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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

A EDUCAÇÃO PULSIONAL EM NIETZSCHE

Vagner da Silva

Orientação: Professora Doutora Lídia Maria Rodrigo

Tese de Doutorado apresentada à Comissão de Pós-graduação da


Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas,
como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em
Educação, na área de concentração de História, Filosofia e
Educação.

Campinas
2011

i
© by Vagner da Silva, 2011.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da


Faculdade de Educação/UNICAMP Bibliotecária:
Rosemary Passos – CRB-8ª/5751

Silva, Vagner da.


Si38e A educação pulsional em Nietzsche / Vagner da Silva. – Campinas, SP: [s.n.],
2011.

Orientadora: Lídia Maria Rodrigo


Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Educação. 3. Filosofia alemã. 4.


Vontade (Filosofia). 5. Poder (Filosofia). I. Rodrigo, Lídia Maria. II. Universidade Estadual
de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

11-042 /BFE

Título em inglês: The drive education in Nietzsche


Keywords: Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900; Education; Philosophy German; Will (Philosophy); Power
(Philosophy)
Área de concentração: História, Filosofia e Educação
Titulação: Doutor em Educação
Banca examinadora: Profª. Drª. Lídia Maria Rodrigo (Orientadora) Prof. Dr.
Samuel Mendonça
Prof. Dr. Rodolfo de Freitas Jacarandá Prof. Dr. Sílvio
Donizetti de Oliveira Gallo Prof. Dr. Roberto Akira
Gotto
Data da defesa: 20/04/2011
Programa de Pós-Graduação: Educação
e-mail: vagnerdasilva@hotmail.com

ii
iii
Dedico este trabalho ao meu pai, Daniel Neri da Silva, que
pela brevidade da vida não pôde realizar um curso de
doutorado. E à minha mãe, Quitéria Maria da Silva, que me
deu todo o apoio necessário para que eu viesse a Campinas e
realizasse os cursos de mestrado e doutorado.

v
Agradecimentos

Esta com certeza não é a parte mais fácil deste trabalho, pois há muitas pessoas a quem
gostaria de declarar publicamente meu agradecimento, porém sem saber como fazê-lo. Para
completar, pesa sobre mim a descrição de Sartre sobre seu personagem Birnenschatz, no romance
Sursis: ele achava os agradecimentos obscenos... No entanto, é bastante difícil lembrar-me de
tantas pessoas que de algum modo corroboraram com a realização desta tese e não sentir-me
agradecido. Mas não seria com palavras que se poderia falar de tal gratidão – pelo menos não aos
amigos e aos que tanto me inspiraram e estimularam.
Penso, então, em um agradecimento formal à CAPES, que financiou parte desta pesquisa.
Mas não é possível agradecer a uma instituição, algo totalmente descarnado. Talvez devesse
agradecer aos técnicos e funcionários dessa instituição. Mas para eles minha bolsa de doutorado
foi apenas um número em um anuário de estatística. Além do mais, não posso ser grato a
burocratas sem rostos, que dóceis e inconscientemente movem a máquina, que, em partes, cria os
problemas educacionais que aqui discuto. Eles não são culpados, como Drummond também não o
foi pelo sentimento da vida perdida sendo um deles... Talvez em nós haja também pulsões
burocráticas que agem de modo a emperrar as transformações. Ao menos a Drummond sempre se
poderá agradecer pela Máquina do Mundo.
Poderia, então, agradecer ao corpo técnico da Faculdade de Educação pelos serviços
prestados. Mas como agradecer pelo cumprimento de um dever? Chegamos a tal ponto de
descaso social e institucional que vamos agradecer quem fez apenas o que devia fazer? Mas como
valorar o dever cumprido para além dos limites do dever? Como valorar o desvelo e a atenção,
para além do dever, dos funcionários da secretária de pós-graduação desta faculdade? Como não
ser grato a um funcionário que, para além de seu dever, nos telefona avisando de problemas de
matrícula, de possibilidades de consecução de financiamento e tantos outros acontecimentos que
funcionários meramente cumpridores do dever ignorariam?
Apesar de tudo isso, ouso ainda citar alguns nomes que marcaram minha estada em
Campinas e meu doutorado na Unicamp, bem como meu aprendizado em filosofia e em ser
professor.

vii
Antônio Cláudio Rabello (Tuninho), Oswaldo Giacoia Júnior, Silvio Gallo e Lídia Maria
Rodrigo. Professores com os quais aprendi muito sobre filosofia e sobre ser professor. Com o
Tuninho, o primeiro aprendizado: o gosto pela pesquisa acadêmica, feita de modo rigoroso e
profundo, isso ainda na graduação. Depois, já no mestrado, em aulas como aluno ouvinte, a
doçura e o conhecimento quase proverbiais do professor Oswaldo Giacoia Jr. no trato com seus
alunos, que lotavam as salas de aula do IFCH e nos invernos de greve o teatro de arena na
Unicamp. Destaco o respeito às opiniões diversas no professor Silvio Gallo e, claro, aquele
incrível instrumento pedagógico que ele maneja tão bem – o bom humor. De minha orientadora,
Lídia Maria Rodrigo, destaco a excelência no exercício do magistério, a excelência na leitura e
interpretação dos textos e o respeito pelo ensino de filosofia e à sala de aula, como coisas quase
sagradas.
Quanto aos companheiros de doutorado e grupo de pesquisa, foram muitos, mas alguns
deles extrapolaram os limites da relação puramente acadêmica, tornando-se amigos queridos.
Este é o Fernando Bonadia, amigo e parceiro intelectual de muitas tardes filosóficas. Mas não
poderei, jamais, me esquecer de Roselaine Bolognesi, Daniela Calefo, Fabiana Marques e
Gustavo Boliger pelo companheirismo intelectual e cotidiano.
A vida em Campinas não foi apenas um rendez-vous intelectual. Fora dos muros da
academia tive sempre, ou quase sempre, a companhia do querido amigo Valdir Malanche e o
apoio sereno da Stella Bosso. E claro, como não podia ser diferente, a amizade e ao mesmo
tempo parceria intelectual do quase irmão Rodolfo.
Fora de Campinas, na retaguarda portovelhense, os nomes se multiplicam, mas quero
apenas lembrar de meus irmãos, Agnaldo e Ângela, que sempre apoiaram todas as minhas
escolhas, fazendo com que, no meu caso, a família tenha sido sempre um grupo de pessoas que se
amam e se apoiam.
Encerro essas duas páginas de felizes obscenidades evocando a feliz imagem de duas
pessoas que compõem também minha vida. Minha querida mãe, talvez a maior educadora que
conheci, por sua capacidade de prever minhas necessidades educativas e sempre supri-las. E a
Ana Carolina, presente em minha vida desde os primórdios do doutorado, primeiro como amiga e
companheira de ciclismo e hoje como esposa, cujo amor, tranquilidade e estabilidade tornam tudo,
a cada dia, mais simples.

viii
Muitos instintos e pulsões lutam em mim pela
predominância, nisso eu sou uma cópia de tudo o que
vive e posso me explicar nisso.

Nietzsche

ix
RESUMO

Apesar de Nietzsche ser uma referência fundamental para a filosofia contemporânea, os


estudos sobre seu pensamento na área da educação ainda são poucos. Este trabalho tenta oferecer
mais uma alternativa à interpretação do pensamento dele, analisado a partir da educação vista
mais como um processo de formação e transformação dos indivíduos que são educados do que
como uma realidade escolar cotidiana. Para isso, elaborou-se a tese de que só há educação, aos
moldes nietzscheanos, se aquilo que um ser humano é mais intimamente quando nasce puder ser
transformado de modo definitivo, irreversível e irremediável, ou seja, de modo radical. Para se
justificar tal tese, foram explorados conceitos fundamentais no pensamento de Nietzsche: pulsão,
si, vontade de poder, tipos superiores e inferiores, cultura e civilização, além-do-homem, eterno
retorno do mesmo e amor fati. Foram, ainda, desenvolvidos e apresentados conceitos novos na
análise do pensamento nietzscheano – condição de nascimento, condição de vida e condição de
morte –, que dizem respeito à estruturação pulsional dos seres humanos, determinando o status
tipológico de cada um e suas possibilidades de ascensão e decadência pulsional.

Palavras-chave: Nietzsche. Educação. Pulsões. Condição de nascimento. Condição de Vida.


Condição de morte.

ABSTRACT
Although Nietzsche is a fundamental reference for contemporary philosophy, studies of his
thought on education are still few. This work attempts to provide an alternative interpretation of
his thought, analyzed from education seen more like a process of formation and transformation of
individuals who are educated, than as an everyday reality in schools. To that, we elaborated the
thesis that there is only education, in the nietzschean manner, if what a human being is more
deeply when it is born can be transformed in definitive, irreversible and irremediable way, in
other words, in a radical way. To justify such thesis, we explored some fundamental concepts in
Nietzsche's thought: drive, self, will to power, superior and inferior types, culture and civilization,

xi
super-man, eternal return of the same and amor fati. Were also developed and presented new
concepts in the analysis of Nietzschean thought - condition of birth, condition of life and
condition death - which concern the structuring of human drives, determining the typological
status of each one and their possibilities of ascension and decadence drive.

Key words: Nietzsche. Education. Drives. Condition of birth. Condition of life. Condition of
death.

xii
Lista de siglas das obras de Nietzsche

ABM – Além do bem e do mal, prelúdio a uma filosofia do futuro.


AU – Aurora, reflexões sobre os preconceitos morais.
CI – Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com o martelo.
CP – Cinco prefácios para cinco livros não escritos.
CW – O caso Wagner, um problema para músicos.
EH – Ecce Homo: como alguém se torna o que é.
FF – Fragmentos finais.
FP – Fragmentos póstumos.
GC – A gaia ciência.
GM – A genealogia da moral, uma polêmica.
GP – A grande política.
HDH I – Humano, demasiado humano, um livro para espíritos livres I.
HDH II– Humano, demasiado humano, um livro para espíritos livres II.
KSA – Kritische Studienausgabe.
NT – O nascimento da tragédia no espírito da música.
VP – A vontade de poder.
Za – Assim falou Zaratustra, um livro para todos e para ninguém.

xiii
Sumário

Introdução ...................................................................................................................................... 17

I – O desenvolvimento da teoria pulsional de Nietzsche............................................................... 23


1 – A formação do conceito de pulsão ...................................................................................... 25
1.1 – A dinâmica pulsional .................................................................................................... 33
2 – O Eu e o si ........................................................................................................................... 45
2.1 – A crítica ao sujeito ........................................................................................................ 46
2.2 – O corpo ou a grande razão ............................................................................................ 54
2.2.1 – Da consciência ao si .............................................................................................. 57
3 – Vontade de poder e condição de vida .................................................................................. 64
3.1 – Vontade de poder ou o mundo como interpretação das pulsões................................... 64

II – Tipologia nietzscheana: o fluxo entre tipos superiores e inferiores ........................................ 75


1 – A importância da tipologia .................................................................................................. 77
1.1 – Os tipos superiores ....................................................................................................... 85
1.1.1 – O domínio pulsional .............................................................................................. 95
1.2 – Os tipos inferiores ....................................................................................................... 100
2 – Convalescença e decadência tipológica ............................................................................. 106
3 – Problemas conceituais ....................................................................................................... 114
3.1 – Formação, Educação, Civilização e Adestramento .................................................... 117
3.2 – Cultura e Cultivo ........................................................................................................ 120
3.3 – Supressão e Superação ............................................................................................... 123

III – A Educação Possível ........................................................................................................... 131


1 – A educação e a dupla possibilidade de constituição do Eu ............................................... 131
1.1 – A educação e a formulação e reformulação do Eu ..................................................... 133
1.2 – Educação civilizatória................................................................................................. 138
1.2.1 Democracia utilitária e moral ................................................................................. 140
1.2.2 – Os instrumentos da educação civilizatória .......................................................... 153
2 – Experimentação e autoexperimentação humana: o problema da grande política .............. 158
2.1 – Escravidão e grande política ....................................................................................... 160
2.2 – A educação para a cultura superior............................................................................. 165
3 – Tornar-se o que se é e o limite da educação ...................................................................... 176

IV – Do além-do-homem ao eterno retorno ................................................................................ 183


1 – A origem do além-do-homem............................................................................................ 184
1.1 – O além-do-homem nos livros e notas de Nietzsche ................................................... 187
1.1.1 – O além-do-homem em Assim falou Zaratustra: o atingível inatingido ............... 188
1.1.2 – O além-do-homem nas obras posteriores a Assim falou Zaratustra.................... 191
1.2 – A escolha de um além-do-homem .............................................................................. 194
2 – O eterno retorno do mesmo e a constituição do além-do-homem ..................................... 204
2.1. – O status do eterno retorno ......................................................................................... 205

xv
2.2 – O que retorna no eterno retorno? ................................................................................ 213
2.2.1 – Eterno retorno do mesmo ou seletivo? ................................................................ 213
2.2.2 – A constituição pulsional humana perante o eterno retorno ................................. 216
2.3 – Eterno retorno do mesmo: da normatividade à aposta de Nietzsche .......................... 219
2.3.1 – A aposta de Nietzsche ......................................................................................... 224

Conclusão .................................................................................................................................... 227


A última tentação de Zaratustra ............................................................................................... 227
Eterno retorno do mesmo: amor fati versus vontade de poder ................................................ 228
A última tentação de Zaratustra ........................................................................................... 238

Referências bibliográficas e obras consultadas ........................................................................... 241

Índice Remissivo ......................................................................................................................... 253

xvi
Introdução

Desde o ano de 1888, quando a obra de Nietzsche começou a ser conhecida na Europa, o
pensamento do filósofo tem sido odiado ou amado. Independentemente dos reais motivos para
este ódio ou amor, ambos têm sido prejudiciais ao bom entendimento do pensamento do filósofo
alemão. Essa, porém, não é uma peculiaridade de Nietzsche: vários filósofos sofreram esse tipo
de recepção ao longo da história da filosofia, alguns inclusive, com episódios mais trágicos.
No capítulo da detratação do pensamento de Nietzsche, encontra-se, porém, algo peculiar:
aqueles que disseram amá-lo, ou, ao menos, simpatizar com seu pensamento, foram alguns dos
que mais colaboraram para uma má compreensão de sua “filosofia do martelo”.1 Se por um lado
os que se apressaram em odiá-lo atacaram-no com as armas que o próprio filósofo tentara
desacreditar por meio de suas obras (a moral, a ciência, a lógica, o pensamento gramatical etc.),
os seus “seguidores”, por outro, atingiram-no de forma muito mais dura e contundente. De fato,
os maiores inimigos de Nietzsche após sua morte foram seus comensais.
Não é estranho que se aponte dentro da família de Nietzsche o início da mais intensa
campanha de deturpação de sua obra. O filósofo sempre teve uma relação instável e conturbada
com a mãe e a irmã, afirmando mesmo que a mãe constituía sua negação ao eterno retorno.
Porém, é de se estranhar que seu grande amigo e confessor, Peter Gast, que, nos momentos de
doença em que Nietzsche estava incapacitado para escrever, anotava-lhe os ditados, também
tenha dado sua contribuição ao estranhamento do pensamento do filósofo quando corroborou a
publicação da obra A Vontade de Poder, empreitada levada a cabo por Elizabeth Foster-Nietzsche,
irmã com a qual o filósofo havia rompido relações em decorrência de seu casamento com um
antissemita alemão. A referida obra não foi elaborada pelo próprio Nietzsche e a veracidade de
seu conteúdo é ainda hoje contestada.
Do que se poderia acusar Peter Gast: de traição ou incompreensão? Seria o pensamento do
filósofo de Zaratustra tão complexo a ponto de seu maior colaborador não o ter compreendido?
Mas Peter Gast não está sozinho nesse suposto banco dos réus. Heidegger foi sem dúvida um dos

1
A expressão “filosofia do martelo” é comumente usada para fazer referência ao pensamento de Nietzsche. A
relação é baseada no subtítulo de seu livro Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com o martelo.

17
maiores divulgadores do pensamento de Nietzsche e, ao mesmo tempo, um dos maiores
enfraquecedores desse pensamento.
A estratégia de Heidegger foi simples: interpretar Nietzsche colocando-o no ramerrão da
história da filosofia ao lado dos filósofos que mais criticara e dos quais mais tentou se
desvencilhar. Em suas aulas e obras sobre Nietzsche, Heidegger endossou o livro de Elizabeth
Foster-Nietzsche e Peter Gast como a mais importante obra de Nietzsche, aquela na qual melhor
se poderia conhecer seu pensamento, mas não é só. Heidegger criou um Nietzsche bastante
pessoal, mais assemelhado ao próprio Heidegger e suas especulações sobre o ser dos entes do que
ao próprio Nietzsche. Essa estratégia foi mais insidiosa quando Heidegger tentou explicar o que,
segundo ele, Nietzsche tentara explicar, mas não lograra êxito. Então, para preencher as lacunas
que Nietzsche supostamente deixara em branco, Heidegger encheu a boca do filósofo de
Zaratustra com o vocábulo heideggeriano. Assim, Heidegger tornou Nietzsche um metafísico e
colocou-o no banco da história da filosofia sentado entre Kant e Hegel, utilizando-o como degrau
para o seu próprio pensamento.
Até que ponto isso foi uma traição a Nietzsche? O Nietzsche de Heidegger não se
assemelha tanto ao Kant de Nietzsche ou ao Rousseau de Nietzsche? Heidegger não seguiu os
passos do mestre ao fazer com ele o que o próprio mestre havia feito com Schopenhauer e com
Wagner? Nesse caso, Heidegger não seguiu os pensamentos de Nietzsche, mas, sim, sua maneira
de filosofar, reinterpretando os adversários filosóficos e tomando-os a favor de seu próprio
pensamento.
Em defesa de Nietzsche, e contra Heidegger, levantam-se hoje muitos comentadores do
pensamento do primeiro, todos apressados em mostrar como os livros do próprio Nietzsche não
permitem as interpretações de Heidegger, esquecendo-se, todos esses intérpretes, do que o
próprio Nietzsche fez com seus adversários, o que não passou despercebido a Heidegger.
No afã de fazer a defesa do filósofo do martelo, cada um dos seus comentadores desfere
novos golpes contra o pensamento de Nietzsche. Cada um ao seu modo, mas todos no mesmo
caminho, enfraquecem a filosofia do martelo, negando-lhe o que ela tem de mais pujante: a
contradição. Esta talvez seja a maneira mais eficaz de enfraquecer o pensamento de Nietzsche:
mostrá-lo como um filósofo coerente ao extremo, quase um sistemático, enquanto ele próprio
dizia suspeitar ao extremo dos sistemas e dos sistematizadores (NIETZSCHE, AU, p. 318).

18
Não poucos estudiosos do pensamento de Nietzsche na atualidade adotam uma postura de
análise do pensamento do filósofo alemão na qual a contradição, elemento fundamental de seu
pensamento, é afastada. Um exemplo claro disso são as interpretações do eterno retorno que
tomam o conceito como um imperativo ético e ignoram que Nietzsche o formulou de pelo menos
outras duas maneiras contraditórias, até certo ponto excludentes da primeira: o eterno retorno
como tese cosmológica e como princípio metafísico.
Escrever sobre Nietzsche muitas vezes é um exercício de montagem de quebra-cabeça,
juntando peças e testando suas formas de encaixe, porém, muitas peças encaixam de maneiras
diversas em locais diversos, o que torna o trabalho mais excitante, desafiador e, claro, complexo.
Por isso, talvez, o maior esforço desta tese seja justamente analisar o pensamento de Nietzsche
sem, no entanto, abandonar a contradição que o enriquece e o fortalece e analisar os encaixes
desse pensamento, levando em conta sua multiplicidade. É algo que, obviamente, não tornará o
trabalho mais fácil, pelo contrário: em alguns momentos optar-se-á por um dos caminhos, sem,
entretanto, ignorar que há outros que conduzem a conclusões ou possibilidades diferentes e
igualmente válidas.
Outro esforço importante é o de pensar Nietzsche na área da educação. Nesse aspecto,
este trabalho não é pioneiro nem original; outros têm sido levados a cabo nos últimos decênios,
tanto na Unicamp quanto em outras universidades no Brasil e fora dele. Ainda assim, este
trabalho tem a intenção de trazer uma contribuição original ao tentar responder à pergunta: é
possível transformar aquilo que um ser humano é quando nasce? O trabalho perseguirá essa
pergunta e sua resposta afirmativa, embora desde o começo se saiba que uma resposta negativa
também seja possível.
Da resposta nascerá a tese central deste trabalho: só há educação, aos moldes
nietzscheanos, se aquilo que um ser humano é mais intimamente quando nasce puder ser
transformado de modo definitivo, irreversível e irremediável, ou seja, de modo radical.
A educação, nos moldes nietzscheanos, será vista como essa transformação radical.
Contudo, como falar sobre o que o ser humano é mais intimamente sem falar de conceitos
filosóficos descartados por Nietzsche, como o de essência e natureza humana?2

2
Nietzsche usou não poucas vezes, ao longo de sua obra, a expressão “natureza humana”; porém, como se verá, com
o filósofo alemão a expressão ganhou um sentido distinto do que teve com os filósofos modernos.

19
O primeiro capítulo da tese discutirá a teoria pulsional de Nietzsche, mostrando a validade
de tal discussão ao apresentar novos conceitos que permitirão abordar o problema daquilo que um
ser humano é mais intimamente quando nasce sem, todavia, recorrer ao jargão filosófico
tradicional que enredaria Nietzsche na tradição metafísica ou ontológica, como fez Heidegger.
O segundo capítulo trará a discussão em torno do problema de até que ponto é possível
educar um ser humano, ou seja, modificá-lo radicalmente. Neste intento, será fundamental
analisar algumas palavras-conceitos de grande importância no vocabulário filosófico de
Nietzsche, por exemplo, superação (Überwindung), cultura (Kultur) e cultivo (Züchtung). A
análise dessas palavras oferecerá um cordão de Ariadne para uma melhor orientação no labirinto
conceitual de Nietzsche. Afinal, como o próprio filósofo salientou, ele não queria ser lido e
entendido por muitos; então, uma incursão profunda em sua obra e pensamento sem tal fio de
Ariadne seria arriscada.
No terceiro capítulo será analisado o status desta educação nietzscheana, ou seja, até que
ponto ela é realmente possível, dado que o ser humano é um conjunto caótico e irracional de
pulsões conflitantes. Conceitos como sublimação e controle pulsional serão discutidos nesse
capítulo.
O quarto capítulo discutirá até que ponto a figura do além-do-homem (Übermensch)
representa um tipo alcançável e realizável e até que ponto Nietzsche o via como um modelo. Esse
capítulo oferecerá também a possibilidade de analisar o conceito de eterno retorno como par
conceitual de amor fati, fugindo à interpretação metafísica heideggeriana, sem, no entanto, negar
sua possibilidade. Nesse ponto também será apresentada uma proposição original: a vontade de
poder como imperativo ético do homem e o eterno retorno como imperativo ético do além-do-
homem.
O método utilizado neste trabalho será o método comum para trabalhos filosóficos:
análise e discussão bibliográfica tanto de Nietzsche quanto de seus comentadores. No que se
refere à obra de Nietzsche, será dada preferência aos livros e fragmentos não publicados do
chamado segundo período em diante, que tem início com o livro Humano demasiado humano
(1878), por se considerar que a partir desse período há estabilidade conceitual em Nietzsche, ou
seja, daí em diante o filósofo apenas aprimorou seu vocabulário filosófico e desenvolveu novas
ideias, tendo abandonado os ranços metafísicos encontrados nas obras do chamado primeiro

20
período. Isso não impedirá a utilização de obras anteriores ao período de Humano para perceber a
evolução de conceitos e problemas no pensamento nietzscheano.
A base da pesquisa será as obras traduzidas para o português por Paulo César de Souza e
publicadas pela Editora Companhia das Letras, pois têm consagrada qualidade editorial. As
exceções serão o livro Assim falou Zaratustra, um livro para todos e para ninguém e os
fragmentos não publicados; em ambos os casos recorrer-se-á à edição crítica das obras de
Nietzsche em alemão organizadas por Giorgio Colli e Mazzino Montinari (Kritische
Studienausgabe – KSA, in 15 Bänden) e publicada pela Walter de Gruyter & Co. A tradução será
do próprio autor desta tese, que, sempre que possível, comparará a própria tradução com outras
em português, inglês, espanhol e francês – nesses casos haverá nota indicando a origem da
tradução. Os textos originais em alemão serão citados como notas de rodapé, o mesmo vale para
traduções feitas de comentadores de Nietzsche em outras línguas. Qualquer outro texto utilizado
fora desses parâmetros será assinalado.

21
I – O desenvolvimento da teoria pulsional de Nietzsche

Paira sobre a história da origem da psicanálise um ponto obscuro: a influência do


pensamento de Nietzsche sobre Freud. O que se sabe é que Freud teria negado um conhecimento
extenso da obra de Nietzsche, teria mesmo afirmado que suspendeu tais leituras para que os
pensamentos de Nietzsche não influenciassem os seus e teria afirmado sobre este que o
considerava, sem dúvida, o homem com maior conhecimento de si que Freud tinha “conhecido”.3
A relação é mais imbricada do que parece, pois é sabido que Lou Andreas-Salomé, amiga
íntima de Nietzsche durante sua juventude e por quem o filósofo foi apaixonado, também se
tornou amiga da família Freud, em especial da filha do fundador da psicanálise, Anna Freud. A
intimidade de Lou com a psicanálise nascente não foi pequena, pois ela chegou a participar da
Sociedade das Quintas-Feiras,4 tendo proposto a esta a leitura e discussão do livro de Nietzsche A
genealogia da moral, ocasião em que Freud teria feito a declaração anterior sobre Nietzsche.
A despeito da negação de Freud, algumas ideias dos dois pensadores apresentam
convergências, embora outras sejam realmente distintas. Há proximidade com Nietzsche
especialmente em algumas de suas conclusões em Totem e tabu, obra publicada após a proposta
de Lou na Sociedade das Quintas-Feiras, assim como há na maneira pela qual Freud explica a
passagem do totemismo para o monoteísmo. Um ponto do pensamento de Freud considerado
como dos mais originais, sem dúvida, já estava em Nietzsche, tenha Freud se inspirado ou não
nele: a teoria das pulsões.
Em especial na segunda parte do pensamento de Freud (segunda tópica), as pulsões
assumem papel preponderante na explicação dos fenômenos de expansão e destruição da vida e
das sociedades, como também no desenvolvimento e retração da sexualidade e do aparelho
psíquico, por meio do par conceitual Pulsão de vida e Pulsão de morte. Todavia, se em Freud as
pulsões se dividem em dois grupos distintos e antagônicos, no pensamento do filósofo de
Zaratustra o problema é muito mais complexo e bem menos delimitado.

3
Para mais detalhes sobre a relação de Freud e Nietzsche ver: JONES, E. La vie e l’oeuvre de Sigmund Freud. Paris:
Gallimard, 1961, 3 tomos. E: GASSER, Reinhard. Nietzsche und Freud. Berlin; New York: de Gruyter, 1997.
4
Grupo organizado pelo próprio Freud para discussões sobre a psicanálise nascente. O grupo sempre teve um caráter
restrito e apenas os “preferidos” de Freud fizeram parte dele.

23
Se Freud é visto como o criador de um pensamento que toma as pulsões por base da
organização do ser humano, ele com certeza teve em Nietzsche um antecessor, mesmo que não o
tenha sabido, na hipótese de realmente não ter levado adiante suas leituras e estudos sobre
Nietzsche. Na tentativa de compreender o que são as pulsões, Nietzsche enfrentou os mesmos
problemas que Freud posteriormente enfrentaria; em especial, saber o que é a pulsão, ou, já se
ambientando na multiplicidade pulsional de Nietzsche, o que são as pulsões.
Antes de continuar a análise de como Nietzsche construiu sua teoria pulsional, é
necessário esclarecer algumas escolhas metodológicas: comumente, nos trabalhos sobre
Nietzsche, a sua teoria pulsional aparece como um subitem da análise da vontade de poder,
dando-se maior importância a esta do que àquela. Neste trabalho, porém, optou-se por uma
inversão dessa abordagem, ou seja, partir-se-á da teoria pulsional para versar sobre a vontade de
poder. Essa abordagem oferece uma tripla vantagem:
1. Partindo-se das pulsões, tem-se um espectro mais amplo do problema, pois dentro da
teoria pulsional pode-se abordar outros problemas, como a crítica ao sujeito, realizada
pelo filósofo alemão, e também o perspectivismo.
2. Evita-se certo monismo nas interpretações da vontade de poder, nas quais tudo é
vontade de poder e esta acaba por excluir ou diminuir a importância da multiplicidade
no pensamento de Nietzsche.
3. Como consequência do ponto anterior, consegue-se fugir da crítica heideggeriana de
que Nietzsche foi um filósofo metafísico e de que um dos pontos centrais de sua
metafísica seria o monismo da vontade de poder.
Em outro viés, a inversão feita oferece mais uma vantagem: quando se tomam as pulsões
como subitem da vontade de poder, há o risco de se compreender mal a vontade de poder,
pensando-a como uma vontade, o que ela justamente não é, pois a crítica do sujeito permitirá
perceber que não há um sujeito querente ou um sujeito da vontade de poder. Nesse sentido, é
importante analisar um fragmento póstumo de Nietzsche, que parece mostrar a tentativa aqui
proposta como desnecessária ou infundada:

Nosso intelecto, nossa vontade, bem como nossos sentimentos, descendem de nossas
estimativas de valor: estas correspondem às nossas pulsões e suas condições de existência.

24
Nossas pulsões são redutíveis à vontade de poder. A vontade de poder é o último Factum
ao qual podemos descer.5 (NIETZSCHE, KSA XI, 40[61], p. 661. Tradução minha).

