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FETICHES E FE(I)TICHES: A CRÍTICA DE THEODOR ADORNO À


INDÚSTRIA CULTURAL SOB A ÓTICA DA ANTROPOLOGIA
SIMÉTRICA DE BRUNO LATOUR

Fernando Nicknich
fnicknich@gmail.com

RESUMO: O objetivo do presente artigo é propor uma rápida análise da crítica de


Theodor Adorno à indústria cultural por um viés antropológico. Adorno acusa a indústria
cultural de fetichizar os bens culturais, tomando esse conceito emprestado da teoria
marxista. Sobrepõe-se, aqui, a essa acusação do filósofo alemão, as reflexões mais
recentes da antropologia simétrica de Bruno Latour, para quem o fetiche se caracteriza
como algo distinto. Através da ótica antropológica, reavalia-se a crítica adorniana
reposicionando-a em relação ao objeto da sua crítica. Por fim, apresenta-se o conceito de
fe(i)tiche, cunhado por Latour, como uma alternativa para uma possível compreensão do
valor e sentido do fazer artístico na atualidade.

Palavras-chave: Fetichismo; Adorno; Latour; Indústria Cultural; Frankfurt

INTRODUÇÃO

O surgimento da noção de indústria cultural na história do pensamento


crítico é inseparável da noção marxista de fetiche. O conceito, cunhado pelos
filósofos da Escola de Frankfurt na primeira metade do século passado – em
especial, Theodor Adorno e Max Horkheimer – designava certa transformação a
que vinham passando as sociedades industrializadas na sua esfera cultural.
Segundo os filósofos, a industrialização da produção artística transformava
artefatos culturais em mercadorias, levando-os a ser regidos não mais pela lógica
da fruição estética pura – que se voltava ao desvelar do valor artístico intrínseco
ao objeto artístico, o que era possível somente através de um olhar capacitado
para tal –, mas sim, pelas lógicas do mercado e do consumo. A denúncia de
Adorno, então, consistia em fazer notar que a possibilidade de adquirir uma
gravação de uma sinfonia de Beethoven, por exemplo, não significava que o
comprador se tornaria capaz de experimentar uma profunda e verdadeira fruição
da obra. Portanto, a ampla difusão das obras artísticas não contribuía
verdadeiramente para uma ampliação da vivência cultural das pessoas, mas
antes, acabava por disseminar uma prática que vinha a constituir uma
verdadeira fetichização da cultura: a idéia de que simplesmente por comprar bens
culturais a pessoa estaria participando ativamente de uma vida cultural genuina.
Há nessa fetichização, segundo Adorno, uma substituição de valores que a
um só tempo provoca e garante a sustentação desse estado de coisas. O valor de
uso de uma obra de arte – ou ainda, aquilo pelo que ela teria algum valor real – é
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substituído pelo seu valor de troca (ou ainda, o seu valor comercial). Nessa
substituição, a apreciação e valoração passam a se dar não mais pelas qualidades
que são próprias à obra, mas pelo seu valor de mercado.

O conceito de fetichismo musical não se pode deduzir por meios


puramente psicológicos. O fato de que ‘valores’ sejam consumidos e
atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam
sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, constitui uma
evidência da sua característica de mercadoria. (ADORNO, 1996, p.77)

