprega-os em todas as vitórias. O homem não passa sem dar os tas>> e do <<heroísmo febril>> que Sainr-Exupéry elogiava em Voo Nocturno: «Esta
primeiros passos. Tem de nascer para existir>> (Piloto de Guerra, p. 227). deificação da vontade pura e da força, apresentada como vale�do por si, con­
29 Cidadela, cap. 1 08, pp. 209-300. Ver também a descrição de uma exe­
duz directamente à Treischke e à megalomania do Duce [ ... ] . E um livro peri­
cução em Lettres à sa mere, p. 1 22. goso [ ...] porque exalta uma ideia perniciosa enfeitando-a com um semimento
3 0 F. Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, IV Parte, «O Sinal», p. 383.
româmico>> (citado em C. Cate, op. cit. , p. 220, onde este último tenra em vão
3 ! «Tinha chegado àque l a fronreira onde se coloca não o problema duma
desculpar Sainr-Exupéry) . Quando H . G . Nauen sublinha a evolução de Saim­
pequena aflição particular mas o próprio problema da acção. À freme de Ri­ -Exupéry para um pensamento cristão mais marcado, a sua objecção torna-se
viere erguia-se não a mulher de Fabien mas um outro semido da vida. Riviere pouco convinceme (pp. 1 1 2- 1 1 3). Não é de todo erradamente que André Bre­
só podia escutar, lamentar aquela vozinha, aquele canto tão triste, mas inimi­ ton (amigo de Consuelo, mulher de Saim-Exupéry) julga Piloto de Guerra da
go. Pois nem a acção nem a felicidade individual admirem partilha: estão em mesma forma que Al exandre Kojeve, que considerava a obra «hscista» e carre­
conflito. Esta mulher falava, também ela, em nome de um mundo absoluto e aada de ideias <<paterna l istas» e «reaccionárias» (C. Cate, op. cit., p. 440) .
b
.
dos seus deveres e dos seus direitos. O mundo da claridade dum candeeiro em A. Fabri dizia a propós ito de Cidadela: «Da mesma fo rma que Samt-Exupéry
cima da mesa à noite, da carne que exigia a sua carne, duma pátria de esperan­ distorce a necessidade fazendo dela um meio, distorce também o diálogo fa­
ças, ternuras, recordações. Exigia o seu bem e tinha razão. E também ele, Ri­ zendo dele um monó l ogo.» << É uma espécie de moeda fa ls a fabricada bana fi-
viere, tinha razão [ . . .] >> ( Voo Nocturno, rrad . Carlos Leite, Lisboa, Difel, 1 989,

