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~IJoNJo'~ I JacQuesAumont. Michel Marie


ARTES .' ESPEaÁCULO I
Ouvrage publié avec le soutien du Centre National du Livre
- Ministere Français Chargé de la Culture-

Obra publicada com o apoio do Centro Nacional do Livro


- Ministério Francês da Cultura -

Título original: L'Analyse des films


Tradução: Marcelo Félix
Revisão: Gabinete Editorial Texto & Grafia
Grafismo: Cristina Leal
Paginação: Vitor Pedro

@ Armand Colin, 2004, 2.a edição

Todos os direitos desta edição reservados para


Edições Texto & Grafia, Lda.
Avenida Óscar Monteiro Torres, n.O55,2.° Esq.
1000-217 Lisboa
Telefone: 21 79770 66
Fax: 21 797 81 03
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www.texto-grafia.pt

Impressão e acabamento:
Papelmunde, SMG, Lda.
La edição, Dezembro de 2009

ISBN: 978-989-8285-02-7
Depósito Legal n.O303572/09

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida
no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
sem a autorização do Editor.
Qualquer transgressão à lei do Direito de Autor
será passível de procedimento judicial.
MI.MÉ.SIS
ARTES E ESPECTÁCULO'

A organização contemporânea da socied.ade coabita, de forma nem sempre


harmoniosa, com a fruição do espectáculo nas suas mais variadas expressões.
Uma colecção de livros sobre as artes dó espectáculo que delas preconizem
uma vivência madura justifica-se pela necessidade de reordenar o nosso espaço de
participação e adesão críticas; na realidade, o fenómeno do espectáculo encerra
dimensões recônditas, a que razão e emoção devem ter igual acesso.
Em "Mi.mé.sis" terão presença obras de natureza estética, técnica, informativa,
ou simplesmente lúdica; e, como não poderia deixar de ser, o cinema, o teatro, a
dança, a'música, entre outros, serão os protagonistas desta colecção.
A Raymond Bellour
Introdução
I

A análise fílmica não é uma actividade absolutamente nova, longe disso. Quase
poderÍa~os dizer, forçando um pouco a nota, que ela nasceu ao mesmo tempo que
o cinema': à sua maneira, os cronistas que relatavam as primeiras sessões do Cine-
matógrafo, ao comentar pormenorizadamente as «vistasanimadas» que descobriam,
já eram um tanto analistas (às vezes precisos, nem sempre muito exactos).
Desd<;:então os críticos especializados substituiram-nos; em alguns, a atenção
que prestam ao filme é tão aguda que se torna verdadeiramente analítica (não
é o bom crítico de cinema aquele que sabe dissociar a forma fílmica da história
contada?). Ainda mais recentemente, com a integração cada vez mais marcada do
cinema na instituição cultural (pelo prisma dos cineclubes, das salas de repertório,
das cinematecas) e principalmente no ensino, na escola, a tendência acentuou-se.
Hoje o cinema pertence ao patrimonio cultural; a televisão, a rádio e os jornais
discutem-no em pé de igualdade com as artes tradicionais; a Universidade, há algu-
mas décadas, acabou por descobri-lo. Em suma, nunca o cinema foi tão comentado
e estudado, e reside aí a principal razão do desenvolvimento sistemático, sobretudo
no âmbit? dessas instituições, de uma prática da análise do filme.
Com efeito, se tivéssemos permanecido ao nível das fichas filmográficas do
IDHEC I, como eram escritas por volta de 1950, ou mesmo nas (excelentes)críticas
redigidas por André Bazin para "Peuple et Culture", sem dúvida este livro não
teria razão de ser. O que nos permite tentar uma teorização da análise do filme é
antes do rpais o aparecimento, entre 1965 e 1970, de um contexto universitário ou
para-universitário, em estreita ligação com os primórdios de uma teoria moderna
do cinema, de um tipo de análise mais minuciosa, mais sistemática - a que às vezes
se chamou algo abusivamente "análise estrutural". A análise estrutural é apenas
um ponto de partida, logo ultrapassada por todos os lados, como veremos, mas
que ainda hoje desempenha o papel de uma espécie de mito condutor da análise
fílmica em geral (mesmo que só por ter obrigado os analistas a utilizar, a propósito
do filme, os conceitos e métodos das chamadas ciências humanas).
Em França, mais globalmente na Europa e na América do Norte, existe actu-
almente, nos departamentos universitários de ensino do cinema e nas instituições
de investigação um bom número de analistas "profissionais"; o seu trabalho é
publicado em Francês e Inglês, mas também em Italiano ou Espanhol, em revistas
especializadas, para um público principalmente universitário.

1 InstitÚt des hautes études cinématographiques. <N. do T.)


7
A ANÁLISE DO FILME

Este livro surge num momento em que, amplamente institucionalizada,


a análise do filme parece contudo procurar-se, hesitar entre diversos suportes
metodológicos, e interrogar-se quanto aos seus objectivos. A década de 70, que
conheceu o desenvolvimento, em todos os planos muito rápido, dos estudos cine-
matográficos à escala mundial, sucede hoje um período em que esses estudos, têm
mais ainda a preocupação de legitimar-se plenamente, igualando em seriedade
e rigor as disciplinas humanísticas mais tradicionais (e às vezes aspirando sem
rodeios à ciência). Nesta preocupação de legitimação, o gesto mais habitual é
pedir emprestados conceitos, métodos e campos teóricos a outras disciplinas, ou,
o que é mais frequente, a outras teorias, constituídas a propósito de outros objectos
(em especial, mas não unicamente, o objecto "literatura"). Foi assim que se pôde
ler análises fílmicas estrutural-marxistas, semiopsicanalíticas, neoformalistas,
derridianas, e até lyotardianas ou deleuzianas. É uma rotulação algo fácil, e não
insistiremos nela - mas algumas dessas análises foram, por vezes, tão caricatas
como os seus rótulos.
O problema, como é evidente, é que a análise do filme não deveria ser conside-
rada uma verdadeira disciplina, mas antes, conforme os casos (e a isto voltaremos
durante o livro), como aplicação, desenvolvimento e invenção de teorias e disci-
plinas. Ou seja, tal como não existe uma teoria unificada do cinema, também
não existe qualquer método universal de análise do filme. Apesar da sua forma
negativa, parece-nos essencial ter em mente este enunciado: é em todo o caso nele
que, na maior parte, se baseia a demanda deste livro. Com efeito, começamos por
renunciar a constituir um método (uma "grelha", como às vezes se diz de maneira
assaz enganadora), para tentar, pelo contrário, inventariar, comentar e classificar
as análises mais importantes realizadas até hoje, a fim de lhes destacar os avanços
metodológicos, e esboçar a possibilidade de uma aplicação desses avanços para
além do seu objecto inicial. Isso implica darmos muitos exemplos, alguns deles
longamente maturados, e evitarmos o mais possível oferecer receitas demasiado
genéricas. No fundo o princípio deste livro é procurar manter o equilíbrio entre
a singularidade das análises e a preocupação da reflexão metodológica, mesmo
epistemológica, necessariamente mais geral.
Correlativamente, o plano que adoptámos, embora se esforce por respeitar
uma certa progressão de capítulo para capítulo, não pretende uma exaustividade
e sistematicidade absolutas. De facto, alternámos capítulos gerais (2: Os "Instru-
mentos" da Análise; 5: A Análise da Imagem e Som; 7: Análise e História) com
outros em que se descreve mais em pormenor e com exemplos os principais corpus
de método que alimentaram a análise do filme desde o seu surgimento (3: A Ques-
tão da Análise "Textual"; 4: Os Métodos da Narratologia Aplicados ao Cinema;
6. Psicanálise e Análise do Filme). O livro abre-se para além disso com um capí-
tulo que tenta delimitar melhor a questão da análise (sobretudo contrapondo-a a
outros discursos sobre o filme), enquanto o oitavo e último capítulo lhe examina
os principais objectivos.
Mais uma vez, não se encontrará aqui (nem em lado nenhum) "o" método que,
miraculosamente, permitiria a qualquer um analisar qualquer filme. Acreditamos
porém que, além dos elementos de reflexão geral que contém, este livro permite,
quanto a muitas questões, esclarecer escolhas possíveis, sublinhar as precauções
indispensáveis, e decerto sugerir abordagens exequíveis, em termos suficientemente
INTRODUÇÃO

concretos para ser proveitoso em análises efectivas. Por fim, a esse objectivo prin-
cipal da nossa obra junta-se um outro (que não nos parece menos importante):
esperamos, com esta amostragem das melhores análises fílmicas, inspirar o gosto
de ler es~asanálises - às vezes longas, muitas vezes difíceis, mas às quais o leitor
terá sempre interesse em regressar. Esperamos assim que este livro - antes do mais
destinado a todos os que estudam cinema (ou que o ensinam, o que vai dar ao
mesmo) - possa satisfazer também o leitor simplesmente curioso em aprofundar
a sua reflexão sobre os filmes, tornando-a mais racional e documentada.
i

Os autores deste livro colaboraram também, com Alain Bergala e Marc Ver-
net, na redacção de uma obra anterior, Esthétique du Film, que complementa o
presente volume.
Em diversas ocasiões permitimo-nos, para questões teóricas que não podíamos
reapresethar em pormenor, remeter em nota de rodapé a essa obra.
Queremos agradecer, pela ajuda amigável que nos prestaram durante a redac-
ção do nosso manuscrito, especialmente pelas suas críticas às versões anteriores,
a André Gaudreault, Ratiba Hadj-Moussa, Roger Odin, Dana Polan, Francis
Vanoye e Marc Vernet. .
Por fim, temos de prestar uma homenagem particular a Raymond BeBour,
cujos trabalhos, decisivos para o reconhecimento da análise fílmica como parte
integrante da actividade teórica, permitiram a própria ideia deste livro; o nosso
título, deliberadamente próximo do seu Analyse du film, pretende também traduzir
essa homenagem.

N.B. Procurámos, tanto quanto possível, comentar as análises escritas por


outros investigadores; contudo, aconteceu-nos em certos pontos particulares, e
principalmente no capítulo 5, resumir as análises escritas por um de nós. "Nós"
remete para o autor bicéfalo desta obra; e o nome de um ou do outro para análises
individuais anteriores.

9
CAPfTULO 1

Para uma definição da


análise do filme

1. A ANÁLISE E OUTROS DISCURSOS


SOBRE O FILME

1.1. Os diversos tipos de discurso sobre o filme


Este livro é dedicado à apresentação e ao exame de um certo tipo de discurso
sobre os filmes. Isso não significa que iremos pôr de lado os aspectos puramente
"cinematográficos". Os filmes são também produtos que se vendem num mercado
específicp; as condições materiais, e sobretudo psicológicas, da sua apresentação
ao público, e a cada espectador em particular, são modeladas pela existência de
uma instituição, socialmente aceite e economicamente viável, ainda mais percep-
tível por se encontrar actualmente em plena mutação; só no próprio dispositivo
da sala escura se determina, até certo ponto, a sua recepção e a sua existência.
Teremos oportunidade de regressar a eSSils~ondições e limitações anteriores ao
filme, que lhe são externas, mas que se inscrevem com maior ou menor nitidez
no seu próprio corpo.
Contudo, devemos começar por sublinhar que o tipo de discurso que aqui
estudareplOs preocupa-se antes do mais com os filmes, considerados enquanto
obras em si mesmas, independentes, infinitamente singulares. Assim, é pela relação
com todas as variedades de discursos sobre o filme assim compreendido que mais
cómoda e claramente se define aquilo de que queremos falar.
Só muito acessoriamente abordaremos os discursos sobre o filme que o encaram de um
ponto de vista exterior à obra: existe um discurso jurídico, sociológico, psicológico sobre
o filme, e tantas abordagens quantas as ciências humanas. Distingui-las-emas da análise
do filme propriamente dita.

A análise do filme, na acepção que lhe d~remos ao longo de toda está obra,
não é estranha a uma problemática de ordem estética ou linguística. O objectivo
da análi~e é apreciar melhor a obra ao compreendê-la melhor. Pode igualmente
ser um desejo de clarificação da linguagem' cinematográfica, sempre com um
pressuposto de valorização desta. i
Os métodos de análise que estudaremos neste livro fazem parte desse conjunto.
Consequentemente vamos considerar o filme como obra artística autónoma,
susceptível de engendrar um texto (análise textual) que fundamente os seus sig-
nificados em estruturas narrativas (análise rlarratológica) e em dados visuais e
sonoros (análise icónica), produzindo um efe~toparticular no espectador (análise
11
A ANÁLISE DO FILME

psicanalítica). Essa obra deve também ser encarada na história das formas, dos
estilos e da sua evolução.
Propomos então distinguir as análises de filmes intrínsecos daquelas queneces-
sitam um confronto da obra estudada com outras manifestações sociais. Para dar
um exemplo, a análise propriamente histórica de um filme deverá numa primeira
fase proceder ao estudo interno da obra, decompondo principalmente os elementos
de representação sócio-histórica observáveis nela. Mas será um estudo selectivo; não
levará em conta elementos sem qualquer função no mecanismo de representação
histórica; por exemplo, o facto deo filme ser a cores, ou em cinemascópio. Além
disso, deverá necessariamente confrontar os seus resultados com os outros tipos
de representação produzidos pela literatura, a imprensa, a publicidade, etc. -
Em Sociologie du cinéma, o historiador Pierre Sorlin, em Ossessione2 (Visconti, 1942), faz o
levantamento de todas as unidades que respeitam à representação da mulher, a imagem
do campo e a sua oposição à cidade, tal como o filme a constrói. Segundo a sua análise, a
cidade tem um enquadramento, e o campo não: "Os cineastas não vêem o campo, este
não lhes é perceptível, só lhe conseguem discernir características periféricas ou transitivas
(aquilo que passa por ele). ~ essa cegueira que interessa ao historiador das sociedades,
pelo que ela lhe ensina do universo da produção cinematográfica na Itália de 1942".

Contudo, analisar um filme, mesmo enquanto obra artística, é no fundo uma


actividade banal, pelo menos de maneira não sistemática, que qualquer espectador,
por pouco crítico, e distante do objecto, pratica a dado momento da sua visão.
O olhar com que se vê um filme torna-se analítico quando, como a etimologia
indica, decidimos dissociar certos elementos do filme para nos interessarmos mais
especialmente por tal momento, tal imagem ou parte da imagem, tal situação.
Assim definida, de forma minimal mas exacta, pela atenção prestada ao porme-
nor, a análise é uma atitude comum ao crítico, ao cineasta e a todo o espectador
minimamente consciente. Em particular deve ficar claro que um bom crítico é
sempre, mais ou menos, um analista, mesmo q.uepotencialmente, e que uma das
suas qualidades é precisamente a atenção para os detalhes, associada a uma forte
capacidade interpretativa. Todavia, a miopia analítica pode transformar-se em
cegueira ao diluir o olhar na floresta dos pormenores.
Mas se a atitude analítica é, ou deveria ser, a coisa mais comum no mundo,
tal como o sentido crítico, resta-nos definir a análise sistemática de um filme,
enquanto discurso específico. Para tanto, convém confrontá-la com o discurso que
lhe é mais próximo: o discurso crítico. Com efeito, que o filme possa ser objecto
de uma grande diversidade de discursos é uma evidência: igualmente o é constatar
que estes são diferentes da análise de filmes propriamente dita.

1.2. Análise e crítica


Dos princípios e objectivos da actividade crítica vamos fixar apenas as carac-
terísticas que permitem distingui-la da análise do filme. Tal nos leva de imediato
a situar o discurso crítico relativamente ao discurso "cinéfilo". Este reflecte uma
atitude baseada na efusão amorosa face ao objecto e raramente se harmoniza com

2 Os filmes que não tiveram estreia comercial portuguesa em sala surgirão no texto com o
seu título original. As dúvidas relativamente aos títulos originais dos filmes estreados podem ser
dissipadas através do Índice de filmes citados. (N. do T.)

12
1. PARA UMA DEFINiÇÃO DA ANALISE DO FILME

o prazer da pesquisa analítica. Também aqui é necessário precisar as acepções. A


atitude cinéfila é susceptível de todas as dosagens possíveis entre a relação passional
imediata e o desejo de conhecimento.
Nos dois extremos, existe a abordagem cinéfila prioritariamente fetichista, a das revistas
"de grande público", baseadas no culto do actor e das estrelas; no outro pólo, a cinefilia
analítica, que está na base da crítica de cinema concebida como crítica de arte.
A primeira caracteriza-se pela avaliação muito selectiva, com frequência intolerante,
pelo prazer da acumulação repetitiva e obsessiva, pela prática da alusão para os "happy
few". Em Annie Hall (1977) e A Rosa Púrpura do Cairo (1985), Woody Allen ofereceu-nos
saborosos retratos de cinéfilos maníacos. A segunda abordagem é a que praticam os
críticos das publicações mensais especializadas, como os Cahiers du Cinéma e a Positif. É
evidente que a actividade crítica pressupõe cultura cinéfila, ao passo que o amor pelo
cinema pode satisfazer-se com uma relação exclusivamente passional e deslumbrada,
encarando-se então o desejo de conhecimento como entrave à fruição.

A actividade crítica tem três funções principais: informar, avaliar, promover.


A sua relação com a análise é muito desigual. A informação e a promoção são
decisivas para a crítica jornalística, dos diários e semanários. A avaliação que
permite a expressão do sentido crítico encontra-se também directamente ligada
à actividade analítica. Um bom crítico é o que tem discernimento, e que graças
à sua agudeza sintética sabe apreciar a obra que a posteridade irá conservar. Ele
é também um pedagogo do prazer estético, que se eSh)rça por fazer partilhar a
riqueza da obra com o maior público possível. É claro que a parte de avaliação e
de análise que se enriquece no exercício da crítica especializada, enquanto a parte
informativa é preponderante em toda a actividade crítica ligada à actualidade:
imprensa escrita, rádio, televisão, etc.
Existem, todavia, alguns raros exemplos de exercício da critica diária assente num pro-
cedimento analítico muito vincado. O caso mais conhecido é o de André Bazin, redactor
de centenas de recensões críticas no Le Parisien Libéré, cuja qualidade crítica justificou a
reedição em livro. Bazin era um ensaísta disfarçado de jornallista. Serge Daney, a princípio
crítico num mensário especializado, os Cahiers du Cinéma, exerceu o seu talento analítico
no Libération. Os seus artigos diários deram igualmente lugar a publicação em livro.

A actividade crítica que se exerce nas publicações especializadas sem relação


directa com a actualidade raramente é praticada por um jornalista profissional. O
perfil do crítico é mais o do militante cultural, na maior parte do tempo animador,
professor ou profissional envolvido num dos sectores da distribuição e da explora-
ção do cinema. O crítico de uma publicação mensal tem a tarefa ingrata e sempre
renovada de multiplicar as informações sobre as cinematografias pouco conhecidas
e abordar os filmes mais confidenciais - por serem mais difíceis - de que raramente
fala o crítico de um diário. A parte reservada à análise mais profunda de uma obra,
que é também uma das suas vocações, é na maioria das vezes reduzida ao mínimo. A
evoluçãorecente, tanto da imprensa especializadacomo da distribuição cinematográfica
de filmes de pesquisa e de "arte e ensaio", acentua essas dificuldades: muitas vezes é
mais importante mobilizar várias páginas a fayor de um filme inovador ameaçado
de rápido desaparecimento dos ecrãs do que desenvolver o estudo pormenorizado
de um grande filme de autor actual, o qual já terá encontrado o seu público.
O critério de actualidade não desempenha qualquer papel no método da análise;
o seu autor pode escolher a obra que lhe convém em todas as épocas da história
do cinema, sem nunca estar sujeito aos acaso~ da distribuição.
13
A ANÁLISE DO FILME

Para a crítica, é fundamental a juíza de apreciação.. Em princípio. ele não.


intervém nas escalhas da analista, que tanta pade dedicar a sua atenção. às abras-
-primas indiscutíveis da história da cinema cama à massa indistinta da praduçãa
camercial. Essa escalha deve determinar-se par critérias "abjectiváveis", em função.
de uma dada pertinência (estética, sacialógica, histórica, etc.). Bem entendida,
uma tal neutralidade científica é muita ilusória, e par trás de qualquer "escalha de
abjecta" há sempre, cama numa relação.amaros a, preferências pessaais. Este livro,
à semelhança de tadas as da seu génera, refere-se ao. corpus das filmes analisadas,
canjunta que carrespande mais au menas ao.da cinefilia clássica..
O crítica infarma e aferece um juízo de apreciação.; a analista deve praduzir
canhecimenta. Ele prapõe-se descrever meticulasamente a seu abjecta de estuda,
decampar as elementas pertinentes da abra, integrar na seu camentária a maiar
número. passível de aspectas desta, e desse mada aferecer uma interpretação.

1.3. Análise e teoria, análise e singularidade do filme


A análise não. tem de definir as candições e as meras da criação. artística,
mesma que passa cantribuir para esclarecê-las, nem de professar juízos de vaIar
au estabelecer narmas.
Esta última característica, em particular, é impartante. Além de distinguir a
análise de uma certa cancepçãa da crítica, ela cantribui de facto para aproximar
a análise de um autro canjunta de discursas sabre a cinema que se ganhau a
hábito de reunir sab a designação. de "tearia da cinema". Na verdade esse singular
é abusiva, pais se há muita que existe uma actividade teórica à valta da cinema
e da fenómena fílmica, é precisa sublinhar que até haje não. existe uma tearia
unificada para nenhum deles. Partanta, assim cama "a" tearia, a análise da filme é
uma maneira de explicar, racianalizanda-as, as fenómenas abservadas nas filmes;
tal cama atearia" da cinema", a análise de filmes é uma actividade acima de tudo.
descritiva e não. madeladara, mesma quando. par vezes se tarna mais explicativa.
A análise e a tearia partilham as seguintes características:
- uma e autra partem da fílmica, mas levam cam frequência a uma reflexão.
mais ampla sabre a fenómena cinematagráfica;
- uma e autra têm uma relação. ambígua cam a estética, relação. muitas vezes
negada au recalcada, mas visível na escalha da abjecto; .
- par fim, na essencial uma e autra têm haje lugar na ensina, especialmente
nas universidades e institutas de investigação..
Cama afirmámas lago. na introdução., não. existe, apesar da que par vezes se
diz, um método. universal de análise de filmes. Existem métadas, é certa, mais au
menas numerosas e de alcance mais au menas geral (sem a que este livro não. teria
assunta) mas, pela menas até haje, eles mantêm-se relativamente independentes
uns das autras.
Par autras palavras, seria preferível dizer que a que está em questão. é a passibi-
lidade e a maneira de analisar um filme, mais da que a método geral de análise
da filme - daí a escalha da nassa título.: A Análise do Filme.
Em suma, até certa panta não.existem senão.análisessingulares, inteiramente ade-
quadas na seu métada, extensão.e abjecta, ao.filme particular de que se acupam.
14
1. PARA UMA DEFINiÇÃO DA ANÁLISE DO FILME

Como é natural, esta ideia deve ser posta em causa mal a formulámos. Em
primeiro lugar, porque é algo simplista. Decerto cada analista deve habituar-se
à ideia de que precisará mais ou menos de construir o seu próprio modelo de
análise, unicamente válido para o filme ou o fragmento do filme que analisa; mas
ao mesmo tempo, esse modelo será sempre, tendencialmente, um possível esboço
de modelo geral, ou de teoria; isso é, no fundo, uma cOllsequência directa do que
acima dissemos sobre a consubstancialidade da análise e da teoria. Todo o analista
tem vocação para se tornar teóriço, se não o for já à partida, e a multiplicação
das análises singulares tem muitas vezes como causa ou objectivo o desejo de
aperfeiçoar ou contestar a teoria.
Pode~os mencionar, como exemplo de sintoma dessa tendência para o geral a partir do
singulàr, os títulos de dois livros que constituem recolhas de análises singulares e textos
metodológicos sobre pontos particulares: L'Ana/ysedu fi/m, de Raymond Bellour, e Théorie
du fi/m, obra colectiva com a direcção de Jacques Aumont e Jean-Louis Leutrat.

Mas s~devemos aceitar com precaução a ideia de uma análise irredutivelmente


singular, ;é também porque, se a levássemos às últimas consequências, ela logo
implicaria questões quase insolúveis relativamente à validade da análise. Pode-se
sempre imaginar que, para além do seu método próprio, o analista se preocupa
também com a definição dos seus próprios critérios de validade - mas é óbvio que
se de todas as vezes esses critérios tiverem de ser considerados sui generis, arriscam-
-se a ser pouco convincentes.
Aí reside uma questão de fundo, sempre presente na prática e metodologia da
análise de filmes: se a análise é singular, o que é que a garante? Essa singularidade
não afectará igualmente o analista? Por outras palavras, não nos arriscaremos a
cair num :relativismo universal, na possibilidade de conceber a análise como infi-
nitamente singular, e na ideia de que existe uma infinidade de análises possíveis
para cada filme, todas por igual válidas e legítimas?
Voltaremos a todas estas questões no capítulo 7, 2: "Garantias e validação de
uma análise".
,

1.4. Análise e interpretação


A validade de uma análise é então central, e envolve a seguinte questão: a aná-
lise distingue-se da crítica? Questão que, ela própria, leva a uma outra questão,
também delicada, a da interpretação.
Para muitos analistas a palavra "interpretação" é definida pejorativamente, e
com frequência é sinónimo de "sobreinterpretação" ou de interpretação arbitrária
ou "delirante": seria, em suma, o excesso de subjectividade de uma análise, a parte
mais ou menos injustificável, se bem que inevitável, de projecção ou alucinação.
Porém, a questão não é simples. Claro que em geral (embora nem sempre) é
relativamente fácil rejeitar interpretações abusivas, baseadas em elementos demasiado
escassos ou incertos. Mas há toda uma margem da análise que, pela sua própria
natureza, !=onfinaà interpretação, sem que possamos decidir tão facilmente. Da
nossa parte, parece-nos que seria uma atitude. mais franca admitir que a análise
tem efectivamente a ver com a. interpretação; que esta será, por assim dizer, o
"motor" imaginativo e inventivo da análise; e que a análise bem sucedida será a
15
A ANÁLISE DO FILME

que consegue utilizar essa faculdade interpretativa, mas que a mantém num quadro
tão estritamente verificável quanto possível.
É escusado dizer que raras vezes esse ideal é atingido, e que o analista fica
sempre algo "imobilizado" entre a vontade de se cingir exactamente aos factos,
com o risco de apenas parafrasear o filme, e o desejo de dizer qualquer coisa de
essencial sobre o seu tema, com o risco de deformar os factos ou de os deslocar
abusivamente numa determinada direcção.
No seu artigo "Por uma semio-pragmática do cinema", Roger Odin propôs a hipótese de
que cada filme pode originar, senão uma infinidade, pelo menos um grande número de
análises, e que o próprio texto do filme funcionaria como um limitador relativamente
a essa possibilidade de multiplicação: o filme, em suma, não proporia qualquer análise
particular sobre si mesmo, e apenas interditaria certas abordagens. "Não só um filme
não produz sentido por si, como tudo o que ele pode fazer é bloquear um certo número
de investimentos significantes".
Estaformulação tem a vantagem de definir o filme como garante - e único garante - da
pertinência da análise, e do não-delírio do analista.
A história do cinema é rica em filmes que ocasionaram interpretações amplamente diver-
gentes, e até francamente contraditórias; é o caso de numerosas obras de Luis Buriuel:
Nazarin (1958),EIAngel exterminador (1962),O Fantasma da Liberdade (1974);assim como
de Pier Paolo Pasolini: O Evangelho segundo S. Mateus (1964), Teorema (1968), Saló ou os
120 Dias de Sodoma (1974).

2. DIVERSIDADE DAS ABORDAGENS ANALÍTICAS:


ALGUNS MARCOS HISTÓRICOS
Evocámos na introdução a antiguidade da tradição que constitui, em diversos
contextos, a análise de filmes. As duas fontes principais são o exercício da crítica e
o do ensino. Um dos precursores nesse domínio é seguramente o cineasta soviético
Lev Kulechov, que em 1919 foi um dos primeiros professores de cinema na Escola
Estatal de Cinematografia de Moscovo. Pela oficina que ele então dirigia passariam
em dez anos quase todos os realizadores, e também actores, com alguma impor-
tância no cinema mudo russo. Em 1929, em vésperas de grandes perturbações
no cinema soviético, Kulechov publicou um pequeno livro intitulado A Arte do
Cinema, no qual retoma e sintetiza o essencial das aquisições teóricas e práticas
dos seus dez anos de ensino.
Esselivro de Kulechov não inclui análises de filmes propriamente ditas, mas trata sistema-
ticamente dos principais problemas da arte do cinema, de um ponto de vista semi-teórico
e semi prático: a montagem, a iluminação, o cenário, o trabalho do operador de câmara,
o argumento, a interpretação do actor ... Referimos aqui este livro porque, rico de uma
reflexão e sobretudo de uma experiência acumulada em trabalhos "de laboratório", ele
apresenta cada problema de uma forma extremamente articulada e às vezes mesmo
sob a forma de grelha analítica. O melhor exemplo do trabalho de análise proposto por
Kulechov, e seguramente o mais original ainda hoje, é o seu estudo da interpretação do
actor. Nele encontramos uma teoria do "enquadramento" do actor que deve permitir ao
cineasta vergar esse material rebelde ao cálculo geral da realização. Kulechov propõe
mesmo uma tabela bastante analítica de todos os movimentos consideráveis para o
corpo colocado diante da câmara.

O ensaio de Kulechov, a par dos de Béla Balàsz e de Vsevolod Pudovkine sur-


gidos na mesma época, está na origem das "gramáticas" do cinema, em especial
16
1. PARA UMA DEFINiÇÃO DA ANÁLISE DO FILME

a de Raymond J.Spottiswoode, publicada em Londres em 1935: A Grammar


o/ the Film: An Analysis o/ Film Technique. Reencontraremos a influência dessas
gramáticas nas "fichas Cinematográficas" que iremos abordar em 2.2.; mas estas
não incluem verdadeiras análises de cenas de filmes, ou de construção geral de
um filme, como nos exemplos que de seguida abordaremos.

2.1. Um cineasta perscruta a sua obra para melhor a defender:


Eisenstein
Não surpreende que na história da análise encontremos primeiro S. M. Eisens-
tein, pela vastidão e precocidade dos seus escritos con.sagrados tanto à estética
geral do cinema como à análise de obras artísticas de diversas áreas: romances,
pintura, peças de teatro, etc.
Além disso, o texto que iremos citar foi escrito em 1934 e não temos conhe-
cimento de estudos anteriores com a análise tão sistemática de uma sequência de
planos. Ela inaugura um primeiro período da estética do cinema que vai até aos
anos 60, pois reencontramos um procedimento similar na maioria dos ensaios
didácticos consagrados à planificação cinematográfica: refira-se, entre dezenas de
exemplos possíveis, a análise de uma sequência de O Ídolo Caído, de Carol Reed
(1948), efectuada por ].M.L. Peters num manual publicado pela UNES CO em
1961.
Por outro lado, a análise de Eisenstein, que se manteve inédita em Francês, foi
traduzida e publicada em 1969, ou seja 35 anos depois (!) no n.O210 dos Cahiers
du Cinéma. Essa tradução é uma verdadeira ressurreição do texto, e é interessante
constatar que ela só antecede em seis meses a primeira análise "estrutural" de
um filme por Raymond Bellour na mesma revista ("Les Oiseaux: analyse d'une
,
sequence ") .
Em 1934, na própria altura em que a estética "realista socialista" está prestes a
tornar-se hegemónica na URSS, tornam-se extremamente vivos os debates entre
os cineastas "poetas-montagistas" e "prosadores-narradores"; poucos anos haviam
decorrido desde os últimos grandes filmes mudos, e já a sua carga metafórica e
patética era denegrida pelos críticos e cineastas oficiais, em nome de uma exigência
de representação "realista" do homem vivo, do homem contemporâneo, da vida
quotidiana. É nesse contexto, e para fazer face à acusação, por enquanto implícita
mas perigosa, de formalismo, que Eisenstein decide publicar a análise de um breve
fragmento (14 planos) do seu filme O Couraçado Potemkine (1925).
O artigo não é extenso, e por uma vez Eisenstein renuncia quase inteiramente
às suas habituais divagações, em favor de um projecto anunciado e definido com
clareza: defender a "pureza da linguagem cinematográfica" contra os excessos do
"regresso aos clássicos" do teatro e da literatura, que vinham servindo de desculpa
a demasiados cineastas medíocres para esquecer os avanços da reflexão sobre a
montagem. É notável que, em vez de criticar os filmes que considerava maus e de
lhes realçar pela análise a carga ideológica (o que será a prática, em grande escala, a
propósito do cinema hollywoodiano em tantos textos dos anos 60 e 70), Eisenstein
tenha escolhido analisar, positivamente, um fragmento de um dos seus filmes e
de o tomar de certa maneira como exemplo de linguagem de qualidade: é uma
orientação construtiva da análise, e da crÍtica~pouco frequente.
17
A ANÁLISE DO FILME

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18
1. PARA UMA DEFINiÇÃO DA ANÁLISE DO FILME

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19
A ANÁLISE DO FILME

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S. M. Eisenstein, O Couraçado Potemkine (1925).

A linha principal da análise é magnificamente exposta pelo autor no começo


do seu texto:
Para demonstrar a interdependência plástica dos planos sucessivos, escolhemos pro-
positadamente não uma das cenas mais espectaculares, mas a primeira passagem que
nos ocorreu: catorze planos sucessivos da cena que precede o tiroteio na "escadaria de
Odessa". Trata-se da cena em que os habitantes de Odessa enviam barcos carregados
de víveres ao couraçado amotinado.

20
1. PARA UMA DEFINiÇÃO DA ANÁLISE DO FILME

A escalada das saudações amistosas constrói-se segundo um vaivém preciso de dois


temas:
1.Os barcos largam para o couraçado;
2. Os habitantes de Odessa fazem sinais amigáveis.
No final, os dois temas confundem-se. No essencial,a composição forma-se em dois planos:
profunpidade de campo e primeiro plano. Em alternativa, cada um dos temas torna-se
dominante, passa ao primeiro plano e afasta o outro para segundo plano.
A composição constrói-se assim: 1)sobre a interacção plástica dos dois planos (no interior
do enquadramento); 2) sobre a modificação, de enquadramento em enquadramento, das
linhas e formas dos dois planos de profundidade (através da montagem). No segundo
caso, o mecanismo da composição obtem-se pela interacção das impressões plásticas
da imagem anterior quando sejunta à imagem seguinte, seja com choque, seja por um
encadeamento da acção.

Não nos é possível reproduzir em pormenor toda a análise que se segue a esta
declaração de princípios. A prancha de fotos e esquemas anexa, feita pelo próprio
Eisenstein, permite compreender rapidamente como o autor executa o seu programa
de análise. Reparamos, por exemplo, nos planos lI, III, IV; V e VI, no surgimento
e nas transformações de um tema plástico, claramente sublinhado como tal pelos
esquemas; o tema do arco circular. Os esquemas fazem igualmente sobressair de
modo muito claro a importância formal concedida, por exemplo, às direcções dos
movimentos no enquadramento, assim como à direcção dos olhares para fora de
campo (veja-seespecialmente os planos I, lI, IlI, IV e V). Ou ainda esse elemento,
bastante realçado pelo texto, da alternância de par e ímpar, particularmente nos
planos sobre as personagens.
O que sobretudo surpreende nesta análise é o seu carácter extremamente
formal; Eisenstein dedica-se muito ao pormenor da composição dos planos,
aos enquadramentos, ao lado plástico da sucessão dos quadros, etc. - o que
pode parecer surpreendente a propósito de um filme de que se louvou pri-
meiramente, em todas as épocas, a força lírica e o entusiasmo revolucionário.
Mas a análise é muito convincente: trata-se precisamente de demonstrar que o
lirismo, o entusiasmo (comunicativo), e por fim a eficácia política do filme, só
se alcanÇfm com um trabalho formal minucioso, que obedece a leis próprias
cuja transgressão, longe de conduzir o cinema a um maior realismo, apenas o
torna banal. Se Eisenstein perde tanto tempo a destacar aqueles arcos circulares,
aquelas verticais e horizontais, aqueles grupos pares e ímpares, é somente para
melhor fazer ressaltar, no seu lugar politicamente eformalmente exacto, o plano
da bandeira vermelha (XIII):
Depois de se ter dividido em pequenas velas, a grande vela volta a juntar-se; mas desta
vez já não é uma vela, mas a bandeira que flutua sobre o "Potemkine". Qualidade nova
do fragmento: ele é simultaneamente estático e dinâmico- o mastro vertical está imóvel,
a bandeira flutua ao vento. Formalmente, o plano XIII repete o XI. Mas a substituição
da vela pela bandeira transforma o princípio da união plástica em princípio da união
ideológico-temática. Já não é uma simples vertical que une plasticamente os diversos
elementos da composição - é o estandarte revolucionário que une o couraçado, os
barcos e a margem.

Naturalmente, este exemplo é, a muitos títulos, excepcional. Mesmo entre


os cineastas mais conscientes dos meios da sua arte, pouquíssimos, em 1934 e
mesmo depois, alcançavam este nível de refinamento e meticulosidade no exame
21
A ANÁLISE DO FILME

dos seus filmes. No próprio Eisenstein, este texto é talvez o que vai mais longe
numa abordagem tão sistemática (e ele costumava aplicar as suas qualidades de
analista à pintura ou à literatura). Com os seus limites e os seus defeitos, pois muito
haveria a objectar, senão quanto ao método, pelo menos a alguns comentários de
pormenor, ele surge hoje em dia como um dos protótipos, dos "antepassados", da
análise fílmica.

2.2. As análises de filmes no quadro da animação cultural:


As fichas cinematográficas
Lev Kulechov e S. M. Eisenstein eram cineastas e ao mesmo tempo professores
que intervinham no quadro das escolas profissionais de formação de criadores. Em
França foi preciso esperar até 1943 (criação do IDHEC por Marcel L'Herbier) e
mesmo 1945 (desenvolvimento da escola) para ver surgir um fenómeno do mesmo
género. Simultaneamente, a acelerada expansão dos cineclubes a partir da liber-
tação favoreceu o nascimento de revistas destinadas aos amadores. Essas revistas
começaram a publicar análises pormenorizadas de filmes, então denominadas
"fichas cinematográficas", que tiveram algum êxito durante duas décadas.
O IDHECqualificou desde o início como "filmográficas" as "fichas" redigidas pelos alunos
do instituto no âmbito das suasactividades pedagógicas; à ficha redigida no primeiro ano
seguia-se uma memória mais substancial, e algumas foram publicadas por Jean Mitry,
então director pedagógico, na sua colecção "Les Classiques du cinéma", nas Éditions
Universitaires. O termo aqui utilizado tem apenas uma relação longínqua com a acepção
que lhe conferia Étienne Souriau no seu Vocabulaire de la filmologie (1951)pelo qual ele
designava "tudo o que existe e se observa ao nível da própria película".
Além das fichas do IDHEC,mencione-se as da UFOLEIS,publicadas pela Image et Son, asda
FFCC,publicadas pela Cinéma 54 e seguintes, e as da FLECC,publicadas na Téleciné, sendo
as três revistas da federação de cineclubes. A Télecinétinha contudo a particularidade de
consagrar-se quase exclusivamente à edição dessas fichas, e de não praticar "crítica" de
filmes, no sentido tradicional, como as outras revistas. A Image et Son, tornada La Révue
du Cinéma, e a Cinéma interromperam a publicação das fichas no início dos anos 60, para
se dedicar à crítica jornalística (breves resenhas dos filmes actuais).
Algumas fichas do IDHECforam publicadas em monografias sobre um autor, por exemplo
Renoir (v. bibliografia no fim do capítulo). A maioria dessas fichas só é consultável em
bibliotecas muito especializadas. O seu desaparecimento é um sintoma da evolução
das publicações mensais de cinema, da pedagogia "militante" no jornalismo ligado à
actualidade' dos meios de comunicação, aos "filmes-acontecimento". É claro que essa
evolução está directamente relacionada com as transformações económicas da distri-
buição dos filmes.

A ficha filmográfica era um estudo consagrado a um único filme, relativamente


detalhada, que podia chegar a uma quinzena de páginas. Escrita por um estudante
de uma escola profissional, por um crítico ou animador pedagógico, ela tinha como
objectivo principal fornecer ao apresentador neófito a documentação suficiente
para lhe permitir situar o filme e o seu autor, e alimentar uma discussão após a
projecção, segundo o ritual bem conhecido então vigente3•

3 Muitos críticos que se tornaram famosos, e cineastas não menos famosos, participaram assim
na redacção dessas fichas; para mencionar alguns nomes: Jean Collet, Gilbert Salachas, Claude
Miller, Chris Markere até Jean-Luc Godard.

22
1. PARA UMA DEF;INIÇÃO DA ANÁLISE DO FILME

Ela compunha-se tradicionalmente de três partes:


- informativa: genérico pormenorizado, biofilmografia do realizador, condições
de produção e de distribuição do filme;
- descritiva e analítica: lista das sequências ou resumo do filme, parte analítica
propriamente dita, ou corpo da ficha;
- enumeração das questões suscitadas pelo filme, e sugestões para o moderador
do debate.
Esse alinhamento reproduzia nitidamente o modelo da dissertação literária
clássica que então dominava sem contestação. Os riscos de um zelo escolar
aumentavam pela novidade do objecto. O mais grave consistia sem dúvida numa
dispersão artificial da análise em rubricas pré-estabelecidas: assim, a análise dita
"cinematográfica" (ou "cinegráfica" conforme os autores) - por oposição à análise
"literária" - dividia-se em estudo da realização, montagem, luz, cenários, som,
diálogos, como se esses tópicos fossem estanques. Elas exemplificam os perigos
de uma abordagem estritamente empírica, retomando as divisões das fases da
produção material do filme sem as interrogar.
Vamos usar dois exemplos seleccionados entre os que ainda hoje apresentam
verdadeir9 interesse. O primeiro, Zero em Comportamento, analisado por Jean-
.-Patrick Lebel, respeita o plano imposto: é uma ficha de jovem estudante do
IDHEC. O segundo é bastante mais pessoal, visto ser escrito por uma das auto-
ridades intelectuais do movimento cineclubista do pós-guerra: Foi uma Mulher
que o Perdeu, por André Bazin.

2.2.LZero em Comportamento Oean Vigo, 1933),


"filmografado" por Jean-Patrkk Lebel
A ficha redigida no âmbito da 18.a promoção do IDHEC compreende seis
grandes subdivisões clássicas: a documentação, o argumento, a análise literária, a
análise cinegráfica,. a "importância do filme", as questões a debater.
A rubrica de documentação compreende a "ficha técnica", isto é, o genérico
detalhado com o nome das personagens e dos intérpretes, datas de rodagem e
distribuição; a parte do "contexto da obra" divide-se por sua vez em circunstâncias
materiais, acolhimento dado ao filme e circunstâncias morais. Lebel aproveita as
pesquisas biográficas publicadas anteriormente por Paulo Emílio SaBesGomes, na
sua biografia de Jean Vigo. Zero em Comportamento é um filme cujas dificuldades
de rodagem e distribuição (censura) se prestam ao desenvolvimento da parte infor-
mativa. Mas Lebel sabe evitar as armadilhas da anedota biográfica, mostrando
como o próprio Vigo tendia a assimilar a sua infância à do pai, e como o autor se
"desdobrou" nos três miúdos do filme (Bruel, Tabard e Colin).
"SeZero em Comportamento é a expressão espontânea e obscura de uma infância sempre
presente na memória de Vigo, é também a obra com a qual ele assume definitivamente
a sua infância e se liberta da angústia e da tensão não resolvidas que ela conservava".

A parte do "argumento" contém um resumo bastante pormenorizado de 30


linhas (o filme só dura 44 minutos) e uma lista de 24 cenas, também elas resumi-
das. A aniWse literária divide-se em análise dramática e análise de certos temas
com subdivisões internas: construção dramática e person.agens. Apesar da rigidez
deste quadro retórico, Lebel mostra que a construção de Zero em Comportamento
23
A ANÁLISE DO FILME

foge aos constrangimentos da dramaturgia clássica, não obedecendo ao esquema


clássico da evolução com nó dramático e resolução, antes residindo a unidade do
filme na sua escrita poética.
O estudo das personagens, o maior perigo deste tipo de abordagem, por deri-
var facilmente para a paráfrase psicologizante, delimita com precisão as posições
estéticas de Vigo a respeito de adultos e crianças. Os adultos são ao mesmo tempo
"eles mesmos e a sua caricatura". Não há esquematização mas "estilização física
e moral que confere a cada um deles uma riqueza que os modelos reais decerto
nunca tiveram". Quanto às crianças, que representam outras tantas projecções de
Vigo, o que surpreende nelas é a intensa vitalidade: "Nunca tínhamos visto no
ecrã miúdos tão autênticos, tão reais, tão parecidos com a imagem que temos da
infância e com a que tínhamos de nós mesmos quando éramos crianças".
A análise temática do filme está centrada na sátira, no seu aspecto panfl.etário,
"adultos estagnados numa atmosfera de horror moral, de perturbação latente, de
monstruosidade generalizada". Lebel insiste no tema das "latrinas da infância",
no fundo de complacência escatológica no qual o filme está imerso, que ele julga
"produzido pelo olhar da sociedade dos adultos, pela sua má consciência latente,
pela sua sensação de pecado e de alienação sufocante". O paralelo muito conven-
cionado entre Vigo e Rimbaud é demonstrado por comparações originais entre
duas situações do filme e episódios de Um Coração Sob aSotaina4•
A análise cinegráfica privilegia a unidade onírica do filme, destaca a realização,
apercebida nos movimentos de câmara e nos enquadramentos, assim como nos
diálogos e na música, mas sacrifica o estudo da montagem, da luz e dos cenários:
"O filme parece desenrolar-se como um sonho", observa o auror. Lebel comenta,
com grande precisão, panorâmicas e reenquadramentos na cena da sala de aulas
em delírio, e na do dormitório. Ele mostra como Vigo soube transcender as deplo-
ráveis condições técnicas de gravação sonora para emprestar uma forma particular
ao diálogo, "uma pronúncia inimitável": a repetição das palavras transforma os
diálogos numa espécie de "litanias onde as palavras funcionam mais pelo seu valor
sonoro e pelo simples facto de serem palavras do que pelo seu significado"; ele cita
o tom da frase de Caussat para Colin, "Tabard, c't'une filIe, j'te dis!".
A parte da "importância do filme", sem dúvida a mais datada hoje, corres-
ponde à preocupação de educação moral (humanista ou espiritual) então muito
presente nos organismos de cultura popular: era preciso estrategicamente con-
trariar a reputação negativa e imoral que o espectáculo cinematográfico tinha
n~ altura. Jean-Patrick Lebel contorna habilmente essa problemática inevitável,
mas bastante desajustada no caso de Ze1"(iem Comportamento, centrando a sua
conclusão na ligação estreita entre o tema da revolta no filme e a liberdade poé-
tica na representação: "O filme, única acção real da revolta de Vigo, é só um
acto poético que, juntamente com a sua beleza e graça, contém em si o seu vício
secreto. A libertação que ele concede a Vigo efectua-se fora da realidade, e não
lhe permite qualquer reconciliação com o mundo (... ) Caberá a Ata/ante trazer
a esperança dessa reconciliação".

4 Un Coeur sous une soutane, obra de juventude de Rimbaud, publicada postumamente, em


1924. (N. do T.)

24
1. PARA UMA DEFINiÇÃO DA ANALISE DO FILME
I

As "qJestões a debater", no fim da ficha, retomam os t<:;masevocados na análise:


"Realismb e poesia"; Zero em Comportamento e os filmes:sobre a infância; relação
de Vigo ~om a Nouvelle Vague e, mais parti~ularmente1 com François Truffaut
(Os 400 Golpes, 1959). I'
1 '
, I
2.2.2J O olhar de André Bazin sobre Foi Uma Mulher que o Perdeu
I I'
! (Mareei Carné, 1939) I •

Com6 é sabido, André Bazin foi um incansável animador da associação de


educação Ipopular "Travail et Culture". Nesse:âmbito, te;veocasião de apresentar
dezenas de vezes um dos seus filmes-fétiche nos lugares mais variados: cineclubes
I
escolares, ~omités de empresas, salas paroquiais, etc. De inkio versão estenografada
de intervenções orais, a ficha de Bazin passou por diferentes versões: referimo-las
na bibliografia. .
A pri~eira característica da ficha publicada'é a sua extbnsão, bastante invulgar:
cerca de ~O páginas. Vem depois a liberdade que o auto'r se concede em relação
ao plano prévio. No preâmbulo, Bazin explid que prefehu partir da "forma" do
filme, mais precisamente da sua construção dra'mática, e q~e "nada é mais perigoso
o que um comenta no d e filme que trata separa
di,. I d
amente,'d o "tema , e d a 'I:
rorma ,,,.
Fala assirri dos "ingénuos pedantes de cinecl~be que querem sempre discutir a
técnica". Pela sua parte, o autor entende demdnstrar, corh Foi uma Mulher que o
Perdeu, es~armos perante "uma técnica cuja exi::elênciaé rigorosamente impossível
de apreciar desligada da matéria da acção". .
Bazin parte da originalidade da construção do filme, da alternância entre cenas
do presente e cenas do passado, e considera o~ meios fílmicos que permitiram a
transição presente-passado ao longo do filme. Ele desenvolveo exemplo da utilização
da música em ligação com a particularidade d~s fusões-encadeados, passando de
II I I
I

25
A ANÁLISE DO FILME

Jean Gabin e Jaequeline Laurent em Foi Uma Mulher que o Perdeu, de Mareei Carné (1939).

seguida a enumerar exaustivamente os elementos dos cenários e a sua função no


filme. A análise da função dos objectos permite-lhe esboçar um verdadeiro retrato
antropométrico (no sentido policial do termo) de François, interpretado por Jean
Gabin, "herói à medida de um mundo urbano, de uma Tebas suburbana, ope-
rária, onde os deuses se confundem com os imperativos cegos mas mesmo assim
esmagadores da sociedade".
A progressão da argumentação é um exemplo magistral de procedimento
didáctico, porque no texto estão disseminadas questões a colocar ao público numa
estratégia de animação (Bazin chega a fornecer a percentagem-tipo de respostas
obtidas!)
Vamos ater-nos ao resumo de um dos dois exemplos desenvolvidos pelo autor,
o dos cenários.
No filme François está confinado a um quarto de hotel, tendo à suavolta a maior parte dos
objectos que simbolizam as suas recordações amorosas. Bazin propõe fazer reconstituir
pelo público o cenário do quarto. Eenumera:
-os móveis:
resposta certa do público: uma cama, uma mesa, uma lareira, um espelho, uma poltrona,
uma cadeira, um guarda-vestidos.
Resposta improvável, mas possível na proporção de uma em quatro: um lavatório, uma
mesinha-de-cabeceira.
- os vários objectos:
resposta certa do público: sobre a lareira, um urso de peluche, a navalha, um revólver no
final, um candeeiro eléctrico coberto por um jornal, uma bola de futebol.
Alguns espectadores poderão ter reparado nos pedais de uma bicicleta.
- outros objectos que aparecem, no decurso da acção, sobre diversos móveis: a gravata
nova, o cinzeiro, um maço de cigarros, um despertador, duas caixas de fósforos vazias,

26
1. PARA UMA DEFINiÇÃO DA ANÁLISE DO FILME

duas fotos e um desenho de Gabin na parede, ~s fotografias de desporto de cada lado


do espelho, etc.
Perguntar ainda ao público como é o naperon da rrlesa, a colcha da cama, o papel de parede.
Quase todos os espectadores terão reparado na sua natureza e no seu aspecto.
Os espectadores esquecem, sem excepção, móveis e objectos que surjam repetidamente
no ecrã: uma cómoda de tampo de mármore situada entre a lareira e o armário; por cima
dessa cómoda, um tambor de alumínio que se fix?l no guiador da bicicleta, uma lancheira;
no chão, encostados à cómoda, pneumáticos de bicicleta.
É que Jsses são os únicos objectos, no quarto todo, que nunca têm função dramática.
I
Bazinretoma cada objecto um a seguir ao outro, demonstra a sua utilização
dramática e função simbólica relativamente ao carácter da personagem de François,
e o facto de ele ter muito cuidado a fazer cair no cinzeiro a cinza de cigarro que
suja o tapbte do quarto: "Tanta limpeza e or~em algo maníaca revela a vertente
cuidadosa e um pouco solteirona da personagem, e surpreende o público como
uma revelação dos seus hábitos". Ele comenta a obrigação; para Gabin, de acender
os cigarros uns atrás dos outros, por falta de fósforos ...
Sublinhemos apenas alguns pontos do comentário sobre o armário normando:
"aquele famoso guarda-vestidos que Gabin desloca contra a porta e que origina
um diálogo saboroso no vão da escada entre o comissário e o porteiro (... ) Não
era a cómoda, a mesa ou a cama que Gabin podia colocar diante da porta. Era
preciso que fosse esse pesado guarda-vestidos que ele empurra como uma enorme
laje sobre um túmulo. Os gestos com que ele faz deslizar o armário, a própria
forma.do móvel, fazem com que Gabin não se limite a erguer uma barricada no
quarto: ele empareda-se". Conclui Bazin: ''A perfeição de Foi uma Mulher que o
Perdeu é que o simbolismo nunca precede o realismo, antes acompanha-o como
por acréscimo".
O autor prossegue a sua "espécie de inquérito à Sherlock Holmes para recons-
tituir a vida e a personagem de Gabin" através de outros indícios fornecidos pelo
cenário do quarto, a fim de responder à pergunta "Quem é Gabin?", "O que
representai ele enquanto mito?".
Evidentemente, André Bazin possuía um sentido de análise fílmica de pri-
meiríssima ordem, é inquestionável. Interessante aqui é ver-se essa inteligência
crítica exercer-se na moderação do debate, na relação directa com o público. É
essa prática que se encontra na própria origem da sua mestria na análise, e hoje
lamentamos que tantas análises orais, de Bazin e de outros brilhantes modera-
dores, não tenham sido mais sistematicamente estenografadas.

2.3. A política dos autores e a análise interpretativa


A história da crítica e, consequentemente, a da análise, foram marcadas nos
anos 50 por uma maneira particular de abordar os filmes: através da "política dos
autores", definida e praticada principalmente pelos Cahiers du Cinéma, a partir de
um célebre número especial consagrado a Alfred Hitchcock em 1954. A melhor
defesa e ilustração dessa política será desenvolvida três anos depois na monografia
que Claude Chabrol e Eric Rohmer consagram ao cineasta.
Quando Chabrol e Rohmer decidiram escrever esse ernsaio,era intenção deles
promover culturalmente um realizador que a crítica oficial da época tratava com
27
A ANALISE DO FILME

condescendência, como. um técnico decerto brilhante, mas cineasta sem "men-


sagem" pessoal.
Com efeito, nos anos 50 muito poucos realizadores são considerados autores de filmes,
cujas obras se distinguem por pelo menos duas características: o controlo absoluto do
processo de produção e de criação do filme e, complementarmente, a continuidade de
uma temática pessoal facilmente reconhecível pela escolha dos temas abordados. Esse
panteão dos clássicos agrupa, no cinema mudo, Charles Chaplin, D.W. Griffith, Victor
Sjôstrôm e S. M. Eisenstein; e no cinema falado, Luis Buriuel, Ingmar Bergman, Roberto
Rossellini,Jean Renoir e Robert Bresson:Bazin cita os três últimos cineastas no seü célebre
texto "Comment peut-on être Hitchcocko-Hawksien?".
A hostilidade para com o cinema norte-americano é então ainda muito pronunciada.
Esteé encarado como uma enorme máquina industrial que triturava qualquer expressão
individual. As carreiras de Erich von Stroheim, Orson Welles e Charles Chaplin caucionam
essa análise.

A "política dos autores" é inicialmente polémica; ela pretende demonstrar a


possibilidade de verdadeiros artistas se revelarem apesar de tudo, e por vezes no
mais coercivo contexto dos estúdios. Essa política procura remover da noção de
autor os "temas aparentes" ou "assuntos explícitos" dos argumentos para substitui-
-los pela "realização" e o "olhar do cineasta".
Alfred Hitchcock vai permitir a essa tendência crítica enriquecer uma política
que hoje, décadas mais tarde, verificamos ter triunfado e excedido todas as espe-
ranças quanto a esse cineasta, cuja obra se tornou um dos campos privilegiados
da análise de filmes. Iremos constatá-lo ao longo de todo este livro.
Em 1957 a hierarquia dos géneros ainda é ideologicamente muito importante
na cultura oficial, mesmo cinematográfica. Um realizador que consagrou a car-
reira quase exclusivamente a adaptações de narrativas policiais não podia ser um
autor no pleno sentido do termo. Chabrol e Rohmer irão dedicar 160 páginas a
demonstrar o contrário, partindo do postulado de que em Hitchcock, mais do
que ninguém, "os problemas de fundo e forma encontram-se ligados de maneira
particularmente estreita".
"Eu sei que a literatura em que ele se inspira não é a melhor, que ela não tem outra
pretensão além de ser lúdica. Hitchcock teria feito melhor em escolher as obras mais
ambiciosas de Dostoievski, ou de certos romancistas ingleses referidos por Chabrol e
Domarchi? O que lhe importa, visto que aí não descobriria matéria mais rica, e que Dos-
toievski ou os romancistas ingleses também se limitaram a tratar temas populares a que
só o desenvolvimento que lhes deram confere uma dignidade literária."
"A qui la faute?", Maurice Schérer (pseudónimo: Eric Rohmer)

No artigo que acabámos de citar, Rohmer afirma igualmente "Que ninguém se


surpreenda ao encontrar, no lugar das palavras travelling, enquadramento, objec-
tiva e todo o pavoroso calão dos estúdios, os termos mais nobres e pretensiosos
de alma, Deus, diabo, inquietude e pecado". É que se trata, para os dois críticos,
de revelar a metafísica latente da obra e de ir buscá-la na forma: "É na forma que
convém procurar a profundidade, é ela que gera uma metafísica".
Rohmer e Chabrol tomam o exemplo da construção em alternância e do
movimento de vaivém que caracterizam as narrativas hitchcockianas e servem
de base aos seus filmes de perseguição; eles demonstram que esse movimento se
encontra intimamente imbricado com a ideia e o tema da troca que identificamos
em toda a sua obra, onde assume tanto uma expressão moral (a transferência da
28
1. PARA UMA DEFINiÇÃO DA ANÁLISE DO FILME

culpa) como psicológica (a suspeita), dramática (a chantagem, até o puro suspense)


e ainda material (o ritmo da narrativa).
Ao acentuar a provocação face ao sistema de valores dos anos 50, eles pretendem con-
cretizar a sua demonstração a partir do período americano do cineasta: "Com Rebecca,
o 'Hitchcock touch' que até aí era um simples traço, torna-se visão do mundo".
A noção de visão de mundo é o meio de avaliação usado pela política dos autores, pois
é concebida independentemente do tema do filme.
Para escorar essa visão do mundo própria de Hitchcock, Chabrol e Rohmer irão fazer a
análise dos seus filmes. Um dos capítulos mais aprofundados intitula"se "Le Nombre et
les figures" [O Número e as Figuras]; é dedicado à análise de O Desconhecido do Norte-
-Expresso (1951).Investigando a metafísica na forma, eles irão procurar a materialização
da idei~ de troca na forma do retorno e do vaivém:
"Interrompamos essa linha recta com um círculo, perturbemos essa inércia com um
movimento giratório: e eis construída a nossa figura, e desencadeada a nossa reacção.
Nenhum achado de O Desconhecido do Norte-Expresso se desvia dessa matriz". Segue-se
uma listagem vertiginosa e bastante convincente dos temas da vertigem, da velocidade,
da brancura e do círculo no percurso do filme:
"Que se trate da vertigem do assassinato, do gosto pela maquinação, da perversão
sexual,'do orgulho doentio, todas essastaras, na forma da Figura e do Número, são-nos
representadas de modo bastante abstracto e universal, para que possamos estabelecer
entre as obsessões do herói e as nossas uma diferença de escala, e não de natureza. A
atitude criminosa de Bruno é apenas a degradação de uma atitude fundamental do ser
humano (... )
A arte de Hitchcock é fazer-nos participar, pelo fascínio que exerce em cada um de nós
qualquer figura depurada, quase geométrica, na vertigem que as personagens experi-
mentam, e para lá da vertigem, na descoberta da profundidade de uma ideia moral".
Algumas linhas depois, acrescentam:
"Cada gesto, cada pensamento, cada ser material ou moral é depositário de um segredo
a partir do qual tudo se esclarece"; para terminar assim: "Somos literalmente colhidos
pelo turbilhão da gravitação universal. Não é vão evocar o autor de Eureka".

Deste modo, concluído o ensaio de Chabrol e de Rohmer, já Hitchcock se


tornara "pai de uma metafísica", para retomar a 'expressão dos autores.
A política dos autores, logicamente centrada na análise da obra, é portanto
um método interpretativo dos filmes. Cada elemento de um filme particular é
descodificado em função de uma visão do mundo definida pelo analista, e não
foi obra do acaso ter sido a filmografia hitchcockiana a originar essa crítica inter-
pretativa; como notou, justamente, Jean Narboni: "Se aos comentadores franceses
de Hitchcock tudo pareceu signo nos seus filmes, talvez seja porque aos olhos dos
próprios heróis hitchcockianos tudo funciona como signo: objectos, paisagens,
figuras do mundo e os rostos de outrem, pois esses heróis, essencialmente seres
de desejo, não se movem apenas por afectos ou sentimentos, mas por uma paixão
de interpretar e uma febre de descodificação que pode chegar, nos seus melhores
filmes, ao delírio da construção de um mundo que maltrata o princípio de reali-
dade" ("Visages d'Hitchcock").

2.4. A pausa na imagem


Mais adiante (no capítulo 3) voltaremos aos laços íntimos de toda uma parte
da reflexão teórica, ligada à importante vaga semiológica dos anos 60-70, com
29
A ANÁLISE DO FILME

muitos aspectos da análise do filme. Mas é impottante sublinhar já, como exem-
plo último do carácter multiforme da análise, uma coincidência, amplamente
sobredeterminada em termos históricos, entre a publicação dos primeiros textos
fundadores da semiologia do cinema, a introdução na universidade dos estudos
cinematográficos, e o surgimento de novas gerações de cineastas cinéfilos, tudo
factores que incentivam o estudo pormenorizado dos filmes, proporcionando-lhes,
além disso, um lugar de actualização e uma legitimação cultural.
Mas esses estudos principiantes logo esbarraram num problema que, por res-
peitar à única base material do ensino, não foi menos crucial: o da inacessibilidade
das cópias dos filmes. Seria simplista concluir que essa penúria, mais ou menos
relativa, de filmes a ver fora das condições de recepção numa sala de cinema seria
a única causa da proliferação de análises a filmes isolados; é mais provável que a
raridade dos filmes, juntamente com a possibilidade (também ela relativamente
nova) de os visionar em mesas de montagem ou projectores "analíticos" explique
em patte que, relativamente a outras abordagens possíveis, a análise tenha então
ocupado tanto terreno.
Nesse período - que talvez se tenha encerrado com a renovação do interesse
pelos estudos históricos, a criação ou a transformação das cinematecas, a consti-
tuição de ficheiros e catálogos de filmes - a teoria e a análise, para dizer o mínimo,
viveram em harmonia. Muitas vezes a análise foi simultaneamente vivida como
o momento empírico e o momento heurístico da teoria: momento e meio de
verificação das teorias, mas também da sua invenção ou do seu aperfeiçoamento
(voltaremos ao assunto em 8.1).
Talvez possamos encontrar o signo, emblema dessa conivência, na pausa
na imagem. O que no filme surge ao primeiro contacto como mais resistente à
análise é o tempo: o facto de o filme desfilar no projector cujo fluxo, imparável,
da projecção não controlamos, ao contrário do que acontece com um livro que
folheamos. É precisamente esse carácter inelutável do desfile que a pausa na ima-
gem vem romper, ao permitir, de uma forma que para alguns é às vezes abusiva,
introduzir uma palavra ou um discurso no que normalmente o proíbe: a imagem
em movimento e sonora.
É evidente que uma análise não se resume à pausa na imagem (por isso dizemos
que esta é o emblema daquela, e não o seu método ou essência): é porém inegável
que é a partir da possibilidade dessa pausa que o objecto-filme se torna plena-
mente analisável: mesmo não podendo recorrer efectivamente a ela, é a partir de
elementos reconhecíveis na pausa na imagem que podemos construir as relações
lógicas e sistemáticas que são sempre o objectivo da análise.

3. CONC~USÁO: PARA UMA DEFINIÇÁO


DA ANALISE DO FILME
Da nossa tentativa de tipologia e do nosso breve percurso histórico, vamos
fixar três princípios:
A. Não existe um método universal para analisar filmes.
B. A análise de um filme é interminável, pois seja qual for o grau de precisão
e extensão que alcancemos, num filme sempre sobra algo de analisável.
30
1. PARA UMA DEFINiÇÃO DA ANÁLISE DO FILME

c. É necessário conhecer a história do cinema e a história dos discursos que


o filme escolhido suscitou p.ara não Os repetir; devemos primeiramente
. pergunt~r-nos que tipo de leitura desejarilOspraticar.
É muito importante insistir no primeiro princípio porque a vontade de descobrir
um método universal pode parecer um desejo legítimo. Se num certo sentido a
análise é o oposto de todos os discursos "impressionistas" sobre o cinema, se ela
pretende ser um discurso rigoroso, diferente das divagações interpretativas, um
discurso fundamentado, ao contrário da arbitrariedade crítica - é-lhe necessário
ter princípios (se possível científicos). O erro começa quando se julga que esses
princípios devem necessariamente manifestar-se numa forma mais ou menos
comparável ao método experimental das ciências naturais (às vezes copiando-o).
Na raiz de todas as tentativas (mesmo as mais insípidas) para definir "a" grelha
universal existe um erro epistemológico grave, que consiste em não ver a diferença
entre uma ciência "natural" (a que por vezes chamamos ciência "exacta") e as
"ciências" sociais e humanas. Se o grau de rigor pode e deve ser o mesmo nos dois
casos, se o aparelho formal pode até ser eventualmente comparável, haverá sempre
uma diferença essencial de natureza entre osfactos e os objectos de umas e outras.
A semiologia, e com ela a análise do filme, nunca serão ciências experimentais,
porque não têm a ver com o repetível, mas com o infinitamente singular (o que é
repetível nas ciências sociais é sempre parcial relativamente aos fenómenos).
Para moderar o nosso enunciado, diremos então que não existe qualquer método
aplicável igualmente a todos os filmes, sejam quais forem. Todos os métodos de
alcance potencialmente geral que iremos evocar devem sempre especificar-se, e
às vezes ajustar-se, em função do objecto preciso de que tratam. É essa parte de
ajuste mais ou menos empírico que muitas vezes distingue a verdadeira análise da
mera aplicação de um modelo sobre um objecto.
Voltaremos ao segundo princípio, o do carácter interminável de qualquer
análise, no capítulo 3, consagrado à análise textual.
Ilustraremos o terceiro princípio com um exemplo, o de O Mundo a Seus Pés, de
Orson Welles (1940), pois trata-se de um dos filmes mais célebres e mais comen-
tados de toda a história do cinema.
Filme colossal, filme único, O Mundo a Seus Pés foi muitas vezes visto, cons-
cientemente ou não, como "o" filme por excelência, uma espécie de compêndio
paradoxal do estilo clássico americano; esse filme que, na altura da estreia, conjugou
o fracasso comercial mais severo com a recepção crítica mais entusiástica, tornou-se
entretanto um clássico indiscutível. O seu lugar na história do cinema é sempre
eminente, seja qual for o ponto de vista: ele assinala a época mais poderosa do
"cinema de autor" em Hollywood - mas é também, numa genealogia dos estilos
cinematográficos, um marco incontornável, ainda que nunca verdadeiramente
imitado.
A sua riqueza formal não é menos impressionante: a começar pela construção
narrativa, que sobrepõe e encaixa níveis diversos uns nos outros; a realização e a
representação dos actores, de uma "extroversão" violenta, que trazem na assinatura
as origens teatrais de Welles (mas que, de forma mais literal, inscrevem o teatro
no próprio corpo do filme); o tratamento "polifónico" da banda sonora, em que
as vozes sãb musicalizadas enquanto a música se faz comentário; enfim, claro,

31
A ANÁLISE DO FILME

características visuais tão impressionantes que se reconhece, com toda a certeza,


um plano de O Mundo a Seus Pés ao acaso (a profundidade de campo, as objecti-
vas de focal curta, o plano geral, o contrapicado, certas sequências de montagem
rápida, algumas utilizações do grande plano, e mesmo alguns dos traços mais
superficiais, como os célebres tectos).
Em suma, quem quiser tratar um filme assim deve primeiro ter consciência do
que acabámos de lembrar: não se aborda um filme tão famoso, tão excepCional,
com inocência, e num caso como esse (atípico, é verdade), o primeiro gesto do
analista consiste em verificar se avalia correctamente o lugar do filme na história
do cinema, e se conhece suficientemente os discursos que originou.
Mas, de forma mais essencial (pois essa segunda preliminar aplica-se a quase
todos os filmes), o analista deve em primeiro lugar interrogar-se quanto ao tipo
de leitura que pretende exercer, entre a multiplicidade de leituras que o filme
oferece; sem querermos ser exaustivos, podemos dizer que O Mundo a Seus Pés é
decerto passível de abordar, no mínimo, pelo ângulo de uma problemática de autor
(analisando-lhe as relações entre o realizador e o actor que o protagonizam), ou
em termos narrativos (através de uma análise dos flashbaeks e, mais genericamente,
da temporalidade), em termos "enunciativos" (situação das diversas personagens
em relação à narrativa e à enunciação), na sua relação estilística com um suposto
estilo hollywoodiano clássico (um afastamento reconhecível, nas características
formais do filme, relativamente a um modelo que David Bordwell, Janet Staiger
e Kristin lhompson precisaram), ou ainda em termos psicanalíticos (a inscrição
dos temas da infância, da recordação e do fantasma numa estrutura de inquérito
do género "policial") ...
O analista deverá enfim decidir se considera o filme todo - o que impõe um
certo tipo de escolha de objecto e uma certa intenção, relativamente ampla - ou
se, pelo contrário, só irá tratar de um excerto ou aspecto; em qualquer dos casos,
a análise parcial deverá sempre inscrever-se na perspectiva de uma análise mais
global, pelo menos potencialmente.
É o conjunto dessas escolhas que desenvolveremos nos capítulos seguintes.