Nessa substituição, encontra-se precisamente o conceito de fetiche cunhado


por Marx em O Capital: de acordo com a teoria marxista, na economia de
mercado os artefatos adquirem um valor independente das suas qualidades
próprias ao serem transformados em mercadoria – o valor de troca –, valor este
que passa a intermediar a relação entre os homens na medida em que estes se
relacionam entre si para trocar seus produtos. Essa intervenção da mercadoria
nas relações humanas transforma a própria mercadoria em algo mais do que ela
própria, e é justamente por incorporar essa força que lhe é externa que ela acaba
transformada em fetiche. Não só o seu valor e suas propriedades acabam
deslocados e transfigurados, mas também as origens e os fundamentos das
próprias relações entre os homens, que não mais acontecem de forma imediata.
(PIRES, 1998). Para Adorno, então, o fetichismo musical diz respeito a
determinada forma de relação dos homens com seus produtos artísticos,
caracterizada por certa confusão acerca do significado real dessas relações.
O conceito de fetiche foi também tratado mais recentemente pelo
antropólogo francês Bruno Latour, contudo, num sentido bastante diverso
daquele dos filósofos alemães. Em Reflexão Sobre o Culto Moderno dos Deuses
Fe(i)tiches, Latour caracteriza o fetiche menos por uma determinada forma de
relação dos homens com os objetos por eles fabricados do que por uma crença
mais profunda. O fetiche estaria menos entre os próprios (supostos) fetichistas do
que nos olhos do observador, naquele que faz a denúncia.
Utilizaremos aqui o artigo O Fetichismo na Música e a Regressão da
Audição para ilustrar as razões pelas quais Adorno vem a considerar todo fruto
da indústria cultural como fetiche, apontando os argumentos centrais que o
levam a essa caracterização. Em seguida, contraporemos a essa conceituação a
noção de fetiche desenvolvida pela reflexão de Latour para, por fim, ver de que
forma esta nos obriga a reconsiderar a crítica adorniana, reposicionando-a no
âmbito do pensamento crítico contemporâneo e reavaliando os valores e críticas
culturais por ela defendidos.

O FETICHE DA INDÚSTRIA CULTURAL

A primeira das denúncias feitas por Adorno ao sistema de industrialização


das obras de arte é que a oferta de produtos artísticos pela indústria acaba por
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tirar a liberdade dos indivíduos. A eles resta escolher entre um produto ou outro,
mas ninguém mais questiona se esses produtos são de fato justificados e
coerentes para si. “Já não há campo para escolha;” diz Adorno, “nem sequer se
coloca mais o problema, e ninguém exige que os cânones da convenção sejam
subjetivamente justificados (...).” (ADORNO, 1996, p.65-66) Essa não-justificação
subjetiva das obras tem importância para Adorno porque denota uma
determinada postura dos indivíduos perante seus próprios julgamentos de valor:
esses indivíduos simplesmente aceitam o que lhes é oferecido; não são capazes de
entrar em contato genuíno com uma obra de arte, compreendendo-a
verdadeiramente, mas apenas absorvem sua aparência externa. Sua capacidade
de reconhecer o que diz respeito a si – o que é subjetivamente justificado – é
turvada, de modo que eles passam a travar contato com obras de arte não porque
reconhecem o seu valor intrínseco, mas simplesmente por elas serem conhecidas
da multidão.

O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê


cercado de mercadorias musicais padronizadas. Tal indivíduo já não
consegue subtrair-se ao jugo da opinião pública, nem tampouco pode
decidir com liberdade quanto ao que lhe é apresentado, uma vez que tudo
o que se lhe oferece é tão semelhante ou idêntico que a predileção, na
realidade, se prende apenas ao detalhe biográfico, ou mesmo à situação
concreta em que a música é ouvida. (p.66)

Adorno complementa: “As categorias da arte autônoma, procurada e


cultivada em virtude do seu próprio valor intrínseco, já não têm valor para
apreciação musical de hoje.” (p.66). Com a impossibilidade do exercício da
individualidade, não são mais possíveis experiências de valoração genuínas.
Nesse meio, a música se transforma em mero entretenimento, e a essa função
sucumbe inclusive a música (assim denominada) séria. Essa música de
entretenimento de modo algum é proveitosa:

parece que tal música contribui ainda mais para o emudecimento dos
homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade
de comunicação. A música de entretenimento preenche os vazios do
silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo
cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências. (...) A música de
entretenimento serve ainda – e apenas – como fundo. Se ninguém mais é
capaz de falar realmente, é óbvio também que já ninguém é capaz de
ouvir. (p.67)