141
140
dei.>> E, com toda a razão, qualifica de magistralmente apodíctica em particular 35 «Hostis a todas as almas de anho, I Enraivecidas contra tudo o que pare­
a pequena «melodia teatralmente penosa>>: «Eu sou o chefe, eu sou o mestre, ça I Ovino, com olhos de cordeiro, com lã encaracolada, I Pardo, com a bene­
eu sou o responsáveL> É necessário ter em conta o facto de que finalmente volência do borrego e da ovelha!>> (Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratus­
Saint-Exupéry pôde fazer passar a sua derrota por vitória - o que acontecera tra, IV parte, «O Canto da Melancolia>>, p. 3 5 1 ) . Esta é a filosofia da
já em O Principezinho. Por seu lado, Luc Estang resume muito bem a questão: «natureza dos nobres>>, dos «aviadores>>.
«0 rosto da vontade criadora do homem, na obra de Saint-Exupéry, tem em 36 Cidadela, cap. 1 08, p. 303.
excesso o rosto da vontade de poder, seja ele o de Riviere ou o do Caide. Du­ 37 Ibid. , cap. 8 1 , p. 246. E. A. Racky explica muito justamente: «O deus
vido que o pensamento íntimo do autor tenha sabido matizar os contornos de de Saint-Exupéry não é o deus da revelação cristã. Como o escritor não é de
tal rosto. Tal como se nos oferece, é um rosto duro. Vejo bem que esta dureza facto um cristão crente, vê em Deus apenas o cume de uma hierarquia em cu­
é a do jardineiro que talha a árvore e, em caso de necessidade, abate as árvores jo último grau se encontra o homem. A ideia de uma revelação repugna-o,
vizinhas [ ... ]. Mas o homem não é uma árvore. As imagens não são mais do pois considera-a uma descida de Deus ao nível do homem como uma munda­
que imagens, e muitas vezes Saint-Exupéry cede abusivamente à sua atracção>> nização do criador. Isto explica que Jesus Cristo não tenha lugar na sua obra.>>
(p. 1 06). O escritor quer salvar os homens, mas não por julgar cada um deles L Werth declara no seu comentário sobre a Cidadela: «Este Deus não se atin­
insubstituível. É em razão da espécie que ele adopta o ponto de vista do jardi­ ge. Ele responde à prece com o silêncio [ ... ] . Este Deus [ ... ] não é um deus fá­
neiro. Cf. Terra dos Homens, p. 30, onde compara a morte dos companheiros cil, que autoriza uma confortável instalação na fé ou se contenta com uma
com uma deflorestação. V. tb. pp. 1 56- 1 57. É claro que R. Zeller não está
aprovação benevolente [ ...] . Um cristianismo inato, um cristianismo amado
menos certo quando considera absolutamente admirável a definição do ho­
(muitas vezes disse que a sua civilização era de valores cristãos) mistura-se com
mem: «A árvore - é esta força que, lentamente, desposa o céU>> (L 'Homme et
a concepção de um império duro, onde se fuzilam as sentinelas adormecidas»
le Navire de Saint-Exupéry, Paris, 1 950, p. 83).
(in R. Delange e L Wenh, op. cit., p. 1 46) . P. Chevrier compara a ideia de
32 E. Drewermann, «Le tragique et le chrétien>>, La Peur et la Faute, trad.
Deus de Saint-Exupéry com a de Sartre em O Diabo e o Bom Deus: <Nês este
fr. J.-P. Bagot, Éd. Du Cerf, 1 992.
vazio sobre as nossas cabeças? É Deus. Vês esta brecha na porta? É Deus. Vês
33 Voo Nocturno, p. 1 45.
este buraco no chão? Também é Deus. O silêncio é Deus. A ausência é Deus,
34 W. Krickeberg, Aftmexikanische Kufturen, DüsseldorfiColónia, 1 968,
pp. 1 73- 1 74; P. J. Schmidt, Der Sonnenstein der Azteken, Wegweiser zur Véil­ é a solidão dos homens» (NRF, 1 95 1 , p. 276); cf. P. Chevrier, op. cit., p. 1 1 9.
kerkunde, t. Vl, Selbsrverlag des Hamburgischen Museum für Volkerkunde, Efectivamente, o pomo de vista de Saint-Exupéry está mais perto do do exis­
Hamburgo, 1 974. A comparação com as culturas índias surgiu espontanea­ tencialismo de Sartre do que do cristão (cf. n. 9 deste capítulo). Mas, quando
mente em Saint-Exupéry, em Voo Nocturno: «"Amar, amar somente, que beco ele nomeava a solidão de «Deus>>, sentia-se de cena forma religioso, ao passo
sem saída!" Riviere teve o obscuro sentimento dum dever maior que o de que Sartre recusa terminantemente qualquer atitude religiosa.
amar. Ou então tratava-se também duma ternura, mas tão diferente das outras! 38 «Eu caminhava obstinadamenre pela ladeira acima, ao encontro de
Uma frase veio-lhe à memória: "Trata-se de fazer deles eternos ... " Onde lera Deus. la disposto a pergunrar-lhe a razão das coisas. Queria que Ele me expli­
isto? "O que perseguis em vós próprios morre." Voltou a ver um templo ao casse a que levava a troca que me tinham pretendido impor. Mas, no alto da
deus do Sol dos antigos Incas do Peru. Aquelas pedras ao alto, na montanha. montanha, apenas descobri um bloco pesado de granito negro. Tornei-o por
Que ficaria, sem elas, duma civilização poderosa, que pesava com o peso das Deus» (Cidadela, cap. 73, p. 228) . A propósito deste Deus, Luc Estang co­
suas pedras sobre o homem de hoje, como um remorso? "Em nome de que menta com j usteza: «Será o Deus de Saint-Exupéry [ ...] apenas o deus dos filó­
dureza, ou de que estranho amor, o condutor de povos de outrora, ao obrigar sofos? De modo algum, porque a sua transcendência é ilusória. Ele fluma na
as multidões a erguer aquele templo na montanha, lhes impôs que erguessem imanência. Não preexiste ao homem: é projectado pelo homem. É aspiração
ao alto a sua eternidade?" Riviere voltou a ver ainda em imaginação as multi­ deísta que cria ela mesma o seu objecto de adoração [ . . .] . Também para o hu­
dões das cidadezinhas, que à noite dão voltas à sua barraca de música: "Essa manismo de Saint-Exupéry "Deus morreu", mas em vez de o proclamar e de
espécie de felicidade, esse arnês ... ", pensou. O condutor de povos de outrora, prover, se possível, à sua substituiçao, ele nomeia Deus com os próprios signos
se não tinha talvez piedade do sofrimento do homem, teve piedade, imensamen­ da morte: o silêncio e a ausência. É agir "à espera de Godot",, (pp. 1 49- 1 50) .
te, da sua morre. Não da sua morte individual, mas aquela piedade que o mar Só em pane J .-C. Jben tem raz:io quando explica que, •<herdeiro de Pascal e de
de areia apagará. E conduzia o seu povo a erguer pelo menos pedras que o de­ Nietzsche, Saint-Exupéry conseguiu ultrapassar o cristianismo do primeiro e o
serro não engolisse>> (p. 1 0 1 ) . ateísmo do segundo. À fórmula de Nietzsche "Deus morreu" [fórmula na rea-