32
I CAPfTULO 2

Instrumentos e técnicas
daanálise
I

1. FILME E METAFILME:
N.Â.O-IMEDIAÇAo DO TEXTO FÍLMICO
1.1. o filme e a sua transcrição
Mais a~ndaque para qualquer outra forma de produção artística, a análise do filme
necessita recorrer a diferentes fases, a documentos diversos, a "instrumentos".
Conforme já mencionámos, as condições próprias do espectáculo cinematográfico
são, psicologicamente, muito particulares. Sentado no escuro, num estado de inevi-
tável passividade, o espectador não domina a sucessão das imagens, e rapidamente é
o
submergido pela cadência da projecção; a todo momento o filme oferece-lhe uma
importante quantidade de informações sensoriais, cognitivas e afectivas. É certo
que, ao ver o mesmo filme várias vezes, podemos conseguir memorizar com mais
fidelidade certos pormenores, relatar com poucos enganos os principais momen-
tos da evolução narrativa, referir com uma certa precisão determinada passagem
visualmente impressionante. Diariamente os melhores críticos de cinema provam
que a perspicácia crítica é aperfeiçoável, e que os olhos e ouvidos podem educar-se
e requintar-se. É preciso ver e rever os filmes que se analisa, e é inimaginável um
trabalho analítico não fundamentado em pelo menos três visões do filme.
Dito isto, naturalmente a visão, e mesmo a revisão, não é tudo. Num certo sen-
tido, quase se pode dizer que entre o objecto dá análise do filme e o objecto-filme
percebido imediatamente pelo espectador na Jala de cinema só existem relações
bastante longínquas. É que, seja qual for a abordagem escolhida, o objectivo da
análise é elaborar uma espécie de "modelo" do filme (no sentido cibernético, e
não no normativo, como é evidente), e que PO( consequência, tal como qualquer
objecto de pesquisa, o objecto da análise do filme exige ser construído. Alguns
teóricos chegaram mesmo a fazer uma distinçã6 radical entre o filme, unidade do
espectador e o filme, unidade analítica. i
Num artigo de 1973 intitulado "Le défilement" [O Desfile], Thierry Kuntzel distinguiu
claramente o "filme-película", o "filme-projecção" e o terce~ro estado do filme que é
aquele que diz respeito ao analista. "0 fí/mico em questão na análise fílmica não reside
no movimento, nem na fixidez, mas entre ambos, no engendramento do filme-projecção
pelo filme-película, na negação desse filme-película pelo filme-projecção (... )"

Mas ao mesmo tempo, naturalmente, é preJiso analisar o próprio filme, e não


um simulacro ou uma transcrição dele. De certo'modo o filme é o ponto de partida
e deve ser Q ponto de chegada da análise. O significado dessa ideia de um "outro
I
33
!I
A ANÁLISE DO FILME

filme" de que trata a análise é nada mais nada menos que a dificuldade, e mesmo a
impossibilidade, de analisar um filme sem recorrer a artefactos intermediários, eles
próprios já parcialmente "analíticos", que permitem fugir às limitações do desfile.
Vamos agora enumerar os mais importantes desses artefactos, desses "ins-
trumentos", mas antes queremos insistir ainda nessa relação da análise com o
"próprio filme".
Em relação ao analista de textos literários, de pinturas, de peças de teatro e
de obras musicais, o analista de filmes encontra-se de facto numa situação bas-
tante particular; diversamente do quadro ou da representação teatral, não existe
"original" fÍlmico (a não ser talvez o negativo do filme, ao qual só têm acesso os
técnicos de laboratório); mas inversamente, e ao contrário do texto literário ou
musical, o filme resiste mal à reprodução, que tende a deformá-lo: uma peça de
Corneille mal impressa continua igual a si mesma, mas um filme de Dreyer numa
cópia escurecida tt.ansforma-se irremediavelmente. É portanto evidente - e merece
ser amplamente sublinhado num momento em que o suporte magnético se torna
cada vez mais predominante nos estudos fílmicos - que é preciso ver Cleopatra,
de ]oseph Mankiewicz, em 70 mm, e que Playtime - Vida Moderna, de ]acques
Tati, talvez nunca mais seja visível na sua versão original.
Essaexigência que aqui recordamos tem essencialmente valor de princípio, e a maioria
dos analistas costuma trabalhar ou com cópias mais ou menos fiéis, ou com cópias
magnéticas, sem falar de instrumentos ainda menos imediatos, que abordaremos. De
igual modo a análise de um quadro pode, durante certo tempo, satisfazer-se com uma
reprodução. Em ambos os casos, o que usamos como suporte da análise conserva a
mesma qualquer coisa da própria obra; mas em ambos os casos, é preciso que nos
aproximemos o mais possível do original.

1.2. Os instrumentos da análise fílmica


Primeiro é preciso explicar o próprio termo "instrumentos". As suas conotações
técnicas parecem sugerir que a análise de filmes é uma operação científica, ou no
mínimo que ela envolve processos objectivos, que se podem descrever objectiva-
mente. É uma visão um pouco idealizada da análise fílmica; de facto, sejam quais
forem o interesse e o grau de generalidade de certos métodos, não existe, como já
dissemos, um método universal; o mesmo sucede com os "instrumentos": alguns
têm um interesse quase geral, e podem usar-se quase a propósito de qualquer filme;
em compensação, outros são mais ou menos específicos. Além disso, uma análise
define-se por uma intenção de conjunto e uma estratégia global: essa intenção e
essa estratégia é que determinam o recurso a um dado "instrumento", ou antes, a
um dado estado intermediário do objecto.
De maneira geral, a análise do filme utiliza principalmente três tipos de ins-
trumentos: .
a) instrumentos descritivos, destinados a atenuar a dificuldade, a que já aludimos,
de apreensão e memorização do filme. Num filme tudo é potencialmente
descritível, e em consequência esses instrumentos variam muito. Tendo em
conta o predomínio do filme narrativo, muitos desses instrumentos preten-
dem descrever as maiores (ou menores) unidades narrativas; mas costuma
ser interessante descrever determinadas características da imagem, ou da
banda sonora;
34
2. INSTRUMENTOS ETÉCNICA DA ANÁLISE
-------------------~----
b) instrumentos citacionais, que desempenham um pouco a mesma função
que os anteriores (= realizar um estado intermediário entre o filme projectado
e o seu exame analítico minucioso), mas conservando-se mais próximos da
"letra" do filme;
c) por,fim, instrumentos documentais, que se distinguem dos precedentes por
não descrever ou citar o próprio filme, mas juntar ao seu tema informações
provenientes de fontes exteriores a ele.
É-nos limpossível apresentar em pormenor todos os instrumentos possíveis e
imagináveis; limitar-nos-emos aos mais representativos para cada uma destas três
categorias, podendo acrescentar outros exemplos depois.

I
2. INSTRUMENTOS DE DESCRIÇAo
De mddo geral podemos dizer que os elementos essenciaiscomummente descritos
numa análise do filme são os da narração, da realização, 'Üucertas características
da imagem - e que é raro encontrar descrições sistemáticas da banda sonora de
um filme. ,Vamos ater-nos, portanto, a esses instrumentos mais frequentes.

2.1. A decomposição plano a planoS


Tecnologicamente falando, um filme de 90 minutos, projectado à velocidade-
-padrão de 24 imagens por segundo, contém exactamente 129.600 imagens
diferentes. Mas, evidentemente, o que o espectador percebe não são essas imagens
individuais, "anuladas" pelo desfile da película no projector, mas unidades de tipo
muito diverso.No caso, amplamente dominante, do cinema narrativo-representativo,
as unidades mais aparentes são os planos, ou porções de filmes compreendidas entre
duas colagens 6 • Com um mínimo de treino, qualquer espectador pode, na maioria
dos casos, perceber muito facilmente a sucessão dos planos de um filme.
Sem que exista regra absoluta na matéria, o número de planos que compõem um filme
varia no~avelmente pouco. É certo que há filmes excepcionais que comportam um número
muito elevado de planos (3225 em Outubro de S.M. Eisenstein), ou pelo contrário, muito
reduzido (73 em India Song, de Marguerite Duras, uma vintena para alguns filmes de
Miklos Jancsó). Mas, na maioria dos casos, um filme de duração média tem de 400 a 600
planos. Alguns exemplos, de filmes cuja decomposição foi publicada 7; Pépé le Moko, de
Julien Duvivier (449 planos); Volpone, de Maurice Tourneur (447); Les Yeux sans visage, de
Georges Franju (445); Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman (574);A Beira do Abismo,
de Howard Hawks (609); Hiroshima Meu Amor, de Alain Resnais (423).

5 Découpage, no original. O termo designa a acção de cortar, recortar, dividir. No vocabulário


cinematográfico ele corresponde a dois procedimentos diversos, um anterior e outro posterior à
filmagem. Em português o primeiro costuma chamar-se planificação, e o segundo é às vezes também
designado como listagem dos planos, referente à montagem final do filme. Os autores empregam o
termo sobretudo para designar o estudo posterior, plano a plano, de um filme ou excerto. Nesta
acepção usar<;mos aqui o termo decomposição plano a plano, ou simplesmente decomposição. (N.
doT.) .
6 Sobre Os problemas teóricos suscitados pela noção de plano, ver Esthétique du film,
pp.26-30.
7 Na revi~ta L' Avant-scene cinéma.

35
A ANÁLISE DO FILME

No cinema narrativo clássico os planos combinam-se por seu t~rno em unidades


narrativas e espácio-temporais normalmente designadas por sequências (=séries
de planos). É a essas duas unidades, o plano e a sequência narrativa, que se aplica
a noção de planificação.
A palavra "planificação" aplicada a um filme compreende pelo menos duas
acepções sensivelmente diferentes:
- De início o termo pertencia ao vocabulário da produção dos filmes, e desig-
nava a operação que une a fase final da elaboração do argumento à fase inicial
da rea,lização. Essa operação, e o próprio termo, remontam aos primórdios da
repartição técnica do trabalho na indústria do cinema (encontram-se já muitas
referências a ambos em 1917, na imprensa especializada). No estado actual da
indústria, a planificação sucede a outros estádios dó argumento (a sinopse e a
continuidade dramática), divide a acção em sequências, cenas, depois em planos
numerados, e fornece as "indicações técnicas, cénicas, faciais, gestuais, necessárias
à boa execução das filmagens" 8. Observemos de passagem que certos realizadores
publicaram essasplanificações, em princípio meros instrumentos de trabalho (como
no caso de Louis Delluc, que em 1923 reuniu, com o título Drames de cinéma, a
planificação, numerada plano a plano, de quatro filmes seus). Observemos, por
fim, que sempre existe alguma diferença entre a planificação técnica anterior à
rodagem e a montagem definitiva de um filme, mesmo se certos cineastas com
uma reputação de minúcia (como Alfred Hitchcock e Henri-Georges Clouzot),
se afastam muito pouco da planificação inicial.
- Por outro lado, o termo refere uma descrição do filme no seu estado final,
geralmente baseado em dois tipos de unidades (plano e sequência) que já definimos
mais atrás. Evidentemente, é sobretudo nesse segundo sentido que entenderemos
a palavra ao longo deste livro.
Semelhante decomposição é um instrumento praticamente indispensável se
quisermos analisar um filme na sua totalidade, e se nos interessa a sua narrativa,
ou montagem. Mas é possÍvel- embora muito raramente - revelar-se igualmente
útil para a análise de outros aspectos de um filme, na medida em que, mesmo para
características puramente visuais (a grandeza dos planos, por exemplo), ele pode
eventualmente mostrar melhor as opções estilísticas e retóricas.
Como uma decomposição deve conter os elementos, e só estes, que o ana-
lista escolheu tratar no seu trabalho, concluimos que não há nem decomposição
nem modelo obrigatórios. Podemos conceber um levantamento mínimo, que só
contenha o número do plano, uma indicação resumida do conteúdo da imagem,
a reprodução dos diálogos; mas conforme as exigências particulares do estudo
empreendido, poderemos acrescentar muitos outros parâmetros.
Eisuma lista de alguns dos parâmetros mais considerados nas decomposições analíticas:
1.Duração dos planos; número de fotogramas.
2. Grandeza dos planos9; incidência angular (horizontal e vertical); profundidade de
campolO;apresentação das personagens e objectos em profundidade; tipo de objec-
tiva utilizada (focal).

8 Henri Diamant Berger, Cinémagazine, 9 de Setembro de 1921, citado por Jean Giraud, Le
Lexique du cinéma français des origines à 1930, Paris (CNRS), 1958.
9 Para todas estas noções, ver Esthétique du film, capítulos 1 e 2.

36
2. INSTRUMENTOS E TtCNICA DA ANÁLISE

3. Montagem: tipos de raeeords usados1o; "pontuações": fusões, cortinas, etc.


4. Movimentos: deslocações dos actores no campo, entradas e saídas de campo; movi-
mentos de câmaralO.
5. Banda sonora: diálogos, indicações quanto à música; bruitage; escala sonora; natureza
da captação de som.
6. Relações som-imagem: "posição" da fonte sonora em rellação à imagem ("in"/"off")lO;
sincronismo ou dessincronismo entre a imagem e o som.
I
Esta não é, claro, uma lista exaustiva.

Nas páginas seguintes fornecemos dois exemplos de planificações efectivamente


realizadas (e publicadas). O primeiro é extraído de Muriel, o segundo de L' Ami
de mon arnie, de Éric Rohmer.
O tipo de decomposição que aqui evocamos baseia-se na sucessão dos planos.
Tal não deixa de levantar alguns problemas, tanto práticos como teóricos. Fazer do
plano a unidade de descrição é começar por lbvantar todos os problemas teóricos
relacionados com a própria noção (ver mais atrás). No fim de contas, o maior risco
consiste sempre em cair na ilusão de que o plano constitui uma unidade "natural"
da linguagem cinematográfica. Porém, como iremos ver com maior exactidão no
capítulo ~, a análise de um filme tem a ver com unidades relacionais, abstractas,
que não dcupam todas uma superfície fílmica. manifesta'; as unidades pertinentes
da análise;não têm razão alguma, apriori, para coincidir com a divisão em planos.
Enfim, voltamos a dizer, uma decomposição plano a plano contribui, por definição,
para perpetuar o privilégio unanimemente (e muitas vezes inconscientemente)
concedido à imagem. A banda sonora é muito mais comínua, em certo sentido,
do que a banda de imagem - ou pelo menos as transições sonoras efectuam-se de
modo inteiramente diverso da "mudança de plano". Eis porque a decomposição por
planos, geralmente útil, de forma alguma deve ser considerada uma panaceia.
Além do mais, na prática certo número de dificuldades "técnicas" limitam o
alcance de uma decomposição assim. A mais evidente surge sempre que é impos-
sívellocalizar com precisão uma mudança de plano (devido a trucagem, ou um
movimento de câmara muito rápido, ou qualquer outra razão).
I
Eisalguns exemplos dessa impossibilidade ou dificuldade prática de delimitar planos:
- pela sua extrema brevidade: é o caso de Outubro, de S.M. Eisenstein, no fim da sequência
de confraternização entre os bocheviques e os cossacos, em que os planos vão ficando
cada vez mais rápidos (menos de um segundo) 10;
- devido ao movimento dá câmara: em Hiroshima Meu Amor, de Alain Resnais, no início
do film~ uma panorâmica em filage faz-nos passar "em continuidade" de um plano do
museu de Hiroxima para um plano de noticiário reconstituído;
- devido a um negro momentâneo: neste caso o exemplo mais célebre são as transições
de "plano" a "plano" (de bobina a bobina) em A Corda, de Alfred Hitchcock, onde a cada
mudança de bobina os actoresavançam para a câmara até tapar completamente a
obJectiva; .
- devido a trucagens: o caso mais simples é odas sobreposições, sobretudo quando são
múltiplas, como na sequência na Assembleia Nacional em Napoleão, de Abel Gance, ou
no final de Tehelovek s Kinoapparatom [Homem da Câmara de Filmar], de Dziga Vertov.

Mas, paradoxalmente, a decomposição por planos não é menos difícil de exe-


cutar quando nos deparamos com filmes de planos muito longos, frequentemente
resultado de movimentos de câmara complexos. Nos fiRmesde Miklos ]ancsó,
, I
I

10 Plan~s 1350 a 1422b na numeração de Philippe ~esdouits et ai.

37
Muriel, de Alain Resnais, 1963 »
»
PLANO IMAGEM SOM z
»-r
CAMARA RulDOS Vi
N••
DESCRITIVO
DURAÇAo (grandeza, ângulos, DIALOGOS (in/off) + m
(cor, conteúdo, movimento)
movimento) MÚSICA
O
6 1,8seg. - Cor-de-Iaranja-castanho. -G.P. A seguir havia a loja de malhas '~ la Grãce de Dieu. Pássaros O
(510) - Duas gavetas em forma de alvéolo, sobrepostas, - Rosto ligeiramente ::!J
contendo talheres prateados. à esquerda. Picado r
de ângulo menos s:m
acentuado.
-Fixo.

7 1,83 sego - Banco. -G.P. - Mas não vejo essaloja, era uma
- Copos brilhantes sobre um vidro diante de um espelho - 30. direita. Picado.
reflexos alterados -Fixo.
- Fixo.

8 1,83 sego - Branco e castanho. -P.P. tabacaria.


(510) - Quatro pilhas de pratos brancos (dois níveis) diante - Ligeiramente à
de um espelho numa mesa castanha. Guardanapos esquerda. Ligeiro - Oh! Mas o que é que está a dizer?
brancos. Saleiros. picado.
- Fixo. -Fixo.

9 1,41 sego - Branco, vermelho e cor-de-rosa. - P.P.mais afastado. Vocêtroca tudo.


(509) - Saleiros, mostardeiras, ramalhete cor-de-rosa. - Picado à esquerda.
- Fixo. -Fixo.

10 5,62 sego - Negro e vermelho. -P.A. (Empregado): Morei trinta anos neste bairro. Não
(515) - Três personagens: um de costas em primeiro plano, - 30. esquerda. é por terem caído aqui bombas que já não me
dois de frente em segundo plano. Um está atrás de -Fixo. lembro da minha rua.
um balcâo de bar, os outros à frente. Candeeiro ligado
(garrafa de uísque e abajur escocês vermelho). Cenário
pintado atrás do empregado.
- O empregado fala mexendo a cabeça. A segunda
personagem ao fundo abana a cabeça.
2. INSTRUMENTOS E TÉCNICA DA ANÁLISE

L'Amie de mon amie, de Eric Rohmer, 1987

Imediações de Neuville-sur-Oise - exterior dia 222. Plano geral (no eixo contrário): o mesmo
213.Plano de conjunto: asredondezas dos lagos caminho. Elesafastam-se, com eleatrás, sempre
(o "Domaine desJeunes").Uma paisagem ondu- em silêncio.
lante, com ervajá amarelecida, e arbustos pouco 223. Plano geral: o caminho já nem sepercebe,
abundantes. Fabien e Blanche afastam-se. com as ervas. Blanche, à frente, e Fabien avan-
214.Plano geral: o cimo de uma pequena colina; çam em silêncio para a câmara. Saem de campo
algumas rochas afloram na relva. Blanche à frente, pela direita, deixando o campo vazio
e Fabien entram em campo pela frente, à por um momento.
esquerda; páram sobre as rochas, contemplam 224. Plano geral: muro em pedra à beira de um
a paisagem: uma fila de árvores, ao fundo do caminho. Blanche e Fabien aproximam~se do
plano. muro pela direita. Fabien faz um degrau com
Blanche. Ah, mas é o Oise ... as mãos para que Blanche suba ao muro, que
214. Plano de conjunto em panorâmica, da ele escala a seguir. Passam para uma espécie
esquerda para a direita (com teleobjectiva), pela de jardim, ou bosque, elevado relativamente
paisagem que Blanche e Fabien vêem. Um rio ao caminho (o parque de Neuil/y).*
ladeado de árvores (o Oise),hortas, uma aldeia 225. Plano geral: Blanche e Fabien, caminhando
ao fundo (Jouy-Ie-Moutier). numa mata de vegetação rasteira, da esquerda
Blanche (off) .... além! Hem? para a direita, acompanhados em panorâmica.
Fabien (off). Sim! Ali, atrás das árvores! Progridem sempreno maior silêncio,semseolhar.
215. (=213), sobre o par. Detêm-se: Fabien senta-se no chão, enquanto
Blanche fica de pé, a olhar para cima.
Fabien. E ele dá uma volta. Ali conseguimos
perceber. Ele dá uma volta assim (estende o 226. (Contracampo): árvores, o sol, através da
braço, rodando à direita sobre si mesmo), estás a ramagem (pequena panorâmica da esquerda
ver, vira ali 110 baixio, junto a ... para a direita).
216. Plano de conjunto. Cergy-St-Christophe, 22Z Plano aproximado de tronco: Blanche,
visto (ao longe) da pequena colina; muitas de mãos na cintura, sempre olhando para
árvores em primeiro plano. cima, a cabeça toda inclinada para trás, com
ar comovido.
Fabien (off) .... onde tu moras, ali, Saint-
-Christophe! 228. (Contracampo): nova panorâmica pelas
Blanche (off). Ah sim! Vê-se a torre do Belvé-
árvores e céu; o vento agita as folhas. Ainda o
dere!
mais profundo silêncio.
Fabien (off). Sim ...
229. Plano aproximado de tronco: Blanche,
ainda de mãos nas ancas; ele vira a cabeça e o
21Z (=215), sobre o par.
peito, regressa à posição inicial.
Fabien. (continua a rodar. Agora está de frente
230. Plano aproximado de peito: Fabien, sen-
para a câmara). Depois continua assim ...
tado, busto a três quartos, filmado da esquerda,
218.Plano de conjunto: a paisagem descrita por de rosto voltado para a câmara olha para cima
Fabien; em primeiro plano as árvores, ao longe à direita (para Blanche).
Cergy-Pontoise (panorâmica da esquerda para
231. (=229) Blanche. Ela vira-se mais ainda,
a direita seguindo a descrição de Fabien).
depois volta a olhar na direcção da câmara,
Fabien (off) .... ele dá a volta toda em círculo de lágrimas nos olhos, enquanto Fabien, que se
assim, passa diante de Cergy-Préfecture, até ao
levantou, entra em campo pela esquerda.
pé da torre E.D.F.
Fabien (surpreso,um pouco incomodado, também
219. (=217), sobre o par. ele comovido). Estás a chorar? (passa por trás de
Fabien (vira-se completamente, em sentido Blanche, fica à direita)
contrário, até nos virar novamente as costas, e Blanche. Não! (desvia-se dele)
aponta uma direcção à esquerda). Conheço um
Fabien. É do sol?
caminho muito agradável na margem, mesmo
junto ao Oise ... Blanche. Não, não sei do que é... (afasta-se
220. Plano geral: Blanche e Fabien caminham bruscamente para a esquerda, acompanhada em
numa vereda de terra ladeada de arbustos; a panorâmica pela câmara, que deixa Fabien).Talvez
câmara acompanha-os numa panorâmica da este silêncio ou ... ou a hora, porque ... sabes
direita para a esquerda, epercebemos então que quando o sol começa a pôr-se, sente-se sempre
os dois estão à beira do Oise. Um barco passa uma angústia ... (Suspiro) E eu sinto-me bem ...
atrás deles, muito lentamente. (Sorri) Mesmo bem de mais! (Secauma lágrima).
221. Plano geral: O caminho tornou-se mais Fabien (off). Como assim, de mais?
estreito, um atalho invadido pelas ervas, aper-
tado entre osarbustos. Blanche,à frente, eFabien * Fim da terceira bobina de dezanove minutos e
avançam para a câmara em silêncio. trinta segundos.

39
. A ANÁLISE DO FILME

mas também nas sequências musicais dos filmes de Busby Berkeley ou de Stanley
Donen, ou ainda em filmes como Madame de... ou La Ronde, de Max Ophuls, a
descrição pode rapidamente perder-se nos turbilhões dos movimentos de câmara
e nos arabescos dos movimentos das personagens. De igual modo, um filme cons-
truído em longos planos quase fixos, como Gertrud, de Carl lh. Dreyer, coloca
problemas específicos: aqui são as personagens que, a todo o momento, entram
ou saem de campo, causando reenquadramentos constantes, embora mínimos;
a realização assenta em gestos e olhares que tendem para fora-de-campo - e a
mudança de plano, mais rara, é apenas um elemento entre outros, que a descrição
não tem motivo para privilegiar.
Assim, essetipo de decomposição é operativa sobretudo para os filmes realizados
conforme os cânones do "estilo clássico", com planos de uma duração média (8
a 10 segundos), ligados por uma figura claramente reconhecível, e em função de
uma realização que se centra alternativa e igualmente nas diversas personagens.
Mesmo com estas limitações, a decomposição por planos é um instrumento
interessante. No mínimo, ela constitui um utensílio de referência, que permite por
exemplo ajuizar se a cópia de que dispomos para o filme estudado está completa
e conforme ao original.
Estas questões de "filologia" fílmica são importantes, principalmente no que respeita
ao cinema mudo. Com efeito, muitos filmes desse período foram realizados em várias
versões, destinadas à exportação para diferentes países, ou remontados, abreviados,
"escortanhados" de várias maneiras pelos produtores e exploradores. Na maioria dos
casos é impossível determinar com certeza a montagem original desejada pelo autor; o
analista deverá então esforçar-se por confrontar as diversas cópias existentes (nas cine-
matecas onde isso for possível) e fazer o levantamento das diferenças verificadas. Foi o
que fizeram, entre outros, Eric Rohmer para a sua decomposição do Fausto de Murnau,
Michel Bouvier e Jean-Louis Leutrat para a decomposição de Nosferatu, de Murnau, Charles
Tesson para a decomposição de Vampyr, de Dreyer, etc. Para nos ficarmos pelos grandes
clássicos, filmes como Nascimento de uma Nação, de Griffith, Outubro, de Eisenstein,
Metropolis, de Fritz Lang, existem actualmente em várias cópias diferentes, e o analista,
impossibilitado de poder restabelecer um improvável estado original, deve estar pelo
menos consciente do problema.

De forma mais geral, a decomposição por planos, na própria medida em que


é uma planificação, pode comparar-se, com proveito, à "planificação" antes da
rodagem, e assim originar estudos reveladores da génese do filme, e das diversas
modificações ocorridas entre os estádios sucessivos da produção (da "escrita").
Para nos limitarmos a dois exemplos, citemos Caminhos do Prazer, de que Alain
Robbe-Grillet publicou em 1974, num único volume, a sinopse, a continuidade
dialogada e a listagem de planos, e Muriel, de Alain Resnais e Jean Cayrol, de
que Marie-Claire Ropars estudou uma sequência em termos de gênese, tal como
acabámos de sugerir 11•

2.2.llsegnnentação
O que hoje se convencionou chamar a "segmentàção" respeita a uma relação do
que, na linguagem crítica corrente, se designa as "sequências"de um filme (narrativo).

li Alain Robbe-Grillet, Glissements progressifs du plaisir, Paris, Éd. de Minuit, 1974. Claude
Bailblé, Michel Marie, Marie-Claire Ropars, Muriel, Paris, Galilée, 1974.

40
2. INSTRUMENTOS E TÉCNICA DA ANÁLISE

No vocabulário técnico da realização (e em consequência, no vocabulário crítico),


uma sequência é uma sucessão de planos ligados por uma unidade narrativa, logo
comparável, na sua natureza, à "cena" no teatro, e ao "quadro" no cinema primi-
tivo. No ;filme de longa metragem narrativo (aquele que com mais frequência é
analisado), à sequência é conferida uma importante existência institucional; ela é
ao mesmo tempo a unidade básica da planificação técnica e, uma vez terminado
o filme, a unidade de memorização e de "tradução" da narrativa fílmica em narra-
tiva verbal. Essa última função pode qualquer de nós verificá-la de forma simples:
quando "contamos" um filme a alguém que não o viu, por exemplo, costumamos
referir esses grandes blocos narrativos que são as "sequêndas" (num sentido muito
amplo e muito impreciso). Quanto à importância dessa noção no processo de
realizaçãd, ela é a de, entre outros factores, ass~gurar a unidade de planos rodados
numa ordem que raramente é a da narrativa. A ordem de rodagem dos planos, com
efeito, é determinada sobretudo por imperativos práticos e orçamentais, que levam
por exemrlo a gravar juntos todos os planos situados num dado lugar ou cenário.
Assim, em Hiroshima, Meu Amor, Alain Resnaiscomeçou por filmar todos os planos exterio-
res de Hiroxima; em Tóquio filmou planos de interiores; os exteriores situados em França
fê-los em Nevers; e por fim filmou muitos interiores em estúdio, em Paris.
Essa prática continua a ser dominante, mas foi muitas vezes contestada por diversos
movimentos cinematográficos.Na altura da Nouvelle Vague francesa a maioria dos filmes
foi filmada deliberadamente pela ordem da narrativa (o que não deixa de se reflectir, por
exemplo, na representação dos actores).

A influência desse conceito dominante da sequência é muito sensível nas descri-


ções e planificações publicadas de filmes. Na prática da rodagem, as indicações de
lugar são determinantes, e costumam ser fornecidas em função de critérios do tipo
"exteriorli.nterior" ou "dia/noite". Não é raro ver-se descrições de filmes montados
conformar-se a essas distinções (é muitas vezes o caso na revista L' Avant-scene,
por exemplo), o que coloca alguns problemas no caso de sequências de filmes que
conjugam lugares e cenários muito diversos.
O início'de OAcossado, de Jean-Luc Godard, é um bom exemplo: a sucessão de episódios
na Nacional 7,e depois a procura de Patricia por parte de Michel Poiccard, encadeando
planos de rua, um átrio de hotel, o quarto de Patricia, um café, o pátio de um prédio, são
fragmentos de filme difíceis de descrever apenas segundo a lógica dos lugares sucessivos,
muito díspares mesmo tratando-se manifestamente de uma acção unitária.

É portanto indispensável precisar melhor essa noção de "sequência" para torná-la


mais operativa. Muito genericamente, essa noção suscita três tipos de problemas:
em primeiro lugar a delimitação das sequências (onde começa e onde termina
determinada sequência?); em segundo lugar a estrutura interna das.sequências
(quais os diversos tipos de sequências mais habituais? É possível elaborar-lhes uma
tipologia completa?); em terceiro lugar a sucessão das sequências: qual é a lógica
que presid~ ao seu encadeamento? Vamos abordar os problemas por esta ordem.
No que respeita à delimitação, o primeiro critério que ocorre é o de nos basearmos
nas marcas mais fáceis de identificar, os vários "fundidos" e "cortinas" que foram
frequentemente comparados a sinais de pontuação que separam os "capítulos" do
filme. Esse critério, que tem a vantagem da simplicidade, infelizmente está longe
de ser absoluto, ou mesmo minimamente sistemático, como demonstraram muitas
tentativas de segmentação baseadas nesses sinais de pontuação.
41
A ANÁLISE DO FILME

Tomemos o exemplo de Ossessione, de Luchino Visconti. O filme dura 2h20, e compreende


482 planos; a existência de 20 fusões permitiu a Pierre Sorlin propor uma divisão do filme
em 21 segmentos ou sequências narrativas. Mas essassequências são muito desiguais e
díspares. A primeira sequência do filme, consagrada à chegada de um vagabundo, Gino,
ao restaurante de Bragana e da sua mulher Giovanna, abarca várias cenas sucessivas;
uma primeira cena de 7 planos mostra a paragem do camião no restaurante; Bragana
cavaqueia com os camionistas, o vagabundo apeia-se e dirige-se para o estabelecimento;
a segunda parte da sequência (22 planos) representa o encontro de Gino e Giovanna.
Em contraste, a sequência 11,a meio do filme, compreende um só plano-sequência de
9 minutos, que mostra o interrogatório de Gino e Giovanna. Ainda que comparáveis
formalmente em virtude do critério adoptado, na verdade esses dois fragmentos não
têm a mesma relação com a narrativa.

Mesmo no cinema mais clássico,essadelimitação por sinais visíveisde pontuação


não é de forma alguma sistemática, e a ligação de duas sequências sucessivas por
corte não é invulgar. Para mais, esse critério torna-se completamente insuficiente
logo que tentamos delimitar sequências num filme de estilo menos clássico.
Voltando rapidamente ao exemplo de O Acossado, o critério das marcas de pontuação
(fusões-encadeados, fusões e íris a negro) permite obter 12 unidades de duração extre-
mamente desigual (de 28 minutos e 10 segundos para a longa sequência entre Michel
e Patricia no quarto, até 30 segundos para o grande plano do par que se abraça no
escuro de uma sala de projecção), e que não correspondem a "capítulos" de importância
equivalente 12.

Foi sobretudo para minorar estas dificuldades que Christian Metz, num dos
seus primeiros artigos, propôs com a designação "grande sintagmática", entretanto
celebrizada, uma tipologia mais exacta das ordenações sequenciais nos filmes de
ficção. Mais adiante indicaremos os principais tipos propostos por Metz; por
agora fixemos, no que tange à delimitação propriamente dita dos segmentos, o
seguinte:
- Primeiramente, a "grande sintagmática" só tem a ver com a banda-imagem;
ela assenta portanto na hipótese implícita de que todas as mudanças de sequência
(ou, mais precisamente, de segmento) coincidem com mudanças de plano, o que
nem sempre é evidente, por exemplo quando o som de um dado segmento se
prolonga no segmento seguinte.
- Os critérios de delimitação são múltiplos; Metz considera segmento autó-
nomo de um filme qualquer passagem desse filme não interrompida "por uma
mudança importante no curso do enredo, nem por um sinal de pontuação, nem
pelo abandono de um tipo sintagmático em favor de outro". Se o critério dos sinais
de pontuação não é ambíguo (embora tenha pouco interesse geral, como acabá-
mos de ver), a aplicação dos outros dois é mais delicada. A noção de "mudança
importante" é bastante vaga, embora muitas vezes praticável. Quanto ao terceiro
critério, o abandono de um tipo de sintagma em favor de outro, ele remete para
a tipologia dos segmentos.
- Em conclusão, o modelo da "grande sintagmática" não fornece, quanto à
delimitação dos segmentos, soluções instantâneas. Em praticamente todos os casos
de aplicação concreta que se tentaram com ele, tropeçamos em dificuldades ou
incertezas. Não obstante, as categorias que ele emprega possuem, na maioria dos

12 Obtivemos estes números de Marie-Claire Ropars.

42
2. INSTRUMENTOS E TÉCNICA DA ANÁLISE

casos, grande poder de sugestão, e essa tipologia continua a ser uma referência muito
útil, que' é necessário saber adaptar aos casos particulares que encontramos.
Vejamos então os diversos tipos de segmentos que Christian Metz descreve,
e a questão da estrutura interna desses segmentos. A tabela dos diferentes tipos
de segmentos é construída, no artigo de Metz, pela aplicação de uma série de
dicotomias sucessivas, baseadas em critérios :lógicos. O quadro seguinte resume
essas operações:
I

"
Segmentos autonomos

1. Plan~. autón~ ~,. (= ,iries de plano,)

.
Smtagmas ~l'. OglCOS
a-Cfono ; S.~
Intagmas crono 1'.
OglCOS

/~
Alternantes: Não-alternantes:
2. Sintagma 3. Sintagma
paralelo em chaveta

Sucessão: Simultaneidade:
Sintagmas narrativos .4. Sintagma
~ ~ descritivo

Alternantes: Nã~ernantes:
5. Sintagma
alternado

6. Cena
/~
Sem elIpses: Com elIpses:
7. Sequência

Este quadro exige algumas observações:


- A categoria dos "planos autónomos" (n.o 1) é, de facto, muito vasta; ela com-
preende tanto planos isolados na forma de insert (por exemplo, o grande plano de
um relógio de pulso numa cena em que a personagem consulta as horas) como
planos-sequência que podem durar vários minutos; na prática, a segmentação de um
determinado filme deverá sempre distinguir precisamente esses casos diferentes.
- A noção de "sintagma a-cronológico" significa que não existem relações
cronológicas definidas entre os diferentes planos que constituem o segmento; a
noção de "sintagma cronológico" implica evidentemente o contrário, e as relações
cronológicas em questão podem ser, quer de sucessão, quer de simultaneidade;
Essas duas dicotomias (cronológico/a-cronológico, sucessão/simultaneidade), assim
como a úl~ima (presença ou não de elipses narrativas no segmento), assentam numa
apreciação das relações diegéticasl3 entre os diferentes planos. Em compensação, o

13 Sobre a noção de diegese, ver Esthétique du jilm, p. 80.

43
A ANALISE DO FILME

critério de alternância é puramente formal (visto que se define como a alternância


de dois ou mais motivos visualmente identificáveis).
- Por fim, como já sugerimos, não se deve tomar este quadro à letra; ele define
critérios muito gerais e eficazes de delimitação entre segmentos, mas não analisa a
infinita variedade de casos concretos que podemos encontrar. De maneira geral,
aplica-se mais facilmente a um filme com elevado "grau de classicismo", e com
mais dificuldade a um filme com estilo inovador. Em muitos casos será proveitoso
inspirarmo-nos nessa tipologia e adaptá-la aos problemas e objectivos da análise
empreendida. Poderemos, em particular, optar por uma maior segmentação (tendo
em conta, por exemplo, mudanças "menores" no decurso da acção, provocando
cesuras que nos pareçam interessantes), ou pelo contrário interessarmo-nos por
estruturas ainda mais amplas (pondo de parte, por exemplo, os inserts contidos
numa cena ou sequência, para tratar o conjunto como uma só unidade).
Muitos analistas utilizaram critérios de segmentação mais ou menos ad hoc. Na sua obra
sobre os filmes franceses dos anos 30, Michele Lagny, Marie-Claire Ropars e Pierre Sorlin
distinguem assim três tipos de estruturas internas dos segmentos: a continuidade, linear
ou com elipses; a alternância; a "espessura" temporal. É fácil ver que cada uma dessas
categorias corresponde grosso modo a vários tipos de "grandes sintagmas" metzianos.

O último problema ligado à segmentação é o da lógica de implicação que


governa a sucessão dos segmentos. Trata-se de uma questão de narratologia que
não podemos tratar em pormenor. Contentar-nos-emos em indicar que, no filme
narrativo clássico (essa seria uma das suas definições possíveis), costuma haver
uma relação explícita entre dois segmentos sucessivos, e que essa é uma relação
quer de tipo temporal (sucessão cronológica definida, simultaneidade definida,
etc.), quer de tipo causal (um elemento do primeiro segmento é a causa, definida
como tal, de um elemento do segundo); e em sublinhar que, em consequência,
as escolhas efectuadas no processo de segmentação, na medida em que se ligam
inevitavelmente a essa lógica de implicação, suplantam já o nível simplesmente
descritivo, para constituir uma primeira fase da interpretação e da apreciação das
estruturas narrativas no filme estudado.
Para terminar, vamos exemplificar o tipo de problemas (neste caso particular-
mente agudos) que podemos esperar quando procedemos a uma segmentação. É
um exemplo na aparência muito simples: a história de um casal que vai reencontrar
o pai da mulher, que vive há anos no campo. O casal está acompanhado pelos
seus dois filhos e pela irmã da mulher. Depois de almoçar com o pai, o casal parte
com os filhos; a irmã resolveu passar algum tempo com o pai: é o começo de Elisa,
Vida mía, de Carlos Saura.
Há várias maneiras de dividir este começo. Mas como a noção de "começo"
é vaga, primeiro é preciso delimitá-la, o que já equivale a colocar uma primeira
hipótese de leitura. O filme não contém qualquer sinal de pontuação visual; as
mudanças no decorrer do enredo quase se reduzem (se exceptuarmos as passagens
"fantásticas" ou "sonhadas") à chegada do pai; o único limite claramente definido
situa-se no plano 172 (após mais de meia hora de filme!): estamos noutro dia, vê-se
um carro branco, conduzido por Elisa, a sair da quinta do pai; ela vai à cidade
telefonar ao marido; fora dessa cesura, podemos observar diversas elipses, mas os
segmentos encadeiam-se de maneira contínua, sem efeito de ruptura, e podemos
por conseguinte decidir considerar esse fragmento já bastante longo como o
44
2. INSTRUMENTOS E T~CNICA DA ANÁLISE
I

.:.l_C"~ :~ ,--o ~-~r-~----7"------

Começo de Elisa, Vida m{a. de Carlos Saura (1977).


I

Joaquim Hinojosa em Elisa, Vida mía. de Carlos Saura (1977).

! I

"começo", ~ primeiro movimento do filme (há. uma evidente semelhança entre


o plano 3, ~m que um automóvel chega à quin~a, e o plano 172, onde um outro
automóvel i deixa; o enquadramento, em partic\llar, é praticamente o mesmo). O
primeiro cri~ério que se nos oferece para segment~-lo é o da continuidade temporal.
Três elipses: manifestas permitem delimitar qUi1-trograndes blocos narrativos: a
primeira de~sas elipses segue a chegada do pai, de bicicleta, e apresenta a cena da
refeição; a segunda ocorre no fim do passeio entre Luis (o pai) e Elisa (a filha), e
leva à cena ~m que Elisa faz a sua cama; por fim a terceira é mais definida: Elisa
I 45
I
A ANÁLISE DO FILME

Geraldine Chaplin e Isabel Mestres em Elisa, Vida mia, de Carlos Saura (1977).

está no quarto, acabou de ter uma "visão" relativa à história de assassinato que o
pai lhe contara durante ó passeio, e passamos então a uma longa panorâmica sobre
o campo, e depois a Luis, a trabalhar no escritório. Definimos assim quatro blocos
de extensão desigual (planos 1-35,36-129, 130-140, 141-171). O critério mais óbvio
para continuar a segmentá-los é de ordem diegética: o segundo bloco, por exemplo,
é marcado pela espécie de enclave que constitui a "visão" (ou alucinação?) de Elisa
(planos 62-66); o terceiro, aparentemente, pela "visão" do assassinato (138-139); o
quarto sobrepõe várias dessas passagens "oniriformes". Por fim, obteríamos uma

46
2. INSTRUMENTOS E TÉCNICA DA ANÁLISE

segmentação ainda mais apurada em função dos lugares diegéticos representados 14.
Assim, o primeiro plano representa uma vista de conjunto de uma planície vazia,
atravessada por um carro que vem do horizonte, e constitui um primeiro segmento
em si. Os planos 2-6 mostram o percurso do çarro até ao pátio interior da quinta
(2.° segm~nto). No plano 6 as personagens entram na casa, atravessam um apo-
sento e dirigem-se à cozinha (planos 6-19, 3.° segmento). No plano 20 Elisa entra
no escritório do pai (e principia um dos temas musicais); vai ler o manuscrito que
aí encontra (planos 20-30, 4.° segmento); no plano seguinte encontramo-nos de
novo no pátio da quinta, chega o pai (planos 31-35, 5.° segmento), etc.
Não nos alongaremos com este exemplo. Apenas queríamos sugerir, primei-
ramente, a dificuldade que existe, logo que nos afastamos minimamente do
"classicisl1lO"mais estritó, na utilização imediata das categorias de segmentos
definidas pela "grande sintagmática"; depois, a importância de uma adequação
dos critérios de segmentação adoptados ao objectivo pretendido. As fases sucessivas
que traçámos para dividir o começo de Elisa, Vida mía, que passam de fragmentos
muito grahdes do filme para fragmentos cada vez mais redluzidos,de certa maneira
conduzem de uma "macro-segmentação", correspondente aos três grandes blocos
narrativos (da ordem da "sequência" no sentido que essa palavra tem na linguagem
corrente), para uma "micro-segmentação", que procura determinar as articulações
mais ínfimas (e é claro que a última segmentação que esboçámos ainda podia
prosseguit muito tempo).

2.3. A descrição de imagens do filme


Com este parágrafo distanciamo-nos consideravelmente, na verdade, da noção
de "instru,mento". Descrever uma imagem - ou seja, transpor para linguagem
verbal os elementos de informação, de signific,ação, que ela contém - não é uma
empresa fácil, mau grado a sua aparente simpliCidade. Muito mais ainda que uma.
segmentação do filme, a descrição detalhada dos planos que o compõem pressupõe
uma posição prévia analítica e interpretativa afirmada: não se trata de descrever
"objectivamente" e exaustivamente todos os elementos presentes numa imagem,
e a escolha utilizada na descrição resulta sempre, no fim de contas, do exercício
de uma hipótese de leitura, explícita ou não. :
Melhor que qualquer argumentação abstracta, um exemplo tornará compre-
ensíveis os problemas efectivos que se colocam 'ao analista. Escolhemos um plano
relativamente longo, o plano 33 de Muriel, de Alain Resnais (o plano dura 32
segundos).' O plano que o precede enquadra as mãos de Bernard em grande plano,
segurando. um filtro de café na mão esquerda e limpando o tampo de uma mesa
com a mão direita. O plano 33 retoma Bernard de frente no momento em que
ele se senta numa poltrona cinzenta, no centro do enquadramento (a personagem
veste um pulôver azul-vivo); é um plano médid, que enquadra a personagem pela
cintura. Ã esquerda, atrás da poltrona, cortinas cor-de-rosa separam dois com-
partimentos; à direita, uma cómoda em mad~ira escura, com um candeeiro de
cabeceira. Bernard pousa o filtro de café num dos braços da poltrona. Em seguida
Hélene atravessa o campo da direita para a es4uerda, em primeiro plano (ruído
I
14 É a solução adoptada por Blandine Pérez-Vitoria

47
A ANÁLISE DO FILME

forte de passos no soalho de madeira); ela d~saparece do campo à esquerda, para


correr as cortinas (forte barulho das cortinas). Bernard, para Hélene (sempre fora
de campo): "Quando é que ele chega?"; lança um rápido olhar para fora de campo,
na direcção dela. Hélene: "Daqui a menos de uma hora". Ela reentra em campo à
esquerda e corre a outra cortina(ruído dos varões). Reenquadramento ascendente
e para a esquerda sobre o movimento de Hélene; ela regressa ao primeiro plano e
atravessa a sala rapidamente passando diante de Bernard. A câmara acompanha-a
numa panorâmica lateral rápida. Bernard, sempre sentado: "Ele vai ficar muito I
tempo?". Hélene, contornando a poltrona e atravessando a sala: "Vais ter a gentileza
de não lhe perguntar; podia ser teu pai". Bernard, fora de campo, num tom irónico:
"Isso não é razão". A câmara detém-se no momento em que Hélene desaparece no
quarto por uns segundos. O fim do plano é fixo, enquadra-a quando reaparece
(ruídos de passos; sirenes e motores de barcos, durante os poucos segundos sem
palavras). Hélene ligou o interruptor do quarto quando entrou. Hélene (regres-
sada à sala, no umbral da porta, a olhar para Bernard fora de campo, à esquerda):
"Não o vais repreender. Alphonse é um homem que a vida não tratou bem" (ela
fala devagar, destacando as palavras). Ela tira o casaco de lã cinzenta para vestir
o casaco castanho do seu tailleur, sempre enquanto fala. Bernard, ainda fora de
campo, e bruscamente: "Vou dar uma volta, ver Muriel". Hélene, muito alto (tom
de surpresa): "Mas vens jantar, espero! É o primeiro serão!" Barulho de sirenes
e motores de barcos sobre estas últimas palavras. O plano seguinte reenquadra
Hélene em contracampo, de costas e em primeiro plano, a olhar para Bernard,
que está no fundo da sala.
Esta descrição dá uma ideia dos problemas. Primeiro, a linearidade da lingua-
gem verbal trai inevitavelmente a simultaneidade dos gestos e palavras (é o que
às vezes leva a apresentar esse género de descrições em quadros, onde as colunas
permitem separar com clareza os diversos elementos). Depois, e mais importante,
esse fragmento descritivo já detalhado, e de leitura razoavelmente árida, nem por
sombras esgota o assunto! Mesmo independentemente das dificuldades de uma
descrição verbal do espaço (não temos a certeza de ter explicado bem a topografia
dos lugares, nem a natureza exacta das deslocações), "esquecemo-nos" de muitos
pormenores, acerca dos cenários, das cores, dos gestos, das mímicas, das atitudes
das personagens - para não falar dos apontamentos sonoros, que nada dizem nem
do tom de voz dos actores, nem do seu timbre, nem dos efeitos produzidos por
uma pós-sincronização muito selecti~a, que tende a realçar todos os ruídos.
De modo geral, as dificuldades na descrição das imagens de filmes estão ligadas
a dois factores:
- Primeiro, a imagem fílmica é, na maior parte das vezes, inseparável da noção
de campo 15; ela funciona como fragmento de um universo diegético que a abarca
e excede. A nossa descrição do plano 33 de Muriel, por exemplo, utiliza elemen-
tos de leitura da topografia do apartamento que provêm de planos anteriores do
mesmo filme (em especial a localização do quarto, não visto, atrás das cortinas).
Mas, e talvez mais importante, a descrição de um plano particular deve procurar
realçar os elementos mais informativos, na medida em que estes se.relacionem
com elementos apresentados anteriormente. Assim, sempre com o mesmo exem-

15 Ver Esthétique du film, p. 12 e 59.

48
2. INSTRU'MENTOS E TÉCNICA DA ANÁLISE

pIo, era preciso indicar que o gesto de Beniard se inscreve numa série anterior
em que 'o vimos, por inserts muito rápidos, a preparar o café (planos 7, 17,28,32)
na cozinha, enquanto Hélene acompanhava um cliente: além disso, até então,
só tínhamos visto as mãos de Bernard, e $-al lhe apercebêramos o rosto, num
plano fugaz (plano 30, 1 segundo). No plano analisado, seria necessário referir o
quanto:a realização sublinha a extrema mobilidade das personagens, o facto de
não pararem quietos, a perturbação de Hélêne (irritada com a descontracção de
BernarCl?Angustiada pelo regresso de Alph,onse?), para não falar das numerosas
informilções fragmentadas ou misteriosas comunicadas pelo diálogo (quem é
Muriel? Quem é esse "ele" que está para chegar?).
.
- Etn seguida, e correlativamente, a desctição, como qualquer transcodificação,
. I
é selectiva, como há pouco sublinhámos; II1asalém do mais, uma imagem - este
é um lugar comum da semiologia visual - possui sempre vários níveis de signifi-
cação. No mínimo a imagem sempre veicula elementos informativos e elementos
simbólicos (nem sempre é impermeável a fronteira entre esses dois níveis que os
semiólogos costumam distinguir). Ao descrever uma imagem, a primeira tarefa
do analista é identificar correctamente os elementos representados, reconhecê-los,
nomeá~los. Esse nível do sentido literal, da "denotação", parece evidente, mas na
I '
verdade os "sem~s" visuais têm limites culturais bem precisos: pensemos simples-
mente; no apartamento onde decorre o plano 33 de Muriel, e nas dificuldades
que teria, sem dúvida, um filmólogo japdnês ou bambara para compreender a
estrutura e a funcionalidade daquele espaçb (veja-se, pelo contrário, a dificuldade
que m~itas vezes experimentamos para entender a estrutura da casa nos filmes de
Ozu). ;Quanto ao nível "simbólico", é ainda mais clara e francamente convencio-
nal, e ia sua leitura correcta, mesmo no estádio da simples descrição, exige uma
familiflridade real com o vestuário, o pano de fundo histórico, os simbolismos do
universo diegético que o filme descreve.
Equivale a dizer que não existe, em matéria de descrição de planos, uma receita
milagrosa, e que, mais claramente do que nunca, a descrição é aqui um primeiro
estádio da análise. No capítulo 5 voltaremos a estas questões da análise da imagem
e do sbm, e proporemos algumas abordagens.
I
2.4. (luadros, gráficos, esque01as
I '

Nesta última secção apresentamos verdadeiros instrumentos de descrição,


relativamente formalizados - mas de um'a diversidade quase infinita. De facto,
pratiçamente tudo o que no filme é susceptível de ser descrito pode originar uma
esquematização ou apresentar-se sob a forma de quadro. É o caso das planificações
por planos ou por segmentos de que já falámos. Os dois exemplos de planificações
que apresentámos são reveladores nas sua,sdiferenças de apresentação.
d mesmo sucede com as segmentações de filmes, que podem adoptar a forma
de um quadro que faz ressaltar com maior ou menor clareza a grelha analítica
utilizada para efectuar a segmentação. Aqui reproduzimos o início da planificação/
segmentação de Gigi, de Vincente Minn~lli, publicada por Raymond Bellour em
anexo no seu artigo "Segmenter, analyser". O próprio título das colunas desse
quadro é indicativo quanto ao objectivo pretendido: cinco colunas (P = Partes,
S = Segmentos, Sobre-S = Sobre-segmentos',Sub-S = Sub-segmentos, Sintagma = tipo
49
P Sobre-S 5 Lugares Sub-S Personagens Planos Sintagma Músicas Acções
»
»
O O Genérico sobre gravuras x Champagne
.............. z
múltiplos múltiplos planos Gigi
»-
r
Vi
A I 1 Bosque a Honoré 1-15 sequência tema Bois Honoré apresenta o Bois de Boulogne e apresenta-se a m
~ si mesmo: vive dos rendimentos, é solteiro e aprecia as O
mulheres. O
.. ............ ........ •. ......... ..... .......................................... :!!
b Honoré 16-21 Little Girls Faz o elogio das rapariguinhas e apresenta Gigi, que r
Gigi depois brinca com as amigas. Ela passa por ele e afasta-se pelo $
por Honoré bosque.
m

11 2 Casa deGigi Gigi 22-24 sequência vocalizações Gigi chega à casa da sua avó Mamita, que lhe recorda
(ext. int.) Mamita /mãe off/ ser o dia de visita à tia Alicia.

111 3 Em Paris /Honoré/ 25 plano Little Girls Um cabriolé cruza a praça e pára diante de um prédio
Casa de Gaston autónomo variação luxuoso.
(ext.)

4 Casa de Gaston Gaston 26 plano Anunciam a Gaston Lachaille a visita do seu tio. Ele
(int.) fornecedor autónomo acaba de resolver uns assuntos e sai.
criado
5 Casa de Gaston Honoré 27-28 sequência O encontro de tio e sobrinho, que partem de cabriolé
(ext.) Gaston por Paris.

6 Em Paris Honoré 29-40 cena It's a Bore Honoré gaba os encantos da vida (Paris, o vinho, as
Gaston depois por mulheres, a alta-roda). Gaston replica que tudo o
Honoré/Gaston aborrece. Faz parar o cabriolé.

IV 7 Casa deGigi Gaston 41-48 cena Gaston chega à casa de Mamita. Falam de Gigi. Gaston
(ext. int.) Mamita espanta-se com as "lições" que Alicia lhe dá.

V 8 Casa de Alicia Alicia 49-64 sequência Gigi chega a correr à casa de Alicia. Lição de boas
(ext. int.) Gigi maneiras (como comer com requinte). Conversa sobre
o casamento.
2. INSTRUMENTOS E TÉCNICA DA ANÁLISE

de "grande sintagma" segundo a tipologia de Christian Metz) são consagradas à


questão da planificação em segmentos de diversos tamanhos (os "subsegmentos"
são para Bellour as unidades de atção mínimas, separadas por mudanças menores
na acção; no outro extremo, as "partes", em número de cinco para todo o filme,
são os grandes episódios narrativos, aqueles que permitiriam contar o filme, pre-
cisamel}te, em algumas frases). A questão que nitidamente preocupou o analista
foi a da segmentação em si.
Mas, numa perspectiva completamente diferente, a descrição do segmento XIII
de L'Eden et l'apres, de Alain Robbe-Grillet, leva Dominique Chateau e François
Jost a propor o seguinte esquema:
I

Violette está numa cela de olhos vendados de vermelho


(b) (c)

2
5
Poster erótico
Violette
r.-
na cela
1
de olhos vendados
1
de vermelho

6 Boris está atrás


da grade de uma
1
"r i
8 Jean-Pierre bate a
uma porta vermelha

"Violência sexual"
10 Uma mulher, de olhos vendados de vermelho,

está encerrada numa jaula.
11 Sonia também está numa jaula.

Violette na cela de glhos vendados de vermelho

Tema do "mjllício"
19 Escorpião
21, 22, 27 Fogo
32-43 Sangue e vidro partido

"Violência sexual"
45 Marie-Eve, estendida na mesa da violação
47 Marie-Eve, ensanguentada, na banheira (C)
49 Marie-Eve sobre uma grade
50 Mulheres em jaulas: têm os olhos vendados (a' e b)

52 Marie-Eve, de olhos vendados de vermelho, atira

55 Duehemin morto
I '~ssass~nato"
\
57 Foto de Violette, ensanguentada
61 Mare-Amoine morto, na água
~ ~
62 Violette na cela de olhos vendados de vermelho

51
A ANÁLISE DO FILME

Desta vez os critérios de organização são de ordem temática. Um esquema


assim já revela, percebemos, uma leitura aprofundada do filme, de que representa
uma verdadeira interpretação.
Este exemplo leva-nos a mencionar todos os esquemas (usados com frequência,
de resto tanto no estádio da produção como no da análise) que representam as
relações narrativas no interior de um dado filme. Eis dois exemplos tirados do
estudo de A Sede do Mal por Stephen Heath ("Film and System, Terms of Analy-
sis"), que saiu na Sereen.

M~Q Provas falsas Escuta M~V

Quinlan chega Quinlan morre


Explosáo Sanchez confessa
Susan perdida Susan encontrada

Estes esquemas demonstram bem a extrema flexibilidade deste género de


"instrumento"; se a visualização que produzem pode ser preciosa ao tornar ime-
diatamente compreensíveis redes de relações porventura complexas, esses instru-
mentos só intervêm a posteriori, enquanto, precisamente, a situação que queremos
esquematizar já foi analisada e caracterizada.
52
2. INSTRUMENTOS E TÉCNICA DA ANALISE.

Por fim, vamos mencionar um último exemplo de esquema, às vezes útil para a
análise da realização, do enquadramento, etc.: a "planta" da colocação das câmaras
numa determinada sequência. Eis como Edward Branigan reconstitui as colocações
sucessivas da câmara numa cena de Flores do Equinócio, de Yasujiro Ozu.
(Dizemos bem: "reconstitui". Com efeito, esta "planta" pressupõe uma uni-
dade do. plano diegético, que na prática se obtém a custo de inúmeras pequenas
"batotas" de pormenor nas disposições relativas dos objectos e das personagens
de uns planos para os outros - o que geralmente impedle que se atribua à câmara
uma posição absolutamente certa; esse tipo de esquema é portanto útil sobretudo
para evidenciar as posições relativas das colocações sucessivas da câmara).

~vedação
I
/é\ I,
"iQVÇ7
\ I
)<' I
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I' I
.: I /1
I\'-t--~
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HlRAYAMA &' ESPOSA

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ê árvores

_----rI
":--__
-----'
I

,...,
@
PASSEIO DA FAMÍLIA
PLANTA 2.S

53
A ANÁLISE DO FILME

3. INSTRUMENTOS ClT ACIONAIS


3.1. O excerto de filme
Ao referir o excerto como primeiro instrumento de citação de um filme, cor-
remos o risco de parecer afirmar uma banalidade. Contudo, julgamos necessário
fazê-lo. Tornou-se habitual, ao falar da análise fílmica, sublinhar, e deplorar, as
dificuldades que o filme oferece à citação - ao contrário do texto literário ou do
quadro. Ora, essa dificuldade (que de resto se pode contornar, como de seguida
veremos) só existe na análise escrita. Neste livro, pareceu-nos essencial devolver à
análise oral, efectuada sobre o próprio filme, o lugar a que tem direito - mesmo
que essas análises orais sejam, por sua vez, de difícil citação ...
Em 8.5 voltaremos a esse carácter didáctico da análise fílmica. Por agora,
apenas mencionaremos a importância prática - imensa - da disponibilidade de
cópias dos filmes, da utilização de excertos mais ou menos longos para exemplificar
uma análise, de técnicas que permitam examinar minuciosamente esses excertos:
velocidade lenta, acelerada, pausa na imagem, etc. Em suma, existe uma técnica da
análise oral, cujos princípios décorrem em parte de idênticos princípios da análise
em geral, mas que só se podem aprender com a prática.
As vantagens e os inconvenientes da utilização de excertos de filmes são, mutatis
mutandis, comparáveis às do excerto de um texto literário. O principal interesse é
oferecer um objecto de tamanho mais manejável, que se preste melhor ao comentário
analítico; o inconveniente mais sério é criar o hábito de só ver pedaços de filmes, e a
prazo ver os filmes apenas como colecções de excertos citáveis (um perigo bastante
comprovado nos estudos literários). Aproveitamos assim esta ocasião para voltar a
insistir na necessidade de nunca se realizar uma análise que perca inteiramente de
vista o filme analisado, antes regressando a ele sempre que possível.

3.2. O fotograma
Entre as operações que acabámos de citar a propósito da análise oral, há uma
que, de modo mais fundamental que as outras, se considera típica da análise fílmica:
a pausa na imagem. Esse gesto, que consiste em cristalizar momentaneamente o
desfile fílmico, realça duplamente o fotograma 16: em primeiro lugar ao suprimir
pura e simplesmente a dimensão sonora do filme (não existe "pausa no som"!), e
em, seguida, ao suprimir o que desde sempre se tem como essencial da imagem
do filme, isto é, o movimento.
De um ponto de vista teórico geral, o fotograma é um objecto paradoxal.
Num sentido ele é a citação mais literal que se possa imaginar de um filme, visto
ser retirado do próprio corpo desse filme; mas ao mesmo tempo ele testemunha a
paragem do movimento, a sua negação. Se bem que realmente integre o "corpo"
do filme, o fotograma não é feito para ser percebido normalmente, e o desfile do
filme no projector foi muitas vezes descrito como se "anulasse" os fotogramas em
favor da imagem em movimento. Esse estatuto paradoxal revela-se na maioria
dos fotogramas individuais de um filme, que conservam, de forma esbatida, "tre-
mida", parcialmente ilegível, algo do movimento da imagem fílmica (como bem

lG Sobre a questão do fotograma, ver Esthétique du jilm, pp 11-13.

54
2. INSTRUMENTOS E TÉCNICA DA ANÁLISE
I

O demonstra a imagem pausada em plena projecção). Também os fotogramas que

se usam na prática da análise fílmica costumam ser cuidadosamente escolhidos


para eliminar ou atenuar esse efeito que, essencial no plano teórico, geralmente
incomoda o analista. Este procura sobretudo tirar partido do aspecto puramente
citacional do fotograma, aproveitar a "facilidade" com que ele permite estudar
parâmetros formais da imagem como o enquadramento, a profundidade de campo,
a composição, a iluminação - até os movimentos de câmara, que uma sucessão de
fotogramas deixa "decompor" e estudar mais analiticamente.
Essac~apacidadede evocação dofotograma, que chega à dimensão essencial do movi-
mento, tem sido muito aproveitada. Michel Marie realizou (na revista L' Avant-Scene) uma
"continuidade fotogramática" de O Último dos Homens, de Murnau que, praticamente
prescindindo de qualquer comentário, permite não obstante fazer uma ideia muito precisa,
entre outras, dos famosos movimentos de câmara a que o filme deve a sua reputação.

Aqui, naturalmente, tal como com a pausa na imagem, é preciso ser prudente. O
fotograma é apenas um medíocre instrumento de trabalho para tudo o que respeita ao
aspecto narrativo de um filme (relativamente ao qual ele desempenha sobretudo uma
função de memória auxiliar), e um instrumento claramente perigoso se procurarmos
utilizá-lo para interpretar o filme em termos de personagens e psicologia. Os gestos,
mímicas e situações fixadosmais ou menos arbitrariamente pela pausa transformam-se
profundamente, ao ponto de às vezes lhes percebermos o sentido ao contrário.
Mais do que uma discussão demorada, um exemplo ilustra estes diversos pontos,
positivos e negativos. Temos, nas páginas seguintes, 14 fotogramas do plano 33
de Muriel, de Alain Resnais, que mais atrás (2.3) tentámos descrever.
Além desse uso como apoio da própria análise (idealmente o mais importante),
o fotograflla também é utilizado - é a sua função mais visível, senão a mais impor-
tante - como ilustração da maior parte das análises publicadas. Aqui, novamente,
a substituição da fotografia de cena pelo f~tograma marcou uma viragem na
relação com os filmes. A fotografia de cena caracteriza-se geralmente pelo seu
"bom aca'bamento", pela sua "perfeição" técnica; pelo contrário, o fotograma é
por vezes esbatido, falta-lhe sempre certa nitidez. Ele depende inteiramente do
estado material da cópia de que foi retirado. Por pouco que provenha de um plano
em movitp.ento, facilmente fica ilegível. Por fim, relacionamo-lo sempre, mais ou
menos conscientemente, com o próprio filme, visto em projecção, que o espectador
sente (se a cópia e a projecção forem boas ... ) ser sempre nítido e preciso. O leitor
desprevenido muitas vezes o julga uma ilustração de menor qualidade. Se apesar
de tudo is~oele é hoje (também na imprensa) a :ilustração mais frequente dos textos
sobre film.es,isso deve-se obviamente ao seu suposto grau de fidelidade elevado.
Os fotogramas utilizados para fins de ilustração são em geral seleccionados
pela sua legibilidade (e secundariamente por critérios "estéticos"). Mas outro
critério é igualmente importante, embora m~nos explícito: o fotograma usado
como ilustração de uma análise deve ser "eloquente"; por outras palavras, existe
a tendência para escolher o fotograma mais típico (de um dado filme, de uma
dada cena, até de um dado plano) - isto é, mais uma vez a renunciar em parte ao
que constitui o estatuto teórico privilegiado do fotograma, o seu "anonimato". É
para contrariar esse risco de uma selecção preocupada em demasia com princípios
estéticos du com uma espécie de mais-valia semiológica, que alguns analistas se
impõem regras mais ou menos arbitrárias a esse respeito.

55
A ANÁLISE DO FILME

56
2. INSTRUMENTOS E TÉCNICA DA ANÁLISE

, ~

I
..j

Catorzefotogramas do plano 33 de Muriel, de Alain Resnais(1963).

A mais habitual dessas "regras" consiste em reproduzir o primeiro e o último fotograma


de cada plano na análise de uma sequência. I
Foi o que fez Raymond Bellour no seu estudo da sequência do ataque do avião em
Intriga Internacional, de Alfred Hitchcock, ou Jacques Aumont em alguns esquemas da
sua análise de uma cena de La Chinoise, de Jean-Luc Godard. Outra possibilidade equi-
valente é escolher o fotograma central (embora seja uma noção menos clara) de cada
plano; foi o que preferiram fazer os autores da 'continuidade fotogramática de Outubro,
de Eisenstein (filme composto principalment~ por planos curtos e fixos, que se presta
muito a essa estratégia). .
I
Não trataremos dos problemas levantados pela integração dos fotogramas
numa análise escrita. De modo bastante gerii, o estado actual da edição de livros
sobre cinema não permite que se adopte sisterhaticamente a solução mais elegante,
e também a mais útil para auxiliar a análisJ - que consiste em reproduzir cada
fotograma no sítio exacto em que é mencion~do no texto (e várias vezes, se neces- .
sário - um luxo raramente proporcionado).
I
É claro que há excepções felizes. Refira-se como exemplo particularmente conseguido
a análise por Thierry Kuntzel do início de O Malvado Zaroff, de Ernest B. Schoedsack:
adaptando a técnica de Roland Barthes, que em S/Z decompunha em c6modas "Iexias"
o texto de Balzac que analisava, Kuntzel integra no seu lugar exacto os fragmentos de
planificação técnica e as ilustrações fotogramáticas, e assim consegue manter-se o mais
perto possível do texto fílmico que comenta. ,
O universo editorial anglo-sax6nico, geralmente menos limitado pela necessidade eco-
n6mica, produziu exemplos notáveis; além da obra de David Bordwell sobre Dreyer, que
reproduz fotogramas de qualidade excepcional e perfeitamente integrados no texto,
devemos citar o livro de Alfred Guzzetti sobre Deux ou trois choses que je sais d'elle, de
Jean-Luc Godard, que talvez seja a melhor "reprodução" de um filme alguma vez escrita,
com pelo menos um fotograma por plano (no formato original em Cinemasc6pio), uma
planificação muito pormenorizada, a anotação exacta das intervenções musicais, etc.

57
A ANÁLISE DO FILME

3.3. Outros meios de citação


Este breve parágrafo destina-se simplesmente a lembrar que o excerto fílmico
e o fotograma, sendo de longe as técnicas de citação mais utilizadas, não são as
únicas. Primeiro é possível, em certa medida, citar a banda sonora de um filme.
O mercado do disco abriu mesmo um lugar para as bandas originais de filmes,
que às vezes compreendem, além das partes musicais ou cantadas, excertos dos
diálogos. Podemos igualmente considerar que a partitura musical de um filme é
(de maneira um pouco limitada) uma citação.
Depois, devemos assinalar que alguns analistas imaginaram meios originais
de citação para alguns filmes. O exemplo mais notável é o de Eric Rohmer, que
no seu estudo de Fausto, de Murnau, utilizou esboços que decalcou sobre o ecrã
da mesa de montagem, destinados a materializar a composição de certos planos.
Eis um exemplo, com o fotograma correspondente:

Esboço de Eric Rohmer,


segundo uma cena de Fausto,
de Murnau.

4. INSTRUMENTOS DOCUMENTAIS
De modo geral, abordaremos aqui um conjunto de dados factuais exteriores
ao filme e susceptíveis de ser utilizados na análise. A primeira questão que se põe
é a legitimidade da sua utilização. As posições a esse respeito são extremamente
variadas: alguns analistas, por princípio, excluem quase totalmente do seu campo
de investigação qualquer dado que não decorra estritamente de uma considera-
ção interna e autónoma do filme; no outro extremo, há quem só encare a análise
alimentada e rodeada de dados históricos. Essas duas posições extremas parecem-
-nos explicar-se sobretudo pela história: a tendência para privilegiar o estudo
interno, imanente do filme, foi decerto uma reacção legítima contra os excessos
da "crítica de intenções" que, de uma forma ou de outra, tende a só compreender
um filme segundo um saber exterior a ele (cf 1.3.). Pelo contrário, a tendência
mais recente para inscrever a análise numa perspectiva histórica mais ampla deve
ler-se sem dúvida como uma reacção contra o excessivo a-historicismo de certas
58
2. INSTRUMENTOS E TÉCNICA DA ANÁLISE

análises "estruturalistas", e não só, dos anos 70 - e também como consequência


dos avanços espectaculares da história do cinema nos últimos anos (voltaremos
ao assunto no capítulo 7).
Neste capítulo consagrado aos "instrumentos" e às "técnicas", limitar-nos-emos
a evocar o emprego de documentos relativos aos própdos filmes (logo excluindo
dados mais gerais, ligados à história dos estilos, dos géneros, à história econó mica,
etc.). Para facilitar, consideramos em separado documentos anteriores e posteriores
à exploração pública do cinema.

4.l.Elementos anteriores à difusão do filme


A produção e a realização de um filme são empresas complexas, de que todos
os estádios, em princípio, podem ser documentados. Desde os primeiros projectos
(quer a iniciativa parta do produtor quer do realizador) até à filmagem e à mon-
tagem, passando pelas diversas fases do argumento e da planificação, a génese do
filme é um processo longo, cujas marcas podem eventualmente clarificar alguns
aspectos do filme concluído. !
Os próprios documentos de que o analista terá de se ocupar são de natureza
muito diversa. Eles englobam fontes escriças: argumento, fases sucessivas da
planificação, orçamento do filme, plano de produção, um eventual diário de
rodagem (mantido pelo anotador ou anotadbra), às vezes até um diário de reali-
zação escrito pelo cineasta; por outro lado, u1magrande quantidade de elementos
pode apresentar-se de forma não escrita: a c6meçar por declarações, reportagens,
entrevistas (de rádio, televisão, até em filme) Idosdiferentes participantes da obra;
mas tanibém documentos fotográficos ou fílmicos, como as fotografias de cena
tiradas durante a rodagem, ou, de um ponto de vista bem diverso, os restos não
usados *a montagem (estes são muitas vezes documentos preciosos no caso de
filmes antigos, especialmente mudos, que sofreram remontagens, ou cujo negativo
se perdeu).
É escusado dizer que esses documentos,: na sua variedade, não servem para
uma utilização uniforme e imponderada. Se o argumento, ou de outro ponto de
vista, o acesso aos planos descartados na montagem, podem ajudar directamente
a formular hipóteses de análise, as declarações de cineastas, aetores, etc., devem
usar-se sempre com a maior das cautelas, pois trata-se já de interpretações, quaisquer
que possam ser as excelentes intenções de entrevistadores e entrevistados.
Na segunda parte da sua obra sobre Nosferatu, de Murnau, Michel Bouvier e Jean-Louis
Leutrat dão um óptimo exemplo de utilização reflectida e produtiva de documentos rela-
tivos à produção: guião, lista de intertítulos, diferentes cópias do filme, e especialmente
duas ou três páginas extremamente densas sobre a Prana Films (efémera sociedade de
produção), onde a investigação factual se revela singularmente esclarecedora.