O ponto central dessa crítica é bastante claro. Há, para Adorno, uma
separação irreconciliável entre a música de entretenimento e a música séria. A
música de entretenimento não requer do ouvinte que ele esteja atento à escuta,
enquanto que a música séria necessita da atenção para se realizar. Sem atenção,
a música se decompõe em momentos isolados e desconexos, a audição se
fragmenta e o interesse se desvia do ponto ao qual deveria se ater. Não é mais a
construção musical em sua unidade formal que passa a ser apreciada, mas os
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meros atrativos sensoriais do som. A questão central, aqui, é que “o prazer do


momento e da fachada de variedade transforma-se em pretexto para desobrigar o
ouvinte de pensar no todo, cuja exigência está incluída na audição adequada e
justa.” (p.70, grifo nosso). Em outras palavras, para Adorno a apreensão justa de
uma obra de arte só pode se realizar através de uma escuta atenta, voltada à
busca da compreensão do todo musical em sua coerência interna, pois é somente
essa compreensão que possibilita ao ouvinte atingir a essência da obra.
É por essa capacidade de sintetizar os momentos musicais isolados numa
totalidade coerente que a música séria é supostamente de mais valor. Diz Adorno:
“na variedade dos encantos e da expressão comprova-se sua grandeza como força
que conduz à síntese.” (ADORNO, p.69) A importância dessa capacidade de
síntese está no fato de que ela, a síntese, “conserva a unidade da aparência e a
protege [a música] do perigo de derivar para a tentação do ‘bonvivantismo’.”
(p.69) Em seu reflexo social, a síntese garantiria a fundação de uma realidade
verdadeira – uma realidade comungada por todos – que possibilitasse a
experiência de uma felicidade que não fosse apenas ilusória:

Em tal unidade, também, na relação dos momentos particulares com um


todo em produção, fixa-se a imagem de uma situação social na qual – e só
nela – esses elementos particulares de felicidade seriam mais do que
mera aparência. (p.69)

As críticas adornianas à música ligeira derivam, então, do fato que ela se


compõe de fragmentos que nunca chegam a uma síntese, oferecendo ao ouvinte
apenas aparências de verdade e felicidade que, justamente por não terem força de
síntese, nunca deixam de ser ilusórias. A verdadeira felicidade, ao contrário,
estaria na observância do todo musical, na síntese dos encantos e prazeres,
apenas encontrados na correta apreciação da música séria.
Há ainda mais uma questão a ser notada para a caracterização definitiva
do caráter fetichista da música da indústria. Segundo o filósofo, o que a indústria
oferece não são obras de arte, mas apenas uma imagem já pronta delas. Se os
ouvintes só entram em contato com a aparência das obras de arte, é também
porque no campo das artes, aquilo que se comercializa é de natureza peculiar: “tal
setor se apresenta no mundo das mercadorias precisamente como excluído do
poder da troca, como um setor de imediatidade em relação aos bens, e é
exclusivamente a esta aparência que os bens da cultura devem o seu valor de
troca.” (ADORNO, 1996, p.78, grifo nosso). Em outras palavras, a apreciação
artística só se realiza num contato imediato do ouvinte com a obra. Ninguém
pode substituir o ouvinte na função que lhe compete de compreender a música
que lhe é apresentada, pois é na consciência do ouvinte que a música se constrói e
passa a existir como tal. Essa relação imediata não pode ser comercializada, e em
nenhum momento um produto da indústria consegue garantir a realização dessa
interação.
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Além disso, as gravações contribuem a seu modo para esse estado de


coisas. Elas eliminam os aspectos de espontaneidade da execução musical e
reificam as performances gravadas. Simplesmente por estar no catálogo da
indústria, a obra se torna uma espécie de referência a partir da qual todas as
performances posteriores tendem a se reportar. As gravações sedimentam a obra,
engessando-a e atribuindo-lhe o estatuto de um artefato supremo e intocável. O
que se conserva, no entanto, não é a própria possibilidade de realização da obra,
mas apenas sua aparência, o seu caráter fetichista. (p.81-82) Nesse campo,

o novo fetiche (...) é o aparato como tal, imponente e brilhante, que


funciona sem falhas e sem lacunas, no qual todas as rodas engrenam
umas nas outras com tanta perfeição e exatidão que já não resta a
mínima fenda para a captação do sentido do todo. A interpretação
perfeita e sem defeito, característica do novo estilo, conserva a obra a
expensas do preço da sua coisificação definitiva. Apresenta-a como algo já
pronto e acabado desde as primeiras notas; a execução soa exatamente
como se fosse sua própria gravação no disco. (p.86)