O fato de Nietzsche afirmar que a vontade de poder é o último fato ao qual se pode descer,
o elemento final ao qual se pode chegar na análise de qualquer acontecimento que envolva o
humano,6 e que as pulsões são redutíveis a ela, apenas afirma o movimento ou modus operandi
das pulsões: elas agem em direção ao poder. A vontade de poder não é a substância formada
pelas pulsões nem seu substrato, a vontade de poder é a indicação do modo de ser das pulsões.
É claro que tal inversão não é perfeita e não está isenta de problemas; afinal, um dos
objetivos deste trabalho é justamente não fugir da contradição tantas vezes presente no
pensamento de Nietzsche. Como será mostrado adiante, a análise a partir da teoria pulsional
oferece também um grande problema, difícil de ser contornado, que é a conceituação de pulsões e
os diversos termos que Nietzsche utilizou para retratá-las, que às vezes mais confundem do que
esclarecem.

1 – A formação do conceito de pulsão

A citação anterior oferece uma boa mostra genealógica de como se pode proceder na
busca pelo significado de pulsões e sua origem na obra do filósofo alemão: até que ponto se pode
descer? Se em um procedimento genealógico se dissecasse o ser humano, qual seria o limite
dessa dissecação? No pensamento de Nietzsche, o que um ser humano mais intimamente pode, de
fato, é ser reduzido às pulsões. Um ser humano é, em último caso, um conglomerado de forças
em constante combate umas com as outras. Esse combate é o próprio ser das pulsões: as pulsões
só existem enquanto estão em conflito umas com as outras.
Desde o início de sua obra filosófica, em sua juventude, Nietzsche tentou desenvolver
uma filosofia agonística, uma filosofia que tivesse no conflito o seu ponto central e na qual o
conflito também fosse o regulador das relações humanas (política), das criações humanas
(arte/estética) e do próprio ser humano enquanto ser existente (ontologia e metafísica). Essa

5
Unser Intellekt, unser Wille, ebenso unsere Empfindungen sind äbhängig von unseren Werthschätzungen: diese
entsprechen unseren Trieben und deren Existenzbedingungen. Unsere Triebe sind reduzirbar auf den Willen zur
Macht. Der Wille zur Macht ist das letzte Factum, zu dem wir hinunterkommen.
6
A vontade de poder extrapola os limites do humano; em alguns textos não publicados, Nietzsche afirmou que ela é
inerente a tudo aquilo que vive.

25
busca por um princípio agonístico é encontrada já em suas primeiras obras. Em um texto
chamado Cinco prefácios para cinco livros não escritos, elaborado como um mimo à senhora
Cosima Wagner,7 redigido entre 1870 e 1872, quando Nietzsche tinha aproximadamente 28 anos,
lê-se:

No esforço inevitável do trabalho de milhões, o que podemos encontrar, além do impulso


de existir a qualquer preço, o mesmo impulso todo-poderoso pelo qual as plantas
atrofiadas espalham suas raízes sobre a rocha nua?! Dessa assustadora luta pela
existência só podem emergir os homens isolados que imediatamente voltam a se ocupar
da cultura artística por meio de nobres quimeras (...). (NIETZSCHE, CP, p. 39-40. Grifo
meu).

Neste texto já aparecem os elementos que mais tarde comporiam o que aqui é chamado de
teoria pulsional de Nietzsche, em especial o conflito entre forças distintas como mantenedor da
vida. Posteriormente, Nietzsche se afastaria da ideia de uma luta pela existência, desenvolvendo
seu pensamento em uma direção distinta do darwinismo: o que é vivo não luta para se manter,
mas para crescer. O assunto será tratado mais adiante.
A ideia de Nietzsche de encontrar um princípio agonístico que sustentasse seu
pensamento é tão intensa que antes mesmo de formular o par conceitual antagônico, porém
complementar, Apolo/Dionísio, o filósofo já analisava a Grécia Antiga a partir das tensões
internas, atribuía à boa e à má Éris (deusa da inveja) o desenvolvimento da Grécia e sentenciava
que a vida grega sem a disputa e a tensão sempre descambava em barbárie e violência, como se lê
em outra parte do texto acima citado:

Em contrapartida, removamos da vida grega a disputa, e então vemos de imediato aquele


abismo pré-homérico de uma cruel selvageria do ódio e do desejo de aniquilamento. Esse
fenômeno, infelizmente, se mostrava com freqüência, quando uma grande personalidade
era repentinamente afastada da disputa, através de um ato de brilho imenso, e posicionada
hors de concours, segundo o seu julgamento e de seus concidadãos. O efeito é, quase sem
exceção, aterrorizante; e quando se conclui, a partir de tal efeito, que o grego era incapaz
de suportar a fama e a felicidade; nesse caso se deveria dizer, de modo mais preciso, que

7
Há uma rica e profunda história na relação de Nietzsche com a família Wagner. O músico alemão não foi apenas
um grande inspirador, mas uma espécie de ponte para que Nietzsche pudesse sair da sua visão metafísica da arte, que
marcou sua juventude e as obras desse período, para uma visão mais amadurecida. Também as relações com a
senhora Wagner foram importantes para Nietzsche, que, em cartas futuras, declararia ter sido ela uma das pessoas
mais interessantes e inteligentes que havia conhecido. Quanto à ruptura dessa intensa amizade, muito se especula. O
próprio Nietzsche escreveu sobre o problema (O caso Wagner, um problema para músicos), mas outros elementos,
além das discordâncias estéticas e musicais, contribuíram para a ruptura. Um deles foi o antissemitismo da família
Wagner.

26
ele não podia carregar a fama sem a continuação da disputa, nem a felicidade no final da
disputa. (Idem, p.74-5).

Essa busca por uma fundamentação agonística de sua filosofia desembocou, em sua
juventude, na formação do par conceitual Apolo/Dionísio, que serviria não apenas como
categoria de análise aplicável à arte e ao mundo estético, mas também como chave de
compreensão de tudo o que existe, em especial da existência humana. A constante luta e tensão
entre Apolo e Dionísio não apenas constrói a obra de arte, mas funda a existência humana como
obra de arte. Porém, essa não é uma ideia de grande duração no pensamento de Nietzsche, pelo
menos não na forma que foi posta inicialmente.
No tempo de redação das Considerações extemporâneas, Nietzsche já suspeitava de que
sua metafísica de artista, calcada na dualidade Apolíneo e Dionisíaco, não lhe renderia nada, a
não ser mais um pensamento de fundo maniqueísta. Na quarta Consideração extemporânea, que
tem por subtítulo Richard Wagner em Bayreuth encontram-se os indícios de que Nietzsche se
afastava progressivamente dessa visão de mundo, o que também, inevitavelmente, contribuiu
para a ruptura com a família Wagner.
Nietzsche admitiu que o livro O nascimento da tragédia era uma incógnita em sua obra. O
que ele significou realmente? No prefácio que o filósofo escreveu tardiamente a essa obra,8 ele
afirmou que se trata de um combate ao pensamento moral, uma contravaloração, buscada na
Grécia, em oposição ao cristianismo; uma maneira de dizer sim à vida, em meio ao constante
rancor da vida pregado pela moral.

Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro problemático, o meu instinto,
como um instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma
contradoutrina e uma contra-valoração da vida, puramente artística, anticristã. Como
denominá-la? Na qualidade de filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem
alguma liberdade – pois quem conheceria o verdadeiro nome do Anticristo? – com o nome
de um deus grego: eu a chamei dionisíaca. (NIETZSCHE, NT, p. 20).

Ainda sobre esse livro, em sua autobiografia Nietzsche tornou a afirmar:

Para ser justo com O nascimento da tragédia (1872), será preciso esquecer algumas coisas.
Ele influiu, e mesmo fascinou, pelo que nele era erro – por sua aplicação ao wagnerismo,
como se esse fosse um sintoma de ascensão (...). Em todas as passagens de relevância

8
O livro é de 1872 e o prefácio é de 1886, ano de publicação de Além do bem e do mal, ou seja, é o período de maior
maturidade do pensamento nietzscheano.

27
psicológica é de mim somente que se trata – pode-se tranquilamente colocar meu nome ou
“Zaratustra” onde no texto há o nome de Wagner. (NIETZSCHE, EH, p. 61 e 65).

Contudo, se Nietzsche decididamente abandonou o par conceitual, voltando a tocar nele


apenas esporadicamente em suas obras tardias, como em O crepúsculo dos ídolos, a ideia de
desenvolver uma filosofia agonística persistiu e ganhou corpo no segundo livro de Humano,
demasiado humano.9 Mas foi a partir de Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais que
Nietzsche constatou que as valorações e crenças morais não derivam de fontes metafísicas ou
extra-humanas, pelo contrário, elas são bastante humanas. Diria Nietzsche: “demasiado humanas”,
pois nascem de algo em nós, uma força não deliberada, uma força irracional e que opta pela vida
em face de qualquer circunstância, mesmo do rebaixamento da vida. Mas como nomear tal
descoberta?
O léxico com o qual Nietzsche nomeou esse conjunto de forças é bastante variado, em
especial no período anterior a Além do bem e do mal. Algumas das palavras mais utilizadas são:
pulsão (Trieb), instinto (Instinkt), afeto (Affekt) e paixão (Leidenschaft). Embora o uso
indiferenciado de termos tão distintos tenha causado problemas de interpretação, em especial o
uso da palavra instinto, como será mostrado adiante, seria difícil e até infrutífero tentar
diferenciá-los no modo como o filósofo os utilizou. Em apenas um caso essas palavras possuem
ressonância em alemão. É o caso da palavra Instinkt, cuja definição no dicionário Duden da
língua alemã é:

Instinkt, der: 1. natürlicher Antrieb zu bestimmten Verhaltensweisen. 2. richtiges,


untrügliches Gefühl. (1. impulso natural para certos comportamentos. 2. direito, correto,
sentimento inconfundível). (DROSDOWSKI, 1988. Grifo meu).

Também o dicionário de sinônimos da editora alemã Directmedia (Berlin, 2003) apresenta


a palavra Trieb como sinônima da palavra Instinkt. A relação contrária também se verifica, sendo
Trieb apresentado como sinônimo de Instinkt. Quanto às palavras afeto (Affekt) e paixão
(Leidesnchaft), elas não possuem relação uma com a outra nem com as demais palavras utilizadas
por Nietzsche. Todavia, se se analisam as principais definições de todas elas, descobre-se um
elemento comum que pode servir de pista para melhor compreender a utilização dessas palavras
pelo filósofo.

9
Essa obra é dividida em dois livros: o primeiro traz como subtítulo Um livro para espíritos livres e o segundo é
subdividido em duas outras partes, I – Máximas e opiniões variadas e II – O andarilho e sua sombra.

28
Trieb, der: 1. starker [natürlicher] Drang zu bestimmten Handlungen. (Pulsão: 1. forte
[natural] desejo de certos atos).

Instinkt, der: 1. natürlicher Antrieb zu bestimmten Verhaltensweisen. (Instinto: 1. impulso


natural para certos comportamentos).

Affekt, der: heftige Erregung: Affekte auslösen, hervorrufen (Afeto: agitação violenta:
desencadear, causar emoções).

Leidenschaft, die: heftiges Verlangen; starke Gefühlserregung. (Paixão: desejo ou


solicitação forte; forte sentimento de emoção).
(As quatro citações: DROSDOWSKI, 1988. Tradução minha).

Nos quatro casos há acontecimentos volitivos que indicam um forte arrastamento ou


inclinação não racional em direção a alguma coisa, como se uma pessoa “tomada” por um desses
“sentimentos” ou “sensações” não pudesse reagir racionalmente, podendo apenas obedecer a essa
ordem não racional e aceder aos seus caprichos. Usou-se a palavra “volitivos”. Entretanto, ela
também não dá conta, no pensamento nietzscheano, da amplitude do problema: as pulsões não
são atos volitivos; pelo contrário, os atos volitivos são consequências das relações pulsionais no
interior de um indivíduo.
Analisando os textos de Nietzsche, percebe-se que esses termos são facilmente
cambiáveis, como no caso a seguir:

Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de autoconservação


(Selbsterhaltungstrieb) como o impulso (Trieb) cardinal de um ser orgânico. Uma criatura
viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder –: a
autoconservação é apenas uma das indiretas, mais freqüentes conseqüências disso. – em
suma: nisso, como em tudo, cuidado com os princípios teleológicos supérfluos! – um dos
quais é o impulso de autoconservação (Selbsterhaltungstrieb) (nós o devemos à
inconseqüência de Spinoza). Assim pede o método, que deve ser essencialmente economia
de princípios. (NIETZSCHE, ABM, p. 13. Grifos meus).

É bastante claro que nas partes destacadas do texto poder-se-ia substituir pulsão (Trieb)
por instinto (Instinkt) ou correlatos e não haveria perda de sentido, tendo-se então: “instinto de
autoconservação” em vez de “impulso de autoconservação”. Nesse caso, o impulso é mostrado
como uma força primitiva, anterior à conservação, base da vontade de poder. Lê-se na mesma
obra:

29
(...) na época moral da humanidade, sacrificava-se ao deus os instintos (Instinkte) mais
fortes que se possuía, a própria “natureza”: é esta alegria festiva que reluz no olhar cruel
do asceta, do entusiasta “antinatural”. (Idem, p. 58).

Nesse caso, substituindo a palavra “instintos” por “pulsões” tem-se a mesma compreensão
do trecho citado, ou seja, que na época moral da humanidade sacrificava-se o que havia de mais
forte e não racional no homem, o que nele era natural. As outras duas palavras, paixão
(Leidenschaft) e afeto (Affekt), têm incidência bem menor na obra de Nietzsche como
significação das pulsões. Mesmo assim, é possível ler abaixo um exemplo claro em que a palavra
paixão poderia ser substituída por instinto, sem perdas:

A desrazão ou razão oblíqua da paixão (Leidenschaft) é aquilo que o vulgar despreza no


nobre, mais ainda quando esta se volta para objetos cujo valor lhe parece fantástico e
arbitrário. Ele se aborrece com quem sucumbe à paixão (Leidenschaft) do estômago, mas
entende a atração que há por trás dessa tirania; não entende, porém, como se pode colocar
em jogo a saúde e a honra pela paixão (Leidenschaft) do conhecimento, por exemplo.
(NIETZSCHE, GC, p. 56. Grifo meu).

No trecho que antecede essa citação, Nietzsche explica como é difícil para o homem
vulgar, não nobre, compreender alguns rompantes dos senhores, por exemplo, ao cometer uma
loucura quando deu sua palavra, ao invés de quebrar a palavra. Nietzsche, então, afirma que os
servos são mais astutos e inteligentes, justamente porque não se deixam arrastar por essas forças,
e continua com a citação. Nela pode-se perfeitamente substituir a palavra paixão pela palavra
instinto, resultando em: “a desrazão ou razão oblíqua do instinto é aquilo que o vulgar despreza
no nobre”. A paixão nesse caso não é um ato de volição de um ser dotado de vontade e
consciente de suas escolhas, pelo contrário, é um arrastamento ao qual “o intelecto tem de
silenciar ou servir” (Idem). A paixão não é um sentimento, mas, sim, uma pulsão, que tem a
mesma característica não racional e não volitiva, anterior a tudo isso.
Na seção de número 109 de Aurora há uma perfeita correlação entre afeto e pulsão;
Nietzsche utiliza-os como sinônimos. É uma seção mais longa que o comum para o período e a
obra e tem o intrigante título Autodomínio e moderação, e seu motivo último. Nietzsche oferece
seis métodos para o controle das pulsões e explica o funcionamento de cada um. O quarto método
constitui-se em um estratagema intelectual: associa-se ao impulso que se quer combater uma
imagem dolorosa e penosa, e, com o tempo, a sensação de prazer ou a manifestação desse

30
impulso trará para a mente, automaticamente, a imagem dolorosa e sua correlata sensação; então,
o filósofo afirma:

Isso também ocorre quando o orgulho de um homem se rebela, como lorde Byron e
Napoleão, por exemplo, e se sente como uma afronta o predomínio de um determinado
afeto (Affectes) sobre a atitude geral e a ordem da razão; daí surge o hábito e a vontade de
tiranizar o impulso (Trieb) e fazê-lo como que gemer. (NIETZSCHE, AU, p. 80. Grifo
meu).

Esse é, sem dúvida, o mais claro dos exemplos, pois nele Nietzsche tomou ambas as
palavras (afeto e pulsão) como sinônimas. Porém, o trecho citado traz outro problema: se as
pulsões são algo irrefletido, irracional e constituinte do humano, como é possível controlá-las?
Ou seja, o que age sobre elas de modo a poder controlá-las? Esse problema será discutido
posteriormente, neste mesmo capítulo; de imediato, pode-se adiantar que, se para Nietzsche o Eu
não faz parte da condição original humana, nada impede que ele seja criado.
Apesar de, na obra de Nietzsche, essas palavras muitas vezes serem usadas como
sinônimos, em muitas outras elas têm um sentido totalmente distinto, em especial paixão e afeto,
as quais o filósofo também utilizou com um sentido bastante comum, sem dar a elas a mesma
carga semântica que atribui à palavra pulsão. Mesmo a palavra pulsão às vezes é utilizada,
principalmente nas obras iniciais, em um sentido distinto do que se viu na citação anterior. Em
vez de usá-la como a força irracional que constitui mais intimamente o humano, Nietzsche
utiliza-a como um sinônimo de vontade, um elemento associado ao processo de realização de
algo que surge com a volição e que se materializa por meio da vontade.
É certo que Nietzsche se preocupou pouco em clarificar seus conceitos; talvez apenas dois
ou três deles tenham sentido inconfundível e invariável, como os conceitos de eterno retorno,
amor fati e vontade de poder. Talvez o pensador, antecipando-se a Wittgenstein, tenha intuído
que o sentido das palavras é definido pelos jogos linguísticos nos quais elas se encontram. E os
conceitos são, em última instância, palavras. Todavia, não se pode descuidar de dois outros
pontos que fazem parte de certa malícia do pensar e escrever nietzscheano: o medo e a
consequente fuga de uma filosofia sistemática, que Nietzsche declarou publicamente quando
escreveu:

Eu suspeito de todos os sistemas e sistematizadores, e vou para fora do seu caminho:


talvez se descubra ainda por trás deste livro de qual sistema estou a desviar... A vontade de

31
sistema: para um filósofo, expresso moralmente, uma fina depravação, um caráter doentio,
expresso imoralmente, a sua vontade de parecer estúpido – mais estúpido do que é, ou seja,
mais forte, mais simples, regulador, ignorante, mandão, tirânico...10 (NIETZSCHE, KSA
XII, 9[188], p. 450. Tradução minha).

Sabe-se que o filósofo fugiu o quanto pôde de uma estrutura sistemática para seu
pensamento, motivo pelo qual tantas vezes Nietzsche soa contraditório. Esse foi o preço que teve
de pagar pela fuga dos sistemas: palavras que significam conceitos, como as que estão em análise,
muitas vezes foram usadas de forma vulgar, não conceitual. Todavia, para Nietzsche, esse foi um
baixo preço a pagar para manter sua filosofia original e fugir às armadilhas do sistema, em
especial à ancoragem do pensamento pela lógica, que faz com que sempre que um conceito seja
escrito tenha de se pensar em toda sua história e correlatos conceituais. Fugindo ao sistema,
Nietzsche conseguiu maior fluidez no pensar, única maneira efetiva de levar a cabo sua
empreitada filosófica. E também é possível afirmar que isso faz parte de uma estratégia, que
constitui o segundo ponto anteriormente indicado da malícia do pensar e escrever nietzscheano:
fugir aos leitores vulgares.
Nietzsche declarou em algumas passagens de seus livros que queria leitores seletos,
leitores que tivessem parentesco com as vacas na arte de ruminar. A boa leitura requer ruminação,
segundo o filósofo-filólogo; por isso, Nietzsche muitas vezes declarou que não queria ser lido por
muitos e confundido com muitos – e que por essa razão criava armadilhas intelectuais dentro de
suas obras, para desviar delas os preguiçosos e os de má vontade. Talvez por isso pensamentos
fundamentais para a filosofia de Nietzsche são encontrados em meio a discussões sobre
alimentação e dieta.
Todos esses problemas, de fato, não facilitam a compreensão do conceito de pulsões e o
desenvolvimento da teoria pulsional de Nietzsche, porém, sem dúvida, a tornam mais rica e sua
pesquisa mais intrigante. Serão analisadas a seguir algumas ideias propostas por comentadores de
Nietzsche sobre o que são as pulsões e como se dá seu funcionamento. A “discussão” com esses
pesquisadores da obra nietzscheana será importante para a análise das interpretações recorrentes e
visualização do atual ponto em que se encontra o debate em torno da teoria das pulsões em

10
Ich mißtraue allen Systemen und Systematikern und gehe ihnen aus dem Weg: vielleicht entdeckt man noch hinter
diesem Buche das System, dem ich ausgewichen bin… Der Wille zum System: bei einem Philosophen moralisch
ausgedrückt eine feinere Verdorbenheit, eine Charakter-Krankheit, unmoralisch ausgedrückt, sein Wille, sich
dümmer zu stellen als man ist — Dümmer, das heißt: stärker, einfacher, gebietender, ungebildeter, commandirender,
tyrannischer.

32
Nietzsche. Essa discussão também nos possibilitará fugir a algumas ideias incoerentes e que
resultam dos “caminhos mais fáceis” na interpretação do pensamento do filósofo de Zaratustra.

1.1 – A dinâmica pulsional

No caminho para compreender a teoria pulsional de Nietzsche, há três pontos que não
podem ser ignorados, sob pena de uma má compreensão dessa teoria. Estes pontos são:

a. Tomar as pulsões como substâncias, ou seja, atribuir a elas uma existência fática,
metafísica, ideal ou ontológica;
b. Dividir ou classificar as pulsões – supor, por exemplo, que há pulsões do desejo, ou
pulsões do prazer etc., como fez Freud, subdividindo as pulsões em pulsão de vida e
pulsão de morte;
c. Tomar as pulsões como instintos no sentido tradicional da palavra, ou seja, como
programações biológico-genéticas que determinam o comportamento humano ou animal.

Cada uma dessas interpretações das pulsões traz um inconveniente; as duas primeiras
serão analisadas agora e, mais adiante, a terceira, por ser um ponto que desperta muitas dúvidas e
discussões nas pesquisas sobre Nietzsche.
Uma das maiores dificuldades em analisar o conceito de pulsões e a constituição da teoria
pulsional de Nietzsche é fugir a uma interpretação substancialista, como a de Freud, em que o
conceito de pulsão inicialmente aparece ligado à energia neural (primeira tópica) e depois se
volatiza na dualidade pulsão de vida/pulsão de morte, vistas e pensadas como energias (segunda
tópica). Contudo, mesmo afastando os conceitos de uma interpretação ingênua e fisiológica, eles
permanecem substancialistas, pois Freud via o que chama de corpo psicanalítico como um corpo
distinto do biológico, que lhe é correlato, embora anterior (conf. MEZAN, 2006). Não raro
encontram-se ideias semelhantes nas interpretações do pensamento de Nietzsche.
Tais interpretações, na tentativa de fugir de outro problema bastante real, uma
interpretação metafísica das pulsões, acabam por tomá-las como algo substancial e entrelaçam-se
na rede de que tentavam fugir. Scarlett Marton afirma, a respeito das pulsões, que:

33
Na ótica nietzscheana, o corpo humano ou, para sermos precisos, o que se considera
enquanto tal, seria formado por numerosos seres vivos microscópios que lutam entre si,
uns vencendo e outros definhando – e assim se manteria durante certo tempo (...).
Consistindo numa pluralidade de adversários, tanto ao nível das células, quanto dos
tecidos ou órgãos, o corpo humano é animado por combate permanente. Até o número dos
seres vivos que o constituem muda sem cessar, dado o desaparecimento e a produção de
novas células. No limite, a todo instante qualquer elemento pode vir a predominar ou a
perecer. (MARTON, 2001, p. 171. Grifo meu).

Em um primeiro momento, a análise parece realmente acertada e em consonância com o


pensamento de Nietzsche sobre as pulsões, em especial a ideia do conflito entre estes “seres vivos
microscópios”; todavia, analisando mais detidamente a citação, percebe-se dois problemas: o
primeiro consiste na relação das pulsões com as células e em classificá-las (as pulsões) como
“seres vivos microscópicos”. Se as pulsões fossem as células, ou algo que existe nelas, ou em
função delas, não haveria por que Nietzsche tê-las chamado de pulsões ou significá-las com
outros vocábulos (instinto, paixão, afeto), afinal, a biologia em sua época já havia fornecido uma
boa ideia do que são as células e Nietzsche tinha conhecimento da literatura científica de então. O
outro problema é que, se as pulsões tivessem relação com as células, seria difícil justificar o
conflito pulsional. Afinal, os modelos biológicos de hoje e também da época de Nietzsche
admitem exatamente o contrário de um combate: uma colaboração harmoniosa e pacífica entre
células, tecidos e órgãos, ideia criticada por Nietzsche, que viu aí uma intromissão teleológica: o
corpo não tem essa organização para atingir um fim específico, a saber, a manutenção, mas essa
organização, aparentemente harmônica e cordata, é fruto do equilíbrio pulsional, ou seja, as
pulsões “constituem” 11 e regem o corpo. É certo que em um fragmento póstumo isolado,
Nietzsche nomeou as pulsões como estes seres microscópicos:

Na orientação do corpo, nós reconhecemos uma pessoa como uma multidão parcial de
seres animados que lutam uns com os outros e consecutivamente subordinam uns aos
outros, na afirmação de sua individualidade, mesmo que involuntariamente afirmam todo
o conjunto. Nestes seres vivos, há aqueles que são mais dominantes do que obedientes, e
entre eles [os que são dominantes – VS] existem batalha e vitória. A totalidade do ser
humano tem todas as propriedades dos seres orgânicos, nós por vezes permanecemos
conscientes por meio de pulsões inconscientes.12 (NIETZSCHE, KSA XI, 27[27], p. 282.
Tradução minha).

11
Ver-se-á adiante se há ou não uma relação de anterioridade entre as pulsões e o corpo.
12
Am Leitfaden des Leibes erkennen wir den Menschen als eine Vielheit belebter Wesen, welche teils mit einander
kämpfend, teils einander ein- und untergeordnet, in der Bejahung ihres Einzelwesens unwillkürlich auch das Ganze
bejahen. Unter diesen lebenden Wesen gibt es solche, welche in höherem Maße Herrschende als Gehorchende sind,
und unter diesen gibt es wieder Kampf und Sieg. Die Gesamtheit des Menschen hat alle jene Eigenschaften des
Organischen, die uns zum Teil unbewusst bleiben zum Teil in der Gestalt von Trieben bewusst werden.

34
Nesse ponto esbarra-se com o problema da utilização dos fragmentos não publicados: sua
riqueza é enorme, mas devem sempre ser interpretados levando-se em conta a obra publicada
pelo autor. É sabido como Nietzsche produzia esses fragmentos: como rascunhos e esboços a
serem vistos e revistos para comporem suas obras publicadas. Muitos deles nos dão a dimensão
do trabalho do filósofo, do desenvolvimento e crescimento de suas obras publicadas, mas não
devem se sobrepor a elas. Contudo, é possível analisar, nos mesmos fragmentos póstumos, ideias
que contradizem essa interpretação substancialista, que apenas parece certa com base no
fragmento anterior: “Não há unidades últimas duráveis, não há átomos, não há mônadas: aqui
também ‘o ser’ é introduzido por nós (por motivos práticos, por uma perspectiva útil)” 13
(NIETZSCHE, KSA XIII, 11[73], p. 36. Tradução minha).
Essa visão teleológica do corpo e de sua organização biológica está fundada em outra, que
é anterior e que atribui ao corpo e à vida uma finalidade específica. Essa finalidade está inscrita
no elemento constituinte do corpo, sua substância. Quando Marton assevera que o corpo é
constituído de seres microscópicos, que vivem em constante conflito uns com os outros, e
relaciona-os com as células, ela toma as células como o lugar das pulsões no corpo,
aproximando-se da ideia de que a teoria pulsional de Nietzsche seria uma ontologia biologicista,
que a substância constituinte do ser humano, e de seu corpo, seria as células. O problema dessa
ontologia biologicista é o mesmo, para Nietzsche, de qualquer outra ontologia: a pré-suposição de
uma finalidade na existência humana. Uma ontologia sempre pressupõe um ser ou substância
como modo de alguma ideia, seja a ideia platônica, seja a pura ideia formal de Kant ou ideia do
absoluto hegeliano; o que se tem, em todo caso, independentemente da matriz metafísica adotada,
é uma “materialização” na substância (modo da ideia) de objetivos específicos que ditam a
finalidade dessa substância e, em último caso, da própria vida; porém, Nietzsche negou
enfaticamente a possibilidade de que a vida humana tivesse algum objetivo tautológico,
ontológico ou metafísico, como afirmou o filósofo: “Negamos metas finais: se a existência
tivesse alguma, então [já – VS] deveria ter sido alcançada” e “Meu pensamento: faltam as metas,

13
Dauer des Lebens innerhalb des Werdens: — es gibt keine dauerhaften letzten Einheiten, keine Atome, keine
Monaden: auch hier ist „das Seiende“ erst von uns hineingelegt, (aus praktischen, nützlichen perspektivischen
Gründen).

35
e estas devem ser individuais”14 (NIETZSCHE, KSA XII, 5[71], 7[6], p. 213 e 281. Tradução
minha).
Para o pensador alemão, uma ontologia é, em último caso, uma transposição para a
filosofia de um problema moral, o que pode ser mais bem compreendido pela sua crítica da moral.
Segundo o filósofo, os homens inferiores, 15 incapazes de aceitar a vida em todas as suas
manifestações, em especial naquelas mais duras e cruéis, incapazes também de resistir a outros
homens, mais bárbaros e mais primitivos (é o caso da besta loura16 e dos homens superiores),
buscam um sentido para sua vida fora dela, imaginam um mundo metafísico, um reino dos céus
ou paraíso, que antecede a vida material e que também lhe é posterior; é esse mundo, por fim, que
dá sentido e forma à vida. Para Nietzsche, isso é claramente um mecanismo de autoenganação e
autopreservação, pois, para ele:

(...) a moral protegeu a vida do desespero e do salto no nada, por parte de tais homens e
estamentos, que foram violentados e oprimidos por homens, pois a impotência perante
homens, não a impotência perante a natureza, gera a mais desesperada amargura contra a
existência. A moral tratou os detentores do poder, os violentos, os ‘senhores’ em geral,
como inimigos, contra os quais tem que ser protegido o homem comum, isto é,
primeiramente encorajado, fortalecido. (NIETZSCHE, GP, p. 59).