4.2., Elementos posteriores à difusão


Comecemos por sublinhar que a nossa distinção cronológica entre dois tipos
de fontes é algo arbitrária: muitos documentos relacionados com a rodagem são
também documentos relativos à estreia do filme, especialmente pela sua inclusão
nas diversas formas publicid.rias para um filme. É o caso típico das fotografias de
cena, que se destinam essencialmente à promoção do filme na imprensa.
I
I i 59
I
A ANÁLISE DO FILME

Todavia, certos elementos têm mais a ver com a "carreira" do filme: primeira-
mente com a sua carreira económica, com todos os elementos relativos à distribui-
ção, aos números de espectadores e receitas, à quantidade de cópias distribuídas,
ao tipo de rede de exibição, etc. Mas o essencial, para o analista, continua a ser
o conjunto de elementos críticos sobre o filme: críticas surgidas na imprensa,
especializada ou não (a diferença às vezes é bastante significativa), na altura da
estreia; mas também o conjunto do discurso suscitado por determinado filme,
e que, no caso de alguns filmes célebres, acaba por rodear tão completamente a
obra que quase a substitui. Tornou-se muitíssimo difícil, por exemplo, estudar O
Mundo a Seus Pés, O Couraçado Potemkine ou Ladrões de Bicicletas esquecendo os
. quilos de literatura que esses filmes originaram. Talvez seja a propósito de filmes
como esses, sobre os quais a massa do discurso crítico, e a espécie de consenso
geral que este cobre, são particularmente constrangedoras, que uma política de
"tábua rasa" pode melhor compreender-se -livre de exercer uma crítica rigorosa
do discurso crítico, logo que a análise esteja feita. Como é natural, entre essas
fontes "secundárias" figuram em destaque as análises já realizadas sobre o filme
que se aborda; o uso dessas análises depende inteiramente da,natureza do projecto
analítico: o género "tese universitária" obriga a tomar em consideração o corpus
mais vasto possível de análises já publicadas, mas fora da instituição universitária
podemos eventualmente julgar que mais vale "recomeçar do zero".
Os estudos cinematográficos são ainda suficientemente escassos (se os compararmos,
por exemplo, à quantidade de trabalhos publicados sobre a pintura) para que um analista
possa sempre,.a propósito de certo filme, encontrar um ponto de vista inédito, ou propor
um método novo - em vez de retomar e aprofundar as hipóteses emitidas antes dele. É
mesmo relativamente raro ver uma análise que prolongue (ou critique) deliberadamente
uma outra (podemos lamentá-lo),

60
CAPfTULO 3

A análise textual:
um modelo controverso

Assirp, os instrumentos de que o analista dispõe - e correlativamente, os objectos


de análise particulares e os caminhos para a~abordagelll de determinado filme -
são numerosos, para não dizer inumeráveis. O que am.eaça a análise fílmica é a
dispersão (quanto ao objecto) e a indecisão (quanto ao método). Foi em grande
parte para obviar a estes perigos que se criou a noção de "análise textual". Se neste
livro lhe!concedemos um lugar tão proeminente, não é por ela ter uma natureza
no essencial diversa, e menos ainda porque p~oporcione uma solução pronta para
todas as dificuldades, mas por dois tipos de razões mais modestos:
1
- a noção de "texto" coloca a questão fundamental da unidade da obra e da
sua análise; .:
- de tnodo mais contingente, a "análise textual" foi com frequência, por vezes
de forma equívoca, uma espécie de "equivalente geral" da análise propria-
mehte dita. .
I
I
t
I

I ,
1. .A:NALISE TEXTUAL E ES RUTURALISMO
i
Não é possível nem necessário resumir e~ poucas linhas aquilo a que se cha-
mou o estruturalismo. Mas nos anos 60 o termo acabou por tornar-se um rótulo
que servia um pouco "para tudo", e que se colou, justificada ou abusivamente, a
muitas obras intelectuais. É o caso, em especial, de muitos aspectos da teoria e
da análise fílmica, e é por isso que abrimos este capítulo com uma consideração
muito breve do estruturalismo em geral. '

1.1. Alguns conceitos elementare~


Como o próprio termo indica, uma noção ce~tral é a de estrutura: o que a crítica ou
a análise eStruturalistaprocura realçar é semprea estrutura "profundà' subjacentea uma
determinada produção significante, e que explica a forma manifesta dessa produção.
O primeiro exemplo importante foi dado por Claude Lévi-Strauss,que estudou vastos
corpus de narrativas míticas, em função da hipótese segundo a qual essas narrativas,
muitas vezes complexas e aparentemente arbitrárias, na verdade revelariam grande
regularidade e sistematicidade - qualidades, pre~isamente, das estruturas "profundas"
desses mitos. Os trabalhos de Lévi-Strauss detponstram além disso que a ideia de
estrutura, assim compreendida, tem uma conseq~ência:produções significantes muito
diversas na aparência podem na realidade partilhar a mesma estrutura.
I >

61
A ANÁLISE DO FILME

"O que importa, tanto no plano especulativo como no plano prático, é a evidência dos
desvios, muito mais do que o seu conteúdo; assim que existem, eles formam um sistema
utilizável como uma grelha que se aplica, para o decifrar, a um texto cuja ininteligibilidade
inicial dê a aparência de um fluxo indistinto, e no qual essa grelha permite introduzir cortes
e contrastes, isto é, as condições formais de uma mensagem significante" (ênfase nossa).
Claude Lévi-Strauss, La Pensée sauvage [O Pensamento Selvagem].

Essa grelha, esse sistema de desvios de que fala Lévi-Strauss, constitui a


estrutura do "texto" considerado. É inevitável que a frase que acabámos de citar,
com a sua evocação de um fluxo que a análise deve decompor descobrindo-lhe
diferenças, faça pensar na operação linguística que consiste precisamente em
decompor fluxos verbais descobrindo-lhes oposições significativas (é o sentido da
distinção, postulada por Ferdinand de Saussure, entre língua e fala). Também a
linguística "estrutural" foi, parà todo o movimento estruturalista, uma referência e
uma inspiração teórica constantes; assim, as estruturas costumam ser vistas como
sistemas de oposições binárias (segundo o modelo das que, para Saussure, são os
alicerces da língua). Esse papel fundamental da linguística no desenvolvimento
do estruturalismo reforçou-se ainda pelo facto de a linguagem ser com frequên-
cia considerada a própria base, a infra-estrutura e a condição de possibilidade de
qualquer outra produção significante. É assim que Lévi-Strauss procura construir
"mitemas" (evocando os morfemas da língua) ou que, mais radical, Jacques Lacan
proclama que "o inconsciente está estruturado como uma linguagem".

1.2. A análise estrutural


A análise estrutural aplica-se então a todas as produções significantes impor-
tantes, do mito ao inconsciente, passando por essas produções mais limitadas e
mais historicamente definidas que são as obras artísticas e literárias (por exemplo,
os filmes). Mesmo se às vezes as filiações são arriscadas, a análise textual do filme
deriva indubitavelmente da análise estrutural em geral.
O próprio Lévi-Strauss pouco praticou a análise estrutural aplicada à literatura
e à arte. Várias vezes ele sublinhou que a analogia possível entre mitologia e lite-
ratura terminava na poesia, ou seja, em todas as obras onde as próprias palavras
usadas possuem uma "aura" que as torna intraduzíveis- ao passo que, para ele,
os mitos têm elementos lógicos que sobrevivem mesmo à pior tradução. Mesmo
assim ele foi, em colaboração com Roman Jakobson, um dos primeiros a estudar
"estruturalmente" um poema, no caso Les Chats, de Baudelaire (em 1962); porém,
nem essa análise nem a de Jakobson (em 1967) para Spleen, outro poema de
Baudelaire, nos parecem ter exercido influência imediata (à excepção de algumas
reminiscências na análise por Raymond BeBour, em 1967, de um fragmento de
Os Pdssaros, de Alfred Hitchcock).
A análise fílmica mais abertamente "Iévi-straussiana" é incontestavelmente o livro de
Jean-Paul Dumont e Jean Monod consagrado a 2007, de 5tanley Kubrick. Os autores (eles
próprios etnólogos) procuram "destacar a estrutura semântica do filme", só "acessoriamente
recorrendo a elementos lexicais e gramaticais". Esse programa é coerente com a sua visão
do filme como "nova versão" do mito da origem dos astros (procedente, enquanto tal, da
análise mitomática). Eele confirma-se no seu modo operativo: a análise inteira foi realizada
a partir de uma transcrição ("em três colunas: som, imagem, palavra") de uma gravação que
compreendia a banda sonora do filme e um comentário descritivo dos autores: equivale a

62
3. A ANÁLISE TEXTUAL: UM MODELO CONTROVERSO

dizer 'sobretudo que a banda-imagem mereceu uma consideração mínima (o que no caso de
um filme tão "visual" é obviamente perturbante). Desse modo, a análise procede seguindo
o desenrolar cronológico do filme; os elementosjulgados significativos são organizados em
sisterras de oposições/diferenças. O essencial da empresa (e a sua faceta mais tipicamente
estruturalista) consiste na "negação metodológica da existência de um sentido último",
que os autores substituem por significações concebidas "em termos de relações entre
os elementos significantes no interior de uma linguagem". O estabelecimento de um tal
sistema de relações pode, quando muito, apoiar certas tentativas de interpretação.

Tirai1do Lévi-Strauss, as influências mais evidentes no desenvolvimento da


análise ~extual foram sem dúvida as de Umberto Eco, Roland Barthes e, claro,
Christian Metz. O livro de Eco, La StrutturaAssente [AEstrutura Ausente] (1968),
foi um dos primeiros a apresentar a ideia de que os fenómenos de comunicação e
significação (inclusive as obras literárias e artísticas) constituem sistemas de signos,
que podemos estudar relacionando cada mehsagem singular aos códigos gerais
que lhes regulam a emissão e a compreensão. O segundo capítulo do livro (intitu-
lado "O plhar Discreto") começa com uma demorada exposição da definição dos
códigos da imagem e da sua articulação; inclui a seguir Uma leitura minuciosa de
quatro "mensagens" visuais (de anúncios publicitários), Ainda mais manifesta é
a importância do trabalho de Barthes para o desenvolvimento da análise textual
do filme. Reencontraremos, no capítulo 4, :os textos que ele dedicou à análise
estrutural das narrativas. Notemos aqui o importante papel desempenhado por
dois text<\>s:
em primeiro lugar "Retórica da Iniagem", consagrado, como o texto de
Eco, à análise de uma imagem publicitária (das massas Panzani); diferentemente
de Eco, Barthes insiste mais no nível do significado do que no da comunicação:
por exerriplo, ao detectar no uso das cores verde e vermelha uma conotação de
"italianidade", interessa-o sobretudo o lugar de~saconotação na rede de significações
imanentes (no "texto") da imagem - e muito pouco as condições de percepção
dessa mensagem pelo destinatário, o leitor. I
Mesmo antes do período da formalização estruturalista, Barthes tinha, nas suas
Mitologias (1957), analisado as manifestações ideológicas mais diversas, encarnadas
em "textús" de natureza muito diferente (do Cuide Bleu à fotonovela), provando
assim que o número de produções generalizJdas socialmente - entre as quais o
cinema - veiculavam um sentido sistemático, e procediam da semiologia. De uma
maneira aliás mais programática que verdadeiramente operativa, Barthes chegara
a apresentar, em 1960, em dois artigos da Revue Internationale de Filmologie, o
princípio de uma análise estrutural do filme. I

No segundo desses artigos ele escrevia: "Quais são, no filme, os lugares, as


formas e os efeitos da significação? Ou melhor ainda: no filme tudo significa,
ou bem pelo contrário, os elementos significantes são descontínuos? Qual a
natureza da relação que une os significantes fí~micos aos seus significados?" Foi a
estas perguntas que Christian Metz, em Langage et Cinéma (1971), procurou dar
uma resposta sistemática, que viria a influenciar enormemente a teoria e a prática
da análise fílmica. Expusemos noutro lado as grandes linhas dessa obra, e aqui
limitar-nos-emos a recordar a importância da noção de código, na medida em que
praticamente nenhuma palavra do vocabulário analítico foi tão abundantemente
utilizada, para não dizer maltratada. :
Abarcando todos os fenómenos de regularidade e sistematicidade da significa-
ção fílmicil' o código é definido, em Langage et Cinéma, como o que, no cinema,
: I 63
A ANÁLISE DO FILME

faz as vezes de "língua". Naturalmente, essa equivalência não é absoluta, e se há


substituição da língua, ela é constituída por uma combinação de códigos, em que
cada um pode com certeza ser teoricamente isolado "em estado puro", mas que
funcionam sempre em simbiose. A noção de código; em suma, permite descre-
ver a multiplicidade dos níveis de significação na "linguagem cinematográfica";
mas se certos códigos são mais "essenciais" do que outros (como o código do
movimento analógico), eles não poderiam desempenhar o papel organizador da
língua, e menos ainda veicular, como ela, o essencial do sentido denotado. Tal
como a define Langage et Cinéma, a noção de código permite examinar, num filme
particular, tanto o papel de fenómenos gerais comuns à maior parte dos filmes
(por exemplo, a analogia figurativa), como fenómenos cinematográficos mais
localizados (como a "montagem transparente" do cinema clássico hollywoodiano)
e determinações culturais exteriores ao filme e muito variáveis (as convenções de
géneros, as representações sociais). Poderoso operador analítico, porque geral,
a noção de código logo se apresentou, no campo filmológico, como o conceito
estruturalista por excelência.

2. O FILME COMO TEXTO


2.1. As manifestações da noção de texto
Os conceitos que a análise filmológica vai buscar à semiologia estrutural do
cinema são essencialmente três:
1) O texto fílmico é o filme como "unidade de discurso, efectivo se actuali-
zado" (= exercício de uma combinação de códigos da linguagem cinema-
tográfica).
2) O sistema textual fílmico, específico de cada texto, designa um "modelo"
da estrutura desse enunciado fílmico; o sistema correspondente a um texto
é um objecto ideal, construido pelo analista - uma combinação singular de
certos códigos, segundo uma lógica e uma coerência apropriadas ao texto
em questão.
3) O código é também um sistema (de relações e diferenças), mas não um
sistema textual: é um sistema mais geral, que pode, por definição, ser
"reaproveitado" em vários textos (cada um dos quais se torna então uma
"mensagem" do código em questão).
Mas, para além desse sentido "estruturalista", o termo texto, no final dos anos
60, também foi usado, de maneira mais programática, para designar o "texto"
(literário) moderno.
Essadefinição, criada pela revista Tel Quel e especialmente por Julia Kristeva, estabelece
que o texto não é uma obra, algo que se encontra numa livraria, mas um "espaço", o da
própria escrita. O texto, nesse sentido-limite, é concebido como processo (infinito) de
produção de sentido - e potencialmente, como espaço de uma actividade de leitura
também ela infinita, interminável, que participa dessa produtividade essencial do texto
moderno. É preciso sublinhar que esse sentido da palavra "texto" só se aplica a uma
pequeníssima parte da produção literária (nos seus artigos dos anos 1967-1972,os mem-
bros da Tel Quel estudam essencialmente a mesma meia dúzia de escritores: Mallarmé,
Pound, Roussel, Joyce... ).

64
3. A ANÁLISE TEXTUAL: UM MODELO CONTROVERSO

Esseisentido da palavra «texto» não se presta obviamente a uma apropriação


imediata pela filmologia. Primeiro. porque, p6r definição, ele é um conceito-limite,
que não se aplica, apriori, a qualquer obra (literária e fílmica); depois, o que é mais
importante, porque supõe que o leitor tem um papel tão activo, e tão "produtivo",
como o escritor (ao ponto de Barthes ter podido dizer do modelo "textual", nesse
exacto sentido, que ele é "um presente perpétuo, [... ] nós a escrever"). Ora, seja
qual for,o filme - por muito "experimental" que seja - ele está sujeito a uma certa
quantidade de limitações, e em primeiro lugar a do desfile (cf atrás, 2.3.2.), que
proibem ao espectador uma "participação" e uma "colaboração" tão activas: a
despeito de todas as tentativas em sentido contrário - do filme "aberto" ao filme
"desnartativo", passando pelo filme "estrutu~'al" - o que é oferecido ao espectador
de cinema é sempre um produto acabado, apresentado por uma ordem e a uma
velocidade inalteráveis.
Se, nlãoobstante, essa noção de textualidade se revelou importante para a aná-
lise do filme, isso deu-se essencialmente por intermédio, novamente, de Roland
Barthes, e principalmente de S/Z (1970). Nó início deste livro célebre, dedicado
à anális~ da novela Sarrasine, de Balzac, o autor propõe uma espécie de compro-
misso teórico. Enunciando, como valor pos~tivo, o "texto", o "escrevível", como
negação do encerramento da obra, Barthes substitui-o pela noção mais limitada,
mas ma~s operativa, de "plural" de uma obFa: a literatura, e particularmente a
literatura clássica, não se compõe de textos iescrevíveis, mas de obras legíveis.
Sem jamais alcançar o ideal do texto absolut~ e infinitamente plural, certas obras
manifestam um "plural limitado", aquilo a que Barthes chama polissemia; desse
modo, a tarefa do analista consiste em dem10nstrar esse plural, essa polissem ia,
"fragmentando", "recortando" o texto; o principal instrumento dessa leitura ana-
lítica é a conotação: e o que permitirá distinguir a conotação legítima da simples
associação de ideias é a sistematicidade da leitura. Assim - afirmando que cada
conotação é, potencialmente, "o ponto de pa~tida de um código" -Barthes orga-
niza a sua própria análise de Sarrasine em tO,mo de um número muito reduzido
de códigos (apenas cinco). .
As consequências teóricas dessas premiss~s são importantes: em S/Z a leitura
do texto clássico é enunciada como se não fosse nem "objectiva" nem "subjectiva"
(consiste.em "deslocar sistemas cuja perspectiva não se detém nem no texto nem
no Eu"); ela nunca é incompleta, pois só depende da sua própria lógica, e não
pretende descrever a construção do texto ("não existe um 'total' do texto"); por
fim, ela nunca termina ("tudo significa sem cessar e muitas vezes"). Igualmente
importantes foram as consequências do método prático que Barthes adoptou:
para melhor recusar encerrar o texto numa interpretação última, ele decide
analisá-Iq passo a passo, numa espécie de "cârhara lenta" que procura demonstrar
a "reversibilidade" das estruturas do texto clá~sico.Aqui a noção prática essencial
é a lexia: um pequeno fragmento de texto, de tamanho variável, definido "mais
coisa menos coisa", em função do que dele espera o analista. A análise consistirá
então errl examinar sucessivamente cada uma I
das lexias, encontrar-lhes uni-
dades significantes (conotações) e relacionar cada uma dessas conotações com
um dos níveis de códigos gerais. Uma das f;aracterísticas mais notáveis dessa
análise é que ela por princípio interdita-se de sintetizar os seus resultados, que
deixa sem tratamento, a fim de deliberadam~nte abrir o texto à pluralidade dos
I
I
65
I
A ANÁLISE DO FILME

seus significados, e produzir uma leitura "volumétrica", para melhor perturbar


a naturalidade da obra.
Em 5/Z, como noutras análises efectuadas por Barthes na mesma época, a noção
de código, embora mantendo amplamente o sentido que adquire em Langage et
Cinéma, é claramente mais abrangente. No essencial trata-se da mesma coisa-
um princípio que governa as relações entre o significante e o significado - mas
os códigos utilizados por Barthes são muito mais extensos: o código "referencial"
e o código "simbólico" são na realidade vastos agregados de conotações muito
diversas (o segundo é às vezes denominado, em 5/Z, "campo" simbólico, em vez
de "código"). Na sua análise de 1973 a Os Factos no Caso de M. Valdemar, de Poe,
Barthes define os códigos como "campos associativos, uma organização supra-
textual de notações que impõe uma certa ideia de estrutura" - cuja enumeração,
portanto, não se completa nem fixa, antes permanecendo sempre mais ou menos
função do texto analisado.

2.2. A análise textual de filmes


o trabalho de Barthes em 5/Z, ao conseguir a impossível síntese entre as duas
acepções da noção de texto, foi uma das chaves do progresso da análise textual
de filmes. Levantamento dos elementos significantes, "desdobramento" das suas
conotações, apreciação da pertinência dos códigos potenciais sugeridos por esses
elementos: tais são as operações práticas que a noção de texto no sentido de
Metz já implicava. A sedução do. modelo barthesiano provém essencialmente de
ele substituir a obrigação de construir um sistema fixo, susceptível (pelo menos
em potência) de explicar exaustivamente o texto estudado, pela atitude "aberta"
que renuncia a encerrar a análise num significado final. Os princípios de 5/Z, tal
como acabámos de os resumir, foram mais ou menos os que guiaram as primeiras
análises textuais de filmes.
Para confirmá-lo, vamos examinar o exemplo da análise, por Thierry Kuntzel,
do começo de Matou!, de Fritz Lang (publicada em 1972). A primeira coisa que
surpreende, metodologicamente falando, é a adaptação, por Kuntzel, do mais
vistoso dos procedimentos de Barthes: "acompanhamento" do texto analisado
pela ordem cronológica da sua evolução, decomposição do dito texto em lexias,
liberdade dos critérios dessa decomposição. Desprezando toda a cesura "técnica",
sintagmática ou diegética, Kuntzel decompõe o fragmento de filme que analisa
em três lexias extremamente díspares: 1) o genérico do filme (em especial o seu
título); 2) o primeiro plano diegético do filme (as crianças a recitar a cantilena do
"homem de negro" e a.mulher com o cesto da roupa); 3) todo o resto da sequência.
Com uma modéstia algo forçada (pois é muito fácil subdividir proveitosamente a
"terceira lexia" assim definida), o analista declara que semelhante decomposição
não tem valor absoluto, consistindo apenas na base ad hoc de uma análise.
A segunda característica dessa análise é então, logicamente, que cada lexia se
define essencialmente por um certo funcionamento (pela presença de um certo
número e de um certo tipo de códigos). Assim, a primeira lexia integra-se na
"engrenagem" de um código narrativo (a convenção que faz começar um filme
com a sua primeira imagem diegética), um código hermenêutico (o enigma
do "M"), e um código simbólico (a temática das "pernas" que Kuntzel associa
66
3. A ANALISE TEXTUAL: UM MODELO CONTROVERSO
I

à letraM). Na segunda lexia, em compensação, a análise demonstra códigos


visuais ,(movimentos de câmara, composição da imagem) e códigos narrativos
(por exemplo, o código "referencial", retirlado a Barthes). Por fim, na terceira
lexia, o que focaliza a atenção é essencialmente a inscrição, em certos códigos
cinematográficos, e por estes (especialmente códigos da montagem), de uma
temática da espera e do vazio. Aqui, como a propósito da decomposição em
lexias, surpreende a grande liberdade que o analista se concede na definição dos
seus có(Iigos; reencontramos, praticamente sem tirar nem pôr, os cinco grandes
códigos de S/Z - por vezes com alguma dificuldade: o código "semântico" con-
tinua o armazém que já era em Barthes, e o código "proairético" é singularmente
I
difícil de adaptar ao cinema, onde as acçõesnão são propriamente descritas, mas
mostradas. Reencontramos também os códigos tirados directamente de Langage
et Cinéma: código "composicional", código dos "movimentos de câmara", código
dos" ângulos de filmagem". Mas também lhe encontramos categorias de código
um pouco diferentes, quer muito gerais, como este código "narrativo" de ins-
piração !ainda muito barthesiana, quer mais, particulares, como o código "dos
olhares". ou o código "do cenário". O essencial aqui é a demonstração, feita de
passagem, de que não existe, mesmo no interior do modelo "textual", uma lista
acabada Idecódigos, e que pelo contrário esse,modelo obriga o analista a enxertar,
em cada um dos elementos que determina como significantes, "o possível ponto
de partida de um código". r

Um Herradeiro ponto (aliás evidente) nierece ainda realce nesta análise de


Matou!: embora na sua leitura ele conserv~ a orde~ cronológica da narrativa
fílmica, J(untzellê cada lexia, e especialmençe as duas primeiras, com a ajuda de
associações com elementos provenientes do resto do filme (para dar apenas um
exemplo: o tema do "empernamento" lido n~ letra M é ligado a diversas outras
manifestilções ulteriores: um fantoche articulado, sobretudo, cujas pernas enqua-
dram o rosto do assassino). Assim se verifica a ideia de Barthes, que pretende
que a análise seja sempre uma releitura. Abstraindo os seus últimos parágrafos
(que apresentam um outro ponto de vista, "genético", sobre o texto), este artigo
representa quase idealmente as pri~eiras "aplicações" da própria noção de análise
textual- mesmo demonstrando, precisamente, não se tratar de um "modelo" que
se pode simplesmente "aplicar".

3. AS ANÁLISES FÍLMICAS EXPLICITAMENTE


DE CÓDIGO
3.1. O alcance prático da noção de código
O interesse teórico da noção de código parece-nos, ainda hoje, muito grande;
postular a existência, num filme, de níveis relativamente autónomos de significação,
organizados num sistema global, é uma base sólida que poucas análises dispensam
(mesmo se poucas o explicitam). Em compensação, o interesse prático da noção
de código é menos evidente; o principal interesse desta noção é, justamente, a
sua universalidade, e de forma alguma repre~enta um instrumento de infalível
' .
efi caCla.
I
i
I 67
I
A ANÁLISE DO FILME

Mais precisamente, são pelo menos três os problemas concretos que as noções
de código colocam à análise:
- Primeiro, é preciso reafirmar que nem todos os códigos são idealmente iguais (e
são-no menos ainda na prática); a própria universalidade do conceito torna-se
aqui heterogeneidade: dizer que se vai estudar um filme em termos de código
nada significa: tudo depende dos códigos que se escolha seguir. .
- Depois, um código nunca se apresenta no estado "puro", e por uma razão teórica
essencial: se o texto fílmico é o lugar da efectuação do código, também é o da
sua constituição: um filme contribui para criar um código, tanto quanto o aplica
ou utiliza. Logo, muitas vezes é difícil "isolar" concretamente um código.
- Por fim, na própria medida do valor artístico intrínseco do filme analisado, a
noção de código perde mais ou menos a sua pertinência, devendo os "grandes"
filmes muitas vezes a reputação aos seus efeitos de originalidade, de ruptura;
assim, a análise" de código" seria sobretudo adequada ao filme de série, ao
filme "médio" (categoria de que nem a existência é evidente).
É o reflexo desse interesse e dessas dificuldades que vamos encontrar nas análises
que se referem à noção de código.

3.2. Análise fílmica, análise de códigos


Vimos mais atrás (capítulo 2, 2.2.) que a operação da segmentação foi intro-
duzida essencialmente de forma teórica, em primeiro lugar para provar que existia
um "código" no filme. Vamos dar exemplos de análises "de código", análises de
filmes centradas na questão da segmentação.
Deve-se ao próprio Christian Metz o primeiro estudo a aplicar o modelo da "grande
sintagmática", e incide sobre Adieu Philippine, de Jacques Rozier. A parte principal
do trabalho consiste numa segmentação completa, que liga todos os segmentos do
filme a um dos sete grandes tipos definidos no código, e no levantamento das pon-
tuações e demarcações entre segmentos. Mesmo durante a segmentação, quando é
caso disso, Metz salienta alguma dificuldade de delimitação (existem várias desde
os primeiros segmentos) ou de caracterização (por exemplo, na distinção entre cena
e sequência, ou problemas da alternância, etc.). Podemos dizer que, para além do
que se concluir quanto ao próprio filme, esta análise tem como objectivo - parcial
mas importante - "verificar" a tipologia dos segmentos, afiná-la, discuti-la, e mesmo
justificá-la. Parece-nos, em particular, que é a partir da análise de Adieu Philippine
que claramente se exprime a ideia de que a grande sintagmática não é u~ código
"absoluto" (como podem ser os códigos da imagem analógica), antes pertencendo,
plenamente, a um estado histórico dessa linguagem (grosso modo, o seu período
"clássico"). Paralelamente, a frequência num dado filme de certos tipos sintagmáticos
depende do lugar do filme na história das formas - e reciprocamente, ela permite
caracterizar o filme estilisticamente. Assim, o comentário em que Metz enuncia a
sua segmentação destina-se sobretudo a determinar a concordância entre a relação
estatística dos tipos de sintagmas e a filiação estilística do filme:
"Parece, em resumo, que as frequências, as raridades e as ausências detectáveis em Adieu
Philippine permitem confirmar e precisar o que a intuição crítica nos indica sobre o estilo
deste filme,obra típica do "cinema novo" (liberdade estilística,repugnância pelos procedi-
mentos "retóricos" escancarados, aparente "simplicidade" e "transparência" da narrativa),

68
3. A ANÁLISE TEXTUAL: UM MODELO CONTROVERSO

Adieu Philippine, de Jacques Rozier (1962) - fotografias de cena.

e - no próprio interior desse cinema novo - da tendência a que poderíamos chamar


"Godard-cinema-directo" (importância do elemento verbal, logo das cenas; "realismo" do
conjunto; mas, também, verdadeiro renascimento da montagem em novas formas)".

69
A ANÁLISE DO FILME

Adieu Philippine,
fotografia de cena.

Raymond Bellour também é levado a uma revisão geral da noção no seu texto
sobre Gigí de Vincente Minnelli (sintomaticamente intitulado "Segmentar/Ana-
lisar"), que mencionámos em 2.4. Também aqui tem lugar uma decomposição
integral do filme, e também com objectivo mais teórico do que propriamente
analítico. Ao interrogar-se sobre algumas dificuldades encontradas (apesar do
elevado grau de "classicismo" do filme), Bellour constata que "a decomposição
segmental determinada pela inscrição múltipla do significado de denotação
temporal no significante fílmico só parcialmente coincide (às vezes mais, às vezes
menos) com a evolução da intriga e a sucessão das acções narrativas". Ele propõe
então considerar simultaneamente, no filme narrativo clássico, unidades "supra-
-segmentais", que correspondem a "unidades de argumento" (ideia já pressentida
por Metz a propósito de Adieu Philippine) e unidades "sub-segmentais", isoladas
no filme por mudanças "menores" dentro dos segmentos (por exemplo, a apari-
ção ou desaparição de uma personagem). Essas propostas têm um vasto alcance
teórico (são mais ou menos válidas para qualquer filme narrativo); e sobretudo
demonstram claramente que a grande sintagmática é de facto um aspecto (um
código) da segmentação dos filmes, limitado por um lado (supra-segmental)
pelos códigos narrativos, e por outro lado (sub-segmental) pela multiplicidade
de códigos que começam a funcionar à medida que, afinando-se a segmentação
em unidades cada vez mais reduzidas, nos aproximamos de pequenos fragmentos
textuais, com poucos significantes (foi evidentemente essa mesma ideia, de uma
passagem sem solução de continuidade das grandes unidades de argumento para
unidades diegéticas cada vez mais pequenas, que sugerimos no exemplo esboçado
sobre Elisa, Vida mía - cf. capo 2, 2.2.).
70
3. A ANÁLISE TEXTUAL: UM MODELO CONTROVERSO
,

À parte estes dois estudos inaugurais, existem muitas aplicações, quer da grande
sintagmática, quer do modelo utilizado por Raymond Bellour em Gigi; não sabemos
de nenhuma que traga inovações relativamente às duas análises que acabámos de
citar, e a (~upra/sub-) segmentação de um filme,é sempre usada (quando o é) como
meio, pelo menos implícito, de categorizaçãoestilística. Na maioria das vezes a
análise é tkmbém acompanhada de considerações mais gerais sobre a validade do
código: o que vale igualmente para praticamente todas as análises" de c6digo" de
filmes int({ressadas noutros códigos. ,
Citemos, como exemplo bastante preciso, b trabalho de Michel Marie sobre
Muriel, de'Alain Resnais. Parte de um trabalho:colectivo sobre o filme que analisa
sob vários ilspectos, trata-se de um capítulo sobre os seus "códigos sonoros". Duas
observações que encetam essa análise parecemtnos de importância geral:
- "Partlf=ularizara análise sobre o eixo sonoro não pressupõe a autonomia - mesmo
relativa - desse eixo"; de igual modo, uma das conclusões da análise é que a música
não tem função autónoma no filme, só tendo significado relativamente ao todo;
- Deve! falar-se de "códigos sonoros" no plural; estes respeitam ao mesmo
tempo a problemas tão variados como a analogia sonora, a composição sonora, a
relação so~-imagem ("a composição audiovisual"), enfim os diversos problemas da
palavra no filme: esse eixo de código é pois tudo menos unitário. Evidentemente
a escolha desse ângulo de estudo não é comparável à da segmentação; tomados
no seu conjunto, também na sua multiplicidade, os códigos sonoros revelam
muito mais',sobre o filme do que a sua decomposição em segmentos. A análise
dos modos ,de intervenção mUsical (problema secundário da composição musi-
cal) desem\)oca assim numa concepção do todo do filme submetido a estruturas
abstractas eXtremamente fortes. A análise da gravação de som é ainda mais rica,
no seu exame da pós-sincronização (portanto da relação do filme com um certo
realismo representativo) e dos sons fora-de-campo.
Todavia,' boa parte do trabalho do autor consiste em definir e classificar em
quatro grandes grupos os ditos "códigos sonoros": uma tarefa que não dissimula
a sua essência teórica.
Seria longa, com efeito, a lista dos estudos de filmes que se apresentam como
"de código"; e que depressa extravasam a perspectiva particular apresentada no
início, para abordar transversalmente quer outros aspectos do filme, aparentemente
relacionados) quer mais frequentemente o próprio código.
Em ''I: ~vidence et le (ode", texto dedicado à análise de um curto segmento (12 planos)
de A Beira do Abismo, de Howard Hawks (1946),Raymond Bellour adopta deliberadamente
como objeeto um fragmento breve, de estrutura simples (uma cena, no sentido da grande
sintagmática), de conteúdo visual mínimo (uma s~rie de campos-contracampos). Ao
concentrar-se no diálogo no jogo dos olhares, ele mostra como a montagem desse seg-
mento, baseado na interacção da voz e do olhar entre os dois protagonistas, segue uma
certa lógica, a da montagem hollywoodiana "clássica".Masaqui interessa menos ao analista
o código particular estudado do que o modo como o ci'nemahollywoodiano, tão codificado
como outro qualquer, disfarça a sua codificação sob ~ aparência da "evidência".

Não insisümos mais: como já observámos (capítulo 1, 3.), a análise filmográ-


4
fica está semnre mais ou menos votada a aflorar teoria, e não é surpresa que o
centramento mais ou menos estrito em torno dei um dado código acentue essa
I j
ten denCla.
A'
i
I
71
A ANÁLISE DO FILME

4. ANÁLISE TERMINADA,
ANÁLISE INTERMINÁVEL
4.1. A utopia da análise exaustiva
No cerne da próp~ia definição de análise textual encontra-se, como vimos,
a questão da finalização da análise, da sua adequação a uma obra repleta de
significações (e de sistemas de significação). Em todas as abordagens da análise
textual, a análise exaustiva de um texto foi sempre considerada uma utopia; algo
que se pode imaginar, mas que não tem lugar no real. Diremos antes, de maneira
menos negativa, que ela é o horizonte da análise - e, tal como o horizonte, vai se
afastando à medida que avançamos.
Esse ponto teórico, no qual todos os autores convergem, tem grande impor-
tância prática: ele sugere com efeito que nunca poderemos terminar uma análise
("saturar" o texto-tutor). Por muito que às vezes a análise seja longa (algumas são
muito volumosas), e mesmo que se debruce sobre um texto breve, (um fragmento
de filme), ela nunca esgota o seu objecto.
Um exemplo simples. Uma das análises mais longas já publicadas sobre um único filme
é a de 5tephen Heath acerca de A Sede do Mal, de Orson Welles. Recentemente outro
investigador, John Locke, assinalou que, no primeiro plano do filme (esse célebre e
virtuoso movimento de câmara que apresenta simultaneamente a problemática do
casal e a da fronteira), vê-se durante alguns fotogramas uma sombra que pode ser a
de Orson Welles/Quinlan. Esse pormenor não muda "tudo"; ele obriga não obstante
a importantes ajustes em termos narratológicos (se Quinlan está presente na pri-
meira cena, mesmo que fora-de-campo, ele sabe mais do que podíamos imaginar), e
sobretudo em termos de análise da enunciação (visto que essa sombra é também a
de um realizador, Welles, que costumava "assinar" os filmes com marcas de ausência/
presença). Ou de como uma análise perfeitamente concluída, como a de Heath, pode
sempre ser "relançada".

Poderíamos citar muitos outros exemplos desse género. Mas o fundamental é


que nem sequer é preciso descobrir um elemento novo para que uma análise possa
ser reformada, prolongada - ou contestada.
Na prática, esse carácter interminável da análise tem (e teve, efectivamente)
consequências principalmente na escolha do objecto analisado, a sua extensão,
a sua situação no filme, etc. De facto, já que é praticamente impossível analisar
exaustivamente um filme, esse desejo de exaustividade que apesar de tudo assombra
a análise levou sobretudo ao aperfeiçoamento das análises de fragmentos de filmes,
as quais iremos agora evocar.

4.2. Análise de fragmento, análise de filme


Já referimos (capítulo 1,2.1.) o trabalho de Eisenstein, que analisa, em 1934,
um curto fragmento (14 planos) de O Couraçado Potemkine. Numa perspectiva
(estética e política) muito diferente da análise textual, surpreende que Eisenstein
tenha levantado, já então, várias das questões que acabámos de expor:
1) A decisão de analisar um fragmento tem a ver primeiramente com uma
preocupação de precisão no pormenor. Em Eisenstein, ao analisar um dos seus
próprios filmes, o conhecimento preciso deste não colocava qualquer problema
72
3. A ANÁLISE TEXTUAL: UM MODELO CONTROVERSO

I
particular, tanto quanto o acesso a meios de visionamento 17. Em compensação,
era forçosb que essa preocupação com o pormenor tomasse uma forma comple-
tamente diversa nos primórdios (fim dos anos 60) da análise textual; enquanto
hoje é tão simples ver e rever um filme quando se dispõe de uma cópia em vídeo,
é difícil ithaginar que, há algumas décadas, o analista em potência não tinha
outro meib de aceder ao filme que queria analisar, senão ir vê-lo e revê-lo a
uma sala de cinema, tomando notas durante la projecção. O famoso artigo de
Raymond ,Bellour sobre um fragmento de Os Pássaros, de Hitchcock, baseia-se
numa decomposição em planos estabelecida a partir da listagem técnica final,
fornecida pela distribuidora, e em notas escritas nas projecções; de igual modo,
Le Ftetus aftral, o livro já citado sobre 2001, baseia-se num comentário falado,
gravado n~ma projecção do filme ... Podemos imaginar as dificuldades inerentes
a uma tal prática (e também os erros que ela inevitavelmente causará). Quando
se foi tornando possível, pouco a pouco, trabalhar numa mesa de montagem
ou com uty projector analítico, tendo ao dispor cópias dos filmes estudados,
a exigência de precisão, tantas vezes prejudicada, pôde enfim manifestar-se. A
possibilidatle de tudo verificar, de "nada esq~ecer", substituía as capacidades
, (limitadas) de memorização e o necessário cursivo das notas escritas durante
a projecção. O fragmento do filme tornava-se objecto ideal, relativamente
manejável.
2) Além Idisso,e devido a esse mesmo ganho de precisão, o fragmento de filme
rapidamente foi visto como um sucedâneo proveitoso, do ponto de vista analítico,
do filme in~eiro: uma espécie de amostra, de antecipação, a partir da qual (um
pouco como na química) poderíamos analisar o todo do qual ele é retirado. A ideia
é flagrante em Eisenstein, obcecado por aquilo a que chama a "organicidade" da
obra. Mas a mesma preocupação paira sobre as primeiras análises de inspiração
"textual": a :análise do fragmento.é sempre, para lá do seu objecto imediato, a
metonímia de uma operação mais vasta (análise do filme inteiro, estudo estilístico
de um autor; reflexão sobre a análise em geral).
Assim, Raymond Bellour escolheu para o seu estudo um excerto de Os Pássaros que
não só possui suficiente homogeneidade e grande regularidade de construção, como
também lhe permite descrever, designando-os por rimas, efeitos de simetria, repetição
e homologia que são constitutivos do cinema de Hitchcock em geral (e mesmo de todo
o cinema clássico).
Outros exemplos seriam ainda mais claros: a análise por Jacques Aumont de sequências
de A Linha 'Geral e Ivan, o Terrível, de Eisenstein, servem expressamente para apreciar, à
escala dos filmes das quais são extraídas, a consistência do sistema teórico eisensteiniano.
Da mesma forma, a análise de um fragmento de Muriel por Marie-Claire Ropars procura
avaliar o "tr:abalho da escrita" no filme integral.

Neste p0l1;to,parece-nos escusado sublinhar ainda a importância do modelo


textual: sem ele, seria preciso questionar a própria justificação destas análises de
fragmentos. Não é, sem dúvida, exagero dizer que ter possibilitado e legitimado
I

17 Mesmo assim, notemos que Eisenstein descreve um fragmento que não existe em qualquer
das cópias do filme actualmente conhecidas - incluindo a cópia, conforme à montagem original,
que foi re~taurada nos anos 60!*
* A sequênda ressurgiu por fim na versão restaurada (sob a direcção de Enno Patalas) lançada
em 2005, (N. do T.)
I

73
A ANÁLISE DO FILME

74
3. A ANÁLISE TEXTUA~: UM MOPELO CONTROVERSO

i
Sequência 9 de Abuso de Confiança, d~ Henri Decoi~ (1937).

I i
o estudo de fragmentos é uma das razões importantes d6 sucesso deste modelo
I
textual. Não é decerto qualidade de somenos permitir que!o analista tenha a sen-
o sação de trabalhar com rigor e precisão sobre ~m objecto limitado e manejável,
potencialml~nte explicando a obra inteira.! :
O problema prático essencial apresentado pela análise de fragmentos de filmes
é obviamen,te a própria escolha desse fragmentd. Os critér,os e as motivações são
tão diversos como os analistas, mas muitas vez~s parece-nps reconhecer, na base
da escolha, I[osseguintes critérios implícitos: 1, [

1) O fr~gmento escolhido para a análise deve estar ~laramente delimitado


com6 fragmento (assim coincide, de ami~lde, com u~ segmento ou supra':'
-segtiento, no sentido em que já definimbs estes termos).
2) Paralblamente, deve constituir um excertb de filme tonsistente e coerente,
I '
mostfando uma organização interna suficHentementevisível.
3) Por fim, deve ser suficientemente repres~ntativo dd, filme: essa noção de
"representatividade" não é evidentemente ~bsoluta, e neve sempre avaliar-se
caso ~ caso, em função da linha directrii específica' da análise e também
do que se pretende salientar no filme em ~uestão.
[ ,
I
Aqui, muito depende do filme considerado. Para oslautores qu~ citámos anteriormente,
trabalhan80 sobre filmes de Hitchcock, Eisenstei~ ou Resnais, não foi difícil justificar
a represe~tatividade dos fragmentos que analisa~am, sendo tão unitários estilistica-
mente os filmes de onde os extraíram. Essecostutna ser o caso no cinema "clássico",
, f' I
que se pre;sta singularmente bem à extracção de 1 ragmentos,
O problema é um pouco mais complicado para filmes com menos elevado grau de
c1assicismb. Sem procurar exemplos (evidentes) n6 cinema experimental, ou mesmo
no cinem~ "modernista", é fácil perceber que, par~ analisar olMundo a Seus Pés atra-
vés de um[dos seus fragmentos, não deveríamos [limitar-nos rem ao famoso plano-
-sequência do suicídio de Susan, nem à montage~ rápida da $ua carreira de cantora,

estilística do filme. l
mas escolher um excerto (suficientemente longo) que demonstre a diversidade

Muitas vJzes esses critérios levam a evitard liberadaniente, na escolha de


um fragmento a analisar, as "cenas emblemáticls" de um filme, e o que agora
sugerimos ~ propósito de O Mundo a Seus Pés é\decerto v4lido para a maioria
dos casos. E aliás uma das constantes mais notáv eis das an",álisespublicadas de
1
fragmentos dF filmes, de que poucas fogem a ess,aregra. Desse modo, de Psico,
de Hitchcock (1961), Raymond Bellour não ret9m o assass.Ínio no duche, mas
I I
1 ~

!
I

I
A ANÁLISE DO FILME

a longa cena da conversa que o precede 18; de Cavalgada Heróica, de John Ford
(1939), Nick Browne aproveita uma cena na estalagem, de aparência bastante
anódina, etc. Em todos os casos, a densidade formal parece ser preferida à
densidade diegética.
Talcritério formal é particularmente sensível no caso (pouco frequente, é certo) de análi-
ses comparativas de fragmentos de filmes: assim, por exemplo, Michel Marie "sobrepõe"
duas sequências, de Hotel do Norte, de Mareei Carné (1938) e de Souvenirs d'en France, de
André Techiné (1975) a fim de demonstrar certas características da planificação clássica
e das suas transformações no cinema modernista.

Em certas análises em que não são os filmes que interessam (ou que interessam
essencialmente), mas géneros ou épocas, os critérios formais desse tipo tornam-se
ainda mais determinantes na escolha dos fragmentos.
No seu trabalho sobre o cinema francês dos anos 30, Michêle Lagny,Marie-ClaireRopars e
Pierre Sorlin propõem ter em conta aquilo a que chamam "configurações estruturais", ou
seja, a simultaneidade, em certas passagens de filmes, de marcas formais reconhecíveis:
uma frequência importante de marcas de enunciação, uma mudança visível de regime
de implicação sequencial, uma forma excepcional de temporalidade interna, etc. Esses
'critérios levam-nos por exemplo a privilegiar a sequência 9 de Abuso de Confiança, de
Henri Decoin, que apresenta um modelo bastante complexo de organização temporal,
inusitado nesse filme, que encadeia uma montagem !'durativa" (a viagem de comboio),
uma passagem contínua (chegada ao hotel particular do "Pai"),e duas montagens alter-
nadas consecutivas. Esta escolha baseada em critérios formais não é "formalista", pois
"essa organização complexa intervém no momento em que a personagem feminina
.(... ) acede a um domínio do olhar que as sequências anteriores lhe haviam recusado,
propondo-a, pelo contrário, como objecto a olhar".

Compreende-se que é impossível dar mais indicações concretas sobre o processo


prático de escolha de um fragmento para análise: como quase tudo em matéria
de análise, essa escolha é largamente determinada pelos resultados que dela se
esperam ...
Desde há vários anos realizam-se mais análises de filmes inteiros. Alguns (como
o Nosferatu, de Michel Bouvier e Jean-Louis Leutrat, ou Ivan, o Terrível, de Kristin
Thompson) fogem quase completamente à abordagem "textual" no sentido que lhe
dá a semiologia; mas a maior parte situa-se na continuidade de numerosas análises
de fragmentos dos anos 60 e 70, das quais desenvolvem os resultados. Ainda hoje
o fragmento continua a ser um dos artefactos privilegiados do analista de filmes
(sobretudo num contexto pedagógico: ver capítulo 8, 5).

4.3. Análise de inícios de filmes, início de análises


Um tipo particular de fragmento fílmico, frequentemente considerado na
análise, é o início do filme, e podemos interrogar-nos sobre essa frequência. Para
referir os três critérios que há pouco expusemos, se o início é facilmente "separável ",
pela sua própria localização, e se na maioria das vezes constitui, pelo menos no
cinema clássico, um pequeno trecho bastante coerente, em compensação, é raro

18 A escolha da sequência do ataque do avião em Intriga Internacional, de Hitchcock (1959), na

qual se centra boa parte da análise desse filme pelo mesmo Bellour, parece desmentir a nossa afirma-
ção; mas trata-se de um filme com estrutura particular, quase inteiramente constituído por "cenas
emblemáticas". Iremos abordar com mais pormenor a lógica dessa análise (capítulo 6, 3.1.).

76
3. A ANÁLISE TEXTUAL: UM MODELO CONTROVERSO
I

que "represente" o filme integral, o qual precisamente só introduz. Também os


critérios de escolha são aqui particulares:
I
- mencionaremos rapidamente uma razão material, à partida menor, mas que
por vezes surgia relacionada com a comodidade: numa época em que as análises
se realizavam em cópias de 16 mm (muitas vezes alugadas a federações de cineclu-
bes), a falt~ de tempo e de flexibilidade do material podia levara que se evitasse a
escolha de fragmentos no meio da bobina; .
- mais relevante é uma razão narratológica; aliás bem conhecida: muitos ana-
listas insistiram na riqueza semântica particulár dos inícios das narrativas. Essa é
evidentemente a razão essencial, e foi explorad~ de várias formas.
Comecemos por rejeitar uma ideia que teve certa aceitação, a de que se poderia
analisar si~tematicamente qualquer filme conf~ontando a sequência inicial com a
sequência nna!. Compreende-se que um tal "método" se baseia numa constatação
empírica: muitos filmes são construídos numa; estrutura narrativa "fechada", até
mesmo "circular" (é o caso, entre tantos, de Hotel do Norte, que começa e acaba
com um plano de conjunto da ponte que transpõe o canal Saint-Martin; um casal
desce os seus degraus; no início do filme, no auge do desespero, ele vai suicidar-
-se; no fin<).lreencontra a felicidade e a inserção social). Mas essas confrontações
sistemáticas não nos levam muito longe; no máximo podem permitir verificar
uma característica importante da narração clássica, a sua tendência a restabelecer
sempre o equilíbrio, o que se pode chamar o seu lado "homeostático".
Muitíssimo mais produtiva é a análise do início como "matriz" do filme. A ideia
foi proposta por vários autores, a propósito de vários filmes muito diferentes; assim,
Marie-Claire Ropars analisa os 69 primeiros planos de Outubro, de Eisenstein,
como uma "matriz, que expõe o modelo teórico de um processo revolucionário
que o filme realizará ao transformá-lo em história",
"Pela obrigação que ela impõe de decifrar a sua codificação específica antes de poder
proceder a uma interpretação, a sequência funciona como matriz relativamente à totalidade
do filme: incitando a procurar o sentido que este se confere na maneira como ele produz
a significação. Mas a acção dessa matriz não supõe o encerramento prévio do texto num
sistema cristalizado que lhe determina o futuro; ela age pelo contrário como potência
geradora, cujas possibilidades de desenvolvimento e de transformação são tanto mais
fortes quanto ela própria baseia o seu desenrolar num princípio de contradição: conter
em si os germes da sua negação".

O caso de Outubro é particular, por se tratar de um filme menos narrativo, mais


"formalista" que a média, no qual se requer do espectador um certo trabalhol9,
Mas essa mesma ideia, de um início que de algum modo formularia as regras do
jogo (as perguntas e as respostas), foi emitida em 1975 no contexto aparentemente
mais clato do cinema clássico americano - para mais num filme de série - por
Thierry Kuntzel, no seu importante texto sobre o início de O Malvado Zarojf. não
só o início, como o genérico do filme, é descrito, através de uma análise da figura
da aldraba 'do castelo do conde Zaroff, como matriz do filme:
"(... ) O filine só na aparência é sucessivo.É submetido a uma dinâmica interna, à compressão
e distensão de forças. O genérico, anódino no que respeita ao feno-texto (a narrativa nem
sequer começou) é a matriz de todas as representações e sequências narrativas (... )

19 Voltaremos com mais pormenor a este exemplo no capítulo 5, 2.2.1.

77
A ANÁLISE DO FILME

Para o analista é o fascínio dos inícios: condensado em si mesmo, o filme expõe as suas
cadeias significantes - a ordem sucessiva - na simultaneidade. Muito mais do que o
"sentido", é a flutuação do sentido, a hesitação da leitura, o que me retém. (... ) O início
permanece o lugar mais "moderno" - plural- do texto".

Nesta citação encontramos acidentalmente uma ideia paralela à de matriz, e


que por vezes também foi explorada: o engendramento do filme no seu início.
As limitações da economia espectatorial no cinema conferem uma importância
decisiva à relação do espectador com as primeiras imagens de um filme; são elas,
sobretudo, que determinam o regime de ficção e de crença próprio de cada filme e
de cada género. Trata-se sempre de efectuar a transferência radical de uma instância
da realidade, a da sala, para uma instância imaginária, a da diegese fílmica.
Um dos exemplos mais claros é a análise, por Roger Odin, da "entrada do espectador na
ficção" no filme Passeio ao Campo, de Jean Renoir. Ao analisar o regime ficcional como
"um misto subtilmente doseado de saber e de crença", Odin mostra que essesdois pólos,
igualmente necessários à "conquista" do efeito-ficção, estão igualmente presentes no
início do filme (= genérico + os dois primeiros planos diegéticos). Aqui, na verdade, o
motivo da análise é menos o filme em si do que um fenómeno geral (a transformação
"do espectador de cinema em espectador de ficção").
Numa perspectiva mais psicanalítica, podemos também citar a análise, por Marc Vernet,
de seis inícios de "filmes negros", onde o autor descobre uma estrutura razoavelmente
constante: após a exposição de uma "crença reconfortante", de um "tempo feliz da
ficção em que o herói era forte e dominava a situação", intervém sistematicamente um
episódio (a "situação de perigo") que "revela ser enganosa a exposição, deitando por
terra a crença inicial" - consistindo o filmea partir daí no "trabalho de restituição da
grandeza ao herói".

4.4. Dimensão do objecto, dimensão da análise


Nesta breve abordagem de alguns dos problemas mais correntes da análise
textual de filmes, resta-nos falar um pouco sobre uma questão algo escamoteada
até aqui: a realização efectiva da análise, da sua escrita, e principalmente da sua
dimensão.
Pode parecer a priori que a análise deve automaticamente ser tão longa como o
texto analisado. Porém, no campo da análise filmológica, nada é menos evidente.
É óbvio que, por definição, uma análise é sempre relativamente longa (é mesmo
uma das características que, por exemplo, a distinguem da crítica), mas a sua
extensão, determinada pelo objecto analisado, não é simplesmente proporcional
à do texto. Essa mera constatação é no fundo apenas outro modo de dizer que
não se deve confundir o objecto de uma análise com o filme do qual ela parte;
este é a base empírica da análise, cujo objecto é sempre mais abstracto (sistema
textual, estudo de código, etc.).
É fácil verificar com exemplos que não existe correlação directa entre a duração
do fragmento de filme ana:Iisadoe a extensão da análise. Fragmentos muito curtos
deram com frequência origem a longas análises: Marie-Claire Ropars consagra
40 páginas aos 69 primeiros planos de Outubro (cerca de 2 minutos de filme),
Jean Douchet 32 páginas a 17 planos de Fúria, de Fritz Lang, 1hierry Kuntzel 52
páginas aos primeiros 62 planos de O Malvado Zarojf, de Ernest B. Schoedsack
(1932), etc. Analogamente, qualquer estudo que se esforce por abarcar a totalidade
78
3. A ANÁLISE TEXTUAL: UM MODELO CONTROVERSO

da "superfície textual" de um dado filme (por exemplo, para um estudo de códigos)


será necessariamente longo.
Esse problema da extensão da análise só existe, na verdade, com as análises
escritas (voltaremos à flexibilidade potencial da análise oral no capítulo 8, 5.). Se
a análise de um fragmento fílmico já ocupa algumas dezenas de páginas, imagina-
-se que se torne complicado consignar por escrito a análise de um filme inteiro;
para isso costuma ser necessário o equivalente a um livro, sem podermos dizer
que exista :uma estratégia universalmente aplicável.
I
Obras colectivas como as que foram publicadas sobre Outubro ou Muriel misturam em
geral vários tipos de abordagens analíticas: análises de fragmentos, estudos de código,
investigação sobre o contexto ou a recepção do filme, etc. No seu livro sobre Nosferatu,
Michel ~ouvier e Jean-Louis Leutrat integram o seu acompanhamento analítico do con-
junto dó filme numa série de abordagens centradas em certas características salientes
deste, tomadas no seu contexto cultural (relação do filme com o tema e a iconografia do
vampiro, vínculo entre olhar e terror, função da iluminação e da composição, presença da
noção romântica de stimmung no tratamento das paisagens, etc.). Ao contrário, o livro de
Alfred G~zzetti sobre Deux ou trois choses que je sais d'elle, de Jean-Luc Godard, apresenta-
-se como um acompanhamento passo a passo do texto na sua ordem cronológica, sendo
as páginas pares consagradas a uma descrição meticulosa e as ímpares ao comentário
(nunca se organizando este por "códigos"). Também acompanhando o desenrolar do
texto, Daniel Dayan, na sua análise de Cavalgada Heróica, de John Ford, optou por uma
táctica d,irectamente inspirada em S/Z, com decomposição em lexias claras e em paralelo
uma "rotulação" dos códigos encontrados. Odile Larere, na análise de Violência e Paixão,
de Luchino Visconti, também emprega uma táctica mista: decomposição comentada em
grandes "sequências" (geralmente supra-segmentos), e em seguida estudo de aspectos
diversos da realização. Por fim, a análise de Ivan, o Terrfvel, de Eisenstein, por Kristin
Thompspn, subintitulada "A Neoformalist Analysis" é quase um manifesto metodológico:
ela centra-se nos excessos do texto eisensteiniano, por onde este "transcende" a norma
estilística implícita que define o seu contexto.

Uma última observação: se as estratégias de exposição são tão variáveis, é que


elas não só dependem da natureza da análise (logo, da natureza do filme anali-
sado), como também do leitor pretendido (o alicerce da publicação). Um exemplo
bastante esclarecedor é fornecido por Stephen Heath, na sua análise de A Sede do
Mal: esta, com efeito, deu origem a duas publicações muito diferentes, embora
perfeitamente contemporâneas. Na revista inglesa Sereen, Heath publicou um
estudo de mais de cem páginas, com análise detalhada de fragmentos, análise
narratológica do conjunto, e "travessia" do filme a múltiplos níveis simbólicos
(logo no começo a análise realça sobretudo os elementos que significam a temática
da troca e .da fronteira, que Heath elege como centro da sua leitura). A revista
Ça cinéma publicou uma versão bastante mais Furta (com menos de 10 páginas),
que conservava o essencial das hipóteses de leitura - mas já sem as demonstrar.
E óbvio que, mesmo sendo as conclusões (sobre o filme em particular, e sobre a
análise fílrrúca em geral) as mesmas, o primeiro texto faz do seu leitor uma espécie
de parceiro, de co-analista potencial (de resto é hm texto verdadeiramente ilegível
se a análise não for "refeita" com ele), enquanto o segundo apresenta-se já como
síntese de r,esultados aproveitáveis.
I

79
A ANÁLISE DO FILME

5. SORTE CRÍTICA DA ANÁLISE TEXTUAL


Em 1977 Roger Odin esboçou um primeiro balanço de "Dez anos de análi-
ses textuais de filmes". Ele fazia a seguinte caracterização da análise textual: ela
não é avaliativa nem normativa; presta uma atenção especial ao funcionamento
significante do filme; e confere tanto cuidado ao método que utiliza como ao
objecto do seu estudo. Essa caracterização parece-nos notável: de facto, se os dois
primeiros traços são realmente próprios da análise textual como a definimos,
o terceiro representa uma exigência suplementar (a exigência que uma análise
textual tenha sempre um objectivo teórico); por outro lado, e ao contrário, não
encontramos nessas três características qualquer alusão precisa à noção de texto,
e ainda menos à noção de código ou de sistema textual. Que conclusão tirar?
Muito simplesmente que Odin fez essa definição não para a análise textual em
geral, mas para as análises efectivamente realizadas entre 1967 e 1977, que ele
recenseou.
Por outras palavras, o modelo textual, tal como acabámos de o expor, nunca foi
literalmente aplicado. Quase poderíamos dizer, exagerando um pouco, que a análise
textual nunca existiu - mas que o seu mito teve muitas vidas, e exerceu influência
considerável. É importante reconhecer que esse mito, para muitos investigadores,
construiu-se sobre uma imagem negativa (com frequência a partir de uma ideia
demasiado rígida do modelo textual). Esquematizando bastante, podemos destacar
quatro grandes críticas que foram feitas à análise textual:
1)A sua pertinência limitar-se-ia ao cinema narrativo, ou mesmo só ao cinema
narrativo mais clássico, e de modo algum, por exemplo, ao cinema experimental.
Afirma Dominique Noguez:
"(... ) os filmes experimentais são menos facilmente redutíveis que os outros a um texto
(aqui poderíamos efectivamente observar que quanto mais nos afastamos do referencial,
menos pertinência tem a problemática de tipo textual) (... )" Epara essesfilmes, continua
Noguez, "conviria à análise fílmica inspirar-se no que certos artistas plásticos chamam
"análise formal", ou nos trabalhos descritivos de certos musicólogos ou melómanos"
(Fonction de /'analyse, analyse de la fonction, p. 196).

Por real que seja o problema levantado por Noguez (especificidade da análise
de certos filmes - mas porquê limitar-se ao "experimental"?), parece-nos haver nele .
um mal-entendido quanto ao "textual", implicitamente relacionado com a noção
de "texto literário", e que o "texto" no sentido da análise textual pode muito bem
ser composto de códigos essencialmente visuais, com uma incidência muito ténue
de códigos narrativos.
2) Ela favoreceria o gosto da dissecção pela dissecção. Dominique Noguez,
que foi um dos críticos mais constantes dos excessos da semiologia, fustigou com
humor essa libido decorticandi que prejudica, segundo ele, o exercício mais nobre
da libido creandi e da libido jruendi. Quanto a isso só podemos concordar, e
constatar com Noguez os efeitos desastrosos, não da decomposição dos filmes (às
vezes muito útil, como já dissemos), mas do seu uso impróprio. Com demasiada
frequênda, sem ideia do que se procura, o plano-a-plano, o "corte de salsichas" (a
expressão é de Christian Metz) fazem as vezes de análise, e pior ainda, pretendem
passar por garantia "científica". Como diz Raymond BeBour:
80
3. A ANÁLISE TEXTUAL: UM MODELO CONTROVERSO

i
"(... ) O belo, que sempre se julgou desafiar a ariálise e no fim devolver a obra à inde-
finição romântica da sua superação, é precisamente o que a análise encontra quando
desvenda o equilíbrio sempre desfeito, sempre reconstruído, de um conjunto de formas
e estrutyras que definem a'obra (esseobjecto do prazer estético) como lugar de beleza,
e que a determinam, numa completa reversibilidade lógica, como lugar do desejo"
(L'Ana/Y$e du fi/m, p. 82).

3) Ela esqueceria demasiado o contexto (pro'dução e recepção) no qual se insere


o filme est~dado. Parece-nos (regressaremos ao assunto no capítulo 7) que todas
as análises 'textuais de algum valor provocaram, como conclusão de um trabalho
analítico que às vezes, de forma deliberada, "tudo esqueceu das circunstâncias de
um filme" (segundo a expressão de Marie-Clair~ Ropars e Pierre Sodin a propósito
de Outubrfl), um efeito de abertura. A análise "interna" de estruturas imanentes
ao filme só é censurável se a considerarmos o princípio e o fim da análise: perigo
real, mas raramente confirmado nas melhores análises.
4) Por fim, e talvez o mais importante, ela arrisca-se a reduzir o filme ao seu
sistema textual - mumificá-lo, "matá-lo". O próprio Raymond Bellour insistiu
longamente na necessidade de encarar o sistema textual como uma virtualidade,
e no facto de a "verdadeira" análise reflectir sempre uma relação entre o espectador
e o filme, mais do que uma redução a seja o que for" (1héorie du film, p. 27).
Nenhuma dessas críticas nos parece irrefurável. Se a análise textual se presta a
mau uso, é1menos por uma excessiva formalização do que pela falsa simplicidade
dos seus princípios. Mas se nos dermos ao trabalho, nenhuma das suas caracterís-
ticas deixa de poder ser corrigida e tornar-se "p~sitiva". Se a metáfora da dissecção
é desagradável, devemos reconhecer à análise textual uma virtude perscrutadora,
uma miopia produtiva, às vezes uma verdadeid iluminação interior.
De modo mais fundamental, foram a semiologia e a análise textual que nos
sensibjlizaram para a ideia de que um texto compõe-se de cadeias, de redes de sig-
nificação qhe podem ser internas ou externas ao,cinema - em suma, que a análise
não tem a ver com um fítmico ou um cinematográfico "puro", mas também
com o simb6lico. Basta, para nos convencermos disso, determinar o número de
caminhos que ao longo dos anos se abriram a partir da análise textual: análise de
inspiração psicanalítica (vercapítulo 6), análise "desconstrutivista" (apartir de uma
concepção do texto e da escrita inspirada nos trabalhos de Jacques Derrida), análise
de "conjuntos extensíveis", etc. Não é certo que à expressão "análise textual" ainda
seja muito Jtilizada; ela continuará, neste livro, C9mopano de fundo metodológico
de boa parte das considerações mais precisas que iremos apresentar.

81
-I ,
CAPfTUL04

A aná!lise do filme
como, narrativa
I
Como já observámos, a narrativa fílmica é um aspecto que depende de códigos
particulare~; esses códigos merecem ser tratados à parte, por dois tipos de razões
aliás relacionadas: I
- a imensa maioria dos filmes projectados e~ público são, em maior ou menor
grau, narrativos. Polémicas muitas vezes azedas 9puseram defensores e adversários
do cinema narrativo; não deixa de ser verdade que, no estado actual da indústria de
I .

produção de filmes, o cinema narrativo - ou seminarrativo (os documentários, por


exemplo) - continua hegemónico. Acrescentemos que o modelo narrativo acabou
por se espalhar, por" dispersão" (Roger Odin), até ao filme caseiro;
- os códigos da narrativa foram estudados de forma muito mais aprofundada do
que outros, e nesse ponto a análise filmológica p?de aproveitar a herança da crítica
e da teoria literárias. A narratividade é uma das grandes formas simbólicas da nossa
civilização, e certos modelos, elaborados a prop~sito do romance, têm um alcance
suficientemente amplo para aplicar-se mesmo a filmes tenuemente narrativos.
; I

1. ANÁLISE TEMÁTICA,
ANÁLISE DE CONTEÚDOS
1.1. "Temas" e "conteúdos" l
I
Na sua forma trivial, a análise temática é a m<l;isgeneralizada das abordagens ao
filme. O "assunto" de um filme é pretexto de cortversas quotidianas, mas também
de muitas cHticas jornalísticas que não são mais'do que a paráfrase dos seus prin-
cipais "temas". É a mesma abordagem que, no s~u ponto tp.ais anémico, serve de
base ao uso televisivo de filmes como suportes de debates. E ainda ela que sustenta.
muitos debates tradicionais de cineclube. Com um pouco mais de teoria (apoiada
na "teoria do reflexo", cara à estética marxista), manifesta-se em programações do
tipo "o cinema e a condição operária", "cinema e ~pressão da mulher", etc. A noção
de tema desfruta aliás de uma importante existência institucional, e não faltam
opúsculos escolares sobre o "tema" da cidade, do:absurdo, do mal, do dinheiro ou
da revolta...• É então muito naturalmente que essl abordagem temática se mantém,
cada vez qu~ a instituição educativa tenta prestar atenção às mensagens fílmicas;
hoje não existe manual de história que não cohvoque, como se esses filmes só
falassem disso, As Vinhas da Ira, de John Ford, Ácercada crise dos anos 30, ou A
Grande Ilusão, de Jean Renoir, a propósito da gJerra de 14-18.

I 83
A ANÁLISE DO FILME

Uma ideia tão generalizada, tão "espontânea", não podia deixar de surgir
na área da análise fílmica. Quando em 1961-62 um colectivo de universitários
resolveu lançar-se no estudo minucioso de um filme contemporâneo que os tivesse
marcado pela sua ambição estética e moral, consagraram mais de metade do seu
trabalho a uma abordagem "conteudista". O livro resultante (sobre Hiroshima Meu
Amor, de Alain Resnais) divide-se em três partes: 1. A produção e a distribuição
do filme, e a reacção do público, 2. "Hiroshima, filme de temas", e 3. "Hiroshima
e a linguagem cinematográfica".
Entre os temas estudados: "O Amor e a Morte", por Edgar Morin; "O Tempo, Dialéctica da
Memória e do Esquecimento", por Bernard Pingaud; "A Mulher, um Novo Tipo Feminino",
por Edgar Morin; "A Imagem da Mulher Através do Cinema", por Jacqueline Mayer; "A
Heroína de Hiroshima: uma Mulher Moderna", por Francine Vos; "Verosimilhança, Coe-
rência e Riqueza Psicológica", por Francine Robaye.

É impossívelnão nos surpreendermos com a obliteração,em tudo isso,de qualquer


problemática propriamente filmológica. Ainda hoje o poder evidente da noção de
tema é responsável pela abundância de trabalhos universitários (mestrados, teses
de doutoramento) do tipo "O Tema da Errância em Wim Wenders", "A Memória
e o Esquecimento em Resnais", ou "A Mulher no Cinema do Terceiro Mundo".
É claro que a nossa intenção não é sugerir que um filme não tem conteúdo.
Existem aliás definições mais rigorosas dessa noção, por exemplo, a partir dos
trabalhos de B. Berelson e H. Lasswell sobre a teoria da comunicação 20. Baseada
numa delimitação rigorosa dos elementos a observar, construção de uma grelha
de observação e análise estatística das informações recolhidas, esse método foi
sobretudo aplicado à imprensa escrita, à verificação de questionários de inquéritos
- mas muito pouco ao cinema.
Mas à parte esses métodos sociológico-estatísticos, a noção de conteúdo deve
sempre ser cuidadosamente esclarecida. E sobretudo é preciso aqui reafirmar
claramente que, no cinema como em todas as produções de significado, não
existe conteúdo que seja independente da forma na qual é exprimido. A ideia de
uma interacção entre a forma e o conteúdo está longe de ser novidade; para nos
cingirmos aos discursos sobre o cinema, tanto a encontramos em Eisenstein como
em Bazin, ou ainda, mais recentemente, em Metz, que declara que o verdadeiro
estudo do conteúdo de um filme supõe necessariamente o estudo da forma do seu
conteúdo, "senão, já não é do filme que se fala, mas de problemas mais genéricos
aos quais o filme deve o seu material de partida, e que não devem confundir-se
minimamente com o seu conteúdo próprio; este reside antes no coeficiente de
transformação que o filme impõe a esses conteúdos21".
A crítica de cinema forneceu de resto alguns bons exemplos dessa preocupação com
a forma na apreciação do conteúdo. Mencionemos só os estudos de Michel Delahaye
sobre Jacques Demy e Mareei Pagnol, que se apresentam como "auxiliares de memória"
para o percurso na obra de um autor: "Um plano, ou seja, um inventário direccional, um
panorama orientado. Uma temática, evidentemente, devendo ser a primeira fase da crítica
dizer os elementos significantes da obra, recensear-lhe as linhas, pistes e filões, indicar
a tecedura das figuras e das configurações" (La Saga Pagno/). Ao lado de "inventários"

20 B. R. Berelson, ContentAnalysis in Communication Research, Glencoe (Illinois), 1952.


21 Christian Metz, "Propositions méthodologiques pour l'analyse des films", Essais sur la
signification au cinéma, tomo lI, Paris, Klincksieck, 1972.

84
4. A ANÁLISE DO FILME COMO NARRATIVA

puramente temáticos (a cidade e o campo, a Lei do Pai, etc.), outras (acerca da "dureza
dos lugates", a "diagonal do tempo", a palavra "de~viada") concedem grande atenção ao
material fílmico, figurativo e sonoro. '

Sobre eSsaquestão, Richard Monod propôs um útil esclarecimento (a propó-


sito dos textos teatrais), que distingue, numa dada obra, três tipos de questões:
1) De que fala? (os temas); 2) O que conta? (a fábula); o que diz? (o discurso, ou as
"teses").Esta formulação tem principalmente a virtude de ser provocadora; podemos
naturalmente referir-nos, com tanto ou mais proveito, às distinções estabelecidas
pelos formalistas russos entre "temática", "tema", "fábula", "assunto" e "motivos".
O essencial, para o analista fílmico, é convencer-se que o conteúdo de um filme
nunca é um dado imediato, mas deve, em qualquer caso, construir-se.