A fetichização da música se caracteriza, então, de dois modos: por um lado,


numa atenção desviada, onde o verdadeiro valor musical, somente encontrado na
síntese dos seus elementos, desvia-se para os atrativos sensoriais do som, que
nada oferecem se não uma aparência de verdade. Nessa forma de escuta, “exalta-
se o material em si mesmo, destituído de qualquer função” (p.76). O valor da
música é substituído pelo dos próprios instrumentos. Os meios – o material com
que a música é produzida – são trocados pelos fins – a própria música. Por outro
lado, o fetiche se evidencia na propagação de obras estereotipadas cujos valores
jamais são questionados e cuja aceitação se dá menos pelo fato de haver uma
apreciação genuína acerca dessas obras do que pelo fato delas serem amplamente
conhecidas.
Vejamos, então, de que modo Latour define o fetiche, e de que modo a
crítica de Adorno se configura ao ser tomada através das lentes da reflexão de
Latour.

O FE(I)TICHE DE LATOUR

O caminho percorrido por Latour para chegar a uma compreensão dos


fetiches é deveras distinto daquele de Adorno. A substituição que estaria na
gênese dos fetiches não é mais aquela que Adorno tomara emprestada de Marx.
Não se trata de substituir o valor de uso pelo valor de troca de um determinado
artigo fabricado pela mão humana, mas antes, trata-se de uma “substituição” na
própria visão de realidade daqueles que se colocam na posição de antifetichistas.
Vejamos o que isso significa.
Latour ilustra a chegada dos navegadores portugueses à costa da África,
onde se deparam com negros cujos cultos se desenvolviam em torno de estatuetas
e artefatos que aos olhos portugueses não tinham qualquer caráter sagrado.
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Inconformados com aquela idolatria, os portugueses questionam: “Vocês


realmente pensam que essas estatuetas sejam divindades?” Frente à resposta
afirmativa dos negros, os portugueses, indignados, acrescentam outra pergunta:
“E vocês também afirmam que vocês mesmos fabricam essas estátuas?”
Naturalmente, a resposta é afirmativa uma vez mais. Ora, se eles mesmos
criavam seus deuses, como poderiam imaginar que esses mesmos deuses os
determinavam? Acusados de serem adoradores de fetiches, os negros
aparentemente não percebiam a contradição em que se encontravam.
Era preciso que eles tomassem uma decisão: ou bem os seus deuses
existiam de fato, objetivamente, de modo a realmente influenciá-los, ou bem eles
os fabricavam, projetando as próprias forças subjetivas naqueles objetos inertes.
Se os deuses de fato existiam, era dever dos negros perceber quanta presunção
havia na idéia de que eles próprios tivessem o poder de fabricá-los. Por outro
lado, se de fato os negros os fabricavam, deveriam então reconhecer que não
poderiam ser determinados por aqueles deuses, já que eles não eram reais.
Essa descrição, apresentada nas primeiras páginas de Reflexão Sobre o
Culto Moderno dos Deuses Fe(i)tiches (LATOUR, 2002, p.15-16), certamente fala
mais do mundo dos portugueses do que do mundo dos negros. Ora, não é para os
negros que o paradoxo existe, mas sim, para os portugueses. Aos olhos destes,
filhos da cosmovisão cristã, o mundo é um dado já criado e pronto, um em-si.
Assim sendo, ou o indivíduo conhece a verdade acerca do mundo – os fatos – ou
vive segundo crenças quaisquer – fetiches. Surge daí, então, a noção de crença,
que para os portugueses designava o estado daqueles que não conhecem o mundo,
mas que julgam conhecer; aqueles que não conhecem o sagrado, mas julgam
(erroneamente) reconhecer a sua força em determinados artefatos não-sacros.
A noção de crença promove ou faz notar uma divisão do mundo em duas
partes aparentemente irreconciliáveis: aquela do conhecimento real e aquela das
crendices.