1 42 1 43
l!dade de Hegel], opõe outra fórmula: "Deus cala-se" » (p. 1 09, cf. n. 1 45).
prefere pelo menos uma vez na vida a morre à desonra, [ ... ] pode pronunciar­
E nos Carnets, após uma longa explicação das contradições do cristianismo (a
-se a palavra sem medo: Saint-Exupéry é um herói [ ... ] um cavaleiro» (p. 86);
desonestidade intelectual, a polémica contra os «descrentes», a visão conserva­
mas quando este escritor compara finalmente a situação dos seus amigos com a
dora da propriedade, contraditória com o Evangelho, o dogmatismo incontes­
dos discípulos de Emaús, cujos olhos só se abriram através da morte do seu
tável), que Saint-Exupéry se exprime mais claramente: «Pouco me importa que
Mestre, e procura insinuar a ideia de que a morte precoce deste herói, ou a
Deus não exista! Deus dá ao homem divindade>> (Nouvelle Revue Française,
«pureza da sua morte», é o que confere glória à sua vida, ou seja, à «lenda que
n.0 2 1 6, p. 57). Por outras palavras, é preciso falar de Deus como do «perfeito
tinha anunciado» (pp. 42-43) , isto torna-se um pouco macabro.
suporte simbólico do que é ao mesmo tempo inacessível e absoluto» (ibid.,
45 Luc Estang assinala muito justamente a dupla natureza de Saint­
p. 20). Em Piloto de Guerra, declara que substitui no fundo a noção cristã de
-Exupéry: «É preciso tomar o seu partido: Saint-Exupéry é a um tempo o
Deus pela do «homem» encoberto pelo nome de Deus. «Compreendo agora a
Principezinho e o grande Caide. Para qual deles pende a sua afeição? A cabeça
origem do respeito que os homens têm uns pelos outros [ . . .] . A minha civiliza­
para um e o coração para o outro? Não sei. O que é certo é que a dualidade
ção, herdeira de Deus, tornou os homens irmãos no Homem» (pp. 2 I 1 -2 1 2).
exprime-o por inteiro» (pp. 38-39; cf. pp. 28-29) .
O que subiste é uma herança da Igreja Católica esvaziada do seu sentido: auto­
ridade, ritos, cerimonial e sacrifício. «Saint-Exupéry era um indagador de
Deus, um faminto do "pão celestial",, escreve M. Wicki-Vogt, a tradutora ale­ 3. Entre a «Cidadela» e a Jerusalém celeste
mã da obra de M. de Crisenoy, Antoine de Saint-Exupéry, poete et aviateur,
Spes, s/d (p. 5 da tradução alemã). É verdade. Mas era um indagador que ti­ 1 Este é o título de um tratado de G. Rohrmoser sobre a reforma da cons­
nha medo, um faminto obcecado com a ideia de ser devorado. ciência religiosa (Estugarda, I 975), em que o seu autor apela para a «renova­
39 Cidadela, cap. 2 I3, p. 570. ção da substância cristã graças a uma mutação revolucionária da sua forma
40 Ibid., cap. 2, pp. 33-34. dogmática, ética, política e sociológica». Mas é uma perspectiva puramente he­
41 C( Nietzsche, A Vontade de Poder, n.0 I 062: «Mesmo que já não haja geliana.
Deus, o mundo deve manter a sua capacidade criadora divina, a sua força de 2 Sobre a imagem divina na narrativa da criação e do pecado original, v.
transformação universah; e n.0 I 06 I : «As duas formas extremas de pensamen­ E. Drewermann, Strukturen des Bosen, t. I, pp. 9 1 -97.
to - a do mecanicismo e a do platonismo - juntam-se no eterno retorno, 3 Cf. o poema de F. Werfel: «Não mais I rirei de um rosto de homem. I
ambas como ideal.» Não mais I j ulgarei o seu ser. I É claro que existem frontes de canibais. I É cla­
42 C( o terrível poema de Nietzsche «Quem me aquece, quem me ama ro que há olhos de alcoviteiros. I É claro que há lábios devoradores. I Mas, sú­
ainda?» (Assim Falava Zaratustra, IV parte, «0 Enfeitiçador>>, p. 293). bito, I do discurso sem brilho, I daquele que j ulgamos fraco I e diante do qual
43 C( em particular G. Lukács, Die Zerstorung der Vernunft (A Destruição encolhemos os ombros, I eis que se exala um doce odor de tília, I o da nossa
da Razão), t. II: .o autor considera o irracionalismo da visão do mundo inaugu­ pátria distante, I e arrependo-me do meu julgamento retorcido. I No mais la­
rada por Nietzsche o fundamento espiritual da ideologia fascista. macento dos rostos, I a luz divina espera renascer. I Os corações ávidos liber­
44 «Carta ao General "X",, in Um Sentido para a Vida, p. I 99. Isto não tam-se da lama. I Mas em cada homem aqui em baixo I é o regresso do salva­
impede com certeza certos biógrafos de integrarem justamente a morre de dor que me é prometido» ( Was ein jeder sogleich nachsprechen sol!, in Das
Saint-Exupéry no miro do «herói». Cf. ]. Roy, op. cit., pp. 68-69, onde este fa­ !yrische Werk, pp. 276-277, Frankfurt, 1 967).
4 Cidadela, cap. 9, p. 64; cap. 65, pp. 205-207; cap. 75, pp. 232-234.
la da angústia e do desespero que marcaram a sua vida por volta de I 943; mas,
como é habitual nas lendas e nas sagas, atribui-se sempre as contradições do 5 Cf. B. S. Morenz, A!tiigyptischer jenseitsführer, Papyrus Ber!in 3127. Mit
herói à tensão entre ele e o mundo que o rodeia. É então ao destino da França Bemerkungen zur Toten!itteratur der Aegypter, Leipzig, 1 964, p. 1 3: «As catorze
e à situação do mundo que seria preciso essencialmente atribuir a sua solidão e estações no reino dos mortos (Livro dos Mortos, cap. CXLIX) , percorridas por
o seu abatimento. Na realidade, o desespero já está presente no coração da uma jibóia gigante ferida simbolizando o Nilo, têm o nome de "Estaçáo do
Velho Cairo, a oeste do Céu". Eis um caso notável em que um lugar terrestre
pessoa e, por muito trágicas que sejam, não utiliza as ci rcunstâncias senão co­
se encomra colocado no céu, ral como a "Jerusalém celeste" da Bíblia» (cerca
mo pretexto. No momento do desembarque nas praias da Normandia, os
de 1 000 anos a. C.) .
Franceses podem experimentar um cerro prazer ao ouvir Jules Roy declarar:
6 V. Ions, Aegyptische Mytho!ogie, rrad. do inglês, Wiesbaden, 1 968, p. 85,
«Se se aceitar a definição que Bernanos, creio, deu do herói, um homem que
imagens 42, 43, 54, 74, 75.