1.2. A análise temática


A análise temática foi aplicada sobretudo no âmbito da crítica literária, com
muitos trabalhos dos anos 60, como os de Georges Poulet, Jean-Pierre Richard,
Jean Starobinski, Jean Rousset - aliás muito diferentes nas suas intenções: Georges
Poulet, por exemplo, procura situar a maneira como, no exercício da criação literá-
ria, a consciência do escritor se coloca relativamente a categorias filosóficas como
o tempo ou o espaço; já Jean-Pierre Richard perscruta o universo imaginário do
autor a partir da sua experiência sensorial, conforme dela dá conta a sua obra.
Essa abordagem nunca foi verdadeiramente transposta, de forma sistemática,
para o campo filmológico. A mais clara tentativa nessa direcção, de Henri Agel em
L'Espace cinématographique (1978), efectua uma tipologia muito geral de diferentes
espaços que caracterizariam a estética dos "grandes cineastas" (o espaço "contraído"
do expressionismo, o espaço "dilatado" ligado ao arquétipo aéreo, do realismo,
de Renoir, de certos westerns ... ). Mas é na continuidade da "política dos autores"
dos anos 50 que encontramos genuínas tentativas de análise de filmes particulares
em termos "temáticos". Mais atrás evocámos o ensaio de Claude Chabrol e Eric
Rohmer sobre Hitchcock (capítulo 1, 2.3.), cujo desígnio polémico (pela noção de
"autor") e promocional (para Hitchcock) era sem dúvida inaior que a sua própria
capacidade analítica. O trabalho de Jean Douchet sobre o mesmo cineasta constitui
um exemplo mais conseguido - e aliás único no seu género.
Douchet, no seu livro de 1967, adopta uma abordagem muito parecida com
a dos críticos literários que citámos. Referindo-se, pela sua definição de temas,
aos arquétipos de C. G. Jung e às categorias de Gaston Bachelard, ele parte da
hipótese de que um princípio temático central enforma a totalidade da obra de
um cineasta (pelo menos quando este é um "autor"). Esse princípio temático,
neste caso, é conferido pela noção de suspense, que Douchet lê à luz da doutrina
esotérica.
Tomemos um dos primeiros exemplos do livro, a análise do começo de A Mulher que
Viveu Duas Vezes, de Hitchcock: a sombra de um malfeitor é perseguida por dois polícias,
um de urniforme e outro à paisana (Scottie, o herói, interpretado por James Stewart). A
persegui~ão decorre por telhados de prédios; Scottie escorrega, o polícia, ao vir em seu
socorro, perde ele próprio o equilíbrio e cai.
I
Douchetlanalisa esta sequência:
- segundo uma ordem lógica: descoberta da causa original da intriga (função clássica
da expo~ição);

85
A ANÁLISE DO FILME

- segundo uma ordem oculta: Scottie comete o crime luciférico do orgulho, e desobedece
ao Plano Divino do qual.é o principal executante;
- segundo a ordem estética/de criador: a visão de um perseguido inalcançável, a quem
dois perseguidores dão caça, inscreve no ecrã a construção ternária característica de
. todos os suspenses hitchcockianos; ela expõe igualmente um conflito estético vivido pelo
autor perante a concepção e a realização da sua obra. Tudo no talento do artista exige
o máximo de perfeição, "donde o temor reconhecido, nessa sequência de abertura, de
não conseguir apanhar o fantasma fugitivo da beleza ideal".
- segundo a ordem psicanalítica: nos telhados de São Francisco, Scottie corre em vão
atrás da voluptuosidade da sensação única; a sombra que ele persegue é o seu duplo,
reminiscência do estado fetal; "de maneira inconsciente, mas ardente, ele aspira à delícia
das impressões primeiras".

Naturalmente, com um exemplo tão fragmentário, a interpretação parece


particularmente arbitrária. A demonstração de Douchet é mais convincente
se a seguirmos na íntegra: Scottie é Lúcifer, tal como o olhar (de resto objecto
de muitas análises em termos de narração, de enunciação e representação) só o
interessa como móbil de uma luta entre a Luz e as Trevas: "Para conseguir o seu
objectivo, que é dominar totalmente o olhar das personagens, as Trevas procuram
antes de tudo apoderar-se de um único olhar para o converter em portador do
espírito do mal".
Essa "grande fantasia hitchcockiana" continua a ser absolutamente invulgar,
e não é obviamente um acaso ter sido a obra de Hitchcock, mais do que qualquer
outra, a suscitar essa crítica interpretativa. Seja como for, e para permanecer no
âmbito do presente estudo, é claro que é difícil isolar o mínimo' método geral a
partir de Douchet. A análise temática, assim concebida como uma hermenêutica,
pertence ainda à ordem das idiossincrasias.

2. ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA


E ANÁLISE DE FILMES
Como observámos acerca da análise estrutural em geral, é em grande parte
para obviar a essas dificuldades da análise temática, e para remediar o excesso de
arbitrariedade no qual ela por vezes repousa, que se elaboraram modelos gerais de
análise narrativa. Aqueles de que vamos agora falar foram propostos sem excepção
para a análise de obras literárias; o seu alcance é contudo suficientemente geral
para que lhes seja permitida uma certa transposição no campo da filmologia.

2.1. Propp e a análise do conto maravilhoso


Em geral remonta-se a origem da análise estrutural das narrações à obra de
Vladimir Propp, Morfologia do Conto Popular Russo (1928), que "está para a análise
estrutural da narração como Saussure está para a linguística" (Roland Barthes).
Com efeito, Propp foi o primeiro a apresentar, no estudo do seu corpus (os contos
maravilhosos do folclore russo), um duplo princípio analítico e estrutural, que
consiste em decompor cada conto em unidades abstractas, definir as combinações
possíveis dessas unidades, e por fim classificar essas combinações.
A unidade de base é o que Propp chama uma função, isto é, um momento
elementar da narrativa, correspondente a uma única acção simples, que se encontre
86
87
A ANALISE DO FILME

que às vezes dele fizeram investigadores anglófonos. Assim, num artigo de 1977,
"Propp in Hollywood", John Fell descobre "sequências" proppianas em vários filmes
americanos" de género", como O Beijo Fatal, de Robert Aldrich, Rio Bravo e Ter ou
Não Ter, de Howard Hawks, Vidas Tenebrosas, de Josef von Sternberg, etc. - mas
descobre, depois de lhes tentar encontrar também as esferas de acção de Propp, que
estas são definidas de forma demasiado inflexível para se aplicar verdadeiramente
a personagens de ficção fílmicas, mesmo que algo estereotipadas.
Menos cauteloso, Peter Wollen, num estudo de Intriga Internacional (1959), de Hitch-
cock (1976),tenta descrever as acções do filme de maneira a que sigam o esquema de
Propp.lnfelizmente, tal adaptação só se pode fazer tomando enormes liberdades, quer
com a narração quer com asfunções proppianas. Por exemplo, Wollen interpreta a entrada
de Roger Thornhill no Oak Bar, no início do filme, como transgressão de uma interdição
(função n.O3), com o pretexto de que "a mãe de Thornhill o proibira de beber muito" (o
que não é dito no filme: só ficamos a saber que ela não gosta de que o filho beba). Para
mais, Thornhill é raptado antes de ter tido tempo de beber fosse o que fosse, de modo
que nada transgride ... De igual modo, quando os dois acólitos de Van Damm tentam
que Thornhill caia na falésia (o que a rigor equivaleria ao "dano" proppiano), Wollen vê
nisso um exemplo da função n.O15, a "transferência do herói de um reino para outro".
Poderíamos multiplicar os exemplos (assim, quase sempre que o herói parte para algum
lado - o Oak Bar,Chicago, as Nações Unidas, o Monte Rushmore - Wollen assinala uma
"partida do herói de sua casa",função n.O11... ). Não surpreende que Wollen reconheça,
no final da sua análise, ter achado "extraordinariamente fácil" a adaptação das funções de
Propp à Intriga Internacional. De facto, uma interpretação tão laxista dessasfunções deve
poder cobrir praticamente qualquer ficção - com um ganho analítico bem reduzido.

Na verdade (como aliás observa o próprio Wollen), as categorias de Propp, que


na imensa maioria dos casos não se podem usar inalteradas (a rigor não se deveria
reservá-las a um filme "maravilhoso"?), serviram sobretudo para sugerir abordagens
"estruturais" da narração fílmica, especialmente no caso do filme de género -
mas quanto mais precisas são as análises, mais se afastam de Propp. Citemos, em
especial, a interessante tentativa de William Wright em Sixguns and Society (1975),
que, indo buscar a Lévi-Strauss uma concepção do western como narração mítica,
e a Propp a noção de funções (numa versão, como o autor reconhece, "liberali-
zada"), descreve o argumento dos filmes que estuda como uma série de funções
(e de atributos das personagens), numa ordem que já não é necessariamente fixa,
e com a possibilidade de repetir uma mesma função. Desse modo ele consegue
distinguir quatro tipos de westerns: o argumento clássico (um forasteiro chega
a umà cidade desestabilizada e repõe a ordem); o argumento da vingança (por
exemplo Cavalgada Heróica); um argumento "de transição" (em que o herói esÚ
fora da sociedade no início e no fim, e combate-a, por exemplo em O Comboio
Apitou Três Vezes); o cenário "profissional" (o herói é um pistoleiro profissional,
com poucos vínculos a uma sociedade fraca). Esta tipologia - que, para Wright,
abrange uma verdadeira história do género - é interessante, mas afasta-nos de
Propp, que se reduz a uma inspiração geral.

2.2. Aperfeiçoamentos da análise estrutural das narrativas


É essa inspiração que reencontramos - sempre a propósito da narrativa literá-
ria - em vários estudos, datados do final dos anos 60, que tentam precisamente
88
4. A ANALlS~ DO FILME COMO NARRATIVA
I
ultrapassar as limitações inerentes à empresa de Propp, elaborando modelos e
esquemas de mais ampla validade. ,
Limitarjnos-emos a citar, como etapa cimeira no desenvolvimento dos estudos
estruturali~tas da narrativa, os textos propostos em 1966 pelo número da revista
Communictftions, precisamente intitulado ''A Análise Estrutural da Narrativa"
- e em esptecialos de Roland Barthes e Claud~ Bremond. O artigo de Barthes,
talvez o mais assumidamente estruturalista do ~eu autor, sublinha a necessidade
de abandonar os métodos indutivos, e fundar Ulha narratologia que, a exemplo da
linguística,lse torne dedutiva: a teoria da narrativa deverá "começar por conceber
um modelo hipotético de descrição (... ) e de seguida aproximar-se gradualmente,
a partir desse modelo, das espécies que ao mesmo tempo dele participam e se afas-
tam: somente ao nível dessas aproximações e desvios é que ela, agora dotada de um
instrumento de descrição único, poderá encontr~r a pluralidade das narrativas, e a
sua diversid~de histórica, geográfica, cultural". Q exemplo linguístico é aliás levado
bastante lorige: uma narrativa torna-se uma "grap.de frase", e a tipologia dos papéis
atribui às suas personagens o equivalente das ftinçáes gramaticais. Reside aí sem
dúvida o aspecto mais datado desse texto, do qual fixaremos antes a sua tentativa
de descrever a lógica inerente a todos os modelosl estruturalistas da narrativa; para
essa descrição, Barthes considera três níveis sucessivamente - as funções, as acções
e a narraçã6 - que iremos expor, resumidamentF' por essa ordem.

2.2.1. As funções segundo Barthes


I
Barthes ~istingue duas categorias de unidad~ de conteúdo: as unidades distri-
bucionais (baptizadas funções, como em Propp),que se definem pelas relações que
têm com oJtras funções, e as unidades integra~ivas ou indícios, que garantem
a correlação com os outros níveis (acções e narração); estas unidades podem ser,
por exemplo, indícios respeitantes às personagens, informação sobre a sua iden-
tidade, apontamentos de "atmosfera", etc. A repartição entre esses dois tipos de
funções é uma primeira caracterização estilística das narrativas, sendo algumas
mais "fund'onais", outras mais "indiciais". Alérh disso, as funções subdividem-
-se em cardinais (ou núcleos) - as que "abrem u~a alternativa consequente para
a continuação da história" - e catálises, que sã9 apenas "unidades consecutivas,
e não unidades consequentes". Do mesmo mod,o, os indícios subdividem-se em
indícios propriamente ditos, "que remetem para um carácter, um sentimento, uma
atmosfera, Uma filosofia", e informações, "que servem para identificar, para situar
no tempo e '"no espaço . II
O problema é então definir a "sintaxe funciorial", quer dizer, o modo com que
as diferentes unidades se encadeiam umas nas butras na narrativa. De maneira
. I

muito geral,:os indícios podem combinar-se de forma mais ou menos livre entre
si, e com as !funções; entre funções cardinais e eatálises, existe sempre uma rela-
ção deimplkação simples (uma catálise implic~ sempre uma função cardinal à
qual se vincula). O problema essencial é (tal como em Propp) o das "relações de
solidariedad~" entre funções cardinais. :
Nesse pdnto, Barthes limita-se a expor algurhas hipóteses de trabalho emiti-
das por outJos investigadores. Como Claude Bremond, que na sua "Lógica dos
Possíveis Nahativos", tenta oferecer uma espécielde gramática narrativa, baseada
em sequênciks elementares de três funções (abertura de um processo, actualização
!
89
A ANÁLISE DO FILME

e encerramento), que a seguir podem combinar-se em sequências complexas por


justaposição, encaixe e sobreposição. Numa outra óptica, mais próxima de Lévi-
-Strauss, A.-J. Greimas procura "encontrar oposições paradigmáticas nas funções",
que depois "se prolongam durante a trama da narrativa" (ver adiante, em 2.3.).

2.2.2. A acção segundo Barthes


Tal como em Propp, a noção de acção pretende descrever as personagens de
naneira objectiva, mais como agentes do que como indivíduos (ou seja, deixando
de basear a análise da personagem na psicologia).
As tentativas que Barthes analisa nesse sentido são muito diversas. "Para C1aude Bremond,
cada personagem pode ser o agente de sequências de acção que lhe são próprias (Fraude,
Sedução); quando uma mesma sequência implica duas personagens (... ) a sequência
contém duas perspectivas ou, se preferirmos, dois nomes (o que para um é Fraude, para
outro é Embuste)". Outra abordagem consiste em considerar, como Tsvetan Todorov, não
as pessoas, mas "as três grandes relações nas quais elas podem envolver-se, às quais ele
chama predicados de base (amor, comunicação, auxílio); o analista submete essas relações
a dois tipos de regras: de derivação, quando é preciso explicar outras relações, e de acção,
quando é preciso descrever a transformação dessas relações no decorrer da história".

Quanto a esseponto, foi provavelmente Greimas quem forneceu a descrição mais


praticável das personagens da narrativa (já voltaremos ao assunto, em 2.3.).

2.2.3. A narração segundo Barthes


Por fim, a problemática da narração, que parte da constatação de que uma
narrativa pressupõe um doador (o narrador) e um destinatário (o leitor), levanta as
questões da enunciação e do modo da narrativa, que depois seriam desenvolvidas
por muitos outros analistas (cf. 3. adiante).
Os diferentes trabalhos que acabámos de citar são sobretudo obras teóricas
fundadoras, reveladoras do intenso desejo de sistematicidade, até de cientificidade,
que marcam o período estruturalista da narratologia. É aí que reside, julgamos, a
sua importância: uma noção como a de função, ou a de actante que daqui a pouco
exporemos, ainda hoje são úteis, senão directamente para analisar narrativas, pelo
menos indirectamente, para impedir o regresso a certas abordagens excessivamente
impressionistas.
Não obstante, o texto de Barthes comporta, na sua minúcia, certo número de ideias mais
particulares, que não expusemos, mas que inspiraram alguns analistas de filmes. Desse
modo, Thierry Kuntzel utiliza a noção de uma estrutura de duelo na sua análise a O Mal-
vado Zaroff, ou certas observações de Barthes sobre o "escamoteamento do signo" em
certas narrativas que querem fazer esquecer a sua natureza de narração (na sua análise
de Matou!, de Fritz Lang).
São por vezes citadas algumas das ideias principais desse texto, mas quase sempre de
passagem. Na sua análise de Matou!, Kuntzel refere a noção de indício, mas sem ver-
dadeiramente a interrogar (pois ela não é evidente no cinema, onde a imagem contém
uma infinidade potencial de elementos, e portanto a narrativa, uma infinidade potencial
de indícios ... ). Mais recentemente, Michêle Lagny, Marie-Claire Ropars e Pierre Sorlin
retomaram uma das conclusões de Barthes: "Já Barthes assinalava (... ) a dificuldade de
distinguir consecução e consequência, tempo e lógica, na sintaxe da narrativa. Procu-
rámos destrinçar esses dois modos, separando os casos em que a intervenção de uma
nova sequência responde a um detonador manifestado na sequência anterior, e os casos
em que a ligação de duas sequências se efectua em bases exclusivamente cronológicas".
("Le récit saisi par le film", p. 101).

90
4. A ANÁLISE DO FILME COMO NARRATIVA

2.3. Greimas e a análise semântica Idas narrativas


Diferentemente dos autores até aqui citados, Algirdas-Julien Greimas é um
semantista: quer dizer, ele interessa-se pelo problema da significação, mais do que
pelo da sintaxe. No seu primeiro livro, Sémantique structurale (1966), Greimas
enuncia a e~trutura elementar da semântica assentando-a num par "conjunção +
disjunção" ..Por exemplo, no caso da oposição entre branco e preto, temos uma
disjunção (oposição de significações) e uma conjunção (o facto de se tratar de duas
qualidades comparáveis); a existência dessa conjunção define um eixo semântico
(aqui, o da cor); mais precisamente, esse eixo semântico une os elementos de sig-
nificação (que Greimas designa como semas: neste caso, a brancura e a negrura)
contidos nos termos considerados.
Para Grbimas, a semântica obedece a leis determinadas em última instância
pela estrutura da linguagem - isto é, pela estrutUra do espírito humano (uma ideia
intrinsecamente lévi-straussiana). No caso das rlarativas, ele retoma assim a ideia
de um número limitado de papéis (as esferas de acção de Propp, a que Greimas
chama actantes), não sendo o número de ac~antes fortuito mas determinado
pelas condições essenciais da significação. Concretamente, ele parte, como os seus
contempor~neos, das trinta e uma funções de Propp, que reduz, por acoplamento,
a vinte funções somente, e depois a quatro conceitos principais: Contrato, Prova,
Deslocaç~o, Comunicação. Paralelamente, o número dos actantes é fixado em
seis; além disso, entre esses vários actantes, as relações possíveis não são aleató-
rias, obedecendo, pelo contrário, a um esquema fixo (que assinala a extensão dos
"possíveis narrativos"):

DESTINADOR OBJECTO ---~ DESTINATÁRIO

ADJUVANTE
r
SUJEITO ~ OPONENTE

A lista dos actantes deriva, até certo ponto, da de Propp (o destinador agrupa,
por exemplo, o doador e o mandatário; o oponen;te reúne o vilão e o falso herói,
etc.); mas diferencia-se profundamente desta ppr se aplicar não a determinado
corpus de narrativas, mas a qualquer "micro-universo" .coerente: por exemplo, aos
mitos e narrativas míticas, e também a qualquer texto narrativo, conquanto seja
um micro-universo. Quanto ao significado exacto dos seis termos da tabela, não
vamos demorar-nos a explicá-lo; o eixo que une o Sujeito ao Objecto é o do desejo
(da procura), e o que une o Destinador ao Destinatário é o eixo da comunicação:
para o resto; dois exemplos dados pelo próprio Greimas explicam suficientemente
o sentido dos termos:
- o primeiro exemplo é o do "filósofo clássico", cujo desejo é um desejo de
saber, e que se representa pela estrutura seguinte:

Deus o mundo ----i~. a Humanidade

o Espírito
i
o filósofo ~ a Matéria
91
A ANALISE DO FILME

(O filósofo deseja conhecer o mundo, que Deus destinou à Humanidade; ele


é ajudado na sua tarefa pelo espírito, e impedido pela matéria).

- o outro exemplo, também muito conhecido, é o da "ideologia marxista":

a História a sociedade ~-~~- a Humanidàde


sem classes

a classe operária
t
o Homem a burguesia
••
Em princípio, toda a narrativa é descritÍvel nestos termos actanciais. Na prática
é raro que um único esquema actancial represente a integralidade de uma nar-
rativa; logo que esta seja algo longa e complexa, só se pode descrever com vários
esquemas, correspondendo cada um a uma definição particular do eixo do desejo
(e do eixo da comunicação).
Num artigo de 1974,Alan Williams tentou aplicar este modelo a uma análise de Metropolis,
de Fritz Lang. Bem depressa ele depara com a obrigação de considerar vários "heróis"
(vários Sujeitos) à medida que a sua descrição avança. Assim, o primeiro segmento do
filme estabelece os operários como Sujeito, o eixo do desejo, definido no filme pela sua
condição alienada, levando-os a desejar como Objecto o controlo da suacondição (o poder
político). O segundo segmento institui Freder como Sujeito, e ao revelar-lhe a existência
de um mundo laboral que ele desconhece, situa como Objecto o conhecimento desse
mundo operário. Mais tarde, quando Freder regressa ao escritório do pai, Joh Fredersen,
este é ao mesmo tempo Oponente do Sujeito Freder na sua procura de saber, e Sujeito,
ele também, relativamente a um outro desejo: o controlo, e mais tarde a eliminação,
dos operários. Mais tarde ainda, será Maria o Objecto de um desejo amoroso por parte
de Freder. E por aí em diante (naturalmente, a cada um desses pares Sujeito/Objecto
correspondem os quatro outros actantes previstos pelo esquema).

Num livro posterior, Du Sem [Do Sentido (1970)],Greimas dedica-se mais direc-
tamente ainda ao problema do significado; ele postula a existência de um modelo
susceptível de descrever a articulação do sentido de maneira universal no interior
de qualquer micro-universo semântico. É o famoso "quadrado semiótico":
..•
«'-----------------
SI --------------
t
S2
Neste esquema, os termos de base SI e 52 estão ligados por uma relação de
contrariedade (são contrários semânticos, por exemplo, o Bem e o Mal). Os ter-
mos SI e S2 os opostos respectivos dos dois primeiros; as setas indicam relações de
pressuposição. Este esquema representa uma taxinomia de termos de base, que
desempenha o papel de morfologia e de sintaxe fundamental da narrativa: uma
narrativa pode sempre ser descrita como uma sucessão de operações "sintácticas"
segundo este modelo (por exemplo 51 ~ SI ~ 52), estando cada um dos termos
obviamente investido de um valor "local" quanto ao conteúdo; o modelo, que
comporta operações orientadas (pelas setas), só permite certas operações, e não
admite outras.
92
4. A ANÁltlSE DO FILME COMO NARRATIVA

Na análise que já citámos, Alan Williams determina, em Metropolis, certo número de


movimentos que seguem este esquema. Por exemplo, o robô circula de 52 (= máquina) a
52(= não-máquina: humano - pelo menos na aparência), e depois para 51 (= a sociedade);
no fim do filme os operários apoderam-se dele e transferem-no para 5, (= não-sociedade,
refugo), onde o queimam, voltando então o rJbô a ser uma máquina (52) •.• A circulação
de Maria pode, segundo Williams, ser descrita de maneira absolutamente simétrica,
entrei os mesmos pólos. Vemos que o par de(contrários" aqui estabelecido é Espaço
da sociedade/Espaço das máquinas: esta relação de contrariedade só é válida, claro, na
narrativa considerada. O oposto do espaço das máquinas é apresentado como "espaço
humano", e podemos verificar que a existência da sociedade pressupõe a existência deste
espaço humano. Williams não define tão bem o oposto do espaço social (não é muito
clara a implicação entre o espaço não social e () das máquinas).
I I
Esse quadrado semiótico foi muito utili~ado em análises de textos literários
diversos; foi-o menos na filmologia, pelo m~nos em análises publicadas. Vamos
tentar expor o seu interesse e limites com um!exemplo, neste caso Os 39 Degraus,
de Alfre4 Hitchcock. Para descrever esta narrativa com a ajuda do quadrado de
Greimas', a primeira escolha a fazer é a do eixo semântico pertinente. O filme
obviamente não se esgota num único eixo, mas limitaremos o nosso exemplo
a um ebl:o que materializa o tema, o mais, hitchcockiano possível, do "falso
culpado". O termo positivo SI pode assim rotular-se "Inocência" (é o termo
positivado pelo texto); resulta de imediato que SI (= não-SI) será a "Culpa".
Quanto ao "contrário" da inocência, propomos defini-lo, no texto em ques-
tão, como o "Saber"; é preciso sublinhar que essa é outra decisão, que decerto
não é gr~tuita (Inocência e Saber são efectivamente contrários possíveis), mas
não é ta~bém evidente (o texto é que a sugere). Por fim o último termo, S2,
define-se'então como "não-52", "não-Saber": diremos "Ignorância", e obtemos
o quadrado seguinte:

INOCÊNCIA _o( --'.~ SABER

IGNOtNCIA~
t
CULPA

Vemos que a construção deste esquema (cujas etapas resumimos bastante) é


limitada por uma lógica poderosa, a do próprio quadrado, e contém uma certa
margem de interpretação (para dar só um exemplo, se escolhermos "Cegueira"
em vez de "Ignorância" continuamos na área semântica do oposto do "Saber",
mas com ,uma diferença que não é mera variante). Esse esquema permite-nos
então descrever os movimentos ligados a esse eixo semântico. Desse modo
o herói do filme, o inocente Hannay, acede a um certo saber através da sua
passagem! pelo estado de (falso) culpado. Também desse modo, Annabella,
a jovem espia que Hannay encontra no Music Hall parte de um certo estado
de Saber (que pressupõe uma garantida culna, ainda que vaga, ligada ao seu
estatuto bastante equívoco de espia, à nacionalidade e a interesses indefiníveis)
para cair ~a ignorância - fatal - dos planos imediatos dos seus inimigos (por
isso morrendo). Mr. Memory, o homem prodígio, parte .evidentemente de uma
situação de Saber, mas a derradeira cena mostra que na verdade ele ignorava o
alcance dd seu acto de traição; a cena, em grande parte, absolve-o, pelo menos
moralmente. Para terminar, observemos que os dois eixos Inocência-Culpa

93
A ANÁLISE DO FILME

(= eixo da Verdade) e Saber-Ignorância (= eixo do Saber) conjugam-se no fim


do filme, no momento em que Hannay, tendo acedido ao Saber, voltá a ser, aos
olhos da polícia, um inocente: e assim a narrativa, pelo menos nesse eixo, não
pode prosseguir.
Note-se que, mesmo com um quadrado tão sistemático, podemos aperceber-nos
de como se introduziriam outras pistas de leitura: há, por exemplo, uma tripartição
entre as personagens (Hannay, Pamela, Margaret), que circulam essencialmente
entre ignorância e inocência, as que pelo contrário estão do lado da culpa e do
saber (Memory, Jordan), e por fim os que, ao procurar a verdade por métodos
racionais (exclusivamente entre o saber e a ignorância), não"a encontram (o caso
de Anabella e sobretudo da polícia). Essa tripartição pode ler-se muito facilmente
em termos simbólicos, "à" Douchet: as personagens do herói, e seus adjuvantes
(Pamela e Margaret) procuram a verdade confiando na Providência, contra
"maus" que empregam meios "mágicos" (cf. o dedo que falta a Jordan, a imate-
rialidade da fórmula roubada, mais cabalística que natural, e, é claro, o número
39 = 3 x 13... ): em suma, o Céu contra o Inferno - e pelo meio, as personagens
"terrenas", demasiado humanas.
De forma alguma pretendemos dizer que tal seria obrigatoriamente o sentido
"oculto" do filme. Sugerimos essa leitura para mostrar que, se ele pode manter-
-se muito próximo do texto, a ponto de às vezes parecer apenas uma técnica de
descrição, e não de leitura, o quadrado semiótico pode igualmente desempenhar
um papel heurístico não desprezável; o simples facto de organizar a matéria nar-
rativa de forma claramente visualizável, além de permitir verificar a coerência e
sistematicidade de uma análise narrativa, pode também provar-se (embora não seja
obrigatório) revelador, sugerir relações ainda não apercebidas, ou mostrar que o
filme se presta a várias leituras "paralelas", como no nosso exemplo d'Os 39 Degraus
(exemplo sem dúvida algo fácil, porque Hitchcock presta-se excepcionalmente a
este género de demonstração).
Em geral um filme narrativo clássicopode ler-sede várias maneiras, muitas vezes
tão convincentes umas como outras, apenas com a diferença do eixo privilegiado
escolhido, e o maior ou menor grau de literalidade ou metaforicidade; por si só, o
quadrado semiótico não ajuda a efectuar essa escolha (pelo contrário, ele supõe-na
já efectuada), mas demonstra-a e obriga-a a tornar-se consciente.
É esse valor heurístico que testemunha um dos raros exemplos de utilização sistemática
do quadrado semiótico para a análise de um filme, Passeio ao Campo, de Jean Renoir.
Para analisá-lo, Roger Odin escolheu como eixo semântico as relações (de desejo) das
personagens, entre elas e os objectos; chegou ao quadrado seguinte:

p;:~fh:da ~o(~===============~.Consumação
pesca de
peixes
tI tI "pesca" de
mulheres
Desejo sexual Casamento

- Oquadrado permite situar as personagens muito facilmente, e torna-se, na leitura de


Odin, particularmente interessante quando o analista associa lugares do filme a cada
um dos seus termos:

94
4. A ANÁLISE DO FILME COMO NARRATIVA

AR _0( • DEBAIXO D'ÁGUA

,:~::::::::'"Il'~~~ .' "I;'


I
DA AGUA ~\tt\
I
(O> PI'i':~P~RFICIE
DA AGUA

SOBRE A TERRA NÁO-AR


(a relva) I (Paris)

As coincidências entre os dois quadrados sãq impressionantes: a superfície da água


como lugar da pesca e da sedução (que os diálogos do filme colocam no mesmo plano),
a relv~ como lugar do desejo sexual insatisfeitq, o espaço asfixiante de Paris como lugar
do casamento (dos pais, e depois da jovem heroína), etc. Nesta leitura, o filme cria uma
simbólica própria, ligada ao papel da água como significante do desejo (um "tema"
tão caro a Renoir como a Maupassant), mas também à localização precisa das cenas de
refeição e sexo.

Obviamente não esgotámos as vias de ~bordagem da narrativa, até numa


perspectiva estrutural, à qual se poderia consagrar um livro inteiro22• Queríamos
simples~ente, ao concluir esta parte, insistir no facto de que essa abordagem da
narrativa fílmica é das que facilmente originam exercíciosdidácticos. Entre os mais
evidentes, citemos todas as possibilidades de comparação: entre um filme e a obra
literária que ele adapta, entre dois filmes que adaptam a mesma obra, entre um
filme e a sua transcrição (encontramos exemplos proveitosos no livro de Francis
Vanoye referido em nota). A análise actancial ou "funcional" dê uma sequência (ou
de um excerto mais longo do filme) pode também revelar-se muito elucidativa.

3. A ~NÁLISE DA NARRATIVA COMO,.PRODUçAo:


A PROBLEMATICA DA ENUNCIAÇAO
I

3.1. A problemática da enunciação


Todos 'os modelos de que falámos na secção 2 são anteriores a 1970 (embora
alguns os tenham retomado desde então); por agora vamos considerar um conjunto
de probler:nas e, em paralelo, novas aproximações ao filme narrativo, sob a égide
daquilo a que se chama enunciação.
Este é um termo linguístico que pretende distinguir entre aquilo que se diz,
o enunciado, e os meios utilizados para o dizer, a enunciação. Sobre os discursos
verbais, um célebre artigo de Emile Benveniste, 'T Appareil formel de l'énonciation"
[O Aparelpo Formal da Enunciação](1970) mostrou que existiam certas marcas
c . d.a enunClaçao
lOrmalS . - (pa 1avras como "." aqUI, " agora,""" eu, etc.), e sobretu do,
o que é mais essencial, o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação não
coincidem; o sujeito do enunciado, o "eu", é um sujeito gramatical, constrangido
por certas regras sintácticas e textuais; o sujeito da enunciação é o sujeito que
emite esse Fnunciado. Ele é limitado por certo número de determinações (sociais,
inconscientes, entre outras) que tornam bastante complexa a sua manifestação no
enunciado. A análise dos discursos a partir dessa noção demonstra a existência de
! :
22 Esse livro, aliás, existe: Récit écrit, récitjilmique, de FraRcis Vanoye.
I :

,
I
95
A ANÁLISE DO FILME

relações entre o enunciado (o texto) e o seu enunciador, por um lado, e destina-


tário (o leitor) por outro.
Não é fácil transpor esta problemática directamente para o campo do cinema.
Não existe, num filme, uma instância narrativa que se identifique somente com
um sujeito (diga o que disser a teoria "dos autores" - que porém nunca pretendeu
que um filme fosse a obra de uma só pessoa). É mais ou menos impossível encon-
trar nos filmes o equivalente estrito das "marcas de enunciação" definidas pela
linguística. O filme narrativo, sobretudo no seu período clássico, tentou sempre,
exactamente, ocultar a sua enunciação, apresentando-se como um enunciado
transparente, que opera no mundo real. Actualmente, os problemas ligados à
enunciação fílmica são, não obstante, muito debatidos, não só sob a pressão da
linguística e da teoria da literatura, mas também porque os próprios filmes evo-
luíram (e principalmente boa parte do cinema recente apresenta-se quer como
"discurso", quer como "história").

3.2. Gérard Genette: narrativa e narração: a focalização


Se prestamos alguma atenção aos trabalhos de Gérard Genette - ainda que
estes nem sempre abordem, e também nem sempre de maneira frontal, a questão
da enunciação - é devido ao seu carácter relativamente formalizado e aos efeitos
evidentes que já tiveram em matéria de teoria do filme.
Genette interessa-se essencialmente pelas relações entre uma narrativa e os
acontecimentos que ela conta, o acto de narração que a produz. Entre os diversos
tipos de relações entre a narrativa e a história, o mais importante para o estudo
fílmico é sem dúvida o que Genette chama o modo da narrativa: uma narrativa
pode fornecer mais ou menos informação sobre a história que conta, pode dá-la
sob um certo ponto de vista, filtrá-la, por exemplo, através do saber de uma perso-
nagem. Não é uma ideia nova (encontramo-la de forma explícita na teoria literária
pelo menos desde o fim do século XIX), mas Genette contribuiu para formalizá-la
de maneira clara, especialmente com a noção de focalização.
"Para a questão 'Quem vê?', há três respostas possíveis:
1. um narrador omnisciente que diz mais do que as personagens sabem;
2. um narrador que só diz o que vê uma dada personagem (narrativa "com ponto de
vista", "visão com");
3. um narrador que diz menos do que sabe a personagem (... ).
As narrativas do tipo 1 são não-focalizadas (... )
As narrativas do tipo 2 são de focalização interna, fixa (não deixamos o ponto de vista de
uma personagem [... ]),variável (passamos de uma personagem para outra) ou múltipla
(os mesmos acontecimentos são contados várias vezes segundo os pontos de vista de
personagens diferentes).
As narrativas do tipo 3 são de focalização externa".
Francis Vanoye, Récit écrit, récit filmique, p. 147.
Apesar das aparências, esta forma de pôr o problema não é imediata nem facil-
mente transponível para uma narrativa fílmica. A noção de focalização implica,
com efeito, dois elementos distintos:
1) o que sabe uma personagem?, e 2) o que vê uma personagem? Esta segunda
pergunta, que na narrativa literária é em geral apenas um corolário da primeira
(pois o autor informa-nos ao mesmo tempo sobre o "ver" e o "saber", e pode
96
4. A ANALISE DO FILME COMO NARRATIVA

informar-nos sobre o saber sem nos informar sobre o ver), em compensação torna-se
essencial no cinema. Aí reside a origem de todas as dificuldades de aplicação do
trabalho de Genette na análise de filmes. Para melhor as sublinhar, utilizaremos
um exemplo que se deve ao analista norte-americano Brian Henderson; este esboça
I
uma aplicação sistemática de todas as categorias de Genette à narrativa fílmica (e
declara que ela é "muito fácil"!). Eis como Henderson aborda a questão do modo
da narrativa com o exemplo de O Vale Era líerde, de John Ford:
"Huw,! já mais velho, é o narrador de O Vale Era Verde - e é literalmente a sua voz que
escutamos; mas tal não resolve a questão do modo. Quase nunca vemos as coisas na pers-
pectiva do jovem Huw. O Vale é não-focalizado no sentido em que nenhuma sequência,
e muiio menos o filme integral, é filmada do ponto de vista de alguma personagem. É
de foc'alização variável, porque muitas vezes adopta, durante um plano ou mais, o ponto
de vista de uma personagem - nuns casos por motivos dramáticos, noutros de maneira
oportunista, para obter alguma imagem forte ou uma visualização eficaz da acção. A
chegada de Huw à escola é filmada de modo não-focalizado; ele é pequeno e tímido,
mas n~nhuma personagem o vê assim. Quando Huw abre a porta, Ford corta para o
ponto de vista que ele tem das raparigas da turma, com ar hostil, e depois dos rapazes,
mais afastados, e de aparência ainda mais hostil (na verdade os dois planos não podem
corresponder ao ponto de vista de Huw). Ford corta então para um plano do professor,
do po~to de vista de Huw, mas quando este é chamado ao quadro o seu ponto de vista
é substituído por outro que corresponde mais ou menos ao da turma. Mais tarde alguns
planos da zaragata no pátio são filmados do ponto de vista de uma rapariguinha que
tomou o partido de Huw, mas que de resto não tem importância como personagem. Ford
dá-nos alguns planos do ponto de vista de Huw para registar a primeira impressão da
escola, e depois procede de maneira não-focalizada, ou variavelmente focalizada, para
apresentar os acontecimentos aí vividos".
Brian Henderson, "Tense, Mood and Voice in Film", pp. 13-14.

Esta ditação algo longa parece-nos útil, em primeiro lugar, para mostrar uma
vez mais a complicação que acarreta a menor descrição de um fragmento fílmico,
mas sobretudo porque demonstra claramente a flutuação que uma aplicação
literal do ,conceito de focalização a uma narrativa fílmica sempre produz: se nos
referirmos às definições de Vanoye, o filme de Ford, no qual o narrador só diz o
que sabe uma personagem (Huw) deveria ser de focalização interna; porém, como
demonstril a descrição que Henderson faz de uma sequência particular, a relação
da narrativa fílmica com o que vê a dita personagem varia constantemente (sem
contar que às vezes é praticamente impossível decidir: cf. o que é observado sobre
o momento em que Huw abre a porta). Encontramo-nos no cerne do problema:
deve-se, na análise de uma narrativa fílmica, estabelecer como critério o saber
da personagem, ou o que ela vê? Ambos apresentam dificuldades: de maneira
geral o saber de uma personagem define-se menos claramente num filme do que
num romance (o filme é sempre mais "behaviourista": é-lhe mais fácil mostrar
comportamentos do que interioridade); quanto ao ver, ele varia muito, mesmo
no interior dé cada sequência, e elegê-lo como critério da focalização da narrativa
conduziri'tl, na maior parte dos casos, a um regime de focalização muito variável
(quase a cada plano ... ). Não estamos de acordo, em particular, com a observação
optimista de Francis Vanoye, segundo a qual o "filme narrativo corrente" estaria
quase sempre em focalização zero ou em focalização externa (pois é muito raro que
numa sequência, principalmente com diálogos, não exista pelo menos um plano
que se possa relacionar ao ponto de vista de. uma personagem).

97
A ANÁLISE DO FILME

3 4

5 6

Alguns investigadores tentaram encontrar uma solução geral para este problema.
Mencionemos apenas (mau grado as suas dificuldades) a ideia, de François Jost,
da distinção entre focalização e o que ele designa por "ocularização" - a qual nos
parece pelo menos ter o interesse de definir a focalização unicamente em termos
de saber respectivo do narrador, das personagens e do espectador. É de resto o
mesmo problema que levanta Francis Vanoye quando constata, a propósito de
uma breve análise de A Condessa Descalça, de Joseph L. Mankiewicz, que "não
há sobreposição nem convergência dos dois centros (a imagem e o som)", e que
pode muito bem haver uma focalização externa na imagem para uma personagem
em focalização interna no som. A maior parte das análises concentrou-se num
ou noutro destes dois aspectos (geralmente o ponto de vista, ligado ao olhar das
personagens e ao enquadramento, logo ao "olhar" do narrador); vamos referi-lo,
antes de voltar à problemática da enunciação.
98
4. A. ANÁLISE DO FILME COMO NARRATIVA

7 8

9 10

11 12

Doze planos de Cavalgada Heróica, de John Ford (1939).

3.3. Ponto de vista das personagens,


ponto de vista do narrador
Por definição, o ponto de vista é o lugar a partir do qual se olha. Mais geral-
mente, é também a maneira como se olha. No filme narrativo, esse ponto de vista
está na maior parte do tempo atribuído a alguém: seja uma das personagens da
narrativa, seja, expressamente, o da instância narradora. Analisar um filme narra-
tivo em termos de pontos de vista (ou de olhares, o que vai dar ao mesmo) é então
centralizar a análise essencialmente no que se veio a chamar a "mostra" (André
Gaudreault), por oposição à narração no sentido estrito. O essencial, na maioria
destas análises, é provar a relação complexa entre o ponto de vista da instância
narradora e os das diversas personagens.
99
A ANÁLISE DO FILME

Um exemplo clássico, apesar da sua brevidade e da do fragmento analisado, é


o estudo, por Nick Browne, de um excerto de 12 planos de Cavalgada Heróica,
de John Ford. Trata-se de um sub-segmento situado na primeira quarta parte do
filme, cuja acção não é muito espectacular: ao chegar ao primeiro revezamento
da diligência, ós passageiros são informados de que a estrada foi cortada pelos
índios, e que o destacamento de cavalaria que até aí os acompanhara tem de voltar
para trás. Após breve deliberação, os viajantes resolvem, apesar de tudo, continuar
caminho, e instalam-se para almoçar, à espera de partir. É esse momento em que
as personagens se sentam à mesa que Nick Browne analisa. O principal da análise
consiste numa relação sistemática dos olhares em presença neste fragmento:
1) olhares das personagens, representados na imagem: estes, por sua vez,
subdividem-se, em função da pessoa olhada, em olhares internos de determinado
plano (nos planos 2 e 4, Ringo olha para Dallas; no plano 11,todas as personagens
presentes no plano olham para Lucy Mallory), e olhares para fora-de-campo (nos
planos 3 e 7, as personagens olham todas para o mesmo ponto fora-de-campo, o
lugar onde se encontram Ringo. e Dallas; em 5 e 6, um campo-contracampo joga
com o fora-de-campo associado ao olhar de cada uma das duas mulheres).
2) "olhar" da câmara, materializado pelo enquadramento (que também traduz
uma certa distância e um certo eixo de filmagem). A Browne interessa essencialmente
o maior ou menor grau de coincidência entre esse olhar da câmara e o olhar de
uma personagem: por outras palavras, ele procura descobrir se o enquadramento
"representa" o olhar de uma personagem, ou apenas o "da câmara" (do enunciador
do filme). Assim, os planos 1 e 12 (vista geral do grupo à mesa), mas também a
série 3/7/9/11, são planos "anónimos" ("nobody's shots"), que só representam o
ponto de vista do narrador; em compensação, os planos da série 2/4/8/10, filmados
do ponto de vista de Lucy, representam o olhar que ela lança ao par Ringo-Dallas:
eles constituem o que Browne chama um "olhar descrito" ("depicted glance").
A conclusão que o autor retira destas observações é clara: existe no fragmento
analisado uma dissimetria entre dois grupos de personagens, Ringo-Dallas de
um lado, todos os outros do outro. Durante a totalidade do fragmento, estes dois
grupos nunca estão presentes no mesmo enquadramento (excepto no plano 12,
onde uma mudança radical de eixo sublinha a nova repartição dos lugares à
mesa). Além disso, enquanto as personagens do grupo de Lucy têm o poder:
1) de olhar para fora-de-campo; 2) de olhar de forma "descritível"; em termos de
enquadramento, o contrário não acontece, pois Dallas mantém os olhos baixos
e Ringo olha quase exclusivamente para o interior do enquadramento (excepto,
tardiamente, no plano 10); e sobretudo os planos do grupo de Lucy não "descre-
vem" o olhar de Ringo, antes permanecendo "anónimos" (atribuídos à instância
enunciadora e só a ela). Assim, todo o fragmento está centrado em torno da figura
de Lucy, seja vendo-a a olhar, seja olhando através dos seus olhos; é assim que o
filme inscreve, na própria forma da sua realização, a ideia central deste excerto:
a hierarquia social que coloca Lucy Mallory, mulher de um capitão de cavalaria (e
com ela também, secundariamente, o banqueiro e o cavalheiro sulista) acima da
prostituta Dallas e do fora-da-Iei Ringo. Por outras palavras, o filme tem, de certa
forma, um discurso duplo: à narrativa propriamente dita do confronto entre os
dois grupos sobrepõe-se, ao nível da enunciação, um discurso dos olhares e dos
100
4. A ANÁLISE DO FILME COMO NARRATIVA

enquadramentos - que de resto confirma com exactidão o primeiro (levado pela


sua derhonstração, Browne chega mesmo a:afirmar que o campo-contracampo,
que marca o confronto directo das duas mulheres, também é dissimétrico, sendo
o plano 6 filmado do ponto de vista de Lucy, enquanto o plano 5 não é filmado
do ponto de vista de Dallas: isso parece-nos !llenos claro, e mais difícil de ~erificar
com absoluta certeza). '
COIlduindo de modo mais amplo a que~tão da enunciação, Browne alarga a
análise :deste fragmento à afirmação de uma relação geral entre o dito e o dizer
(a ficção e a enunciação): para ele, cada colo~ação da câmara, cada ponto de vista,
constitui uma marca da enunciação; para~elamente, o trabalho do espectador
consiste em estabelecer permanentemente dse vínculo entre ficção e enunciação,
ao passar de uma situação de puro espectadÓr "mantido à distância" (no caso dos.
"planos!anónimos", dos momentos relacion~dos com a instância narradora) a um
estatuto activo, que o leve a identificar-se com o acto de enunciação (por exemplo,
no caso do travelling adiante do plano 4, associado ao "olhar descrito" de Lucy).
Não secundaremos esta afirmação de Browne; se a noção de "marcas da enunciação"
deve conservar alguma consistência, mais vale reservá-la aos casos onde existe de
facto marcação: pois se cada enquadramento é uma marca de enunciação, nada
é marcatlo, visto que tudo está marcado por igual.
Essas considerações sobre o ponto de vista são evidentemente tanto mais ine-
quívocas quanto as aplicamos a um cinema fortemente narrativo (no qual, por
exemplo, é pertinente relacionar a noção de olhar com personagens).
Sobre um filme cronologicamente bastante próximo do de Ford, citemos a interessante
análi~e de uma cena de OGrande Escândalo, de Howard Hawks, por Vance Kepley. Partindo
de um apanhado das definições "espontâneas" da montagem clássica, "transparente",
Kepley verifica que as definições giram todas em torno de um espaço tridimensional,
que um observador imaginário exploraria a seu bel-prazer, e que criaria no espectador
a sensação de um espaço real. A sua análise incide numa cena de um filme clássico - a
cena do restaurante - que à primeira vista pareceria respeitar essa integridade espacial
de tipo "teatral"; o objectivo da análise é mostrar que, de facto, o espaço é manipulado
e "tru,cado" de tal forma que a cena não poderia existir no real. Kepley analisa essencial-
mente os raccords, em especial a direcção dos olhares, e a posição das personagens no
enquadramento e relativamente ao cenário, dos dois lados de cada colagem. Graças
a um exame minucioso dos 34 raccords que a cena contém (cena cuja banda sonora
é constante e de unidade sintagmática assegurada), Kepley mostra que a cada plano
as petsonagens se deslocam ligeiramente em relação ao cenário (o que, como se sabe
desde sempre, faz parte das condições tradicionais de filmagem) - e, sobretudo, que
essas1deslocaçõesnão são fortuitas, mas pelo contrário norteadas pelo desejo de situar
a personagem de Walter (Cary Grant) no centro da cena e, sempre que possível, no centro
da imagem. Aqui, portanto, o nível da enunciação, ao centrar-se na figura de Walter, entra
em (ligeiro) conflito com o da ficção (onde em princípio as três personagens estariam em
pé de igualdade) - à custa de uma "batota" com o realismo representativo.

3.4. 'A questão da "voz" narrativa


Temos insistido um pouco nestas análises ~m termos de pontos de vista, porque
elas possuem a enorme vantagem de ser muito concretas no seu objecto, e de as
suas conclusões costumarem falar por si. Mas este é apenas, como já dissemos, um
aspecto da pmblemática da enunciação. Outro aspecto importante da questão -
mais difícil
,
de aplicar ao estudo dos filmes - é, o da voz narrativa (para retomar o
101
A ANÁLISE DO FILME

termo de Gérard Genette), isto é, das relações entre o narrador e a história contada.
Como se situa temporalmente a narração em relação à história (será ela anterior,
posterior, simultânea - ou "intercalada"?); a instância narradora será ou não interna
à diegese? Por fim, qual o grau de presença do narrador na narrativa?
Para designar todas essaspossibilidades, de que forneceu uma primeira tipologia,
Genette cunhou um vocabulário especializado (homodiegético/heterodiegético,
por exemplo); mas de forma alguma dispomos de um método geral para a análise
do filme em termos de vozes narrativas. Limitar-nos-emos a dar dois exemplos:

3.4.1 Publicada em 1972, a análise do prólogo de O Mundo a Seus Pés por


Marie-Claire Ropars é uma das primeiras a abordar o estudo de um filme expli-
citamente desse ponto de vista:
"Sem poder proceder a uma análise exaustiva das categorias constituintes da narratividade,
optamos por interrogar-nos acerca da narração, e principalmente sobre a perspectiva
narrativa, visto que ela preside à hierarquização das vozes produzidas pelo filme. Quem
"fala" O Mundo a Seus Pés? Como se manifesta o narrador doador da narrativa, e quais as
suas relações com os diversos pontos de vista manifestados? Em suma, quem é o autor
implícito, que se deve distinguir cuidadosamente de qualquer autor real?" ("Narration
et signification", p. 12).

É óbvio que O Mundo a Seus Pés se presta exemplarmente bem a este tipo de
interrogação: ele é com efeito um filme-inquérito, no qual a vida de uma perso-
nagem nos é contada por um lado por diversas testemunhas "intra-diegéticas",
e por outro através do percurso da personagem do jornalista, que vai "cosendo"
esses vários testemunhos; e por fim por um narrador omnisciente que organiza o
conjunto (como sucede em qualquer narrativa). Para lá da definição destes diversos
níveis de enunciação, o estudo de Ropars consiste em analisar-lhes as relações, a
partir dos sinais de cada um deles no texto fílmico.
De modo deliberadamente paradoxal, para fazê-lo ela opta por concentrar-se
nos dois momentos do filme que "ignoram tanto a representação dos narradores,
como a presença do inquiridor": o prólogo e o epílogo, ambos situados em Xanadu,
a fabulosa residência de Kane, respectivamente no momento da sua morte e aquando
da dispersão das suas colecções. Ropars aproveita a análise do prólogo para deter-
minar "a existência de um falante soberano" - expressão pela qual é designada
"a origem dessa voz não fonética, só perceptível na organização da montagem,
e que cumpre uma função análoga à do eu implícito que acompanha qualquer
objecto de narrativa" (e que em geral chamamos narrador abstracto), voz que é
conveniente distinguir do locutor (emissor de palavras que efectivamente se ouvem
na banda sonora). O trabalho de análise dos 22 planos do prólogo consiste então
em descobrir-lhes os signos dessa "fala". Assim, por exemplo, Ropars determina
elementos de repetição entre planos, que afirmam implicitamente a capacidade da
montagem de "trabalhar na descontinuidade espácio-temporal", e de "estabelecer
(... ) uma continuidade que só depende da palavra, e não mais da imitação do
real". Da mesma forma examina ao pormenor os planos "documentais" sobre o
parque de Xanadu, para concluir que eles se encontram "submetidos a um sistema
de escrita que os conta, em vez de os descrever".
Naturalmente o epílogo é, no seu conjunto, ainda mais rico do ponto de vista
da análise da enunciação, visto que é aí que se "confirma, na sua soberania, o papel
102
I

4. A ANÁLISE DO FILME COMO NARRATIVA

do narrador, que depois de formular o enigma se dispensa de o desvendar". Mas o


que então descobre a análise (aqui particularmente inspirada e produtiva) é que este
círculo aparente, sob os auspícios da submissão à voz do narrador, é um logro. O
percurs~ através do qual o filme oferece a decifração desse sentido (do "Rosebud"
pronunciado à inscrição "Rosebud" no trenó que arde) estabelece correspondências
e transfprmações que "denunciam" "a próp\'ia ausência de sentido desse regresso
ao sentido" (é a conclusão, sobretudo, da an#ise das rimas prólogo/epílogo, com o
monograma "X" e o "No Trespassing"). A partir destas premissas, a autora conclui
lendo todo o filme, do ponto de vista das vozes narrativas, como um conjunto
de narrativas, "cujo encerramento só interv;ém para lhes assinalar a futilidade",
e que s~ existem para "atenuar a insuficiência de uma narrativa anterior" - a das
aetualidades no início do filme. j
CorA o artigo de Jean-Paul Simon, "Enonbation et narration" (1983), passamos
a uma abordagem muito mais directa e explí~ita (emais explicitamente teórica) dos
fenómenos enunciativos. Os dois filmes estudados, A Dama do Lago, de Robert
Montgomery, e Film, de Samuel Beckett, são-no, o primeiro, como "um caso de
narcisisino enunciativo", e o segundo, como um exemplo quase teratológico de
utilização do olhar e do ponto de vista. ,
A Dama do Lago é célebre na história do cinema por ter levado praticamente
tão longe quanto possível a identificação do olhar da câmara com o olhar de uma
personagem: o herói (interpretado pelo próprio realizador) é também o narrador,
e toda ~ narrativa decorre através da sua visão dos acontecimentos (o filme é
inteiramente rodado em "câmara subjectivf, quase sem excepções). Percebe-se
que seja:um caso fascinante para a análise da enunciação fílmica - e, de facto, os
narratólogos costumam citá-lo. Simon assenta menos a sua análise no propósito
de unidade (coincidência narrador/personagem principal/ponto de vista) que nos
momentos que fogem a esse propósito. Como o início do filme, no qual o narrador
se apresenta ao público anunciando o seu papel de personagem principal num
caso do passado, e o relato desse caso, que conhece por dentro (''I'm the guy who
knows'l momento particularmente complexo, onde o herói se apresenta como
um autor, mas em que é um autor fictício (um autor de ficção), enquanto o autor
que encarna essa personagem é, ele, o realizador (o "autor", se quisermos, real)
do filme ...
A análise de Jean-Paul Simon não assume a forma de uma análise microtextual,
antes apresentando-se como leitura da narrativa nas suas grandes articulações,
privilegiando todos os significantes da relação entre o narrador e o destinatário
da narrativa - neste exemplo muitas vezes inscrito no filme. Simon também exa-
mina as!duplicações da situação narrativa (entre o narrador que se apresentou na
primeirJ sequência e o herói como o vemos no resto do filme).
De igual modo, a análise de Film interessa-se sobretudo por mostrar em quê
esta obra "corta largamente com a prática habitual que consiste em ligar o centro
narrativo visual à banda sonora (através de 'uma narração na "primeira pessoa",
ou por processos diversos, entre os quais a aparição do "narrador"). O filme
conta um caso de desdobramento "impossível": uma personagem é perseguida,
sem que primeiro se saiba por quem: no firial do filme apercebemo-nos de que
ela tam~ém é o perseguidor. A perseguição é filmada do ponto de vista de um
olho (q~e se abriu no genérico) - mas essa focalização "interna" nunca é óbvia no
I
103
I
A ANÁLISE DO FILME

filme, onde seguimos a personagem sem que apareça alguém a dizer quem o vê;
e só a posteriori, a partir do final, é que compreendemos que ele era olhado ... O
analista interessa-se por esta "anomalia" de uma relação narrador/personagem que
é "sublinhada sem por isso adquirir a forma de um direccionamento ou mudança
brusca do olhar" (mudança evidentemente impensável, já que o olho que vê é o
da própria personagem: daí a "monstruosidade" de que fala Simon).
A análise da posição do narrador ainda está nos primórdios (e cada análise
que se realiza é ainda muitas vezes uma tentativa de teorização geral). O estudo
da temporalidade narrativa é sem dúvida o aspecto mais simples dessa questão
(pelo menos na medida em que as relações temporais surjam assinaladas na banda
sonora); o da posição do narrador (e dos narradores internos à história) continua a
ser, até hoje, o estudo de tantos casos particulares quanto de filmes analisados.
Ainda mais embrionária está a análise da outra vertente do problema da enun-
ciação: o das relações entre o filme e o seu destinatário, o espectador. Desenvolvido
desde há alguns anos nas disciplinas literárias, o estúdo das estratégias de leitura
("reader's response theory") tem escassas aplicações filmológicas, e a relação do
filme com o espectador tem sido quase exclusivamente estudada em termos psi-
canalíticos.
Excepção notável é o já citado artigo de Roger Odin, "L'entrée du spectateur dans la
fiction" (sobre o início de Passeio ao Campo). A análise segue, passo a passo, o desenrolar
do começo do filme (o genérico, com as suas legendas sobre um fundo de água a correr,
os dois cartões de introdução dos produtores, porfim os dois primeiros planos diegéticos
do filme). A análise realça os vários elementos que, nesse início, se dirigem mais ou menos
explicitamente ao espectador, e as"diferentes posições espectatoriais correspondentes:
assim, durante o genérico, as legendas sobre fundo de água instituem dois "posiciona-
mentos" do espectador perante o filme (ler vs. ver); este conflito opõe o genérico ao seu
filme, o qual se baseia num outro posicionamento do espectador, previsto pelo efeito-
-ficção; mais adiante, os dois cartões deixam o espectador numa posição intermédia
entre o leitor de um genérico e o leitor de uma ficção; etc. Notemos, todavia, que nessa
análise trata-se sempre de um "arquiespectador", cuja posição é descrita como variável
em função dos elementos inscritos no texto, mas única por só descrever um trajecto de
leitura (se bem que Odin pareça sugerir que em certas partes do texto os conflitos entre
os diversos posicionamentos que ele induz podem causar diferentes respostas efectivas
por parte de um espectador real).

104
CAPfTULO 5

A análise da imagem
edosom

Ao separar assim claramente, por dois 'capítulos, a análise da narrativa e a


da imagem e da banda sonora, parecemos estar a sugerir que se trata de duas
abordagens diferentes do filme. Convirá bntão sublinhar que só efectuamos
essa divisão pela facilidade expositiva. D~ facto, é quase impossível analisar
correct:1mente uma narrativa fílmica sem :fazer intervir considerações ligadas
ao aspetto visual desta. Tal é absolutamente óbvio no que respeita aos últimos
pontos :de que tratámos (focalização, ocularização, ponto de vista), de que
bastam' as próprias designações para indi2ar a relação com a visão. Mesmo a
análise mais puramente "estrutural" dific~lmente pode evitar a consideração
das manifestaçÕes visíveis das estruturas narrativas; podemos (e sem dúvida
devemos) "construir o actancial" com os rostos, o guarda-roupa, as posturas
dos actores, mas também com a iluminação, os ângulos dos planos, até com os
cenários e, claro, a realização. I

Reciprocamente, é difícil analisar a i~agem sozinha. Naturalmente, de


novo nos deparamos com a formidável questão da narratividade no cinema.
Ao longo da história do cinema, muitos filmes enfrentaram esta questão, com
o intuito de fugir, totalmente ou em parte, a essa "obrigação" da narratividade
(já vamos, a propósito do trabalho com o enquadramento, dar o exemplo de O
Homem da Câmara de Filmar, que é um filme decididamente antinarrativo). É
provável que em alguns casos de filmes excepcionalmente pouco narrativos, se
devesse considerar processos de análise só da banda de imagem (é o que sugere
Dominique Noguez ao longo do seu ensaio consagrado ao "cinema 'underground'
americabo"), embora nos pareça que quase sempre a análise da imagem deveria
referir-se a alguma categoria mais vasta, con,lparável à categoria da narratividade.
No caso -largamente maioritário, e até hegemónico, nas análises publicadas -
de filmes (mesmo tenuemente) narrativos, percebe-se que a imagem é sempre
definida também pela narração. .,
Aqui repetiremos o que já afirmámos sobre a análise textual e a análise do
filme como narrativa: também não existe m'étodo universal de análise nem para
a imagem nem para o som. Nesse campo, a atitude geral do analista implica:
1) qre saiba com exactidão até que pont? quer autonomizar a imagem na sua
análise (em especial, mas não unicam.ente, quanto à narrativa);
2) que conheça as funções gerais dos parâmetros visuais num filme e as suas
variações na história, e saiba, a partir daí, escolher uma linha directriz de
análise apropriada ao filme estudado;:
! 105
A ANÁLISE DO FILME

3) por fim, em caso disso, que de igual modo convoque, e adapte, um método
extrafílmico de análisé, mantendo-se consciente dos limites de uma tal
transposição. Em conclusão, não podemos proporcionar nenhum "truque",
nenhuma receita, mas apenas citar exemplos - conseguidos - dessa atitude
na prática.
Antes de apresentar esses diferentes exemplos de análises da imagem arbi-
trariamente divididos, sempre por razões de facilidade didáctica, entre análise
do enquadramento e do espaço narrativo, e análise da plástica e da retórica da
imagem, julgamos útil, como a propósito do texto e da narrativa, explorar em
algumas páginas o território da análise das artes visuais e sonoras, principalmente
da pintura e da música.

1. O CINEMA E A PINTURA
A comparação entre o cinema, a pintura e a música é tão antiga como os
primeiros discursos sobre o filme; não vamos aqui prolongar esse exercício retó-
rico mas traçaremos alguns pontos de encontro possíveis entre a análise fílmica
e as análises de obras picturais e musicais. Estas têm uma longa tradição, quase
tão rica como a análise da narrativa literária, e podem consequentemente, com
toda a legitimidade, servir como disciplinas de referência para a análise do filme.
É evidente que a análise plástica e rítmica tem um papel muito importante no
estudo de um filme experimental. Por outro lado, o modelo pictórico atravessa
toda a história do cinema, do mau gosto estético das primeiras Paixões, ao "novo
realismo" contemporâneo.
Recordemos de passagem, como prova, as citações de David por Abel Gance no seu
Napoleão (1927),as referências à pintura flamenga em A Quermesse Heróica, de Jacques
Feyder (1934), o fascínio de Eisenstein por EI Greco, o de Eric Rohmer pela pintura
romântica do século XIX, sem falar de Godard, cuja obra inteira é assombrada por certos
pintores e certas questões ligadas à representação pictural: as citações de Renoir, Klee,
Picasso, a partir de O Acossado, O Soldado das Sombras e Pedro, o Louco, passando por
Goya e Rembrandt em Paixão.

É claro que é impossível explicar todas as formas de análise dos últimos sécu-
los. Como em muitos outros domínios, o século xx teve tendência a considerar
na sua integralidade um corpus cada vez mais colossal, que depressa ultrapassou
os limites da nossa própria cultura para incluir as artes do mundo inteiro; se
aproximações formais como a de Arnheim, que já abordaremos, se mantiveram
relativamente raras, assistimos em compensação a um florescimento de métodos
críticos, históricos e analíticos na linha da "iconologia" de Erwin Panofsky, que
combina precisamente a consideração do contexto histórico das obras (em espe-
cial fontes externas, por exemplo escritas, susceptíveis de as clarificar) e a análise
formal e composicional. Mais uma vez, o cinema só indirectamente é herdeiro
da pintura, e por isso estas abordagens analíticas apenas pela sua inspiração geral
nos podem ser úteis (haveria aliás um interessante paralelismo a observar entre a
análise do filme e a análise da pintura nas décadas mais recentes, com tentativas
de "semiologização" da análise pictórica que não deixam de corroborar alguns dos
problemas da significação no cinema).

106
5. A ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM

1.1. A análise pictórica: alguns bxemplos


A análise das obras pictóricas desfruta de uma antiguidade muito mais conside-
1 rável, eyidentemente, do que a do cinema. Ela é definida por múltiplas tradições,
alguma's das quais remontam às reflexões d~ Platão sobre a imitação artística, que
também despertaram o interesse da teoria do cinema. Não se trata, para nós, de
desenvolver um historiaI das tradições analíticas da pintura, mas de demonstrar o
seu interesse para a análise do filme. Limitar-nos-emos a dois ou três exemplos.
I
I

1.1.1. Os salões de Diderot


Os célebres "salões" de Diderot, na verdade um dos primeiros exemplos con-
seguidos de crítica pictórica, são muito reveladores; desde o início impressiona a
extensãb das descrições, e sobretudo o seu carácter "ficcionalizado": um quadro dá
a ver um mundo imaginário (aquilo a que chamaríamos um universo diegético)
que o espectador-crítico que nele penetra e passeia sente, de certa forma, a partir
do interior. Para nós, que pelo menos um século de constantes revoluções formais
na pintura nos acostumou à ideia de que o quadro é antes de tudo "a disposição de
manchas de cor numa certa ordem", essa ade~ão que insiste num suposto conteúdo
da tela é algo surpreendente; mas é por isso precisamente que a lição é interessante
para o cinema (para o qual a importante questão da abstracção não é dominante):
nas suas análises, Diderot interessa-se sobretudo pela relação do quadro com o seu
espectador, com a "crença" que o quadro suscita, com a natureza da encenação
representativa, com os meios do efeito reali~ta; ou seja, com a táctica pela qual o
quadro melhor consegue "atrair, deter, agarrar" o espectador. Apesar do carácter
obsoleto de toda uma vertente do seu pensamento (a hierarquia dos vários géneros,
por exetnplo), aqui se encontra, no fundo, urta atitude relativamente "moderna",
que coloca problemas pertinentes para o cinema.

1.1.2. A percepção visual segundo Rudolph Arnheim


Por butro lado, um trabalho mais recente, de aparência bem mais formalista,
como o de Rudolph Arnheim sobre o enquadramento e a composição pictórica,
respeitaria igualmente ao domínio da análise pictórica - se bem que quase nada
tenha a ver com a de Diderot. Desejoso de provar (ou pelo menos de experimen-
tar) um~ tese geral (o carácter essencialmente "centrado" da pintura ocidental),
Arnheim examina, agrupando-as não por temas mas por modos de composição,
obras pictóricas de épocas muito diversas. Num capítulo que trata da acentuação
mais oU menos forte do meio (geométrico) do quadro, ele convoca, em poucas
páginas" descrições e reproduções de quadros de pintores tão diferentes como Franz
Kline, Ingres, Bruegel, Caravaggio, Fra Angelico, Picasso, Manet, Rembrandt,
etc. - e trata da mesma forma, por exemplo, quadros figurativos e abstractos.
"Quando vê pela primeira vez qualquer pintura, o olho tem de enfrentar uma situação
inédita: deve orientar-se, encontrar uma estrutura que possibilite ao espírito compreender
o significado dessa pintura. Seo quadro for figurativo, a primeira tarefa é compreender o
seu tema. Mas o tema depende da forma, da disposição das formas e das cores - a qual
surge em estado puro nas obras 'abstractas', não-miméticas".

É claro que não pretendemos com esta citação muito breve esgotar a substância
do livro de Arnheim, mas apenas assinalar o género de ensinamentos que podemos
107
A ANÁLISE DO FILME

obter para a análise fílmica. A primeira lição - na condição de só transpor o que


deve ser transposto - está nessa insistência no nível formal "puro". É sem dúvida
impossível retomar tal e qual as noções de centro, meio, composição e equilíbrio
plástico definidas para a pintura; é, além disso, muito raro que a compreensão do
"tema" de um filme coloque problemas do tipo que Arnheim evoca:(os quais em
compensação se tornam pertinentes para tratar, digamos, um quadro alegórico
como os que se pintavam no século XIX para o Prix de Rome23).
Em contrapartida, é sobretudo importante lembrarmo-nos de que um filme é
também uma obra plástica, que busca, pelo menos parcialmente, um certo tipo de
prazer dos olhos; e a seguir, estender à forma fílmica a noção de uma dependência
do tema em relação à forma. Por fim, podemos aqui notar, apesar da aparente
incompatibilidade das problemáticas, que nas suas análises Arnheim, tal como
Diderot, pensa sempre no espectador, na relação "estrutural", diríamos, entre os
olhos do espectador e a composição da obra.
I
1.1.3. Pesca Nocturna em Antibes (Picasso, 1939)
analisado por Rudolph Arnheim
Ainda para ilustrar o interesse da análise pictórica, vamos tirar um exemplo
concreto do mesmo autor: uma breve análise deste quadro.
Arnheim parte da hipótese de que, num bom quadro, a significação principal
se exprime directamente nas "propriedades da forma visual". Ele propõe-se seguir
o mais de perto possível o que se apresenta perante os nossos olhos, e empreende
um inventário descritivo pormenorizado. Distingue três zonas principais na tela
de Picasso: o painel vertical à esquerda, que representa a vila e o castelo medieval
de Antibes, o medalhão central dos dois pescadores no seu barco, rodeado de
luz e de peixes, e no painel da direita duas raparigas sobre um molhe de pedra.
Esse molhe, que se encontra em primeiro plano, liga-se a nós directamente, pelas
sólidas fundações das paredes na base do quadro: "Depois de assim transporta-
dos da esquerda para a direita no quadro, somos apanhados e retidos pelas duas
raparigas que, com a sua bicicleta e o seu cone de gelado, os cabelos ao vento e
os peitos salientes, parecem estar ali para representar os espectadores indolentes e
esteticamente alheados". Esse ponto de observação serve igualmente de barreira:
priva os pescadores de uma parte da comunicação directa que teriam com o
observador. "Picasso apresenta a cena central mais como algo para que se olha,
do que algo que é".
Arnheim consagra a parte central do seu estudo à análise da representação dos dois
pescadores, situados na cena central, "frontal e plana como uma fachada". Ele contrasta
as duas personagens. O pescador da esquerda, que se debruça na borda, olha fixamente
para a água; embora tenha um olhar intenso, ele é passivo, contemplativo. No entanto
anima-o um turbilhão de formas activas. "Está de bruços, cabeça mergulhada, os pés
no ar, a seguir um eixo oblíquo. Encontra-se simultaneamente no plano da frente e no
espaço tridimensional". Ao contrário, o arpoador em acção, à direita, está postado nas
direcções mais estáticas: "as horizontais do corpo e da cabeça, dobradas pelo paralelo do
braço esquerdo, tal como as verticais da perna, do braço direito e do arpão, constituem

23 Concurso anual criado pela Academia Francesa em 1663, destinado à atribuição de bolsas
de estudo na Académie de France em Roma aos artistas mais promissores nas artes plásticas, arqui-
tectura e composição musical. Muito prestigiado e popular, o Prix de Rome cessou, na pintura,
em 1968. (N. do T.)