Essa moral é também um instrumento de poder, pois, como consta na primeira dissertação
de A genealogia da moral, por meio dessa revalorização da vida, os fracos venceram os fortes,
domaram a besta loura e tornaram-se senhores dela.
Pois bem, para Nietzsche, uma ontologia nada mais é do que uma sofisticação desta ideia,
ou seja, transfere-se para antes da vida (substância) o fundamento da vida (ideia), e a prova de
que essa ideia é verdadeira é que o mundo é como é, e não de outro modo, ou seja, ele é assim
porque a ideia que o gerou e se “modalizou” em substância “quis” que ele assim fosse. Assim, sai
o Deus criador e entra a ideia; sai o homem e entra a substância, mas, para Nietzsche, o que
persiste é o mesmo: a transposição para a filosofia dos preconceitos religiosos.
Com esse ponto de vista concorda Velloso Rocha, pois a partir do momento em que em
Nietzsche não há uma substância, transcendente ou imanente, que permaneça inalterável a

14
Wir leugnen Schluß-Ziele: hätte das Dasein eins, so müßte es erreicht sein. Mein Gedanke: es fehlen die Ziele, und
diese müssen Einzelne sein!
15
A tipologia nietzscheana será objeto de discussões mais aprofundadas no segundo capítulo deste trabalho.
16
A besta loura (blond Biest) é uma expressão cunhada por Nietzsche para se referir aos homens fortes e bárbaros,
que, segundo ele, deram origem ao Estado; isso também será discutido mais detalhadamente no segundo capítulo,
pois constitui um dos tipos da tipologia nietzscheana.

36
despeito dos acontecimentos do mundo e também não há uma ideia que possua modos ou
atributos que sejam reflexos imperfeitos ou condicionados pelas faculdades intelectivas humanas,
não é possível falar em um ser no qual se fundamente uma ontologia no pensamento de Nietzsche.
Porém, essa mesma autora, ao se contrapor à ideia de que há uma ontologia em Nietzsche, chega
a uma conclusão contraditória: não há no pensamento de Nietzsche uma ontologia em sentido
tradicional, mas uma ontologia negativa:

A filosofia nietzscheana é uma ontologia negativa porque concebe o mundo como


destituído de ser. De fato, o conceito de ser não designa apenas aquilo que é, mas aquilo
que é necessariamente, em oposição ao que é de forma apenas contingente; aquilo que
permanece idêntico a si mesmo, e que, portanto, pode suportar a mudança, ser seu sujeito e
seu substrato; finalmente, o ser é aquilo que é em si mesmo e para si mesmo,
independentemente de seu aparecer. (ROCHA, 2003, p. 44).

Defender o pensamento de Nietzsche contra as diversas tentativas de torná-lo uma


ontologia e simultaneamente afirmar que ese pensamento é uma ontologia, porém negativa, e que
esa negatividade se deve à ausência do ser no sentido tradicional, não é apenas uma contradição,
mas indício de que o ponto central da crítica de Nietzsche à filosofia tradicional não foi entendido.
A crítica de Nietzsche não se dirige apenas à tentativa da filosofia metafísica de encontrar um ser,
mas à própria idéeia de ser. O problema é muito mais profundo: para Nietzsche, não é que não
exista um ser, é que a própria pergunta pelo ser não faz sentido.
Esste não fazer sentido não é uma crítica lógica nos moldes do Círculo de Viena, para o
qual um enunciado só faz sentido se corresponder a alguma realidade empírica, ou do Tractatus
Lógico-Philocophicus, em que se deve calar o que não se pode dizer. A crítica de Nietzsche não é
lógica, é genealógica, pois buscar um sentido para o ser para então poder conceituá-lo é ignorar a
história, não do ser, mas de como ele foi erigido em problema filosófico e como se utilizou-se
esste problema para fugir das mais diversas realidades, ou melhor, para ocultá-las. Insistir na
pergunta pelo ser, mesmo que seja para afirmar uma ontologia negativa, é ignorar que “definível
é apenas aquilo que não tem história” (NIETZSCHE, GM, p. 68).
É o mesmo problema encontrado em Heidegger quando afirma que o pensamento de
Nietzsche é uma ontologia, inclusive aos moldes tradicionais, que, em Nietzsche, o ser dos entes
é a vontade de poder e que a vontade de poder, embora assuma aparências diferenciadas, é
sempre a mesma e é única: força de expansão, domínio e subjugação, não apenas dos outros, mas
de perspectivas distintas de mundo. Nessa análise de Heidegger, a vontade de poder possui o

37
elemento central para que se torne o ser dos entes e, consequentemente, um ser capaz de fundar
uma ontologia. Ela cumpre a exigência mais primitiva da lógica, que provavelmente se originou
com Parmênides e foi adotada com gosto por Aristóteles: a identidade. Para o filósofo de Ser e
tempo, a vontade de poder é igual a si mesma, e essa igualdade não é acidental, porém, necessária.
De certo modo, esse problema perpassa todo este trabalho e será discutido mais
detidamente no capítulo terceiro (A educação possível) a partir da pergunta: um ser humano pode
se tornar diferente daquilo que ele é? Contudo, essa discussão será feita de modo diferente e por
argumentos distintos dos de Heidegger. Quando Heidegger supõe que a vontade de poder é o ser
dos entes, ele ignora que a vontade de poder não é nem uma substância, nem uma ideia, nem um
acontecimento. A vontade de poder é apenas a consequência do constante conflito pulsional, ou
seja, um subproduto dessa luta.
As pulsões não querem nada, não possuem volição em direção a coisa alguma. Dizer que
as pulsões possuem vontade de poder é inverter a “lógica” do pensamento nietzscheano: as
pulsões apenas lutam e se conflitam umas contra as outras, e apenas assim existem. Para
Nietzsche, não é concebível que haja pulsões em repouso: não há força que não seja atuante.
Desse modo, a vontade de poder não pode ser o ser dos entes, pois ela nada mais é que um
subproduto dessa luta, não é uma vontade querente. Poder-se-ia, inclusive, chamá-la de qualquer
outra coisa, desde que se tivesse em mente que ela é apenas esse subproduto.
As pulsões também não podem ser o ser dos entes porque não possuem igualdade. As
pulsões nunca são iguais a si mesmas, pois suas características são temporárias e definidas apenas
na luta com outras pulsões. Seu aniquilamento ou absorção por outra pulsão, ou conjunto de
pulsões, muda-as totalmente; enfim, as pulsões não possuem identidade, suas características
alteram-se cada vez que elas entram em novos conflitos com outras pulsões. Todavia, seria
possível pensar a luta como identidade das pulsões, tendo em vista que elas só existem enquanto
lutam; mas dizer que as pulsões só existem enquanto lutam é, em se tratando de Nietzsche, uma
tautologia, pois dizer pulsões significa dizer algo que luta. Então, a identidade das pulsões não
pode residir nelas mesmas, pois se alteram sempre nesse processo de existir como algo em luta.
Por fim, falar em uma totalidade do ser dos entes, como o faz Heidegger, é incoerente,
pois só pode imaginar e avaliar a totalidade dos entes algo que esteja fora dessa totalidade, e isso
absolutamente não é possível ou concebível, ao menos não na filosofia de Nietzsche, pois, como
ele mesmo afirma:

38
Juízos de valor acerca da vida, contra ou a favor, nunca podem ser verdadeiros, afinal; eles
têm valor apenas como sintomas, são considerados apenas enquanto sintomas – em si, tais
juízos são bobagens. É preciso estender ao máximo as mãos e fazer a tentativa de
apreender essa espantosa finesse [finura], a de que o valor da vida não pode ser estimado.
Não por um vivente, pois ele é parte interessada, até mesmo objeto da disputa, e não juiz;
e não por um morto, por um outro motivo. – Que um filósofo enxergue no valor da vida
um problema é até mesmo uma objeção contra ele, uma interrogação quanto à sua
sabedoria, uma não-sabedoria. (NIETZSCHE, CI, p. 18).

A interpretação substancialista, porém, não é o único escolho no caminho da compreensão


da teoria pulsional de Nietzsche; há também a interpretação que subdivide e classifica as pulsões
em grupos, a exemplo do que acontece com a teoria pulsional de Freud. Isso é o que faz
Acampora quando analisa as pulsões e as subdivide em categorias:

Essas forças são inúmeras, e mesmo que fôssemos capazes de fixar o seu número, em
qualquer ponto esse número iria mudar, uma vez que algumas são absorvidas e
incorporadas por outras. Nietzsche se esforça de diversas maneiras para capturar o sentido
do processo da relação das forças simplificando radicalmente o seu número e subdividindo
sua luta em uma grande escala – a luta entre a força criativa do Apolíneo e a força
destrutiva do Dionisíaco (NT), a luta entre lembrança e esquecimento (GM), a luta entre a
vontade de engano e vontade de conhecimento (ABM). Precisamente o modo como essas
forças se relacionam entre elas exige maior atenção e elaboração do que este trabalho
permite, mas uma coisa é clara: Nietzsche parece pensar que estes conflitos são
definidores – nós somos a interpretação dessas batalhas – e produtivos – os resultados
dessas lutas influenciam as diferentes fases de desenvolvimento, que não têm direção ou
fim particular ou teleológico.17 (ACAMPORA, 2006, p. 326. Tradução minha).

A despeito da afirmação de Acampora, Nietzsche não subdividiu as pulsões em categorias,


apenas afirmou sua existência, geralmente qualificada como irracional e sem direção específica
que não a expansão e o domínio (poder). Outro problema são as categorias pulsionais sugeridas
pela autora: ela juntou elementos de períodos distintos da filosofia de Nietzsche para formar essas
categorias.

17
Such forces are innumerable, and even if we were able to fix their number at any given point that number would
change as some are absorbed and incorporated by others. Nietzsche variously endeavors to capture the sense of the
process of the relation of forces by radically simplifying their number and casting their struggle on a grand scale –
the struggle between the creative force of the Apollonian and the destructive force of the Dionysian (BT), the
struggle between remembering and forgetting (GM), the struggle between the will to deception and the will to
knowledge (BGE). Precisely how these forces relate to each other requires greater attention and elaboration than this
essay allows, but one thing is clear: Nietzsche appears to think that these conflicts are defining – we are the
interpretations of these battles – and productive – the outcomes of these struggles account for different stages of
development, which have no particular or final direction or end.

39
É certo que Eugen Fink (FINK, 2003) afirmou que a filosofia de Nietzsche pode ser
dividida em três momentos distintos, que são complementares, não havendo rupturas em seu
pensamento, com o que se está de acordo neste trabalho, porém, não se pode perder de vista que,
embora não haja rupturas, alguns elementos do período inicial de sua filosofia (aquele que
engloba as obras anteriores a Humano, demasiado humano) foram abandonados, aparecendo
posteriormente apenas como menções rápidas. É o caso das forças apolíneas e dionisíacas. No
seu período intermediário, aceito comumente como se estendendo até Aurora, 18 Nietzsche
abandonou sua metafísica de artista e passou a nutrir grande desconfiança quanto à ideia de que a
arte, pensada como trabalho do artista, em especial o artista profissional, seria a redenção da
humanidade. É certo que no período final Nietzsche defendeu a ideia de que a vida, tornada uma
obra de arte pela vivência incondicional de todos os seus aspectos (amor fati), os belos e os
horríveis, e, muitas vezes, invertendo-os, dá sentido a si mesma e pode ser pensada como uma
justificativa de tudo o que existiu antes de nós e existirá após; porém, aí não há mais a metafísica
de artista formulada na dualidade apolíneo/dionisíaco.
As outras duas classificações feitas em função da luta entre a lembrança e o esquecimento
(discutido principalmente em A genealogia da moral) e vontade de engano e vontade de
conhecimento (a principal obra a tratar do tema é Além do bem e do mal) nada mais são do que
variações da vontade de poder, ou seja, elas são também subprodutos do constante conflito
pulsional.
O que essa categorização das pulsões traz é o mesmo problema da interpretação
substancialista, ou seja, conduz-se o pensamento nietzscheano a uma metafísica ou a uma
ontologia, pois quando se subdividem e classificam as pulsões, dá-se a elas as mesmas
características do ser: identidade, permanência e, principalmente, igualdade, ou seja, as pulsões
de uma determinada categoria são necessariamente iguais a si mesmas. Mesmo que a autora
afirme, em dado momento de sua citação, que as pulsões se modificam ao serem assimiladas por
outras, elas permanecem como pulsões que possuem uma identidade, mesmo que essa identidade
seja cambiante. E, como citado, o que as pulsões não são é ser; o ser é apenas introduzido por nós,
por uma questão de utilidade.

18
Alguns defendem que nesse período também está o livro A gaia ciência em especial, por certo tom positivista que
ainda é notado nos seus dois primeiros capítulos; porém, esse livro como um todo já representa o que há de mais
importante no período final da filosofia de Nietzsche, a saber, a morte de Deus, o eterno retorno, o amor fati e o
aparecimento de Zaratustra.

40
O que, então, são as pulsões? Independentemente da palavra que Nietzsche tenha usado
para significar o conceito de pulsões, esse conceito possui um conjunto de ideias que o especifica,
porém uma afirmação presente em um fragmento não publicado oferece uma ótima compreensão
do que sejam:

Não resta coisa (Ding) alguma, apenas quanta dinâmicos, em uma relação de tensão com
todos os outros quanta dinâmicos: sua essência está na sua relação com todos os outros
quanta, em seu ‘efeito’ sobre eles.19 (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[79], p. 259. Tradução
minha).

Pensar as pulsões como quanta dinâmicos de energia é a melhor saída para o perigo
representado pela interpretação substancialista e pela interpretação classificatória das pulsões,
ambas fazendo a teoria das pulsões de Nietzsche redundar em uma ontologia na qual as pulsões
ganham a característica de ser. Entretanto, chamar as pulsões de quanta de energia ou quanta
dinâmicos de energia não seria apenas mudar o nome das pulsões e repetir o processo pelo qual
elas são vistas como ser, ou seja, atribuir-lhes identidade, permanência e igualdade? O risco
persiste e é real, mas quando se pensa que esses quanta de energia não existem como seres reais,
mas apenas enquanto estão em conflito uns com os outros, e que a partir do momento em que tal
conflito cessa, cessa também seu existir, então, foge-se à possibilidade de repetir a ontologização
do pensamento de Nietzsche quanto às pulsões. Elas sempre devem ser pensadas como conflito
ou relação entre pulsões, como ação de umas sobre as outras, nunca apenas como pulsões: para
Nietzsche não é concebível uma energia que não seja atuante.
Essa visão das pulsões como quanta de poder é reforçada por Casa Nova, quando afirma
que:

Em todo acontecimento nos defrontamos com o estabelecimento de uma relação entre


elementos perspectivísticos de ordenação da pluralidade de forças em jogo. Cada um
destes elementos perspectivísticos encerra em si mesmo uma determinada ascensão sobre
esta pluralidade de forças e uma determinada capacidade de resistir aos elementos
contrários à sua vigência. O mundo caracteriza-se então por um embate entre princípios de
composição e estes princípios não estão senão inseridos em uma relação necessária de
poder uns em relação aos outros. De acordo com uma certa formulação recorrente nos
cadernos nietzscheanos de 1887/88, eles são quanta de poder e se instauram em sua
identidade própria a partir “do efeito que exercem e ao qual resistem”. Porque o mundo é
marcado originariamente por uma luta entre quanta de poder e porque se mostra em sua

19
(…) so bleiben keine Dinge übrig, sondern dynamische Quanta, in einem Spannungsverhältniß zu allen anderen
dynamischen Quanten: deren Wesen in ihrem Verhältniß zu allen anderen Quanten besteht, in ihrem „Wirken“ auf
dieselben.

41
dimensão mais primordial enquanto uma guerra entre perspectivas detentoras de uma
capacidade de domínio, temos a cada instante o despontar de uma conjuntura de poder.
Esta conjuntura de poder precisa incessantemente transmutar-se em função de sempre
novas composições, visto que a sua instauração não encerra de uma vez por todas a guerra
(...). (CASA NOVA, 2001, p. 43).

Desse modo, vê-se que a teoria pulsional de Nietzsche toma o ser humano como um
conjunto caótico de pulsões em constante luta e que só momentaneamente conseguem arranjos de
poder que dão à existência a aparência de permanência. As pulsões são quanta de poder em
constante conflito e não são pensáveis fora do conflito: as pulsões só existem enquanto se
encontram em luta. Não apenas o corpo humano é fruto dessas pulsões, mas tudo que envolve o
corpo humano, inclusive a sua personalidade. Nietzsche radicalizou essa ideia quando afirmou
que mesmo o sujeito nada mais é do que a consequência de toda essa luta constante, apenas uma
pelinha de maçã sobre um caos constante.20
O atual estado de compreensão das pulsões, como quanta dinâmicos de energia, oferece-
nos a possibilidade de passar para o item seguinte deste trabalho, em que será discutida a crítica
nietzscheana ao sujeito e sua proposta de se pensar o ser humano não como um sujeito, mas um si.
Porém, para que se possa passar a este ponto, é necessário analisar outro elemento, apenas
colateralmente relacionado com a teoria pulsional de Nietzsche, que vem à tona pelas metáforas
da natureza que o filósofo usou, em especial a palavra instinto para designar as pulsões: é o
problema de determinar se Nietzsche seria ou não um filósofo da natureza.
O fato de Nietzsche utilizar muitas vezes um léxico repleto de metáforas relacionadas à
natureza e a elementos da natureza levou muitos intérpretes a afirmarem que Nietzsche seria um
filósofo da natureza e que este naturalismo estaria na base de sua explicação da moral, da
dualidade moral nobre e moral escrava, e também na base da sua teoria pulsional. Em especial a
teoria pulsional é apontada como um produto do naturalismo nietzscheano. Um dos motivos para
essa interpretação é, sem dúvida, as constantes referências às pulsões com o uso do termo instinto.
Essa interpretação é bastante comum entre autores de língua inglesa 21 e funda-se na
suposição de que Nietzsche embasa sua teoria em uma ideia de natureza humana que está
relacionada às pulsões. Nessa interpretação, as pulsões ou a vontade de poder seriam, uma das

20
A frase é de Nietzsche e originalmente se refere à cultura: “Cultura é apenas uma tênue pelinha de maçã sobre um
caos incandescente” (NIETZSCHE, KSA X, 9[48], p. 362)
21
Christa Davis, Brian Leiter e Ansell-Pearson são alguns partidários bastante conhecidos dessa ideia.

42
duas, a natureza humana e, a partir desta natureza humana, tudo o mais seria respondido e
definido. Leiter, por exemplo, afirma que:

Nietzsche não pertence ao grupo dos pós-modernistas como Foucault e Derrida, mas, ao
invés, ao grupo dos naturalistas como Hume e Freud – ou seja, de modo geral, está entre
os filósofos da natureza humana.22 (LEITER, 2002, p. 2. Tradução minha).

É certo que o vocabulário usado por Nietzsche não é específico e que, salvo raros
conceitos, os demais são significados com palavras diferentes, o que, como foi visto, foi
fundamental para que o filósofo pudesse fugir aos sistemas filosóficos dos quais tanto
desconfiava. Contudo, para afirmar que Nietzsche é um filósofo naturalista ou defensor da ideia
de uma natureza humana, ter-se-ia de distinguir antes a ideia expressa pela palavra natureza por
estes filósofos que Leiter designou acima: “de modo geral, está entre os filósofos da natureza
humana”.
Na tentativa de fugir à supremacia dos conceitos metafísicos, orientados em especial por
filósofos ligados à Igreja Católica, diversos filósofos do período moderno estruturaram suas
filosofias buscando um fundamento na natureza, ou ao menos no que eles diziam ou imaginavam
ser a natureza. Porém, esses filósofos caíram na armadilha denunciada por Nietzsche: sempre que
se filosofa, inevitavelmente se cai em algumas das armadilhas da metafísica, devido à estrutura
da linguagem, que não permite que se pense os acontecimentos sem que neles já esteja presente a
linguagem fundamental da metafísica, a lógica. Mesmo Nietzsche, apesar de seus esforços, sabia
que não poderia fugir a essa sina da filosofia. Filósofos como Hume, Hobbes e Rousseau,
contudo, não estavam tão precavidos como Nietzsche com relação a esse aspecto.
O que essas teorias da natureza e da natureza humana acabaram por fazer, grosso modo,
foi desdivinizar Deus, o mundo das ideias e seus correlatos, acabando por divinizar a natureza.
Para isso, pressupuseram que a natureza estava munida de uma série de elementos anteriormente
encontrados apenas nesse mundo das ideias ou em Deus: racionalidade, finalidade e, o principal,
leis universais e regulares; mesmo Hume, com toda sua desconfiança empirista, não conseguiu
fugir à ideia de uma natureza finalista e racionalmente autorregulada e autorreguladora.
Essas ideias, porém, não fazem parte do pensamento de Nietzsche, que viu a natureza
como o que há de mais brutal e ao mesmo tempo belo, pois esse brutal está isento de valoração

22
Nietzsche belongs not in the company of postmodernists like Foucault and Derrida, but rather in the company of
naturalists like Hume and Freud – that is, among, broadly speaking, philosophers of human nature.

43
moral; ele diria, ao invés de brutal, ciclópicas. 23 Ele pensa essa natureza sem qualquer
racionalidade ou lógica, afirmando, diversas vezes, que ela é inconsequente e desperdiçadora. Por
isso, pode negar que a natureza tenha uma lógica interna reguladora ou finalidades e que essas
estejam de qualquer forma associadas às pulsões.
Outra vertente na interpretação de Nietzsche como um filósofo naturalista baseia-se na
relação que ele manteve com a ciência de sua época. De fato, Nietzsche tinha grande interesse
nela; nos dois livros que compõem a obra Humano, demasiado humano, esse interesse pela
ciência beira o positivismo. Nietzsche abandonou a metafísica de artista e buscou no positivismo,
ou ao menos em um forte empirismo, uma ponte de transição para sua filosofia madura. No
período final, esse interesse prosseguiu, embora sem tanta força, e Nietzsche reconheceu que o
positivismo foi apenas uma ponte. Contudo, sua teoria das pulsões sofreu forte influência de
leituras de biólogos da época, nos quais Nietzsche buscava argumentos para contrapor-se ao
evolucionismo darwinista. É nessa perspectiva que Acampora afirma que Nietzsche é um
naturalista:

Há uma concepção mais estreita de naturalismo que focaliza na relação entre filosofia e
ciência de tal modo que reivindica que a filosofia é melhor quando seus modelos e
métodos estão baseados nas ciências empíricas ou que ela deveria utilizar as pesquisas das
ciências empíricas, ou ambos. (ACAMPORA, 2006, p. 315).

Se, de fato, em seu período intermediário, Nietzsche nutriu grandes esperanças com
relação à ciência como redentora da humanidade – principalmente no que tange aos problemas da
metafísica, que o filósofo ainda não vira, que também estavam na ciência –, sua obra madura
lançou suspeitas severas sobre a ciência, em especial sobre o que é o cerne do seu método, a ideia
de causa e efeito. Nietzsche mostrou sua desconfiança com relação a essa última ideia em um
texto que se inicia criticando a moral e sua ideia central, o livre arbítrio:

Supondo que alguém perceba a rústica singeleza desse famoso “livre arbítrio” e o risque
de sua mente, eu lhe peço que leve sua “ilustração” um pouco à frente e risque da cabeça
também o contrário deste conceito monstro: isto é, o “cativo arbítrio”, que resulta em um
abuso de causa e efeito. Não se deve coisificar erroneamente “causa” e “efeito”, como
fazem os pesquisadores da natureza (e quem, assim como eles, atualmente “naturaliza” no

23
“(...) na história da humanidade; as forças mais selvagens abrem caminho, primeiramente destrutivas, e no entanto
sua ação é necessária, para que depois uma civilização mais suave tenha ali sua morada. Estas terríveis energias – o
que se chama de mal – são os arquitetos e pioneiros ciclópicos da humanidade.” (NIETZSCHE, HDH I, 2000, p.
170).

44
pensar –), conforme a tacanhez mecanicista dominante, que faz espremer e sacudir a
causa, até que “produza efeito”; deve-se utilizar a “causa”, o “efeito”, somente como
puros conceitos, isto é, como ficções convencionais para fins de designação, de
entendimento, não de explicação. No “em si” não existem “laços causais”,
“necessidade”, “não-liberdade psicológica”, ali não segue “o efeito à causa”, não rege
nenhuma “lei”. Somos nós apenas que criamos as causas, a sucessão, a reciprocidade,
a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade; e ao
introduzir e entremesclar nas coisas esse mundo de signos, como algo “em si”, agimos
como sempre fizemos, ou seja, mitologicamente. (NIETZSCHE, ABM, p. 27. Grifo
meu).

Essa citação de Nietzsche contribui para encerrar definitivamente o problema do seu


suposto naturalismo: para o filósofo, tudo o que embasa o naturalismo não passa de invenção
humana; nada há anterior ao homem e que vá sobreviver a ele. Então, as pulsões também não
servem de base, no pensamento de Nietzsche, para uma teoria da natureza ou da natureza humana,
não aos moldes da filosofia moderna, único momento da filosofia em que faz sentido falar em
naturalismo. Mesmo que o filósofo tenha usado com tanta frequência suas metáforas da natureza,
ele admite que elas são metáforas; e vai além ao afirmar também que, quando os cientistas e os
mecanicistas as usam, nada mais fazem do que criar metáforas e ficções. Seguindo adiante, no
próximo tópico, será analisada a crítica nietzscheana ao sujeito e a sugestão do si como teoria
unificadora do humano.

2 – O Eu e o si

Quando Ricoeur (RICOEUR, 1977) cunhou a expressão “mestres da suspeita” e atribuiu-o


também a Nietzsche24 queria dizer que os três filósofos, Nietzsche, Freud e Marx, inverteram ou
desorganizaram a forma tradicional de pensar o mundo. Sem entrar no que toca a Marx e Freud,
no que diz respeito a Nietzsche, esse título é bastante significativo. A suspeita em Nietzsche não
é um método para se buscar a verdade, como o é a dúvida metódica de Descartes, nem mesmo
um afastamento temporário dos elementos conhecidos e armazenados no ser, como a Époche
husserliana; também não é uma aceitação temporária de uma verdade ou teoria que se sabe
provisória e que aguarda por falseamento para que se caminhe em direção à verdade, como no
método científico proposto por Popper.

24
O termo originalmente refere-se a Nietzsche, Freud e Marx.

45
A suspeita em Nietzsche é a cisma de que talvez a verdade não seja o que sempre se
pensou dela, que seu valor talvez seja outro... Com as escavações genealógicas no campo da
moral e da psicologia, essa suspeita se tornou uma atitude definitiva contra tudo o que então
parecia verdadeiro. Tudo está sob suspeita: nossos valores milenarmente mais sagrados estão sob
suspeita de serem apenas construções humanas, elaboradas pelas necessidades de organização
social e de busca por poder. Porém, de todas as suspeitas nietzscheanas, a mais dolorosa é, sem
dúvida, a suspeita do Eu. A teoria pulsional de Nietzsche pôs pela primeira vez o homem em face
da terrível descoberta: o Eu não é, de fato, o sujeito da existência humana ou do mundo. O Eu é
apenas um subproduto das lutas pulsionais, e a consciência que sempre caracterizou esse Eu nada
mais é do que um biombo, atrás do qual se esconde um universo de inconsciência e de lutas
irracionais. Aquilo que cada ser humano é resulta desse conflito pulsional incessante.
Como falar em educação dentro dessa efusão pulsional? O que se educaria na ausência de
um sujeito? Quem educaria? Essas são apenas algumas das muitas perguntas possíveis em face
das suspeitas que Nietzsche tornou possíveis com sua teoria pulsional.

2.1 – A crítica ao sujeito

A teoria das pulsões de Nietzsche é um esforço significativo por fundar uma filosofia da
multiplicidade, não apenas a multiplicidade de perspectivas sobre o real, mas a multiplicidade dos
mundos possíveis, dos seres humanos e mesmo a multiplicidade que é um único ser humano.
Nietzsche admitia que a realidade é como é, mas nunca que não podia ser de outro modo, pois o
mundo nada mais é que o caos pulsional, sem finalidade e sem objetivos previamente
determinados por algo ou alguém fora do mundo. Sua filosofia da multiplicidade, porém, esbarra
em um dos mais sólidos elementos da história da filosofia: a unicidade do sujeito.
Desde Descartes que se pensa o ser humano como uno e igual a si mesmo, um ser humano
que é sujeito do mundo, que, por sua vez, é predicado ou objeto. Um sujeito dotado de uma
faculdade que lhe permite conhecer a si mesmo e, principalmente, conhecer-se a si mesmo como
sujeito deste mundo: a faculdade da razão. Esse, que, de fato, é um dos “artigos de fé” mais
importantes da filosofia moderna, ganhou mais força com o transcendentalismo kantiano, pois o
filósofo de Könisberg ampliou e especializou a descoberta cartesiana doando a esse sujeito as
suas faculdades transcendentais, em especial graças ao forte apelo universalista que Kant viu na

46
constituição do ser humano: a verdade só tem validade universal porque os homens possuem,
universalmente, a mesma constituição de seus aparelhos cognitivos.
Foi contra dois dos mais importantes filósofos modernos que a filosofia da multiplicidade
de Nietzsche se voltou; por isso, ele precisou começar sua crítica pelos pontos de fundamentação
dessa filosofia, em especial a noção de um Eu sujeito do mundo, por meio da crítica ao cogito
cartesiano. Em Além do bem e do mal tem início o processo de suspeita do sujeito:

Ainda há ingênuos observadores de si mesmos que acreditam existir “certezas imediatas”;


por exemplo, “eu penso”, ou, como era superstição de Schopenhauer, “eu quero”: como se
aqui o conhecimento apreendesse seu objeto puro e nu, como “coisa em si”, e nem de
parte do sujeito nem de parte do objeto ocorresse uma falsificação. Repetirei mil vezes,
porém, que “certeza imediata”, assim como “conhecimento absoluto” e “coisa em si”,
envolve uma contradictio in adjecto [contradição no adjetivo]: deveríamos nos livrar, de
uma vez por todas, da sedução das palavras! Que o povo acredite que conhecer é conhecer
até o fim; o filósofo tem que dizer a si mesmo: se decomponho o processo que está
expresso na proposição “eu penso”, obtenho uma série de afirmações temerárias, cuja
fundamentação é difícil, talvez impossível – por exemplo, que sou eu que pensa, que tem
de haver necessariamente um algo que pensa, que pensar é atividade e efeito de um ser que
é pensado como causa, que existe um “Eu”, e finalmente que já está estabelecido o que
designar como pensar – que eu sei o que é pensar. (NIETZSCHE, ABM, p. 21-2).

