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Fernando Nicknich
fnicknich@gmail.com
INTRODUÇÃO
substituído pelo seu valor de troca (ou ainda, o seu valor comercial). Nessa
substituição, a apreciação e valoração passam a se dar não mais pelas qualidades
que são próprias à obra, mas pelo seu valor de mercado.
tirar a liberdade dos indivíduos. A eles resta escolher entre um produto ou outro,
mas ninguém mais questiona se esses produtos são de fato justificados e
coerentes para si. “Já não há campo para escolha;” diz Adorno, “nem sequer se
coloca mais o problema, e ninguém exige que os cânones da convenção sejam
subjetivamente justificados (...).” (ADORNO, 1996, p.65-66) Essa não-justificação
subjetiva das obras tem importância para Adorno porque denota uma
determinada postura dos indivíduos perante seus próprios julgamentos de valor:
esses indivíduos simplesmente aceitam o que lhes é oferecido; não são capazes de
entrar em contato genuíno com uma obra de arte, compreendendo-a
verdadeiramente, mas apenas absorvem sua aparência externa. Sua capacidade
de reconhecer o que diz respeito a si – o que é subjetivamente justificado – é
turvada, de modo que eles passam a travar contato com obras de arte não porque
reconhecem o seu valor intrínseco, mas simplesmente por elas serem conhecidas
da multidão.
parece que tal música contribui ainda mais para o emudecimento dos
homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade
de comunicação. A música de entretenimento preenche os vazios do
silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo
cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências. (...) A música de
entretenimento serve ainda – e apenas – como fundo. Se ninguém mais é
capaz de falar realmente, é óbvio também que já ninguém é capaz de
ouvir. (p.67)
O ponto central dessa crítica é bastante claro. Há, para Adorno, uma
separação irreconciliável entre a música de entretenimento e a música séria. A
música de entretenimento não requer do ouvinte que ele esteja atento à escuta,
enquanto que a música séria necessita da atenção para se realizar. Sem atenção,
a música se decompõe em momentos isolados e desconexos, a audição se
fragmenta e o interesse se desvia do ponto ao qual deveria se ater. Não é mais a
construção musical em sua unidade formal que passa a ser apreciada, mas os
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O FE(I)TICHE DE LATOUR
Essa distinção funda, segundo Latour, dois modos de vida. Ao modo de vida
que assume a distinção, Latour dá o nome de teórico. Em contrapartida, o outro
modo de vida, que não faz a distinção, não compreendendo nunca a separação
entre ambos os pólos, Latour o chama prático. (p.41) A noção de crença
novamente adquire um papel no sentido de auxiliar na manutenção dessa
separação. “A crença”, diz Latour, “(...) é o que permite manter à distância a
forma de vida prática – onde se faz fazer – e as formas de vida teóricas – onde se
deve escolher entre fatos e fetiches.” (p.44) Se na vida teórica é paradoxal
imaginar que um fato possa ser construído, na vida prática, construtivismo e
realismo se mantêm sempre sinônimos. Não há paradoxo entre construir um fato
e observar o fato como real.
Ainda que o fetiche não seja nada senão aquilo que o homem faz dele, ele
acrescenta, contudo, alguma coisa: ele inverte a origem da ação, ele
dissimula o trabalho humano de manipulação, ele transforma o criador
em criatura. Mas o fetiche faz ainda mais: ele modifica a qualidade da
ação e do trabalho humanos. (p.26-27, grifos do autor)
próprio deixou isso claro, dizendo que seria possível objetar, às suas críticas, que
“a música ligeira e toda a música destinada ao consumo nunca foram
experimentadas segundo as mencionadas categorias” (ADORNO, 1996, p.66).
Contudo, a ele era inadmissível que a música séria, ao ser industrializada,
acabasse também ela levada à ordem do entretenimento. A despeito disso, a
própria categorização, que separa a experiência da fruição estética, essa
experiência tão humana, em experiências sérias ou ‘de entretenimento’,
precisaria ser repensada. Pois, no reino da prática, a prática que atesta a
sabedoria do passe dos fe(i)tiches, não há outra coisa que a simples ação, que se
sedimenta em realidade sem qualquer necessidade de que seja categorizada ou
classificada em experiências válidas ou inválidas. Como justificar, afinal, que
uma experiência cultural não seja válida para um determinado indivíduo?
Há, ainda, um aspecto que é preciso notar, que remete ao sentido da
criação artística. Para Adorno, como vimos, a significação da música – a única
possível – estava na existência de uma construção lógica dessa música, que
pudesse ser apreendida intelectualmente por um indivíduo que estivesse apto
para tal. Por outro lado, o aparecimento dos fe(i)tiches parece deslocar o sentido
da arte para outro lugar. Estaria a significação de uma obra musical diretamente
ligada à ordenação objetiva de materiais musicais de que ela se compõe, ou
estaria ela ligada a uma relação mais profunda e imediata, uma integração do
criador com a sua criatura, do artista ou do próprio ouvinte com o seu fe(i)tiche
particular? Latour traz uma observação interessante a esse respeito:
BIBLIOGRAFIA