108
5. A,' ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM

Picasso,Pesca Noeturna em Antibes, 1939. Nova Iorque. MJseu de Arte Moderna, Col. Simon Guggenheim.

no ,"u mnjonto om edlffolo "távelem


contradição
pó",1. A,"helm ~b,e,vo que "e"e g'nem de
paradoxal entre a natureza da acção represen~ada e a dinâmica das formas
que a representam não é raro nas artes. Assim,h' A RessurreIção, de Piero della Francesca,
o corpo do Cristo que se eleva é enquadrado de frente, mjma serena estrutura de hori-
zontais e de verticais, enquanto aqueles que dórmem, imóVeis, estão dispersos ao redor,
ao longo de diagonais vibrantes, que se sobrepõem de m~neira irracional".
I .
Arnheim questiona o sentido desse procedjmento forinal: "Com que objectivo é
aplicado em Pesca Nocturna em Antibes?": "Parece apropf:iado referir aqui que a tela
data de Agosto de 1939, quando a iminência da 11 Guhra Mundial ensombrava
o horizonte. À luz desse mau agouro, a matança dos Ipeixes no quadro adquire
um significado particular. Vista com a curiosidade indiferente das duas raparigas,
mostradas como criaturas de prazer e luxo, a l)erspectiva~do massacre parece irreal,
paralisada na sua repercussão pelo seu afastamento, pela incompatibilidade entre
a violência e o cenário alegre do porto mediterrânico". '
Uma transposição do método seguido por RudolphArnheim tropeça de ime-
diato numa dificuldade evidente: a mobilida,de da ima~em cinematográfica, que
praticamente proíbe qualquer análise compositicional ;do enquadramento (visto
que, em geral, as estruturas demonstradas na pausa não '1resistem" logo que o filme
corre no projector). Essa é a razão de aqui cit!armos, como primeiro exemplo, um
texto que conseguiu, pelo menos em princípio, superar essa dificuldade: a análise
de Fausto, de F. W. Murnau, por Eric Rohmer.

1.2. Fausto, de Murnau, analisado por Et,ic Rohmer


Esta análise não se dedica exclusivamenty a uma copsideração dos enquadra-
mentos originada pela ideia de composição; ela tenta píoporcionar um "quadro"

109
A ANÁLISE DO FILME

teórico mais geral para a análise da realização e, mais êoncretamente, da "orga-


nização do espaço" no filme.
Rohmer começa assim por definir três tipos de espaço que coexistem no filme, e a que
ele chama espaço pictórico (= a imagem cinematográfica como representação de um
mundo), espaço arquitectural (= partes do mundo, naturais ou fabricadas, providas de
uma existência objectiva) e espaço fílmico (= "um espaço virtual reconstituído no espírito,
com a ajuda dos elementos fragmentários que o filme lhe fornece").
Esta tripartição, aliás nem sempre evidente (ela coloca em especial o problema da
reconstituição do "arquitectural" no sentido de Rohmer, ou seja, daquilo a que chama-
mos profílmico), tem a vantagem de delimitar bem e de designar como parcial o carácter
pictórico da imagem fílmlca.

Na sua análise da imagem de Fausto como pictórica, Rohmer absteve-se muito


inteligentemente de qualquer uso de "grelhas" (género secção de ouro ou outros
cálculos proporcionais, de que tanto gostam alguns, e que tão poucos resultados
dão). Ele começa mesmo por observar que a picturalidade do filme de Murnau
provém sobretudo "de este ter optado por subordinar a forma à luz" (p. 17); a
iluminação de Fausto seria mais pictórica do que especificamente cinematográfica:
Rohmer também busca (nem sempre é o que mais convence no seu trabalho) apro-
ximações com pintores do claro-escuro como Rembrandt e Caravaggio. Quanto
ao desenho, segundo o analista, joga na prevalência da curva, e mais geralmente
numa vincada dinâmica interna ("nele, é o movimento que produz o desenho").
É nessa questão que a análise nos parece mais notável: Rohmer, graças a uma
utilização hábil de esquemas das linhas de força composicionais (decalcados no
ecrã da mesa de montagem, a partir das imagens do filme) sustenta a sua hipótese
de forma muito interessante, mostrando, por exemplo, como determinadas cenas
do filme se baseiam, plasticamente, num movimento convergente reconhecível ao
mesmo tempo na composição das imagens e no moviment024 (principalmente
das personagens) 25.
O livro é do mais exemplar quanto ao estatuto conferido a essa análise plástica
da imagem na perspectiva de uma análise mais global. Voltando, no fim da sua
obra, a definir e marcar" direcções privilegiadas", Rohmer reúne os resultados da
sua análise em dois grupos: o da expansão/contracção e o da atracção/repulsão.
Estes dois pares de conceitos representam, segundo ele, não só a característica
formal do trabalho plástico sobre o enquadramento em Fausto, como, além disso,
se vinculam directamente a uma realização baseada em aparições e desaparições
incessantes, e metaforicamente a uma simbologia do filme claramente estrutu-
rada pela forte divisão entre Bem e Mal. Mesmo se às vezes as suas conclusões
parecem um tanto forçadas no desejo de encontrar "a" fórmula que atravessaria
os níveis plástico, ficcional e filosófico, o método de Rohmer é exemplar por
nunca limitar a análise formal (neste caso plástica) nem a um apanhado insípido
de esquemas nem a uma fria estatística; pelo contrário arriscando, num terreno
à partida pouco favorável, avançar num caminho de interpretação plenamente
assumido como tal.

24 Ver atrás, p. 58.


25 Instituto Cinematográfico Estatal da União, o mais antigo instituto de ensino de cinema,
fundado em 1919 pelo realizador Vladimir Gardin. (N. do T)

110
5. A ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM

Poucos filmes se prestam, de forma tão clara como Fausto, de Murnau, a uma
análise composicional e plástica; e por isso são poucas as análises que alcançam
esse grau de concentração em tais problemas.
Já tínhamos encontrado essa preocupação num analista algo particular: Eisenstein. Nele
a análise fílmica (o mais das vezes a propósito dos seus próprios filmes) integra-se numa
reflexão muito mais ampla - que também envolve a realização (principalmente nos seus
cursos no V.G.I.K.*) e sobretudo a pintura (seria preciso citar aqui as suas numerosíssimas
descrições ou análises de quadros) - e por fim na construção de um sistema estético
abrangente, que engloba todas as artes plásticas.

2. A ANÁLISE DA IMAGEM FÍLMICA


Não retomaremos aqui as descrições, clássicas na teoria do cinema, da relação
entre enquadramento, montagem, ponto de vista e espaço narrativo. No capítulo
anterior evoc~mos parcialmente os problemas do ponto de vista sob o ângulo
narrativo. Vamos agora insistir em análises mais directamente centradas nos parâ-
metros visuai~, relativamente autonomizados da sua função narrativa (também
não insistirerrlos na relatividade dessa autonomia). Na seguinte ordem aborda-
remos: 1) a arlálise do enquadramento e do ponto de vista, 2) a montagem, mais
brevemente, 3) o espaço narrativo, 4) a "figurativtdade" da imagem fílmica.

2.1. O enquadramento e o ponto de ~ista: Tehelovek s


Kinpapparatom [O Homem da Câmara de Filmar]
Vamos su1)linhar uma evidência: antes de ser ur:nsignificante do ponto de vista
das personag~ns (o que já estudámos no capítulo 4, em 3.3.), um enquadramento
é também uni significante do ponto de vista da instância narradora e da enun-
ciação. Por exemplo, as "vistas" dos irmãos Lumiere, embora muito breves (50
segundos) e compostas por um único plano, supõem uma colocação da câmara
e, correlativarnente, o ponto de vista de um observador.
Um estudo de Marshall Deutelbaum aborda essasbreves bobinas dos Lumiere segundo
dois aspectos diferentes: um consiste em demonstrar uma certa estruturação da acção
ininterrupta apresentada; o outro em examinar a inscrição espacial dessa acção.
É nessa segunda perspectiva que o autor examina com muita precisão as escolhas de
enquadramento dos Lumiere (e dos seus operadores), enquanto selecção de um ponto
de vista sot;>reum acontecimento encenado, e de uma distância relativamente a esse
acontecimento.

Na sua análise do filme de Dziga Vertov, Jacques Aumont demonstra que a


utilização do enquadramento no filme como manifestação de um ponto de vista
implica que este não seja atribuível a nenhuma personagem, excepto a do próprio
"homem da câmara de filmar" 26, relativamente abstracta. Ele recorda a desconfiança
de Vertov, tantas vezes afirmada nos seus textos teóricos, face à visão espontânea
(para Vertov, 'nunca se vê senão o que já se viu), desconfiança acompanhada por
uma insistência verdadeiramente obsessiva pela visão como meio fundamental
e
de apreensão conhecimento do mundo. Estudar a imagem dos filmes de Vertov

26 As referências são fornecidas no fim do volume.

111
A ANÁLISE DO FILME

pode, apesar disso, parecer paradoxal, na medida em que o próprio insiste na


função essencial do princípio de montagem, pois ele é, antes de tudo, montador, e
raramente abordou nos seus textos a questão do enquadramento. Isso não impede
que O Homem da Câmara de Filmar se caracterize por um tratamento muito par-
ticular do enquadramento e pelas composições subtis e deliberadas. As imagens
do filme são meticulosamente compostas, e essa característica relaciona-se com o
próprio estatuto da obra, defendida pelo seu autor como filme-manifesto, filme
"teórico".
De seguida Aumont define as imagens vertovianas por uma série de caracte-
rísticas especificas: a imagem é primeiro que tudo uma vista no sentido primor-
dial do termo, implicando um ponto de vista, isto é, um ponto onde se coloca a
câmara: "Numa cinematografia sem cenografia nem realização, todo o trabalho de
rodagem concentra-se nesse movimento onde se determina o ponto de vista sobre
o acontecimento". Esse ponto de vista é então pensado como algo radicalmente
heterogéneo em relação à representação e à função narrativa.
A procura por Vertov de uma outra relação representativa (não-teatral) exprime-
-se por um acréscimo de centramento das imagens.
A fim de demonstrar essa hipótese, Aumont confronta a célebre Arrivée d'un train en gore
de la Ciotat [Chegada de um Comboio à Estação] ao não menos célebre plano de Vertov
que enquadra um operador deitado na linha férrea. Nos Lumiere a câmara está colocada
com toda a exactidão para apanhar o acontecimento na totalidade: "Solidamente insta-
lada no seu abrigo, a câmara deixa aproximar-se o comboio, ao mesmo tempo que ocupa
uma posição privilegiada relativamente aos movimentos no cais; quanto aos figurantes,
ordenam-se mais ou menos espontaneamente em relação a esse pólo da câmara, a que
atribuem claramente um poder, um mais-ver, sobre eles (... ) Quando filma um comboio,
o homem da câmara de filmar coloca-se de maneira muito diferente: entre os carris, na
posição de máximo risco, e também de uma relação mais 'directa' com o objecto filmado.
O homem da câmara de filmar não se enviesa"

Aumont relaciona essa maneira de tratar a profundidade com duas outras


características: a frontalidade do enquadramento e a distância da câmara à acção
filmada.
'Ele salienta os inumeráveis retratos de rostos que encontramos no filme; a
frontalidade da filmagem dos objectos (máquinas de escrever, manequins, auto-
móveis,autómatos ou copos de cerveja), a utilização abundante de superfícies e
de tons uniformes que duplicam a superfície do enquadramento: os cartazes, as
fachadas dos cafés, das lojas, o gosto por súmulas visuais violentas (a chaminé da
fábrica em contrapicado muito pronunciado, causando um efeito de perspectiva
que foge decididamente à tradição pictórica).
A distância mais frequente é a do plano aproximado, quando mostra os tra-
balhadores: "nem muito longe nem muito perto, a distância exacta que permita
garantir, e traduzir por imagens, a co-participação do trabalhador e do 'kinok'27,
esse outro trabalhador, na causa socialista". Pelo contrário, os burgueses de cale-
che são filmados de modo a visualizar a radical separação entre o operador e os
temas filmados: neste caso a encenação ostensiva da rodagem apresenta esta como
captura, queda na armadilha.

27 Os Kinoki ("olhos de cinema") eram um colectivo de cineastas organizados em torno de


Dziga Vertov no início dos anos 20. (N. do T.)

112
5. A ANALISE DA IMAGEM E DO SOM

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Tchelovek s Kinoapparatom
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[O Homem da Câmara de Filmar), de Dziga Vertov (1929).
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113
A ANALISE DO FILME

Tchelovek s Kinoapparatom [O Homem da Câmara de Filmar], de Dziga Vertov (1929).

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5. A ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM

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1I5
A ANÁLISE DO FILME

Esta análise das imagens de O Homem da Câmara de Filmar, de que só resu-


mimos a primeira parte, é de pleno direito uma análise fílmica, e uma análise
dos parâmetros constituintes da imagem desse filme. Para isso, o autor detectou
no corpo do filme, independentemente da lógica do seu desenrolar, uma série
de planos que tentam dar conta da totalidade do seu sistema visual. Os traços
característicos do enquadramento e do ponto de vista no filme remetem para uma
reflexão sobre a percepção visual: as relações semânticas entre os planos só existem
na sua coincidência com as relações visuais:
"O plano do eléctrico cortado em dois, se só o juntarmos à filmagem do divórcio, apenas
faz raccord ao nível semântico; próximo dos outros planos de eléctricos, que transforma
e trabalha visualmente, ele dá acesso a todo o resto do filme, muito provavelmente em
termos de sentido, mas também em termos visuais e mesmo plásticos".

Esta é de facto uma análise da imagem, sem nada de uma análise textual, nem
de uma análise da narrativa.
Da mesma forma, em várias análises de pormenor do seu livro sobre Dreyer,
David Borwell refere com insistência, como já assinalámos, casos de trabalho
"autónomo" da câmara em relação à narrativa - isto é, casos nos quais o ponto
de vista adoptado pela câmara, e as suas variações (especialmente nos chamados
"movimentos de câmara"), são mais ou menos independentes da posição das
personagens.
Numa análise muito rigorosa de Vampyr, e particularmente de A Paixão de Joana d'Arc,
Bordwell refere muitos casos, minuciosamente descritos (com o auxílio de fotogramas
belíssimos, deve dizer-se), em que a câmara ocupa uma posição, eventualmente móvel,
que é determinada antes do mais por uma lógica espacial e não por uma lógica narrativa,
e que pode abrir uma perspectiva, ou, pelo.contrário, optar por só mostrar determinado
espaço detrás de toda uma série de efeitos ópticos, portas, cortinas, etc. Bordwelldemons-
tra muito bem que esse tratamento do ponto de vista está relacionado com o do espaço
fora-de-campo, e com a ameaça potencial que este incessantemente representa nesse
filme de terror. Assim, "o tempo e o espaço narrativos já não vêm colados ao tempo e
ao espaço da câmara. Da lógica causal da narrativa, a câmara limita-se a registar certos
efeitos - pânico, sombras ou morte (... ) E do espaço da história, o enquadramento recorta
o seu próprio 'argumento', que às vezes se afasta bastante da dominante dramática".

2.2. A análise da imagem e a montagem,


a relação campo/fora-de-campo
Para além do enquadramento e da proximidade da câmara, a análise da ima-
gem fílmica pode tomar como objecto a relação de plano para plano, ou seja, a
montagem. De novo, limitar-nos-emos ao exemplo de uma análise fílmica centrada
principalmente na função da montagem na produção do sentido. Para semelhante
problema, é novamente difícil fugir a Eisenstein.

2.2.1. A montagem em Outubro, de Eisenstein


O exemplo mais revelado r parece-nos ser a análise do prólogo de Outubro,
por Marie-Claire Ropars (seguido de um segundo texto de Pierre Sorlin sobre a
mesma sequência) 28. Em "L'ouverture d'Octobre ou les conditions théoriques de

28 Referências fornecidas no final do volume.

116
5. A ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM

la révolution" [A Abertura de Outubro e as Condições Teóricas da Revolução],


Marie-Claire Ropars analisa os primeiros 69 planos do filme, que constituem uma
espécie de prólogo dedicado à queda de uma estátua do czar Alexandre m. É certo
que a análise não evita completamente o comentário à acção representada, e, por-
tanto, ao aspecto parcialmente narrativo desse prólogo (manifestantes derrubam
a estátua de um czar), mas ela privilegia radicalmente uma série de características
formais dos planos: tamanho, eixo, luz, profundidaq.e de campo, duração, fixidez
ou mobilidade, "tipo" de representação ("realista"ou francamente alegórica). Essas
características formais são analisadas sistematicamente no trabalho de transformação
que se opera de um plano para o outro: transformação, evolução, continuidade e
descontinuidade, falsos raccords, retrocesso. Essas Óperações constituem, a bem
dizer, o trabalho da montagem na sequência, visto que o conjunto desses 69 pla-
nos não dura m~is do que 2 minutos e 9 segundos, e o mais longo estende-se até
7 segund.os e 83 centésimos! (Certos planos têm pouquíssimas imagens - 0,16
segundos para o plano 66 - sendo, portanto, quase imperceptíveis; daí a necessi-
dade de os encarar na continuidade da montagem).
Marie-Claire Ropars, em função da lógica das acções representadas, e sobretudo das
continuidades formais, distingue sete sub-partes, da "construção" da estátua (através da
montagem) nos primeiros 9 planos, até à sua destruição, muito breve, em 3 planos. Ela
sublinha as contradições que marcam as transições entre os segmentos: passagem de uma
iluminação artificial nocturna a uma iluminação diurna quando os manifestantes surgem
na escadaria, descontinuidade dos lugares (a estátua, a 'escadaria, a praça das cúpulas, a
frente, o espaço das foices). Interessa-a particularmente o evoluir da representação do
derrube da estátua pela multidão: ascensão dos pés até a cabeça, em seguida desaparição
das personagens durante a tracção das cordas, aparição arbitrária e violenta dos planos
de fuzis, dos bastões erguidos no ar, e da floresta de foices, desaparição dos figurantes
após o intertítulo central e contraste entre uma iluminação nocturna semelhante aos
primeiros planos e uma iluminação diurna que permite inscrever a estátua num ambiente
parcialmente diegético, falsos raccords na queda dos membros da estátua, etc.
Esta minuciosa análise da montagem (tão sistemática como longa), que aqui
resumimos muito superficialmente, permite à autora alicerçar uma argumentação
teórica que integra e justifica todas essas observações: esta contrasta dois tipos
de representaçã? (vinculados a duas funções da montagem) - uma chamada
"discursiva", baseada na iluminação artificial, na descontinuidade, na ausência
de âncora referencial; a outra "diegética", assente numa certa continuidade das
acções e dos gestos, numa iluminação diurna, numa determinada profundidade
de campo, na presença das personagens ... No início, é a estátua que triunfa no
espaço alegórico nocturno; no final do segmento, el~ cai, em falso raccord, num
ambiente totalmente diferente, diurno, cercado pelas silhuetas de cúpulas em
profundidade dé campo. Segundo Marie-Claire Ropars, é a acção da montagem
alternada e dos planos de foices e de fuzis que provoca essa queda, por inversão
do modo figurativo dos dois campos presentes, enquanto, encerrada no espaço
diegético diurno, a multidão permanece inoperante.
O segundo exemplo que vamos tratar centra-se na análise da relação campol
fora-de-campo numa sequência, relação evidentemente produzida pela montagem.
Trata-se do estu~o de um fragmento de La Chinoise, por Jacques Aumont29•

29 Referências fornecidas no final do volume.

ll7
A ANÁLISE DO FILME

Oito planos do início de Outubro, de s. M. Eisenstein (1927).

118
5. A ANAlisE DA IMAGEM E DO SOM

, T

2.2.2. A montagem e o fora-de-campo em La Chinoise,


de Jean-Luc Godard
Estas notas sobre um fragmento de La Chinoise (1967) (72 planos, 8 minutos e
14 segundos) pretendem estudar o trabalho de reescrita do cinema clássico empre-
endido por Jean-Luc Godard segundo uma série de procedimentos de bloqueio
do sistema representativo da transparência fílmica. Trata-se de uma passagem
do filme que viii mostrando alternadamente planos de Guillaume (Jean-'Pierre
Léaud) a apresentar uma conferência política e uma série bastante heterogénea
de outros planos: outras personagen~ da mesma cena, as mesmas e outras (Serge,
por exemplo), que não pertencem à mesma cena, e muitos planos de desenhos e
fotografias.
Não há qualquer plano de conjunto a enquadrar todas as personagel)S, o que
todavia não impede o espectador de localizar empiricamente relações éspaciais
parcialmente lógicas (um referente textual global). Contudo, esse espaço referencial
é utilizado como suporte diegético de várias ficções relativamente autónomas (a
personagem do tigre de papel, Serge a escrever uma palavra de ordem com giz... ).
Aumont caracteriza a montagem godardiana como uma estratégia de duplicidade:
"por um lado, recuperação e reforço da construção de um espaço de tipo cénico,
e por outro produção de um equívoco, de uma incerteza, quanto ao estatuto de
certos planos relativamente a esse espaço". Essa duplicidade é fortalecida por uma
representação sistemática que consiste em dispor uma figura diante de um fundo
através da sobreposição de dois "planos", discretos e assinalados como tais, numa
sinalização reforçada pelo programa plástico' (grandes superfícies planas, paralelas
à superfície da imagem, com formas geométricas simples e cores saturadas) e pela
frequência muito pouco clássica de planos ~~ontais.Daí o efeito muito intenso de
homogeneidade icónica, de mono-tonia representativa. Este sistema retira aos planos
com "personagens" um pouco mais do seu valor cénico, e reforça a similaridade
entre estes e os diversos inserts de grafismos ou fotos que salpicam o fragmento.
Um factor de unificação vem juntar todos os planos do excerto sob a bandeira
da uniformidade e da frontalidade, assim bloqueando o processo de denotação
espacial, constitutivo da "cena" do cinema Clássico.
A análise aprofunda estas observações gerais através de um estudo pormenorizado das
relações entre fora-de-campo, contracampo e I!o.utrocall1PO''(o do espectador) numa série
de encadeamentos de planos. Ela apoia-se na primeira série que representa Guillaume
de pé, atrás da secretária, e outras personagens: Serge (Lex de Bruijn), Véronique (Anne
Wiazemsky), e Yvonne (Juliette Berto), para regressar a Guillaume, desta feita sentado.
A cada plano as direcções do olhar formarn uma série alternada com regularidade: cada
mudança de plano implica um "cruzamento", na imagem, dessas direcções. Essa con-
figuração retoma parcialmente a figura clássica dos raccords "vedorlvisto". Ora, como
sublinha Aumont, se na verdade esse enquadramento prod!Jz um sentido "normal" (o
relacionamentt> mútuo das personagens), ele não se efectua sem um certo "desconforto".
Este está ligado a vários motivos:
- esse encadeamento numa sucessão de raccords de olhares não possui o mesmo valor
afirmativo de 4m campolcontracampo clássico. De um plano para o seguinte, a câmara
não muda de direcção, parecendo antes deslizar: o seu ponto de vista permanece sempre
exterior ao círculo das personagens;
- a câmara parece deslocar-se paralelamente a urna linha imaginária que uniria as perso-
nagens, impressão reforçada pela frontalidade inequívoca da filmagem: "As personagens
marcam sucessivamente, e de forma acentuada, as bordas laterais do enquadramento,

119
A ANALISE DO FILME

Fora-de-campo. contracampo e "outro-campo" em La Chinoise. de Jean-Luc Godard.

120
5. A ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM

ou, em termos cénicos, os dois foras-de-campo laterais. Estes alargam o espaço cénico
e reforçam a frontalidade de cada plano individual".

Não iremos mais além ne~ta análise de La Chinoise que apoia estas primei-
ras observaçõeS noutras, baseadas em séries posteriores de planos, e as inscreve
numa reflexão mais teórica sobre a relação entre diegese e "cinescrita" no sentido
eisensteiniano do termo. Ela tinha o mérito de se interessar pelo estudo de uma
alternância não-clássica que desnatura a função habitual do fora-de-campo: a
primeira série sobre Guillaume (Léaud) funciona segundo o modelo canónico do
modo de instituição de uma realidade, e a segunda, em contrapartida, não possui
qualquer realidade cénica: ela joga com a repetição de um mesmo processo de
metaforização da cena política, localizável no conjunto do filme.
Também estiaanálise tinha como objecto a construção de um espaço cénico
independentemente de qualquer referência narrativa.

2.3. O espaço narrativo: A Regra do Jogo, de Jean Renoir


Num texto publicado pouco depois, o mesmo autor procurou delimitar o
sistema de representação próprio de Renoir nos primeiros minutos de A Regra
do Jogo (1939). O próprio título do estudo ("O Espaço e a Matéria") ostenta um
ponto de partida analiticamente não-narratológico e um interesse particular pelos
valores plásticos e icónicos presentes no exemplo escolhido.
Há muito que não só a teoria do cinema, como essateoria aplicada que é a análise, reco-
nheceram a consubstancialidade da montagem e do espaço fílmico. No seu primeiro
livro, que muito fez pela popularização da teoria do cinema, Noel Burch começava por
examinar "como se articula o espaço-tempo". Mais recentemente, e de maneira mais
claramente ligada à análise do filme, devemos citar principalmente o importante artigo
de Stephen Heath, intitulado, de forma elucidativa, "Narrative Space" (O Espaço Narra-
tivo). Partindo da observação do cineasta Michael Snow, de que "os acontecimentos têm
lugar" (em Inglês, events take place - que insiste mais ainda na apropriação do lugar
pelo acontecimento, pela narração), Heath mostra que no cinema narrativo clássico o
espaço constrói-se através de uma série de implicações do espect~dor (pelo mecanismo
dos pontos de vista e dos olhares), e que é nessa implicação que se constrói a narração
fílmica. O artigo começa e acaba com dois exemplos analíticos: um, uma sequência de
Suspeita, de Hitchcock, onde uma vez mais se prova a importãncia da estratégia dos olha-
res no filme clássico (mas também os constantes desvios, ao longo do filme, em relação
a uma suposta norma); outro, um excerto de O Enforcamrnto (Nagisa Oshima, 1968), em
que Heath assinala, desta vez, o distanciamento sistemático para com essasconvenções
clássicas, e a ausência do herói e do seu olhar onde, logicamente, seriam esperados.
O que por fim o ~rtigo de Heath sugere é que o cinema nar'rativo trabalha para transformar
o espaço (mais ou menos indiferenciado, mero resultado das propriedades miméticas
básicas do aparelho fílmico) em lugar, isto é, em espaço vectorizado, estruturado, orga-
nizado em função da ficção que aí decorre, e investido afectivamente pelo espectador
de modo diferenciado, em mudança indefinida a cada instante. Esseconstante entre-
laçamento dos olhares da câmara, das personagens e do narrador definiria, em suma, a
verdadeira fórmula básica do cinema narrativo.

Aumont propõe-se delimitar o sistema de representação do filme de Renoir,


abordando lateralmente o nível da figuração, dos efeitos de realidade, e o da
representação propriamente dita; e o lugar atribuído' ao espectador por um dis-
positivo fílmico de comunicação vinculado aos dois primeiros níveis (figuração/
representação). I <

121
A ANALISE DO FILME

Aumont toma o par "figuração/representação" no sentido que lhe deram Jean-Louis


Schefer, Louis Marin e (a propósito do cinema) Jean-Pierre Oudart; nessa perspectiva, a
figuração é considerada produto de códigos pictóricos específicos (em particular os da
analogia figurativa) que induzem um efeito de realidade, sendo a representação aquilo
que, dessa figuração, faz uma ficção; a passagem da figuração à representação opera-se
graças à marcação do lugar do sujeito-espectador no quadro, processo cuja consequência
subjectiva é a produção de um "efeito de real" (impressão de existência de figuras que
sejulga terem no real o seu referente).

O começo de A Regra do Jogo, inserido de forma clássica entre duas fusões,


compreende quatro fragmentos sucessivos: o aeroporto, o apartamento dos La
Cheyniest, o serão em casa da Senhora de Marrast, e a discussão entre Robert e
Genevieve na manhã seguinte, no mesmo apartamento (34 planos no total).
Após a recepção entusiástica a André Jurieu no aeroporto de Bourget e a
"inverosímil panorâmica-travelling que inaugura o plano e o filme e que logo de
122
5. A ANALISE DA IMAGEM E DO SOM

Início deA Regra do Jogo, de Jean Renoir (1939).

início arrasta o espectador e o deixa suspenso num fio, o do microfone e o da


narrativa", o filme introduz-nos, com bastante brutalidade, no apartamento dos
La Cheyniest.
O primeiro plano do interior do filme logo descobre um espaço em profun-
didade, onde a perspectiva se apoia, tal como na pintura clássica, em toda uma
série de truques para os olhos (veja-sea reprodução do plano 7): principalmente o
pé do candeeiro, à esquerda, e a cortina à direita, cuja produção de efeitos sump-
tuosos de realidade não permite que lhes sejamos indiferentes. Nunca como aqui
o enquadramento foi tão parecido com a "janela aberta sobre o mundo" de que
falava Alberti; tudo se passa como se a câmara, durante esses planos de descoberta
do apartamento, estivesse por trás de uma das paredes da sala, que de repente se
tornara transparente ou invisível; observamos através de um espelho sem estanho,
e Christine, e em seguida Lisette, evitam o nosso olhar. O espaço é-nos oferecido
como unitário, penetrável, extensível.
123
A ANÁLISE DO FILME

o espaço é unitário, porque a suaconstrução emprega, sem asostentar, todas as"costuras" .


da realidade. A transparência, discretamente negada por uma espécie de "exibicionismo"
do enquadramento, é, não obstante, garantida no essencial por um jogo de constantes
reenquadramentos no interior dos mesmos planos, pela riqueza sóbria, na sua diversi-
dade, do trabalho de raccord (movimentos, gestos, olhares), e enfim pela repetição, nos
vários planos, de todo um sistema de formas recorrentes:
- ele é todavia penetrável, como demonstra, não sem afectação, o conjunto de planos
de Christine no toucador, ou como confirma a amplitude, a variedade e a flexibilidade dos
movimentos de câmara que acompanham as deslocações incessantes das personagens;
- ele é extensível, porque baseado no jogo combinado e acentuado da perspectiva e
da profundidade de campo, e na multiplicação dos efeitos visuais, portas de corredores,
espelhos. Mais tarde, na festa do castelo, tal será ainda sistematizado: o espaço não
cessará de expandir-se, exuberante.

O espaço da cena seguinte, na casa de Genevieve, é mais obviamente unitário


por integrar um plano-sequência. Mas agora não se trata de penetrar no espaço, ou
de o estender. Percorrido por movimentos de câmara que parecem assentes numa
dobradiça, o plano decompõe-se, escande-se, encadeia-se em si mesmo, sem que
consigamos transpor a "rampa" invisível que nos separa das personagens.
Realçado por essaincapacidade de o atravessarmos,e também pela insistência dos olhares
em evitá-lo absolutamente, a realidade oculta do cenário teatral nunca como aqui está
tão presente. Teatro algo particular, mas teatro mesmo assim; a câmara desliza como
poderia ser um cenário a deslizar - com naturalidade relativamente à ficção: estamos
no espaço da mentira e da exibição mundanas.

Um breve encadeado e a personagem de Genevieve conduzem-nos à cena "da


manhã seguinte": reiteração da ligação e precaução retórica não isenta de duplicidade,
pois ao mesmo tempo esse "mesmo" lugar é irreconhecível: o fundo da cena abriu-se
numa vista para o Trocadero, a mesa de bridge já lá não está e sobretudo a coluna
que dividia o salão em dois desapareceu como por encanto; os dois budas, mudos
e pouco visíveis, ficaram como únicos pontos de referência. E desta vez o espaço é
tratado por uma escrita estritamente cinematográfica, precipitando-se rigidamente
numa implacável sucessão de camposlcontracampos (com a consequente ampliação
da grandeza dos planos) apertada entre dois planos para localizar a acção.
O espaço é muito praticável: entra-se nele com a câmara, mas na posição de terceiro
excluído que a sutura implica; somos apanhados no mecanismo da escrita cinematográfica,
aqui utilizada sob a forma da mais forte e codificada das figuras de raccord. No fundo é
um bom exemplo da transformação mais simples e mais canónica que o cinema pode
efectuar na cena teatral: um bom exemplo, clássico, da cena fílmica.

Com estes três fragmentos sucessivos, temos três variantes, três amostras de
um mesmo sistema de representação, aquele que se baseia na postulação de um
certo espaço referencial apercebido como real, através de uma construção abstracta,
convencional, assente nUm duplo conjunto de procedimentos: os da profundidade e
os do raccord e da sutura. Para esta grande unidade de princípio, a individualização
de cada momento e de cada cena é apenas questão de escala: o espaço é mais ou
menos penetrável, mais ou menos isotrópico, mais ou menos contínuo. Não que
as diferenças se anulem: assim, o espaço "mundano" do espectáculo e da mentira,
o apartamento de Genevieve, opõe-se fortemente ao espaço íntimo onde se joga
a verdade, em casa de Christine; mas há uma preocupação singular de garantir
uma denotação espacial coerente e clara.
124
5. A ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM

A análise detém-se em seguida no sistema representativo em funcionamento nos


primeiros planos (no aeroporto de Bourget), para sublinhar a diferença destes; o sis-
tema é constituído por fragmentos de espaço sobrepostos. Aumont mostra como essa
"desfiadura" do espaço representado é acompanhada por um discurso sobre a "cor",a
densidade do negro que os flashes ofuscantes dos fotógrafos rompem, e de onde por
duas vezes emerge fugidio o fantasma leitoso do avião Caudron; e sobre a luz, com os
reflexos dançantes do inquietante microfone de Use Elina,dos seus cabelos, dos fuzis
dos guardas, na própria textura da imagem: os movimentos da multidão, tratada como
massa indistinta, montões de cinzento, manchas a que se não dá tempo de ganhar figura,
como se o espaço fílmico já só consistisse nas suas partes iluminadas.

2.4. Plástica e retórica da imagem: a máscara e a Íris em


Nosferatu, eine Symphonie des Grauens
As análises anteriores não estiveram isentas de considerações plásticas. O
arbitrário da nossa apresentação da análise do enquadramento, da montagem e do
espaço narrativo deveu-se apenas aos objectivos didácticos, e muitas vezes, como
já notámos, as fronteiras entre estas diversas análises são frágeis. Vamos agora
abordar uma análise da iconicidade de um filme através de todas as suas extensões
plásticas, retóricas e, mais alargadamente, culturais, apoiando-nos no ensaio que
Michel Bouvier e ]ean-Louis Leutrat consagraram a Nosferatu, eine Symphonie des
Grauens, de F. W. Murnau (1922).
O livro de Bouvier e Leutrat, surgido em 1981, figura entre as análises fílmicas mais ricas
e densas publicadas em França. Elecompreende duas partes distintas: a primeira analisa
o filme global e sinteticamente em oito capítulos, e a segunda inclui documentação
histórica exaustiva e uma sequência fotogramática integral.
O método seguido inscreve-se na herança da iconologia de Panofsky::todos os elementos
do filme são escrupulosamente dissecados e clarificados por numerosíssimas referências
culturais aos valores metafísicos e plásticos do romantismo alemão. O modo de exposição,
muito pouco didáctico, refreou sem dúvida a influência que este notável ensaio deveria
ter conhecido desde a sua publicação. O estilo dos autores é às vezes bastante difícil;
procurámos re'produzi-Io a fim de lhe assinalar a personalidade. Incluimo-Io também
no nosso quinto capítulo como ponto cimeiro das análises da imagem porque as suas
perspectivas não são nem textuais nem narratológicas; voltaremos a ele no capítulo 7
("Análisee história do cinema").

Bouvier e Leutrat dedicam-se principalmente a d~terminar, na totalidade do


filme, as utilizações da superfície do enquadramento destinadas a produzir efeitos
de terror (ligados ao emprego da técnica da íris), efeit~s de realce (os fundos lumi-
nosos "não motivfldos"), efeitos metafóricos (recorrência de certos motivos gráficos
ou geométricos) e efeitos emocionais (uso de linhas oblíquas). Vamos reter alguns
exemplos que nãQ dispensam, evidentemente, o conjunto da análise dos autores.
No início do capítulo 2, Bouvier e Leutrat fazem a aproximação do célebre plano
de Ellen, vestida de negro, sentada num banco junto do cemitério, à beira do oceano
(plano 325, ver f9tograma), a dois quadros não menos célebres de Caspar David
Friedrich, Mulher à Beira-Mar e Cemitério de Convento. Os autores observam:
"Nas telas desse artista, as imagens do mar, das falésias, as cores frias, a própria
luz ou o enquadramento acabam por fazer vacilar a autonomia do sujeito que olha,
servindo a expressão para que se imponham as aporias da distância".
Na imagem de Nosferatu, Ellen está colocada na fronteira entre as vagas,
"transportadoras da ameaça mortal, e as terras de onde surgirão os seus amigos".
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125
A ANÁLISE DO FILME

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Plano 325 de Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, de F.W. Murnau (1922).

Mulher à Beira-Mar, de C. D. Friedrich.

Falésias de Cré na Ilha de Rügen, de C. D. Friedrich.


Winterthur. Fundação Reinhart.

126
5. A ANALISE DA IMAGEM E DO SOM

i
Plano 259 Plano 443

Plano 269 \ Plano 384

O que ela contempla é o mar, e o vazio. Essas imagTns, após uma abertura com
íris, permanecem delimitadas por uma máscara, qs autores indicam que se a
abertura com íris pode figurar o aumento da luz a pa~tir da obscuridade, também
pode lembrar eS$aindiscrição ou esse voyeurismo cujb motivo tantas vezes se ins-
creve nos contos i fantásticos românticos (por exempl~, em O Homem de Areia30).
O fantástico liga-se aqui a um certo retiro, e "essa fuga anónima equivaleria ao
movimento que ~liferea aparição do monstro, tal corlto ele costuma ser descrito".
A máscara traz assim algo de inquietante - como se ~a sua sombra se refugiasse o
marginal. A sua aliança com os planos aproximados das personagens que olham,
ou com os enqu~dramentos "assinalados" (como a ptimeira imagem do filme, o
plano picado de Uma torre) faz com que a presença ~ó se torne sobretudo signi-
' Imagem
ficante (na i) d"e um In ' d"IZIveIque a ameaça, ou
I d o pressentimento
' que a
assombra". Para Bóuvier e Leutrat, a composição de cehas telas de Friedrich, como
Falésias de Cal nd Ilha de Rügen, oferece o equivaleritclde uma máscara fílmica: o
primeiro plano dÁservas e árvores compõe uma formalcircular sombria que rodeia
as falésias branca~ recortadas sobre o mar. Eles observab que o filme propõe várias
vezes ao espectad<>fo revezamento do olhar e um charbamento a cada plano: "mas
a estranheza conquista esses planos onde o olhar par~ce só afrontar o infinito, e
se perde, imóvel çomo o de um morto (planos 259, 4!43), ou fascinado, sujeito à
vertigem (269) oU ao horror (384)". :
No capítulo 5 lOSautores expandem a súa análise de~safunção muito particular
da máscara e da íris no filme. Numerosos planos aproximados de personagens a

30 Der Sandmann, no original, é um conto fantástico de E. )'. A. Hoffman, datado de 1815.


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127
A ANÁLISE DO FILME

olhar são revestidos por uma máscara: a fragmentação que essaproximidade implica,
assim como a eliminação do fundo e da profundidade de campo, é reforçada por
esse sinal, "de modo que esses planos não contribuem para escorar a unificação
cenográfica, e não pedem necessariamente um contracampo". O perigo não reside
num determinado ponto de vista que permita relativizar a distância ao Outro. Nas
Íris, "a ameaça que emana de uma impessoalidade difusa na atmosfera, dissolvida
no ambiente, arranja maneira de se fixar, parece surgir do próprio marginal, para
onde se teria retirado a presença anónima que lhe está na origem".
Um exemplo:
Um plano em picado revela, desde a primeira imagem do filme, por trás de um campanário
que desfigura o enquadramento, a vila ao fundo. No extremo oposto, o filme termina
com um contra picado da silhueta do castelo em ruínas a recortar-se sobre o céu. Nessa
última imagem já não existe máscara nem ameaça; em compensação, desde a primeira,
essaameaça iminente, mas oculta, confirmaria pela emoção uma divisão essencial e trá-
gica. A sombra circular das máscaras e íris,figurando uma ameaça à identidade, de certa
forma avalia a autonomia concedida às personagens. Graças a esses efeitos de máscara
nasce o pressentimento do tema, e impõe-se a atribuição a um poder anónimo, centro
absoluto, irradiante, dessa dependência aterradora.

A Íris pode aparecer, ainda segundo a análise de Bouvier e Leutrat, como


"uma secção de cone que serve para um~ representação geométrica elementar da
perspectiva", equivalendo as aberturas e fechamentos com Íris a movimentos dessa
secção. Nesse sentido, ela manifestaria indirectamente um processo de apropriação
e domínio. O enquadramento não seria uma janela, mas o desdobramento da
demarcação pela Íris; a acentuação da centralidade e o ponto de vista insistente
que ela parece traduzir permitem intensificar o princípio de inquietude e suspeita
que ela imprime às imagens.
Os autores notam que o par desse procedimento que constitui o emprego de
máscaras pode encontrar-se no recurso a feixesde luz extremamente viva, focos que
desenham um círculo branco atrás das personagens, de modo que as formas não
parecem determinar-se tanto pelo próprio movimento, como excluídas, removidas,
expulsas de um "sem fundo", ou de um fundo mais primordial do que o fundo
delas, parcialmente inundado de claridade por esse feixe (veja-se os planos 259,
378,586, com Nosferatu, ratazanas e Knock). Através dessa ruptura, aquilo que
se realiza diante dessa mancha de luz e que irrompe, como fantasma recortado
do fundo, não é o que habitualmente fica escondido na evanescência profunda
que o claro-escuro sugere. Daí o carácter frequentemente plano das figuras assim
iluminadas, e a impressão de sombra que elas exercem, pela sua própria natureza,
sem que se alimentem romanticamente dela.
No quarto de Hutter no castelo, uma zona violentamente iluminada, circular, não motivada,
provoca um contraste extremo com astrevas densas que se abrem imediatamente além
da estreita porta ogival, penetrando no aposento (ver plano 222 e seguintes). Graças a
esse foco luminoso, Nosferatu é arrancado das trevas, e a própria irrupção dessa som-
bra, associada à lentidão inelutável da sua aproximação frontal e à sua rigidez, revela-se
aterradora - uma luz lateral sublinha o contorno da personagem à esquerda; esse efeito
não se pode reduzir ao efeito criado por uma contraluz. Quando o vampiro abandona
Hutter, ele é engolido pela sombra, ou antes, funde-se nela, uma vez transposta de novo
a ombreira da porta. É por uma emergência semelhante das trevas que ele aparece pela
primeira vez (plano 144):emanando de uma zona de sombra limitada pela curvatura de
uma passagem, ele avança e imobiliza-se; a sua progressão, porém, não parece gradual,

128
5. A ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM

Plano 586 Plano 378

Plano 222 Plano 144

lembrando mais uma aparição: o efeito é sem dúvida menor que nos planos já descritos
(222 e seguintes); isso deve-se a que agora apenas um arco branco assume a função de
foco. A aparência torna-se aparição, e certas imagens revestem um carácter quase aluci-
natório, como o rosto de Nosferatu, diagonallivida na chanfradura, única parte iluminada
do caixão, ou as fachadas degradadas, sem espessura, da casa do vampiro, ou ainda a
perspectiva exageradamente centrada dos caixões transportados numa rua.

O foco luminoso junta-se aos processos de abstracção caros à estética expres-


sionista. Às vezes a contractura31 das formas chega a um certo geometrismo:
o motivo da quadrícula de ortogonais na cela de Knock. Reencontramos esse
carácter geométrico nas grandes portas cruzadas da casa dos Harding, na fachada
dos Hutter, e nos batentes e nas travessas das janelas no interior dessa casa, assim
como nas entradas da morada citadina do vampiro. Esse motivo confere às imagens
um inegável carácter geométrico, associado exclusivamente a certos momentos da
narração, e que se multiplica, se exceptuarmos a sua ocorrência no escritório de
Knock, a partir da chegada iminente de Nosferatu à vila.
Poderíamos prolongar as referências retomando a análise das direcções expres-
sivas e da convergência das linhas oblíquas, que Bouvier e Leutrat desenvolvem
magistralmente a propósito do enquadramento de Nosferatu no veleiro Demeter,
enquadramento do vampiro mas também do cenário, dos estais, do cordame, das
vergas e das velas; mas parece-nos que o exemplo da Íris e do foco luminoso que já
citámos comprova uma estratégia de análise fílmica das componentes da imagem
tão original quanto bem dominada, pelo que ficamos por aqui.

31 Estreitamento da parte superior de uma coluna.

129
A ANÁLISE DO FILME

2.5. A imagem e a figura: Aurora, de F. W. Murnau


Ainda com maior amplitude, certos teóricos e analistas propuseram a ideia
de uma espécie de "retórica da imagem generalizada", enunciando a existência
de figuras localizáveis em diferentes níveis do filme (nas diversas componentes
da imagem, mas também na montagem, e mesmo na narrativa). No seu livro Le
Signifiant imaginaire [O Significante Imaginário], Christian Metz consagra um
extenso capítulo ao exame minucioso da natureza dos fenómenos "figurais" no
significado. Ele propõe uma grande divisão em dois tipos fundamentais de figuras,
a metáfora e a metonímia; a primeira baseia-se na disjunção e na semelhança; a
segunda, na ligação. Para Metz, a figura central no filme é a metonímia, presente
em particular no raccord (visto que este consiste em ligar dois elementos - dois
planos - diferentes, entre os quais todavia existem partes comuns). Dudley Andrew,
um dos críticos de Metz, propôs o contrário: considerar essencial ao discurso
fílmico mais a metáfora do que a metonímia.
O que, para Andrew, constitui a importância da figura, é que a interpretação, segundo
ele, é infinitamente mais importante do que a análise estrutural. Ora precisamente a
figura, na medida em que é uma "complicação" da linguagem, uma sua distorção, é uma
via de acesso bem mais evidente e imediata ao significado. Além disso, a maioria das
convenções da linguagem cinematográfica (códigos ou subcódigos) começaram por ser
figuras: assim, se hoje um encadeado denota a passagem do tempo, é apenas porque,
durante tanto tempo, ele figurou de maneira tangível, imediatamente compreensível,
essa proximidade física de cenas imaginariamente separadas. No seguimento de Paul
Ricoeur,Andrew propõe considerar essenciala figura da poesia: a metáfora, "que reorienta
completamente o significado em relação à situação na qual ela é utilizada".

São muito escassasas análises de filmes que pretendem descreveressenível figuraI


(embora bastantes filmes - e não só os filmes mudos, como muitas vezes se julga-
pareçam prestar-se a este género de abordagem). O trabalho de Eric Rohmer sobre
Fausto, que resumimos no começo do capítulo, é obviamente um exemplo maior.
Vamos fornecer outro, bastante diferente na sua inspiração, e devido precisamente
ao próprio Dudley Andrew, que analisa Aurora, outro filme de Murnau. Assim, nos
quatro planos que no início do filme formam um segmento autónomo, agrupado
sob o título "Summertime - Vacation time", Andrew realça quatro "paradigmas"
gráficos que, segundo ele, desempenham em separado um papel-chave no drama
visual. O primeiro representa a estação ferroviária, primeiro sob a forma de pintura
e a seguir (sem transição) como maqueta animada. Andrew lê aí, em primeiro lugar,
o conflito entre naturalismo e expressionismo que, segundo ele, está presente no
filme todo, e do qual dá exemplos na representação dos actores e no cenário; e, em
seguida, uma espécie de emblema do processo de "transmutação interna" que em
Murnau caracteriza sistematicamente o tratamento das acções. O segundo plano,
uma locomotiva que passa em diagonal, cruzando-se com outra para formar um X,
é um emblema do conflito; de igual forma, Andrew descobre que é precisamente
nesse esquema da diagonal que se constrói a cena da tentativa de assassínio no
lago (enquanto as diagonais estão fundamentalmente ausentes, por exemplo, de
todas as cenas da cidade). O terceiro plano, que reúne em "split screen" um navio
paquete e uma jovem à beira de uma piscina, e na qual um banhista, a meio do
plano, entra de repente pela parte inferior do enquadramento, sugere o poder
dó não-visto e do não-enquadrado em Aurora - e o sentido em que Murnau usa
130
5. A ANAUlSE DA IMAGEM E DO SOM

Plano 3 I Plano 4

esse poder (o terror). Por fim, o quarto plano mostrl os passageiros, dispostos no
paquete, numa composição reminiscente de tantos ~uadros, m\ls complicada por
dois ligeiros movimentos: um veleiro atravessa a partd superior do enquadramento,
e a câmara desliza lentamente para diante. Essas du~s características - picturali-
dade da composição e importância do movimento db câmara -' são as duas bases
unanimemente reconhecidas do "estilo Murnau", e tndrew não tem dificuldade
em encontrar-lhes a "aplicação" e o "desenvolvimen~o" no resto do filme.
Naturalmente, só deixamos aqui um breve relance, talvez involuntariamente
caricatural, do procedimento desta análise. É inútil referir que percorrer assim
um filme, a partir de quatro imagens formuladas c.omo síntese emblemática, é
aventuroso, e só se pode tentar se houver boas razões para supor uma enorme coe-
rência plástica e estilística desse filme. Na maioria dbs casos, o'uso de metáforas
(ou de figuras pertencentes ao registo metafórico) é ;infinitamente mais restrito,
mais localizado e menos "orgânico", do que Andre* supõe neste caso. Logo, é
impossível transmitir recomendações gerais para esté tipo de análise - que, mais
explicitamente interpretativo do que outros, exige! também mais ptudência e
subtileza. No máximo, podemos vincar que a melhQr segurança, aqui e não só,
continua a ser o conhecimento histórico dos estilos fíl.picos: só ele permite apreciar
a verosimilhança de determinada hipótese relativa aQemprego do nível figuraI.
I

131
A ANÁLISE DO FILME

3. A ANÁLISE DA BANDA DE SOM


Esta ordenação do desenvolvimento da análise do som no cinema depois do
exame das relações entre cinema e pintura e da análise da imagem deixa mais
uma vez supor uma hierarquia de que é vítima o elemento sonoro, e uma relação
de dependência com a imagem; esperamos desmenti-lo, e demonstrar que, se há
alguns anos as análises fílmicas centradas na banda sonora eram ainda raras, a
situação parece ter mudado para melhor desde então.
É certo que, desde a invenção do cinema falado, a banda sonora está teoricamente em
igualdade com a imagem na construção do sentido fílmico: através dos diálogos ela
veicula, sem dúvida, boa parte das informações necessárias à narração. Não é menos
verdade que, ainda hoje, restam numerosos traços das teorias desenvolvidas entre finais
dos anos 20 e inícios dos anos 30 que definiam, quase todas, a especificidade do cinema
a partir da imagem em movimento.

Antes de abordara análise da banda sonora propriamente dita, a sua definição


e a diversidade dos seus componentes, julgamos útil regressar, a partir de um
exemplo muito particular, à tradição da análise musical.

3.1. O exemplo da música


A arte que sem dúvida mais análises suscitou foi a música. Mas devemos
acrescentar também que essa propensão à análise inscreve-se de certo modo na
natureza da própria arte musical - pelo menos numa parte muito grande da
nossa herança cultural. Nas sociedades ocidentais, com efeito, a música esteve
praticamente sempre, e o mais das vezes conscientemente, muito ligada à mate-
mática. As especulações dos séculos XVII e XVIII sobre a gama, os sons e as suas
proporções, conduziram, em todo o caso, a um sistema que ainda hoje sobrevive
plenamente, e que situa a criação musical no quadro traçado por um conjunto de
regras e algoritmos (o que os conservatórios ensinam com o nome de "harmonia").
Desde essa época - isto é, desde há mais de dois séculos e meio - existe portanto
uma análise "musicológica", potencialmente muito refinada e complexa, mas que
na sua essência nunca é mais do que a verificação da regularidade da obra, e da
sua conformidade ao cânone. Há pouco mais de cem anos, por exemplo, a opus
99 de Brahms, uma sonata para violoncelo e piano, foi violentamente criticada
por passar com demasiada ligeireza da tonalidade de fá maior para fá sustenido
menor. É certo que a atonalidade, o dodecafonismo e a música "concreta" muda-
ram muitas regras - e hoje é pelo prisma de um desses empreendimentos de
reconstrução tão apreciados pela nossa época historiadora, a saber, o movimento
de redescoberta da música barroca, que a musicologia reencontrou um campo
de actividade. Não é inocentemente que mencionamos esse exemplo, pois ele
está, nos seus objectivos, muitíssimo mais próximo daquilo que está em jogo
na análise fílmica. Se a análise musicológica stricto sensu (= determinação do
carácter regular ou não das obras) não possui equivalente concebível no terreno
da filmologia, o trabalho efectuado nas últimas décadas sobre a música do século
XVIII é instrutivo. Além do aspecto técnico (regresso aos instrumentos antigos, ao
diapasão da época, etc.), que não vem ao caso, o que este movimento propôs foi
na verdade uma nova compreensão de um fenómeno cultural do passado. Para
132
5. A ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM

referir só um exemplo - embora central - a ideia de que a música barroca é um


discurso inteiramente dominado, em termos estiHsticos, pelo exercício de uma
retórica rigorosamente estrita, teve consequências incalculáveis, quer na própria
execução dessas obras, quer (o que é mais importante) na concepção que temos
delas; essa noção de retórica, especialmente se a levarmos a sério, como parece
que devemos, 'ultrapassa grandemente o discurso ,musical numa vertente que a
priori não lhe parece consubstanciaI: a do sentido. A música barroca, por se apoiar
nessas regras retóricas precisas, teria proposto um sistema de correspondência
entre som e sentido quase definitivamente codifi~ado; o que significa que ela
estava mais copsciente desse problema do sentido; e o resolveu melhor, do que
por exemplo toda a música "de programa" do final' do século XIX. A ideia parece
interessante, quando consideramos as dificuldadd que ainda hoje experimenta
a balbuciante semiologia da música para tratar essa'questão do sentido. Ela tem,
em particular, o imenso mérito de assinalar (o que, na música, talvez seja mais
claro do que noutros casos) que o sentido não nasFe tanto de uma relação com
o real, mas de uma relação com convenções e códigos.
I
3.2. A análise do som fílmico: a noção de banda sonora
e os seus limites !
Um dos principais problemas na análise da banda sonora é que ela veicula fun-
ções múltiplas ao mesmo tempo, e sem que às vezeSseja possível fazer distinções
claras. Em primeiro lugar, e em relação à imagem, ela inclui muito mais material
não-diegético. A música fílmica, em especial, é sobretudo extra-diegética [Michel
Chion propõe designá-la como "música de fosso", por analogia com a música de
ópera, sendo então a música ouvida na diegese um4 "música de ecrã" (Le son au
cinéma, pp. 122-123)], mas esse também é o caso de uma proporção considerável
dos diálogos: em certos filmes, por exemplo na maioria dos documentários, mas
também em muitos filmes de ficção (exemplo: O Prazer, de Max Ophuls, 1952,
7he Saga o/ Anafahan, de Josef von Sternberg, 1953... ), o comentário tem origem
fora de diegese., Mais exactamente, poderíamos distinguir, nesse material extra-
-diegético, diferentes funções: explicação, caracterização, descrição, etc. Além disso,
a banda sonora compreende três tipos de elementos que diferem profundamente
na sua relação com o real (com o referente), e no tipo de representação do mundo
que envolvem. A bem dizer, as noções de "banda de som", "banda de diálogos"
e "banda de ruídos" pertencem ao vocabulário da prática técnica dos filmes, e a
esse título não são transponíveis tal e qual para o método analítico.
Muitos analistas e teóricos vêm sublinhando essa heterogeneidade da banda sonora e
propõem tipologias mais operativas para as matérias sonoras (música, diálogos, ruídos)
e das relações entre o eixo sonoro e o eixo visual (v.bibliografia final); assim o paradigma
clássico som in/som of( conheceu uma longa série de modificações terminológicas
que se baseavam na sua inadequação às particularidades verificadas nos filmes, e que
sugeriam classificações mais eficazes, desde os artigos de Daniel Percheron ("Le son au
cinéma dans ses rapports à I'image et à la diégese" [O Som do Cinema nas suas Relações
com a Imagem e a Diegese], de 1973), Serge Daney ("L'Orgue et I'aspirateur" [O Órgão
e o Aspirador], com os seus sons in, of(, out e through) e Roger Odin ("Son in vs son off')
aos livros de Michel Chion. Fixemos que a maioria dessas categorias dizem respeito
essencialmente à relação dos diálogos com a imagem considerada do ponto de vista da
diegese (da lógica audiovisual do universo representado).

133
A ANÁLISE DO FILME

De maneira mais radical, no seu livro Le Son au cinéma, Michel Chion


defende a tese da inexistência da banda sonora, que já esboçara no seu ensaio
anterior, La Voix au cinéma. Os seus primeiros argumentos têm a ver com o
carácter «depositário" e enganador da noção de banda sonora, pois ela postula
que os elementos sonoros reunidos num único suporte de gravação, a pista óptica
do filme, apresentar-se-iam efectivamente ao espectador como "uma espécieae
bloco coligado", ante uma não menos fictícia «banda de imagem". Para Chion,
os elementos sonoros de um filme são imediatamente analisados e distribuídos
na percepção do espectador segundo a relação que mantêm com o que este vai
vendo. E a partir dessa «orientação imediata" da percepção sonora que certos
elementos podem imediatamente ser "engolidos" na falsa profundidade da
imagem, ou arrumados na periferia do campo, e outros elementos (essencial-
mente a música e a voz de comentário) orientados para outro lugar, imaginário,
comparável a um proscenium. Uma outra ideia, aos seus olhos fundamental,
reside na hierarquia reiterada a favor das vozes: «no cinema 'tal como é', para
os espectadores 'tal como são', não existem sons entre os quais a voz humana.
Existem as vozes, e o resto. Por outras palavras, seja qual for o magma sonoro,
a presença de uma voz humana hierarquiza a percepção em torno de si mesma"
(La Voix au cinéma, pp. 13-15).
No capítulo intitulado «Pour (ne pas) en finir avec la bande-son" [Para (Não)
Acabar com a Banda de Som] em Le son au cinéma, Michel Chion combate a tese
clássica dos promotores da autonomia da banda sonora, e a reivindicação de uma
relação de igualdade entre esta e a imagem. Para ele, o som fílmico não pode ser
um «som em si mesmo"; ele é sempre veículo de um sentido, ou indício de uma
origem. Depois de recordar a bem conhecida heterogeneidade das várias origens
dos sons fílmicos (sons directos, bruitages, dobragens, etc.), o autor insiste nas
relações de precedência obrigatórias que se estabelecem entre esses sons: «(na mis-
tura) equilibram-se os níveis sonoros em função de critérios que começam por se
relacionar, muito naturalmente, com o efeito dramático ligado à acção e à imagem:
mas em caso algum com o equilíbrio intrínseco só da banda sonora". Segundo
essa análise, a frágil unidade da banda de som é sempre desfeita pelo espectador,
que divide o som por diferentes zonas e camadas, relativamente estanques entre
si, de relações com a acção e a imagem.
Na realidade, afirma Michel Chion, a "chamada banda sonora" costuma ser
não uma estrutura autónoma de sons que podem apresentar-se em coligação, um
bloco unido face à imagem, mas antes uma sobreposição, coexistência relativamente
inerte de mensagens, conteúdos, informações, sensações, que encontram o seu
sentido e dinâmica pela maneira como se distribuem pelos espaços imaginários
do campo fílmico.
Se nos permitimos esta breve digressão teórica, é porque a tese atrás resumida
parece-nos ir na direcção de ideias postas de parte com demasiada facilidade sobre
a necessária autonomia da banda sonora e do processo celeremente instruído da
relação de «pleonasmo" entre um som síncrono e uma imagem.
A fim de melhor pormenorizar com exemplos análises fílmicas dos elementos
sonoros, vamos retomar, sempre por motivos de facilidade, a tripartição clássica,
dece~to discutível como acabámos de ver, entre música, diálogos e ruídos.
134
5. A ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM

3.3. A análise da música fítmica


A música, já o mencionámos de passagem em 3.L, não é uma arte representativa
ou técnica de n!presentação propriamente ditas; o seu yalor "representativo",e mesmo
o seu valor "expressivo", são altamente convencionais, e dependem estritamente
de considerações históricas e culturais em constan~e variação.
A principal função da música nos filmes comerciais médios é acentuar o efeito de unidade
procurado p0r outro lado ao nível da narração e da in1agem. Deste modo, inúmeros fil-
mes americanos de série "B" dos anos 40 e 50 apresentam uma banda de música quase
ininterrupta, a sublinhar aqui e ali determinado acontecimento, mas na maior parte do
tempo a fazer-se esquecer, como a ligação de um molho (compositores como Miklos
Rozsae Dmitri Tiomkin - para só citar os melhores - são grandes especialistas do género).
Naturalmente a música também tem a seu cargo, de forma mais localizada e episódica,
"descrever" ou "exprimir" (ou ambas as coisas em simultâneo). Nos casos mais conscientes
de uma tal utilização da música, a colaboração entre o cineasta e o compositor prolonga-se
da rodagem à montagem: o exemplo canónico é, claro, o trabalho comum de Prokofiev
e Eisenstein sobre Alexandre Nevski e principalmente: Ivan, o Terrível, mas poderíamos
pensar também em muitos grandes cineastas, de Hitchcock (sobretudo nos seus filmes
com Bernard Herrmann) a Resnais (que em Providence usa magistralmente - não sem
ironia e distância - o estilo enfático de Miklos Rozsa).I
A análise da banda de música de um filme foi multo raramente tentada, e quase
sempre de filmes excepcionais. Assim, no seu livro ~obre Ivan, o Terrível, Kristin
Thompsonconsagra todo um capítulo à análise da banda de som -logo uma boa
parte à música ~ e outro às relações som-imagem. No ~omeço dos anos 60, a música
escrita por Giovanni Fusco para Hiroshima Meu Amor originou várias análises de
tipo musicológico, devido ao seu carácter inovador ~ ao seu papel relativamente à
montagem do filme: estudo de Robert Wangermee ("Hiroshima et la musique de
film") no livro colectivo já citado, estudo de Henri C,olpi em Défense et illustration
de la musique dtlns lejilm [Defesa e Ilustração da M4sica no Filme], e de François
Porcile em La musique à l' écran [A Música no Ecrã].
; I
Um exemplo extraído desse livro: I
"Os temas de,Giovanni Fusco para Hiroshima, Meu Amor demonstram com provas a
importância do ostinato rítmico. O tema "Musée" repete o mesmo motivo ascendente de
piano: sol, dó sustenido, fá sustenido. No final do tema :'Musée 2" intervém um staccato
nervoso da viola, repetido sem variações até à coda. Da mesma forma o andantino da
flauta piccolo no tema "Ruines 2" é ritmado por um infatigável sol sustenido do corne
inglês. Essamesma nota repete-se no tema "Ruines 3", acentuada ainda por um motivo
obstinado da viola: sol, fá sustenido bequadro, sol. A recuperação do tema "Corps",
no fim do filme, sobre a caminhada solitária de Emmanuelle Riva, acrescenta ao piano
solo um ostina,to de todo o conjunto instrumental, que se irá amplificando até afogar o
próprio tema". I

Trata-se de ~ma análise clássica, puramente interna, da partitura musical,


mesmo se os autores abordam por vias travessas a relação da música com a imagem.
Eis porque vam6s desenvolver um exemplo claramente mais focado na função da
música na significação global do filme: o estudo de Michel Chion consagrado ao
papel das árias musicais no segmento central de O Prazer (Max Ophuls, 1952):A
Casa Tellier, segundo a célebre novela de Guy de Maupassant.
Primeira con~tatação: o que Ophuls utiliza não é música original, mas arranjos
de temas de Offenbach, cânticos religiosos célebres e uma breve peça de Mozart.
Chion começa por analisar a distribuição das intervenções musicais nos três anda-
I I 135
I
I
A ANÁLISE DO FILME

mentos do filme: 1) na cidade, primeiro, na casa Tellier; 2) no campo (viagem, che-


gada à aldeia, noite), e depois na cerimónia religiosa (uma primeira comunhão); 3)
regresso por fim à cidade e festa no bordel. Ele distingue quatro elementos musicais
diferenciados, cada um com função e sentido diferentes, a que chama: 1) a dança
pot-pourri (amalgamando temas buscados a Offenbache à música ligeira do século
XIX); 2) a canção-tema (retirada de uma canção de Béranger, La Grand-Mere); 3)
o tema-cântico (Plus pres de toi, mon Dieu); e por fim 4) Uma peça de Mozart "tão
breve como sublime, para coro misto e orquestra, Ave Vérum".
A dança pot-pourri entra na parte 1 e na parte 3, associada à descrição do
bordel, de que é como a emanação, e às cenas que aí decorrem. Não se trata de
um verdadeiro tema ou leitmotiv, mas de algumas melodias pouco diferenciadas,
mescladas; a dança está ligada a uma amável agitação rítmica, vital e sumária.
A canção-tema, verdadeiro leitmotiv do filme, faz alternar uma estrofe e um
refrão que provém de uma célebre canção licenciosa de Béranger, La Grand-Mere;
os versos, trauteados, de que o filme só utiliza os decorosos, modulam um único
motivo: o lamento de não ter aproveitado melhor o tempo feliz da juventude.
Como diz o refrão: "Combien je regrette/Le temps perdu/Ma jambe bien faite/Et mon
bras dodu" [O que eu lamento/O tempo perdido/Minhas pernas bem feitas/E os
braços roliços]. Musicalmente, é um tema de queda, de lamento, de extinção. De
início puramente instrumental, depois cantarolado, pouco a pouco ele enfeita a
sua letra, que Rosa (Danielle Darrieux) transmite a todo o grupo. Em contraste,
não voltaremos a ouvi-lo no fim do filme, durante a festa em Ruão, na qual a
prioridade irá para temas de uma alegria mais anónima, imediata e intermutável
(o pot-pourri). ''A rotação melancólica com a qual estes se alternam na primeira
parte dá lugar a um sobressalto mecânico e desumano".
O tema-cântico, naturalmente associado à comunhão solene, ocorre menos
vezes, limitando-se à parte central. Tal como La Grand-Mere, o cântico Plus pres
de toi, mon Dieu surge numa versão instrumental antes de desvendar a letra. A
primeira aparição do tema, cantado por um coro infantil, interrompe literalmente
La Grand-Mere, de maneira inesperada. "Ele desce como um banho de sentimento
religioso, até aí recalcado". O seu papel é o de trampolim para uma música inédita
e restituída na íntegra, o Ave Vérum, de Mozart.
O Ave Vérum, numa transcrição instrumental, cai na igrejinha como um
raio de graça, a seguir a músicas litúrgicas mais banais e rotineiras. Ophuls evita
dar-nos a ver a orquestra fantasma que interpreta o Ave Vérum, mas destaca as
reacções dos eclesiásticos e dos comungantes, como se sofressem todos aquele
efeito fulminante.
"Vemos então Rosa,como que transportada por esse bloco de beleza e espiritual idade,
e depois, contagiada, toda a igreja desata num pranto, enquanto, por cima da música, a
bela voz de Jean Servais narra a cena com as palavras de Maupassant; na continuidade
do plano, a câmara sobe ao céu e desce, percorrendo e unindo, num movimento amplo
que descreve a igreja, todos os fiéis, e ao mesmo tempo o céu e a terra. Este Ave Verum
é, em A Casa Tellier, a pedra angular do edifício dramático concebido por Ophuls. Tal
como a continuidade musical da imensa curva melódica que forma estes três minutos
parece talhada num único bloco, é também uma continuidade que o percurso aéreo da
câmara procura tecer no espaço, estendendo uma teia frágil e instável que apanha os
comungantes e as prostitutas. Ousaríamos mesmo dizer que existe uma afinidade subtil
e deliberada entre o vibrato largo, excessivo, próximo da tremura, dos instrumentos de
corda que tocam Mozart, e o planar trémulo e oscilante da câmara".

136
5. A ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM

, I
Assim, por trás da diversidade heterogénea das qitações musicais, encontramos
em A Casa Tellier uma grande riqueza de situações e estatutos. A canção-tema é
a música flexível por excelência, de uma plasticida,de e servilismo ilimitados; de
dominante melódico-sentimental, ela cria ligações entre passado, presente e futuro,
por oposição ao ritmo fálico da dança pot-pourri, enquanto o objectivo do tema-
-cântico é intr6duzir a ruptura que marca o Ave verum, "genial inclusão que, após
a audição integral e a descoberto do tema-cântico, transfere maciçamente, sem
aviso prévio, 01 centro de gravidade para essa inesp~rada nova música".

3.4. A análise dos ruídos, dos ambien~ese dos diálogos


Há uma certa provocação em intitular esta parte colocando no mesmo plano
ruídos, sons-ambientes e diálogos; de facto, como sublinhou Michel Chion (que
resumimos em3.2.), no interior da banda sonora "existe a voz humana e o resto".
A autonomização da música impõe-se por si mesma, ainda que a análise tenha de
se esforçar par~ relacioná-la com a imagem. Mas talvez não seja inútil sublinhar
aqui o interess~ de considerar os elementos sonoros não-verbais e não-musicais,
mesmo que a categoria semântica do "ruído" permaneça bastante vaga. As fronteiras
que separam o yerbal e o musical do universo dos ruídos e ambiências sonoras são
muito variáveis' e historicamente flutuantes.
O exemplo clássico de confusão entre música e ruído encontra-se em Os Pássaros, de
Alfred Hitchcock: a música, maioritariamente electrónica, de Bernard Herrmann, incorpora
uma série de gritos de pássaros, mais ou menos transformados e deformados.
Este processo está na base de todas as partituras musicais escritas por Michel Fano para
os filmes de AI,ainRobbe-Grillet desde L'lmmortelle (1962)até Brincando com o Fogo (1975),
e os filmes de montagem sobre a vida dos animais em liberdade realizados por Gérard
Vienne e François Bel (Le Territoire des autres, 1971,La Griffe et /0 dent, 1975).
É pelo contrá'rio a confusão entre ruídos e diálogos que é central na construção do
universo sonoro dos filmes cómicos de Jacques Tati ou Pierre Etaix. O que dizem as
personagéns de As Férias do Sr. Hu/ot ou de P/aytime - Vida Moderna não tem qualquer
importância, tratando-se de uma espécie de rumor verbal das personagens (a iden-
tificação de uma pronúncia inglesa muito esquematizada será pertinente para um
turista, por exemplo). (O livro de Chion apresenta muitas análises do universo sonoro
de Jacques TatL)

A função dos ruídos no cinema despertou interesse sobretudo na altura em que


surgiram os filrbes falados, quando as convenções do verosímil ainda não esta-
vam fixadas. Alguns filmes especialmente inventivo~ nesse plano serviram como
terreno privilegi~do para os analistas que tentavam definir as condições estéticas
do cinema sono~o: dois exemplos são Aleluia, de King Vidor (1929) e Matou!, de
Fritz Lang (1931). I
I
A partitura sonora de Matou! é de uma riqueza excepcional, e privilegia de forma bastante
sistemática o sbm fora-de-campo (cuja fonte não é visível no plano): assim, o assobiar do
/eitmotiv musical, fornecido desde a primeira aparição do assassino,o grito dos transeuntes
na rua, o som do relógio de cuco da mãe de Elsie, os chamamentos dela, o relatório da
polícia lido em voz off, o ruído em off do prego que M tenta endireitar no sótão quando
é descoberto Relos criminosos, etc. i
Inversamente, foi o preconceito hostil ao recurso ~ palavra síncrona que nota-
bilizou Sob os Telhadosde Paris, de René Clair (1930).
137
A ANALISE DO FILME

Entre as tentativas de classificação dos ruídos, vamos citar a de Dominique


Chateau ("Projet pour une sémiologie des relations audiovisuelles dans le film"
[Projecto para uma Semiologia das Relações Audiovisuais no Filme]), que pro-
põe uma taxonomia baseada na proveniência, natureza e função desses ruídos, e
especialmente na sua relação com a imagem: uma hipótese de som "vinculado"
à imagem ou à diegese.
Poderíamos assim distinguir os sons fónicos (fonemáticos: discurso verbal; não-
-fonéticos: gritos, latidos, sussurros, zunzuns, etc.) dos sons não-fónicos (todos os
restantes). Da mesma maneira, certos sons são de proveniência humana, e os outros
de proveniência extra-humana (a distinção é de Pierre Schaeffer): por um lado a
palavra e os sons fónicos não-fonéticos, e também o ruído de passos, aplausos,
bofetadas, etc. (Chateau apoia-se no levantamento de ruídos de O Homem que
Mente, de Alain Robbe-Grillet; daí a frequência das bofetadas.) Por outro lado os
sons "naturais" (o marulhar das ondas, estalar da madeira, sussurro das folhas),
instrumentais (tambores, percussão) e electrónicos (ondas, frequências), sendo todas
essas categorias susceptíveis de sobreposições e deslocamentos de umas para as
outras: o marulhar pode ser musicalizado electronicamente, o "sol" de uma sereia
de barco pode encadear-se na primeira nota de uma partitura musical (exemplo
comprovado no início de Muriel, de Alain Resnais).
Para sintetizar e clarificar, Chateau propõe distinguir os sons concretos (ou jus-
tificados pela sua origem) dos sons musicais no sentido mais lato. Um som concreto
pode justificar-se directamente no filme ou indirectamente (sendo postulado pelo
universo diegético, como é o caso dos sons ambientes). A fim de contornar o instá-
vel par in/ojf, Chateau dispõe-se a substituir a noção de ligação: uma combinação
audiovisual encontra-se ligada quando o som e a sua fonte de emissão aparecem
simultaneamente; caso contrário, falaremos de combinação livre.
Dominique Chateau ilustra estas classificações com uma análise da banda
sonora de O Homem que Mente, cuja partitura musical concebida por Michel Fano
se caracteriza pelo enredamento do material submetido à bruitage e do material.
"musical", visto este integrar-se na chamada música "concreta". Na análise da banda
sonora de Muriel citada anteriormente como exemplo de abordagem de código a
um filme (capítulo 3, 3.1.), Michel Marie insiste particularmente nos códigos da
analogia auditiva, na natureza da captação do som e da mistura própria do filme
e no "realismo sonoro" assim produzido.
A banda sonora de Muriel é inteiramente pós-sincronizada e os níveis do som respeitam
asconvenções dominantes da mistura: a compreensão auditiva das palavras mantém total
privilégio; não obstante, o filme incorpora as lições da "revolução do som directo" que
"nocomeço dos anos 60 marca à evolução das técnicas. Os ruídos, muito frequentes, são
restituídos a um nível invulgar, tanto os sons in (interruptores, passos das personagens
no soalho do apartamento) como os sons em off (sereias e motores de barcos no porto
de Boulogne, muito próximo mas raramente presente na imagem); "o apartamento de
Hélêne (Delphine Seyrig) é sonoro como uma concha vazia", espécie de modelo reduzido
da cidade. As conversas na rua, sempre compreensíveis, sãofrequentemente entrecortadas
por sons parasitas muito agressivos: buzinas, a sirene de uma ambulância, um motor de
motocicleta, pregões de uma vendedora, uma palavra de ordem gritada no altifalante.
A banda sonora do filme é uma partitura que orquestra o conjunto desses ruídos, os
diálogos das personagens e as intervenções musicais bastante descontínuas de Hans
Werner Henze.