A noção de crença (...) permite aos modernos [os portugueses] ver em


todos os outros povos, crentes ingênuos, hábeis manipuladores ou cínicos
que iludem a si próprios. (...) Os modernos acreditam na crença para
compreender os outros; os adeptos não acreditam na crença nem para
compreender os outros nem para compreender a si próprios. (p.23)

A origem daquela noção de fetichismo é, então, encontrada no próprio seio


da visão de mundo dos modernos, mas obviamente, não entre aqueles que se
acusa de fetichismo. É a divisão do mundo em dados reais e dados imaginários
que permite aos modernos povoar o mundo de crentes fetichistas. A extinção
dessa divisão significaria a extinção da própria condição que permite ler a
realidade em termos de verdade e erro, ou seja, a noção de crença ganha um
sentido bastante peculiar: “A crença não tem por objetivo nem explicar o estado
mental dos fetichistas nem a ingenuidade dos antifetichistas. Ela está ligada a
algo inteiramente diverso: a distinção do saber e da ilusão (...).” (p.31)
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Essa distinção funda, segundo Latour, dois modos de vida. Ao modo de vida
que assume a distinção, Latour dá o nome de teórico. Em contrapartida, o outro
modo de vida, que não faz a distinção, não compreendendo nunca a separação
entre ambos os pólos, Latour o chama prático. (p.41) A noção de crença
novamente adquire um papel no sentido de auxiliar na manutenção dessa
separação. “A crença”, diz Latour, “(...) é o que permite manter à distância a
forma de vida prática – onde se faz fazer – e as formas de vida teóricas – onde se
deve escolher entre fatos e fetiches.” (p.44) Se na vida teórica é paradoxal
imaginar que um fato possa ser construído, na vida prática, construtivismo e
realismo se mantêm sempre sinônimos. Não há paradoxo entre construir um fato
e observar o fato como real.

Se antes só podíamos nos alternar violentamente entre os dois extremos


do repertório moderno (...), podemos, agora, escolher entre dois
repertórios: aquele onde somos intimados a escolher entre construção e
verdade, e aquele onde construção e realidade tornam-se sinônimos.”
(p.49, grifos do autor)

É, então, precisamente a distinção essencial entre fato e fetiche, realismo e


construtivismo, que não permite aos modernos compreender um aspecto essencial
dos fetiches: eles são, a um só e mesmo tempo, feitos e feitores. Ainda que os
brancos pretendessem que o fetiche fosse um objeto inerte, ineficaz e sem ação
alguma, no exato momento em que se busca desmistificá-lo ele passa a agir e
deslocar o mundo.

Ainda que o fetiche não seja nada senão aquilo que o homem faz dele, ele
acrescenta, contudo, alguma coisa: ele inverte a origem da ação, ele
dissimula o trabalho humano de manipulação, ele transforma o criador
em criatura. Mas o fetiche faz ainda mais: ele modifica a qualidade da
ação e do trabalho humanos. (p.26-27, grifos do autor)

É precisamente o fetiche que permite à atividade humana transcender sua


própria esfera e se transformar num ser autônomo na medida em que se realiza
no mundo. A dupla via de ação dos fetiches garante que toda atividade humana,
ao se realizar, ganhe autonomia e ultrapasse ligeiramente a própria força
humana que a originou. Ao assumir aquela divisão originária, os modernos
estavam fechando as portas à possibilidade de realização desse passe,
característico dos fetiches.
Para demarcar essa concepção diferenciada, Latour cria, então, um
neologismo, visando a incorporar na palavra o duplo sentido que a caracteriza: o
de ser a um só tempo criador e criatura. Acompanhemos o próprio Latour nessa
composição:

A palavra "fetiche" e a palavra "fato" possuem a mesma etimologia


ambígua (...). Cada uma das palavras insiste simetricamente sobre
a nuance inversa da outra. A palavra "fato" parece remeter à
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realidade exterior, a palavra "fetiche" às crenças absurdas do


sujeito. Todas as duas dissimulam (...) o trabalho intenso de
construção que permite a verdade dos fatos como a dos espíritos.
(...) Ao juntar as duas fontes etimológicas, chamaremos fe(i)tiche a
firme certeza que permite à prática passar à ação, sem jamais
acreditar na diferença entre construção e compilação, imanência e
transcendência. (p.45-46)