Há nessa passagem os principais elementos colocados sob suspeita por Nietzsche que
constituirão a crítica do sujeito: (b) a afirmação de que o pensamento carece de um algo que
pense o pensamento – o mesmo vale para o querer; (c) que há um Eu; (d) que aquilo que pensa o
pensamento é o Eu; (e) que pensar é a atividade fim e consequência do eu; e, por fim, (f) que se
sabe exatamente o que é o pensamento. Propositadamente essa numeração não apresentou um
item (a): no trecho, há outro elemento fundamental para a crítica do sujeito, mas que fica apenas
implícito, embora seja ele quem organize, por assim dizer, todo o argumento: a crença na lógica e
na linguagem e, mais ainda, no valor da lógica e da linguagem. Esse será o primeiro elemento a
ser analisado na crítica nietzscheana do sujeito.
Ao final de um fragmento não publicado do período de agosto-setembro de 1885,
Nietzsche afirmou que “antes da questão do ‘ser’ deveria estar decidida a questão do valor da
Lógica” (NIETZSCHE, FP, p. 11). A despeito de este ser um fragmento do período de
maturidade, a lógica sempre preocupou Nietzsche. Um esforço por mostrá-la como uma criação
baseada nos afetos humanos apareceu primeiramente em seu Humano, demasiado humano,
mesmo antes da formulação do conceito de pulsão.

47
(...) – O primeiro nível do [pensamento] lógico é o juízo, cuja essência consiste, segundo
os melhores lógicos, na crença. Na base de toda crença está a sensação do agradável ou
do doloroso em referência ao sujeito que sente. Uma terceira e nova sensação, resultado
das duas precedentes, é o juízo em sua forma inferior. – A nós, seres orgânicos, nada
interessa originalmente numa coisa, exceto sua relação conosco no tocante ao prazer e à
dor (...). – Nesse primeiro nível do lógico, o pensamento da causalidade se acha bem
distante. (NIETZSCHE, HDH I, p. 28).

Embora a explicação ainda reflita o positivismo utilitarista que serviu de ponte para que o
jovem Nietzsche abandonasse sua metafísica de artista, o problema central da crítica madura à
lógica já está posto: a lógica, no seu elemento mais primitivo, o juízo, é uma crença e não algo a
que se chega a partir de qualquer instância transcendental. Pelo contrário, Nietzsche, nesse
momento, acha que essa necessidade é fruto de uma busca por prazer e repulsa à dor. É claro que
por trás desse aparente utilitarismo pode-se adivinhar as linhas do que seria futuramente sua
teoria das pulsões. Nossos juízos, base das estruturas lógicas mais comuns, como as proposições
e silogismos, nada mais são do que nosso corpo buscando os melhores caminhos para, no dizer de
Espinosa, perseverar na existência.
O que há é uma constatação desconcertante de que a lógica, tida na filosofia como base do
pensamento racional e critério de todo pensamento que se pretende correto, está baseada em uma
confabulação das necessidades corporais, em especial a necessidade da sobrevivência. A
necessidade da conservação foi o que levou o filósofo alemão ao seu próximo e decisivo passo na
crítica da lógica: a lógica nada mais é, em sua origem, do que o conjunto dos hábitos linguísticos
dos povos que conseguiram escapar ao definhamento e à destruição, em especial na pré-história,
quando tinham que lutar contra eles mesmos e uma natureza indomada e hostil.
Kant afirmou em sua primeira crítica que a lógica “é a ciência das regras do entendimento
em geral” (KANT, 1999, p. 92) e que pode ser dividida em duas: lógica geral e lógica das regras
do entendimento. “A primeira contém as regras absolutamente necessárias do pensamento, sem
as quais não ocorre uso algum do entendimento (...)” (Idem). Para Kant, esse entendimento é a
própria razão; então, a lógica, seja geral, seja pura, não carece de qualquer indução psicológica,
ou melhor, só é lógica realmente se puder prescindir disso. De acordo com Kant, a lógica:

1) Como lógica geral, abstrai de todo o conteúdo do conhecimento do entendimento, bem


como da diversidade dos seus objetos, não se ocupando senão com a simples forma do
pensamento.
2) Como lógica pura, não possui nenhum princípio empírico, por conseguinte não tira nada
(como às vezes se estava persuadido) da Psicologia, a qual portanto não possui nenhuma

48
influência sobre o cânone do entendimento. É uma doutrina demonstrada, e tudo nela
precisa ser certo de modo inteiramente a priori. (Idem, p. 93).

Nesse ponto, o pensamento de Nietzsche entra em aberta discordância com o pensamento


de Kant, pois para Nietzsche a lógica longe está de se referir a categorias puras do entendimento,
ou ao conhecimento puro formal dos objetos, ou às relações e definições das regras que tornam
um objeto ou ideia puramente transcendentais (lógica transcendental). Para Nietzsche, a lógica é
o caminho que alguns seres humanos encontraram para manterem-se vivos, por meio de um
processo sucessivo de confusões e mal-entendidos, nos quais o que é semelhante é conduzido à
igualdade e à identidade.

Origem do lógico. – De onde surgiu a lógica na mente humana: certamente do ilógico,


cujo domínio deve ter sido enorme no princípio, mas incontáveis outros seres, que
inferiam de maneira diversa da que agora inferimos, desapareceram: e é possível que ela
fosse mais verdadeira! Quem, por exemplo, não soubesse distinguir com bastante
freqüência o “igual”, no tocante à alimentação ou aos animais que lhe eram hostis,
isto é, quem subsumisse muito lentamente, fosse demasiado cauteloso na subsunção,
tinha menos probabilidades de sobrevivência do que aquele que logo descobrisse
igualdade em tudo o que era semelhante. Mas a tendência predominante de tratar o que
é semelhante como igual – uma tendência ilógica, pois nada é realmente igual – foi o que
criou todo fundamento para a lógica. Do mesmo modo, para que surgisse o conceito de
substância, que é indispensável para a lógica, embora, no sentido mais rigoroso, nada lhe
corresponda de real – por muito tempo foi preciso que o que há de mutável nas coisas não
fosse visto nem sentido; os seres que não viam exatamente tinham vantagem sobre aqueles
que viam tudo “em fluxo”. Todo elevado grau de cautela ao inferir, toda propensão
cética, já constitui em si um grande perigo para a vida. Nenhum ser vivo teria se
conservado, caso a tendência oposta de afirmar antes que adiar o julgamento, de errar e
inventar antes que aguardar, de assentir antes que negar, de julgar antes que ser justo – não
tivesse sido cultivada com extraordinária força. – O curso dos pensamentos e inferências
lógicas, em nosso cérebro atual, corresponde a um processo e uma luta entre
impulsos que, tomados separadamente, são todos muito ilógicos e injustos;
habitualmente experimentamos apenas o resultado da luta: tão rápido e tão oculta
opera hoje em nós esse antigo mecanismo. (NIETZSCHE, GC, p. 139-40. Grifos meus).

Apenas como experiência de pensamento é possível perceber a sagacidade das afirmações


de Nietzsche: suponha-se um homem pré-histórico, adepto de um empirismo radical como o de
Hume; o que teria acontecido a ele e à sua prole? Se visse um animal selvagem atacar outro
homem, nada poderia garantir-lhe que, estando na mesma situação, o “fato” iria se repetir, pois
ele não é o mesmo homem que foi atacado, assim como o animal não é o mesmo, e caso o animal
fosse o mesmo, ele não é o mesmo homem que foi atacado anteriormente. Apenas a experiência
poderia lhe mostrar se o animal o atacaria ou não; porém, esta experiência poderia ter um custo
muito alto para sua sobrevivência. Outro homem do mesmo período, que passasse rapidamente da

49
semelhança entre ele e a outra vítima do animal, e também da semelhança do primeiro agressor
com o que se apresenta agora, esse homem teria maiores chances de sobrevivência.
Com essa experiência de pensamento, percebe-se o que Nietzsche quis dizer quando
afirmou que a lógica foi fundamental para a preservação da vida. O que os filósofos fizeram,
então, foi utilizar o que era um critério de sobrevivência e torná-lo critério de verdade. O texto,
desse modo, oferece dois pontos fundamentais: a origem da lógica é a necessidade de
sobrevivência, conseguida passando-se da semelhança à igualdade, da rápida subsunção; porém,
ela não é um critério de verdade, até porque para Nietzsche, se algo garante a existência, isso não
quer dizer que esse algo seja verdadeiro, real ou factível, mas apenas que é propício à vida. O
texto revela outro elemento importante: o que chega à consciência na forma de lógica ou
pensamento lógico, ou seus elementos essenciais, igualdade e identidade, é fruto de uma luta, a
luta pulsional.
Apesar de não se utilizar das discussões técnicas da filosofia – por saber que só o pode
fazer com o vocabulário técnico da filosofia, e também com sua linguagem própria, a lógica, que
apenas confirma o que a filosofia afirma –, Nietzsche fez em um fragmento não publicado uma
incursão crítica bastante técnica à lógica. Como afirmava Aristóteles, a lógica não pode ser
negada, pois para negá-la teria de se recorrer à linguagem que ela oferece, confirmando-a; mesmo
assim, o filósofo alemão arriscou-se.
Nietzsche afirmou que o fato de não se poder negar e afirmar uma mesma coisa ao mesmo
tempo não indica uma necessidade – a necessidade lógica da não contradição –, mas apenas uma
incapacidade, e que é ilógico ter derivado dessa incapacidade humana um princípio lógico. De
acordo com o texto anterior e com a experiência de pensamento, é uma inferência rápida demais,
ou seja, é uma ferramenta de sobrevivência. Em seguida, evocando diretamente Aristóteles como
patrono da lógica, Nietzsche afirmou que o princípio de não contradição não é tão primeiro assim,
pois traz em si alguns pressupostos. Se se faz uma afirmação de que algo não pode ser quente e
não quente ao mesmo tempo, é porque já se conhece esse algo. Mas como se conhece esse algo se,
em tese, o princípio de não contradição, como princípio primeiro, deveria estar fazendo as
primeiras análises sobre essa coisa sobre a qual se afirma que não pode ser quente e não quente
ao mesmo tempo? Se o princípio de não contradição está apenas constatando algo lógico, então,
se conhecia esse objeto anteriormente; e a não contradição não é, assim, o princípio do
conhecimento, pois a coisa já era conhecida antes do princípio de não contradição. Por outro lado,

50
talvez o princípio diga, em vez de “não se pode”, que “não se deve” afirmar que algo é quente e
não quente ao mesmo tempo. Nesse caso, para Nietzsche, o princípio de não contradição deixa de
ser um princípio de verificação do efetivo e torna-se um imperativo para a fundação da noção de
efetividade e do próprio efetivo. Nas palavras do filósofo:

Em resumo: a questão permanece aberta: são os axiomas lógicos adequados ao efetivo, ou


são critérios de medida e meios para criar para nós o efetivo e o conceito de
‘efetividade’?... Para que se possa afirmar o primeiro seria, porém, necessário, como o
dissemos, já conhecer o existente, o que de modo algum é o caso. O princípio não contém,
portanto, nenhum critério de verdade, porém um imperativo para aquilo que deve valer
como verdadeiro (...). Lógica é a tentativa de apreender o mundo efetivo segundo um
esquema do Ser estabelecido por nós, mais precisamente de torná-lo formulável e
previsível para nós... (NIETZSCHE, FP, p. 23-4).

O ponto em que Nietzsche se apoiou para suspeitar da ideia de que por trás do que se
chama pensamento há, necessariamente, um ser que pense o pensamento, e que este ser é o Eu,
este ponto de apoio é a incapacidade do Eu de controlar os próprios pensamentos, de fazê-los
brotar no momento em que deles precisa ou de simplesmente fazê-los sumir quando deles não
precisa mais. A experiência cotidiana de qualquer ser humano dá razão a Nietzsche: o ser
humano é sempre tomado por torrentes de pensamento ligadas a outras torrentes de pensamento,
sobre as quais dificilmente, muitas vezes para sua infelicidade, se tem controle, afinal, “um
pensamento vem quando ‘ele’ quer, e não quando ‘eu’ quero” (NIETZSCHE, ABM, p. 23).
Porém, a crítica de Nietzsche não se detém em afirmar que o pensamento não é um efeito
cuja causa é o Eu. Poder-se-ia dizer que algo pensa, ou isso pensa,25 mas, ainda assim, para o
filósofo, isso é ir longe demais, pois supor o “isso” como sujeito é manter a relação de causa e
efeito e continuar a suposição de que o pensamento é condicionado por algo. O que Nietzsche
almeja com tal crítica é mostrar que o pensamento é autônomo, mas não porque ele age sozinho,
independente do sujeito, e sim porque tanto pensamento quanto sujeito, seja o Eu (Ich) ou o Isso
(Es), são apenas subprodutos do conflito pulsional, e que postular o segundo como causa do
primeiro é interpretar mal o que se passa nos porões do ser humano e que não lhe sobe à
consciência, esta também, como se verá, produto do conflito pulsional.

25
Há aqui um problema linguístico que carece de esclarecimento. Na língua alemã, a exemplo da língua inglesa, não
é possível haver uma oração sem sujeito, como o é possível na língua portuguesa. Desse modo, mesmo os fenômenos
da natureza carecem de um sujeito; para tal, usa-se, em alemão, a partícula “es”, como em inglês a partícula “it”.
Quando Nietzsche afirma que “algo pensa” (Es denkt) em vez de “eu penso” (Ich denke) ele substitui o sujeito “Eu”
pelo sujeito “Es”. Porém, a oração continua tendo um sujeito, mesmo que impessoal.

51
Nietzsche, finalmente, chega à crítica da operação de pensamento em que Descartes
confirmou a existência do Eu sujeito: sua famosa proposição “penso, logo sou” (cogito, ergo
sum). A este respeito, afirma Onate:

Um primeiro grupo de considerações nietzscheanas acerca do cogito procura apresentá-lo


apenas como um silogismo sem conteúdo real, que tem por premissa maior: “o que pensa,
existe”, premissa menor: “eu penso” e conclusão; “logo existo”. Tal raciocínio silogístico,
para ser válido, exigiria um conhecimento prévio do significado das noções de pensar e
existir, inexploradas e indemonstradas por Descartes, reduzindo a primeira verdade de seu
edifício metafísico a uma crença, a uma tautologia, a um círculo vicioso: “algo é crido,
logo algo é crido” (XI, 40 (23)). A imprecisão conceitual manifestada pelos verbos que
formam as extremidades do enunciado cartesiano (cogito e sum), privá-lo-ia do estatuto de
“certeza imediata” e o converteria num vulgar artigo de fé lógico alicerçado unicamente
no termo de ligação (ergo). Esta lacuna silogística seria decorrente da vacuidade
existencial, ou seja, da impossibilidade do cogito de lançar raízes em qualquer esfera de
realidade e existência objetiva, infirmando assim sua precedência na ordem das razões,
abalando sua condição de modelo privilegiado segundo o qual se identifica as demais
idéias claras e distintas e tornando a ciência nele fundada mero exercício de elucubração
intelectual. (ONATE, 2000, p. 29).

É bastante conhecida a crítica, primeiramente feita por Heidegger e depois constatada por
outros pensadores, de que Nietzsche compreendeu equivocadamente o cogito ao tomá-lo como
um silogismo e que isso o teria impedido de compreender a proposta da metafísica Cartesiana, ou
seja, Nietzsche não teria compreendido que o cogito não é uma inspeção silogística do efetivo, e
sim a criação de uma nova noção de efetividade na qual o Eu como ser é base de si mesmo e já
traz em si as possibilidades de perceber-se como tal. É esse procedimento de Descartes que
oferece a base para todo o humanismo, ou seja, o homem é o critério da verdade; ele só chega a
essa verdade por meio da inspeção de si mesmo, e esta só é possível pela atividade da
representação pela qual esse Eu sujeito pode representar-se em diversos estados, simulá-los,
modificá-los etc., e, assim, conhece o mundo tendo a si mesmo como ponto de ancoragem,
descobrindo a representação como importante ferramenta do conhecimento.
Sem dúvida, Descartes não pensou o cogito como um silogismo, o que ele mesmo afirmou:

Quando alguém diz: Penso, logo existo, ele não conclui sua existência de seu pensamento
como pela força de um silogismo, mas como uma coisa conhecida por si. Ele a vê por
simples inspeção do espírito. Como se evidencia do fato de que, se a deduzisse por meio
do silogismo, deveria antes conhecer esta premissa: tudo o que pensa é ou existe. Mas, ao
contrário, esta lhe é ensinada por ele sentir em si próprio que não possa se dar que ele
pense, caso não exista. (DESCARTES, 1983, p. 158. Grifo meu).

52
De fato, o equívoco de Nietzsche é claro, mas o que o filósofo alemão buscava não era
uma correta compreensão da estrutura do pensamento do filósofo francês e de seu fantástico
ponto de fundamentação da filosofia moderna, mas, sim, compreender o que está por trás das
afirmações de Descartes. Afinal, muitas vezes Nietzsche afirmou que por trás de toda filosofia há
sempre interesses em jogo, há sempre moralidades a serem defendidas. Mais uma vez tem
destaque seu procedimento genealógico, e a resposta de Descartes é o mote do qual se pode valer
para compreender aonde Nietzsche queria chegar quando condenou o procedimento do “penso,
logo sou”.
O que para Nietzsche está pressuposto no cogito, em especial na parte destacada acima, na
qual se reafirma que não se pode pensar sem ser, é a ideia metafísica de substância: apenas
tomado como substância, o Eu pode ter certeza de si mesmo e ter a si mesmo em si mesmo como
ponto de apoio para qualquer reflexão. Para Nietzsche, Descartes pressupõe a existência do Eu
como certa quando o pensa como uma substância, ou seja, se ele é, então é algo, mas não algo
que pensa; primeiramente, uma substância, depois, uma substância que pensa (res cogitans).

Sujeito: esta é a terminologia de nossa crença em uma unidade subjacente a todos os


diversos momentos do mais elevado sentimento de realidade: nós entendemos essa crença
como efeito de uma causa, – nós acreditamos de tal modo nessa crença que nós, por causa
delas, imaginamos a “verdade”, a “efetividade”, a “substancialidade”. (NIETZSCHE, FP,
p. 27).

Em um primeiro momento, Nietzsche denunciou, novamente, a circularidade do cogito:


primeiro acredita-se que há uma unidade de sentimentos, vontade e pensamentos em nós; em
seguida, admite-se que, para que tal unidade exista, é necessário algo (o Eu sujeito) que a
assegure. Então, criam-se conceitos como o de substância, no qual se pode enquadrar esse Eu
sujeito. Mas esse Eu sujeito, como ponto de apoio, não é sólido o bastante, pois ele só domina o
próprio mundo que ele é, e o restante do mundo é sempre conhecido em relação à sua capacidade
racional. O que, por fim, garante que essa capacidade racional não seja enganada, desde que aja
com logicidade e retidão, é, em última instância, Deus. Nietzsche, então, afirma “in summa: é de
se duvidar que o ‘sujeito’ possa demonstrar-se a si mesmo – para isso necessitaria ele justamente
ter um firme ponto de apoio fora dele mesmo, e este falta.” (Idem p. 9).
Para Nietzsche, todo o empreendimento filosófico de Descartes baseia-se na crença
religiosa da existência de Deus, crença que o filósofo demonstrou ilógica quando mostrou sua

53
origem genealógica. Desse modo, o segundo ponto fundamental da concepção de um Eu sujeito
na filosofia moderna é a pressuposição de que existe um Deus verdadeiro, que nutre simpatia
pelos humanos a ponto de assegurar a veracidade de seu mundo, assegurando que as certezas
imediatas da consciência são o princípio da verdade. A substância sozinha não é capaz de
conhecer a verdade, pois sua razão pode ser conduzida a erro por um espírito maligno; assim, as
certezas dessa substância pensante (res cogitans) carecem e pressupõem Deus.
Não há um Eu por trás dos pensamentos: esse Eu, assim como os pensamentos dos quais
se supõe que ele seja causa, são subprodutos do conflito pulsional. Nas palavras de Onate:

Os componentes instintuais que dominam de maneira momentânea constroem uma densa


auto-imagem que passa a ser considerada enquanto totalidade do ego, rechaçando todas as
tendências impulsivas divergentes ao classificá-las como alteridade não assimilável.
(ONATE, 2003, p. 141).

Pelo que diz Onate, é possível constatar que há um ego, embora não seja o mesmo Eu
cartesiano, pois esse ego possível em Nietzsche é uma configuração momentânea das pulsões,
sujeita a constantes mudanças. Há, pois, na teoria de Nietzsche, espaço para se pensar a
personalidade e mesmo a formação de um sujeito e seus principais predicados, a razão e a
consciência, mas a principal característica desse sujeito é a impermanência. Aquilo em que esse
ego possível está radicado, o corpo, este sim é detentor de permanência, mas apenas uma
permanência aparente, uma permanência constatada em sua superfície, porque em sua
conformação ele se renova sempre em decorrência do conflito pulsional. O corpo, então, ocupa,
na teoria pulsional de Nietzsche, um local privilegiado: ele é o hospedeiro da consciência e a
grande razão humana.

2.2 – O corpo ou a grande razão

Um dos pontos mais radicais do pensamento nietzscheano, e que mais divergiu de toda a
tradição filosófica, foi sua compreensão do corpo. Marginalizado ao longo de toda a história e,
consequentemente, de toda a filosofia ocidental, o corpo tem sido visto como refugo do espírito
ou mesmo sua prisão – platonismo e cristianismo; seus instintos e percepções foram vistos como
caminho para o erro e a falsificação filosófica – racionalismo. Onde mereceu maior respeito foi
no empirismo, que considerou o que é apreendido por intermédio do corpo como a única verdade
54
possível. Nietzsche fez uma inversão da valoração da filosofia no que toca ao corpo: o corpo em
primeiro lugar, todo o resto depende dele, todo o resto está nele.
Se, como visto, a lógica foi fundamental para a manutenção da vida, a vida do corpo é que
foi mantida; então, tanto a lógica quanto a consciência foram fundamentais para a manutenção da
vida. Nietzsche não deu à consciência o majestoso lugar de centro de irradiação das decisões e
pensamentos mais elevados, mas apenas uma instância construída a partir de necessidades
individuais e coletivas, que atua como um espelho: reflete o que está à sua frente, mas esconde
tudo o que está atrás de si, inclusive esconde de si mesma e de outras consciências,
aparentemente iguais a si, sua origem no caos pulsional, sua total dependência do corpo e
também sua total ignorância do que se passa nesse corpo. A consciência não é a organizadora do
caos pulsional, mas apenas mais um de seus muitos subprodutos.
Para Nietzsche, essa consciência se desenvolveu como um elemento tardio no homem e,
como a lógica, desenvolveu-se em função da necessidade humana de sobrevivência. Como tudo
que se desenvolve tardiamente, ela traz em si os perigos da fraqueza e da inexperiência; afinal, se
a consciência surgiu em função da necessidade de conservação, a vida em sociedade foi
fundamental para que a espécie humana se conservasse e, como tal, precisava de um conjunto de
signos que lhe permitissem uma comunicação rápida, uma rápida troca de impressões e
conclusões, de modo que os homens pudessem perseverar na existência em meio a uma natureza
hostil.
É sabido que Nietzsche não diferenciou a espécie humana de qualquer espécie animal,
tomando os homens como outros animais; nem mesmo a consciência é ponto de distinção, pois,
para ele, toda pulsão representa uma consciência, e o que é chamado de consciência nada mais é
do que a imposição de uma pulsão ou conjunto de pulsões sobre os demais. Os animais também
têm consciência, porém, neles, ela não chegou aos níveis de hipertrofia a que chegou na espécie
humana. O homem não é o produto final da natureza ou da evolução, ao contrário: o homem é o
pior animal, aquele que instintivamente é o mais fraco, o mais dependente dos outros membros
do seu bando e é por isso que o homem carece tanto da sua consciência hipertrofiada. Por trás
dessa consciência hipertrofiada se esconde um corpo fraco e um animal que carece
constantemente da proteção dos outros animais de seu bando.
Na segunda dissertação da A genealogia da moral (§ 16) Nietzsche apresentou sua
intrigante ideia de que a consciência humana teria nascido no convívio social, por meio da

55
espiritualização da crueldade; a partir do momento em que o homem não podia mais manifestar
externamente essa crueldade, ela passou a manifestar-se internamente. O homem, até então, era
uma besta incontrolável sobre a qual reinavam concomitantemente todas as pulsões. Com a
espiritualização da crueldade, determinado grupo pulsional voltou-se sobre os demais, dominou-
os, subjugou-os e assimilou-os.26 Quando essas pulsões adquiriram características organizadoras,
racionais e pacíficas, no confronto com as demais, subjugando-as, elas criaram um mecanismo de
comunicação rápida com os outros elementos da mesma espécie, como forma de se protegerem
dos perigos externos e também dos perigos que alguns membros da comunidade poderiam
significar. Criaram também uma importante barreira de autoproteção, a consciência, que é, sem
dúvida, uma barreira de proteção das pulsões dominantes. O filósofo afirma que

a consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte,


também o que nele é mais inacabado e menos forte. Do estado consciente vêm inúmeros
erros que fazem um animal, um ser humano, sucumbir antes do que seria necessário (...).
Não fosse tão mais forte o conservador vínculo dos instintos, não servisse no conjunto
como regulador, a humanidade pereceria por seus juízos equivocados e seu fantasiar de
olhos abertos, por sua credulidade e improfundidade, em suma, por sua consciência; ou
melhor: sem aquele, há muito ela já teria desaparecido! (NIETZSCHE, GC, p. 62).

Nietzsche parece contradizer-se: como é possível que a consciência seja tão fraca e
perigosa para a espécie e, ao mesmo tempo, fundamental para sua manutenção? Não há
contradição. Ela é, de fato, isso tudo. A contradição só aparece se se ignora que a consciência é
apenas aquele espelho que reflete algo, mas que esconde muito; ela não é a governadora humana,
mas apenas uma aparência imposta pelas pulsões dominantes: por trás da consciência, estas
continuam agindo e dominando. De todo o pensamento humano, apenas emergem à consciência
aqueles mais superficiais e simples, que podem ser rapidamente cambiáveis e igualáveis a outros
em outros indivíduos. Nas palavras de Nietzsche:

(...) a maior parte do pensamento consciente deve ser incluída entre as atividades
instintivas, até mesmo o pensamento filosófico (...) em sua maior parte, o pensamento
consciente de um filósofo é secretamente guiado e colocado em certas trilhas pelos seus
instintos. Por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem
valorações, ou, falando mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de
uma determinada espécie de vida. (NIETZSCHE, ABM, p. 11).

26
Deste ponto em diante, mencionar-se-á rapidamente a luta das pulsões entre si, o que será retomado no próximo
tópico deste capítulo. Para tratar desse assunto, certa linguagem estratégica é inevitável; porém, ela sempre deixa
subentendida uma racionalidade, que no caso das pulsões não existe. Seu combate é irracional e muitas tentativas
fracassam ou muitos acontecimentos aleatórios ocorrem nessas lutas.

56
Se a consciência é apenas a aparência e travestimento da realidade, que é o caos pulsional,
seguir o fio condutor da consciência como forma de autoconhecimento é, inegavelmente, seguir o
caminho do erro. Em um fragmento não publicado, Nietzsche afirmou que seguir o caminho do
corpo como elemento mais estudado e conhecido para se chegar àquilo menos conhecido, menos
estudado e também menos poderoso é o melhor método para o estudo do homem (NIETZSCHE,
KSA XII, 2[91], p. 106). Quando se busca a consciência como ponto de apoio para o
conhecimento de si, chega-se, no máximo, a um conhecimento do que em si é vulgar, não único e
coletivo. Essa é outra crítica, bem mais sutil, ao método cartesiano, que parte de sua própria
consciência e da constatação de si como algo que pensa e duvida, para chegar, então, à verdade.
Sentencia, por fim, o filósofo alemão contra o francês:

(...) a consciência não faz parte realmente da existência individual do ser humano, mas
antes daquilo que nele é natureza comunitária e gregária; que, em conseqüência, apenas
em ligação com a utilidade comunitária e gregária ela se desenvolveu sutilmente, e que,
portanto, cada um de nós, com toda a vontade que tenha de entender a si próprio da
maneira mais individual possível, de “conhecer a si mesmo”, sempre traz à consciência
justamente o que não possui de individual, o que nele é “médio”. (NIETZSCHE, GC, p.
249).

O caminho para o conhecimento de si, via consciência, está interditado. Aliás, a ideia
tradicional de um conhecimento de si não faz sentido para Nietzsche, pois quando se fala em um
“conhecimento de si”, subentende-se uma consciência pertencente a um Eu, que investiga o que
esse Eu é mais intimamente. Todavia, há, sim, uma maneira de conhecer o humano, que é
conhecê-lo em sua totalidade, em seu corpo; mas mesmo essa via é insuficiente, pois busca-se
conhecer para comunicar, ou seja, mergulha-se no caos pulsional e vê-se lá um mundo incrível,
mas que, quando trazido para a consciência e para a linguagem, é apenas opaco e superficial.
Mesmo assim, o filósofo exigiu de si mesmo a retidão de falar sobre como é possível conhecer o
humano.