138
5. A ANALIsE DA IMAGEM E DO SOM

i
No que toca à palavra, instância rainha da banda sonora, ela tem originado
sobretudo uma abordagem narratológica: as análises,interessaram-se essencialmente
pelo estatuto narrativo dos enunciados verbais: diálogos in ou ojf, comentário
extra-diegétic6, voz interior, voz no flashbaek. Com efeito, logo que se considera
a fala nos filmes, sobrevém uma grande divisão entre os conteúdos semânticos
dos enunciados verbais e todas as outras características. Estuda-se os conteúdos
semânticos ao, mesmo tempo que a narração de que são um dos principais ele-
mentos. Parece difícil estudar uma personagem de )filme sem convocar o que esta
diz nesse filme';a palavra costuma desempenhar uni papel estruturante na própria
organização da narrattiva. I
Ainda na sua'análise da banda sonora de Muriel, Michel Marie debruça-se sobre o sistema
da fala do filme. Ele observa que Muriel é um filme "tagarela", cujas personagens utili-
zam abundantemente a linguagem, mas não primordialmente com função dramática:
repetem colagens prosaicas de conversas, inúteis para a progressão da intriga. O autor
estuda as categorias lexicais presentes no filme: "De que se fala em Muriel?", e faz surgir
sob o campo semântico dominante do alimento (as refeições) o da destruição e da tor-
tura. Ele analisa igualmente a frequência das estruturas repetitivas, as rupturas de tom
e de ritmo, a abundância de lugares-comuns e o conjunto de registos verbais: diálogos,
micro narrativas, comentário em voz of{, canção, serrilão violento e sincopado. Destas
constatações desprende-se uma certa especificidade da fala fílmica, por oposição à fala
teatral (necessariamente dramática, embora através de uma estratégia antidramática).
I

Em contrapartida, é raro que uma análise se interesse pelas "outras particu-


laridades" da palavra. No entanto estas são elementos constituintes do filme, ao
mesmo título que todos os outros: uma excelente fortna de apercebê-lo consiste em
ver, sem legend,as, um filme numa língua que não donheçamos. A quantidade de
informação veiculada pelo tom das palavras, pelo sea ritmo, pelo timbre das vozes,
e até pelas conqtações produzidas pela maior ou menor musicalidade, tornam-se
então mais evidentes - e a sua importância surpreeAde-nos. Uma vez afastado da
fala tudo o que,tem a ver com conteúdos semântico~, o que fica é, de certo modo,
a sua qualidade de "imagem". : '
André Bazin foi sensível a essa "qualidade de imagem!' do som quando ouviu a banda
sonora de O Mundo a Seus Pés: "A experiência da rádio permitiu (a Welles) renovar a parte
sonora da imagem cinematográfica, fazendo-nos compreender o quanto ela costuma ser
chã e convenCionaI. Welles não só tira o máximo partido dramático do significado de um
som, como ainda da sua colocação no espaço, através do seu relevo, ou profundidade
de campo sonora. Com este fito, ele não recorre ao potenciómetro para diminuir um
som que se afasta (... ) Recordemos também, entre tantos outros exemplos, o grande
plano sonoro :da máquina de escrever na qual Kane termina a crítica teatral de Leland.
Essaencenação do som no espaço completa-se ainda pelo realismo muito estudado dos
timbres. Faça b leitor a experiência de fechar os olhos durante uma cena de O Mundo a
Seus Pés, ou dós Ambersons [O Quarto Mandamento]; ficará surpreso com a coloração das
vozes que se respondem e com a individualidade de cada som. O som, que geralmente
só está no edã como suporte do diálogo ou complemento 16gico da imagem, aqui é
parte integrante da realização".
\ André Bazin, Orson Wel/es, Chavane, 1950, nota 1,p. 53.

3.5. A análise da fala e da voz


Os elementos verbais do filme têm originado an'álises fílmicas centradas nas
particularidades até aqui pouco consideradas: essa novidade manifesta-se através da
alteração de certas noções e da diversificação da terJinologia:
, esse campo abarca
139
A ANÁLISE DO FILME

a fala, a voz e os diálogos. Aqui, a análise fílmica é sensível à evolução de teorias


vizinhas: a pragmática linguÍstica e o estudo do oral, e a análise psicanalítica da
voz. Limitar-nos-emos a dois exemplos, o de Francis Vanoye para o aspecto lin-
guÍstico e o de Michel Chion para o aspecto psicanalítico.

3.5.1. A análise dos diálogos de filmes


A perspectiva da reflexão teórica de Francis Vanoye é essencialmente narrato-
lógica. Partindo da distinção entre três constituintes da narrativa, o narrado, o
descrito e o dialogado, em Récit écrit, récit filmique, características próprias tanto
do diálogo escrito como do diálogo fílmico, o autor foi levadó a delimitar o diálogo
fílmico pela análise da transcrição (estudo de Schpountz, de Adieu Philippine, e
de A Minha Noite em Casa de Maud) e pela análise da conversação (estudo de
France/tour/détour/deux/enjants, de O Joelho de Claire, de Loulou e de Pays de la
terre sans arbre).
Por oposição ao diálogo escrito, Vanoye caracteriza o diálogo fílmico pelas seguintes
características: o sujeito da enunciação do diálogo é designado pela imagem, ou seja,
pelo físico do actor, e pela sua voz; a voz e os gestos informam o espectador; os ruídos e
as falas podem sobrepor-se. No início de A Regra do logo, a locutora diz o nome de André
Jurieu logo no primeiro plano; no quarto plano este aparece e fala, e quando avista o seu
amigo chama-o de imediato: "Octave! Ah! Mon vieux Octave!" [Octave! Ah, meu velho
Octave!]. No começo do plano 7,que enquadra um aparelho de rádio, Octaveé apenas
uma voz radiofónica e Christine, que o escuta, interpela Lisette: "Donne-moi mon sac,
Lisette" [Passa-me a bolsa, Lisette]; mas não é nomeada, e é a lógica da montagem que
permite relacioná-Ia com a mulher de que fala Jurieu (sem a nomear) no plano prece-
dente. Durante o plano 6, a voz e os gestos de Jurieu exprimem a passagem da tristeza à
cólera, e os mesmos elementos dão a entender o embaraço da locutora e o nervosismo
de Christine.

Ao corrigir a retranscrição previamente publicada pela l'Avant-Scene dos diá-


logos de três excertos de cenas de refeição nos filmes de Pagnol, Rozier e Rohmer
já citados, com a ajuda de ferramentas descritivas mais precisas, Vanoye salienta
a omissão de numerosos traços característicos do oral: as.hesitações, as repeti-
ções, a segmentação dos enunciados através de breves pausas ou silêncios, o uso
de formas invariantes específicas, "falhas" devidas à rapidez da enunciação. Ele
observa igualmente a importância de certos utensílios pragmáticos que acompa-
nham a comunicação oral: a regulação das trocas efectuada por elementos verbais,
de entoação, gestuais, e por olhares. A sequência introdutória de Schpountz, de
Marcel Pagnol, fervilha de traços de oralidade. O jogo com os pronomes pessoais
(lui/moi) [ele/eu] é acentuado pela dicção dos actores durante o confronto entre o
tio e o sobrinho (Fernand Charpin e Fernandel); há muitas repetições no diálogo
do tio: "Voilà! ... Voilà l'idée! ... voilà l'imagination! ... 11a trouvé ça ... lui!" [Cá
está!. .. Isso é que é ideia! Isso é que é imaginação!. .. Ele descobriu isto ... ele!];
hesitações (le, lui) [lhe, lhe/ele]; características sintáxicas específicas: cest [é] em
vez de ce nest [não é], que tu me le redises [que tu me redigas] em vez de de me le
redire [de mo redizer], étaient gonflés [estavam inchados] em vez de avaient gonflé
[tinham inchado]; si tu les avais pas vendus [se os não tivesses vendido] (... ), ça
veut dire ce páté de /oie ... [quer dizer, essa pasta de fígado]; onomatopeias: beuh,
ah, em vez de oui [sim]; tiradas pragmáticas que ligam as réplicas: mais alors [mas
então], lui-oh-mais [ele-oh-mas], mais quest ce-ce que tu dis [mas o que é isso que
140
5. A ANALISE DA IMAGEM E DO SOM

estás a dizer]; elementos que sublinham a conversa;no final da frase: quoi [quê!],
va [vá], etc.
O diálogo é'sistematicamente acompanhado de gestos abundantes, sustentados,
que funcionam de forma ilustrativa (Irénée, interpretado por Fernandel, mostra
o assado de porco); como manifestação de afectos (Irénée seca uma lágrima e
aproxima o roho, franzindo o sobrolho); como r~guladores (muitos gestos de
braço e movimentos de dedo a acompanhar o fluxo Verbal, aceno da cabeça, gesto
de Irénée a agarrar o braço do tio para conseguir a ~ua atenção). A representação
do actor chega laosgestos hiperbólicos (esticament~ dos braços no momento das
"exéquias tropicais da família") e mesmo emblemáticos (sinal de cruz irónico por
ser efectuado numa situação pouco ortodoxa: et, à I 'heure qu' il est, elle estpeut-être
à l'agonie [a est~s horas, ela é capaz de estar a agonizar] (muito teatral, ele passa
o dedo indicaqor pelo pescoço) Tranchée!... [Dec~pitada!] (mais grave) Adieu
[Adeus], Gra/zi/ani! ... (faz o sinal da cruz). \
Com o auxílio de ferramentas da "pragmática conversacional", Vanoye procura
delimitar, no s~u estudo seguinte, as característicds específicas da conversação
fílmica; para tanto ele confronta quatro situações cohversacionais diferentes: dois
excertos de film~s de ficção (de Pialat e Rohmer) e doi~excertos de filmes-inquérito,
baseados em entrevistas (de Godard e Perrault) com!graus de complexidade cres-
centes: de um plano com duas personagens a um segmento mais longo, montado,
com vários lugares e personagens. ,
O fragmento de France/tour/détourldeux/enjants (6. andamento) põe em cena
0

uma voz interrogadora que permanece em off(a de Godard, no papel de um inqui-


ridor, Robert Lirart) e uma rapariguinha, Camille, ,sozinha no enquadramento,
em plano aproximado, de pé entre o recreio e uma parede. O diálogo estrutura-se
em pares adjacehtes de enunciados, no modo de pergunta/resposta. É à voz off
I
masculina que sabem todas as iniciativas de troca. Camille ocupa a sua posição
"baixa" e submete-se ao ritual de interacção instaurado. Embora ela respeite o
"princípio de cooperação" respondendo às perguntas, não deixa de resistir à relação
ao reduzir, com ~espostas muito breves, a interacção ao mínimo; o tom da sua voz
não manifesta qualquer investimento pessoal nas respostas, e sobretudo os seus
olhares quase nunca se dirigem à voz (pelo menos ao lugar suposto da emissão),
antes dividindo-se entre o pátio onde brincam os colegas e um lugar intermédio
onde não estão ~em o inquiridor, nem os colegas, nem mesmo a câmara ("tê-la-
-ão proibido de olhar para a câmara?", interroga-se Vanoye). De facto é uma falsa
entrevista, sem verdadeiro diálogo interrogativo-informativo, pois a voz off não
procura mesmo conhecer as respostas (elajá as conhece); Camille de modo algum
é indispensável à :Vozoffpara a obtenção das informações requeridas. Trata-se antes
do intercâmbio clássico entre professor e aluno, num\! situação que todavia não é
explicitamente pedagógica, ainda que retenha as suas:características dominantes.
O q~e é encenadp é o próprio dispositivo da relação pedagógica, com o que ela
tem de retorcido, e até violento, e de forma mais lata a 'relação adulto/criança, com
tudo o que o adulto pode ter de curioso, de intrusivoi de manipulador.
A análise de Loulou, de Maurice Pialat, centra-se no confronto entre Michel
(Hubert Balsan),\ a irmã da heroína (Nelly-Isabelle Huppert) e Loulou (Gérard
Depardieu); ela r~vela as diferentes estratégias de evitflmento usadas pelas perso-
nagens até Loulo'u ser encurralado e perder a face perante o interlocutor: mas é
I I
I ' 141

\
A ANÁLISE DO FILME I
Michel que o põe à prova, para convencer Nelly. Vanoye, porém, pergunta com
razão "o que é feito do lugar do espectador?". Haverá identificação com a perso-
nagem principal encarnada pela estrela (Depardieu)? Nessa perspectiva, se Loulou
perde a face aos olhos de Nelly e Michel, não a perde aos olhos dos espectadores
simpatizantes, para quem Michel é um "burguês" odioso; inversamente, certos
espectadores podem ficar do lado de Michel (ou de Nelly), julgando Loulou sem
apelo como "parasita social"...
A análise incide principalmente sobre os diálogos e a interacção comunicacio-
nal, mas também convoca parâmetros especificamente fílmicos: a grandeza e a
duração dos planos, a presença do locutor na imagem, a lógica da montagem, e
mais globalmente a relação da palavra gravada com a imagem.
Esse tipo de análise do diálogo fílmico e da conversação pode também
agir retrospectivamente sobre certas investigações de pragmática do discurso,
proporcionando-lhes corpus de novos exemplos e situações específicas. É certo
que o material verbal próprio do cinema coloca problemas que não se encontram
automaticamente nas gravações em bruto de "conversas autênticas" e, nesse caso,
as investigações sobre o cinema podem desempenhar um papel decisivo.

3.5.2. A análise da voz nos filmes


Foram as teorias feministas e a psicanálise que desviaram o interesse dos estudos
da fala no cinema para a voz, até então apenas evocada pela célebre expressão de
Barthes sobre o "grão da voz". Coube a Michel Chion, com o ensaio que men-
cionámos, realçar esse "singular objecto", tão estratégico como inacessível. A voz
então, não a fala, ou a língua, ou o ruído, ou o canto. O que o autor investiga é
a voz como mito, a voz original da mãe; ele põe no centro das suas referências o
livro de Denis Vasse, L' Ombilic et la voix [O Umbigo e a Voz], que considera o
momento do corte umbilical "como estritamente equivalente à abertura da boca e
à emissão do primeiro grito". O interesse de Michel Chion incide essencialmente
na relação entre a escuta da voz e a visualização do seu lugar .de emissão, que ele
desenvolve com a sua teoria do acúsmetro, derivado de "acusmático", um termo
fulcral no Traité des objets musicaux [Tratado dos Objectos Musicais] de Pierre
Schaeffer, que designa um som que se ouve sem se ver a causa da qual provém.
Ele centra portanto a sua reflexão nas vozes nem in nem off, que não estão nem
completamente dentro nem claramente fora, ."vozesabandonadas em errância na
superfície do ecrã", aguardando um lugar onde fixar-se, vozes que só pertencem
ao cinema, distinguindo-se tanto da voz-comentário da lanterna mágica como
da voz síncrona do teatro.
Se abordamos aqui essa teoria da voz, é por ela se apoiar na análise fílmica
pormenorizada de alguns filmes maiores, de que enriquece claramente a leitura.
Tomemos o exemplo da análise de O Testamento do Doutor Mabuse, de Fritz Lang
(1933).
O derradeiro filme alemão realizado por Lang, no começo dos anos 30, é uma
espécie de filme-programa para o cinema falado. A ideia central é ter deixado
Mabuse mudo, servir-se do cinema falado para não fazer ouvir a sua voz, ou antes,
para nunca confundir essa voz com um corpo humano. A voz de Mabuse, que por
fim se revela ser de outro, só é escutada atrás de um cortinado. Quanto ao autên-
tico Mabuse, continuará obstinadamente mudo até à morte. Não o veremos falar
142
5. A ANALISE DA IMAGEM E DO SOM

senão em estado de fantasma em sobreimpressão, ;,dotado de uma voz irrealista


e inumana de ,velha feiticeira": "um corpo mudo, uma voz sem corpo; assim se
divide, para melhor reinar, o terrível Mabuse". '
Chion mostra bem como a voz de Mabuse acumula, sem se preocupar com
contradições lógicas, todos os poderes possíveis: fazendo-se passar por outrem,
não precisando o local de onde fala, sendo a voz de um morto, revelando-se uma
voz pré-gravada, saída de um mecanismo, não um acúsmetro mas uma "acusmá-
quina". "
O funcionamento geral do filme reside nesse princípio de não conjunção da voz
de Mabuse corri um corpo humano; essa voz é literalmente "indesacusmatizável".
O filme todo ayança para uma sucessão de falsos desvendamentos que apenas se
renovam. O argumento é uma trama de ilogismos que só se aguentam pelo não-
-dito que os envolve. É daí que procede o próprio poder de Mabuse enquanto
princípio do Mal. Ele vive somente dessa proibição de nomear e de ir ver, que as
personagens sucessivamente se impõem. Hofmeister, bruscamente interrompido
na sua confissão telefónica ao comissário, fica louco ,quando vai nomear Mabuse.
Como mostra Chion, Hofmeister representa o desejo do espectador de saber mais,
de ouvir pronunciar o nome-título do filme. Ao ldngo , de toda a narrativa, ele
esforça-se por manter o contacto telefónico com o comissário Lohman, tal como
o espectador espera a revelação do enigma. Hofmeister, desde o início estabelecido
como criatura de escuta, é a personagem mais regressiva do filme, e qual "feto
telefónico", irá agarrar-se até ao fim à voz como "cordão de transmissão de um
fluxo cego e nut,ritivo".

143




CAPfTULO 6

Psicanálise
eanáli$edofilme
! A "'"

1. PORQUE A PSICANALISE?
I

o estatuto da psicanálise no que se convencionou chamar as ciências huma-


nas, e de modo rhais geral, na vida intelectual da nossa sociedade, não é dos mais
simples. Toda a gente ou quase, é hoje mais ou menos tocada pelo freudismo e,
ainda que geralmente sob uma forma muito edulcorada, todos se declaram prontos
a aceitar, sem demasiadas questões, noções como o inconsciente ou o Édipo. O
cinema, que frequentemente tratou a psicanálise como um tema ficcional parti-
cularmente rico, ;não é aliás alheio' a esta popularização e a esta vulgarização da
douúina freudia.t;la(não sem distorção e insipidez). Mas por outro lado - e sem
dúvida exactame~1tena medida em que esse conhecitJ;lento geral que se difundiu
é muito aproxim~tivo - a aplicação efectiva dos conceitos psicanalíticos, seja em
que domínio for,; levanta sempre enormes resistências (e nós não sugerimos de
resto que estas sã6 sempre injustificadas).
No final dos ~nos 80, a psicanálise foi, nos estudos literários e artísticos, o
centro, o objecto; o pretexto de debates mais acesos do que nunca, opondo os
defensores de um~ abordagem crítica dos textos de natureza tradicional (o texto
é apenas o texto !manifesto, ele pode e deve ser referido à intencionalidade de
um autor, nenhuma clivagem é identificável entre sujeito do enunciado e sujeito
da enunciação, etG.)a todos aqueles para quem o texto, como qualquer produção
intelectual, está iMormado pelo desejo do sujeito que o produz, retém as suas
marcas, e assim at~nge o sujeito que o recebe.
De forma modesta, e sem querer legitimar aqui, globalmente, o lugar (enorme)
que ocupa a psicartálise na reflexão actual, gostaríamos primeiramente de relem-
brar a lógica da suk utilização no campo dos estudos cinematográficos. Como já
o assinalámos, o grande movimento teórico que se desenhou a partir de 1965, sob
influência do estruturalismo, afectou directamente o estudo do cinema ao sugerir
que este fosse estudado (verdadeiramente, mais do que apenas metaforicamente)
como uma linguag~m - e é neste mesmo movimento que se impôs a ideia da análise
de filmes tal como ~ descrevemos neste livro. Mas rapidamente, sob a influência do
desenvolvimento de outras ciências sociais (particularmente a releitura althusseriana
da teoria marxista da ideologia), se viu que essas abordagens semiótico-linguísticas
do cinema e dos filfnes deixavam de lado um ponto essencial do funcionamento
destes, precisamente os efeitos subjectivos que se exercem na linguagem e pela
linguagem (qualquer linguagem). A inclusão na semio-análise do cinema de uma
teoria do sujeito é pdrtanto em si um movimento lógico, de certo modo convocado,
~ (
145
\.
A ANÁLISE DO FILME

do interior da teoria, pela própria teoria. O que, neste ponto, permanece menos
evidente, é a razão do recurso à psicanálise freudiana, a maior parte das vezes
através da remodelagem que lhe trouxe a teoria lacaniana do sujeito - e apenas
a ela. Existem, efectivamente, muitas outras teorias do sujeito (como as que são
desenvolvidas hoje, de forma muito activa, no quadro da psicologia cognitiva).
Se, nos estudos filmológicos recentes (a "segunda semiologia do cinema", para
retomar a expressão do próprio Metz), foi o modelo psicanalítico que amplamente
a conduziu, tal é devido a uma série de razões que esquematizaremos assim:
- mais do que qualquer outra teoria do sujeito, a psicanálise freudo-Iacaniana
interessa-se pela produção do sentido na sua relação com o sujeito falante e
pensante; não é por acaso que, sistematicamente, os textos de Fretid a que
Lacan e os seus discípulos mais fazem referência sãoA Interpretação dos Sonhos
e O Chiste e a sua Relação com o Inconsciente, ou seja, aquelas onde se trabalha
mais directamente a relação sentido latente/sentido manifesto;
- mais do que qualquer outra teoria do sujeito, ela interessa-se pela questão do
olhar e do espectáculo; uma obra como Clefs pour l'imaginaire [Chaves para
o Imaginário], de Octave Mannoni (um dos mais próximos discípulos de
Lacan), aborda frontalmente a questão da relação do sujeito espectador com
as suas produções imaginárias que são a peça de teatro ou o filme; foi pela
pluma de psicanalistas da Escola Freudiana (sociedade fundada por Lacan),
como André Green ou ]ean-Louis Baudry, que pudemos ler as primeiras
comparações sistemáticas entre o dispositivo do cinema como espectáculo
e a estrutura do sujeito;
- foi pela integração de certos elementos da teoria lacaniana que se desenvol-
veu, por volta de 1970, a teoria da ideologia com Althusser e os seus alunos;
muito explicitamente, num célebre artigo de 1970, "Ideologia e Aparelhos
Ideológicos de Estado", Althusser tenta ligar o conceito marxista de ideologia
ao mecanismo da constituição do sujeito; tendo em conta a importância do
marxismo nos estudos críticos deste período, encontra-se aí um elemento
suplementar de peso no recurso ao modelo lacaniano;
- finalmente, a teoria lacaniana do sujeito apoia-se, explicitamente, em modelos
linguísticos (ela foi muitas vezes considerada - é verdade que no seu início, e
de forma por vezes pouco convincente - como parte integrante do movimento
estruturalista); existiria aí portanto uma espécie de "princípio do menor
deslocamento": menos distância entre linguística e "lógica do significante"
lacaniana do que em relação à psicologia cognitiva experimental, por exemplo
(a qual, em contrapartida, está bem mais próxima da linguística generativa
- como se vê pela actual geração de psicolinguistas).
Naturalmente, estas razões que damos, e outras que poderíamos considerar,
são outras tantas "previsões do passado", e não pretendem reconstituir uma lógica
consciente. Conviria aqui acrescentar que a análise de filmes, acerca da qual já
dissemos o quanto, em todo este período, se encontrava próxima do movimento de
teorização, não foi alheia a esse recurso à psicanálise - com a qual, precisamente,
partilha certas atitudes analíticas de base.

146
6. PSICANÁLISE E ANÁLISE DO FILME

2. ALGUMAS AMB!GUIDADES QA RELAÇAo


COM A PSICANALISE .
Uma das pr'ecauções que a teoria do cinema constantemente observou, no
seu recurso à pSlcanálise, foi (e continua a ser) a de se distinguir tão nitidamente
quanto possível i,decertas utilizações da psicanálise ~o campo das ciências huma-
nas e da crítica; ~om efeito, antes da "segunda sefIlÍologia" e para além dela,
a psicanálise, a descoberta do inconsciente, não de~xara de inspirar numerosas
tentativas de explicação, de interpretação ou de crítica das obras de arte. Não
faremos aqui a história dessas tentativas, mas parece-nos importante mencionar
que, mesmo no domínio dos estudos cinematográficos, existem numerosos traba-
lhos que reivindicam mais ou menos claramente a atitude psicanalítica, mas que
nos parecem muito afastados de uma verdadeira aplicação da teoria psicanalítica
à análise dos filrrtes.
Para sermos b~eves,diremos que essas utilizações da psicanálise dizem respeito
essencialmente a dois tipos de trabalhos:
1. "Biopsicanálises", que lêem a obra de um autor - no todo ou em parte - na
sua relação com o que necessariamente designaremos como um diagnóstico sobre
esseautor enquanto neurótico. A abordagem pode variar, pode utilizar-se a biografia
do autor mais ou ~enos (ou pelo contrário, limitar-se mais ou menos estritamente à
sua obra), mas o 09jectivo é sempre o mesmo: explicar uma dada produção artística
através de uma de~erminada configuração psicológica .(neurótica).
I .
Limitar-nos-emo's a dois exemplos: o livro de Dominique Fernandez sobre Eisenstein,
publicado em 1975, e significativamente sub-intitulado "L'Arbre jusqu'aux racines, 2" [A
Árvore até às Raízes,2] (este subtítulo era o título de umél obra anterior de Fernandez,
subintitulada "Psychanalyse et creation" [Psicanálise e Criação). Fernandez considera a
obra de Eisenstein "uma autobiografia ininterrupta, mas sob a forma de uma transpo-
sição grandiosa que é o contrário de uma confissão". O segundo exemplo é a biografia
de Alfred Hitchcqck por Donald Spoto, que encontra "as origens do incomparável e
bizarro génio de Hitchcock" nos acontecimentos da sua primeira infância, em particular
na relação com a mãe.
I
Essesdois livros são muito desiguais (o livro de Fernandez utiliza fontes secundárias, elas
mesmas muito Pquco fiáveis, enquanto Spoto se entregoll a uma verdadeira pesquisa
de documentos) mas partilham a mesma abordagem: um neurótico (homossexual
recalcado num caso, sadomasoquista no outro) sublima a sua neurose na criação, e esta
pode desde então ser lida, e ser lida exclusivamente, comO sintoma. Cada detalhe dos
filmes de Eisenstein ou de Hitchcock é assim lido pelos "psicobiopsicanalistas" como
se remetesse necessária e unicamente para esse complexo pelo qual eles previamente
definiram o sujeito-criador. '
1 i
2. Leituras "psicanalíticas" dos filmes, nas quais se trata de caracterizar esta
ou aquela personageP1 como se sofresse de tal ou tal neurose. Também aí, trata-se
de uma questão de diagnóstico, mas desta vez já não a propósito de um sujeito
real (acerca do qual: se pode sempre esperar descobrir factos autênticos, mesmo
se essa esperança é etn grande parte ilusória), mas de uma personagem, ou seja -
sublinhámo-Io ao falar de narratologia (c£ capo 4, 3.) -.a propósito do que, em
última instância, nã? passa de uma construção mais oJ menos rigorosa e mais
ou menos coerente, ~nteiramente determinada pelas necessidades da narrativa e
das suas funções.
147
A ANÁLISE DO FILME

Los Olvidados, de Luis Bunuel (1950).

Da mesma forma, esta tendência para "psicanalisar" as personagens é mais difusa.


Encontramo-Ia, muitas vezes de forma implícita, em inumeráveis críticas de filmes (sendo a
crítica de cinema um género no qual reina, de forma geral, a maior confusão entre realidade
e representação). Naturalmente, certos filmes, mais que outros, evocam e suscitam este tipo
de comentário. É o caso, em particular, dos filmes cuja história aborda expressamente casos
de doença ou de neurose, como Bruscamente no Verão Passado ou A Casa Encantada, ou
filmes que põem em cena criminosos (muitas vezes tidos como neuróticos na maior parte
dos "filmes negros" por exemplo, cf. O Denunciante e Richard Widmark como paradigma).
Poderíamos também encontrar numerosos exemplos a propósito do melodrama, género
que se presta singularmente bem a uma leitura "psicológica". Por fim, não devemos esquecer
que muitas vezes a indústria do cinema favoreceu este tipo de leitura, como o demonstra,
por exemplo, a voga do que se designou "western psicológico" por volta do final dos anos
50 (cf. o tema explicitamente "edipiano" de O Sexto Homem, de John 5turges).
Um outro exemplo bastante revelador consagrado à obra de Luís Buriuel tem como autor
um psicanalista mexicano: trata-se de L'Oei! de Bunuel, de Fernando Cesarman (México,
1976, Paris, 1982). Mais ainda do que Eisenstein e Hitchcock, Buriuel é um terreno privi-
legiado para o estudo psicanalítico, devido à sua temática explícita: desejo e pulsão de
morte, sadismo, castração, etc.
Los Olvidados é encarado na perspectiva do exercício da pulsão infanticida. Los Olvida-
dos (os esquecidos), são as crianças abandonadas. Cesarman relembra a frequência do
fantasma inconsciente de se ter sido assassinado e/ou abandonado pelos pais. No filme,
a criança abandonada tem dois rostos, um positivo (Pedro), o outro negativo (EI Jaibo).
Este representa a tendência que impede Pedro de se evadir do território do abandono:
ele desapossa-o constantemente dos seus objectos (a faca, a nota) a ponto de o despojar
da vida mesmo ao preço da sua.
Esta figura do abandono é distribuída por uma categoria bastante ampla de personagens:
Ojitos, o jovem camponês, as crianças do bando de EI Jaibo. "Los Olvidados mostra-nos
o produto da relação interdita: os amantes chegam, evidentemente, ao acto sexual mas
dele nascerão crianças não desejadas; o fruto desse coito serão todas as formas possíveis
do abandono: infanticídio, parricídio, matricídio, amanticídio, etc."

148
6. PSICANÁLISE E ANÁLISE DO FILME

Não nos passa pela cabeça condenar urbi et orbi este tipo de trabalho que utiliza
a psicanálise. No fim de contas, não faltam à história da arte, e à da psicanálise,
tentativas de expl~caçãoda criação artística por determinações psicológicas (émesmo
um dos grandes ~ugares comuns herdados do romantismo). Mas esse é indubita-
velmente um terreno extremamente escorregadio, onde o rigor é raro, e onde as
hipóteses mais imprudentes e menos sustentadas parecem ser a regra. Quanto ao
diagnóstico que s~pode formar sobre personagens de ficção, ele revela-segeralmente
tanto mais inofensivo e anódino quanto os filmes e as personagens a respeito dos
quais é feito foram precisamente calculados com essa intenção (e também aí, com
referência a modelos exagerada e afrontosamente simplificados).
I

3. PSICANÁLISE E TEXTUALIDADE
Como no início indicámos, a utilização da psicanálise no estudo dos filmes
parece-nos derivar de uma relação essencial entre semiologia do cinema e teoria
psicanalítica (que deve distinguir-se rigorosamente, digamo-lo de passagem, da
psicanálise enquanto terapia - a qual é, socialmente falando, o aspecto principal).
O que a descrição plano por plano e as primeiras análises textuais de filmes tinham
mostrado, foi a existência de fenómenos extremamente localizados, de momentos
pontuais ou quase, no interior do significante fílmico, e onde o sujeito espectador
era afectado de forma mais precisa e directa.
Um exemplo clássico, mas crucial, é o dos olhares. Certamente, não foi preciso esperar
pela análise textual para reconhecer a importância do raccord de olhar (encontra-se uma
definição muito ',Iara num artigo de Jean-Luc Godard escrito em 1956, "Montage mon
beausouci"). No entanto, a minuciosa descrição da montagem sobre um olhar numa
sequência de Os Pássaros contribuiu enormemente para mostrar (ou para descobrir - já
que na época foi ilma verdadeira descoberta, inclusive, plausivelmente, para Raymond
Bellour) que este procedimento cristalizado e que tinha reputação de "transparente"
assentava de facto em fenómenos de crença e de identificação certamente repetitivos
e habituais, mas apesar disso complexos na sua natureza.

O que a "lógica do significante" permite portanto tentar, é antes de tudo uma


apreciação da inserção do espectador, enquanto sujeito, no texto fílmico. Esta
apreciação repousa numa base teórica geral, que se pode descrever esquematica-
mente segundo dois grandes eixos:
1. A teorização do "dispositivo". Um grande número de trabalhos dos anos 70
gira em torno dessa noção de "dispositivo", proposta para dar conta de um facto
fundamental, o de que, seja qual for o filme, o conjunto das condições da fabricação
e da visão dos filmes '(odispositivo técnico) atribui ao sujeito espectador, enquanto
sujeito, um certo "lugar", o que se traduz por um conjunto de disposiçõespsicológicas
apriori (o dispositivo psíquico) do espectador em relação ao filme. As peças mestras
desse dispositivo psíquico são duas; por um lado, o que se baptizou elipticamente
de "identificação com a câmara" (ou "identificação primária", ou "identificação
do espectador em relação ao seu olhar"); por outro lado, a posição voyeurista do
espectador (o facto de no cinema ele procurar satisfazer a sua "pulsão escópica").
2. A teorização das marcas da presença do sujeito espectador no texto fílmico
- essencialmente atr~vés da noção de sutura. Esta noção, ainda hoje objecto de
149
A ANÁLISE DO FILME

intermináveis controvérsias, foi originalmente forjada por Jean-Pierre Oudart (num


artigo publicado em 1969) para designar um tipo bastante particular de filme, e de
relação do espectador com a "cadeia" do "discurso fílmico", que Oudart pensava
poder distinguir em alguns filmes de Bresson, e quase só nesses, na forma de um
tipo particular de campo-contracampo. Já voltaremos a este assunto em 3.4.
Mais uma vez, não poderíamos aqui entrar no detalhe, extremamente proble-
mático e incerto, de uma e de outra dessas elaborações teóricas. O que nos importa
é que, historicamente, elas forneceram o pano de fundo de numerosas análises de
filmes, às quais vamos agora referir-nos.
A noção de "dispositivo", tal como acabámos de relembrar, apriori é pouco propícia
a fornecer a base de uma análise, uma vez que, por definição, ela visa a situação espec-
tatorial enquanto tal, e não a relação subjectiva com este ou aquele filme particular.
Também as análises concretas que se colocaram nesse quadro conceptual
centraram-se sobre problemas mais particulares, de forma aliás quantitativamente
muito desigual.

3.1. O Édipo, a castração, o "bloqueio simbólico"


As primeiras análises de filmes que recorreram à teoria psicanalítica interessaram-
-se pela representação e pela inscrição no texto fílmico de "estruturas profundas"
da constituição do sujeito, e logo em primeiro plano, o Édipo e a castração.
Na sua análise de A Grande Esperança, de John Ford, publicada em 1970, os
redactores dos Cahiers du Cinéma demonstram a forma como a figura do jovem
Lincoln, detentor da verdade e encarnação da lei, tal como o filme a apresenta, pode
(é, sugerem eles, deve) ler-se em referência ao carácter patriarcal dessa lei. Na teoria
psicanalítica tal como no filme, a Lei está com efeito associada simbolicamente ao
Nome do Pai, e a relação de qualquer sujeito com a lei é portanto um aspecto do
seu itinerário edipiano: muito precisamente, a aceitação da lei do pai, ultimo estádio
do Édipo, marca ao mesmo tempo o acesso ao simbólico, e é uma das etapas da
passagem à idade adulta; este acesso faz-se ao preço de uma "castração" simbólica
(o sujeito renuncia a conquistar a mãe). É esta estrutura que a análise descobre no
filnie, a diferentes níveis: primeiramente, em inúmeros detalhes do argumento (que
é feito precisamente para colocar Lincoln como incarnação de uma Lei superior),
mas também, de forma ainda mais convincente, na representação e na realização;
Lincoln, interpretado por Henry Fonda, tem uma aparência particularmente rígida,
e demonstra, ao longo do filme, uma força de vontade que se manifesta visivelmente
no seu olhar (qualificado de "castrante" na análise), e inumeráveis detalhes são lidos
como marcando ao mesmo tempo a sua Íntima proximidade com a Lei (com a
justiça, com o direito, com a verdade) e a sua relação com a castração, que ele sim-
bolicamente figura. Um lugar especial é dado na análise à relação de Lincoln com
figuras de mulheres, e particularmente aos diferentes rostos da Mãe. O traço mais
marcante de toda esta análise (longa, impossível de resumir em algumas linhas) é
o de nunca assentar numa caracterização psicológica das personagens; a figura de
Lincoln é vista como significando a castração e a lei, mas nunca, bem entendido,
se sugere tratar-se de uma encarnação psicológica, consciente; e uma das qualidades
mais notáveis dessa análise (hoje clássica) é de nunca confundir a personagem (que
aliás considera muito pouco) e o "figurante" (o significante visível).

150
I 6. PSICANÁLISE E ANÁLISE DO FILME

I
A Grande Esperança, de John Ford (1939).

De ~orma mais alargada, ess~ análise é importante por Jr sido uma das primeiras a
demonstrar a existência, nos textos à partida mais transparentes, de um "subtexto"
estruturado tão rigorosamente (e por vezes mesmo mais) quanto o texto manifesto.t:
Hollywoodem par
actualmente um ponto generalizadamente adquirido, e muitas análises de filmes, de
UI'" f.,.m dl"o um. d" 'u" .,eml,,,,, . 151
A ANÁLISE DO FILME

o outro texto analítico clássiconeste domínio é a análise, por Raymond Bellour,


de Intriga Internacional, de Hitchcock (publicada em 1975, mas apresentada pelo
seu autor sob diversas formas antes dessa data). Aparentemente, o propósito de
Bellour é totalmente diferente do dos Cahiers du Cinéma. O filme que escolhe
analisar é um filme de aventuras, supostamente um dos filmes menores do seu
autor. Ora, precisamente, a análise de Bellour demonstra, tanto na narrativa como
na realização do filme, a mesma presença do Édipo e da Lei do Pai. É certo que,
desta vez, já não lidamos com uma personagem excepcional como Lincoln, que
encarnava a Lei - mas com uma personagem "mediana", "como toda a gente". No
entanto, o mesmo esquema edipiano - relação de dependência amorosa em relação
à mãe, conflito com o pai, depois finalmente aceitação da lei do pai ao preço da
renúncia à mãe, e acesso à idade adulta marcado pelo abandono da mãe em troca
de um outro objecto de desejo - encontra-se aqui literalmente. Bellour, em par-
ticular, desmonta e expõe brilhantemente a maneira como o filme apresenta, sob
diversos disfarces, a figura do Pai simbólico, e mostra como em última instância
é sempre o Nome do Pai que desempenha o papel de significante da lei. Reencon-
tramos portanto, em profundidade, um grande número de resultados obtidos na
análise de A Grande Esperança. Mas a análise de Intriga Internacional revela ainda
algo mais. Ao contrário da análise do filme de Ford, que é conduzida através de
grandes blocos de cenas, sem recorrer a uma micro-decomposição, aqui o trabalho
conjuga análise do conjunto do filme e micro-análise de fragmentos. A leitura do
filme no seu conjunto enuncia as etapas deste itinerário edipiano, que coincide no
filme com a trajectória física do herói; Bellour vê o momento crucial na relação
entre o herói, Thornhill, e a mulher, sintomaticamente chamada Eve, desde o seu
encontro no comboio até à cena final no monte Rushmore. É com o objectivo
de esclarecer esta relação entre a formação do casal e o filme como itinerário que
Bellour analisa então, exaustivamente, uma cena-chave (provavelmente a mais
célebre de todo o filme): o ataque do herói por um avião. Esta análise faz sobressair,
principalmente, a importância do papel desempenhado pelos meios de locomoção
na sua estrutura. É daí que, regressando ao nível da macro-análise, Bellour retira a
ideia de que o avião, cujo papel é posto em evidência ao nível micro-textual, deve
ser relacionado, no nível macro-textual, com o desfile dos símbolos da castração .
.Mais amplamente, este efeito de correspondência entre micro e macro-estrutura
é defendido por Bellour como uma característica geral do filme de ficção clássico,
que ele designa como" bloqueio simbólico".
Entre o "paradigma dos meios de locomoção" no segmento analisado e o paradigma
em que ele se inscreve ao nrvel do conjunto do filme, existe, diz Bellour, um "efeito de
espelho". O fechamento aparente de cada cena é enganador, já que cada uma é atraves-
sada pelo sistema textual: dar a "impressão vertiginosa" de que todo o elemento anuncia
um outro elemento que "o arrasta, o duplica, o redistribui no reflexo da ficção", e mais
amplamente, um carácter "indirecto" do efeito de simbolização, que faz com que esse
efeito seja incessante. Por outras palavras, segundo Bellour, existe em qualquer grande
filme clássico "um ou vários sistemas que asseguram especificamente a circularidade da
estruturação simbólica" (aqui, o paradigma dos meios de locomoção), e o que ele chama
"bloqueio simbólico", é o facto de o Édipo, o código simbólico que abre e fecha o filme,
"se propagar, por uma hierarquização sabiamente orquestrada e segundo um efeito de
eco contrnuo, tanto ao nrvel do destino maciço e aparente, como do infinito pormenor
de cada um dos seus componentes": das grandes estruturas narrativas até ao pormenor
formal de cada fragmento.

152
6. PSICANÁLISE E ANÁLISE DO FILME

Não podemc;>sreproduzir aqui na riqueza do se4 detalhe essas duas análises.


Uma e outra des~mpenharam um papel muito importante, mas menos, parece-nos,
pelas análises que geraram (asquais, na medida em que se inspiram nesses modelos,
são mais ou mef!.osrepetitivas), do que pelas suas consequências sobre a teoria do
cinema em geral. Tanto uma como outra são uma perfeita e nova demonstração
dessa interdeperi.dência análise/teoria de que já apres~ntámos vários indícios.
,

I
3.2. As identificações secundárias
Uma outra abordagem estaria menos centrada na identificação das grandes
matrizes simbóliFas inscritas no texto do que numa a:pálise dos filmes em termos
de identificação. ' .
Há pouco relembrámos uma das bases da teorização do "dispositivo" cinema-
tográfico, a saber? a noção de "identificação primária'i; esse fenómeno, constante,
é acompanhado, teoricamente, por outros fenómenos de identificação, mais con-
tingentes, mais evanescentes até, em todo o caso mais amplamente dependentes da
relação de cada irtdivíduo-espectador com a situação fiecionaI. Essas identificações
"secundárias" reo,obrem, pelo menos superficialmente, o que a crítica de cinema
descobriu desde há muito: que o filme suscita no espectador afectos, simpatia,
antipatia, e que essesafectos são frequentemente dirigidos às personagens enquanto
tais (daí a ideia, rebatida nos debates de cineclubes, e singularmente simplificadora,
de que nos identificaríamos necessariamente com esta ou aquela personagem - de
preferência o "bom", enquanto o "mau" suscitaria a nossa aversão). É claro que,
pondo em jogo o micro-detalhe da nossa relação com o texto fílmico, ela depende
da análise fílmica ~equase unicamente dela: é difícil enCararverdadeiramente uma
teorização geral d~s identificações secundárias, pelo menos uma teorização que
falasse do filme, e:não da subjectividade em geral).
Não existe qualquer análise publicada sob forma ~scrita que se centre nesta
questão - por uma razão evidente: a identificação é um fenómeno subjectivo, em
todos os sentidos da palavra. É pouco provável que se possa descrever, neste ou
naquele filme particular, índices de identificação absolutos (válidos para qualquer
espectador, para o espectador em geral). Em contrapartida, parece-nos que, embora
ao que sabemos isso nunca tenha sido verdadeiramente tentado, se poderiam loca-
lizar os "micro-circuitos da identificação no texto de superfície" (Alain Bergala)
- ou seja os elementos textuais que induzem à iderttificação. Naturalmente a lista
desses elementos está sujeita a caução, mas poder-se-ia numa primeira aproximação'
constitui-la a partir do que se sabe (ou supõe) sobre a identificação no cinema. É
claro, por exemplo, que as identificações secundárias têm como suporte privile-
giado certos elemerttos da narração, essencialmente 1) as personagens, ou mais
exactamente os tr~ços constitutivos das personagens, e 2) as situações, ou mais
exactamente os acontecimentos unitários que constituem a situação - mas que,
no cinema, esses el~mentos narrativos se tornam pretexto para a identificação na
medida em que são visualizados. '
Se leio, por exemplo, The 8;g Sleep, de Raymond Chandler, poderei, pela descrição que dele
é feita, identificar certos traços da personagem de Philip Marlowe: a sua tendência para a
ironia e para a auto-ironia notória em determinadas réplicas do romance ou, a outro nível
completamente diferente, as indicações dadas sobre o seu consumo de uísque, etc. - e

153
A ANÁLISE DO FILME

poderei eventualmente identificar-me com um ou outro dessestraços; é o conjunto dessas


identificações parciais que ditará a minha relação global com a personagem. De igual
modo para as situações do livro, em que da mesma forma serei capaz de "me reconhecer"
I
mais ou menos, e que suscitarão mais ou menos a minha identificação.
Se vir o filme que foi feito a partir desse livro (sem fazer caso das numerosas transfor-
mações infligidas à história), essasidentificações subsistirão na sua essência, mas outros
traços, visuais, se somarão a elas, podendo modificá-Ias completamente, ou precisá-Ias:
a ironia de Philip Marlowe, encarnada por Humphrey Bogart, pode para mim tornar-se
insuportável aparência de superioridade; posso ao contrário ser sensível ao aspecto
"vencido" do rosto de Bogart, e inflectir a minha percepção da sua ironia no sentido da
impotência, etc.

Seria sem dúvida muito interessante tentar fazer este género de levantamento,
apesar de todos os seus perigos (tal poderia mesmo constituir um excelente exer-
cício de análise em situação pedagógica). Deveria igualmente ser muito instrutivo
estudar um filme sob este ângulo, à luz do que se pode saber das determinações
da sua produção. Um caso particularmente claro aqui é o de Hitchcock, que se
vangloriou muitas vezes de fazer" direcção de espectadores", portanto de prever
as reacções do público a este ou aquele elemento: o trabalho analítico consistiria
portanto neste caso em tentar reconstituir o "cálculo" das identificações, e estimar
a sua eficácia. Inútil sublinhar que seria um empreendimento em que a prudência
nunca seria demasiada, pois afloramos permanentemente o risco de cair numa
crítica de "intenções", com todas as armadilhas que a acompanham.

3.3. Psicanálise e narratologia:


narrador, personagem, espectador
O estudo das identificações secundárias leva a que nos interessemos de perto
pelas personagens e pelas relações que o espectador estabelece com elas. Foi ao
aprofundar a questão do narrador, portanto à partida numa perspectiva prin-
cipalmente narratológica, que Marc Vernet formulou a hipótese de uma certa
homologia de situação entre espectador e personagem de filme, particularmente
quando se trata de uma personagem na posição de narrador. Assim, no filme
policial, o detective privado que procura ver ou saber é uma figura delegada, no
seio da ficção, da posição ocupada na sala pelo espectador. Marc Vernet delimitou
esta homologia a partir de duas figuras estilísticas particulares: o olhar para a
câmara e a voz oif
Como muitas expressões tradicionais de origem técnica, o olhar para a câmara
é uma expressão "bastante desleixada", precisa Vernet, uma vez que ela pretende
dar conta em termos de rodagem de um efeito produzido na projecção do filme,
a saber, que o espectador tem a impressão de que a personagem, na diegese, o
olha directamente, no seu lugar, na sala de cinema (A Rosa Púrpura do Cairo, de
Woody Allen, assenta nesta ideia muito clássica). Assim se encontram alinhados
três espaços diferentes: a rodagem, o universo diegético e a sala de cinema, efeito
que a figura do "olhar para a câmara" pretende justamente produzir. Vernet cita
o exemplo de dois géneros nos quais os olhares para a câmara são muito frequen-
tes: a comédia musical e o burlesco. Num número de canto de Ritmo Louco, por
exemplo, é a vedeta (aqui Fred Astaire) que se adianta à personagem. Fred Astaire
é essa figura "transdiegética", repetida de filme para filme, à qual se reduz qual-
154
6. PSICANÁ,L1SE E ANÁLISE DO FILME

quer vedeta, e o,nde ela se exibe exibindo o seu talento. Vedeta de cinema? Sim,
mas primeiramente vedeta de music-hall. No filme burlesco, dois casos de olhar
para a câmara: o primeiro é aquele em que se faz do público testemunha, pelo
olhar e pela palavra, para comentar ironicamente, como no teatro de fantoches,
a acção ou o car<Ícterde um parceiro. Aqui, a interpelação directa do espectador
é uma chamada a testemunhar, uma referência a um terceiro. O segundo caso
possível só difert do primeiro por permanecer mudo e não provocar da parte do
espectador a me~ma reacção em relação à personag~m. É o olhar de Laurel que
não compreende o que se passa e que parece pedir aj~da ou a solução ao público.
Esse olhar para a câmara é um breve encontro entre vedeta e espectador em que
aquela, de forma perversa, se oferece a dissipar-se, encontro falhado, desencontro
entre a vedeta presente na rodagem e ausente na projecção, e o público ausente
da rodagem mas presente na projecção. O parceiro implicado por esse olhar para
a câmara, longe de ser o indivíduo espectador real, é efectivamente um parceiro
colectivo (o público) e imaginário (o outro público). Se existe ênfase, é nesta relação
que exclui o espectador que está na sala.
Marc Vernet resume assim a cadeia que liga o actor ao espectador: vedeta-
-metapersonagem -personagem -público diegético -metapúblico- público real-
-espectador: estrutura em espelhos desalinhados, estrutura em casca de cebola,
que não deixa de lembrar, no seu funcionamento, a situação conhecida de qualquer
indivíduo, "em particular na experiência da nostalgia em que contemplo com
deleite essa persoqagem que eu era, que acreditei que era, que teria podido ser, que
já não sou, que ta,lveznunca tenha sido e onde contudo gosto de me reconhecer.
Figura reenviada ~o passado, do Ideal do Eu, que Freud define como o substituto
do narcisismo perdido da infância". '
O "olhar para a câmara" é igualmente um olhar ambíguo porque é fruto de um com-
promisso entre Ó bom e o maU encontro. Também o encontramos no filme clássico, em
duas situações diegéticas opostas: o encontro amoroso e o encontro com a morte. O
exemplo canónÚ:o para o encontro amoroso, aos olhos de Marc Vernet, é a célebre cena
de Laura (Otto p'reminger, 1947) em que o herói se encontra face a face com a heroína.
Laura, toda vestida de branco, regressa miraculosamente do campo quando ajulgávamos
morta e surpreende o inspector McPherson em casa dela, onde este se instalou com
todo o à-vontade. Num primeiro grande plano, Laura oferece à câmara o seu rosto e um
olhar muito espantado, mas nitidamente dirigido para a objectiva. Seguir-se-ão outros
dois planos em que esse olhar se deslocará para fora-de-campo, para pouco a pouco
restabelecer uma direcção "normal". O extraordinário é que nos planos com que estes
alternam, McPhe'rson olha efectivamente para fora-de-campo e portanto as duas direc-
ções de olhar não ligam de maneira alguma, o que apenas reforça a ideia de um encontro
entre a heroína e o espectador que ainda não a viu em todo o filme. Há algo de oferta
nesse grande plano que vem preencher, com uma agradável surpresa, uma ausência da
imagem. Mas a realização insiste de forma bastante pesada em duas coisas: por um lado
Laura é alguém que volta, um fantasma, uma vez que ela foi assassinada antes do início
do filme (ou pelo menos é aquilo em que o espectador aci'editou até este ponto). O seu
vestuário fá-Ia aliás parecer-se tanto com um espectro como com uma noiva. Por outro
lado, os planos precedentes serviram para acentuar a mono mania do detective, o facto
de ele estar a cair de sono enquanto vai consumindo doses de uma grande garrafa de
uísque. Toda a gerte se belisca para se persuadir de que não está a sonhar. Por fim, não
devemos ignorar a continuação: Laura, de regresso, será duramente submetida ao olhar
frio e um tanto sá,dico do inspector: inelutável alternância do Desejo e da Lei. t. apenas
nessa vacilação, nessa inversão que se pode apreender o papel e o efeito do "olhar para
a câmara". O espectador, é um papel interpretado pelo sujeito.
, I
I

155
A ANÁLISE DO FILME

3.4. O espectador no texto: a "sutura"


Por fim, uma outra grande abordagem analítica centrou-se na questão do olhar,
e particularmente sobre o papel dos olhares representados no ecrã, na actualização
do fenómeno postulado com o nome de sutura. Como a palavra indica, trata-se

de uma metáfora, e a sutura designa (hipoteticamente, convém sublinhá-lo) o
fechamento do enunciado fílmico, na medida em que ela é conforme à relação
entre o sujeito espectador e o enunciado fílmico. Na descrição que dá Oudart,
todo o campo fílmico instaura, implicitamente, um campo ausente, suposto pelo
imaginário do espectador; os objectos do campo (incluindo, obviamente, as perso-
nagens visíveis nesse campo) são outros tantos significantes desse campo ausente.
Por outro lado, e contraditoriamente, cada imagem tem tendência a ser tomada
como "soma significante", unidade autónoma de significação; certas imagens
possuem mesmo uma relativa autonomia semântica (simbólica, diz Oudart). Duas
imagens sucessivas (dois planos sucessivos) funcionam portanto primeiramente
como duas "células" autónomas, que não se articulam senão por uma forte meto-
nímia, ou através de um enunciado extra-filmico (verbal). A sutura, para Oudart,
é pelo contrário uma forma puramente fílmica de articulação entre duas imagens
sucessivas - puramente fílmica na medida em que se baseia em mecanismos que
não dependem do significado das imagens a articular e desenrola-se inteiramente
ao nível do significante fílmico e, especialmente, ao nível da relação campo/campo
ausente. Assim, Oudart lê a sutura no campo/contracampo como, e de forma
inseparável, 1) surgimento de uma falta (o campo ausente), 2) abolição da falta
pela aparição de algo proveniente do campo ausente: a "sutura" é o que anula a
"abertura" introduzida pelo estabelecimento de uma "ausência".Este modelo (muito
simplificado por nós, particularmente ao ser-lhe retirada a dimensão normativa) é
destinado, pelo seu autor - ainda que ele nunca o afirme de forma muito clara - a
assegurar no texto fílmico a representação de um fenómeno de "sutura" mais
geral, aquele que se produz na relação do sujeito falante com o seu próprio discurso,
segundo o modelo proposto por Jacques-Alain Miller, um discípulo de Lacan no
qual Oudart se inspira de forma muito literal. Para Oudart, a sutura é um caso de
figura limite, mesmo excepcional; no cinema da não-sutura, o campo imaginário
permanece sempre o de uma ausência e "do sentido só se percebe a letra morta, a
sintaxe"; em contrapartida, no cinema da sutura, o significado não é extraído da
soma significante de uma imagem, mas da própria relação entre duas imagens: o
espectador tem acesso a um sentido verdadeiramente fílmico.
Esta teoria, difícil de compreender devido ao carácter elíptico e alusivo do artigo
de Oudart, é além disso verdadeiramente inverificável; ela apresenta, em Oudart,
o inconveniente suplementar (!) de ser fundamentalmente normativa, uma vez
que introduz uma hierarquia de valores entre o cinema da sutura (plenamente
cinematográfico), infelizmente mais ou menos reduzido a alguns filmes de Bresson
e algumas sequências de Lang. É por estas duas razões - obscuridade da teoria
e discutível restrição do seu campo de validade - que, desde o aparecimento do
texto de Oudart, uma boa dúzia de autores tentaram retomar o seu modelo, mas
alargando-o cada vez mais. Mencionámos já um dos textos onde essa tentativa é
mais clara, a análise de um fragmento de Cavalgada Heróica por Nick Browne;
encontramos aí, sem ambiguidade, uma extensão do mecanismo postulado por
156
6. PSICANÁLISE E ANÁLISE DO FILME

Oudart, não apenas a todos os casos de campolcontracampo, mas a uma relação


entre dois planos sucessivos que articulam dois olhares de forma mais imprecisa
(aquilo que Browne chama a estratégia do "olhar descrito"). Mas incontestavelmente,
o autor que procurou mais sistematicamente aprofundar de forma analítica, com
exemplos textuais precisos, esta noção de sutura, é Stephen Heath.
A noção de sutura é em si mesma demasiado problemática para que possamos
fazer dela um tema de análise; ela sugere, em contrapartida, uma abordagem dos
textos fílmicos que analisa, já não a presença imanente no texto de estruturas
do inconsciente em geral, já não a relação imediata e incessantemente variável
do espectador com o filme (em termos identificatórios), mas os significantes do

Anne Wiazemski em Peregrinação Exemplar, de Robert Bresson (1966).

o Túmulo Indiano, de Fritz Lang (1959).

157
A ANÁLISE DO FILME

sujeito espectador no texto. Esse tipo de análise, evidentemente, será amplamente


pautado pelo mais evidente desses significantes, o olhar. Mas a ideia de "sutura",
I
I
no sentido alargado que tomou a maior parte das vezes, recobre de facto todas as
diversas posições do sujeito-espectador em relação quer ao espaço do campo, quer
ao do "outro-campo". Se essa relação se torna mais aparente, e mais susceptível de
transformação, no momento do raccord, não é menos verdade que, por natureza,
ela varia mais ou menos continuamente no decurso de um mesmo plano (parti-
cularmente em função dos olhares mútuos das personagens no ecrã, mas também
da sua posição no espaço, e de modo geral da maior ou menor "marcação" desse
"lado oculto" da cena que constitui o enquadramento). Uma análise de filme
nestes termos e segundo este eixo é portanto, na sua aplicação concreta, bastante
próxima de uma análise da encenação.

3.5. As análises feministas nos E.D.A.


Por fim, é preciso assinalar aqui, devido à importância considerável (quantitativa
e qualitativa) que nestes últimos anos assumiram, as análises de filmes centradas
nas questões que acabámos de descrever, mas de um ponto de vista particular, de
inspiração feminista, e sublinhando, no interior desses problemas, naquilo que
diz respeito seja à representação da mulher como objecto de desejo (e objecto da
pulsão escópica), seja à diferença de posição entre os figurantes homens e mulheres
em relação ao papel do olhar.
Esta corrente, praticamente inexistente na literatura analítica em Francês,
assumiu, em contrapartida, uma notável extensão nos países de língua inglesa
(favorecida, na América do Norte, pela existência de um quadro institucional no
interior da Universidade: aquilo que se designa os "Estudos de género"). Do mesmo
modo todos os textos principais sobre este tema foram publicados em inglês. Entre
os artigos com vocação teórica geral, o mais frequentemente citado é o de Laura
Mulvey, "Visual Pleasure and Narrative Cinema" (1975).
Vamos resumir este importante artigo de forma sucinta. O ponto de partida é assim
enunciado: o olhar do sujeito humano (e portanto, do mesmo modo, os espectáculos e
as imagens) é enformado por uma interpretação da diferença entre sexos. A mulher, que
na teoria psicanalítica simboliza a ameaça de castração, é para o homem um significante
de alteridade.
A autora lembra em seguida que o dispositivo cinematográfico se baseia em dois mecanis-
mos subjectivos principais: o voyeurismo (uma pulsão que toma o outro como objecto;
o facto de olhar uma outra pessoa como objecto tem portanto sempre uma base erótica)
e a identificação (o cinema corrente, ligado à forma humana, a todos os níveis, escala,
espaço, histórias, propõe-se como uma espécie de espelho). Essesdois mecanismos são
vistos por Mulvey como relativamente contraditórios, uma vez que um implica separação
entre sujeito e objecto do olhar, e o outro identificação.
No real, o prazer do olhar está dividido em masculino (activo = prazer de olhar) e feminino
(passivo = prazer de ser olhada). No cinema, a presença visual da mulher no filme narrativo
tende a gelar o fluxo da acção, ao provocar a contemplação erótica. Esta contradição é
resolvida nos momentos de puro espectáculo (grandes planos de rostos, de pernas ... )
ou de espectáculo dentro do espectáculo (por exemplo, as comédias musicais). No filme
narrativo clássico, o papel do homem é activo, é ele que faz sobrevir os acontecimentos,
e é ele também que é portador do olhar do espectador, "neutralizando" o perigo da
mulher como espectáculo (uma vez que a mulher, que significa a castração, ameaça
sempre fazer surgir a ansiedade).

158
I I

6. PSICANÁLISE E ANÁLISE DO FILME

Mulvey analisa por fim, com alguns exemplos, as soluções encontradas, concretamente,
no cinema clássico,para fazer abortar esse"perigo" escondido na imagem feminina. Assim
o filme negro é visto como reencenação do trauma primitivo (descoberta da ausência do
pénis da mãe) na forma transposta de cenas de sadismo. Um cineasta como Josef von
5ternberg encontra a solução do lado do fetichismo (o herói masculino, literalmente,
não vê a mulher), etc.

Imitação da Vida, de Douglas Sirk (1959).

159
A ANALISE DO FILME

Com base no texto de Mulvey, e de algumas outras autoras, desenvolveu-se


então uma corrente crítica (que aqui não nos concerne directamente) e também
uma corrente mais analítica. As primeiras análises publicadas eram geralmente
consagradas a "filines de mulheres" (no sentido de "filmes nos quais uma mulher
tem o papel principal", como A Mulher Rebelde, de Raoul Walsh, ou Imitação da
Vida, de Douglas Sirk), e preocupavam-se directamente com evidenciar a diferença
de estatuto entre olhar masculino e olhar feminino tal como postulado por Mulvey.
Mais tarde começou a assistir-se a um deslocamento bastante nítido do centro
de interesse dessas análises feministas, que se interrogam sobretudo, agora, sobre
a possibilidade de uma "alternativa" ao cinema clássico de Hollywood; O mais
frequente, nesta abordagem, são os filmes realizados por mulheres que se vêem,
logicamente, privilegiadas. Seja qual for o filme analisado, actualmente a questão
parece ser muito menos identificar as diferenças de representação entre homem e
mulher no ecrã, do que procurar compreender e descrever a forma como um filme
pode (poderia, deveria) dirigir-se a "um" sujeito espectador feminino.

160
.CAPíTULO 7

Análise de filmes
e história do cinema:
verificação de uma análise

1. ANÁLISE DE ESTRUTURAS IMANENTES OU


ANÁLISE DE FENÓMENOS HISTÓRICOS
Vamos agora questionar a autonomia absoluta de um sistema fílmico e ver
se a análise tem sempre diante dela estruturas imanentes, próprias de um único
texto, ou se, pelo contrário, essas estruturas podem ser susceptíveis de uma certa
quantidade de recorrências, de repetições mais ou menos sistemáticas. Será possível,
através da análise de obras particulares, revelar fenómenos históricos, e definir,
pela permanência de certos traços, estilos fílmicos característicos de certas épocas?
Estas questões estão no horizonte da maior parte das tentativas de análise de vastos
corpus de filmes que caracterizam investigações recentes: trabalhos de Lagny-Ropars-
-Sorlin sobre o cinema francês dos anos 30, de Bordwell-Staiger-Thompson sobre
o "cinema clássico americano", da equipa de Gaudreault-Gunning sobre o cinema
das origens até 1908, de Noel Burch sobre o cinema japonês, para nos limitarmos
aos projectos mais ambiciosos ...

1.1. Análise.de filmes e intertextualidade


A quase totalidade das análises fílmicas que evocámos ao longo desta obra des-
confiavam com razão das abordagens baseadas no recurso às fontes, às intenções
anunciadas pela equipa de realização e ao discurso crítico estritamente contempo-
râneo da distribuição do filme. Esse procedimento limita na análise a enumeração
de casos ou esboços informativos constantemente repetidos em detrimento de uma
abordagem mais sistemática e interpretativa. Não é contudo inútil conhecer bem
o contexto de produção de uma obra e a genealogia estética na qual ela pretende
inscrever-se. O exemplo de dois filmes de Jean-Luc Godard estudados por Dudley
Andrew (OAcossado, 1960) e por Michel Marie (O Desprezo, 1963) permitir-nos-á
ilustrar o interesse da perspectiva intertextual.
O intertexto e o fenómeno da intertextualidade pertencem ao vocabulário crítico de
Julia Kristeva e de Roland Barthes (cf. o capítulo sobre a análise textual). Essefenómeno
possibilita recordar que qualquer texto é trabalhado por outros textos, por absorção e
transformação de uma multiplicidade de outros textos. .
I
Como escreve Roland Barthes: "Todo o texto é um intertexto; nele estão presentes
outros textos, em níveis variáveis, com formas mais ou menos reconhecíveis: os textos

161
A ANÁLISE DO FILME

da cultura anteriar e as da cultura circundante; qualquer texta é uma nava trama de


citações passadas (... ) A intertextualidade, candiçãa de tada a texta, seja qual far, nãa se
reduz evidentemente a um problema de fantes e influências; a intertexta é um terrena
geral de fórmulas anónimas de .origem raramente lacalizável, de citações incanscientes
.ou autamáticas, farnecidas sem aspas. Epistemalagicamente, a canceita de intertexta
é a que praparciana à tearia da texta a amplitude sacial: tada a linguagem anteriar e
cantemparânea vem aa texta, nãa pelo caminha de uma filiaçãa recanhecível, .ou de
uma imitaçãa valuntária, mas por uma disseminaçãa - imagem que garante aa texta a
estatuta, nãa de uma reprodução, mas de uma produtividade32".

1.1.1. O Acossado, a autenticidade e a referência


Na seu estuda "Au début du sauffie: le culte et la culture d' À bout de souJfle"
[Na Princípia da Fôlega: a Culta e a Cultura de O Acossado], Dudley Andrew
interraga-se sabre cama a filme de Gadard canseguiu canciliar dais desejas cantra-
ditórias: um deseja de "autenticidade", de expressãa de uma fala radicalmente nava
e pessaal, e par .outra lada um deseja de referências e de filiaçãa, de reapropriaçãa
das códigas da filme americana de série B: ''Através de uma trama de referências
e citações, O Acossado apresentava uma relaçãa espantânea entre a pasiçãa da seu
cineasta e a vida cantemparânea nas ruas. É a sua reivindicaçãa e a seu paradaxa",
explica a autar. Na inÍcia da artiga, ele analisa a primeira fase cultural de Gadard,
que vai de 1949, data da seu encantro cam a cinema, até 1960 (estreia da filme).
Durante essa fase, Gadard nas suas críticas e primeiras curtas-metragens afirma
canstantemente a amnipresença da maral e a sua necessidade na vida cultural da
pós-guerra. A arte autêntica só pade ser a fruta de criadares sinceros que recusam
as cancessões da "cinema de qualidade". Andrew destaca as referências a Malraux e
a Sartre cama ma delas de atitude maral e palítica para Gadard. As características
da vida maderna sãa aas seus .olhas a rapidez de acçãa, a audácia e a engenha,
qualidades que encantra nas primeiros romances de Malraux e na seu destina
palítica (a seu campromissa na guerra de Espanha da lada das republicanas e a
seu filme Sierra de Teruel, 1939-1945).
Gadard reencantra essa espantaneidade na cinema americana de série B,
em particular na "filme negro". Dudley Andrew mastra cam grande perspicácia
tadas as referências explícitas e implícitas nas filmes negras recanhecíveis em O
Acossado, cam frequência aludidas mas raramente enumeradas e analisadas. Há
citações directas: a cartaz de The Harder They Fall (A Queda de um Corpo, Mark
Rabsan, 1956), a retrata de Humphrey Bagart, a excerta de diálaga de Whirlpool
(Turbilhão, Otta Preminger, 1949) escutada numa sala de cinema - vazes de Gene
Tierney e Richard Cante; há sabretuda referências narrativas a situações típicas
.ou particulares: Gilda (Charles Vidar, 1946), Fallen Angel (Anjo ou Demónio,
Otta Preminger, 1945), a agressãa nas casas-de-banha públicas que vem em linha
recta de TheEnforcer (Sem Consciência, Bretaigne Windust e Raaul Walsh, 1951),
a anedata que Paiccard canta a Patricia a prapósito da matarista de autocarra
que tinha roubada uma fartuna para impressianar uma rapariga, e que resume a
tema de Gun Crazy (Mortalmente Perigosa, ]aseph H. Lewis, 1949), a réplica da
inspectar Vital a Talmatchaff, "Tu te rappelles quand tu as danné tan ami Bab"
[Lembras-te de quanda entregaste a teu amiga Bab], que remete para Bob te Flam-

32 7héorie du texte, E. u., p. 1015.