1 44
7 «Ü enigma da vida, o enigma da morre, o charme do génio, o charme
da nudez, tudo isto poderíamos compreender. Quanto às pequenas questões
do mundo, como a reconstrução do globo terrestre, lamentamos, mas não é da
nossa conta>> (Boris Pasternak, Doutor jivago).
8 Foi essencialmente aos Egípcios que os filósofos gregos foram buscar a
sua ideia de eternidade, em particular no caso de Platão, o que conferiu ao seu
pensamento um certo valor universal. «Porque agora vemos num espelho, co­
mo um enigma, mas então será frente a frente. Hoje conheço de uma maneira
parcial; mas então conhecerei como sou conhecido. Agora, portanto, permane­
cem fé, esperança, caridade, estas três coisas. Mas a maior delas é a caridade»
(1 Co 1 3, 1 2- 1 3) .
ÍNDICE

Prólogo ................................ .......................................... 5


Introdução ........................................ ............................. 9

A MENSAGEM

1. O menino-rei: uma redescoberta quase religiosa ..... 15


2. As pessoas crescidas: retrato da solidão . . . . . . . . . . . . . . .. . . . 23
3. A sabedoria do deserto e a busca do amor ............ 40
4. Do amor e da morte: uma janela para as estrelas . . . 54

QUESTÕ ES E ANÁLISES

1 . O segredo da Rosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
2. O segredo de Ícaro...................................................... 91
3. Entre a «Cidadela» e a Jerusalém celeste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 12

Notas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 19

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