2.2.1 – Da consciência ao si

A partir da noção de corpo como grande razão, a teoria das pulsões de Nietzsche atinge o
ápice. O mesmo corpo que Nietzsche nomeava comumente como Selbst, o self inglês e o si da

57
língua portuguesa. Porém, o si não é apenas o corpo físico em sua constituição fisiológica. O si é
o corpo enquanto arena de combate das pulsões e ao mesmo tempo reflexo desse combate, pois é
ele27 que cria o corpo, que o mantém e que o renova.
É justo que se pergunte pelo problema que vem norteando todo este capítulo: colocar o si
como espaço privilegiado do combate pulsional e ao mesmo tempo como criação desse combate
não é o mesmo que torná-lo um sujeito nos moldes cartesianos? Ou seja, o si não se torna ao
mesmo tempo causa e consequência de si mesmo, como o Eu autocognoscente? Novamente
evoca-se a assertiva nietzscheana de que “definível é apenas aquilo que não tem história”
(NIETZSCHE, GM, p. 68): há uma história da constituição de cada si a partir das pulsões,
embora essa história não transpareça para a consciência, que, enquanto rede de proteção do grupo
pulsional que comanda, age melhor sem tal conhecimento. Algumas proposições de Nietzsche
trazem implícitas em si uma crítica mais complexa do que deixam transparecer. Quando se afirma
que o si é a arena das pulsões e que, ao mesmo tempo, é formado por elas, há embutida nessa
proposição outra crítica, já vista anteriormente: a crítica da lógica. Apenas o pensamento lógico
faz com que uma coisa derive da outra, apenas na lógica silogística pode-se concluir algo a partir
de premissas. Não há entre o si e as pulsões uma relação de causa e efeito, mas de simultaneidade.
Para Nietzsche, a anedota em torno da anterioridade do ovo ou da galinha não faz sentido,
pois a pergunta já está contaminada por uma estrutura gramatical que, para Nietzsche, era a
própria linguagem da metafísica, com a suposição de que, necessariamente, no caso do ovo e da
galinha, um deve ter antecedido o outro; por isso o filósofo foge a tal estrutura sentenciando a
simultaneidade das pulsões e do si. Se, todavia, nossas mentes já estão irreversivelmente
contaminadas pelas estruturas de pensamento da metafísica, e falar é falar com a linguagem da
gramática, ou seja, com a linguagem da relação sujeito/objeto, então, ao menos no discurso, não
se pode fugir a essas relações causais. Desse modo, apenas para fins de entendimento, será
admitida uma relação causal entre pulsões e si, na qual as primeiras dão origem ao segundo.
Novamente, colocando o si em primeiro plano, corre-se o risco de esquecer que ele é
apenas uma máscara e o que está por trás dele. É o que fez Miller quando colocou o corpo como
ponto central da filosofia de Nietzsche, inclusive como o ponto a partir do qual Nietzsche foge de
um pensamento ontologizante, como supunha Heidegger:

27
A frase é propositalmente ambígua: nela não se sabe o que cria o corpo, pois o ele, em destaque, pode significar
tanto o corpo quanto o si. O problema lógico da anterioridade na relação si/corpo será discutido adiante.

58
Nietzsche continua focado na idéia de organismo, tanto positivamente, como auto-
regulável, sem propósitos (purposiveness) e auto-suficiente, que regula o modo como nós
desejamos (desire), quanto negativamente, como um obstáculo a uma ontologia centrada
na vontade de poder.28 (MILLER, 2006, p. 69. Tradução minha).

Se, de fato, Nietzsche tivesse se focado no corpo, inegavelmente teria uma grande defesa
quanto à interpretação de que a vontade de poder como ser dos entes (segundo Heidegger) torna o
pensamento de Nietzsche uma ontologia. Porém, deixaria de ser uma ontologia da vontade de
poder para tornar-se uma ontologia do corpo, ou uma ontologia substancialista, porque o corpo,
então, estaria colocado não como o ser do ente humano, mas como o próprio humano; de fato, ele
não seria o fenômeno de uma ideia, mas seria a encarnação da própria ideia, a realidade final e
única do humano. E esse, sem dúvida, não é o pensamento do filósofo alemão.
Outro perigo interpretativo a ser evitado é a suposição de que, uma vez instaurado o corpo
com sua consciência, esta se tornaria reguladora, como se o caos pulsional, cansado dos seus
combates, delegasse à consciência a responsabilidade de geri-lo dali em diante e desse a cada um
o que lhe é de direito. Deve-se também evitar as categorizações relativas ao corpo, que o
tornariam uma coisa, a consciência outra, o pensamento outra etc. Tudo isso são apenas nomes
distintos para uma só coisa: os resíduos dos conflitos pulsionais. É isso que faz Gerhardt, quando
afirma que

O “Si” (Self) é tratado como se ele tivesse a mesma dignidade ontológica que o “corpo”.
De fato, o “si” revela-se completamente como o verdadeiro mediador entre corpo e ego.
Como ficará aparente, no fim não é nada além do si que mantém corpo e alma, ou corpo e
ego, juntos.29 (GERHARDT, 2006, p. 274. Tradução minha).

Para Nietzsche, o que o comentador faz é o mesmo que o povo quando afirma que o
trovão é uma coisa e o raio outra, ou seja, duplica o mesmo fenômeno para poder retirar dele uma
relação causal. O corpo (estrutura fisiológica) não é o mediador entre o si e o ego, porque corpo,
si e ego são, para o filósofo de Zaratustra, uma coisa só. No máximo, se poderia fazer uma sutil
diferença: quando Nietzsche usou o si, geralmente referiu-se à totalidade do corpo, contendo aí o

28
Nietzsche continues to focus on the idea of the organism, both positively as a self-regulating purposiveness and
selfsufficiency that regulates the way in which we desire, and negatively as an obstacle to a force-centered ontology
of will to power.
29
“Self” is treated as if it had the same ontological dignity as “body.” In fact, the “self” proves to be the thoroughly
real mediator between body and ego. As will become apparent, in the end it is nothing other than the self that holds
body and soul, or body and ego, together.

59
conflito pulsional e o que caracteriza o corpo como racionalidade máxima, o que o filósofo
nomeou como grande razão.
A dignidade concedida ao si não se dá em função de uma suposta mediação, como sugere
Gerhardt, mas de ele (o si) ser a maneira mais direta para que se fuja às armadilhas da moderna
filosofia do sujeito e tudo o que lhe é correlato, em especial a substância que constitui o sujeito, a
consciência que identifica o sujeito, e a razão, instrumento de autoverificação desse sujeito. Para
Nietzsche, tudo isso é a grande razão do corpo.
Em um dos mais belos discursos de Zaratustra (Dos desprezadores do corpo), o filósofo
alemão clarificou as relações entre corpo, si, ego e razão, mostrando o que é a grande razão do
corpo.

“Corpo eu sou, e alma” – assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as
crianças?
Mas o desperto e sabedor diz: eu sou inteiramente corpo, e nada além; e alma é apenas
uma palavra para alguma coisa no corpo.
O corpo é uma grande razão, uma pluralidade com um único sentido, uma guerra e
uma paz, um rebanho e um pastor. Um instrumento do teu corpo é também tua pequena
razão, meu irmão, à qual chamas “espírito” – um pequeno instrumento e brinquedo de
tua grande razão.
“Eu”, tu dizes e estás orgulhoso desta palavra. Porém maior, embora tu não queiras
acreditar, – é o teu corpo e sua grande razão: ela não fala eu, mas faz o eu.
O que os sentidos sentem, o que o espírito conhece, nunca têm seu fim em si mesmo. Mas
sentidos e espírito te persuadiram de que eles são o fim de todas as coisas: tão vaidosos
são eles. Instrumentos e brinquedos são sentido e espírito: atrás deles encontra-se o si. O si
também procura com os olhos dos sentidos; ele também ouve com os ouvidos do espírito.
Sempre o si ouve e procura: ele compara, sobrepuja, conquista, destrói. Ele controla e é o
controlador do ego também.
Atrás dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, lá está um poderoso governante,
um sábio desconhecido – cujo nome é si. Em teu corpo ele habita; ele é o teu corpo.
Há mais razão no teu corpo do que em tua melhor sabedoria. E quem sabe por que teu
corpo carece precisamente de tua melhor sabedoria?
Teu si ri de teu eu e seus altivos pulos. “Que são para mim estes pulos e vôos do
pensamento?” diz para consigo. “Um desvio para os meus fins. Eu sou as andadeiras do
eu e o fomentador dos seus conceitos.”
O si fala para o ego, “Sinta dor aqui!” Então o ego sofre e pensa em como ele pode não
sofrer mais – e é por isso que ele é feito para pensar.
O si fala para o ego, “Sinta alegria aqui!” Então o ego se alegra e pensa em como pode
alegrar-se novamente e é por isso que ele é feito para pensar.
(…) O si criador criou apreço e desprezo; ele criou prazer e dor. O corpo criador criou o
espírito como uma mão para sua vontade. 30 (NIETZSCHE, KSA IV, Za – Dos
desprezadores do corpo, p. 39-40. Tradução e grifos meus).

30
„Leib bin ich und Seele“ — so redet das Kind. Und warum sollte man nicht wie die Kinder reden?
Aber der Erwachte, der Wissende sagt: Leib bin ich ganz und gar, und Nichts ausserdem; und Seele ist nur ein Wort
für ein Etwas am Leibe.
Der Leib ist eine grosse Vernunft, eine Vielheit mit Einem Sinne, ein Krieg und ein Frieden, eine Heerde und ein
Hirt.

60
Pelas palavras de Nietzsche, colocadas na boca de seu personagem filósofo, constatam-se
alguns pontos bastante interessantes no encerramento desse tópico: um deles é que o homem é
apenas corpo, e a alma alguma coisa nesse corpo. Dizer que a alma é alguma coisa nesse corpo é
descentralizar a alma e reduzir sua importância de maneira bastante significativa: ela não é o
centro desse corpo, mas apenas alguma coisa nele, ao lado de centenas, milhares de outras coisas.
Nietzsche não desprezou o conceito de alma. Ele o admitiu, pelo contrário, como interessante
hipótese, mas não alma no sentido monádico ou atomístico, e sim ideias diversas de almas, como
“alma mortal” ou pluralidade de afetos em um mesmo corpo, a ponto de utilizar esse conceito
para uma importante definição do corpo, na qual o filósofo afirma que nosso corpo é uma
estrutura social de muitas almas (NIETZSCHE, ABM p. 19 e p. 25). Desse modo, a alma pode
ser, no pensamento de Nietzsche, no que se refere à sua teoria das pulsões, outro sinônimo para o
si.
Do corpo como estrutura social de muitas almas, volta-se ao texto de Zaratustra para tirar
dele outra conclusão: o corpo é uma pluralidade, porém, com sentido único. Como é possível?
Será que todas essas muitas almas trabalham em um conjunto harmônico? É possível interpretar
essas palavras de Zaratustra de duas maneiras complementares: a primeira é que o sentido único
do caos pulsional é o poder (vontade de poder) – daí o personagem poder afirmar que essa

Werkzeug deines Leibes ist auch deine kleine Vernunft, mein Bruder, die du „Geist“ nennst, ein kleines Werk- und
Spielzeug deiner grossen Vernunft.
„Ich“ sagst du und bist stolz auf diess Wort. Aber das Grössere ist, woran du nicht glauben willst, — dein Leib und
seine grosse, Vernunft: die sagt nicht Ich, aber thut Ich.
Was der Sinn fühlt, was der Geist erkennt, das hat niemals in sich sein Ende. Aber Sinn und Geist möchten dich
überreden, sie seien aller Dinge Ende: so eitel sind sie.
Werk- und Spielzeuge sind Sinn und Geist: hinter ihnen liegt noch das Selbst. Das Selbst sucht auch mit den Augen
der Sinne, es horcht auch mit den Ohren des Geistes.
Immer horcht das Selbst und sucht: es vergleicht, bezwingt, erobert, zerstört. Es herrscht und ist auch des Ich's
Beherrscher.
Hinter deinen Gedanken und Gefühlen, mein Bruder, steht ein mächtiger Gebieter, ein unbekannter Weiser — der
heisst Selbst. In deinem Leibe wohnt er, dein Leib ist er.
Es ist mehr Vernunft in deinem Leibe, als in deiner besten Weisheit. Und wer weiss denn, wozu dein Leib gerade
deine beste Weisheit nöthig hat?
Dein Selbst lacht über dein Ich und seine stolzen Sprünge. „Was sind mir diese Sprünge und Flüge des Gedankens?
sagt es sich. Ein Umweg zu meinem Zwecke. Ich bin das Gängelband des Ich's und der Einbläser seiner Begriffe.“
Das Selbst sagt zum Ich: „hier fühle Schmerz!“ Und da leidet es und denkt nach, wie es nicht mehr leide — und dazu
eben soll es denken.
Das Selbst sagt zum Ich: „hier fühle Lust!" Da freut es sich und denkt nach, wie es noch oft sich freue — und dazu
eben soll es denken.
Den Verächtern des Leibes will ich ein Wort sagen. Dass sie verachten, das macht ihr Achten. Was ist es, das Achten
und Verachten und Werth und Willen schuf?
(…) Der schaffende Leib schuf sich den Geist als eine Hand seines Willens.

61
pluralidade tem um único sentido, que é seu direcionamento ao poder. Usando uma linguagem
inadequada, porém ilustrativa, pode-se afirmar que a vontade de poder é o modo único do caos
pulsional. A outra maneira de interpretar a afirmação de Zaratustra é lembrar que, no embate
entre as pulsões, sempre surge uma ou um conjunto delas que domina e subjuga as demais, tendo
aí, mesmo que temporariamente, a ideia de sentido único. Como foi dito, essas duas ideias podem
ser compreendidas conjuntamente: se o modo do caos pulsional é vontade de poder, essas pulsões
lutam entre si, para em um momento, opondo-se às outras, subjugá-las e impor a elas o seu
comando e os seus fins únicos.
Outra conclusão importante a que se chega pela análise das palavras de Zaratustra é que o
Eu não é o centro dos pensamentos, da vontade ou dos sentimentos. Ele é apenas uma peneira na
qual muitas vontades diferentes entram, mas da qual apenas algumas saem e manifestam-se na
realidade. Ele, o Eu, acha que tudo isso lhe pertence, que a vontade lhe pertence, que os
sentimentos lhe pertencem; porém, ele apenas obedece às ordens que lhe são dadas pelo si, o si
ordena que ele sinta dor e ele sente, o si ordena que ele se alegre e ele se alegra. Desse modo, os
pensamentos que chegam ao eu e à consciência do eu nada mais são do que aquilo que o si deixa
que chegue até ele.
É sabido que o si, como afirma Zaratustra, não diz eu, mas faz o Eu; mas esse Eu não lhe
é dispensável. Seria errôneo imaginar que o filósofo alemão desprezasse o Eu e o achasse
desnecessário. O Eu é fundamental para a manutenção da organização pulsional; sem ele como
autoimagem desse caos constante, as pulsões viveriam uma guerra de morte umas contra as
outras. Se nunca nenhuma das pulsões ou grupo de pulsões viesse ao comando e estabelecesse
uma hierarquia, então, esse caos pulsional significaria a ruína de si e, consequentemente, do
corpo e da vida. É necessário, novamente, entender que, por mais que a vontade de poder seja o
modo de vida das pulsões, é possível e até necessário que haja alguma ordem entre elas, pois para
Nietzsche a total ausência de organização pulsional é sinal de doença e degenerescência:

O conflito das paixões, a dualidade, a triplicidade, a multiplicidade de “almas em um


peito”: nada saudável, ruína interior, afrouxamento, revelando e aumentando a divisão e o
anarquismo interno –: a não ser que uma paixão se torne finalmente Senhor (Herr).
Retorno da saúde.31 (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[157], p. 342. Tradução minha).

31
Das Gegeneinander der Leidenschaften, die Zweiheit, Dreiheit, Vielheit der „Seelen in Einer Brust“: sehr
ungesund, innerer Ruin, auseinanderlösend, einen inneren Zwiespalt und Anarchismus verrathend und steigernd —:
es sei denn, daß eine Leidenschaft endlich Herr wird. Rückkehr der Gesundheit.

62
A ordenação pulsional está na base da admiração que Nietzsche sentia por alguns homens,
por exemplo, Napoleão Bonaparte e César Bórgia, que, para o filósofo, representavam exemplos
perfeitos de pessoas pulsionalmente bem constituídas, pessoas nas quais um conjunto pulsional
tinha o comando sobre o restante do conjunto. Desse modo, a manutenção do si exige a criação
do Eu; exige, inclusive, que esse Eu pense que é o criador do si. Para o filósofo, a existência é
uma criação constante de aparências. Giacoia afirma que

A consciência é, então, apenas a “classe dirigente”, a função psíquica superior, de regência


do conjunto, de governo da “coletividade”. Ela se identifica com os sucessos da
comunidade, que ela representa, com os êxitos de que ela é co-partícipe, apoiando-se e
equilibrando-se sobre um prodígio de força e “racionalidade” que ela não apenas não
domina como, em grande medida, desconhece. E Nietzsche chega a admitir que este
desconhecimento possa pertencer às condições sob as quais pode haver direção, governo e,
com eles, êxitos da “comunidade”. (GIACOIA, 2001, p. 72).

Esse Eu, que Zaratustra afirma, foi feito para pensar e é também fundamental para o
pensar, pois pensar é aplicar regularidade, mesmo imaginária e fugidia, ao caos do mundo
externo, como se verá no próximo item. A vontade de poder é essa impressão das especificidades
das pulsões dirigentes no mundo, que, para Nietzsche, é outro amontoado caótico de pulsões; e
nisso o Eu é inigualável, pois sua fundação, calcada na lógica, é um esforço de subsunção rápida,
de condução da semelhança à igualdade, de regulamentação e constante forjar identidades e
igualdades onde há apenas uma diferença radical, irredutível à igualdade e à semelhança sem os
esforços do Eu. Dito mais uma vez: o Eu não é dispensável. Porém, a sabedoria desse Eu não é
nada se comparada à do si. O corpo é muito mais sábio que o Eu, que se supõe comandante do
corpo. Esta é uma experiência acessível a qualquer pessoa: a real incapacidade do Eu de
comandar o corpo em momentos específicos: o controle do medo em situações de perigo, o
controle da fome ou do desejo sexual, o controle da dor; todas essas são experiências
contraditórias e intensas, nas quais o Eu assiste, assustado, à sua incapacidade de comandar o
corpo, porém, o si, assumindo o controle do conjunto, busca preservar todos, incluindo o seu
próprio Eu.
A sabedoria do corpo é, portanto, ampla e rica em travestimentos, fugas, recuos, avanços e
tudo o mais que é necessário à sua expansão e ao seu aumento de forças, tudo, enfim, que é
necessário para que esse si lance suas vontades e perspectivas de mundo sobre tudo aquilo de que
pode se assenhorear. As operações do Eu são apenas uma das muitas formas pelas quais o si

63
busca aumentar seu domínio e poder por meio do que é o modo único desse caos pulsional: a
vontade de poder. No item seguinte será analisado o ponto pelo qual, tradicionalmente, iniciam-
se as discussões sobre a constituição da subjetividade humana na filosofia de Nietzsche, ou seja, a
vontade de poder, que foi deliberadamente deixada para o final.

3 – Vontade de poder e condição de vida

A vontade de poder é um dos assuntos mais estudados no pensamento de Nietzsche. Suas


interpretações são as mais diversas, indo desde a leitura ontologizante de Heidegger até a
interpretação política de Pearson. Obviamente, tal profusão de estudos não é sem motivo: a
vontade de poder é sem dúvida um conceito inovador na tradição filosófica ocidental e ponto
privilegiado para a compreensão do pensamento de Nietzsche. Neste trabalho, como foi dito,
optou-se por abordá-la dentro da teoria pulsional, sabendo, todavia, que há outras maneiras de
interpretá-la. Até agora não foi abordada diretamente, somente tangenciando sua realidade e
mencionando-a, porque tentar-se-á realizar um novo exercício hermenêutico da vontade de poder,
associando-a aos conceitos de condição de nascimento, condição de vida e condição de morte.
Para apresentar esses conceitos é importante verificar o modo como a vontade de poder aparece
no pensamento de Nietzsche.

3.1 – Vontade de poder ou o mundo como interpretação das pulsões

Tendo sido profundamente influenciado por Schopenhauer desde sua juventude, era quase
inevitável que Nietzsche trouxesse em seu pensamento as marcas de seu primeiro mestre. Embora
a vontade de poder não reflita mais o pensamento schopenhauriano, a palavra vontade persistiu
no vocabulário de Nietzsche. Encontram-se nas obras de seu período intermediário os primeiros
rudimentos do que seria a sua teoria da vontade de poder. Para referir-se às intuições que já tinha
de que o mundo é intrinsecamente vontade de poder, o filósofo usou diversas expressões, como
sentimento de poder (AU, p. 108) e desejo de poder (GC, p. 64). Contudo, a primeira utilização
da expressão vontade de poder (Wille zur Macht) apareceu em um texto dos fragmentos póstumos,
do final de 1876 ao verão de 1877, em que Nietzsche afirmou que o medo e a vontade de poder

64
são suficientes para explicarem nossa consideração pelas opiniões alheias, sendo o medo um
princípio negativo e a vontade de poder um princípio positivo (NIETZSCHE, KSA VIII, 23[63],
p. 425). Esse foi o período em que Nietzsche escreveu suas Considerações extemporâneas,
período anterior a Humano, demasiado humano; por isso, a vontade de poder tem ainda um
sentido utilitário, juntamente com o medo.
A primeira vez em que o conceito apareceu de modo definitivo, como hoje é entendido,
foi em A gaia ciência, no quinto livro, introduzido na obra em sua segunda edição, em 1887,
período de A genealogia da moral. Antes disso, o conceito apareceu de maneira relativamente
próxima ao uso maduro que Nietzsche lhe deu em um fragmento não publicado do verão de 1880
(NIETZSCHE, KSA IX, 4[239], p. 159).
Como se vê, a elaboração do conceito é relativamente tardia, mas a ideia de que o poder
associado à vontade formaria um novo conceito já aparecia desde a juventude de Nietzsche. Mas
por que poder? Foi dito anteriormente que a lógica, a consciência e o Eu são criações do si na sua
busca para sobreviver. Contudo, sobrevivência é apenas uma etapa do que realmente busca toda e
qualquer pulsão: elas buscam poder. Na teoria nietzscheana das pulsões, tudo o que se refere às
pulsões, refere-se direta ou indiretamente à sua constante luta por mais poder. Manter-se vivo é
apenas uma pré-condição em um organismo para que busque mais poder; manter-se vivo, porém,
não basta. Por isso, foi dito anteriormente que a vontade de poder é o modo único do caos
pulsional. Só há conflito entre as pulsões porque cada uma delas busca impor-se sobre as demais,
absorvê-las, subjugá-las, transformá-las em suas subalternas. Assim, a vontade de poder descreve
o que para Nietzsche é o movimento da vida: crescimento e expansão incessantes em busca de
mais poder.
Poder aqui é entendido das mais diversas maneiras; nele estão incluídos poder físico e
político, mas não apenas. Querer reduzir a vontade de poder a uma busca por força físico-
muscular ou poder político seria reduzi-la a apenas duas de suas muitas interpretações. Mesmo
quando uma pulsão, ou indivíduo como si, conjunto de pulsões, submete-se a outro, essa
submissão é uma estratégia da vontade de poder atuando nesse indivíduo: submete-se para no
futuro submeter.
Spinks afirma que a teoria da vontade de poder está dividida em três concepções básicas:
a primeira é a de que a vida é um campo de luta constante entre as pulsões, que criam, assim, a
vontade de poder, de onde deriva também a consciência humana e seus efeitos; a segunda é a de

65
que o objetivo da vida não é nem autopreservação nem iluminação moral ou espiritual, mas o
aumento do poder, e que o impulso-guia da vida (life-drive) é a acumulação de força e a
superação de resistências; o terceiro elemento é o de que a vontade de poder interpreta o mundo
hierarquizando as diferentes forças e conjuntos de forças que constituem o humano (SPINKS,
2003, p. 137). Spinks nos oferece um ótimo caminho para seguir, na busca de uma melhor
compreensão da vontade de poder, a saber: a) apresentação da vida como vontade de poder; b) o
movimento pulsional dá-se em direção ao poder, não em direção à conservação; c) a vontade de
poder não é um princípio utilitário, ou seja, não trabalha em uma relação prazer/desprazer, mas
age sempre em busca de novos conflitos que, superados, aumentam a sensação da força.
A caracterização da vida como vontade de poder produz, muitas vezes, tonalidades
dramáticas no pensamento de Nietzsche. Se a vontade de poder é resultante do caos pulsional e
tem como modo de funcionamento o crescimento e a expansão, é de se supor que também na vida
isso esteja presente. Quando Nietzsche criticou a moral, em especial a moral cristã, ele o fez em
vista do que chama de falseamento da vida e também de contranatureza: impor a si e ao mundo
uma moral, e tomá-la como fundamento da vida, é contrário à natureza humana (caos pulsional),
principalmente uma moral do perdão e do amor ao próximo acima do amor de si. Porém, o
filósofo não perde de vista que se essa moral prega isso, o modo como se impôs às demais não foi
esse: as morais sempre se impõem umas às outras como as pulsões no interior de um organismo:
por meio de disputas de força nas quais acontecem submissões e surgem comandantes e
comandados. Desse modo, enxergar na vida o constante movimento da vontade de poder não é
tornar a vida mais terrível do que ela é. Apenas a moral cristã nos fez acreditar em outro mundo
em que isso não aconteceria, mas essa moral também se impôs às outras e tratou seus dissidentes
da mesma maneira. Por isso, Nietzsche afirmou:

(...) a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais
fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais
comedido, exploração (...). A “exploração” não é própria de uma sociedade corrompida,
ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive, como função orgânica básica,
é uma conseqüência da própria vontade de poder, que é precisamente vontade de vida.
Supondo que isto seja uma inovação como teoria – como realidade é o fato primordial de
toda a história: seja-se honesto consigo mesmo até esse ponto. (NIETZSCHE, ABM, p.
171).

Os contemporâneos defensores da democracia e dos direitos humanos espantariam-se com


as palavras de Nietzsche, acusando-o de defensor da barbárie. Contudo, Nietzsche não está, de

66
maneira alguma, fazendo apologia de tal comportamento, está apenas assumindo que
historicamente esse foi, até o momento em que ele viveu, e infelizmente até o momento em que
vivemos, a maneira pela qual os seres humanos interagiram uns com os outros. Embora
politicamente tal assunção seja dolorosa, como diz o filósofo, há de ser honesto até esse ponto.
Mesmo as teorias que mais pregaram a igualdade ou a liberdade desandaram em autoritarismos
individualistas e tirânicos. Um dos mais importantes episódios da história moderna, que
Nietzsche conheceu e não se cansou de criticar, foi a Revolução Francesa: as loucuras que
Robespierre cometeu em nome da igualdade e da liberdade dão prova das afirmações de
Nietzsche. Houve outras experiências que Nietzsche não conheceu, como o totalitarismo nazista,
que matou, trucidou e explorou em nome de uma suspeita beleza, a tirania socialista de Stálin e
outros tiranos espalhados pelo mundo que, em nome da igualdade, também perseguiram,
mataram e exploraram. Mesmo a atual expansão da democracia, com a ofensiva dos Estados
Unidos da América e de seus aliados no Oriente Médio, é feita por meio da guerra, da violência e
da exploração, em uma contraditória, porém verdadeira, democracia absolutista, por mais
paradoxal que isso possa ser. Essa é a característica básica da vida, embora Nietzsche aposte que
a vontade de poder possa manifestar-se de formas menos drásticas e dolorosas, como a arte, a
conversão e o convencimento. Desse modo, para Nietzsche, a vontade de poder seria uma teoria
unificadora capaz de explicar tudo o que está envolvido e pressuposto no fenômeno vida, como
afirmou em Além do bem e do mal:

(...) – Supondo, finalmente, que se conseguisse explicar toda a nossa vida instintiva como
a elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade – a vontade de poder, como é
minha tese –; supondo que se pudesse reconduzir todas as funções orgânicas a essa
vontade de poder, e nela se encontrasse também a solução para o problema da geração e
nutrição32 – é um só problema –, então se obteria o direito de definir toda força atuante,
inequivocamente, como vontade de poder. O mundo visto de dentro, o mundo definido e
designado conforme o seu “caráter inteligível” – seria justamente “vontade de poder”, e
nada mais. (Idem, p. 43).

Retomando a segunda proposição de Spinks, tem-se a ideia de que a vida se move em


direção a um aumento de poder, e não em direção à conservação. Nesse ponto, Müller-Lauter está
de acordo com Spinks quando afirma que a

32
Em alguns textos não publicados, Nietzsche usa a alimentação celular como forma de explicação da vontade de
poder. Lá o filósofo diz que, quando o protoplasma estende seus pseudópodes para trazer algo para dentro de si, não
o faz para se manter. Ele não tem consciência do que é se manter, para que se mova em tal direção; o faz pela
vontade de poder, sendo a nutrição apenas uma consequência.

67
vontade de poder procura dominar e alargar incessantemente seu âmbito de poder.
Alargamento de poder se perfaz em processos de dominação. Por isso querer-poder
(Macht-wollen) não é apenas “desejar, aspirar, exigir”. A ele pertence o “afeto do
comando”. Comando e execução pertencem ao um da vontade de poder. Assim, “um
quantum de poder (...) é designado por meio do efeito que ele exerce e a que resiste.”
(MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 54-5).