162
7. ANÁLISE DE FILMES E HISTÓRIA DO CINEMA: VERIFICAÇÃO DE UMA ANÁLISE
I

beur (Jean-Pierre Melville, 1955)... Dudley Andrdv chega a evocar o tom geral
de filme negro que domina o filme, traduzido pelo sbnho de Poiccard de ir para o
sul de Itália, coPl a namorada e o dinheiro, que lentbra os sonhos de "segurança
além-fronteira", a do México, de tantos anti-heróis dos anos 40.
Andrew evota, de seguida, "a sombra filosófica" do filme e lembra que Michel
Poiccard foi percebido como uma "reencarnação do Roquentin de Sartre, do
Meurseault de <!:amuse dos heróis perversos de Genet", o que lhe permite, através
da filiação exis~encialista, estender as referências cinematográficas para fora da
América e trazê'-Ias para solo francês. Belmondo seria uma ressurgência da per-
sonagem encarnada por Gabin, a fumar e a percorr~r o quarto nas suas últimas
horas em Foi Uma Mulher que o Perdeu, ou a brincar com o urso de peluche da
namorada. A relação é ainda mais pertinente com O Cais das Brumas, onde, como
desertor, ele espera evadir-se num barco com Michêle Morgan, mas é abatido no
último momento. Andrew vê nessa filiação o percu~sode um modelo histórico
I
cuja origem residiria no cinema expressionista alemão.
I
"Gabin impôs um estilo de representação poderoso e t,aciturno nos filmes pessimistas
que precederam a 11Guerra Mundial. Ele construía os seus papéis com atitudes que em
grande medida eram adoptadas do expressionismo alemão, mas dominava o seu próprio
corpo, só se permitindo soltá-lo uma vez em cada filme', Ele é o modelo que Bogart iria
encarnar na América durante a guerra, transmitindo a sua contenção a Dana Andrews,
Fred MacMurray e ao catatónico Richard Widmark. É um~ tradição que regressa a França
com O Acossado". '
~ I
Estas referências intertextuais são usadas pelo menos de dois modos. O primeiro,
mais persuasivo, i acentua o impacte estético e filosó,fico do seu próprio esforço
"ligando-o ao filme negro de baixo calibre com as sua~ infernais cogitações sobre a
morte e o amor"; o segundo, que cita romancistas, pintores e compositores célebres
(Françoise Sagan, Maurice Sachs, Jean Genet, Malraux, Renoir, Picasso, Mozart,
Bach, Brahms ... ), diz mais respeito à textura do filme do que à sua estrutura.
Segundo Andrew, Godard "salpica a sua tela" com esses nomes para variar o tom e
o interesse das ceflas, para conservar o drama num espaço vivo e cultural. Ele será
assim o primeiro a referir nomes como Renoir e Faulkner, a mostrar o "Romeu e
Julieta" de Picass~, a brincar com a arte, irreverente, isto é, com desenvoltura. A
espiral deste turbilhão de referências provém quer dos filmes de série B, quer da
literatura existencial; mas o que é profundamente original é a energia do filme,
o facto de todas Jssas lembranças, citações, paródias, homenagens, procedimen-
tos que dependem do passado, serem reaproveitadas num tempo discursivo e
utilizadas no presente. E nisso que, em O Acossado, Godard reinventa: tudo nele
parece exprimir-se pela primeira vez. Daí a perfeita c;onciliação de uma estética
da simulação e da autenticidade: o caminho para a expressão sincera passa inevi-
tavelmente, ao contrário dos filmes clássicos de autor (os de Bergman e Fellini)
por rituais preexi~tentes, e o acto livre de fazer um filme num momento histórico
preciso liga-se a esses rituais que é quase impossível evitar.

1.1.2. O Desprezo, monumento funerário do ci1llemaclássico


A quinta longa-Pletragem de Jean-Luc Godard é uma superprodução internacional
com uma estrela (Brigitte Bardot), e é também, na prHneira parte da obra do seu
autor, o filme mais reflexivo sobre a história do cinema:e o seu futuro. Adaptando
I
163
A ANALISE DO FILME

Viagem a ltólia, de Roberto Rossellini (1953).

o Desprezo, de Jean-Luc Godard (1963).

Alberto Moravia, Godard põe em cena um produtor americano tirânico, um autor


que encarna a célebre política dos Cahiers du Cinéma, e um argumentista-adaptador
por encomenda, cuja vocação pende mais para o teatro. Michel Marie em "Un
monde qui s'accorde à nos désirs" [Um mundo que se harmoniza com os nossos
desejos] - célebre frase atribuída a André Bazin, que Godard inscreveu no filme
- dedica-se a mostrar, em todas as personagens, as referências fílmicas trazidas
pela escolha dos actores. Jack Palance permite a Godard modificar a nacionalidade
do produtor, que em Moravia era italiano, e ligar Jeremy Prokosch à galeria de
produtores holIywoodianos representados nos filmes americanos auto-reflexivos:
A Condessa Descalça, No Reino da Calúnia; mas Palance é também um actor de
filmes de género, em especial bíblicos ou históricos: O Sinal do Pagão, Revak o
Rebelde, O Maior Império do Mundo. Esse predador capitalista comporta-se como
164
7. ANÁLISE DE FILMES E HISTÓRIA DO CINEMA: VERIFICAÇÃO DE UMA ANÁLISE

Viagem a Itália, de Roberto Rossellini (1953).

o Desprezo, de Jean-Luc Godard (19~3).

um imperador romano, assina cheques nas costas do seu escravo e liquida os últi-
mos vestígios do humanismo europeu.
Ao ir buscar Fritz Lang para interpretar o criador; Godard acrescenta à obra
de Moravia uma dimensão fundamental, ausente do romance. Lang é o artista
livre que recusou todos os compromissos, tendo resistido à ditadura nazi como à
maquinaria hollywoodiana. Ele encarna a figura do Sábio, do homem de cultura
que cita Dante, Hõlderlin, Brecht e Corneille; Godard assimila-o à figura de
Homero.
Estes dois breves exemplos demonstram a necessidade absoluta de inscrever a
análise de O Desprezo num momento preciso da história do cinema, como ponto
cimeiro da Nouvelle Vague e constatação do desaparecimento da maior parte da
produção "clássica".
165
A ANÁLISE DO FILME

1.2. A análise de corpus alargados


Conforme já mencionámos, uma das utilizações actuais mais frequentes de
técnicas de análise do filme acha-se em todas as iniciativas que necessitam de prestar
uma atenção analítica a um grande conjunto de filnies. Esses estudos, apesar do
volume dos meios que exigem, desenvolveram-semuito e representam de certo modo
um estádio intermédio entre a análise de um filme singular e a teoria do fílmico
ou história do cinema; quase sempre consagrados a corpus histórica e formalmente
homogéneos, eles "aplicam" mais ou menos directamente algumas das técnicas e
alguns dos resultados extraídos durante décadas de análises de filmes.
Os métodos em questão não são estritamente "textuais", mas a dimensão" de
código", mesmo que a palavra só muito excepcionalmente seja usada, é aí mais
visível do que na análise de filmes isolados. De resto, isso não deveria surpreender-
-nos por aí além: a consideração de conjuntos de filmes que podem chegar a
vários milhares de unidades necessita que nos dotemos de um mínimo de eixos,
em prindpio comuns a todos os filmes, que permitam rapidamente uma análise
eficaz. Nunca até hoje, de facto, se analisaram sistematicamente, um a um, todos
os filmes de um conjunto desse tipo. .
É claro que, nesse ponto específico, as coisas podem estar a mudar. O uso de meios infor-
máticos e a constituição de equipas homogéneas prometem, pelo menos para corpus
relativamente simples, avanços importantes. Refira-se o projecto de análise filmográfica
impulsionado pelos investigadores André Gaudreault e Tom Gunning,consagrado à pro-
dução cinematográfica do primeiro decénio (1900-1908),como a tentativa mais ambiciosa
e radical de análise exaustiva de um vastíssimo conjunto, visto tratar-se da produção
mundial de quase dez anos. O corpus é todavia limitado pelos acasos da conservação
das cópias, pois os autores pretendem descrever sistematicamente todos os filmes cujas
cópias são ainda manipuláveis hoje, nos vários arquivos de filme.

1.2.1. A investigação das origens (o cinema dos primeiros tempos)


Este projecto inscreve-se no contexto da releitura "ideológica" inaugurada por
Jean-Louis Comolli, com a sua série de artigos sobre "Técnica e Ideologia", das
obras dos historiadores "clássicos"do cinema: Georges Sadoul eJean Mitry, especial-
mente. Está igualmente relacionado com o desenvolvimento, observável um pouco
pelo mundo inteiro, dos trabalhos de restauro e arquivo efectuados pelas diversas
cinematecas. Foi aliás o conservador de uma cinemateca, David Francis do N.F.A.
[National Film Archive] de Londres, que teve a ideia de organizar em Brighton
(1978) um encontro durante o qual foram projectados mais de 600 filmes realizados
entre 1900 e 1906, e que foi o ponto de partida de todas estas investigações.
A equipa de André Gaudreault e Tom Gunning publicou, no fim desse encontro,
uma primeira filmografia analítica que compreendia 548 breves fichas descritivas dos
filmes (FIAF, 1982). Desde então, o projecto, que se expandiu consideravelmente,
propôs-se retomar cada descrição e completá-la com base num visionamento na
mesa de montagem, cinemateca por cinemateca; e alargar exaustivamente essas
descrições para todos os filmes conservados no mundo.
Esta primeira fase do trabalho deve permitir o estabelecimento de uma tipologia
das principais formas de montagem utilizadas, e proceder ao estudo da evolução
da montagem entre 1900 e 1908 e dos seus efeitos no desenvolvimento da narra-
tividade cinematográfica.
166
7. ANÁLISE DE FILMES E HISTÓRIA DO CINEMA: VE~IFICAÇÃO DE UMA ANÁLISE

Com base nas suas primeiras observações (visionamento detalhado de várias centenas de
filmes), André Gaudreault e Tom Gunning foram levados a propor "dois modos de práticas
fílmicas": o primeiro designa-se "sistema de atracções mostrativas" e o segundo "sistema
de integração narrativa". O sistema de atracção mostrativa teria um conhecimento muito
fraco do regime da narração fílmica. A sua unidade básica seria o plano, considerado em
si uma micronarrativa autónoma.
Inversamente; o sistema de integração narrativa foi o que permitiu que o cinema seguisse
um processo gradual de narrativização. O discurso fílmico foi colocado ao serviço da his-
tória a transmitir: os diversos elementos da expressão fílmica mobilizaram-se, a todos os
níveis, para fins narrativos; quer fossem elementos pre-fílmicos, relativos à composição
da imagem, ou as diversas operações de montagem.
O que em primeiro lugar distingue o sistema de integra'ção narrativa daquele que viria a
ser o seu sucessor é precisamente o seu papel de transição entre o cinema mais mostra-
tivo de antes de Griftith e o cinema a que se chamaria clássico, e no qual a narrativização
domina completamente.

La saucisse mystérieuse, filme Pathé (1913).

1.2.2. O cinema hollywoodiano (D. Bordwell,'1. Staiger, K. lhompson)


Numa óptica mais especificamente filmológica, David Bordwell, Janet Stai-
ger e Kristin Thompson optaram por abordar frontalmente a questão do cinema
"clássico" hollywoodiano; para tal, e a fim de fugir à repetição de hipóteses antigas
e bem conhecidas, mas jamais verificadas empiricamente (principalmente as que
giram à volta da poção, já evocada, de "transparência"), estes autores adoptaram
um método resolutamente empírico. Sendo obviamente a dimensão do corpus
a estudar suficiente para desencorajar a análise exaustiva, eles decidiram fazer-
-lhe uma punção, segundo modalidades puramente aleatórias (tiragem à sorte).
Podemos observar que nesse estádio da selecção dos cerca de 200 filmes seguida-
mente estudados com mais pormenor, intervieram procedimentos de ponderação
destinados a gaqntir que nenhum tipo de filme ficasse sobrerrepresentado ou
sub-representado: consequentemente, essa selecção inicial já exercia pressupostos
relativamente à composição do conjunto (por exemplo, em termos de géneros,
para ficarmos pelo óbvio); apesar de todas as precauções imagináveis, não deve-
mos julgar que esta análise pode substituir absolutamente a do corpus integral.
Quanto à análise propriamente dita dos filmes seleccionados, ela concentrou-se
nas características "formais", com a intenção manifesta de confrontar os resulta-
dos com o modelo implícito (e um pouco vago) fornecido pela noção de "cinema
clássico hollywoodiano".
167
A ANÁLISE DO FILME

Os autores constatam que a prática de Hollywood enquanto estilo e modo de produção


impôs-se ao mundo inteiro como norma e modelo, dos anos 10 aos anos 60. "Clássico" é
então primeiramente tomado como sinónimo de conforme a uma norma. Um dos objectivos
das análises de Bordwell-5taiger-Thompson é mostrar como, num lapso de tempo notavel-
mente curto, a indústria do cinema conseguiu codificar certas práticas cinematográficas
aceites pelo público logo que lhes via os resultados no ecrã. "As convenções utilizadas
para descrever o espaço ou a psicologia das personagens e as suas motivações, que no
princípio talvez fossem simples convenções, deixaram de o ser quando o público aceitou
essaspráticas como normas". Essanorma não passa de um sistematismo na aplicação, e
tem pouco a ver com o realismo. Paraos autores, o que tornou essesistema "clássico" foi a
sua estabilidade, a importância que ele concede à unidade e à coerência interna e o facto
de ter podido reclamar-se como universal. Ao longo dos capítulos, a obra demonstra que
a necessidade de comunicar uma história o mais eficazmente possível, e da maneira mais
atractiva, determinou os vários elementos do estilo clássico: amontagem em continui-
dade, as convenções relativas ao espaço, as acções paralelas e a planificação das cenas; e
as relações entre os planos, os movimentos de câmara, a estrutura do ponto de vista.
Os autores estabelecem o princípio dos "equivalentes funcionais", querendo com isso
significar que os diferentes procedimentos formais ou técnicos, por exemplo os movi-
mentos de câmara, a iluminação, a música ou a cor, podem substituir-se mutuamente,
pois é-lhes possível preencher a mesma função sem transgredir as normas nem violar
a unidade e a coerência. Esse princípio implica uma padronização da produção, uma
padronização analisada em todos os estádios sucessivos da indústria cinematográfica
americana que combinam a mudança e a continuidade, principalmente as mudanças
na tecnologia de base: a introdução do filme sonoro, por exemplo. Essasmudanças não
são radicais nem abruptas, constituindo mutações e combinações novas de elementos
destinados a conservar um equilíbrio entre conformidade e preservação, por um lado,
e diferenciação, por outro.

1.2.3. "Genérico dos anos 30"


O trio de investigadores franceses que já evocámos, formado por MicheIe
Lagny, Marie-Claire Ropars e Pierre Sodin, propôs-se experimentar o método da
análise estrutural e temática aplicando-a ao cinema francês dos anos 30. Alguns
títulos do fim do período, como Foi Uma Mulher que o Perdeu e A Grande Ilusão,
serviram como modelos para um certo classicismo francês, especialmente para
André Bazin, mas a produção francesa nunca conheceu, como nos Estados Unidos,
uma organização industrial e padronizada, susceptível por si só de codificar as
normas dominantes. O cinema francês nunca foi uma "máquina de bem contar
histórias", e daí a sua originalidade artística e debilidade económica.
A obra, publicada após dois artigos isolados, concentra-se em torno do ano
de 1937. Também aqui é manifesto o aspecto arbitrário da escolha da amostra.
Ao contrário da análise do cinema clássico hollywoodiano, ela praticamente não
aborda a organizaçãq económica da produção, limitando-se ao tratamento interno
de uma série de filmes.
Explicam-se assim os autores: "Antes de mais, excluímos totalmente o que dizia respeito
à produção e à exploração, tanto por falta de informação sobre o contexto como por
cepticismo quanto aos eventuais resultados: a grande pulverização do sistema produtivo
tornava esse estudo inutilmente moroso. Para cada Pathé, que entre 1930 e 1935 produz
anualmente uma dúzia de filmes, temos uma centena de empresas que faz um ou dois
filmes e desaparece, sem deixar vestígios nem do financiamento, nem da rodagem,
nem da difusão. A exploração seria mais acessível à custa de um gigantesco inquérito
nos jornais da província; ganharíamos alguma noção dos programas, mas nada sobre a
frequência e os gostos do público.

168
7. ANÁLISE DE FILMES E HISTÓRIA DO CINEMA: VEffilFICAÇÃO DE UMA ANÁLISE

Mesmo assim, o interesse desta análise é a multilJlicação da diversidade, tanto


metodológica Jomo de tema, das abordagens: o primeiro capítulo, após apresen-
tar as suas "ferramentas" (todas elas narratológicas, da unidade sequencial aos
protagonistas), ensaia o método com uma película convencional, Rendez-vous,
Champs-Elysées(Jacques Houssin, 1937), totalmente esquecida pelos historiadores:
"ao seleccionar iuma das nulidades mais enfadonha~, tentámos delimitar o vazio
em que ela se move". De forma muito clássica, os ahtores confrontam, com uma
delicadeza inversamente proporcional à do objecto, uma abordagem temática e
uma abordagedI estrutural. As linhas temáticas do filme associam frouxamente a
penúria financeira como engrenagem da acção, a mJralização de um estroina pelo
amor, e um "burguês" que se lança ao trabalho e descobre as classes populares,
tudo isto com um fundo de ridículo. Mas esse "riHículo, necessário ao funcio-
namento da in~ersão, não é alcançado pela escrita,! que permanece irresoluta, e
permite escamo:tear os desempregados, o conflito so~ial, a feminização doméstica
que seria necessária à regeneração do patrão". A análise estrutural verifica essa
"imprecisão da escrita", ao distinguir 44 sequênciasl das quais 31 constituem um
conjunto inestruturável, que está presente para enc*er.
O segundo capítulo elege como texto um conjunto de quatro filmes, dois
"clássicos" e dois "monos" anónimos, nenhum dos quais é tratado individual-
mente; os dois capítulos seguintes abordam, de fonnas bastante diferentes, duas
classes de filmes: o "filme de guerra" e o "filme coldnial". A última abordagem é
dedicada a uma aproximação narratológica dos papéis e das funções, partindo de
um apanhado estatístico da frequência das intervenções dos actores.
O cinema francês dos anos 30 deu origem, desde a publicação em 1975 do primeiro
volume dos catálogos de Raymond Chirat, a várias invest(gações em torno da problemática
"Cinema e História". Assim, François Garçon, em De S/um à Pétain (Cerf, 1984), dedicou-se
ao estudo exaustivo dos filmes franceses produzidos ent're 1936 e 1944, tratando-os como
um conjunto Ideológico-temático documental, para os confrontar aos temas caros ao
discurso oficial de Vichy. Eleaborda a célebre trilogia "Tr'abalho-Família-Pátria", tornando
visível uma rede de antagonismos entre os filmes de antes e depois do desastre de 1940 ..
O estudo da representação dos estrangeiros, especialmente dos ingleses, proporciona
observações inesperadas. A "viagem nas imagens" leva o autor a esta constatação para-
doxal: "a oscilação do país no seu período mais sombrio corresponde à aparição de um
cinema ideologicamente correcto e moralmente irrepreensível. Na altura em que todos
os veículos de ideias (os grandes jornais, a rádio, boa parte da edição literária) embarcam
numa época vil, o cinema cala-se.Ecala-se sobre questões como a Grã-Bretanha, osjudeus
e a xenofobia,1sobre as quais, até então, fora tão eloquente, Etão cruel".

1.2.4. 1895 filmes constituem o western dos anos 20?


Por fim, uma iniciativa ao mesmo tempo comparável pela sua amplitude, mas
bastante difere~te nos meios, foi levada a cabo po~ ]ean-Louis Leutrat sobre o
western dos anos 20; ela originou vários artigos e um livro.
Aqui, o primeiro problema era definir exactamente o corpus: se as expressões
"o cinema francês dos anos 30", ou mesmo "o cinema clássico americano" bastam
para definir col~cções de objectos fílmicos, tal não ;ucede com o rótulo western,
sempre por definir, como todos os rótulos de género,' ainda mais para um período
em que o género não está verdadeiramente formado. Por outro lado, os 1895
filmes recenseados por Leutrat como parte do seu corpus, também à custa de
pressupostos que definem os critérios de pertença, nem sempre estão disponíveis
169
A ANÁLISE DO FILME

na totalidade. Alguns há muito que desapareceram. O estudo adquiriu então uma


forma particular, pois o autor pretendeu estudar todo um conjunto de que só
pôde ver uma proporção diminuta de filmes; daí, por exemplo, o recurso maciço
a fontes "secundárias" externas (sobretudo recensões críticas), e uma importância
relativamente menor concedida à análise formal. Mas aqui também é claro que o
objectivo excede em muito a análise do filme: no mínimo trata-se de pôr à prova
e contestar a noção tradicional de género, e no máximo de trabalhar, com este
exemplo, nas relações entre representação, mito e história.

1.2.5. Análise de corpus alargados, história e estudo de códigos


Que todos os trabalhos abordados em 1.2. sejam obra de historiadores, ou rea-
lizadas em colaboração com historiadores e numa perspectiva histórica, não deve
surpreender, mas antes indicar apenas uma notável deslocação da investigação, de
problemas estéticos, "da linguagem" e teóricos da representação, para problemas
mais sociológicos, ou ideológicos, ligados às representações.
Estes estudos de corpus alargados são também heterogéneos. Uns centram-se
mais nas noções de estilo, de forma (Bordwell-Staiger-Thompson),nas configurações
estruturais (Lagny-Ropars-Sorlin), no modo de representação ou modo de prática
fílmica (Gunning-Gaudreault, e também Noel Burch sobre o mesmo período e
sobre o cinema japonês); outros centram-se mais nos conteúdos representativos
(Leutrat, Garçon, os exemplos podem facilmente multiplicar-se). Todos podem ser,
numa certa medida, qualificados "de código", se a esse termo dermos uma acepção
ampla e flexível. Bordwell-Staiger-Thompson estudam o cinema clássico americano
sob o prisma dos seus códigos mais específicos: enquadramento, montagem, ilu-
minação, etc. Lagny-Ropars-Sorlin interessam-se pelos códigos narrativos e pela
enunciação: implicação sequencial, focalização, marcas formais de enunciação,
funções dos protagonistas, temporalidade. No outro extremo, Leutrat interessa-
-se, no western mudo, pelas representações sociais, e Garçon, no cinema francês
da Frente Popular até à ocupação, pelos enunciados ideológicos explícitos. Esses
fenómenos são também eles largamente "codificados", mas infinitamente menos
específicos do cinema, onde a "codificação" (por construir) adquire formas muito
mais imprecisas.
Nesta acepção, trata-se de uma categoria geral, decerto preciosa quando neces-
sitamos de elaborar uma teoria unificada e colocar no mesmo plano fenómenos
incomensuráveis, embora igualmente importantes - por exemplo, a iluminação e
o antagonismo sexual nos filmes -, mas uma categoria de manipulação delicada,
que muitas vezes acarreta o risco de derrapagem ou aplicação mecanicista, pois
remete, por definição, para um exterior social do filme, para as próprias "codifi-
cações" representativas ou ideológicas que em geral têm lugar numa sociedade, e
para as convenções gerais ou particulares que possibilitam a essa sociedade existir
como tal, produzir certo tipo de filmes e fazer com que o público se identifique
com a instituição cinematográfica.
Quer isto dizer que, se um dia se pensar fazer com rigor uma lista dos principais
códigos específicos do cinema que não seja demasiado incompleta, é inútil pensar
que se possa reunir a lista dos seus códigos culturais, que serão sempre em número
reduzido, e cuja definição será sempre ao arbítrio do historiador, do sociólogo ou
do antropólogo, mais do que do analista de filme ou do semiólogo.
170
7. ANÁLISE DE FILMES E HISTÓRIA DO CINEMA: VERIFICAÇÃO DE UMA ANÁLISE
,

2. GARANTIAS E VALIDAÇAo DE UMA ANÁLISE


,
I
No final deste livro que apresenta as principais vias de acesso a um texto fíl-
mico, é indispep.sável interrogarmo-nos sobre a vaHdade dos resultados obtidos
durante uma análise, e sobre os critérios que podem ser usados para aferir essa
validade. Todos os métodos que citámos têm em comum um desejo (mais ou menos
nítido) de racionalidade - mas por essa razão é preciso também que apresentem
um mínimo de garantias científicas. Fomos mesmo ;levados a vincar, a propósito
de algumas, o quanto deixavam uma parte substanci,al à imaginação, quando não
à arbitrariedade, do investigador.
Com efeito, ? problema que aqui apresentamos é 'duplo. Primeiro, é o de saber
se uma análise foi efectuada de forma válida segundo bs seus próprios pressupostos
metodológicos: por outras palavras, o método escolhido foi mesmo correctamente
aplicado, e até ab fim? Em seguida, devemos perguntar-nos se o próprio método
é susceptível de justificação, de legitimação: escolheu-se um método adequado
ao objecto, levdu-se suficientemente em conta outras. abordagens possíveis do
mesmo objecto? Haveria, em suma, uma questão "interna" à análise, e uma
questão "externa".

2.1. Critérios "internos"


O grau de verificabilidade de uma análise através de critérios internos varia
muito segundo p tipo de método adoptado. Certos métodos implicam os seus
próprios critérios; é o caso, em particular, de todos os métodos que propõem a
construção de m;odelos ou esquemas. Nesses métodos, o critério de "verificação"
da análise é duplo:
- a análise obtida (ou o esquema construído) deve ser coerente - não albergar
contradiçõ~s internas, bem entendido, mas também tratar as suas diferentes
partes de maneira comparável (idêntico grau de minúcia, mesmos tipos de
elementos considerados, etc.);
- a análise nlo deve ser posta em causa pela inclusão posterior de novos ele-
mentos até aí não considerados. Uma análise deve ter uma certa "capacidade
de acolhimento", deve poder integrar no sistema construído níveis ainda não
analisados. '
Esta ideia da'verificação "interna" da análise é evidentemente de inspiração
estruturalista. Ela só tem sentido na perspectiva de um método mais ou menos
sistemático, que conduza a uma análise exaustiva ou tendencialmente exaustiva,
e que sobretudo estabeleça relações fortes entre os elementos. É em Barthes que
encontramos, de ,maneira mais explícita, essa afirmação de uma "auto-validação"
da análise "pela sua própria resistência e sistematicidade". Naturalmente, não é
uma verdadeira validação; no máximo podemos dizer que estas considerações
funcionam mais [como limites à análise (como limites à interpretação, ou seja, à
sobreinterpretação) do que como provas seja do que for.
O que estas exigênciasde coerência e exaustividade, ao menos potencial, definem
é o fechamento da análise, e não a sua verdade. Assim, a leitura de Sarrasine, de
Balzac, efectuad3; em S/Z é, no seu género, perfeita, por se "fechar" perfeitamente
sobre si mesma, j4 que, como o próprio Barthes refere desde o início, os cinco códi-
171
A ANÁLISE DO FILME

gos reconhecíveis logo nas primeiras lexias são os mesmos que intervêm no texto,
inteiro. Mas essa leitura metodologicamente "perfeita" não é menos questionável,
pois comporta explicitamente a sua parte de interpretação (sobretudo na leitura
do código simbólico, e mais exactamente na localização do tema da castração).
Podemos certamente imaginar outra leitura igualmente conseguida da mesma
novela, mas centrada noutro elemento c;: noutra interpretação.
De maneira geral, quanto mais uma análise fica próxima da simples descrição,
mais a sua verificação é fácil e segura; as análises rápidas, em termos formais ou
estilísticos, de filmes pertencentes a corpus alargados - tal como os que há pouco
mencionámos - são menos sujeitas a caução do que as análises textuais que fazem
amplo apelo à interpretação de níveis figurais ou simbólicos; ou até do que as
análises que utilizam "instrumentos" tão imprecisos e pouco directivos como o
"quadrado semiótico" de Greimas, por exemplo.

2.2. Critérios "externos"


Será seguramente mais eficaz e mais convincente julgar a validade de uma
análise em relação a critérios mais amplos. Na aplicação correcta do método, o
critério de correcção mais evidente é a comparação com outras análises do mesmo
género (que recorram ao mesmo método) e o confronto dos resultados. É um
critério relativamente aproximativo, é verdade, e que depende grandemente da
quantidade de análises realmente comparáveis àquela que se realizou. De novo,
as comparações são sempre mais fáceis quando o método é mais "formalizado",
quando implica procedimentos mais ou menos padronizados. Muitas vezes essa
comparação está implícita, e sobretudo efectua-se no momento de empreender
a análise, quando se avaliam os resultados que se espera obter. Uma análise
narratológica será indubitavelmente influenciada, ainda antes de começar, pelo
conhecimento que 'se possa ter de outras análises de filmes narrativos; a definição
de funções narrativas, por exemplo, é muitíssimo mais evidente se já foi praticada,
ou se se conhecem exemplos.
Um exemplo recente permite-nos relacionar dois procedimentos analíticos sobre o mesmo
objecto. No número especial da Revue belge du cinéma, dedicado a Godard, Jean-Louis
Leutrat procede à análise de três inícios de filmes do autor: Uma Mulher É Uma Mulher,
O Desprezo e Paixão: "If!était trois fois" [Era três vezes]. No mesmo número, algumas
páginas adiante, Roger .Odin estuda igualmente esses três genéricos: "li était trois fois,
numéro deux", acentua~do a abordagem pragmática, e a "entrada do espectador na
ficção" nesses três filmes;
~
A abordagem de Leutrat revela os processos estéticos utilizados por Godard, e desmonta
o funcionamento e o significado dos elementos significantes; inscreve o processo do ci-
neasta no da história da arte, ligando os ~éus iniciais da Paixão a Corot, Boudin e Constable,
à tradição dos pintores de céus e de nuvens. Quanto a Odin, este pensa na "instituição
cinema", máquina de ficção, e só aprecia a prática godardiana em relação à espera do
espectador habituado a filmes de ficção tradicionais. Ele explica assim as resistências à
mudança de "posicionamento" que Godard impõe, para concluir: "Paixão é o calvário do
espectador ficcionalizante", calvário estético que está na origem do prazer de Leutrat.

No que respeita à escol(hado método, a primeira possibilidade lógica é considerar


outras possibilidades analfticas para o mesmo filme. Todavia, esse procedimento,
que parece epistemologicamente racional, não deixa de apresentar grandes dificul-
dades práticas, às vezes insuperáveis. Escolher uma via de aproximação particular
172
7. ANALISE DE FILMES E HISTÓRIA DO CINEMA: VERIFICAÇÃO DE UMA ANALISE

para abordar um dado filme dá a entender q~e se tem boas razões para pensar
que essa aproximação é adequada para ele; aléi,n do mais, nem sempre é possível
ajuizar rapidamente o que outro método poderia proporcionar. Logo, este conselho
metodológico é sobretudo um princípio a ter presente ao começar uma análise:
não convém precipitarmo-nos numa abordagem aparentemente promissora, sem
termos a certeza de que não existiam outras possibilidades para o mesmo filme.
Uma maneira mais realista de avaliar um método consiste em examinar os
resultados 'que ele permitiu obter quando apli~ado, e ponderar a amplitude e a
exactidão dos resultados que podemos esperar. I

É evidente que este problema da comparação dos métodos de análise, e da ava-


liação dos resultados e validade de certo método aplicado a certa obra, transcende
em muito Qcaso da análise do filme. A apreciação e interpretação das produções
artístieas e literárias em geral é um velho problema, e desde há pelo menos dois
séculos tema de muitas teorias. Simplificando b,astante, poderíamos dizer que no
século XIX a: apreciação das obras tendia a fazer-se'em função da sua maior ou menor
adequação a um ideal, implícito ou explícito, da,obra de arte; é pois relativamente
a essa "idealidade" da obra que se devia julgar f(ventuais críticas ou análises. No
século xx a crítica literária e depois, pouco a pouco, a de outras formas artísticas,
acentuou Ol~troSvalores; desde a sucessão de movimentos modernistas na transição
entre os séculos XIX e xx, e das transformações que se seguiram em matéria de crítica,
as obras - logo, os métodos de apreciação e análise - passaram a ser julgadas em
função da sua inserção num conjunto de produções comparáveis, e na sociedade
em geral. Dos "formalistas" russoSdos anos 20 às diversas aproximações inspiradas
pelo marxismo, a ênfase assenta, unanimemente, num conjunto de noções que
têm como c~racterística comum obrigar a uma confrontação da obra com outras
obras, a uma apreciação histórica do seu lugar, e portanto à construção, pelo menos
implícita, dti modelos gerais aos quais a obra pode ser comparada.
No que toca à análise (e à crítica) do filme mais precisamente, as abordagens
que acabámbs de mencionar não deram (ainda?) origem a verdadeiras sistematiza-
ções, que permitissem elaborar protocolos "universais" de verificação e apreciação
das análises. Mas já existe suficiente reflexão, a nível geral, para permitir esboçar
esses protocQlos. Grosso modo, as aproximações pertinentes parecem-rios situar-se
na descendência do formalismo e do marxismo. O segundo, mais heterogéneo,
deu origem a procedimentos que colocam no primeiro plano o lugar e a função
social das obras, tanto ao nível da produção como da recepção. Quanto à pro-
dução, o marxismo interessa-se pela análise das forças sociais que determinaram
a produção qe uma dada obra, a estrutura precisa do aparelho de produção dessa
obra (questão particularmente pertinente quando aplicada a uma arte "industrial"
como o cinema), e também pelas determinffaçõesideológicas que pesaram na sua
elaboração; rio que concerne à recepção, o crítico marxista considera-a menos
em termos individuais e subjectivos do que em termos de efeitos ideológicos
objectivos (erpbora certas abordagens marxistas, algumas influenciadas por Louis
Althusser, tenham tentado integrar a consideração d~ subjectividade, ligando
esta ao funcionamento do "aparelho" ideológico). Concretamente, o marxismo
é uma abordagem demasiado diversificada e variável com as épocas para oferecer
indicações qq.anto a um método universal de apreciação de análises. Mas pode-
mos, pelo mep.os, fixar lições gerais extremamente importantes, e essencialmente
173
A ANÁLISE DO FILME

a necessidade de uma consideração da história no trabalho analítico. É sempre


instrutivo, pois, confrontar o que uma análise permitiu compreender de um
filme com os dados que se possam obter da história da sua produção; de forma
mais lata, essa análise deverá ser confrontada com os dados gerais da história do
cinema, ou mesmo apenas da história.
Contentar-nos-emos com algumas indicações a propósito de um filme que já várias
vezes mencioná mos, OMundo a Seus Pés. Estaobra arqui-conhecida deu lugar a análises
numerosas e extensas. Poucas delas, porém, se preocuparam o bastante em utilizar os
dados históricos relativos ao filme.
Assim,quando realizaOMundo a Seus Pés,Welies não é um realizador qualquer. Não estamos
a entoar, ,uma vez mais, um hino ao génio superiormente dotado e original; lembramos
apenas um certo número de dados objectivos, que têm consequências na produção do
filme e na sua interpretação. Setodos têm presente o mito do "menino-prodígio" que
espanta a América, se todos conhecem o episódio que celebrizou Welles (a sua famosa
adaptação radiofónica da Guerra dos Mundos), parece-nos mais importante, relativamente
ao filme, saber que, nos anos 30, Welies esteve ligado activamente à política rooseveltiana
do New Deal; que durante cerca de um ano ele colaborou sobretudo com o New York
Federal Theatre, uma companhia oficialmente subsidiada pela administração democrata,
violentamente atacada pela imprensa de Hearst, e cujos objectivos confessos eram tão
similares aos de um empreendimento cultural "de esquerda" â europeia quanto isso é
possível nos EUA(acompanhia incluía, por exemplo, membros e simpatizantes do partido
comunista; Welies, aliás, pagaria essa "promiscuidade" na altura do maccarthysmo). Do
mesmo modo, é importante saber que,depois de ter deixado - por sua iniciativa - o NYFT,
Welies co-fundou uma outra companhia, o Mercury Theater, grandemente influenciada
também pelos ideais de "colectividade", senão mesmo de "colectivismo". O "manifesto"
do Mercury Theater, redigido por John Houseman, é um claro protótipo do "manifesto"
de Kane no filme; ele declara em particular que a companhia representará peças com
"importãncia emocional ou factual para a vida contemporânea".
Essegénero de indicações relativas ao lugar de Welies na indústria do espectáculo (e
de que apenas fornecemos uma amostra) deveria seguir-se por uma caracterização do
estúdio que produziu o filme, a RKO. Entre as "majors" da indústria holiywoodiana, a
RKOtem um lugar à parte; ela nunca teve, por exemplo, uma imagem tão claramente
definida como algumas das suas rivais (a MGM, símbolo da "qualidade americana", a
Warner Brothers, representante do "realismo social"); em contrapartida, foi talvez um
estúdio mais "experimental" do que os seus contemporâneos, especialmente no campo
dos filmes fantásticos e de filmes que precisavam de cenários elaborados. No final dos
anos 30, o estúdio contava, entre os seus financiadores, dois grupos principais, um que
representava o petróleo texano, e outro a indústria eléctrica da costa leste, com filoso-
fias de gestão da firma muito diferentes. Quando Welles chega à RKO,o segundo grupo
acabara de levar a melhor, e a sua concepção, focada numa imagem de "qualidade",
substituía a concepção pautada em "quickies" destinados a garantir uma rotação rápida
de capitais. Este contexto é obviamente muito importante para explicar a continuidade
da carreira de Welles na RKO,mas igualmente para compreender O Mundo a Seus Pés, de
que não é só um pano de fundo.

Os factos que enumerámos são, por agora, outras tantas informações faetuais
decerto interessantes, mas que só de maneira muito tênue se ligam a uma qualquer
análise do filme. Nisso consiste o mais difícil. Muitíssimos autores de análises
fílmicas, mais ou menos conscientes da necessidade de não fechar a análise em si
mesma, recorreram, com maior ou menor precisão, a investigações desse gênero.
Por outro lado, ê raro que esses factos contextuais/históricos sejam verdadeira-
mente utilizados no decurso da análise e, paradoxalmente, ê ainda mais raro vê-los
empregados para justificar ou verificar uma análise. É muito frequente servirem
como "garantia" formal, muito mais do que como provas ou indícios.
174
7. ANÁLISE DE FILMES E HISTÓRIA DO CINEMA: VERIFICAÇÃO DE UMA ANÁLISE

Esclareçamos: não estamos de modo algum a sugerir que um inquérito,


mesmo bem conduzido e completo, sobre as circunstâncias de um filme, seja
por si só 'capaz de explicar esse filme. Uma 4nálise pode muito bem (é mesmo
uma das suas funções) desvendar mecanismos significantes, até conteúdos, que
fogem no' todo, ou em parte, às determinações rigidamente definidas por esse
estudo do contexto. Quando os redactores d,os Cahiers du Cinéma analisam a
figura de Lincoln como se encarnasse a Lei à':custa da sua castração simbólica,
estão a falar uma linguagem totalmente'inco'mpatÍvel com a de John Ford, de
Zanuck, d.aFox, e dos espectadores de 1939; não é menos verdade que eles podem
pretender ter desvendado um mecanismo ideológico e simbólico inconsciente,
que à sua maneira descreve uma certa verdade do filme, inclusive em termos
históricosl relativamente à América da épod (embora haja certamente muito
a dizer quanto à precisão e minúcia da sua i~vestigação histórica). Também a
investigação histórica, ainda que seja uma precaução essencial, não é realmente
um"método de verificação. :,
A outra, aproximação que mencionávamos rhais atrás, a que deriva do estudo
das formas' literárias e artísticas conforme a definição dos formalistas russos,
é menos dIfundida nos estudos fílmicos do que o recurso à contextualização
histórica. Parece contudo que ela pode oferecer possibilidades mais imediatas e
mais operatórias de ajuizamento e verificação dos resultados de uma análise. O
procedimento "formalista", com efeito, se sublinha a especificidade de cada obra,
a ponto de às vezes dar a impressão de lhe faltar por completo um método, tra-
balha sempre com a perspectiva de uma norma estética em relação à qual a obra
se define. Trata-se então de uma abordagem que, por natureza, é mais sensível ao
contexto das obras analisadas. No fundo, é uma contextualização histórica a um.
nível particular, o da natureza e da função deste ou daquele estilo.
Os representantes mais evidentes do recurso aos conceitos "formalistas" nos estudos
cinematográficos são, sem contestação, Kristin Thompson e David Bordwell. Partindo de
premissas semelhantes às que acabámos de expor, eles empreenderam a análise de um
certo número de filmes referindo-se a normas estilísticas bem precisas. Também o seu
trabalho - que várias vezes tivemos ocasião de citar - segue uma lógica bastante firme:
para estudar uma obra particular, é preciso dispor de um modelo do estilo dominante
no contexto do qual essa obra foi produzida - seja em conformidade ou em oposição
a esse estilo dominante. Então, o primeiro passo é construir esse modelo geral. É uma
tarefa ao m~smo tempo histórica e analítica, pertencente a um género que já mencio-
námos, a análise de corpus alargados. É particularmente determinante a definição de
um estilo "clássico hollywoodiano" (cf. mais atrás). Mas já existem outras tentativas de
caracterização (mais parciais) do estilo clássico. Uma delas, notável, é a de Barry Salt,
cujo estudo, extremamente ambicioso, conjuga considerações sobre a evolução da téc-
nica cinematográfica e do estilo fílmico durante todo o período pré-clássico e clássico.
Esse trabalho, que tem o enorme interesse de propor uma aproximação estatística
de características estilísticas - método até então inédito - infelizmente apresenta o
inconveniente de se apoiar num corpus relativamente reduzido, e sobretudo escolhido
de forma demasiado arbitrária.

A análise de corpus alargados e a definição de estilos (necessariamente historici-


zados) resultantes são uma tarefa talvez mais histórica do que realmente analítica.
Também não podemos, até pelo seu peso, propô-la como um "método de verificação"
das análises singulares. Todavia, na medida em que essas análises históricas são
cada vez mais ~umerosas (e acessíveis), podem constituir uma referência útil.
175
A ANÁLISE DO FILME

2.3. Análise do filme e história social: Roma, Cidade Aberta


ou Rossellini, testemunha da resistência italiana
Terminaremos com um último exemplo: a anáiise histórica de Roma, Cidade Aberta, de
Roberto Rossellini (1945),célebre clássico do "neo-realismo", por Pierre Sorlin. Segundo o
autor, o filme procede de uma visão sobretudo pessimista da resistência italiana. A cons-
trução sequencial determina um desenrolar inexorável e contínuo dos acontecimentos.
São os alemães que têm sistematicamente a iniciativa, dando provas de uma prodigiosa
eficácia, bem como de absoluta insensibilidade. Não obstante, o filme apaga qualquer
referência política explícita: quase não se fala de nazismo, e nunca se vê o retrato de
Hitler. Só uma cena dá aos alemães oportunidade de se explicarem. Da mesma forma,
Mussolini e o fascismo encontram-se ausentes do filme. Os colaboracionistas são raros e
não têm motivos políticos, e só as taras de que são acusados explicam as suas escolhas.
"O questor, obeso e afectado, é um lacaio profissional, e os milicianos são magrizelas
velhacos, que só pensam em olhar para as raparigas. A jovem actriz coroa esta colecção
de destroços: para fugir à miséria do seu bairro popular, não recuou perante nada; ao
deixar o seu meio de origem, perdeu-se: mentirosa, irascível, hipersensível, toxicómana
e quase lésbica, acumula vícios suficientes para trair sem pena". A grande massa dos
italianos empenha-se, de coração, contra o ocupante. Mas a Resistência, nascida do seu
próprio movimento, não tem necessidade nem de se apresentar, nem de se justificar. O
filme que a mostra universalmente presente e actuante nada faz para a explicar. Sorlin
qualifica de absurdo o episódio imaginado pelos argumentistas que mostra Manfredi
à cabeça dos partisans, a atacar os camiões do exército alemão. A função desta cena,
segundo ele, é lembrar aos italianos a existência algures de uma organização clandes-
tina provida de grandes meios. "Todo o romano sente confusamente que se forma um
exército, mas nada sabe sobre isso". Há apenas uma nota que aflora o significado da
guerra e as causas da ocupação, e é o padre quem a diz. A resistência é mais um estado
de espírito do que uma opção política. O filme vota-a ao fracasso: "Nacional ou local, a
resistência está derrotada à partida; se o filme não o afirma claramente, a sua estrutura,
a maneira como apresenta os dois campos, não deixam qualquer dúvida a esse respeito:
Roma não se libertará sozinha".
O combate dos resistentes, essencialmente moral, não tem importância real, e não serve
senão para salvar a dignidade das vítimas. É aqui - comenta Sorlin - e não na constatação
de uma maior ou menor fidelidade à "verdade" - que o historiador arranja forma de inter-
vir: como interpretar essavisão tão particular da vida romana sob a ocupação, na data e
contexto em que foi concebida? O pessimismo do filme coloca problemas; ele detona na
atmosfera de alívio que sesegue à libertação. Sorlin explica essepessimismo pela evolução
do cineasta Rossellini e da maioria dos seus colaboradores, que começaram a trabalhar
durante o fascismo. Seem Un pilota ritoma (1942),a guerra surge como escola da virilidade
e fermento da unidade nacional, essa mitologia belicosa desaparece a partir de L'uomo
della croce (1943),e em Roma, Cidade Aberta, a guerra torna-se um pesadelo inexplicável.
Ela não tem sentido - o que permite ignorar-lhe as origens. Essainversão acompanha
a evolução política do ano de 1943. Roma, Cidade Aberta é concebido em paralelo com
o grande debate sobre a depuração, que ganha extrema violência no Outono de 1944.
Em 11sole sorge ancora, Aldo Vergano irá procurar, alguns meses mais tarde, explicar o
colaboracionismo baseando-se numa análise de classe. No filme de Rossellini, o único
burguês colaboracionista é o questor da capital, alusão cristalina ao antigo presidente
da câmara, Caruso. Os outros colaboracionistas representados no filme vêm do povo:
a miséria e a fraqueza de carácter fazem com que encontremos a ma,ioria dos traidores
entre os desclassificados. A conivência com o ocupante parece um fenómeno menor,
isolado. Os autores do,filme dão a entender que se produziu uma profunda mudança a
partir do momento em que os alemães se apoderaram de Roma; nessas condições, uma
vasta depuração parece injustificada.
Para Pierre Sorlin, Roma, Cidade Aberta traduz a evolução, as hesitações, as dissimulações
de um grupo de intelectuais que começaram por aceitar, naturalmente e sem reticência,
o regime fascista, que apoiaram as suasteses e os seus mitos, e que depois de 23 de Julho

176
7. ANÁLISE DE FILMES E HISTÓRIA DO CINEMA: VERIFICAÇÃO DE UMA ANÁLISE

Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini (1945).

177
A ANÁLISE DO FILME

mudaram de orientação, ficaram perturbados com a ocupação alemã e, em geral sem


ingressar na resistência activa (Amidei - co-argumentista do filme - é uma excepção),
sentiram-se unidos a todos os italianos por uma hostilidade comum para com os alemães.
Pelo pessimismo, pela recusa do nacionalismo, pela vontade de apagar a colaboração
e de ilustrar a unidade moral da Itália, Roma, Cidade Aberta mostra simultaneamente a
amplitude das desilusões provocadas pela crise do Verão de 1943 e da perturbação que
transtornava os intelectúais na altura da libertação.
Talcomo é apresentada no filme, a guerra constitui uma espécie de remissão: os sofrimen-
tos suportados sob o jugo alemão aboliram a história anterior; os anos de colaboração
entre a Itália e o Reich não precisam de ser evocados, de tão longínquos que se tornaram
a partir da ruptura que a ocupação constituiu. A Resistência descobriu-se a si mesma, e
não legou ao futuro qualquer modelo utilizável, excepto alguns exemplos de coragem.
Apolitismo, relativização da luta clandestina e insistência na pobreza dos romanos formam
um conjunto coerente; parte da opinião pública quer ignorar tanto o fascismo como
o antifascismo, e redescobrir a unidade italiana a partir das mais humildes realidades
quotidianas; já perceptível no Outono de 1944, essa tendência pesará posteriormente
na evolução do país.

178
CAPíTULO 8

Objectivo da análise:
à guisa de conclusão

Uma questão., a que até aqui não. demo.s atenção., agindo. co.mo. se fo.sse evidente
que se devia fazer análise de filmes, não. po.de deixar de ser co.lo.cada no. final
deste percurso.: para que serve a análise de filJlles? Ou mais precisamente (não.
estando. a sua utilidade imediata necessariame~te em causa): em que estratégias
de co.njunto intervém ela, co.mo. e po.rquê?
No.te-se1que, pelo. caminho., já respo.ndemo.s em parte a estas perguntas, po.r
exemplo. ao.'insistir (no. capítulo. 3) no.s laço.s entre análise textual e estruturalista
- desse mo.lio. assinalando. o. o.bjectivo. teórico. da análise - o.u ainda ao. destacar
o. seu papel [no. trabalho. histórico. (capítulo. 7). Este último. capítulo. não. pro.cura
tanto. justifi~ar a no.ssa empresa co.mo. reunir o.bservações espalhadas no. livro e,
so.bretudo., ~brir algumas no.vas perspectivas, sintetizando.-as claramente.

I "
1. A ANALISE, ALTER EGO DA TEORIA
, I
Já insistiJ:no.s muitas vezes no. seguinte: não. existe análise "pura", "abso.luta",
nem méto.do. "universal" de análise. Analisamo.s sempre um filme em função. de
pressupo.sto.s teórico.s - mesmo. que estes não. sejam no.meado.s, e até inco.nscien-
teso Po.r o.utras palavras, não. existe análise fílmICa que não. assente, pelo. meno.s
em parte, numa certa co.ncepção. teórica, pelo. meno.s implícita, do. cinema. Co.m
certeza isso. não. quer dizer que to.das as análises aspirem à teo.ria, mas nenhuma
co.nsegue evitá-la to.talmente.
Um exemplo. quase extrema é farnecida pela livra de Alfred Guzzetti sabre Deux ou trais
choses que je sais d'elle Uá citada). Não. só a analista segue aí sistematicamente a fia da
texto., parecendo. enxertar-lhe a seu camentária de mada semi-impravisada, cama além
disso. evita cuidadasamente (e de maneira deveras excepcianal tenda em canta que a
tradição. nas textas universitárias americanas é farnecer a maiar número. passível de
referências) as alusões a textas teóricas da cinema. Num texto. de mais de 200 páginas,
não. encantramas mais da que uma dúzia delas, e sei:npre muita breves.
Não.é menas certa que esselivra tem uma perspectiva teórica muita precisa: a análise centra-se
expressamente na relação. entre idealagia e estética, e muitas vezes o.analista tama partida
quanta ao.canteúda, a qualidade e a densidade da discursa palítica da filme; para ele, a filme
"fala" de mada quase transparente, nãa-prablemática (uma pasiçãa, sabema-Ia, que tem
antecedentes, mas de que a mínima que se pade dizer é que não. étearicamente neutra).
i

No. caso. dali análises o.nde o.desígnio. teórico. é explicitado., po.demo.s distinguir
três tipo.s de relações entre a análise e a teo.ria: a primeira po.de funcio.nar, relati-
vamente à segunda, co.mo. verificação., invenção. o.Udemo.nstração..
I
179
A ANÁLISE DO FILME

1.1. A análise como verificação da teoria


Muitas pesquisas teóricas são feitas "em geral" - certamente recorrendo a nume-
rosos exemplos, mas sem verdadeiro procedimento experimental. Para pesquisas
assim, a análise de filmes pode constituir um momento importante, aquele. em
que, ao aplicar o modelo teórico, procuramos aferir-lhe a validade, verificá-lo, ou
pelo contrário "falseá-lo" (demonstrar que ele é falso, o que, ao contrário do que
por vezes se julga, é mais fácil e importante do que corroborá-lo).
As pesquisas de orientação semiológica têm aqui particular relevo. O exemplo
mais evidente, já longamente evocado, é sem dúvida o de Christian Metz e do
código da Grande Sintagmática (cf capo2, 2.2. e capo3, 3.2.): a análise de Adieu
Philippine leva Metz a precisar e mesmo a transformar um tanto o seu modelo. Do
mesmo modo, num empreendimento como o de Michel Colin, as análises fílmicas,
sempre parciais e orientadas com grande precisão, apoiam sempre uma hipótese
teórica: quando estuda as funções textuais das panorâmicas nos primeiros planos
de O Último Comboio de Gun Hill, ele interessa-se por certos tipos de transforma-
ção da estrutura profunda no enunciado de superfície, e não no filme enquanto
filme americano, por exemplo; da mesma forma, para estudar a co-referência, ele
escolhe, praticamente ao acaso, um dos 450 filmes de Griffith, lhe Adventures o/
Dollie, e trata-o, explicitamente, sem dar importância ao seu lugar na história do
cinema. O filme torna-se um objecto de experimentação, mas, evidentemente, a
teoria é que tem a precedência.

1.2. A análise como invenção teórica


Com maior frequência ainda, a análise é uma forma de teoria; quase se poderia
dizer que existem teóricos que só fazem teoria em forma de análise. O exemplo mais
notável é sem dúvida Raymond Bellour, de quem, em particular, cada uma das
grandes análises dos filmes de Hitchcock foi pretexto para propor um conceito (o
"bloqueio simbólico", cf 6.3.1.) ou definir uma abordagem do cinema - tanto, pelo
menos, como propor qualquer processo analítico. Há mesmo vertentes inteiras da
teoria que só foram abordadas pelo ângulo de ~nálises fílmicas. Refira-se a análise
de diálogos de filmes, especialmente as análises conversacionais de Francis Vanoye
e Michel Marie, que visam deliberadamente destrinçar esse terreno inexplorado.
A verificação e a invenção são de certa maneira simétricas; em ambos os casos
o risco é o mesmo: o de uma ida e volta insuficiente entre a teoria e a análise. A
análise-verificação deve, idealmente, permitir regressar à teoria para a completar
ou modificar; por sua vez a análise-invenção deve dar lugar à verificação através de
outras análises. Quer num caso quer no outro, o modelo epistemológico subjacente
é o das ciências experimentais: uma teoria baseia-se numa certa experimentação,
e desenvolve-se com recurso regular à experiência (momento indutivo, momento
dedutivo). Naturalmente, é um esquema abstracto que a teoria do cinema (que
não é uma ciência experimental) só de longe seguiu.

1.3. A análise como demonstração


Um caso um pouco à parte é o das análises em que se procura menos produzir ou
consolidar uma teoria do que expô-la de forma convincente - promovê-la. Também
180
8. OBJECTIVO DA ANf.L1SE: À GUISA DE CONCLUSÃO

aqui as estratégias podem ser múltiplas: David'Bordwell e Kristin Thompson, por


exemplo, que procuram constantemente promover uma abordagem "neoformalistà'
do cinema, conceberam muitas vezes as suas análises filmológicas como etapas
dessa iniciativa; o caso é particularmente evidente no livro de Kristin Thompson,
Eísensteín~ 'Ivan the Terríble':. A NeoformalístAnalysís,onde o primeiro capítulo (o
mais longo) é consagrado à apresentação da abordagem "neoformalista", sendo a
análise ur~a concretização e uma demonstração dos princípios expostos. O mesmo
sucede no ensaio de Marie-Claire Ropars, Le Texte dívísé, de que a segunda parte
é uma análise de Indía Song, de Marguerite Duras. Poderíamos dizer outro tanto,
em menor,grau, do livro de Bordwell sobre Dreyer. Numa perspectiva totalmente
diversa, e muito mais discreta, parece-nos ser télcmbémo caso de Michel Bouvier e
Jean-Louis Leutrat para Nosferatu, demonstração implícita do que pode ser uma
análise a que poderíamos chamar iconológica (no sentido de Panofsky).

I
"" .ti' 1.#
2. ANALISE, ESTILISTICA E POETICA
I

Como referimos no capítulo 1; nas suas lirimeiras manifestações a análise


I

ligou-se quase espontaneamente às preocupaçõ~s de criadores. Antes mesmo que


a crítica se,tornasse mais meticulosa, antes que a teoria recorresse ao apoio da
análise, os cineastas sabiam, pela sua prática, qJe o sentido e o efeito de um filme
se processavam a níveis bem diferentes. Há uma1intenção "poética", "criadora", da
análise, qUf!encontramos em muitos cineastas qre analisam ou descrevem as suas
obras (frequentemente na forma de uma defesa pro domo); não insistamos no caso
de Eisenstein (c£ capo 1,2.1.), em muitos aspectos excepcional; desde a época do
cinema mudo podemos salientar, por exemplo em',]ean Epstein, uma propensão para
reflectir sobre os seus próprios filmes em termosjá quase analíticos (por exemplo,
.para revelar os elementos desse efeito poético atgo misterioso, então na moda, a
fotogenia). Seria interessante considerar os difefentes discursos que alguns cine-
astas mais t;trde mantiveram sobre as suas próprias obras, por exemplo, na época
da chamada "política dos autores" (cf. capo 1, 2.3:); a um Howard Hawks, cineasta
que, por assim dizer, nunca comentou o aspecto formal dos seus filmes, e cujo
discurso reproduz e reitera a impressão de simplicidade, de facilidade, de natural
que o seu cinema transmite (o "génio da evidência" de que falava Jacques Rivette),
opor-se-ia assim a atitude de um Hitchcock, procurando deliberadamente jogar
a carta inversa, a do domínio e consciência dos seus meios estéticos e formais: na
longa entrevista que realizou com François Truffaut, como em muitas entrevistas
filmadas (em uma concedida a André Labarthe, por exemplo), ele aprecia entrar
no pormenor formal desta ou daquela sequência, explicá-la, expor as suas razões
criadoras. Depois ainda, vimos cineastas a praticar eles próprios a análise da obra
de outros cineastas (c£ capo 5, 1.2., o exemplo de Eric Rohmer a explicar, com
Fausto, os fundamentos do seu amor por Murnau).
É claro que nem toda a gente é cineasta, e. os casos que relembrámos são
excepcionais. Eles indicam contudo a possibilidade de um laço entre a análise
e a poética dos filmes. Tomemos a palavra pelo que ela vale: não existe poética
do filme constituído; a noção de "criador" é, aliás, de aplicação sempre difícil ou
ambígua no ~inema. A questão aqui colocada é saber se a análise pode ajudar'a
181
A ANÁLISE DO FILME

explicar a criação dos filmes, a sua génese ou, mais prosaicamente, a sua produção ..
É obviamente uma questão que compreende vários aspectos:
1. O aspecto propriamente criador: a análise permitirá restituir, pelo menos
de forma aproximativa, algo do processo de criação? A resposta parece dever ser
negativa, visto. que o processo, mais ou menos misterioso por natureza, é ainda
, complicado pela multiplicidade de determinações que na indústria do cinema pesam
sobre ele. No entanto, sem conseguir explicar absolutamente a criação de um filme,
a análise pode levar a colocar questões semelhantes às que um cineasta coloca - em
especial, claro, a análise dos elementos da realização (c£ capo5). Vamos deixar bem
claro que não se trata de forma alguma, para nós, de pretender ter acesso ao que
se passou "na cabeça" do cineasta; pelo contrário, opomo-nos a qualquer leitura
de um filme - analítica ou não - que assente em supostas "intenções" do autor;
mesmo supondo que essas intenções tenham sido perfeitamente claras e explícitas
para o próprio cineasta (o que é raro), nada garante que que o filme corresponda
a essas intenções, que além disso o analista não pode ter a certeza de conhecer.
Trata-se então, para o analista, de se colocar por sua vez (e acrescentaremos: no
seu lugar, que não é o de um cineasta) questões de ordem criadora.
A questão-chave aqui é a do "porquê?": porquê tal enquadramento, tal movimento de
câmara, tal corte num plano de pormenor, etc. Mais uma vez, a análise nunca dará a
.resposta a essa questão, mas, por exemplo, uma comutação imaginária (perguntar-se
o que aconteceria se, no lugar de uma panorâmica, o cineasta utilizasse a montagem de
dois planos) muitas vezes permite encontrar algumas respostas possíveis.

Para sermos completamente claros, acrescentemos ainda que, se parte das inten-
ções do cineasta está destinada a permanecer inacessível ao analista, inversamente
este é livre de desenvolver o seu trabalho sem se sentir constrangido pelos limites
da intencionalidade do criador. Com isto respondemos a uma objecção habitual
às análises, especialmente textuais, a que se censura agarrar-se a pormenores que
ninguém percebe no desenrolar do filme, ou a elementos que é pouco verosÍmil
terem sido realmente desejados pelo cineasta, etc. É preciso afirmar com clareza que
o analista tem perfeitamente o direito de usar tais elementos, conquanto a sua análise
permaneça coerente - já que, mais uma vez, ele está num lugar diferente do criador,
e livre de tratar como bem entender tudo o que julgue presente no texto.
2. Noutro sentido, a análise pode ajudar a que nos interroguemos sobre a pro-
dução de um filme, ao analisar, com o apoio do material possível, as etapas visíveis
dessa produção. Aqui, o problema de base é sem dúvida a adaptação - estereótipo
de qualquer reflexão de inspiração literária sobre o cinema, e tema ainda hoje de
inúmeros trabalhos universitários. Ora essa questão, que tem pouco interesse
quando se deixa ficar (como ainda é frequente) numa abordagem do conteúdo,
pode, no quadro de uma análise bem conduzida, contribuir para esclarecer tanto
a génese de uma adaptação particular, como a natureza dessa "transcodificação"
que é a adaptação.
O problema foi exposto com grande clareza por Marie-C1aire Ropars no seu "Étude de
genese" de uma cena de Muriel, de Alain Resnais.Tendo procedido a uma análise dessa
cena e construído um sistema textual que a explica, Ropars confronta esse sistema com
o guião de Jean Cayrol que o filme adapta, e também com a planificação antes da mon-
tagem (documento portanto utilizado na rodagem). As modificações localizadas de um
para o outro texto são para o analista matéria para confirmar - ou corrigir - a análise

182
8. OBJECTIVO DA AN~L1SE: A GUISA DE CONCLUSÃO

anteriormente efectuada só ao filme; elas permi:tem, pelo caminho, construir hipóteses


sobre Q processo de adaptação enquanto investigação de uma sistematicidade própria
do texto fílmico. !
I • ;

Além dl.essevalor "criador", e num terreno talvez mais seguro, podemos avançar
que a análise é um meio importante de progredir na definição de uma estilística
fílmica . .Ai, noção de estilo, em matéria de filmes, surgiu no período "autorista" da
crítica de cinema: em críticos como Alexandre Astruc ou Eric Rohmer (e também
nos primeiríssimos textos de Raymond BeBour, por exemplo), exprime-se o desejo
de definir ilrealização em geral, a partir das características formais das obras -logo,
de definir1um "autor de filmes" pelo seu tratamento da realização, o seu "olhar",
a sua "distância" do mundo. É obviamente uma definição particular do estilo,
como característica individual ligada a uma cpncepção do mundo, quando não
ligada a Ulpa moral ou a uma metafísica. Em relação a essa abordagem, a análise
desempenha um papel importante: caracteriz~r o estilo de Lang, por exemplo,
por "um ~erto olhar", (como faz Michel Mourlet) tende à banalidade; é muito
mais convincente descrever esse olhar em termos de enquadramentos, ângulos,
iluminaçõ~s e montagem. . !
Hoje o~ estudos estilísticos tomaram uma orientação sensivelmente diferente
(cf capo 7, 11.2.), e estão essencialmente ligados à definição e ao estudo de vastos
corpus historicamente diferenciados. Não se data de renunciar a definir estilos
individuai~, mas de os definir com maior obJectividade, com o apoio de uma
caracterização mais firme e precisa dos "estilds" dominantes, relativamente aos
quais cada1cineasta se singulariza, conscienterJente ou não.
O caso de Fritz Lang, que há pouco evocámos, ~I muito esclarecedor. Fetichizado por
diferent~s fracções do movimento autorista, da Pr~sence du cinéma e dos macmahonistas
até aos derradeiros proponentes americanos da política dos autores (Peter Bogdanovich),
Lang é um cineasta cuja carreira irregular, vária$ vezes interrompida e relançada, em
nada se presta a uma avaliação unitária. A definiçãp de uma temática languiana revela-se
particularmente difícil(ostemas do "destino" ou d~ "vingança",geralmente associados ao
seu nom~, são na verdade o que alimenta géneros inteiros, do western ao filme negro) -
mas o mesmo poderíamos dizer de um hipotético bstilo languiano, tanto no seu período
alemão c,omo no americano. Certas características, a frontal idade do enquadramento, o
lado "sóbrio" e equilibrado da composição, são-lhe habituais, mas costumam combinar-
-se com outras dificilmente associáveis apenas a Lang.
I

A análi~.~ com exactidão das formas fílmicas é muito importante. Só ela pode
obrigar a roplper radicalmente com o subjectivismo e o impressionismo das descri-
ções estilísticas demasiado assentes na fé, como assistimos a propósito de Hawks,
Lang, Pre1l1inger e Nicholas Ray.

i " ""
3. A ANALISE COMO REVELADOR IDEOLOGICO
Já evocáhtos (cap. 1) aqueles debates de cinedube do pós-guerra, em que um
filme costurpava interessar em função do seu suposto conteúdo, e muitas vezes pela
apreciação ideológica desse conteúdo. Os autores deste livro, como a maioria dos
cinéfilos da sua geração, recordam-se de numerosos debates em torno, por exem-
plo, do juíz~ ideológico que conviria fazer sobre determinado filme americano (do
género: lhe (forse Soldiers- Os Cavaleiros, de John Ford - será um filme fascista?);

183
A ANALISE DO FILME

os argumentos e os "papéis" (da extrema-esquerda à extrema-direita) eram sempre os


mesmos - o que é normalíssimo, porque no fundo o filme era só um pretexto. Longe
de nós, de resto, a ideia de recusar totalmente essas discussões, que podem ter tido a:
sua utilidade, mesmo que não fossem necessariamente dignas dos filmes discutidos.
Mas, como já referimos a propósito da noção de "tema" (cap. 4, 1.),é nossa opinião
que o conteúdo de um filme só existe numa consideração do fílmico. No que toca
a esse "conteúdo" particular que é o conteúdo ideológico de um filme, pensamos
que ele se encontra no texto - no texto - e não, por exemplo, na história contada,
e ainda menos nas "intenções" do "autor" (c£ atrás, em 2.). Na história que conta
Os Cavaleiros, vemos a personagem interpretada por John Wayne com um certo
número de comportamentos violentos, desumanos, fascistas se quisermos, em todo
o caso inaceitáveis na realidade; qualquer apreciação ideológica do filme deverá ter
isso em conta, mas não pode esquecer de que se trata de um filme, e que as acções
da personagem são mostradas através de uma forma que não é insignificante.
Esses debates sobre a importância do "conteúdo" e da "forma", a bem dizer, são
antigos, e de antemão armadilhados enquanto perpetuarmos a ideia de que existem
conteúdos e formas que podem existir independentemente uns dos outros. Assim,
sem retomar as inumeráveis discussões ao redor deste problema (por exemplo, por
volta de 1970, na crítica de orientação marxista, entre adeptos de uma "neutrali-
. dade das formas fílniicas" e apoiantes de um papel ideologicamente decisivo do
trabalho de escrita 33, diremos simplesmente que, na nossa opinião, a análise fílmica
contribuiu, e pode ainda contribuir muito, nesse campo. Se a ideologia de um
texto está nesse texto, é preciso concedermo-nos os meios de considerar o próprio
texto: aquilo que, precisamente, a análise em geral assegura melhor do que qualquer
outro método. Não é com certeza indispensável fazer uma análise ("textual" ou
outra) para compreender correctamente um filme; no mínimo a análise permite
(não constrange) o relacionamento com o próprio filme, e não com a história que
ele conta, o que dele se disse aqui ou ali, o problema que ele "ilustra", etc.
Passaremos por cima de outro perigo, simétrico do primeiro, ao qual a análise
fílmica permite fugir: o formalismo excessivo (ainda que, nesse plano, a análise
não esteja livre da sua parte de risco, como já observámos).
Além do exemplo clássico, já citado (cap. 6, 3.1.), da análise de A Grande Esperança,
vamos aqui mencionar, como exemplo de integração conseguida da análise formal,
da análise textual e da apreciação ideológica, o trabalho efectuado sobre Outubro, de
Eisenstein, por Michele Lagny, Marie-C1aire Ropars e Pierre Sorlin. t verdade que o filme
é adequado a isso, que ele "encena o encontro de uma experiência fílmica (a montagem
concebida como escrita cinematográfica) e uma representação histórica: a Revolução
. como momento intenso da História". A relação, singularmente complexa (e com razão),
que o filme estabelece entre as diferentes figuras do poder - Kerenski, Kornilov, o Czar,
Lenine, os bolcheviques - é lida através da escrita do filme, e não a partir de ideias pré-
-determinadas sobre uma tese política que Eisenstein tivesse procurado traduzir. Ao
constatar, por exemplo, a existência de uma "manifestação figurai" (circulação de diversas
figuras de agentes revolucionários) que tende a "parcelizar" o campo da revolução, face
à coesão que até ao fim o campo governamental conserva, os autores tentam avaliar
(de modo aliás interrogativo, pois propõem duas leituras possíveis) a incidência desse
fenómeno escriturai na interpretação política do filme.

33 Ver, sobre a primeira posição, Jean-Patrick Leber, Cinéma et Idéologie,Editions Sociales, 1971,
e para a segunda, os textos editoriais dos Cahiers du Cinéma e da Cinéthique entre 1969 e 1971.

184
8. OBJECTIVO DA AN~L1SE: A GUISA DE CONCLUSÃO

Acrescentaremos, para terminar este ponto, que uma análise que visa apreciar
ideologicamente .um filme deve interrogar-se, talvez mais que outra qualquer,
sobre a recepção desse filme: os efeitos, pretendidos ou não, produzidos por
determinado filme, e os malentendidos e polémicas que suscita passam a fazer
parte da sua leitura.

4. O PRAZER DA ANÁLISE
I
I
Com o título desta parte temos consciência de apresentar o que pode começar
por parecer um paradoxo. A noção de prazer, 'no cinema como noutros campos,
não está em geral associada à de trabalho; é,lsem dúvida, um dos aspectos da
divisão social-técnica do trabalho nas sociedades industriais, o de separar cada vez
mais claramente o trabalho do lazer, este considerado, na ideologia dominante,
como o lugar exclusivo do prazer. !
É precisamente nesse mundo do lazer, do entretenimento, que geralmente se vê
os filmes (e a indústria do cinema é uma das indústrias do entretenimento). Ora, a
análise fílmica, seja qual for a sua forma exacta, tem sempre como característica,
por natureza, obrigar a uma reflexão e a uma revisão. Essas duas características
não poderiam ser mais antagónicas das principais características do consumo do
filme como divertimento, que é irreflectido e único. Se, como já notava Barthes
em 5/Z, reler um livro é sempre uma pequena transgressão numa sociedade onde
o gesto "normal" é atirar com o livro após tê-lo consumido, rever um filme é
também um gesto deliberado, que pode, certamente, ser de ordem puramente
fetichista (como no caso de certos filmes" de culto", de Casablanca a Festival Rocky
de Terror), mas que vai na contracorrente da ideia, dominante, de que um filme
novo vale mais do que um filme antigo.
A releitura, a revisão, e mais ainda essas revjsões informadas e activas que são'
as análises, produzem então uma abordagem muitíssimo diversa aos filmes, já não
baseada na fruição imediata e consumidora, ma.sno saber. O que queremos subli-
nhar é que essa abordagem, socialmente e subjectivamente diferente da abordagem
"normal", não deixa de produzir um certo tipo de prazer específico.
Primeiro há o que se deve chamar o prazer do saber. A actividade cognitiva
é uma das funções importantes do cérebro humano, e como qualquer função
psicológica, implica uma satisfação "extra" quando se exerce correctamente. No
caso da análise fílmica, é certo que muitas vezes ela se baseia (não só, claro) num
fantasma de domínio: o analista almeja possuir a obra, extorquindo-a se necessário
ao cineasta, para fazê-la sua ao recriá-la a seu bel-prazer!
As escolhas dos temas seriam aqui muito elucidativas: dedicar-se a um filme de narrativa
complexa e/ou enigmática, como 2007, Muriel ou as obras de Robbe-Grillet, decerto é em
parte desejar provar(-se) que se pode "superá-lo", "reduzi-lo", dominá-lo intelectualmente
- e talvez explicar o fascínio que exerce.
a
Quando se trata de um grande clássico, é às vezes originalidade da leitura que se torna
o objectivo da análise; esse aspecto torna-se muito evidente no caso de análises de
filmes geralmente desprezados (filmes de género, séries B, monos de toda a espécie).
Por fim, nunca mais acabaríamos de inventariar os casos em que a escolha do filme ana-
lisado pretende consolidar ou expor uma teoria (cf. atrás, em 1.)- assim multiplicando
a primazia do saber.