O termo fe(i)tiche demarca, então, a capacidade criativa desses artefatos


que, justamente por não serem nada além daquilo que são, cumprem seu papel.
Dizemos isso porque, aos olhos dos antifetichistas, o fetiche significava
justamente uma confusão acerca das propriedades daquele determinado objeto.
Mas, ao contrário, o objeto supostamente fetichizado não é mais do que ele
mesmo. Como nos diz Latour, “todos concordam com isso, só o denunciador, o
destruidor de ídolos não o sabe.” (p.54) Assim, o fe(i)tiche é aquilo que garante
uma passagem tranqüila da criação à autonomia. “Graças aos fe(i)tiches,
construção e verdade permanecem sinônimos. Uma vez quebrados, tornam-se
antônimos. Não se pode mais passar. Não se pode mais criar. Não se pode mais
viver. É preciso, então, reestabelecer os fe(i)tiches.” (p.55)

O FE(I)TICHE DA INDÚSTRIA CULTURAL: UM PROGNÓSTICO

A crítica adorniana adquire um caráter distinto daquele que


originariamente tinha ao ser confrontada com a reflexão de Latour. Retomada
por um viés antropológico, a ela se impõe a necessidade de questionamento dos
próprios pressupostos que lhe permitem realizar uma determinada leitura do
outro. Adorno provavelmente nunca colocou a questão nesses termos,
principalmente por não estar tratando propriamente de um outro povo de cultura
distinta da dele, mas simplesmente de um modo de produção cultural distinto que
passava a existir dentro do seu próprio meio cultural. No entanto, ao proferir
acusações contra um sistema de produção artística com o qual ele não
compactuava, ele claramente delineava um modo de relação entre um eu e um
outro. Dada a interferência de um modo de produção e fruição cultural no outro, a
crítica era inevitável e a antropologização da questão muito pouco provável, uma
vez que não se tratava de uma tentativa de compreensão mútua, mas sim, de um
ataque ao outro, já que a existência desse outro – a indústria cultural – causava o
deterioramento do fazer cultural defendido e praticado pelo filósofo alemão.
Assim, a crítica mantinha um caráter absolutista, apenas questionável por um
ataque do mesmo porte vindo do outro lado.
Contudo, ao atacar os bens da indústria cultural imputando-lhes o caráter
de fetiches, Adorno age precisamente como o antifetichista definido por Latour. O
antifetichista, diz Latour, “é aquele que acusa um outro de ser fetichista.”
(LATOUR, 2002, p.26). O antropólogo continua:
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Qual é o conteúdo desta denúncia? O fetichismo, segundo a acusação,


estaria enganado sobre a origem da força. Ele fabricou o ídolo com suas
mãos, com seu próprio trabalho humano, suas próprias fantasias
humanas, mas ele atribui este trabalho, estas fantasias, estas forças ao
próprio objeto por ele fabricado. (LATOUR, 2002, p.26)

Em que pese essa definição, ela em nada se distancia da conceituação


marxista do fetiche, como se pode ver a seguir:

ela [a mercadoria] reflete aos homens as características sociais do seu


próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de
trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso,
também reflete a relação social dos produtos com o trabalho total como
uma relação existente fora deles, entre objetos. (MARX, apud PIRES,
1998, p.140, grifo nosso)