Como foi dito anteriormente, Nietzsche opôs-se ao darwinismo, pois para o filósofo
alemão apenas uma vida decadente e enfraquecida busca a conservação. Ele afirmou, reiteradas
vezes, que onde encontrou exuberância na vida encontrou a busca pelo poder, por um quantum a
mais de poder. No entanto, mesmo essa vida decadente busca poder, sendo a conservação uma
fase transitória e às vezes aparente. Isso pode parecer contraditório, porém, não o é. Se a
conservação é uma etapa na busca pelo poder – conserva-se aquilo que está vivo 33 –, é
fundamental que um organismo enfraquecido primeiro se conserve para, em seguida, buscar o
poder. Desse modo, a vontade de poder não é uma característica das pulsões fortes e dominantes
ou dos homens fortes e dominantes: ela é uma característica geral de tudo que vive.
Mais uma vez a crítica da moral aponta para isso. Em um comportamento classificado por
Nietzsche como vermiforme, o autor afirma que o verme, quando é pisado, encolhe-se para não
ser pisado novamente. Enquanto os moralistas classificariam isso como humildade, ele via como
vontade de poder; o verme busca preservar-se, mas única e tão somente para poder, em alguma
ocasião, exercer poder e buscar mais poder. Trazendo a ideia para o campo das relações humanas,
o filósofo afirma: “Onde eu vi vida, eu encontrei vontade de poder: e mesmo na vontade dos
serviçais eu encontrei vontade de poder. O homem submete-se aos grandes, para ser senhor dos
pequenos: esse princípio nos convence à submissão.”34 (NIETZSCHE, KSA X, 13[10], p. 459.
Tradução minha).
Outro exemplo mais claro de que a vontade de poder não é uma exclusividade dos fortes –
e que os fracos, inclusive, podem se submeter os fortes – aparece na primeira dissertação de A

33
Em textos não publicados, Nietzsche especulou também sobre a possibilidade de que a vontade de poder servisse
como base de explicação, inclusive, daquilo que não é vivo, ou seja, do inorgânico, afirmando que entre um e outro
há apenas uma diferença de graus de vontade de poder; porém, esta ideia aparece raramente, mesmo nos fragmentos
não publicados, e não é encontrada em suas obras publicadas.
34
Wo ich Leben sah, fand ich Willen zur Macht: und auch noch im Willen des Dienenden fand ich Willen zur Macht.
Man unterwirft sich dem Großen, um über Kleine Herr zu sein: diese Lust überredet uns zur Unterwerfung.

68
genealogia da moral. Lá Nietzsche mostra como, por meio de uma série de artifícios do espírito,
ou seja, da inteligência, os fracos dominaram os fortes por meio da moral dos escravos.35
Spinks faz outra observação importante sobre a vontade de poder: ela não possui um
caráter utilitarista, ou seja, a vontade de poder não atua buscando prazer e evitando desprazer.
Prazer e desprazer são meras consequências daquilo que a vontade de poder busca: mais poder.
Nietzsche ressaltou que por vezes uma pessoa se arrisca, arrisca a própria vida e fere-se, movida
pela vontade de poder. O desprazer muitas vezes é um obstáculo importante para a vontade de
poder, e o prazer não está em se obter algo, mas em poder continuar o conflito: quando a vontade
de poder assimila algo, não há prazer, mas apenas o aumento do desejo por uma nova tensão, por
uma nova contraposição. Nietzsche ironizou esse eudemonismo, que faz toda a vida circular em
torno da busca pela felicidade e que reduz a felicidade ao prazer. Em Crepúsculo dos ídolos, essa
ironia se intensificou com a afirmação de que esse é o ideal “(...) com o qual sonham o
comerciante, o cristão, a vaca, a mulher, o inglês e outros democratas (...)” (NIETZSCHE, CI, p.
95). Para Nietzsche, o que está em questão nesse utilitarismo é um rebaixamento do ser humano,
tornando-o preguiçoso e desabituado à luta. Segundo Giacoia, tal rebaixamento é indissociável da
“redução utilitarista do ideal de felicidade e conforto, segurança e bem-estar, da hipócrita
autocompreensão do europeu civilizado como sendo o sentido do progresso e o ‘final da
história’” (GIACOIA apud NIETZSCHE, GP, p. 12).
Seguindo as indicações de Spinks, chega-se a uma boa compreensão da vontade de poder,
porém, é preciso compreender como essa vontade de poder se expande e domina. Mais uma vez
não se pode tirar da teoria da vontade de poder seu caráter dramático e doloroso, expresso pela
exploração e, muitas vezes, subjugação violenta. Mas essas não são as únicas maneiras pelas
quais as pulsões dominam umas às outras em seu movimento direcionado ao poder. Nietzsche
referiu-se com grande frequência à disputa pulsional como fundação e interpretação de mundo,
ou seja, uma das maneiras de um grupo pulsional ou uma pulsão dominar as demais é apresentar-
lhes interpretações diversificadas e variadas do mundo nas quais cada uma delas tenha
importância e exerça algum poder. Novamente, depara-se com uma linguagem estratégica,
inevitável quando se trata da relação pulsões/vontade de poder, mas, independentemente do

35
Nessa parte do livro, Nietzsche mostrou mais uma vez sua antipatia por Darwin, afirmando que ele esquecera o
espírito (inteligência) e que isso era tipicamente inglês; porém, esse espírito, que os escravos têm mais do que os
senhores, desequilibra a luta em favor daqueles.

69
léxico usado e de sua matriz, o que importa é não perder de vista o significado do conflito
pulsional em sua vontade de poder.
Essa interpretação de mundo não tem, porém, um intérprete. Mais uma vez é necessária
cautela para não se resvalar para o subjetivismo, que precisa inserir um intérprete por trás da
interpretação. A interpretação de mundo das pulsões não tem um sujeito; as pulsões ou a vontade
de poder não são sujeitos, pois sua existência só é presumida no processo da luta, faltando-lhes
duração e permanência, características fundamentais ao sujeito. Partindo da interpretação de
mundo resultante da vontade de poder, Nietzsche chega a uma incrível análise da fisiologia do
corpo sem, no entanto, tornar-se finalista. Uma mão não é algo desenvolvido pelo corpo para
segurar. A mão surgiu aleatoriamente e um determinado grupo pulsional a tomou para si e a
integrou em seu domínio, passando, então, a usá-la para segurar.
O filósofo afirmaria que, provavelmente, ao longo da história humana, houve outras
maneiras de se utilizar as mãos, dependendo do arranjo pulsional interno de cada indivíduo.
Então, por que hoje, em sua maioria, há apenas uma maneira de utilizar cada órgão do corpo, por
exemplo? Para Nietzsche, a resposta é simples: vive-se a hegemonia de uma determinada
interpretação de mundo fundada no domínio de determinados grupos pulsionais. Se houvesse
uma reviravolta nesse arranjo, tudo poderia se modificar. Todavia, os incríveis acasos que
asseguraram o atual arranjo pulsional que se vê, de um modo mais ou menos parecido na maior
parte dos seres humanos, deve ser duradouro, pois foi capaz de desenvolver um “órgão” que
assegura sua preservação ao criar uma ilusão de unidade externa que se autoengana, pensando-se
também como unidade interna: a consciência.
Novamente, retorna-se a esse problema para agora finalizá-lo, mostrando a importância da
constituição da consciência e do Eu e sua manutenção em cada sujeito, pelos diversos arranjos
pulsionais por meio da vontade de poder:

A vontade de poder interpreta: na formação de um órgão há uma interpretação, que


delimita, determina graus, diferencia poderes. Meras diferenças de poder não poderiam
perceber a si mesmas como tal: deve haver um algo que quer crescer e que interpreta
qualquer outra coisa que queira crescer de acordo com seu próprio valor (...). Na
verdade a interpretação é, ela mesma, uma maneira de se vir a ser senhor sobre alguma
outra coisa.36 (NIETZSCHE, KSA XII, 2[148], p. 139-40. Tradução minha e grifos meus).

36
Der Wille zur Macht interpretiert: bei der Bildung eines Organs handelt es sich um eine Interpretation; er grenzt ab,
bestimmt Grade, Machtverschiedenheiten. Bloße Machtverschiedenheiten könnten sich noch nicht als solche
empfinden: es muss ein wachsen-wollendes Etwas da sein, das jedes andere wachsen-wollende Etwas auf seinen

70
Se até no surgimento e utilização de um órgão Nietzsche via a vontade de poder agindo de
modo a assegurar o domínio de determinado conjunto de pulsões, o que será esse algo mais, que
deve crescer e que interpreta qualquer outra coisa que também quer crescer, segundo seus
próprios critérios? Não resta dúvida de que Nietzsche se refere à consciência e, indiretamente, ao
que a ela está ligado: sujeito, lógica etc. Afinal, como foi visto, é por meio da lógica que o Eu
sujeito pode passar da aparência à igualdade. Essa consciência interpreta a si mesma e se, dentro
de si, detectar outro supostamente igual que também quer crescer, deve interpretá-lo segundo
suas regras, ou seja, segundo algo que ameaça internamente seu domínio de poder. Um exemplo
disso é o modo como nossa consciência “vigia” os “impulsos passionais” 37 que tantas vezes
querem nos fazer perder a consciência.
A respeito dos atos volitivos da consciência, enquanto máscara das pulsões sobre outras
pulsões que ameaçam a hegemonia do grupo que domina a consciência, Giacoia faz uma
importante observação: nesse processo volitivo há, ao mesmo tempo, em cada indivíduo, algo
que manda e algo que obedece.

De acordo com a reconstituição nietzscheana do ato volitivo, o querer consiste também,


sobretudo, numa disposição de ânimo: ao fazê-lo, somos tocados, tomados e movidos pelo
afeto do comandar, pelo sentimento de dispor de algo, que obedece. Existe, pois,
internamente – mesmo que não movamos um músculo –, uma divisão entre um eu que
comanda e um ele, uma curiosa espécie de alteridade, um algo que obedece – que,
justamente em razão de sua inserção naquela complexa correlação de forças que constitui
todo querer, tem de obedecer. (GIACOIA, 2001, p. 68).

Essa observação nos permite concluir que o Eu vive o incrível prazer da tensão no
momento do comando sobre si mesmo ao sentir que, enquanto comanda, há algo que obedece,
mesmo internamente. Percebe-se uma forte identificação entre o si e o Eu, pois o si que uma
pessoa é, e que ignora ser, geralmente se identifica e se alegra com as conquistas do Eu que ele
forjou e que essa pessoa acredita ser. Enquanto essa pessoa se ilude imaginando que as
conquistas de sua consciência fortalecem seu caráter, o que elas fazem é fortalecer o si que essa
pessoa é. Quanto mais forte é o Eu, mais ignora o si e mais fiel e intensamente exerce seu papel

Werth hin interpretiert (…). In Wahrheit ist Interpretation ein Mittel selbst, um Herr über etwas zu werden. (Der
organische Prozess setzt fortwährendes Interpretieren voraus.
37
Apenas a “consciência psicológica” pode falar em impulsos passionais, pois, para Nietzsche, toda pulsão é
passional, mesmo as que parecem mais racionais.

71
de escudo protetor do si, ao mesmo tempo sua ponte com o mundo exterior e principal canal de
comunicação e domínio desse mesmo mundo.
Desde o momento em que um novo ser humano nasce, aqueles que o recebem esforçam-se,
de alguma forma, por moldar nele uma personalidade e caráter, por conseguinte, uma consciência
e, desse modo, possibilitam que a configuração da vontade de poder das pulsões existente neles
se reproduza na criança e que o processo se expanda, assegurando cada vez mais domínios de
poder para esse conjunto pulsional. Falar do estado original das pulsões no momento em que um
ser humano nasce é sempre muito difícil sem recorrer ao vocabulário tradicional da filosofia
metafísica, pois este se especializou justamente em tentar mostrar o que as pessoas são. Todavia,
tal vocabulário foi descartado pelo filósofo aqui em estudo. Também não se pode recorrer ao
vocabulário da filosofia moderna, pois, a despeito de Nietzsche usar com frequência palavras
como natureza e outras mais, retiradas ao léxico da filosofia moderna, ele também nos advertiu
de que “a verdadeira natureza humana – [é uma – VS] frase proibida”38 (NIETZSCHE, KSA IX,
6[150], p. 235. Tradução minha). Mas por que é tão importante a condição na qual nasce o ser
humano? Quando se fala em educação e se tem como pressuposto o pensamento de Nietzsche,
refere-se a um processo radical de transformação. Para saber o quanto esse processo é realmente
radical, é fundamental saber o que um ser humano é ao nascer e saber o que esse processo
educacional pode fazer com ele.
Para evitar esses problemas, será usada a expressão condição de nascimento para
significar o estado do arranjo pulsional em um ser humano no momento de seu nascimento. A
condição de nascimento refere-se ao modo como as pulsões atuam umas sobre as outras em um
indivíduo da espécie humana quando nasce e passa a receber sobre si a pressão de outras
organizações pulsionais de poder para moldá-lo à imagem e semelhança deles.39 Não nos importa
saber qual é o exato conteúdo da condição de nascimento, quais são as pulsões superiores, quais
são as pulsões subalternas, ou que tipo de Eu e consciência essas pulsões desenvolverão em seu
favor, nem sequer se elas o farão. Tampouco nos interessa que tipo de moral essas pulsões
tomarão como interpretação do mundo. O que importa é apenas saber se isto que se é quando se

38
„Die wahre Natur des Menschen“ — verbotene Wendung!
39
Para Nietzsche, os homens mais fortes são múltiplos e não precisam se impor aos outros. Eles suportam a
diferença em si sem enlouquecerem. O filósofo afirma que o grande homem é medido pela liberdade que dá a esses
animais (as pulsões), sem, no entanto, ser controlado por elas. Na Genealogia da moral, Nietzsche mostra como esse
homem é forte, porém, pela sua abertura para a diferença, é presa fácil do homem fraco, centrado em torno de uma
única pulsão e totalmente fechado à multiplicidade pulsional. Vem daí uma ideia constante em Nietzsche, desde as
obras da juventude: é preciso defender o forte do fraco.

72
nasce pode ser alterado. Será possível que os vários acontecimentos que tomam lugar na vida de
um ser humano podem alterar sua condição de nascimento?
Serão utilizados outros dois conceitos correlatos à condição de nascimento: condição de
morte, expressão que significará o estado do arranjo pulsional em um ser humano no momento
em que morre, e condição de vida, significando os diversos arranjos pulsionais que tomam lugar
em um mesmo corpo formando personalidades diversas, Eus diversos, consciências diversas que
adotam morais diversas, tudo isso ao longo de uma única vida. Assim, é possível agora atualizar a
tese deste trabalho, apresentada inicialmente na Introdução: só há educação, nos moldes
nietzscheanos, quando as várias condições de vida permitem que a condição de morte seja
distinta da condição de nascimento.
Quando Nietzsche afirmou que nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas
(ABM, p. 25), ele quis dizer que ao longo de uma vida é possível que se viva tantas condições de
existência que a condição de morte é radicalmente distinta da condição de nascimento. O agente
que opera essa diferenciação é, inegavelmente, a vontade de poder; e a alteração dá-se em função
dos constantes embates pulsionais. No vocabulário nietzscheano, só é possível chamar de
educação o processo que faça brotar, da aparente unicidade do Eu, a multiplicidade (consciente
ou inconsciente) do si, sem que, no entanto, esse si sucumba à louca tensão das pulsões em
conflito. 40 A educação, para Nietzsche, é um dos mais duros e raros processos humanos; e
também, que não haja ilusões, não é prazerosa, mas é uma tentativa irreversível da vontade de
poder, que muitas vezes falha. Muitas pessoas, em face da atual sociedade burguesa dos homens-
engrenagens-de-máquinas, terão como condição de morte a mesma condição de nascimento, sem
nunca conhecerem uma condição de vida que fosse diferente. Enquanto alguns chamariam isso de
equilíbrio e estabilidade, o filósofo alemão chamaria de desespero, pois nada mais triste do que a
incapacidade de expandir-se para além de si, de criar-se e recriar-se continuamente, sendo sempre
o mesmo e vivendo medrosamente em relação à diferença, muitas vezes caçando-a e
perseguindo-a. O que se chama de educação na atualidade era para Nietzsche, sem dúvida, o que
Exupérry (1973) nomeou como a máquina de entortar homens e que Carlos Drummond de
Andrade (1983) chamou de a máquina do mundo.

40
Tal sucumbência seria, para o filósofo, um retrocesso nas organizações pulsionais a períodos anteriores à
civilização e nele se perderia o esforço de milênios.

73
Essa educação de Nietzsche, porém, pode ser compreendida de dois modos diferentes, que
serão analisados nos próximos capítulos na forma de uma educação possível (Capítulo II) e uma
educação impossível (Capítulo III), onde também serão aprofundados os conceitos aqui
apresentados.

74
II – Tipologia nietzscheana: o fluxo entre tipos superiores e
inferiores

Os conceitos condição de nascimento, condição de vida e condição de morte estão


relacionados à possibilidade de transformação daquilo que um ser humano é ao longo de sua
duração, de sua vida. Esses conceitos não carregam em si qualquer conteúdo ou especificação
moral, qualitativa ou quantitativa. É sabido que Nietzsche desenvolveu uma tipologia humana
baseada em dois tipos diferentes, embora não antagônicos, pelo contrário, suplementares: os
homens superiores e os homens inferiores. Há uma vasta sinonímia na obra do filósofo para
referir-se a esses tipos, assunto do qual se tratará neste capítulo.
O que importa agora é dizer que superioridade e inferioridade não são condicionadas pela
condição de nascimento, de vida e de morte, não é ter nascido desta ou daquela maneira, com este
ou aquele arranjo pulsional, e ter morrido constituído por outras hierarquias pulsionais, tendo
vivido, ainda, sob organizações pulsionais outras. Não é isso, como se vinha dizendo, que
constitui a superioridade ou inferioridade dos tipos. Esses conceitos tratam da possibilidade de
transição entre esses dois tipos por meio de um processo de caráter duplo que se assemelha a uma
vasta avenida de dois sentidos: o processo conhecido como educação. É difícil pensar a educação
hoje sem a escola, o que gera um problema para o estudo de Nietzsche como filósofo da
educação: ele só tratou da escola nos textos da juventude, quando ainda era professor, mas suas
ideias sobre a educação alteraram-se com o tempo e, embora não se tenham tornado
contraditórias, tornaram-se muito mais ricas.
No período intermediário e maduro, os textos de Nietzsche que fazem referência ao tema
da educação geralmente extrapolam os limites da escola e apontam para um processo mais amplo,
que se daria em todas as relações sociais, porém, a escola permanece um modelo social
privilegiado das relações humanas, pois nela vê-se a vontade de poder que forma a sociedade
sendo impressa nas crianças e jovens e também todo o processo de seleção em favor da regra e
contra a exceção, exatamente como o filósofo acreditava que se dava com a sociedade em geral.
Não limitando a educação aos muros da escola, mas contando também com eles,
Nietzsche pensou em uma dupla educação: por um lado, para a ascensão e para a decadência, e
que se poderia chamar de uma educação para a produção da cultura superior e inferior, pois em

75
ambos os casos haveria mudança pulsional; e, por outro lado, a educação para a civilização, que
para Nietzsche seria uma não educação, pois nela tenta-se impedir qualquer mudança nos
arranjos pulsionais, disfarçando tal fixidez sob o polido nome de formação do caráter – esse tema
será retomado novamente mais adiante, para que se possa melhor elucidar a diferença entre
civilização e cultura no pensamento de Nietzsche e suas consequentes implicações para a
educação. Por ora, é importante lembrar que na escola há o perfeito ambiente para essa dupla
educação: a escola favorece a ambos, mesmo sendo pensada e construída em favor dos inferiores
– talvez justamente por isso –, pois, como será visto, a imobilidade favorece o apequenamento
humano.
Como no período intermediário e final da obra de Nietzsche há poucos textos explícitos
sobre a educação, é preciso perseguir o tema por meio de um imbricado labirinto de jogos
linguísticos, que algumas vezes resultam em conceitos, outras vezes não; outras vezes é
necessário procurá-lo entre descrições genealógicas, momento indispensável do filosofar
nietzscheano para que se possa bem entender sua tipologia, tema central deste capítulo, onde, ao
escrutinar os tipos apresentados por Nietzsche, buscar-se-á respostas para questões como: quem
são os tipos superiores e inferiores de Nietzsche? Também será discutido neste item a
possibilidade do controle pulsional, ou seja, é possível controlar as pulsões? A partir de que ponto
de apoio e de que maneira? E, por fim, analisar-se-á um dos temas que sempre foi mais caro a
Nietzsche: ascensão e decadência dos seres humanos. O capítulo será encerrado com o
esclarecimento de alguns conceitos fundamentais ao pensamento educativo de Nietzsche e das
confusões criadas em torno deles, mostrando a relevância desses conceitos para o pensamento
educacional do filósofo.
Decadência e convalescença implicam, necessariamente, alteração no arranjo pulsional
constituinte de cada pessoa; desse modo, a educação é o acontecimento que possibilita que a
condição de morte seja distinta da condição de nascimento. Foi dito anteriormente que esses
conceitos não têm um significado moral, porque há educação na decadência e na ascendência,
pois ambas implicam alteração na condição de vida em relação à condição de nascimento e
condição de morte. Note-se que o que importa não é constatar se o sujeito tornou-se melhor ou
pior, até porque, no pensamento de Nietzsche, tais conceitos são relacionais, não importa saber se
ascendeu ou decaiu, o que importa é saber se houve, ou se é possível, a transformação dos

76
arranjos pulsionais que são cada indivíduo, se é possível que as pulsões que construíram o Eu e
que o mantêm sejam modificadas, tornando esse Eu algo distinto do que era.
Ao se analisar, no pensamento de Nietzsche, a possibilidade de que a condição de morte
seja diferenciada da condição de nascimento, por meio da educação, depara-se com um problema:
a amoralidade da educação. A educação indica um processo de transformação e mudança dos
arranjos pulsionais nos indivíduos, mas não é um distintivo ou qualificativo deles, ou seja, para
Nietzsche, ela não é o processo de ascensão do indivíduo a patamares de superioridade (tipos
superiores). Pelo contrário, no pensamento do filósofo, há educação até no rebaixamento dos
tipos humanos, mas para que se possa compreender isso é necessário que antes se compreenda
quem são os tipos inferiores e superiores de Nietzsche e como eles se constituem, se mantêm e se
alteram.

1 – A importância da tipologia

Deleuze e Guattari afirmam em seu livro O que é a filosofia? que a construção do


pensamento filosófico requer a elaboração de personagens conceituais. Os personagens
conceituais são figuras literárias, fictícias ou históricas que em uma obra filosófica dizem os
conceitos no lugar do filósofo, o qual, como escritor da obra, não pode estar contido nela. Essa
afirmação parece bastante justificável quando se trata, por exemplo, do pensamento platônico e
seus diálogos, nos quais personagens, entre eles Platão e Sócrates, vão tecendo a filosofia na
medida em que dizem seus conceitos e exprimem seus pensamentos em conversas variadas, mas
dificilmente se encaixaria na filosofia de Hegel. Os filósofos contemporâneos franceses
afirmaram, contudo, que mesmo nas obras de maior aparência “técnica” os personagens
conceituais estão presentes, em última instância, quando o filósofo não evoca figuras míticas,
literárias ou históricas; ele recria a si mesmo em sua obra como personagem conceitual oculto,
para que, dentro da obra, enquanto personagem, diga os conceitos que ali serão escrutinados.
Outras tantas vezes esses personagens são evocados nominalmente nos textos, na forma de
aliados que o autor evoca para reforçar seu pensamento, justificando que se enquadra em uma
tradição filosófica mais extensa e anterior a si, como fez Schopenhauer ao evocar Kant, ou este
ao evocar Descartes. Em outras ocasiões, as evocações nominais são dos adversários aos quais o
filósofo visa impor-se. Isso foi o que fez Marx ao evocar Feuerbach ou os irmãos Bauer. Ainda

77
em algumas ocasiões esses personagens conceituais não estão explícitos no texto, mas o leitor
percebe que o filósofo elaborou seu texto como uma espécie de diálogo silencioso com aliados e
rivais filosóficos.
Se os personagens conceituais são assim tão importantes para a filosofia, poucos filósofos
houve que os utilizaram de forma tão ostensiva como Nietzsche. Seu constante apelo a figuras
literárias, históricas e tipológicas mostrou um filosofar bastante distinto da filosofia tradicional.
Talvez apenas Kierkegaard tenha utilizado, ainda que com menor intensidade, tal recurso na
filosofia moderna e contemporânea. Embora fundamentais para o pensamento de Nietzsche, todo
esse volume de personagens conceituais não torna a interpretação de seu pensamento mais fácil.
Pelo contrário, boa parte das confusões que se instauraram ao longo dos pouco mais de cem anos
da morte de Nietzsche, no que diz respeito à interpretação de seu pensamento, têm alguma
relação com seus personagens conceituais, em especial as diversas e recorrentes figuras que
indicam a tipologia dos superiores e dos inferiores.
A hierarquização de tipos humanos ou históricos é, sem dúvida, o maior escolho na
interpretação do pensamento de Nietzsche, pedra de tropeço que o filósofo parece ter lançado
propositadamente na intenção de derrubar os incautos. As críticas lançadas a Nietzsche no
período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial estavam ligadas ao mau
entendimento dessas hierarquias tipológicas. Todo o problema surge com as interpretações
ligeiras demais, que recorrentemente tomam a tipologia como um novo dualismo, como se
houvesse apenas os tipos superiores e inferiores, separados por um abismo intransponível, e sua
condição de superioridade ou inferioridade fosse previamente determinada e irreversível,
tornando o pensamento de Nietzsche uma espécie de determinismo aristocrático no qual os fracos
devem servir aos fortes, ignorando afirmações explícitas de Nietzsche em sentido contrário:

A meta não é, de modo algum, compreender os últimos como os senhores dos primeiros,
mas as duas espécies devem subsistir uma ao lado da outra – possivelmente separadas:
uma delas, como os deuses epicureos, não se ocupando da outra. (NIETZSCHE, GP, p.
26).

Ou, ainda, como se os personagens conceituais senhor e escravo, em Nietzsche, repetissem a


dialética senhor e escravo de Hegel, tornando um fundamental para o outro, ou, ainda, como se o
que constitui um fosse a exploração e utilização do outro, nesse caso do escravo pelo senhor,
ignorando desta vez a advertência de Deleuze em Diferença e repetição:

78
(...) Aqueles que Nietzsche chama de senhores são seguramente homens de potência, mas
não homens de poder, pois o poder se julga pela atribuição dos valores vigentes; ao
escravo, não basta tomar o poder para deixar de ser escravo; é mesmo a lei do curso ou
da superfície do mundo ser conduzido por escravos. (DELEUZE, 2006, p. 91. Grifo
meu).

Falar do pensamento educacional de Nietzsche, principalmente com o pressuposto com o


qual aqui se trabalha de que para o filósofo de Zaratustra só há educação quando a condição de
vida é capaz de diferenciar a condição de nascimento da condição de morte, falar desse
pensamento educacional, como se dizia, é, necessariamente, ter de tratar do problema tipológico,
pois é por meio do fluxo entre os diversos tipos que se percebe a alteração das estruturas
pulsionais que constituem os indivíduos, ou seja, é por meio da decadência e da ascensão que se
percebe o fenômeno educação.
O homem superior é sem dúvida um tema bastante controverso no pensamento de
Nietzsche. Fora os problemas filosóficos de saber quem ele é, se é possível ou não, como se
constitui etc., há ainda problemas históricos de significativa importância, nos quais o pensamento
de Nietzsche foi implicado de forma direta e desleal.
Talvez apenas com o marxismo tenha acontecido algo semelhante: a utilização do
pensamento de um filósofo como inspiração direta e declarada para ações políticas e
propagandistas. Todavia, os textos de Marx incitavam diretamente a uma revolução proletária,
vide as últimas frases de seu manifesto comunista. Estímulos tais não são encontrados na obra de
Nietzsche. E em meio a toda essa usurpação intelectual do pensamento do filósofo, promovida
por alguns grupos políticos europeus, sem dúvida estava a perspectiva de criação de um tipo
humano superior, embora o que todos esses grupos tenham apresentado, em especial os nazistas,
não passaria, para Nietzsche, de um aborto humano, nunca do tipo humano superior.
Se nas obras da maturidade é encontrado com grande frequência o apelo por um homem
novo, redentor da humanidade e capaz de dar sentido a esta, esse apelo, todavia, não é novo.
Quando Eugen Fink defende a tese de que entre os três períodos nos quais se divide,
ordinariamente, a filosofia de Nietzsche, não há descontinuidade, sem dúvida, um dos seus
principais pontos de apoio é a figura desse homem superior. Presente desde seus primeiros textos,
quando o homem superior era chamado comumente de gênio, a figura de um tipo humano
superior atravessa todo o pensamento de Nietzsche, deixando de ser uma figura mítica e mística e

79
tornando-se um tipo humano com características bem definidas, moral própria e, principalmente,
o que se pode chamar de um projeto de elaboração e desenvolvimento, uma verdadeira educação
para o tipo humano superior. Estranhamente, porém, a figura do gênio, em especial sua
implicação com a educação escolar, causa mais confusões, ainda hoje, do que as figuras dos tipos
superiores presentes nos textos da maturidade.
As figuras dos tipos superiores presentes nas obras da maturidade, tais quais senhor,
espírito livre etc., são sempre vistas como figuras isoladas e decalcadas da realidade, o que, nas
obras da juventude, não se pode dizer sobre o gênio, que aparece claramente como um elemento
inserido na sociedade, e aí surgem os problemas interpretativos. A maior dificuldade para os
educadores que entram em contato com essa ideia é saber o que constitui tal genialidade e, ao
mesmo tempo, como ela é constituída. Obviamente, por trás dessas suspeitas contra Nietzsche,
estão posicionamentos teórico-políticos muito bem delineados, com maior destaque aos que se
nutriram de leituras marxistas e que diversificaram e ampliaram os campos de especulação
filosófica do marxismo a pontos não pensados por Marx e Engels.
A principal preocupação, nesse caso, é que as discussões em torno da filosofia da
educação não voltem a apontar para um problema aparentemente superado: um ser humano
nomeado gênio, cuja genialidade consiste em uma dádiva ou habilidades inatas, um sujeito que
não é construído socialmente, mas encarnação pessoal de capacidades inumanas, que, todavia,
não podem ser tidas por outros humanos nem podem ser construídas pelo esforço e pelo trabalho
humanos. Em última instância, o que não se quer admitir é a ideia de superioridade de uns
homens sobre outros, ainda mais se tal superioridade é construída sobre bases inatingíveis, pois
não são sociais. Nesse ponto, o grito de repúdio ao gênio do jovem Nietzsche ganha um reforço
inesperado: o dos pensadores e filósofos da educação liberal e democrática, que também não
estão dispostos a admitir teorias da superioridade ou hierarquização dos homens, muito menos,
novamente, sem bases sociais, o que, sem dúvida, seria bastante nocivo para essas teorias. Tais
ideias, porém, estão mais associadas à superficialidade de algumas interpretações do pensamento
de Nietzsche do que aos textos do filósofo.
O que se vê nas obras de sua juventude, ainda influenciadas pelo pensamento de
Schopenhauer e pela música de Wagner, é o gênio como um legítimo produto social, cujo
surgimento, ou não, é determinado pela cultura e pelos investimentos culturais e educacionais
(Bildung) nos homens. Claramente vige nesse período a metafísica de artista do jovem Nietzsche.