185
A ANÁLISE DO FILME

Casablanca, de Michael Curtiz (1943).

186
8. OBJECTIVO DA ANÁLISE: A GUISA DE CONCLUSÃO

2007, Odisseia no Espaço, de 5tanley Kubrick (1968).

Por outro lado, a análise proporciona um inegável prazer ligado ao «esmiuça-


mento" (já falámos da libido decorticandi, fustigada por Dominique Noguez - mas
que não tem só aspectos negativos). Trata-se de um prazer essencialmente lúdico,
que advém provavelmente da satisfação parcial de pulsões sádicas. É o velho tema
do prazer que a criança retira ao partir o relógio'para ver como funciona (éverdade
que desde. a invenção dos componentes integrados essa operação tornou-se bas-
tante infrutífera ... ). De certa forma, o analista «brinca" com o filme que analisa
(o que não deixa de ter relação, em termos psiCológicos, com o facto de, como já
dissemos, ele o recriar).
Consequentemente, parece-nos bastante admirável que a análise mude total-
mente - se é que não a anula - a percepção de aborrecimento no cinema.
É um assunto que está muito além do nosso âmbito, mas que mereceria maior
desenvolvimento. A noção de aborrecimento é complexa, primeiro porque é, em
elevado grau, subjectiva (elavaria com cada suje-ito),e sobretudo porque são muitas
18T
A ANÁLISE DO FILME

as suas causas potenciais. Podemos aborrecer-nos diante de um filrpe por o acharmos


"muito lento", "muito longo", porque "não se passa nada" (censura estereotipada
tradicionalmente dirigida a Antonioni, Dreyer ou Duras) - mas igualmente por
o acharmos banal de mais, previsível de mais (podemos aborrecer-nos profunda-
mente perante Magnum Force ou A- Team, que no entanto não se enquadram nas
três censuras anteriores). No fundo, o aborrecimento depende da concepção geral
do cinema que se tem. O olhar analítico, quase por definição, é bem menos sus-
ceptível de aborrecer-se: para ele a "lentidão", a "extensão", a "ausência de acção",
tal como o "banal" ou o "previsível", praticamente não existem, pois de qualquer
maneira ele integra uma temporalidade diferente e suscita, em paralelo, os seus
próprios objectos de interesse.
De forma mais geral, e por termos praticado desde há anos esse tipo de relação
com um filme, parece-nos claro que a prática regular da análise transforma não
somente a concepção de um filme particular uma vez analisado, mas a própria
maneira de ver os filmes em geral, desde a primeira visão. Ao levar à desmontagem
dos mecanismos da impressão de realidade e do efeito-ficção, a análise obriga a
que nos apercebamos de aspectos artificiais e reforça as "defesas cognitivas" do
espectador contra o poder de ilusão que qualquer filme detém. Ela contribui para
deslocar o prazer do espectador.
Uma última observação a este respeito. Uma das características mais constantes
e vistosas da história recente das artes tradicionais (pintura, escultura, música)
é incontestavelmente a sua tendência para se tornarem "meta-artes". A ideologia
barroca, como depois dela a ideologia romântica, baseavam o seu sistema estético
numa reacção "imediata" do espectador à obra de arte: julgava-se que esta propor-
cionava um acesso mais fácil e mais directo à realidade do mundo, e as categorias
pertinentes eram o realismo, a empatia, a penetração, a revelação, etc. A arte da
nossa época aboliu quase inteiramente esse tipo de relação entre a obra e o mundo,
por um lado, e entre a obra e o espectador, por outro. O consumo de uma obra de
Stockhausen, de Pollock ou de Moore (para só falar de criadores já "clássicos", ou
em todo o caso consagrados) baseia-se em mecanismos psicológicos inteiramente
diferentes, largamente baseados num saber do espectador. Isso ainda seria mais
óbvio para as formas mais recentes das artes plásticas, como a arte ambiental, a
performance ou a chamada arte conceptual. É evidente que a indústria do cinema,
ainda hoje, é um dos lugares de maior resistência a essa evolução da arte; claro
que não está em questão fazer da análise fílmica, por si, o equivalente de uma
revolução estética: parece-nos, contudo, que não foi minimamente um acaso ela
ter conhecido o seu auge no momento em que apareciam nos circuitos de difiusão
públicos (e não apenas neste ou naquele gueto) um certo número de filmes que,
desnarrativos, paranarrativos ou metanarrativos, têm como característica comum
recusar a ideologia da imediação, da empatia e dos seus efeitos psicológicos sobre
o espectador, em favor de concepções mais "intelectuais" (susceptíveis por isso
mesmo de originar múltiplas formas de rejeição).

188
8. OBJECTIVO DA ANÁL;ISE: A GUISA DE CONCLUSÃO

5. A ~NÁLISE COMO APRENQIZAGEM


Este último objectivo da análise é na verdade o primeiro. Também elesprofessores,
os autores deste livro têm consciência de que, seja qual for o uso que lhe for dado,
a análise fílmica é antes de tudo uma extraordinária ferramenta pedagógica.
Dois aspectos da situação pedagógica (quaisquer que sejam o nível e o contexto
preciso onde ela se produza) parecem-nos singularmente importantes: a análise
em situação pedagógica é uma análise que costuma ser oral: é uma análise de
grupo. I

5.1. Análise oral I


A análise oral, diz-se muitas vezes, é capaz de ultrapassar certas dificuldades
- práticas e de princípio - da análise escrita. Fara ficarmos no essencial, a van-
tagem é evidentemente não tropeçar, pelo me~os frontalmente, no problema da
citação. S~, como atrás dizíamos, a análise deve relacionar-se com o filme, e não
com o "metafilme" (Kuntzel) que é apenas um idos seus artefactos, ela deve sem-
pre imaginar estratégias complexas para contor~ar essa indisfarçável diferença de
natureza e~tre o desfile fílmico e a ordem do discurso verbal. A análise oral está
em posição de vantagem, pois não tem necessidade de evocar o filme: ele está lá,
pode estar Fo-presente no discurso do analista.lNotemos aliás que esta é também
uma das características que tendem a privilegfar a análise fílmica em relação a
outras práticas de ensino: mesmo se ela consiste em romper o fascínio exercido
pelo filme'l continua relativamente próxima daisituação espectacular, e satisfaz,
pelo menos parcialmente, o desejo de ver imagens (que é ainda muito importante
na maioria dos públicos escolares). r

Um aspecto, menor em princípio, mas de facto importante, é o recurso a instru-


mentos de ~isionamento e de análise cada vez mais leves.A grande revolução, nessa
matéria, fói a do videogravador "de uso doméstico". A possibilidade de dispor de
uma cópialtotalmente manipulável, na qual podemos acelerar a imagem, abrandá-
-la, pará-la, decompô-la fotograma a fotograma, etc., tende indubitavelmente a
aproximar as próprias condições de presença T utilização do filme às condições
da análise. O preço a pagar é bem conhecido: a cópia de um filme em cassete
"doméstica" é quase sempre de qualidade técnica medíocre, ou mesmo má.
Observemos, porém, que esse problema não surgiu com a cassete. Como salientaram
tantos teóricos, historiadores e críticos, a própria palavra "filme" é ambígua, pois tanto
designa o objecto material - um conjunto de bobinas de película, em melhor ou pior
estado, muitas vezes obtido por cópia, contratipagem ou outro método - como o objecto
"ideal" - o filme projectado num ecrã, nas melhores condições possíveis, e que é aquilo
de que se ocupa o analista. Não faltam exemplos de análises fílmicas que, num momento
ou noutro, depararam com problemas, idealmente menores, de qualidade da cópia;
para dar só um exemplo, é assim que Raymond Bellour, na sua análise exemplarmente
minuciosa de Intriga Internacional, confessa que durante muito tempo não conseguiu
ver a primeira aparição do avião que ataca Roger Thornhill, por a cópia de que dispunha
.estar muito riscada ...

Mesmo se essa qualidade da reprodução de ~ídeo é compensada, achamos, pela


sua flexibilidade e adequação à análise, continua sempre a ser necessário regressar,
quando possível, ao filme original, projectado em boas condições. Limitamo-nos a
I
189
A ANALISE DO FILME

repetir uma evidência: não se pode ficar eternamente na dissecção, nem contentar-
-se em utilizar o que não passa de um traço do filme; nem que seja pelo próprio
interesse da análise, é preciso ver os filmes nas condições para as quais eles foram
concebidos (cf capo 2, 1.).
Afloramos aqui, outra vez, um ponto muito mais geral, ligado à perturbação
dos nossos hábitos de visão e consumo pelo videogravador, mas já, antes deste,
pela televisão. Cada vez mais o amador vai formando a sua "cinemateca" com
cassetes; cada vez mais ele tende a olhar os filmes por fragmentos, e também a
confrontá-los uns com os outros. Como, por outro lado, a televisão é também
uma ocasião de confrontos imprevistos, pelo slalom selvagem através da história
do cinema que ela nos propõe diariamente; como, por fim, a imagem electrónica,
com as suas possibilidades de deformação quase. infinitas, impõe uma nova con-
cepção do enquadramento como "paginação", percebemos que os nossos hábitos
de visão estão a mudar mais depressa e mais radicalmente do que nunca desde a
invenção do cinema.
É por isso muito importante, na análise oral (que costuma ser uma análise
pedagógica), levar em conta esta situação. É essencial, para todos os professores que
tenham de pratipr a análise de filmes, estar conscientes das diferenças gigantescas
que existem, entre indivíduos e entre camadas sociais, na relação com as imagens
em movimento. É um lugar comum dizer que a maioria das crianças em idade
escolar passa várias horas diante do televisor. Podemos ficar desolados (embora o
passadismo de nada sirva), e a hiperfrequentação da televisão tem os seus inconve-
nientes (muitas vezes experimentados por professores a quem se concede a mesma
atenção flutuante que a um locutor da TV); mas para a análise fílmica, e de modo
geral, para a propensão ao olhar analítico, é um instrumento de potencial ainda
subaproveitado. O papel do professor é aqui múltiplo e complexo, pois deve ao
mesmo tempo, e contraditoriamente, aceitar essa relação dos seus alunos com a
televisão (e dela tirar partido como de uma verdadeira base cultural), mas também
ajudá-los a descobrir um outro modo de visão, aquele que o cinema exige (visão
ininterrupta, atenta, a única que permite ver e apreciar um filme - os "grandes"
filmes como os outros). A análise de filmes (principalmente de filmes importan-
tes), com características estilísticas atraentes, é sem qualquer dúvida uma das vias
privilegiadas dessa educação do olhar.

5.2. Análise de grupo


Esta característica da análise em situação pedagógica envolve múltiplos proble-
mas práticos, inerentes ao ensino, e que não desenvolveremos. Vamos só sublinhar
duas características importantes de uma análise de grupo:
- primeiro, ela dá lugar a uma invenção mais colectiva. Quase existe,poderíamos
dizer, uma maiêutica da análise oral. Naturalmente, não nos devemos iludir
demasiado: uma análise realmente colectiva supõe uma igual participação de
todos os membros do grupo; no entanto o professor, que em geral conhece
melhor o filme e tem mais experiência de análise, beneficia de uma certa
"vantagem": desse modo o seu papel costuma ser propor uma perspectiva
susceptível de integrar as observações do grupo;
190
8. OBJECTIVO DA ANÁLISE: À GUISA DE CONCLUSÃO

- depois, ela está à partida melhor protegida contra os delírios de interpretação,


e um certo grau de verificação torna-se mais fácil. O risco é mesmo que
essa verificação permanente se torne uma quase-censura, e que bloqueie a
invenção.
Terminaremos referindo certos usos mais particulares da análise: um filme
de ficção p@de,por exemplo, permitir múltiplas leituras projectivas que serão um
objecto de estudo psicológico privilegiado. Numa ordem de ideias completamente
diferente, a: análise pode servir de apoio a uma~oncepção normativa do cinema,
demonstrando processos, apreciados positiva oÓ negativamente em relação a um
certo modelo da linguagem cinematográfica, pJr exemplo (ou da escrita do argu-
mento, etc.): é uma prática frequente nas escol~s profissionais de cinema, onde a
análise serve para ensinar a "maneira correcta" Idefazer filmes.

I.. .• I.
6. ANALISE DO FILME, ANALISE AUDIOVISUAL
Não queríamos concluir sem uma última observação, na verdade mais prospec-
tiva que outra coisa. Aquilo de que falámos ao longo deste livro, e os exemplos que
citámos, njsultam de uma concepção, e de uma prática, inevitavelmente datadas
- mesmo se continuam a estar próximas de nós no tempo, e ainda actuais, até.
Mas achamos importante, em primeiro lugar, afirmar que não há qualquer razão
para que a actividade analítica que descrevemos se detenha nas fronteiras do filme
de ficção tradicional; a análise de filmes publicitários, videoclips e programas
televisivos.já vai sendo objecto de investigação e ensino; decerto que esta prática
I
nova, atenta ao surgimento de novas formas e novos dispositivos, conduzirá a novas
alterações teóricas. Percebe-se que não podemos dizer mais.
Depoi~ - e ficamo-nos por aqui - é possível (mesmo que não necessariamente
provável) que, por maneiras que não podemos prever, a análise fílmica (ou seja, a
análise através do filme) se torne por fim algo çiiferente da utopia recorrente que,
nos últimds 15 ou 20 anos, se tem manifestado na escrita de tantos analistas. Talvez
a próxima obra sobre a análise do filme seja difundida em cassetes de vídeo ...
I
I

191
-
Bibliografia

CAPÍTULO 1
1. ANÁLISE E OUTROS DISCURSOS SOBRE o FILME
1.1. Os' diversos tipos de discurso I
Christian METZ; Langage et Cinéma, Larousse, 1971, reed., Albatros, 1977, capítulo 1
«A l'inté,rieur du cinéma, le fait filmique» e capítulo 2 «A l'intérieur du fait filmique,
le cinéma». ,
Pierre SORLIN, Sociologie du cinéma, Paris, Aubier-Montaigne, 1977, terceira parte,
«Analyse filmique et histoire social», capo 1, Les cadres de l'analyse, pp. 151-197.
1.2. Análise e crítica
Cinéma 83, n.O300, Dezembro de 1983 e Cinéma 84, n.O301, Janeiro de 1984, inquérito
"La critique en question", especialmente Joel Magny "Flux et reflux", pp. 10-17 e
inquérito sobre o ofício de crítico.
André BAZIN, Qu'est-ce que le cinéma?, Cerf, 1978, várias reedições.
André BAZIN, Le Cinéma français de l'occupation et de la résistance,col. «10118»,Paris,
U.G.E., 1975.
André BAZIN, Le Cinéma de la cruauté, Paris, Flammarion, 1975.
Serge DANEY, La Rampe, Cahier critique, 1970-1982, Paris, Cahiers du cinéma-
-Gallimard, 1983.
Serge DANEY, Ciné-Journal, 1981-1986, Paris, Cahiers du cinéma, 1986.
1.3. Análise e teoria
Raymond BELLOUR, L' A~alyse du film, Paris, Albatros, 1980, «D'Une histoire»,
pp.9-41.
Colectivo (com a direcção de Jacques AUMONT e Jean-Louis LEUTRAT), lhéorie du
film, Paris, Albatros, 1980.
CinémAction, n.O 20, Agosto de 1982, «1héories du cinéma», com a direcção de Jo1:1
Magny, Paris, L'Harmattan, 1982.
1.4. Análise e interpretação
Roger ODIN, «Dix années d'analyses textuelles de films», bibliographie analytique,
Linguistique et Sémiologie, 3, Lyon, 1977.
Roger ODIN, «Pour une sémio-pragmatique du cinéma», Iris, voU, n.O 1, Paris, 1983,
pp.67-82.
Maurice DROUZY, Luis BuflUel, architecte du rêlJe,Paris, Pierre Lherminier, Filmédi-
tions, 1978.
Marcel OMS, Don Luis Bunuel, «7e art», Paris, Éd. du Cerf, 1985.
2. DIVERSIDADE DAS ABORDAGENS ANALíTICAS
Lev KULECHOV, Kuleshov on Film, ed. e trad. Ronald Levaco, Berkeley, University of
California Press, 1974.
"L'Effet Koulechov", Iris, Vol. 4, n.O 1, Paris, 1986.
Raymond]. SPOTTISWOODE, Grammar o/ Film, Londres, 1935.
J. M. L. PETERS, L'Éducation cinématographique, Paris, UNESCO, 1961.
2.1. Um cineasta perscruta a sua obra
Serguei M. EISENSTEIN, "Eh! De la pureté du langage cinématographique", Sovietskoie
Kino, ~934, n.O5, in Cahiers du Cinéma, Março de 1969.
Raymond BELLOUR, «Les Oiseaux: analyse d'une séquence», Cahiersdu Cinéma, n.O216,
Outubro de 1969, reproduzido em L' Analyse du film, Albatros, 1980.
I

193
A ANÁLISE DO FILME

2.2. As fichas filmográficas


Zéro de conduite, fiche filmographique n.O181,Jean-Patrick LEBEL, IDHEC, Paris, 1963,
in Films et Documents, n.O 193, Novembro de 1963.
Colectivo, Analyses filmographiques desfilms de Jean Renoir, IDHEC, 1966.
André BAZIN, fiche filmographique du Jour se lêve, "Peuple et Culture», 1953, in Regards
neufi sur le cinéma, Paris, Le Seuil, reed. 1963, republicado em Le Cinéma français de
la libération à la Nouvelle Vague, 1945-1958, «Essais», Cahiers du Cinéma, 1983.
Paulo Emílio SALLES GOMES,Jean Vigo, "Cinémathêque», Paris, Le Seuil, 1957.
2.3. A política dos autores e a análise interpretativa
Claude CHABROL e Éric ROHMER, Alfred Hitchcock, "Classiques du cinéma», Paris,
Éd. Universitaires, 1957, reed. 1986.
Maurice SCHÉRER (Éric ROHMER), "A qui la faute?", Cahiers du Cinéma, n.O 39,
Outubro de 1954, especial Alfred Hitchcock, reproduzido num novo número especial
em 1980, Paris, Éd. de l'Étoile.
André BAZIN, "Comment peut-on être Hitchcocko-Hawksien?», Cahiers du Cinéma,
n.O44, reed. 1980, in Alfred Hitchcock, op. cito
2.4. A pausa na image •••
1hierry KUNTZEL, "Le défilement», Revue d'esthétique, número especial, "Cinéma,
1héorie, Lectures», Paris, Klincksieck, 1973.
Raymond BELLOUR, "D'une histoire», L' Analyse du film, op. cito
Sobre O Mundo a Seus Pés (lista muito selectiva):
André BAZIN, Orson Welles, ,,7eArt», Paris, éd. du Cerf, 1972.
Michel CIMENT, "Ouragans autour de Kane», Les Conquérants d'un nouveau monde,
"Idées», Paris, Gallimard, 1981.
Pauline KAEL, lhe Citizen Kane Book, Bantam Books, Nova Iorque; Martin Secker and
Warburg, Londres, 1971.
Michel MARIE, "Le film, la séquence" e Marie-Claire ROPARS, "Narration et signi-
fication", in Le Cinéma américain, Analyses de films, t. 2 (dir. de BELLOUR), Paris,
Flammarion, 1980.
Orson WELLES, Cahiers du Cinéma, 1982, hors-série n.O 12.
Marie-Claire ROPARS, "Narration et signification», in Le Cinéma Américain, op. cito

CAPÍTULO 2
I. O FILME E A SUA TRANSCRIÇAo
Raymond BELLOUR, "Le texte introuvable", in L' Analyse du film, op. cito
1hierry KUNTZEL, "Le défilement», Revue d'esthétique, 1973, op. cito
Michel MARIE, "Description-Analyse», in Ça/Cinéma n.O7-8, Maio de 1975, número
especial "Christian METZ"; tradução espanhola com 5 páginas de quadros, Video-
-Forum, n.O4, Novembro de 1979, Caracas, Venezuela.
Bertrand AUGST, "1he Defilement into the Look", Camera Obscura, n.O2.
2. INSTRUMENTOS DE DESCRIÇAo
2.1. A decomposifão plano a plano
Michel MARIE, "Découpage", in Lectures du film, Paris, Albatros, 1976, várias reedi-
ções.
Revista L' Avant-scene cin/ma, especialmente os números consagrados aos seguintes fil-
mes: India Song, n.O225, Pépé Le Moko, n.O269, Volpone, n.O189, Les yeux sans visage,
n.O 188, Morangos Silvestres, n.O331, À Beira do Abismo, n.OS 329-330, L' Ami de mon
amie, n.O366, etc.
Raymond RAVAR (com direcção de), "Tu nas rien vu à Hiroshima!», Institut de Sociologie,
Université Libre de Bruxelles, 1962.
Louis DELLUC, Drames de cinéma, éd. du Monde Nouveau, Paris, 1923, reedição Ciné-
mathêque Française, fixada por Pierre Lherminier.

194
BIBLIOGRAFIA

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a 234, 1971.
Michel MARIE, «Découpage apres montage de Mudel», in Muriel, Histoire d'une reeher-
ehe, Paris, Galilée, 1974.
Jean CAYRbL, Muriel, Paris, Le Seuil, 1963.
Philippe DESDOUITS et aI., "Oetobre" d'Eisenstein, continuité photogrammatique intégrale,
Cinéma~heque Universitaire, Paris, 1980.
Éric ROHMER, L'Organisation de I 'espacedans le "Faust" de Murnau, coI. «10/18», Paris,
UGE,1977.
Charles TE$SON, Découpage de Vampyr de Carl Dreyer, L' Avant-scene cinéma, n.O228,
e Le Méi:anisme du film dans "Vampyr" de Dreyer, tese de doutoramento de 3.° ciclo,
Université de Paris-III, 1979. '
Carl1h. DREYER, Oeuvres cinématographiques, 1926-1934, Cinématheque Française,
Paris, 1983, capítulo 2 consagrado a Vampyr, «~e scénario, le découpage et le film»,
por Charles Tesson. I

Michel BOUVIER e Jean-Louis LEUTRAT, Nosfet-atu, Cahiers du Cinéma, Paris, Gal-


limard, 1981, segunda parte.
Alain ROBBE-GRILLET, Glissements progressijs du plaisir, Paris, Ed. De Minuit, 1974.
2.2.1\seg~entação
Jean-Luc GODARD, A bout de soujJle, Avant-scene cinéma, n.O 79, e Bibliotheque des
Classiques du Cinéma, Paris, Balland, 1974.
Pierre SORLIN, Sociologie du cinéma, op. cit., sobre Ossessione, terceira parte, «Analyse
filmique et histoire sociale», capo 1, <<1es cadres de l'analyse».
Marie-Claire ROPARS, Littérature, n.O 46, Maio de 1982, "L'instance graphique dans
l' écriturie du film: A bout de soujJle ou l'alphabet erratique».
Christian METZ, «La grande syntagmatique de la bande-images», Essais sur la signifieation
au cinéma, t. 1, Paris, Klincksieck, 1968, várias reedições.
Daniel PERCHERON, "Ponctuation» e "Séquences», in Leetures du film, op. cito
MicheIe LAGNY, Marie-Claire ROPARS, Pierre SORLIN, Générique des années 30,
Presses Universitaires de Vincennes, 1986.
Blandine PEREZ-V}TORIA, ''Elisa, Vida mía" de Carlos Saura, Découpage et étude
filmique, Paris, Ed. Hispaniques, 1983.
1:
Raymond BELLOUR, "Segmenter, analysen" in Analyse du film, op. cito
2.3.1\ descrição das imagens do filme
Claude BAILBLÉ et aI. Muriel, histoire d'une reeherehe, op. cito
2.4. Quadros, gráficos, esquemas
Raymond BELLOUR, "Segmenter, analyser", op. cit., in L' Analyse du filmo
Dominique CHATEAU e François JOST, Nouveau cinéma, nouvelle sémiologie, coI. «10-
-18», Paris, UGE, 1979, reed. Paris, Ed. de Minuit, 1985.
John FELL, "Structuring Charts andPatterns in Film», Quarterly Review ofFilm Studies
voI. 3, n.O3, 1978,341-388.
Stephen HEATH, "Film and System, Terms of Analysis", Sereen, voI. 16, n.O 1, 1975,
7-77; voI. 16, n.O2, 1975,91-113.
Edward BRANIGAN, "1he Space of Equinox Flower", Sereen, voI. 17, n.O 2, 1976,
74-105.
2.5. Instrumentos citacionais
Sylvie PIERRE, «Éléments pour une théorie du photogramme», Cahiers du Cinéma,
n.OS226-227, Janeiro-Fevereiro de 1971.
Éric ROHMER, Michel MARIE, Francis COURTADE, Avant-scene cinéma, n. os 190-
-191, decomposições plano a plano de Fausto, O Último dos Homens e Tartufo, de F.
W. Murnau, número especial Murnau.
1hierry KUNTZEL, "Le Travail du film, 2", Communieations n.O23, Paris, Le Seuil, 1975
e «Savoir, pouvoir, voir», in Le Cinéma amérieain, analyses de films, t. 1, op. cito

195
A ANÁLISE DO FILME

David BORDWELL, lhe Films olCarllheodor Dreyer, University ofCalifornia Press,


Berkeley, Londres, Los Angeles, 1981.
Alfred GUZZETTI, Two or lhree lhings I Know about Her, analysis 01afilm by Godard,
Harvard University Press, 1981.
Eric ROHMER, L'organisation de I 'espace dans le "Faust» de Murnau, op. cito
2.6. Instrumentos documentais
Carl1h. DREYER, Réflexions sur mon métier, Paris, éd. de l'Étoile, 1983.
Michel BOUVIER e Jean-Louis LEUTRAT, Nosferatu, op. cit., segunda parte.
Edgar MORIN, «Aspects sociologiques de la genese d'un film», in Tu nas rien vu à
Hiroshima, op. cito
Michel MARIE, «Contexte», in Muriel, Histoire d'une recherche, op. cito

CAPÍTULO 3
1. ANÁLISE TEXTUAL E ESTRUTURALISMO
Claude LÉVI-STRAUSS, La Pensée sauvage, Paris, Plon, 1962.
Claude LÉVI-STRAUSS, Anthropologie structurale, Paris, PIon, 1958. - Anthropologie
structurale,l1, Paris, Plon, 1973.
Roman JAKOBSON, Essais de linguistique générale, Paris, ed. de Minuit, 1963. - Essais
de linguistique générale, IL Paris, ed. de Minuit, 1973.
Jean-Paul DUMONT e Jean MONOD, Le Frxtus astral, Paris, Christian Bourgois,
1970.
Roland BARTHES, Mythologies, Paris, Le Seuil, 1957. - S/Z, Paris, Le Seuil, 1970.
Christian METZ, Langage et Cinéma, Paris, Larousse, 1971, reed. Albatros 1977.
Jacques AUMONT et aI., Esthétique du film, Paris, Nathan-Université, 1983, capo 4.
2. O FILME COMO TEXTO
Julia KRISTEVA, Séméiotiké, Recherches pour une sémanalyse, Paris, Le Seuil, 1969.
Roland BARTHES, ''Analyse textuelle d'un come de Edgar Allan Poe", in Semiotique
narrative et textuelle (com a direcção de François Rastier e Claude Chabrol), Paris,
Larousse, 1973.
1hierry KUNTZEL, "Le travail du film" (acerca do prólogo de Matou.'), in Communi-
cations, n.O 19, 1972.
Marie-Claire ROPARS, Le Texte divisé, Paris, PUF, 1981.
3. AS ANÁLISES FÍLMICAS EXPLICITAMENTE DE CÓDIGO
Christian METZ, "La grande syntagmatique de la bande-images", in Essais 1, op. cito
Raymond BELLOUR, "Segmemerlanalyser", in L' Analyse du film, op. cito
Michel MARIE, "Un film sonore, un film musical, un fiIm parlam", in Muriel, histoire
d'une recherche, op. cito
Raymond BELLOUR, "L'évidence et Ie code~',in L' Analyse du film, op. cito
4. ANÁLISE TERMINADA, ANÁLISE INTERMINÁVEL
Stephen HEATH, in Screen 16, 1 e 2, 1975, op. cit., e "Systeme-récit", in Ça Cinéma
n.O 7/8, 1975.
Raymond BELLOUR, "Les Oiseaux: analyse d'une séquence", Cahiers du Cinéma n.O216,
republicado em L' Analyse du film, op. cito
Jacques AUMONT, Montage Eisenstein, Paris, Albatros, 1979.
Marie-CIaire ROPARS, ''Autour d'une analyse séquemielle: Ie travail de I' écriture", in
Muriel, histoire d'une recherche, op. cito
Raymond BELLOUR, "Psychose, névrose, perversion", in L' Analyse du film, op. cito
Michel MARIE, "De la premiere communion au mariage", in lhéorie du film, op. cito
Michêle LAGNY et aI., Générique des années 30, op. cito
Michele LAGNY et aI., ''Analyse d'un corpus filmique extensible: les films français des
années 30", in lhéorie du film, op. cito

196
BIBLIOGRAFIA

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Marie-Claire ROPARS, "L'ouverture d'Octobre, ou les conditions théoriques de la Révo-
lution", in Octobre, écriture et idéologie, Paris, Albatros, 1976.
1hierry KUNTZEL, "Le Travail du film, 2", in Communications, n.O23.
Roger ODIN, "L'entrée du spectateur dans la fiction", in 1héorie du film, op. cito
Jean DOUCHET, "Dix-sept plans", in Le Cinéma américain, analyses de films, op. cito
Odile LARERE, De l'imaginaire au cinéma, Paris, Albatros, 1980.
Roger ODIN, "Dix années d'analyses textuelles du film", Linguistique et sémiologie, n.O3,
1977-
Dominique NOGUEZ, "Fonction de l'analyse, arlalyse de la fonction", in 1héorie du
film, op. cito

CAPÍTULO 4
1. ANÁLISE TEMÁTICA, ANÁLISE DE CON+EÚDOS
Roger ODIN, "Rhétorique du film de famille", ilfl "Rhétoriques, sémiotiques", Révue
d'esthétique, 1979, 1-2, coI. "10/18", Paris, UGE.
Marc VERNET, "Cinéma et narration", in Esthétique du film, op. cito (cap. 3).
Raymond RAVAR (com a direcção de), "Tu n'as rien vu à Hiroshima", op. cito
Michel DELAHAYE, "Jacques Demy ou les racines du rêve", Cahiers du Cinéma, n.O 189,
Abril de 1967 e "La Saga Pagnol", Cahiers du Cinéma, n.O213, Junho de 1969. Fran-
çois Steudler e Myriam Tsikounas, "Images de l'alcool au cinéma", Cahiers de I1REB,
n.O7, Setembro de 1984. I

François STEUDLER, Françoise STEUDLER e Myriam TSIKOUNAS, Représentations


de l'alcool et de l'alcoolisme dans le cinéma français, 1930-1980, relatório para o comité
de Estudos e Informações sobre o Alcoolismo, Dezembro de 1985.
François STEUDLER, "Cinéma, maniere de boire et alcoolisme", actas do Encontro
Internacional da Bretanha, Rennes, Janeiro de 1984. - "Mythologie de l'alcool au
cinéma", Informations sociales, 1.0 trimestre de 1986.
Richard MONO O, Les Textes de theâtre, Paris, Cedic-Nathan, 1977.
Jean-Pierre RICHARD, Littérature et sensation, Paris, Le Seuil, 1954.
Henri AGEL, L'Espace cinématographique, Paris, Éd. universitaires, Jean-Pierre Delarge,
1978.
Jean DOUCHET, Alfred Hitchcock, Paris, L'Heme-Cinéma, n.O 1, 1967, reed. Paris,
1986.
2. ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA E ANÁLISE DE FILMES
Vladimir PROPP, Morphologie du Conte, coI. "Poétique", Paris, Le Seuil, 1965 e 1970,
reed.
John FELL, "Propp in Hollywood", Film Quarterly, XXX, 3 (Primavera de 1977),
pp. 19-28.
Peter WOLLEN, Readings and Writings, Londres, Verso Editions, 1982.
William WRIGHT, Sixguns and Society, A Structural Study ofthe Western, University of
California Press, 1975.
Roland BARTHES, "Introduction à l'analyse structurale de récits", Communications,
n.O 8, 1966, Paris, Le SeuiI.
Claude BREMOND, "La logique des possibles narratifs", Communications, n.O8.
A. J. GREIMAS, Sémantique structurale, Paris, Larousse, 1966. - Du Sens, essais sémio-
tiques, Paris, Le Seuil, 1970.
Alan WILLIAMS, "Structures ofNarrativity in Fritz Lang's 'Metropolis"', in Film Quar-
terly, voI. XXVII, n.O4, pp. 17-23, Verão de 1974.
Roger ODIN, L' Analyse sémiologique des films, vers une sémio-pragmatique, Doctorat
d'État, Paris, École Pratique des Hautes Études, 1982.

197
A ANÁLISE 00 FILME

3. A ANÁLISE DA NARRATIVA COMO PRODUçAo:


A PROBLEMÁTICA DA ENUNCIAÇAo .
Émile BENVENISTE, "L' Appareil formei de I'énonciation", in Problemesde Linguistique
générale, t. 2, Paris, Gallimard, 1976.
Francis VANOYE, Récit écrit, récitjilmique, Paris, Nathan Université, 1989.
Gérard GENETTE, "Discours du récit", in Figures lI!, Paris, Seuil, 1972.
Brian HENDERSON, "Tense, Mood and Voice in Film", Film Quarterly XXXVI, 4,
Verão de 1983, 4-17.
François JOST, "Le regard romanesque. Ocularisation et focalisation" in Hors Cadre, 2,
"Cinénarrable", Presses Universitaires de Paris-VIII, 1984.
François JOST, L'oeil-caméra, Presses Universitaires de Lyon, 1987.
André GAUDREAULT, "Narrator et narrateur", in Iris, n.O7, Paris, 1986.
Nick BROWNE, "Rhétorique du texte spéculaire", in Communications, n.O 23, Paris,
Le Seuil, 1975.
Vance KEPLEY, "SpatialArticulation in the Classical Cinema", WideAngle, vol. 5, n.O3,
1983, pp. 50-58.
Alain MASSON, Le Récit au cinéma, Paris, Cahiers du Cinéma, col. "Essais", 1994.
(aborda os filmes lhe Restoration, A Grande Ilusão, Fúria Sanguinária, Chikamatsu
Monogatari ["OsAmantes Crucificados'l, Jalsaghar ["O Salão de Música'l, VIvera Sua
VIda e Ao Correr do Tempo).
Marie-Claire ROPARS, "Narration et signification", in Poétique, n.O12, 1972, reproduzido
em Le Cinéma américain, t. 2, op. cito
Jean-Paul SIMON, "Énonciation et narration", in Communications, n.O 38, Paris, Le
Seuil, 1983.
Christian METZ, "L'Énonciation impersonelle ou le site du film", Vertigo, n.O 1,
pp.13-34.
André GAUDREAULT, Du littéraire au jilmique, Paris, Méridiens-Klincksieck, 1988.

CAPÍTULOS
1. O CINEMA E A PINTURA
Dominique NOGUEZ, Une renaissancedu cinéma, le cinéma "underground" américain,
Paris, Klincksieck, 1985.
Jacques AUMONT, "Godard Peintre", in Jean-Luc Godard, Les Films, Revue belge du
cinéma, Verão de 1986, n.O 16.
Denis DIDEROT, Traité du Beau e Essai sur la peinture, Marabout-Université, Verviers,
Bélgica, 1973. .
Rudolf ARNHEIM, Versune psychologiede l'art, Paris, Seghers, 1973. - lhe Power 0lthe
Center, University of California Press, 1982.
Eric ROHMER, L'organisation de l'espacedans le "Faust"de F W Murnau, col. "10/18",
Paris, UGE, 1977.
2. A ANÁLISE DA IMAGEM FÍLMICA
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CAPÍTULO 6
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i
199
A ANÁLISE DO FILME

CAPÍTULO 7
1. ANÁLISE DE ESTRUTURAS IMANENTES OU ANÁLISE DE FENÓ-
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2. GARANTIA E VALIDAÇÁO DE UMA ANÁLISE
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BIBLIOGRAFIA SELECTIVA
Esta bibliografia selectiva apenas cita os livros e as recolhas de artigos que contêm
análises 4e filmes que estudam em pormenor os títulos citados. Não citámos as
monografias sobre autores e os livros de teoria geral, salvo raras excepções (as quais
se justificam pelo desenvolvimento de partes an~.líticas consagradas a um ou vários
filmes). Um índice precisa os realizadores e datas, remetendo ao número da referência
atribuído nesta bibliografia. Renunciámos a forneder uma bibliografia de artigos publi-
cados separadamente em revistas, pois esta teria a)cançado mais de 1000 referências;
contentámo-nos em citar alguns números especiais dedicados à análise de filmes, na
íntegra ou parcialmente. I
, i
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John Doe (Um João Ninguém) - La Symphonie pastorale (Sinfonia Pastoral)- Le Journal
d'un curéde campagne (Diário de um Pároco de Aldeia) - Henry V (Henrique V).
4. ARNAUD (Philippe), Robert Bresson, Paris, Cahiers du Cinéma, colecção «Auteurs»,
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ofWrath (As Vinhas da Ira) - lhe Ox-Bow Incident (ConsciênciasMortas) - Madame
Bovary (Madame Bovary).
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Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés) - Our Hospitality (A Lei da Hospitalidade) -Un
Condamné à mort s'est échappé (Fugiu um Condenado à Morte).
9. BORDWELL (David), lhe Films o/ Carl lheodor Dreyer, Berkeley, Los Angeles,
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La Passion de Jeanne d'Arc (A Paixão deJoana d:Arc) - Vampyr - Vredens Dag (Dia
de Cólera) '- Ordet (A Palavra) - Gertrud (Gertrud).
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11. BORDWELL (David), Narration in the Fiction Film, University ofWisconsin Press,
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Rear Window (A Janela Indiscreta) - His Girl Friday (O Grande Escândalo) - Brone-
nosets Potiomkin (O Couraçado Potemkine) - La Strategia del Ragno (A Estratégia da
Aranha) - Sunrise (Aurora) - Lady Windermere's Fan - lhe Killers (Assassinos) - La

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(Ultimatum) - Deuxieme Bureau contre Kommandantur - Pépé le Moko - Bourras-
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Comboio de Gun Hill) -Sarati le Terrible - Abus de confiance (Abuso de Confiança) -
Hôtel du Nord (Hotel do Norte) - Souvenirs d'en France - Une Partie de campagne
(Passeio ao Campo) - The Big Sleep (À Beira do Abismo).
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Tomo 1:
The Life of an American Cowboy - Enoch Arden - The Lonedale Operator - Greed
(Aves de Rapina) - The Vanishing American (O Declínio de uma Raça) - Morocco
(Marrocos) - The Most Dangerous Game (O Malvado Zarojf) - The Westerner (A
Última Fronteira) - House ofWax (Máscaras de Cera) - Fury (Fúria)- Only Angels
Have Wings (Paraíso Infernal) - Young Mr. Lincoln (A Grande Esperança).
Tomo 2:
Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés) - Cat People (A Pantera) - I Walked with a Zombie
(Zombie)- The Leopard Man (O Homem Leopardo) - The Seventh Victim - The Ghost
Ship (O Barco da Morte) - The Curse of the Cat People (A Maldição da Pantera) -
Suspicion (Suspeita) - The Maltese Falcon (Relíquia Macabra) - Double Indemnity
(Pagos a Dobrar) - The Big Sleep (À Beira do Abismo)- Shanghai Lady (A Dama de
Xangai) - Out of the Past (O Arrependido) - The Enforcer (Sem Consciência)- Meet

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Most Dangerous Game (O Malvado Zarojf) - Stagecoach (CavalgadaHeróica) - North
by Northwest (Intriga Internacional) - Suddenly Last Summer (Bruscamente no Verão
Passado)- Lilith (Lilith e o Destino) -Freud: 1he Secret Passion.
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L' Atalante (Atalante) - L'Histoire d'Adele H (A História de Adêle H.) - La Chienne
- Le Journal d'un curé de campagne (Diário de um Pároco de Aldeia) - India Song
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for Murder (Chamada para a Morte) - L'Homme qui ment (O Homem que Mente).
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1he Musketeers of Pig Alley - Le Schpountz (Schpountz) - Adieu Philippine - Ma
Nuit chez Maud (A Minha Noite em Casa de Maud) -Lady in the Lake (A Dama do
Lago) - Film - Le Tempestaire.

205
A ANÁLISE DO FILME

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Neighbours - Spellbound (A Casa Encantada) - Elisa, Vida mia.
70. Revue Belge du cinéma, n.a 16, Verão 1986, «Jean-Luc Godard, les films».
A boutde souffie (OAcossado)- Le Mépris (O Desprezo) -Pierrotle fou (Pedro o louco)
- Une Femme est une femme (Uma Mulher É uma Mulher) - Passion (Paixão) - Les
Carabiniers (Os Carabineiros).

SUPLEMENTO BIBLIOGRÁFICO 1988-1999


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of a Doubt (Mentira), White Heat (Fúria Sanguinária), Johnny Guitar Uohnny Guitar),
Pride of the Marines (Uma luz nas Trevas), Dark Passage (O Prisioneiro do Passado),
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gent, Sous les toits de Paris (Sob os Telhados de Paris), Marius-Fanny-César, La Bête
Humaine (A Fera Humana), Le Jour se leve (Foi uma Mulher que o Perdeu), Les
Enfants du Paradis, La Belle et la bête (A Bela e o Monstro), Journal d'un curé de
campagne (Diário de um Pároco de Aldeia), Les Vacances de M. Hulot (As Férias do
Senhor Hulot), Casque d'or (Aquela loi~a), Hiroshima mon amour (Hiroshima Meu
Amor), Les 400 coups (Os 400 Golpes),A bout de souffie (O Acossado), Le Mépris (O
Desprezo), Ma nuit chez Ma,!d (A Minha Noite em Casa de Maud), Sauve qui peut (la
vie) (Salve-se Quem Puder), A nos amours (Aos NossosAmores), Les Nuits de la pleine
lune (Noites de lua Cheia), Sans toit ni loi (Sem Eira Nem Beira).
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Dark Passage (O Prisioneiro do Passado), Lady in the Lake (A Dama do Lago), Halloween
(O Regresso doMaI), Wolfen (Cidade em Pânico), The Window (O Que Viram osMeus
Olhos), Dragonwyck (O Castelo de Dragonwyck), Rebecca (Rebecca), A Letter to 1hree
Wives (Carta a Três Mulheres)
Colecções de ntonografias de análise crítica: .
É o mais notável fenômeno editorial desde a primeira edição de A Análise do Filme em
1988.
Quase em simultâneo apareceram a colecção «Long métrage» na Bélgica, dirigida por
Patrick Leboutte e a colecção «Synopsis» na Nathan, dirigida por Francis Vanoye;
e duas colecções mais efémeras: «Films», Lyon, L'Interdisciplinaire, e <<Imagepar
image», Paris, Hatier.
Colecção «Long métrage», edição Yellow Now; 15 títulos publicados desde 1988, entre
os quais: Les Vacances de Monsieur Hulot (As Férias do Sr. Hulot), de Jacques Tati, por
Jacques Ke'rmabon, 1988; À nos Amours (Aos Nossqs Amores), de Maurice Pialat, por
Alain Philippon, 1989; Viaggio in Italia (Viagem a Itália), de Roberto Rossellini, por

207
A ANÁLISE DO FILME

Alain Bergala, 1990; La Mamain et la Putain (£1 Mãe e a Puta), de Jean Eustache,
por Colette Dubois, 1990; Man Hunt (Feras Humanas), de Fritz Lang, por Bernard
Eisenschitz, 1992; Bande à part, de Jean-Luc Godard, por Barthélemy Amengual,
1993; Vampyr, de Carl Th. Dreyer, por Jacques Aumont, 1993; La Chienne, de Jean
Renoir, por Jean-Louis Leutrat, 1994.
Colecção «Synopsis", 128 páginas, ed. Nathan; 35 títulos publicados desde 1989: La Regle
du jeu (£1Regra do jogo), City Lights (Luzes da Cidade), Citizen Kane (O Mundo a Seus
Pés), M (Matou!), Barry Lyndon (Barry Lyndon), Rear Window (£1janela Indiscreta), Le
Mépris (O Desprezo), 11Gattopardo (O Leopardo), Les 400 Coups (Os 400 Golpes), Les
Fnfants du Paradis, Senso (Sentimento), Det Sjunde Inseglet (O Sétimo Selo), Bronenosets
Potiomkin (O Couraçado Potemkine), Some Like It Hot (Quanto Mais Quente Melhor),
Blow Up (Profissão: Repórter), Mon Onele (O Meu Tio), Un Chien Andalou e L:Âge
d'Or, La Grande Illusion (A Grande Ilusão), Hiroshima mon amour (Hiroshima Meu
Amor), FI, Partie de Campagne (Passeio ao Campo), Mujeres ai borde de un ataque de
nervios (Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos), jules etjim Oules ejim), Manhattan
(Manhattan), Land and Freedom (Terra e Liberdade), F La Nave Va (O Navio), Ugetsu
Monogatari (Contos da Lua Vaga), À bout de souffle (O Acossado), À nos amours (£1os
Nossos Amores) ...
Entre as colecções estrangeiras, uma britânica, outra norte-americana:
Colecção «Film Classics", British Film Institute, entre os quais Citizen Kane [O Mundo
a Seus Pés}, por Laura Mulvey (1992), Olympia, por Taylor Downing (1992), Singin'
in the Rain [Serenata à Chuva}, por Peter Wollen (1992), L:Atalante [Atalante}, por
Marina Warner (1993), In a Lonely Place [Matar ou Não Matar}, por Dana Polen
(1993), L'Avventura [A Aventura}, por Geoffrey Nowell-Smith (1997), Pépé le Moko,
por Ginette Vincendeau (1998) 80 páginas.
Colecção «Wisconsin/Warner Bros Screenplay Series", desde 1979; por exemplo: 1he jazz
Singer [O Cantor dejazz}, editado com uma introdução por Robert L. Caringer. Uma
colecção preciosa para o estudo do processo de produção dos filmes.

208
Índice dos filmes citados

I
Abaixo se apresenta a lista, por ordem alfabética dos títulos dos filmes citados no texto.
Para cad:'lfilme estreado em Portugal se dão entre parênteses o título original, o nome
do realizador e o ano de realização. A seguir indicam-se sucessivamente: as páginas onde
o filme é citado; em itálico, as páginas de eventuais ilustrações; e a negrito os números
das obras da nossa bibliografia final nas quais o filme é porventura analisado.

A
À Beira do Abismo (lhe Big Sleep, Howard Hawks, 1946): 36, 78, 172; 53-54-55.
Abuso de Confiança (Abus de confiance, Henri Decoin, 1937): 81-83; 82-83; 53.
Acossado (O) (À bout de souffle, Jean-Luc Godard, 1959): 42, 43, 119, 181-183; 70.
Adieu Philippine, Jacques Rozier, 1962: 74-76, 157, 202; 75-76; 68.
Adventures o/ Dollie (lhe), David W. Griffith, 1908: 202.
Aleluia (Hallelujah, King Vidor, 1929): 154. I

Alexandre Nevski (Aleksandr Nevski, Serguei M. Eisenstein, 1938): 151.


Ángel exterminador (EI), Luis BuÍÍuel, 1962: 13. I
Annie Hall (Annie Hall, Woody Allen, 1977): 9. 'I

Anjo ou Demónio (Fallen Angel, Ono Preminger, 194p): 182.


Arrivée d'un train en gare de La Ciotat (L'), Louis Lumiere, 1895: 126.
Atalante (L' Atalante, Jean Vigo, 1934): 22; 3, 66.
Aurora (Sunrise, Friedrich W. Murnau, 1927): 146-147; 146; 2-3, 11.
B
Barrabás (Barabba, Richard Fleischer, 1961): 183.
Beijo Fatal (O) (Kiss Me Deadly, Robert Aldrich, 1955): 97.
Bob le Flambeur, Jean-Pierre Melville, 1955: 182.
Brincando com o Fogo (Le Jeu avec lefeu, Alain Robbe-Grillet, 1975): 153.
Bruscamente no Verão Passado (Suddenly, Last Summer, Joseph L. Mankiewicz, 1959):
165; 65.
C
Cais das Brumas (O) (Quai des brumes, Marcel Carné,1938): 182.
Caminhos do Prazer (Glissements progressifi du plaisir, Alain Robbe-Grillet, 1974): 41.
Casa Encantada (A) (Spellbound, Alfred Hitchcock, 1945): 165; 58, 69.
Casablanca (Casablanca, Michael Curtiz, 1943): 208; 209.
Cavaleiros (Os) (lhe Horse Soldiers, John Ford, 1959): 207.
Cavalgada Heróica (Stagecoach, John Ford, 1939): 81, 86, 97, 109-112, 175; 109-110;
13,23,65.
Chinoise (La), Jean-Luc Godard, 1967: 60, 133-135; 134.
Cleópatra (Cleopatra, Joseph L. Mankiewicz, 1963): 34.
Comboio Apitou Três Vezes (O) (High Noon, Fred Zinnemann, 1952): 98.
Condessa Descalça (A) (lhe Barefoot Contessa, Joseph L. Mankiewicz, 1954): 108, 183.
Corda (A) (lhe Rope, Alfred Hitchcock, 1948): 40.
Couraçado Potemkine (O) (Bronenosets Potiomkin, Serguei M. Eisenstein, 1925): 14,63,
79; 15-16-17; 11,63.
D
Dama do Lago (A) (Lady in the Lake, Robert Montgomery, 1946): 114; 68.
Denunciante (O) (Kiss o/ Death, Henry Hathaway, 1947): 165.

209
A ANÁLISE DO FILME

Desconhecido do Norte-Expresso (O) (Strangerson a 1rain, Alfred Hitchcock, 1951): 27.


Desprezo (O) (Le Mépris, Jean-Luc Godard, 1963): 181, 183-186, 193; 184-185; 70.
Deux outrois chosesque je sais d'elle, Jean-Luc Godard, 1966: 60, 86,201; 30.
2001, Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey,Stanley Kubrick, 1968): 68, 79, 210;
210; 1,26.
E
Eden et apres (L'), Alain Robbe-Grillet, 1971: 53; 17,29.
Elisa, Vida mia, Carlos Saura, 1977: 46-49, 77; 47-48; 69.
Enforcamento (O) (Koshikei, Nagisa Oshima, 1968): 136; 59.
Espoir - Sierra de Teruel (L' Espoir ou Sierra de Teruel,André Malraux, 1939-1945): 181.
Evangelho Segundo S. Mateus (O) (11 vangelosecondoMatteo, Pier Paolo Pasolini, 1964): 13.
F
Fantasma da Liberdade (O) (Le Fantôme de la liberté, Luis Bufiuel, 1974): 13.
Fausto (Faust, Friedrich W. Murnau, 1926): 41, 61, 123-124, 145,204; 61; 43.
Férias do Sr. Hulot (As) (Les Vacancesde M. Hulot, Jacques Tati, 1953): 153; 21.
Festival Rocky de Terror (lhe Rocky Horror Picture Show, Jim Sharman, 1975): 208.
Film, Samuel Beckett e Alan Schneider, 1965: 114-115; 68.
Flores do Equinócio (Higanbana, Yasujiro Ozu, 1958): 55.
Foi uma Mulher que o Perdeu (Le Jour se leve, Marcel Carné, 1939): 22-25, 182, 189;
23-24; 51.
France Tour Détour Deux Enfants, Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, 1978: 157-
-158; 38.
Fúria (Fury, Fritz Lang, 1936): 86; 16, 55.
G
Gertrud (Gertrud, Carl Th. Dreyer, 1964): 40; 9.
Gigi (Gigi, Vincente Minnelli, 1958): 51-53, 76-77; 54.
Gilda (Gilda, Charles Vidor, 1946): 182.
Grande Escândalo (O) (His Girl Friday, Howard Hawks, 1940): 112; 11.
Grande Esperança (A) (Young Mr. Lincoln, John Ford, 1939): 168-169, 170, 207; 168,
169; 55.
Grande Ilusão (A) (La Grande illusion, Jean Renoir, 1938): 92, 189.
Grilfe et la dent (La), Gérard Vienne e François Bel, 1975: 153.
H
Hiroshima Meu Amor (Hiroshima mon amour, Alain Resnais, 1959): 36, 40, 42, 92,
151; 42.
Homem da Câmara de Filmar (O) (Tcheloveks Kinoapparatom, Dziga Vertov, 1929): 40,
118, 125-130; 127-128-129; 40, 61, 63.
Homem que Mente (O) (L' Homme qui ment, Alain Robbe-Grillet, 1968): 154, 155; 17,
28-29,67.
Hotel do Norte (Hôtel du Nord, Marcel Carné, 1938): 81, 84; 53.
I
Ídolo Caído (O) (lhe Fallen Idol, Carol Reed, 1948): 14.
Imitação da Vida (Imitation o/Life, Douglas Sirk, 1959): 177, 178.
Immortelle (L'), Alain Robbe-Grillet, 1963: 153; 17, 29.
India Song (India Song, Marguerite Duras, 1974): 36, 203; 44, 66.
Intriga Internacional (North by Northwest, Alfred Hitchcock, 1959): 60, 81, 97, 170-171,
213; 25, 54, 64-65.
Ivan, o Terrível (Ivan Grozni, Serguei M. Eisenstein, 1943-1946): 80,83, 86, 151,203;
5,49,57.
J
Joelho de Claire (O) (Le genou de Claire, Eric Rohmer, 1970): 157.

210
fNDICE DOS FILMES CITADOS

L
Ladrões de Bicicletas (Ladri di bicieletti, Vittotio De,sica, 1948): 63; 48.
Laura (Laura, Otto Pteminger, 1947): 173-174.
Linha Geral (A) (Gueneralnaia Linnia ou Staroie i Novoie, Serguei M. Eisenstein, 1926-
-1929): 80; 5, 62.
Loulou (Loulou, Maurice Pialat, 1980): 157-158.
L'uomo dalla çroce,Roberto Rossellini, 1943: 199.
M
Madame de ... (Madame de... , Max Ophuls, 1953): 40.
Maior Império do Mundo (O) (I Mongoli, André De,Toth, 1961): 183.
Malvado Zaroff (O) (lhe Most Dangerous Game, Ernest B. Schoedsack e Irving Pichel,
1932): 60, 84-86, 100; 55, 65.
Matou! (M, Fritz Lang, 1931): 72-73, 100, 155; 44.
Merrópolis (Metropolis, Fritz Lang, 1926): 41, 102. I
Meu Tio (O) (Mon Onele, Jacques Tati, 1958): 153. i
Minha Noite em Casa de Maud (A) (Ma Nuit Chez ~aud, Eric Rohmer, 1969): 157; 68.
Morangos Silvestres (Smultronstãllet, Ingmar Bergman, 1957): 36.
Mortalmente Perigosa (Gun Crazy, Joseph H. Lewis, 1949): 182.
Mulher que Viveu Duas Vezes (A) (vertigo, Alfred Hitchcock, 1958): 94-95; 25.
Mulher Rebelde (A) (lhe Revolt 0/ Mamie Stover, Raoul Walsh, 1956): 177.
Mundo a Seus Pés (O) (Citizen Kane, Orson Welles, 1940): 30, 63, 81, 113-114, 156,
195-196; 8, 16,55,64.
Muriel (Murielou Le temps d'un retour, Alain Resnais, 1963): 41, 49-51, 57, 77, 80, 86,
154-155,205,210; 58-59-60; 6.
N .
Napoleão (Napoléon, Abel Gance, 1927): 40, 119.
Nascimento de uma Nação (Birth o/a Nation, David W. Griffith, 1915): 41; 62.
Nazarin, Luis 'Bunuel, 1956: 13.
Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, Friedrich W. Murnau, 1922: 41, 63,83,140-145,
203; 141-142-143; 12, 24,45, 53.
o
Olvidados (Los), Luis Bunuel, 1950: 165; 166.
Ossessione,Luchino Visconti, 1942: 8, 43; 48.
Outubro (Oktiabr, Serguei M. Eisenstein, 1927): 36, 40-41, 60, 84, 86, 88, 131-133,
207-208; 132; 35-36.
p
Paixão (Passion,Jean-Luc Godard, 1982): 119, 193; 70.
Paixão de Joana d'Arc (A) (La PassiondeJeanne d:Arc, Carl1h. Dreyer, 1928): 130; 9, 24.
Pássaros (Os) (lhe Birds, Alfred Hitchcock, 1963): 14, 68, 79-80, 167; 25; 39, 54.
Passeio ao Campo (Partie de campagne,Jean Renoir, 1936-1946): 85, 104-105, 115; 51, 53.
Pépé le Moko, Julien Duvivier, 1937: 36; 37.
Pays de la terre sans arbre (Le), Pierre Perrault, 1980: 157.
Pedro, o Louco (Pierrot le/ou, Jean-Luc Godard, 1965): 119; 70.
Prazer (O) (Le Plaisir, Max Ophuls, 1952): 149, 151-153; 19.
Playtime - Vida Moderna (Playtime, Jacques Tati, 1967): 34; 21.
Providence (Providence, Alain Resnais,1977): 151.
Psico (Psycho,Alfred Hitchcock, 1960): 81; 18, 25, 541 64.
Q
Quarto Mandamento (O) (lhe Magnificent Ambersons, Orson Welles, 1942): 156.
400 Golpes (Os) (Les 400 Coups, François Truffaut, 1959): 22.
Queda de um Corpo (A) (lhe Harder lhey Fall, Mark Robson, 1956): 182.
Quermesse Heróica (A) (La Kermesse hérofque, Jacques Feyder, 1934): 119.

2ll
A ANÁLISE DO FILME

R
Rebecca (Rebeeea, Alfred Hitchcock, 1940): 27.
Regra do Jogo (A) (La Regle du jeu, Jean Renoir, 1939): 135-139, 157; 131, 138; 44, 51, 53.
Rendez-vous Champs-Élysées, Jacques Houssin, 1937: 189; 37.
Revak, o Rebelde (Revak -lo sehiavo di Cartagine, Rudolph Maté, 1959): 183.
Rio Bravo (Rio Bravo, Howard Hawks, 1959): 97.
Ritmo Louco (Swing Time, George Stevens, 1936): 173.
Roma, Cidade Aberta (Roma, città aperta, Roberto Rossellini, 1945): 197-199; 198.
Ronde (La), Max Ophuls, 1950: 40.
Rosa Púrpura do Cairo (A) (1he Purple Rose o/Cairo, Woody Allen, 1985): 9, 173.
S
Saga o/ Anatahan (1he), Josef von Sternberg, 1953: 149.
Saló ou os 120 Dias de Sodoma (SaIO o le 120 giornate di Sodoma, Pier Paolo Pasolini,
1975): 13.
Schpountz (Le Sehpountz, Marcel Pagnol, 1938): 157-158; 68.
Sede do Mal (A) (Toueh o/ Evil, Orson Welles, 1958): 78-79, 86; 55, 59.
Sem Consciência (1he Enforeer, Bretaigne Windust e Raoul Walsh, 1951): 182; 55.
Sexto Homem (O) (Baeklash, John Sturges, 1955): 165.
Sinal do Pagão (O) (Sign o/ the Pagan, Douglas Sirk, 1954): 183.
Soldado das Sombras (O) (Le Petit Soldat, Jean-Luc Godard, 1960): 119.
Sole sorge ancora (ll), Aldo Vergano, 1945: 199.
Sob os Telhados de Paris (Sous les toits de Paris, René Clair, 1930): 154.
Souvenirs d'en Franee, André Téchiné, 1974: 81; 53.
Suspeita (Suspicion, Alfred Hitchcock, 1941): 136; 24, 55, 59.
T
Teorema, Pier Paolo Pasolini, 1968: 13.
Ter e Não Ter (To Have and Have Not, Howard Hawks, 1945): 97; 20.
Territoire des autres (Le), Gérard Vienne e François Bel, 1971: 153.
Testamento do Doutor Mabuse (O) (Das Testament des Dr. Mabuse, Fritz Lang, 1933):
159-160; 18,20.
39 Degraus (Os) (1he 39 Steps, Alfred Hitchcock, 1935): 103-104; 13.
Turbilhão (Whirlpool, Otto Preminger, 1949): 182.
U
Último dos Homens (O) (Der letzte Mann, Friedrich W Murnau, 1924): 57; 45.
Último Comb?io de Gun Hill (O) (Last Train from Gun Hill, John Sturges, 1959):202; 53.
Uma Mulher E Uma Mulher (Une Femme est une /emme, Jean-Lue Godard, 1962): 193; 70.
Un pilota ritorna, Roberto Rossellini, 1942: 199.
V
Vale Era Verde (O) (How Green Was My Valley, John Ford, 1941): 107-108.
Vampyr, Carl Th. Dreyer, 1932: 41, 130; 9, 41, 46.
Viagem a Itália (Vt'aggio in Italia, Roberto Rossellini, 1953): 184-185.
Vidas Tenebrosas (Underworld, Josef von Sternberg, 1927): 97.
Vinhas da Ira (As) (1he Grapes o/Wrath, John Ford, 1940): 92; 7.
Violência e Paixão (Gruppo di Jamiglia in un interno, Luchino Visconti, 1975): 86; 34.
Volpone, Maurice Tourneur, 1940: 36.
y
}éux sans Vt'sage(Les), Georges Franju, 1960: 36.
Z
Zero em Comportamento (Zéro de eonduite, Jean Vigo, 1933): 20-22.

212
Índice

Introdução 7

CAPfTULO 1 .
Para uma definição da análise dlo filme
1. A ANÁLISE E OUTROS DISCURSOS SOBRE O FILME •.••.••.•••••..••.•• 11
1.1. Os dive~sos tipos de discurso sobre o filme 11
1.2. Análise e crítica '. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
1.3. Análise e teoria, análise e singularidade do filme. ........................ 14
1.4. Análise .e interpretação :. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

2. DIVERSIDADE DASABORDAGENS ANALíTICAS:


ALGUNS MARCOS HISTÓRICOS •••.•••••..•• ,......................... 16
2.1. Um cineasta perscrura a sua obra para melhor a defender: Eisenstein . . . . . . . . . . . . 17
2.2. As análises de filmes no quadro da animação cultural:
As fichas cinematográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
2.2.1. Zero em Comportamento (Jean Vigo, 1933),
"filmografado" por Jean-Patrick Lebel .... ,......................... 23
2.2.2. O olhar de André Bazin sobre Foi Uma Mulher que o Perdeu
(Marcel Carné, 1939) 25
2.3. A política dos autores e a análise interpretativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 27
2.4. A pausa na imagem 29
3. CONCLUSÁO: PARA UMA DEFINIÇÃO DAANÁUSE DO FILME. • • • . . . • • • . 30

CAPfTUL02
Instrumentos e técnicas da anáUse
1. FILME E METAFILME: NÃO-IMEDIAÇÃO DO TEXTO FíLMICO .•..•.•••• 33
1.1. O filme e a sua transcrição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
1.2. Os instrumentos da análise fílmica ............................. 34
2. INSTRUMENTOS DE DESCRIÇÃO ••.•••••.•••.•.•••.•••..•••..••••..•• 35
2.1. A decomposição plano a plano. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
2.2. A segmentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 40
2.3. A descrição de imagens do filme 47
2.4. Quadros, gráficos, esquemas ................................... 49
3. INSTRUMENTOS CITACIONAIS .••.••••.••••••.••..•••••.••••.•••••.•• 54
3.1. O excerto de filme 54
3.2. O fotograma 54
3.3. Outros meios de citação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
4. INSTRUMENTOS DOCUMENTAIS. • • • . • • • • • • • • • • . • • • • • • • • . . • • • • . • • • • • • 58
4.1. Elementos anteriores à difusão do filme. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
4.2. Elementos posteriores à difusão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

213
A ANÁLISE DO FILME

CAPfTUL03
A análise textual: um modelo controverso
I.ANÁLISETEXTUALEESTRUTURALISMO .••••..••.••..••.••...•••••.. 61
1.1. Alguns conceitos elementares. ......................................... 61
1.2. A análise estrutural 62
2. O FILME COMO TEXTO ......•.••.••..••.•.••..•...•.•••.•••..•••••.. 64
2.1. As manifestações da noção de texto.: ,. . . 64
2.2. A análise textual de filmes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
3. AS ANÁLISES FíLMICAS EXPLICITAMENTE DE CÓDIGO. . • . . . . . . • • . • • • • 67
3.1. O alcance prático da noção de código 67
3.2. Análise fílmica, análise de códigos 68

4. ANÁLISE TERMINADA, ANÁLISE INTERMINÁVEL. • . • • . • • • . . • • . . . . . • • . . 72


4.1. A utopia da análise exaustiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72
4.2. Análise de fragmento, análise de filme 72
4.3. Análise de inícios de filmes, início de análises . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
4.4. Dimensão do objecto, dimensão da análise .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . 78
5. SORTE CRíTICA DA ANÁLISE TEXTUAL •.....••.•..•..••.••....•..••.• 80

CAPfTUL04
A análise do filme como narrativa
1. ANÁLISE TEMÁTICA, ANÁLISE DE CONTEÚDOS •••••. . •••••••. . . . . . ••• 83
1.1. "Temas" e "conteúdos" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
1.2. A análise temática 85
2. ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA E ANÁLISE DE FILMES ....••..• 86
2.1. Propp e a análise do conto maravilhoso. . . . . . . . . . . ....................... 86
2.2. Aperfeiçoamentos da análise estrutural das narrativas. ...................... 88
2.2.1. As funções segundo Banhes 89
2.2.2. A acção segundo Banhes 90
2.2.3. A narração segundo Banhes '.' . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 90
2.3. Greimas e a análise semântica das narrativas . . . . . . . ....................... 91
3. A ANÁLISE DA NARRATIVA COMO PRODUçAo:
A PROBLEMÁTICA DA ENUNCIAÇAo .•••.•.••.•.•.••.•....•..••..••••• 95
3.1. A problemática da enunciação .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
3.2. Gérard Genette: narrativa e narração: a focalização 96
3.3. Ponto de vista das personagens, ponto de vista do narrador 99
3.4. A questão da "voz" narrativa 101

CAPfTULO 5
A análise da imagem e do som
1. o CINEMAEAPINTURA •.......••.•..••.••.••..••.••.••••••......... 106
1.1. A análise pictórica: alguns exemplos 107
1.1.1. Os salões de Diderot 107
1.1.2. A percepção visual segundo Rudolph Arnheim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 107
1.1.3. Pesca Nocturna em Antibes (Picasso, 1939)
analisado por Rudolph Arnheim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 108
1.2. Fausto, de Murnau, analisado por Eric Rohmer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 109

214
fNDICE

2.AANÁLISEDAIMAGEMFÍLMICA 111
2.1. O enquadramento e o ponto de vista:
Tchelovek s Kinoapparatom [O Homem da Câmara de Filmar] 111
2.2. A análise da imagem e a montagem, a relação campo/fora-de-campo . . . . . . . . . .. 116
2.2.1. A montagem em Outubro, de Eisenstein . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 116
2.2.2. A montagem e o fora-de-campo em La Chinoise, de Jean-Luc Godard . . . .. 119
2.3. O espaço narrativo: A Regra do Jogo, de Jean Renoir ..... . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 121
2.4. Plástica e retórica da imagem: a máscara e a íris
em Nosferatu, eine Symphonie des Grauens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 125
2.5. A imagem e a figura: Aurora, de F. W. Murnau . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 130
3. A ANÁLISE DA BANDA DE SOM 132
3.1. O exemplo da música , 132
3.2. A análise do som fílmico: a noção de banda sonora e os seus limites. . . . . . . . . . .. 133
3.3. A análise da música fílmica ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 135
3.4. A análise dos ruídos, dos ambientes e dos diálogos 137
3.5. A análise da fala e da voz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 139
3.5.1. A análise dos diálogos de filmes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 140
3.5.2. A análise da voz nos filmes 142

CAP[TUL06
Psicanálise e análise do filme
1. PORQUÊAPSIcANÁLIsm 145
2. ALGUMAS AMBIGUIDADES DA RELAÇÁO COM A PSICANÁLISE. . . . . . . .. 147
3. PSICANÁLISE E TEXTUALIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 149
3.1. O Édipo, a castração, o "bloqueio simbólico" 150
3.2. As identificações secundárias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 153
3.3. Psicanálise e narratologia: narrador, personagem, espectador 154
3.4. O espectador no texto: a "sutura" 156
3.5. As análises feministas nos E.U.A. 158

CAP[TUL07
Análise de filmes e história do cinema:
verificação de uma análise
1. ANÁLISE DE ESTRUTURAS IMANENTES OU
ANÁLISEDEFENÓMENOSHlSTÓRICOS 161
1.1. Análise de filmes e intertextualidade 161
1.1.1. OAcossado, a autenticidade e a referência. . .. 162
1.1.2. O Desprezo, monumento funerário do cinema clássico 163
1.2. A análise de corpus alargados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 166
1.2.1. A investigação das origens (o cinema dos primeiros tempos) . . . . . . . . . . . .. 166
1.2.2. O cinema hollywoodiano (D. Bordwell, J. Staiger, K. Thompson) .. 167
1.2.3. "Genérico dos anos 30" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 168
1.2.4. 1895 filmes constituem o western dos anos 20? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 169
1.2.5. Análise de corpus alargados, história e estudo de códigos 170
2. GARANTIAS EVALIDAÇAo DE UMA ANÁLISE ..••••.•••...•••••.•.•••• 171
2.1. Critérios "internos" 171
2.2. Critérios "externos" .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 172
2.3. Análise do filme e história social:
Roma, Cidade Aberta ou Rossellini, testemunha da resistência italiana. . . . . . . . .. 176

215
A ANÁLISE DO FILME

CAP[TUL08
Objectivo da análise: à guisa de conclusão
l.AANÁLISE,ALTEREGODATEORIA 179
1.1. A análise como verificação da teoria '. . . . . . .. 180
1.2. A análise como invenção teórica 180
1.3. A análise como demonstração 180
2. ANÁLISE, ESTILÍSTICA E POÉTICA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 181
3. A ANÁLISE COMO REVELADOR IDEOLÓGICO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 183
4.0PRAZERDAANÁLISE 185
5. A ANÁLISE COMO APRENDIZAGEM ••..••••.•••..•.••.•.••••••.•.....• 189
5.1. Análise oral 189
5.2. Análise de grupo 190
6. ANÁLISE DO FILME, ANÁLISE AUDIOVISUAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 191

Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 193
Índice dos filmes citados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 209

Queremos agradecer, pela sua amistosa colaboração na pesquisa de


documentos fotográficos, a Claude Beylie, fim Damour, Philippe Dubois,
Sylvie Pliskin e Catherine Schapira.
Os nossos agradecimentos também para os editores e revistas que ama-
velmente nos concederam as autorizações para a reprodução das tabelas
e esquemas que figuram no livro.

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216
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J.

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