De fato, Adorno acusa, como já vimos anteriormente, os ouvintes da


indústria cultural de nunca chegarem a uma fruição objetiva e consciente das
obras, mas sim, de confundirem o valor das obras pelos detalhes biográficos do
autor, ou pelo aparato instrumental utilizado, entre outros fatores. Eis aí a
confusão sobre as origens da força; eis aí a substituição do valor do produto pelo
valor das características sociais que o produziram.
Contudo, do mesmo modo como os portugueses não compreendiam o rito
dos negros na costa africana, podemos colocar a seguinte questão: não teria
estado Adorno frente a um rito que ele não compreendeu, cuja fundamentação e
razão de ser não era exatamente o que ele imaginava, o que no entanto não o
impediu de fazer uma leitura daquilo de acordo com pressupostos que eram
válidos para a visão de mundo dele, mas não para a realidade do outro? Não teria
estado ele frente a um novo fazer cultural e uma nova forma de relação entre os
homens que criaria um novo panorama social, precisamente esse em que vivemos
hoje? Em nenhum momento Adorno se questiona sobre a validade universal dos
critérios de audição que ele expõe, embora ele argumente claramente a favor
disso. Contudo, se tomamos a música enquanto experiência individual,
posicionando-a lado a lado com o fe(i)tiche de Latour – esse elemento originado na
fantasia do indivíduo e que, ao retornar para ele, converte-o de criador em
criatura –, podemos nos perguntar: seria razoável imaginar que todo ouvinte
tenha ou devesse ter o mesmo tipo de interesse e experiência com uma
determinada música, uma mesma relação e uma mesma ordem de percepção,
como Adorno supunha? Não seria mais próprio imaginar que cada indivíduo crie
uma relação com uma determinada forma musical que lhe diga respeito, de
acordo com os anseios e verdades existentes na sua imaginação pessoal, e que
tome suas decisões estéticas de acordo com essa realidade interior que lhe é
particular?
Pode-se argumentar, contra isso, que Adorno tinha consciência de que a
música ligeira nunca foi apreciada segundo as categorias que ele mencionava. Ele
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próprio deixou isso claro, dizendo que seria possível objetar, às suas críticas, que
“a música ligeira e toda a música destinada ao consumo nunca foram
experimentadas segundo as mencionadas categorias” (ADORNO, 1996, p.66).
Contudo, a ele era inadmissível que a música séria, ao ser industrializada,
acabasse também ela levada à ordem do entretenimento. A despeito disso, a
própria categorização, que separa a experiência da fruição estética, essa
experiência tão humana, em experiências sérias ou ‘de entretenimento’,
precisaria ser repensada. Pois, no reino da prática, a prática que atesta a
sabedoria do passe dos fe(i)tiches, não há outra coisa que a simples ação, que se
sedimenta em realidade sem qualquer necessidade de que seja categorizada ou
classificada em experiências válidas ou inválidas. Como justificar, afinal, que
uma experiência cultural não seja válida para um determinado indivíduo?
Há, ainda, um aspecto que é preciso notar, que remete ao sentido da
criação artística. Para Adorno, como vimos, a significação da música – a única
possível – estava na existência de uma construção lógica dessa música, que
pudesse ser apreendida intelectualmente por um indivíduo que estivesse apto
para tal. Por outro lado, o aparecimento dos fe(i)tiches parece deslocar o sentido
da arte para outro lugar. Estaria a significação de uma obra musical diretamente
ligada à ordenação objetiva de materiais musicais de que ela se compõe, ou
estaria ela ligada a uma relação mais profunda e imediata, uma integração do
criador com a sua criatura, do artista ou do próprio ouvinte com o seu fe(i)tiche
particular? Latour traz uma observação interessante a esse respeito:

Todos aqueles que se sentaram na frente de um teclado de computador,


sabem que tais romancistas tinham consciência do que pensavam sobre
aquilo que estavam escrevendo, mas que não se pode, por isso, confundi-
los em um jogo de linguagem ou imaginar que um Zeitgeist lhes diria o
que escrever à sua própria revelia (...). Experiência banal, tornada
incompreensível pela dupla suspeita da crítica e remetida, por esta razão,
ao meio-silêncio da "simples prática". (LATOUR, 2002, p.47)

Parece-nos que, seguindo a ótica de Latour, a amplitude do impacto de uma


obra de arte definitivamente não está ligada simplesmente à construção lógica ou
linguística, por assim dizer, que ela apresenta. Quando a criação se sedimenta
apenas como jogo de linguagem, como no caso dos teóricos, nada se cria daí, pois
os fe(i)tiches que permitiriam o passe da construção à autonomia permanecem
ausentes. A única coisa que resta, então, a essa experiência banal é o meio-
silêncio da “simples prática”, a prática que acontece pelo formalismo de acontecer,
mas que não vivifica um anseio presente numa imaginação viva, seja de um
ouvinte, seja do próprio autor.
Retomaremos, por fim, algumas palavras de Adorno que, sob a luz dos
fe(i)tiches, parece-nos agora trazer um novo sentido. Vale reescrevê-lo aqui:

Em tal unidade [a unidade sintética da música séria], também, na


relação dos momentos particulares com um todo em produção, fixa-se a
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imagem de uma situação social na qual – e só nela – esses elementos


particulares de felicidade seriam mais do que mera aparência.
(ADORNO, 1996, p.69)

A ênfase de Adorno ao fazer esta menção parece estar em ressaltar a


importância da força de síntese da boa música, pois só nela os aspectos da obra
musical seriam mais que mera aparência. Contudo, parece-nos também possível
dizer que somente em relação à situação social em que a obra foi concebida suas
características se tornam mais do que mera aparência. O que fundamenta a obra
e a preenche de profundidade são os valores que ela carrega, que só são
verdadeiramente compreendidos e percebidos no contato com a sociedade que os
concebe e os sustenta, a sociedade em que se originou a própria obra. Cada
manifestação cultural precisa ser lida a partir dos germes vitais que a
originaram, e de acordo com o espaço ou papel que lhe é atribuída naquele
determinado contexto social, caso contrário, incorre-se no perigo de traçar uma
avaliação errônea dos propósitos e valores específicos das múltiplas formas de
manifestação cultural existentes, atribuindo-lhe valores e julgamentos que não
lhe são próprios e que não fazem jus à sua verdade de ser particular.
Trocando em miúdos, se o valor de uma manifestação artística está na
existência de uma vida imaginária que a sustenta antes mesmo de ela existir
objetivamente, ou seja, na existência de fe(i)tiches que a suportam e a carregam
até o âmbito do real, uma crítica unilateral e absoluta das manifestações
culturais torna-se inviável e impraticável. É possível, certamente, avaliar
diferentes formas culturais de acordo com pressupostos ou expectativas em
relação a essas formas culturais, mas nunca de forma absoluta. Não é praticável
propor uma valoração estética da cultura do rock, por exemplo, com valores e
expectativas apropriados para as salas de concerto, ou invalidar uma por não
suprir as necessidades estéticas da outra. Ambas as manifestações tem razões de
ser distintas, buscam efeitos distintos e oferecem ao ouvinte experiências
diferentes e não necessariamente excludentes.
Concluímos, por fim, com uma reflexão de Latour:

O pensamento crítico oferece, de fato, um repertório rico – demasiado rico


demasiado fácil, demasiado vantajoso – para mergulhar o sujeito nas
causas objetivas que o manipulariam. Nada mais fácil que fazer do
sujeito o efeito superficial de um jogo de linguagem, a capacitância
provisória que emergiria de uma rede neuronal, o fenótipo de um
genótipo, o consciente de um inconsciente, o "idiota cultural" de uma
estrutura social, o consumidor de um mercado mundial. (LATOUR, 2002,
p.77)

Se há o que se almejar atualmente é que consigamos restaurar os


fe(i)tiches em sua naturalidade, simplicidade e imediatidade, afastados da
necessidade da crítica. Se nosso fazer cultural, seja lá qual for, estiver desprovido
da vitalidade dos fe(i)tiches, estaremos plantando em solo estéril.
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BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor W. [1938]. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição.


In: Os Pensadores/Adorno. São Paulo: Nova Cultura, 1996. p.65-108.
DUFRENNE, Mikel [1972]. Intencionalidade e Estética. In: Estética e Filosofia.
2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1981.
LATOUR, Bruno [1984]. Reflexão Sobre o Culto Moderno aos Deuses Fe(i)tiches.
Trad. Sandra Moreira. Bauru: EDUSC, 2002.
PIRES, Valdemir [1998]. Fetichismo na Teoria Marxista, Um Comentário.
Revista Impulso, Vol. 10, Nos. 22 e 33. Piracicaba: UNIMEP, 1998. p.139-146.
Disponível em:
<http://www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/impulso22_23.pdf>. Acesso em
28 de junho de 2010.

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