80
Então, o que justifica a existência do gênio e ao mesmo tempo o constitui é a capacidade criadora:
se a arte pode salvar e justificar a própria vida. Apenas o artista, o legítimo gênio artístico, pode
justificar a vida, então, apenas a capacidade da criação artística original legitima o gênio como
gênio. Nas palavras de Nietzsche:

Temos, assim, algumas condições, segundo as quais é pelo menos possível surgir o gênio
filosófico no nosso tempo apesar dos efeitos nocivos em contrário: liberdade viril do
caráter, conhecimento precoce da humanidade, nenhuma educação catedrática,41 nenhum
estrangulamento patriótico, nenhuma obrigação de ganhar o pão, nenhuma relação com o
Estado – em resumo liberdade e liberdade de novo e de novo: o mesmo elemento
maravilhoso e perigoso em que os filósofos gregos foram autorizados a crescer. 42
(NIETZSCHE, KSA I – I Consideração Extemporânea, p. 411. Tradução minha).

Se na citação é evocada a figura de um gênio filosófico, que não se engane quanto ao seu
sentido, pois na mesma página o filósofo elucidou o que torna alguém um gênio filosófico: “Essa
liberdade é realmente um pecado pesado, e só por meio de grandes obras, ele pode ser expiado.”43
(Idem, p. 412). O gênio filosófico que toma para si tal liberdade apenas por meio da produção das
grandes obras encontra sua justificação. Esse filósofo não é o erudito filosófico, mas o filósofo-
artista, aquele que por meio de sua criatividade lega ao restante da humanidade algo pelo qual
valha continuar existindo. Tem-se aqui um binômio de reciprocidade social: a sociedade existe
para criar o gênio, e este, por meio de suas grandes obras, justifica a existência da sociedade e
fornece-lhe subsídios para continuar existindo.
Se o brado por um novo homem, um homem redentor, prossegue ao longo de toda a obra
de Nietzsche, como se vê ao final da penúltima seção da segunda dissertação de A genealogia da
moral:

(...) Esse homem do futuro, que nos salvará não só do ideal vigente, como daquilo que dele
forçosamente nasceria, do grande nojo, da vontade de nada, do niilismo, esse toque de
sino do meio-dia e da grande decisão, que torna novamente livre a vontade, que devolve à

41
Traduziu-se aqui por “catedrática” a palavra Erziehung. A tradução deu-se por meio de uma livre associação entre
Erziehung e o segundo discurso da primeira parte de Assim falou Zaratustra, intitulado “Von den Lehrstühlen der
Tugend”, onde Lehrstülen é um ensino professoral que se prende apenas ao palavreado, mas não estimula a vivência,
e que foi traduzido por Mario da Silva (edição da Civilização Brasileira) como “cátedra”, daí a aproximação com
Erziehung, cujo radical Erzieh tem sentido semelhante ao Lehr em Lehrstülen, ambos admitindo a tradução “ensinar”.
42
Damit sind einige Bedingungen genannt, unter denen der philosophische Genius in unserer Zeit trotz der
schädlichen Gegenwirkungen wenigstens entstehen kann: freie Männlichkeit des Charakters, frühzeitige
Menschenkenntniss, keine gelehrte Erziehung, keine patriotische Einklemmung, kein Zwang zum Brod Erwerben,
keine Beziehung zum Staate — kurz Freiheit und immer wieder Freiheit: dasselbe wunderbare und gefährliche
Element, in welchem die griechischen Philosophen aufwachsen durften.
43
Jene Freiheit is wirklich eine schwere Schuld; und nur durch grosse Thaten lässt sie sich abbüssen.

81
terra sua finalidade e ao homem sua esperança, esse anticristão e antiniilista, esse vencedor
de Deus e do nada – ele tem que vir um dia... (NIETZSCHE, GM II, p. 84-5),

se o brado por esse homem redentor prossegue, o sentido que Nietzsche dava ao termo gênio
alterou-se progressivamente, perdendo o sentido que a metafísica de artista podia lhe dar,
tornando-se também um tipo menos grandioso e importante para a coletividade, e cada vez mais
importante para si mesmo. É o que se percebe em Humano, demasiado humano I:

A origem do gênio. – A engenhosidade com que o prisioneiro busca meios para a sua
libertação, utilizando fria e pacientemente cada ínfima vantagem, pode mostrar de que
procedimento a natureza às vezes se serve para produzir o gênio – palavra que, espero,
será entendida sem nenhum ressaibo mitológico ou religioso –: ela o prende num cárcere e
estimula ao máximo o seu desejo de se libertar. – Ou, para recorrer a outra imagem:
alguém que se perdeu completamente ao caminhar pela floresta, mas que, com energia
invulgar, se esforça por achar uma saída, descobre às vezes um caminho que ninguém
conhece: assim se formam os gênios, dos quais se louva a originalidade. (NIETZSCHE,
HDH I, p. 160-1).

O gênio, nessa passagem de obra do período intermediário, já adquire elementos que


fogem propriamente à criação artística e à utilidade social. Se a originalidade persiste, na forma
de descoberta ou criação de algo novo, não se tem mais a obra de arte e o benefício do todo, mas,
sim, o benefício do próprio gênio. Aqui há uma aproximação com outro elemento que comporá a
figura dos tipos superiores nas obras posteriores: a busca pela liberdade, que aproxima, desde já,
o gênio do espírito livre, figura muito comum no período maduro, principalmente em Além do
bem e do mal, e que é uma representação bastante clara do homem superior. A citação anterior
prossegue e revela outro elemento que compõe o homem superior e que, ao mesmo tempo, é
móvel de grandes problemas interpretativos: a involuntariedade do homem superior. O texto de
Nietzsche continua nos seguintes termos:

Já foi mencionado que uma mutilação, um aleijamento, a falta relevante de um órgão, com
freqüência dá ocasião a que outro órgão se desenvolva anormalmente bem, porque tem de
exercer sua própria função e ainda uma outra. Com base nisso pode-se imaginar a origem
de muitos talentos brilhantes. – Dessas indicações gerais quanto ao surgimento do gênio
faça-se a aplicação ao caso específico, o da gênese do consumado espírito livre. (Idem, p.
161).

Aqui é importante ter em mente a constituição pulsional do ser humano: não é o indivíduo
na forma de um sujeito autônomo que realiza os esforços para a elevação à genialidade, mas
aleijões, ocorrências aleatórias, falha ou perda de algum órgão etc. Todos esses elementos são

82
pontos de apoio da transformação pulsional, acontecimentos que desestruturam a ordem pulsional
constituinte de um sujeito, seja a herdada com o nascimento, sua condição de nascimento, seja
alguma segunda ou terceira organização pulsional,44 a sua condição de vida; tais acontecimentos
desestruturam a ordem pulsional e modificam-na, abrindo caminho para o novo, aquilo que nesta
tese se chama propriamente de educação, permitindo, por fim, que a condição de morte seja
distinta da condição de nascimento.
O final do texto apresenta a transmutação do gênio em espírito livre, uma das diversas
figuras dos tipos superiores que se torna bastante comum e recorrente no período final da
filosofia de Nietzsche. Ao lado desta, várias outras aparecem com grande frequência: senhores,
nobres, aristocratas ou aristocratas do espírito, o homem superior etc. Estranhamente, Oliveira
Júnior caracteriza o homem superior como um tipo inferior. Em seu livro, Nietzsche – super-
homem e superação: uma abordagem política, ele até admite que nas obras intermediárias e
finais o termo homem superior faz referência aos tipos superiores de Nietzsche. Todavia, o autor
afirma que o termo adquire acepção negativa em Assim falou Zaratustra,

(...) em que é caracterizado como os indivíduos que não possuem grandeza, e nem podem
ousar criar: são tipos próximos aos animais de rebanho, embora tenham ascendido à
posição suprema, dentro de uma determinada perspectiva. [Eles são VS] homens do
grande desgosto que já não encontram nenhuma satisfação na existência moderna afastada
do Deus que ela abandonou: Zaratustra descobre, ao percorrer o seu domínio e o seu
império, múltiplas formas do homem superior que ele manda subir para a sua caverna.
Mas os homens superiores ainda não estão verdadeiramente metamorfoseados.
(OLIVEIRA JÚNIOR, 2004, p. 125-6).

Em primeiro lugar, há um claro contrassenso do autor supracitado em classificar os


homens superiores como tipos inferiores. Além disso, escapa a ele a sutil ironia nietzscheana:
quando, na última parte de Assim falou Zaratustra, a personagem central do livro depara-se, ao
inspecionar seus domínios, com uma série de figuras de homens modernos e denomina-as
alternadamente como “últimos homens” e “homens superiores”, o que Nietzsche busca é o efeito
retórico da ironia, querendo dizer que para os últimos homens, os homens mesquinhos e
contemporâneos, eles mesmos são os homens superiores. É o mesmo efeito retórico que se
encontra presente na primeira vez em que Zaratustra fala aos eruditos da praça do mercado sobre
a morte de Deus, e todos eles, em coro, dizem a ele que não há deus, constatação que para
Zaratustra é superficial, até que ele mergulha na profundidade da morte de Deus. Efeito
44
Nietzsche refere-se a tal possibilidade comumente usando a expressão “segunda natureza”.

83
semelhante é encontrado também no momento em que Zaratustra tem a primeira visão do eterno
retorno, defronte ao portal chamado instante, momento em que carrega sobre si seu maior
inimigo, o anão, o espírito da gravidade, e, mostrando ao anão o portão, este afirma que tudo o
que é reto mente e que a própria eternidade é curva. Novamente uma afirmação ligeira,
precipitada e superficial, que leva Zaratustra a advertir o anão de que não se apresse tanto e não
tome as coisas de modo tão ligeiro. Todavia, Oliveira Júnior não é o único a perder o sentido da
refinada ironia nietzscheana, também Deleuze, em seu opúsculo sobre Nietzsche, perde o sentido
dessa ironia quando afirma que os homens superiores

São múltiplos, mas testemunham um mesmo empreendimento: depois da morte de Deus,


substituir os valores divinos por valores humanos. Eles representam, pois, o devir da
cultura, ou o esforço para pôr o homem no lugar de Deus. Como o princípio de avaliação
permanece o mesmo, como a transmutação não é feita, eles pertencem plenamente ao
niilismo e estão mais próximos do bobo de Zaratustra do que do próprio Zaratustra. São
“falhados”, “imperfeitos”, e não sabem rir, nem brincar nem dançar. (DELEUZE, 1965, p.
37).

É esse efeito retórico da ironia, que escapou a Deleuze e a Oliveira Júnior, que Nietzsche
busca alcançar quando intercala as expressões “últimos homens” e “homens superiores” ao
referir-se aos seus últimos convidados. Os últimos homens veem-se realmente como homens
superiores, e Zaratustra não perde a chance de ironizar esse filisteísmo cultural, que, para
Nietzsche, nada mais era, nas palavras de Giacoia, do que “a redução utilitarista do ideal de
felicidade a conforto, segurança e bem-estar, a hipócrita autocompreensão do europeu civilizado
como sendo o sentido do progresso e o ‘final da história’.” (NIETZSCHE, GP, p. 12). Há outro
ponto bastante sutil e que também escapou ao autor de Nietzsche – super-homem e superação:
aquilo que distingue os tipos superiores dos tipos inferiores. Esse é um problema realmente sutil e
que será analisado com o vagar necessário mais adiante; mas, de imediato, pode-se dizer que
homens superiores e inferiores não são assim tão distintos, são apenas o mesmo ser humano em
graus distintos de ressentimento em face da vida.
Vê-se, então, que o homem superior é legitimamente um membro do seleto grupo dos
tipos superiores de Nietzsche, ao lado dos senhores, nobres, aristocratas etc. Embora sejam todos
membros de um mesmo tipo, há entre eles uma hierarquia, mas seria ocioso aqui discuti-la, dado
que o que interessa para o momento é perceber como esses tipos superiores são constituídos.
Diversos elementos entram no cálculo nietzscheano de elevação do homem aos patamares da

84
superioridade. Entre todos eles, um causa bastantes problemas interpretativos, que é a questão da
fisiologia, ou seja, até que ponto a constituição fisiológica de um indivíduo determina o tipo ao
qual ele se liga. Isso será discutido mais adiante, ao se falar da decadência e convalescença dos
tipos, problema que também, no pensamento de Nietzsche, estava delineado pela questão da
fisiologia. Por ora, analisar-se-ão os outros elementos que tornam um tipo humano um tipo
superior.
É necessária uma última observação: deve-se ter notado que, entre os tipos superiores, em
momento algum nomeou-se o além-do-homem (Übermensch), isso porque as discussões acerca
desse tipo ideal serão o tema de todo o quarto capítulo desta tese, pois, como afirma Leiter:

Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche falou sobre o além-do-homem como uma espécie
de tipo superior ideal. No entanto, este conceito em particular simplesmente desaparece de
sua obra madura (com exceção de uma breve menção no Ecce Homo no contexto da
discussão sobre Zaratustra). Infelizmente, ele recebeu muito mais atenção por parte de
comentadores do que ele merece: o tipo superior de ser humano (um Goethe ou um
Nietzsche) é mais importante para a compreensão de Nietzsche do que a hiperbólica, e
muitas vezes obscura, retórica de Zaratustra sobre o Übermensch.45 (LEITER, 2002, p.
116. Tradução minha).

Embora aqui não se admita que o além-do-homem tenha menor importância, é necessário
concordar com Leiter que ele recebeu muita atenção nos estudos nietzscheanos, às vezes em
malefício de outros elementos importantes do pensamento de Nietzsche. Também é necessário
concordar com Leiter no que diz respeito à importância dos tipos superiores para a compreensão
do pensamento de Nietzsche. Por todos esses motivos, o além-do-homem será alvo de análise em
capítulo específico. Agora analisar-se-ão, de fato, os elementos constituintes dos tipos superiores
de Nietzsche.

1.1 – Os tipos superiores

A literatura subsidiária de estudos do pensamento de Nietzsche oferece diversos caminhos,


mais ou menos sensatos, para a compreensão dos tipos superiores. Todavia, muitos desses

45
In Thus Spoke Zarathustra, Nietzsche spoke of the “superman” as a kind of ideal higher type. This particular
concept, however, simply drops out of his mature work (except for a brief mention in EH in the context of discussing
Zarathustra). Unfortunately, it has received far more attention from commentators than it warrants: the higher type of
human being (a Goethe or a Nietzsche) is more important for understanding Nietzsche than the hyperbolic, and often
obscure, Zarathustrian rhetoric about the Übermensch.

85
estudiosos se esquecem de um elemento fundamental: Nietzsche não era pensador de dicotomias.
Assim sendo, não há oposição qualitativa entre tipos superiores e inferiores, mas oposição
quantitativa, pois, como se disse acima, ambos são a representação do ser humano em situações
distintas de força, em situações distintas de organização pulsional e, consequentemente, de
vontade de poder.
Essa interpretação dicotômica é mantida por Oliveira Júnior, ao apontar os elementos que
constituem os tipos superiores. São eles:

a) Por meio do agon, enfrentamento e luta com condições desfavoráveis (...).


b) As relações de forças – prevalência da força ativa sobre a reativa ou vice-versa – e a
qualidade da vontade de poder, elemento diferencial das forças, determinam um tipo (...).
c) Por meio da constituição fisiológica, biológica e psicológica (...). (OLIVEIRA JÚNIOR,
2004, p. 112-3).

Excetuando-se o terceiro elemento, vê-se nos outros a confusão resultante da consideração


dos tipos superiores como seres essencialmente distintos dos inferiores, pois, se o agon
caracteriza os tipos superiores, ele também está presente na caracterização dos tipos inferiores, já
que não lhe é dado não estar em tensão, apenas se comportam, em relação à tensão, de forma
distinta da que os tipos superiores. O mesmo vale para as forças (b): não há forças ativas e
reativas, não há pulsões da ação e da inação ou reação. Novamente: para Nietzsche não é
admissível uma força que não aja, o estar agente ou reagente de uma pulsão é uma questão de
quantidade de força e não de qualidade, ou seja, uma pulsão reagente é uma pulsão enfraquecida,
mas não distinta de uma pulsão agente, pois a reagente, como a agente, busca sempre mais poder,
vontade de poder, e muitas vezes, em sua busca, por meio de estratégias diversas, como a moral,
por exemplo, consegue dominar as forças mais ativas, as quais, em uma linguagem bastante
nietzscheana, pode-se chamar de forças fortes. Confusão semelhante, porém em sentido diverso,
fez Brian Leiter ao estipular cinco elementos que constituem os tipos superiores:

1. O tipo superior é solitário e lida com os outros apenas instrumentalmente (...). 2. O tipo
superior procura encargos e responsabilidades, conforme é conduzido para a realização de
um projeto unificador (...). 3. O tipo superior é essencialmente saudável e resiliente (...). 4.
O tipo mais elevado afirma a vida, o que significa que ele está preparado para o eterno
retorno de sua vida. Colocado mais simplesmente: o tipo mais elevado abraça a doutrina
do eterno retorno e, portanto, evidencia o que Nietzsche muitas vezes chama de atitude
“dionisíaca” ou “de afirmação da vida” (...). 5. O homem superior tem um comportamento

86
distinto para com os outros e, especialmente, para consigo: ele tem a autorreverência.46
(LEITER, 2002, p. 116-20. Tradução minha).

Analisando os elementos que Leiter aponta como constituintes dos tipos superiores,
encontrar-se-ão importantes pistas, mas também algumas confusões. De fato, os tipos superiores
são solitários (1), mas eles não lidam com os outros instrumentalmente, pelo menos não com
todos os outros, dado que a reverência que têm para consigo (5) também têm para com seus
iguais, os outros homens superiores, o que se depreende da primeira dissertação de A genealogia
da moral, pois aí o tipo superior, o aristocrata, vê no seu inimigo, sempre outro aristocrata,
alguém tão importante quanto ele; não há ódio ou desprezo, mas admiração e reconhecimento, o
que o torna, por fim, apto à inimizade.
Há em A genealogia da moral, porém, na segunda dissertação, a ideia de que, de fato, os
tipos superiores assumem encargos e responsabilidades para com suas criações (2), mas esse já é
o caminho da decadência, estar preso ao que se criou é o primeiro passo no caminho para o
enfraquecimento pulsional, para o abandono de uma cultura superior e o início da civilização,
pois essa criação é a base da estabilidade pulsional (civilização) que impede as mudanças no
espaço de tempo que separa a condição de nascimento da condição de morte; querer manter suas
criações é promover a rigidez pulsional, pois, enquanto algo é mantido, a diferença e a
modificação não podem ocorrer.
Os tipos superiores, de fato, são saudáveis e resilientes (3), porém, não naturalmente, e
sim pulsionalmente, logo, essa resiliência e saúde não são sem limites, dado o processo da
decadência. Afirmar que os tipos superiores afirmam total e incondicionalmente a vida também é
um equívoco. A afirmação total e incondicional da vida é característica apenas do além-do-
homem, como será mostrado no quarto capítulo.47
Como se vê, não há um caminho fácil para especificar o surgimento e a construção dos
tipos superiores. Mesmo Nietzsche encontrou dificuldades e tateou durante algum tempo em

46
1. The higher type is solitary and deals with others only instrumentally (…). 2. The higher type seeks burdens and
responsibilities, as he is driven towards the completion of a unifying project (…). 3. The higher type is essentially
healthy and resilient (…). 4. The higher type affirms life, meaning that he is prepared to will the eternal return of his
life. Put more simply: the higher type embraces the doctrine of the eternal recurrence and thus evinces what
Nietzsche often calls a “Dionysian” or “life-affirming” attitude (…). 5. The higher man has a distinctive bearing
towards others and especially towards himself: he has self-reverence.
47
Os tipos superiores aceitam o devir e o tomam como um desafio, algo a ser domado e sobre o que podem imprimir
e descarregar sua vontade de poder, todavia, apenas o além-do-homem, como se verá no quarto capítulo, aceita o
eterno retorno.

87
torno de ideias, comportamentos e atitudes que indicassem esse tipo diferenciado de ser humano.
Há em toda sua obra, e com maior frequência no período intermediário e final, elementos
dispersos que podem ser apontados como constituintes dos tipos superiores, principalmente no
segundo e no nono capítulos de Além do bem e do mal, mas foi apenas em A genealogia da moral
que o filósofo conseguiu dar maior clareza às suas ideias, e esta está ligada decisivamente à
maneira como Nietzsche o fez: não por definição ou conceituação, e sim por meio da análise de
processos históricos, sua análise genealógica propriamente dita.
Pelo que se percebe na segunda dissertação, a diferenciação e a hierarquização dos tipos
humanos são tão antigas quanto as primeiras organizações sociais. O surgimento desses tipos
superiores dá-se por meio de um duplo processo que não possui relação de causalidade, mas de
simultaneidade: a criação de uma memória no animal ainda não humano e as primeiras
organizações sociais. Como dito anteriormente, esses acontecimentos não possuem relação de
causalidade entre si, mas de simultaneidade, isso porque, ao passo que o animal ainda não
humano começou a organizar-se em bandos, passou também a impor a si mesmo a necessidade
de uma memória. O que se tem por trás do duplo processo é claramente a organização e a
hierarquização pulsionais internas, levadas adiante por um grupo de pulsões que fundarão aquilo
que é o índice da memória e da possibilidade de se prometer: o Eu. Ressalte-se que a memória a
que Nietzsche se refere na segunda dissertação é claramente a memória de um sujeito, ou de algo
que está sendo criado, algo que está sendo tornado sujeito, a memória de um Eu, uma memória de
conjunto. Esse processo é claramente perigoso para a saúde e a integridade desse animal, pois, ao
passo que se cria nele uma memória e ele se organiza em bandos, também tem início seu
processo de amansamento, ou humanização.
Na análise histórica contida na segunda dissertação, a primeira figura dos tipos superiores
que aparece é a da “besta loura”, que por si só já é um problema se se compara essa imagem do
tipo superior com outra, o espírito livre, cujo exemplo histórico apontado por Nietzsche foi
Goethe. Como é possível que elementos tão distintos façam parte de uma mesma categoria? A
besta loura foi descrita pelo filósofo nos seguintes termos:

(...) uma raça de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente e com força
para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população talvez
imensamente superior em número, mas ainda informe e nômade. Deste modo começa a
existir o “Estado” na terra: penso haver-se acabado aquele sentimentalismo que o fazia
começar com um “contrato”. Quem pode dar ordens, quem por natureza é “senhor”, quem
é violento em atos e gestos – que tem a ver com contratos! (NIETZSCHE, GM II, p. 74-5).

88
Em Além do bem e do mal, Nietzsche afirma que a preponderância do bárbaro (outra
palavra para a besta loura) sobre outros homens “não estava primariamente na força física, mas
na psíquica – eram os homens mais inteiros (o que em qualquer nível significa também ‘as bestas
mais inteiras’ –)” (NIETZSCHE, ABM, p. 259). Desse modo, o que torna essa besta loura um
tipo superior é sua força psíquica, sua capacidade mental de resistência, porém, esta besta loura,
já é um tipo tardio, pois ele está preso a uma organização social e nele já foi feita uma memória,
como se pode depreender da citação anterior, tirada de A genealogia da moral. Mas o que ou
quem poderia forçar esse semianimal tão poderoso, forte e completo a uma vida social? Apenas
acompanhando o desenrolar do surgimento da consciência (que é sempre consciência de um Eu,
ou de algo que se diz Eu), pode-se perceber conjuntamente o surgimento dos tipos superiores, no
momento em que o simples animal é transformado em um animal homem.
Nas primeiras linhas da segunda dissertação, Nietzsche asseverou que a natureza se impôs
a paradoxal tarefa de criar um animal que tivesse memória, um animal capaz de fazer promessas.
Mas o que a natureza tem a ver com isso? Não se pode perder de vista que essa “natureza” nada
mais é do que a vontade de poder de tudo aquilo que vive no planeta, e que o homem, embora
seja tratado inicialmente como uma tarefa autoimposta da natureza, não passa de um mero acaso,
pois sabe-se que o filósofo não acreditava em objetivos ou metas finais para a vida que não
aquelas que os homens criassem e escolhessem. Mas o que significa então esse esforço da
natureza para criar um animal com memória e capaz de fazer promessas? Significa uma estratégia
de luta de um determinado grupo pulsional no combate e domínio dos demais. A memória é o
ponto de permanência do Eu, aquilo que permite que o Eu, enquanto máscara e disfarce do
conjunto pulsional dominante, siga sendo semelhante a si mesmo; se a criação da memória e do
Eu dão certo, então o homem (o si) segue sendo o que é, inclusive, no futuro. A imagem da
permanência é trazida para o Eu graças à memória, e é essa permanência que fortalece o grupo
pulsional que constituiu o Eu. Querer no futuro o que se quis no presente ou no passado é indício
de que não houve alteração significativa na estrutura dos arranjos e das hierarquias pulsionais;
mas com essa resposta tem-se um novo problema, que é a necessidade de se afirmar que as
sociedades aristocráticas, tanto quanto as democráticas, não possuem educação, pois se a
memória sustenta um Eu sempre semelhante a si mesmo, daí resulta que a condição de

89
nascimento é também semelhante à condição de morte, e isso é necessário para que o Eu, fruto da
memória, siga sendo o que sempre foi.
A resposta não é assim tão simples, pois nesse processo surge um novo elemento, também
associado ao Eu, que permite que a luta pulsional continue, todavia, internalizada: a consciência.
Mas não se apressará a resposta ainda, pois o problema retornará. É importante, por ora, perceber
que o grupo de pulsões que funda o Eu torna-se o grupo de pulsões dominante, o animal é
tornado o não animal, o além-do-animal (Überthier). Se o que caracterizava esse “ser” que ainda
não foi tornado humano era o seu si, um caos pulsional, no qual todas as pulsões viviam e se
manifestavam sem hierarquias, o que passará a constituir o animal tornado homem é a hierarquia
pulsional, ou seja, o existir de um conjunto de pulsões dominando as demais, absorvendo e
assimilando-as, ou, ao menos, estar em processo de realizá-lo e torná-las, por fim, função sua –
processo no qual a memória foi fundamental para permitir a ancoragem do si e de seu Eu.
A memória tirou o si, e sua máscara, o Eu, da atemporalidade, dando-lhes um passado e
um futuro que se ligam ao presente sob a forma de promessa, uma espécie de garantia de que,
mesmo havendo o tempo e o devir do tempo, ele não será capaz de desfazer aquilo que a vontade
de poder construiu: a falsa unidade pulsional que é reforçada pelo Eu, que esconde o verdadeiro
interior humano. Todo esse longo acontecimento é o ponto distintivo no qual se apoia a tipologia
dos superiores. Como afirmou Nietzsche na segunda dissertação de A genealogia da moral, os
tipos superiores têm certeza sobre seu próprio poder de automanutenção no tempo, eles têm

O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência


dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais
íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante – como chamará ele a esse
instinto dominante, supondo que necessite de uma palavra para ele? Mas não há dúvida:
este homem soberano o chama de sua consciência. (NIETZSCHE, GM II, p. 50).

Aqui surge o mais importante problema na criação do Eu: as pulsões que forjaram a
memória como maneira de dominar as demais começam a perder o controle e a enfraquecer, pois
a estabilidade pulsional implica em enfraquecimento pulsional. Nietzsche comentou sobre esse
efeito colateral da tomada de poder do grupo que funda o Eu por meio da memória em um
fragmento póstumo:

A “humanização” de tais bárbaros – em parte um processo involuntário, que se instaura


espontaneamente (von selbst), em seguida a uma relativa estabilização das relações de

90
poder – é essencialmente um processo de enfraquecimento, abrandamento, e se completa
precisamente às custas daqueles impulsos aos quais eles deviam sua vitória e posse (...).
(NIETZSCHE, GP, p. 34).

Se a criação da sociedade ou do Estado implicam o enfraquecimento dos tipos superiores


ao mesmo tempo em que são criados (trata-se de processos simultâneos), por que esse tipo
persiste em tal criação? Porque, como se viu em citação anterior, o Estado foi uma criação dos
tipos superiores. O que Nietzsche deixou transparecer é que o processo de criação do Estado foi
uma armadilha na qual uns homens prenderam os outros e acabaram enredados também; porém,
mesmo aqui, a situação não é tão simples assim, pois a mera criação do Estado não implica a
ausência da luta que mantém a tensão pulsional em nível interno e também a tensão social. Se as
relações sociais se passassem apenas como Nietzsche as descreveu na seção 262 de Além do bem
e do mal, o problema seria mais simples. Ele foi, todavia, complexificado com as informações
presentes nas seções 16, 17 e 18 de A genealogia da moral. No primeiro livro, o autor afirmou
que

Uma espécie nasce, um tipo se torna firme e forte na luta prolongada com condições
desfavoráveis essencialmente iguais. Das experiências de criadores se sabe que,
inversamente, as espécies favorecidas com alimentação abundante e sobretudo com
proteção e cuidado extra, logo propendem fortemente à variação do tipo e são ricas em
prodígios e monstruosidades (também em vícios monstruosos) (...); a luta permanente com
condições desfavoráveis e sempre iguais é, como disse, a causa para que um tipo se torne
duro e firme. Mas enfim sobrevém uma situação feliz, diminui a enorme tensão; talvez já
não existam inimigos entre os vizinhos, e os meios para viver, e até mesmo gozar a vida,
são encontrados em abundância. De um golpe se rompem o laço e a coação da antiga
disciplina: ela não mais se sente como indispensável, como determinante da existência –
se quisesse continuar, só poderia fazê-lo como uma forma de luxo, de gosto arcaizante.
(NIETZSCHE, ABM, p. 176-8).

Por esse trecho apenas, pode-se pensar que o problema é simples e que está perto de uma
solução: os tipos superiores precisam das guerras e tensões sociais, da guerra e tensão entre
indivíduo e indivíduo, e, sem elas, sua força tende a decair; dessa maneira, a criação do Estado e
a consequente eliminação ou diminuição dos conflitos internos tendem também a enfraquecer os
tipos superiores, os mesmos que, por exuberância de poder, lançaram seu laço sobre homens
menos fortes e os obrigaram à obediência, restando apenas a guerra contra outros povos, mas que
também, novamente, tenderá ao enfraquecimento e à destruição, seja pela derrota, seja pelo
enfraquecimento que vem após a vitória e a conquista.

91
Um elemento novo, no entanto, é acrescentado em A genealogia da moral, um elemento
que permite que a guerra e a tensão continuem mesmo quando há paz: a consciência. Pela
maneira como Nietzsche descreve o surgimento da má consciência, fica bem claro que ela é a
continuação da memória e que foi criada da mesma maneira que a memória: a ferro e fogo. A má
consciência tem um papel fundamental na manutenção do status de força do grupo dominante e
da própria dominação: ela mantém as lutas internas e permite que a força do conjunto pulsional
dominante se mantenha. É bastante conhecida a hipótese de Nietzsche de que a má consciência
surgiu nas organizações sociais quando a besta loura foi impedida de agir de maneira violenta
contra os demais, e que a força de sua violência, não podendo se manifestar para fora,
manifestou-se para dentro, momento em que as pulsões passaram a fazer guerra de morte umas
contra as outras e todo o conjunto ameaçou cair sob o peso dessa guerra civil das pulsões. A esse
respeito, Nietzsche assevera:

No fundo é a mesma força ativa, que age grandiosamente naqueles organizadores e artistas
da violência e constrói Estados, que aqui, interiormente, em escala menor e mais
mesquinha, dirigida para trás, no “labirinto do peito”, como diz Goethe, cria a má
consciência e constrói ideais negativos, é aquele mesmo instinto de liberdade (na minha
linguagem: a vontade de poder): somente que a matéria na qual se extravasa a natureza
conformadora e violentadora dessa força é aqui o homem mesmo, o seu velho Eu animal.
(NIETZSCHE, GM II, p. 75-6).

O que se tem até aqui como características provisórias dos tipos superiores, então, é a sua
capacidade criadora e organizadora, sua necessidade de manifestar-se enquanto força, enquanto
vontade de poder, pois toda força deve ser força atuante. Porém, na manifestação de sua força e
criatividade (que são uma coisa só para Nietzsche), eles acabaram concebendo um engenho de
domínio tão grande, o Estado, que acabou por dominá-los também devido ao risco de
enfraquecimento que o próprio Estado lhes trouxe. Em decorrência da ausência de possibilidades
de manifestação de sua força descomunal, esse homem superior criou a má consciência, ou seja,
voltou sua força criativa e destrutiva (para se criar uma moral é necessário destruir uma moral)
contra si mesmo, para dentro de seu peito. Isso, e apenas isso, é a má consciência, a vontade de
poder voltada contra o próprio indivíduo, agindo internamente e moldando novas forças de vida.
Como, porém, isso é possível se Nietzsche afirmou categoricamente que a má consciência não foi
criada pelos tipos superiores, como se pode ler em A genealogia da moral?

92
Neles não nasceu a má consciência, isto é mais do que claro – mas sem eles ela não teria
nascido, essa planta hedionda, ela não existiria se, sob o peso dos seus golpes de martelo,
da sua violência de artistas, um enorme quantum de liberdade não tivesse sido eliminado
do mundo, ou ao menos do campo da visão, e tornado como que latente. Esse instinto de
liberdade tornado latente à força – já compreendemos –, esse instinto de liberdade
reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si
mesmo: isto, apenas isto, foi em seus começos a má consciência. (NIETZSCHE, GM II, p.
75).

O problema requer uma importante distinção entre má consciência, fruto da força


internalizada, própria dos tipos superiores, e má consciência ressentida, própria dos tipos
inferiores. No início da seção 17 da segunda dissertação, Nietzsche explicou que a transformação
do não homem (o animal ainda não humanizado) em homem foi tão rápida que não ensejou lutas
nem sequer ressentimento. Ou seja, os tipos superiores não notaram o redirecionamento da força
e seguiram combatendo os novos inimigos que se lhes apresentavam, os inimigos internos. Nos
tipos inferiores, entretanto, a situação foi distinta: eles viveram a internalização das pulsões, mas
não por que criavam algo, e sim porque eram presos nas armadilhas daqueles que criavam algo.
Nos tipos inferiores, a má consciência é ressentida, ou seja, os sentimentos e sensações que lhe
estão associados se repetem, por uma dupla incapacidade: a de conviver com a tensão externa e
com a tensão interna. Em outras palavras: essa má consciência é ressentida porque encontra
“dentro” aquilo de que fugira “fora”. Como esses tipos inferiores não conseguem sentir a
sensação de força externamente, porque o mundo lhes é maior e mais poderoso, nem
interiormente, porque as pulsões enfraquecidas, temporariamente no comando, têm de lutar com
pulsões que vêm se fortalecendo, ou já estão fortalecidas, o que sobra a elas é a autofagia na
forma da culpa. A culpa permite às pulsões enfraquecidas uma duplicação que, embora virtual,
possibilita a sensação de poder. As pulsões enfraquecidas duplicam-se por meio do seu Eu, do
seu sujeito; com essa duplicação, tem-se o Eu sujeito que erra e recebe o peso da culpa, e há outro
Eu (as pulsões enfraquecidas) que julgam, condenam e aplicam a pena correspondente ao pecado
desse Eu que errou.
Se nos tipos superiores o Eu sujeito é máscara e fantasia que fortalece o domínio, nos
tipos inferiores é uma espécie de “bode expiatório” no qual a pouca força das pulsões em
domínio se descarrega. Afinal, ele é mais fraco. Mas essa estratégia os fortalece o suficiente para
que possam conter, enfraquecer e aniquilar as pulsões divergentes e diferentes que se vêm
fortalecendo.

93
Essa interpretação do pensamento de Nietzsche torna sem sentido a hipótese de
Katsafanas, de que a criação da má consciência é o resultado de uma luta entre instintos (pulsões)
destrutivos e instintos sociais, como se vê abaixo:

Nossos instintos para a comunidade, para que possam ser satisfeitos, exigem a contenção
dos instintos agressivos. Assim, a pessoa na sociedade experimenta um profundo conflito,
que por si só gera dor, a dor de ser impelido em direções opostas. E é neste ponto que a
interiorização vem: paradoxalmente, a interiorização dos instintos agressivos consiste na
repressão dos instintos agressivos pelos instintos sociais, que, neste ato de repressão,
expressa os instintos agressivos em uma nova e internalizada forma. Mais lentamente: os
instintos agressivos originalmente encontram expressão em fazer os outros sofrer. Os
instintos sociais sufocam essa expressão externa dos instintos agressivos, e a resultante
discórdia interna e recusa em permitir a descarga de certas pulsões (drive) gera sofrimento
profundo. Portanto, os instintos sociais passam a incluir, como um componente essencial,
uma pulsão para reprimir os instintos agressivos que se manifestam agressivamente, e esta
nova pulsão causa sofrimento intenso. Esta nova pulsão criadora de dor é apenas os
instintos agressivos em si mesmos, em uma forma internalizada. A interiorização dos
instintos agressivos, então, consiste nos instintos agressivos se expressando nos instintos
sociais.48 (KATSAFANAS, 2005, p. 19-20. Tradução minha).

Há dois problemas graves em tal interpretação: o primeiro é distinguir entre pulsão e


instinto; e o segundo é admitir que existam tipos distintos de pulsões. Afora isso, o autor cria um
enredo bastante ilógico no qual as pulsões agressivas acabam se tornando as pulsões sociais. O
que se tem, de fato, na criação da má consciência, para Nietzsche, é que um grupo pulsional, em
seu afã de domínio, lança mão de uma criação até então impensada, como forma de dominar as
demais pulsões: a criação do Estado, tão portentosa e poderosa que acaba enredando seus
próprios criadores, que, dentro do Estado, privados da possibilidade de agir violentamente, ou
seja, agir pulsionalmente, são obrigados a dirigir sua agressividade contra eles mesmos, em um
processo interno de autoflagelação pulsional. O enfraquecimento desse homem superior,
caracterizado pela força e criatividade, não está, todavia, no próprio Estado, mas na incapacidade
de seguir criando, de continuar oferecendo livre curso à sua força plasmadora, dado que a

48
Our instincts for community, if they are to be satisfied, necessitate the restraint of the aggressive instincts. So the
person in society experiences a profound conflict, which just by itself generates pain, the pain of being impelled in
opposing directions. And this is where the internalization comes in: paradoxically, the internalization of the
aggressive instincts consists in the repression of the aggressive instincts by the social instincts, which, in this act of
repression, express the aggressive instincts in a new, internalized form. More slowly: the aggressive instincts
originally find expression in making others suffer. The social instincts stifle this outward expression of the
aggressive instincts, and the resulting internal discord and refusal to let certain drives discharge generates profound
suffering. So the social instincts come to include, as an essential component, a drive to repress the outwardly-
directed aggressive instincts; and this new drive causes intense suffering. This new, pain-inducing drive is just the
aggressive instincts themselves, in an internalized form. The internalization of the aggressive instincts, then, consists
in the aggressive instincts’ finding expression in the social instincts’.

94
sociedade, ou o Estado, tende sempre à cristalização, e essa cristalização abre novamente as
portas para o surgimento dos tipos superiores, que, a duras penas, deverão lutar contra a
sociedade (civilização) instituída, não porque queiram desafiá-la, mas porque não podem ser de
outra maneira; o arranjo pulsional que esse novo homem é lhe obrigará a isso. De acordo com
Frezzatti:

O gênio, o grande homem, a exceção é quem promove a destruição da própria cultura, pois
ele mudará as regras vigentes e apontará para um novo caminho, para uma nova cultura
(...). Assim é porque, para poder criar uma cultura elevada (cultura elevada em relação à
cultura vigente), o grande homem é um desperdiçador de potência, de tal modo que esse
brutal extravasamento afasta qualquer tendência à auto-conservação. (FREZZATTI, 2004,
p. 120-1).

Há um último problema que carece ser analisado na constituição dos tipos superiores: a
diversidade pulsional, em especial o modo como a consciência se torna o centro agregador das
necessidades e reclamações dessa diversidade pulsional.

1.1.1 – O domínio pulsional

Tem-se até aqui que as características dos tipos superiores são: força criativa que se
plasma no mundo por meio da sua vontade de poder; e a memória que permite que esse homem
siga querendo o já querido e seja capaz de fazer promessas e honrá-las. Talvez essa seja a mais
importante de todas as características dos tipos superiores, ela é seu índice de força e domínio
sobre si e sobre o mundo a sua volta, o que fez com que Nietzsche afirmasse sobre essa memória:

O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência


dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais
íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante – como chamará ele esse
instinto dominante, supondo que necessite de uma palavra para ele? Mas não há dúvida:
esse homem soberano o chama de sua consciência. (NIETZSCHE, GM II, p. 50).

Talvez tenha havido confusão no encerramento do tópico anterior, quando a má


consciência é apresentada como criação dos tipos superiores, e não dos inferiores, como
comumente se acredita (eles não seriam fortes o suficiente para criar algo tão grandioso). De fato,
a má consciência está presente nos tipos superiores e nos tipos inferiores, porém, a consciência,
como descrita na citação imediatamente anterior, pertence apenas aos tipos superiores; ela é seu

95
triunfo e troféu sobre o mundo e a transitoriedade do mundo. Os tipos superiores impõem
regularidade ao caos por meio de sua vontade de poder, e só tendo uma forte consciência isso é
possível, pois, como se disse, é a consciência, enquanto certeza baseada na memória, que permite
que esses tipos superiores reconheçam e deem vida à ficção temporal, unindo as pontas de três
grandes ilusões perspectivas: passado, presente e futuro, e tornando-as uma só coisa: o tempo,
criação que os tipos superiores dominam e que reforça o seu poder sobre si e sobre o mundo: só
os tipos superiores podem afirmar que serão o que são e que são o que foram.
Por trás dessa consciência, porém, esconde-se outra coisa, um piso por baixo desse tão
sólido solo: a maneira como os tipos superiores lidam com suas demais pulsões e o papel que a
consciência desempenha nessa relação complexa. A constituição pulsional dos tipos superiores é
bastante diversa daquela dos tipos inferiores. Enquanto os tipos inferiores são tipos pobres, no
sentido de que são uma baixa diversidade pulsional, por não poderem conviver com a
multiplicidade e diferença, os tipos superiores são a encarnação da multiplicidade e da diferença,
e na relação das pulsões dominantes com as demais perceber-se-á o papel fundamental da
consciência como estratégia de dominação criada pelas pulsões dominantes.
Diz-se com muita frequência que o tipo superior é um tipo afirmador, isso graças,
principalmente, à primeira dissertação de A genealogia da moral, onde Nietzsche explicita a
maneira como os tipos superiores criam valores, inclusive os seus valores morais: baseando-se
totalmente em si mesmos; ao contrário dos tipos inferiores, que criam seus valores de maneira
negativa, ou seja, baseiam-se nos senhores em primeiro lugar e definem-se como contrários a
esses senhores. É conveniente, porém, perguntar: de que maneira os senhores podem ter essa
certeza tão grande sobre si mesmos, certeza que possibilita a criação positiva, afirmativa, que se
opõe à criação negativa ou reativa dos tipos inferiores? Os tipos superiores só são superiores se
neles não houver desarmonia ou caos pulsional, nas bem conhecidas palavras de Nietzsche:

O domínio sobre as paixões, não seu enfraquecimento ou extermínio! Quanto maior é a


força dominadora de nossa vontade, tanto mais liberdade pode ser dada às paixões. O
grande homem é grande pelo espaço de liberdade de suas paixões: ele é, porém, forte o
suficiente, de modo que faz desses monstros seus animais domésticos... (NIETZSCHE, GP,
p. 50).

É necessário recordar que no primeiro capítulo deste trabalho foi demonstrado como a
palavra paixão, usada com grande frequência por Nietzsche, muitas vezes carrega o mesmo valor

96
semântico de pulsão. É o caso da citação anterior, nela encontra-se a clara afirmação da
multiplicidade pulsional que são os tipos superiores, porém, essa multiplicidade é distinta daquela
outra apresentada no primeiro capítulo:

O conflito das paixões, a dualidade, a triplicidade, a multiplicidade de “almas em um


peito”: nada saudável, ruína interior, afrouxamento, revelando e aumentando a divisão e o
anarquismo interno –: a não ser que uma paixão se torne finalmente Senhor (Herr).
Retorno da saúde. (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[157], p. 342. Tradução minha).

A diferença reside justamente no domínio pulsional; nos homens superiores a diversidade


das pulsões não representa uma ameaça ao equilíbrio, pois há pulsões dirigentes que comandam
as demais, o que fica ainda mais claro com outro pequeno fragmento não publicado por Nietzsche:

O homem mais elevado teria a maior multiplicidade das pulsões, e também no vigor
relativamente maior que ainda se pode suportar. De fato: onde a planta homem mostra-se
forte, encontramos os instintos que impelem vigorosamente um contra o outro, porém
contidos. (NIETZSCHE, GP, p. 26).

Mas, se há tirania das pulsões dominantes sobre as que lhe são subalternas, de modo que
estas possam se manifestar sem, todavia, alterarem a organização e ameaçarem o domínio
daquelas, o mesmo modelo de relação não se encontra entre as pulsões dominantes, estas se
tratam como os membros de uma aristocracia sã: com respeito e reconhecimento mútuo.
Nietzsche esteve sempre muito preocupado com essa relação hierárquica das pulsões no interior
de um mesmo indivíduo, em especial em como as pulsões dominantes chegam a esse status. Um
dos caminhos mais apontados pelos comentadores é o da sublimação pulsional, ideia que teve
grande repercussão e defesa na obra de Walter Kaufmann, Nietzsche: philosopher, psychologist
and antichrist. Nessa obra, o autor defende a ideia de que Nietzsche endossaria uma sublimação
das pulsões, sublimação que consistiria em desviar a força pulsional do seu objeto de satisfação.
Kaufmann especificou essa sublimação por meio de uma relação entre sublimação e
autossuperação (self-overcoming): “A primeira questão, a respeito da autossuperação foi agora
respondida: Nietzsche pintou o triunfo sobre os impulsos em termos de sublimação.” 49
(KAUFMANN, 1960, p. 197. Tradução minha). A respeito do triunfo sobre si mesmo, o autor
afirmou:

49
The first question about self-overcoming has now been answered: Nietzsche pictured the triumph over the
impulses in terms of sublimation.

97
(...) “Auto-superação” (self-overcoming) é concebível e tem significado quando o Eu é
analisado sob a perspectiva de duas forças, tais como razão e inclinação. Fora desta
dualidade, fora do panorama de uma força superando e controlando uma outra,
autossuperação parece impossível.50 (Idem, p. 186).

Desse modo, para Kaufmann, a sublimação consiste em uma espécie de autossuperação.


Consiste no domínio de uma pulsão sobre a outra, mas para isso o filósofo subdivide e classifica
as pulsões e admite que o próprio Nietzsche sucumbiu ao dualismo que tanto tentou evitar; neste
caso, então, as pulsões da razão controlariam as pulsões da inclinação. Todavia, Nietzsche não foi
um defensor da sublimação. Essa leitura de um Nietzsche preocupado com a sublimação dos
impulsos, mesmo que seja na forma da autossuperação, é bastante influenciada pelo pensamento
de Freud. O que Nietzsche, principalmente em O crepúsculo dos ídolos, denominou como
espiritualização (Vergeistigung) da sensibilidade e da inimizade não é nem sublimação nem
autossuperação, e sim o esforço das pulsões dominantes em angariar a cooperação das pulsões
subalternas, de modo que elas consigam manifestar-se, mas dentro dos limites impostos pelo
conjunto dominante. É o que se pode compreender da leitura a seguir:

(...) Quase todo partido vê que está no interesse de sua autoconservação que o partido
oposto não esgote a força: o mesmo vale para a grande política (...). Não agimos de modo
diferente em relação ao inimigo “interior”: também aí espiritualizamos a inimizade,
também aí compreendemos o seu valor. Somos fecundos apenas ao preço de sermos ricos
em antagonismos; permanecemos jovens apenas sob a condição de que a alma não relaxe,
não busque a paz... Nada se tornou mais estranho a nós do que aquele desiderato de
antigamente, o da “paz do espírito”, o desiderato cristão; nada nos causa menos inveja do
que a vaca moral e a gorda satisfação da boa consciência. Renunciamos à vida grande, ao
renunciar à guerra... em muitos casos, é certo, a “paz de espírito” é apenas um mal-
entendido – outra coisa, que não sabe denominar-se mais honestamente. (NIETZSCHE,
CI, p. 35).

O que se quer, dessa forma, não é nem enfraquecer nem amolecer as demais pulsões, mas
manter suas forças para que continuem trabalhando em prol do conjunto, em prol do si, mesmo
que na condição de opositores, pois Nietzsche sabia dar valor a uma verdadeira oposição, a uma
verdadeira inimizade. Note-se que ao final da citação o filósofo fala de algo que, por não saber
dar um nome melhor, nomeia-se como “paz de espírito”. Essa “paz de espírito” é a harmonia
pulsional, quando encabeçada por pulsões dominantes fortes e que são capazes de fazer mesmo as
50
“Self-overcoming” is conceivable and meaningful when the self is analyzed into two forces, such as reason and the
inclinations. Apart from such a duality, apart from the picture of one force as overcoming and controlling another,
self-overcoming seems impossible.

98
pulsões mais dissidentes trabalharem pelo si, o que acontece, claramente, por meio da
consciência.
Foi citado no capítulo anterior breve texto de Oswaldo Giacoia, no qual se afirmava o
papel dirigente da consciência, que a partir dela o conjunto pulsional dominante pode dominar as
demais pulsões e ao mesmo tempo estabelecer pontes de comunicação com os outros seres
humanos, que, por sua vez, são outros labirintos pulsionais, aos quais pertencem uma memória e
uma consciência, e que foram, desde suas idades mais tenras, submetidos à vontade de poder
dominante, à vontade de poder que estabeleceu a sociedade e imprimiu sua marca nos indivíduos,
por meio do constante esforço para que sua condição de nascimento não se alterasse, para que o
indivíduo fosse sempre o mesmo e que, por fim, ao morrer, sua condição de morte fosse
semelhante à de nascimento. Para que isso ocorra, porém, além do constante esforço social
disciplinador por meio da família, da escola etc., cabe à consciência papel ainda mais elevado do
que o de instância dirigente dessa coletividade pulsional. A consciência encarna a existência do
Eu e ignora ou escamoteia a existência de outras vozes internas que também querem dizer Eu. A
consciência, encarnada no papel do Eu, ignora e deve ignorar que é apenas uma criação pulsional
com função de domínio e controle sobre a diversidade pulsional; isso, claro, para que seu papel
seja efetivo e funcional. Dessa forma, ela toma o querer manifestar-se das outras pulsões em
problema seu, angústia sua; é por meio dessa habilidade que as pulsões dominantes exercem total
controle sobre as forças dissidentes, é também nela que se verifica mais uma característica dos
tipos superiores: a consciência assume as pulsões dissidentes como partes de si mesma, enquanto
nos tipos superiores a consciência tenta exterminar essas pulsões dissidentes. Não se deve
diminuir a importância desse fato, pois, em última instância, é ele que permite que haja tensão
interna entre as pulsões, sem que, todavia, haja descontrole, o que, claro, não se pode notar nos
tipos inferiores, que degeneram ou na anarquia pulsional ou no empobrecimento e na
singularizarão pulsionais.
Essa plurivocidade da consciência dos tipos superiores permite que todas as pulsões se
manifestem e se esforcem por manifestar-se, mas todas são apanhadas e capturadas como vozes
da mesma consciência, uma consciência que tem a si mesma como multiforme e multifacetada,
mas ainda uma consciência única. Nos tipos inferiores isso não é possível: neles a consciência é
unívoca, por ela e nela chegam apenas as vontades das pulsões dominantes, que lutam por sufocar
e anular a dissidência, incapazes que são de controlá-las e conviver com elas. Porém, como se viu

99
em citação de O crepúsculo dos ídolos, não se pode prescindir da força da oposição; e mais uma
vez ressalta-se o equívoco de Walter Kaufmann ao atribuir a Nietzsche um esforço de sublimação
pulsional; novamente: essa sublimação não existe nos tipos superiores, eles não sublimam suas
pulsões nem as enfraquecem, mas convivem com elas, com sua tensão e multiplicidade. Também
não há sublimação nos tipos inferiores: eles lutam para eliminar a dissidência, incapazes de
conviver com a tensão interna. Essa autossuperação de Kaufmann assemelha-se muito mais à
autossupressão hegeliana do que à legítima autossuperação nietzscheana, assunto que será
retomado no tópico final deste capítulo.
De todas as características que comumente se atribui aos tipos superiores como distintivos
dos tipos inferiores, como mostrado em citação de Leiter e também de Oliveira Júnior, apenas o
controle pulsional pela consciência é efetivamente específico dos tipos superiores, apenas ele não
é percebido nos tipos inferiores; e é o controle pulsional que está na raiz de outro problema de
vasta significação no pensamento de Nietzsche: a questão da ascendência e da decadência dos
tipos. Todavia, antes do estudo desse problema, é necessário analisar o surgimento e a definição
dos tipos inferiores.

1.2 – Os tipos inferiores

Seguindo o intuito de criar uma filosofia agonística, porém não dicotômica, Nietzsche
colocou em um extremo da reta humana os tipos superiores e no extremo oposto os tipos
inferiores. Mas que fique claro, como será demonstrado no item a seguir, que esses tipos
representam o mesmo ser humano, em momentos distintos, diferenciados pela organização de
suas pulsões. A maior parte das análises que Nietzsche fez desses dois tipos humanos (o superior
e o inferior) diz respeito à moralidade adotada por cada um deles, aquilo que Nietzsche nomeou
de moral dos senhores e moral dos escravos. A moral dos senhores é criada como ato afirmativo
em sua totalidade, um dizer sim a si mesmo e ao mundo. O escravo, por sua vez, desenvolve sua
moralidade sempre de forma negativa: negando o senhor; nominando-o como mal, o escravo
nomeia-se como antagônico ao senhor, logo, nomeia-se como bom. Se a atitude valorativa do
escravo é sempre negativa, poder-se-ia supor que sua caracterização seria apenas um esboço
pálido e vazio do senhor, ou seja, bastaria supor um senhor e retirar-lhe todas as qualidades e

100
forças ativas, e o que restaria seria o tipo fraco. Mas isso é um engano: quase tudo aquilo que o
senhor faz o escravo também faz, mas movido por outra motivação.
Se o senhor (tipo superior) é um conjunto pulsional dominado por pulsões fortes, que
exercem forte domínio e hierarquizam o conjunto pulsional, domínio que, todavia, não é
castrador, pelo contrário, permite a manifestação das demais pulsões, seria, então, de se pensar
que o escravo, ou qualquer outra figura dos tipos inferiores, como os animais de rebanho, os
últimos homens etc., seria de se pensar, como se dizia, que os tipos fracos se caracterizariam pela
desordem e pelo caos pulsional. Essa é a opinião de Oliveira Júnior:

(...) o tipo fraco é resultado da anarquia interna, desagregadora dos impulsos e das
vontades, no indivíduo, com o predomínio dos impulsos fracos e reativos sobre os fortes e
ativos. Incapaz de encarar a superação, característica inerente à vida, o fraco prefere
eliminar artificialmente, por meio da crença e da fé, a luta interna, os conflitos e
contradições presentes no seu organismo, na sociedade e na vida. (OLIVEIRA JÚNIOR,
2004, p. 113-4).

De acordo com a citação, as características do tipo fraco são: a) anarquia e desagregação


pulsional; b) predomínio dos impulsos fracos e reativos; c) inaptidão para a superação; d)
eliminação da tensão interna. Dessas características, apenas a última (d) é realmente condizente
com a proposta de Nietzsche, realmente condizente com a constituição dos tipos inferiores.
Os tipos inferiores não são o resultado da desagregação e anarquia pulsional, embora estas
possam, sem dúvida, conduzir ao enfraquecimento dos tipos superiores, tornando-os tipos
inferiores. Essa anarquia pulsional está muito mais próxima dos bárbaros (a besta loura), tidos
por Nietzsche como tipos superiores. Afinal, apenas a criação do Estado obrigou o homem ao
controle e autocontrole pulsional, o que permite pensar que o bárbaro, o homem pré-moral, não
deveria ser um exemplo de organização e harmonia pulsional. Como foi mostrado anteriormente,
o que levou Nietzsche a considerá-los tipos superiores foi sua força e a energia plasmadora
intactas (NIETZSCHE, HDH I, p. 170, Os ciclopes da cultura). Aqui se faz necessário lembrar
novamente as características dos tipos superiores: se os tipos superiores são uma grande miríade
pulsional, sob controle de pulsões fortalecidas, porém não castradoras, o tipo fraco é o seu
inverso apenas na diversidade pulsional e na forma do controle. Nos tipos fracos não há anarquia
pulsional porque não há diversidade pulsional, a pulsão dominante aniquila as rivais, eliminando,
assim, a concorrência e a diversidade, mas condenando-se também à morte, pois sem a
diversidade e a luta qualquer organismo perece.

101
A outra característica proposta por Oliveira Júnior na caracterização dos fracos (b) é que
nestes há predomínio de pulsões fracas e reativas. Novamente: não há pulsões da atividade ou da
reatividade, há apenas pulsões. Uma pulsão reativa é uma pulsão enfraquecida, despotencializada,
uma pulsão que perdeu seu tônus vital, sua energia. Essa energia se perde por duas vias: falta de
atrito ou massacre empreendido por uma pulsão temporariamente mais fortalecida, o que redunda
no caso anterior. Os dois casos são típicos dos tipos fracos: neles o domínio não é de uma pulsão
enfraquecida, pelo menos não inicialmente, e sim de uma pulsão fortalecida que vai se
despotenciando, pois elimina as pulsões divergentes, que lhe propiciariam o conflito que expande
a força. Mas nos fracos também há vontade de poder, pois onde há pulsão há vontade de poder. O
fraco não é o resultado de escolhas malfeitas pelo sujeito fraco, e sim de ocorrências infelizes nas
suas organizações pulsionais. No fraco há também um sujeito, e uma consciência, sob o controle
das pulsões dominantes, mas essa consciência não é capaz de tornar-se o porta-voz das outras
pulsões, ela é fraca e tem limites estreitos, não pode falar por muitos, tem sobre si valores morais
pesados que impedem uma plurivocidade, logo, precisa eliminar essas outras vozes.
O outro ponto ainda não analisado da citação acima (c) requer exame bastante cuidadoso,
que será empreendido na discussão sobre a convalescença e a decadência, ainda neste capítulo,
pois, se os tipos não são fixos e há transição entre eles, é possível haver superação em um tipo
fraco, todavia, isso o tornaria outra coisa que não o fraco. Como dito anteriormente, essa questão
será analisada mais detalhadamente.
Onate também oferece uma interessante dica de como se constitui o tipo fraco. Para ele,
há uma linha de sintetização dos instintos fortes e naturais, e

(...) a falta ou ineficiência dessa linha sintetizadora dos instintos naturais leva-os à
desagregação, à anarquia, abrindo caminho para que surjam e se desenvolvam os impulsos
contrários às funções reguladoras da vida: “Ter de combater os instintos – eis a fórmula
para a décadence: enquanto a vida se intensifica, felicidade é igual a instinto” (...). É sob
tais condições que se manifesta o homem fraco, resignado, que valoriza acima de tudo o
repouso, a tradição. (ONATE, 1996, p. 23-4).

Embora a interpretação de Onate assemelhe-se em alguns pontos à interpretação de


Oliveira Júnior,51 aquele autor abre importante porta na compreensão da constituição dos tipos

51
Como a crença na existência de tipos distintos de pulsões, e que umas são favoráveis à vida e outras lhe são
contrárias, mas não há algo como pulsão de morte em Nietzsche, não há pulsão contrária à vida, as pulsões que
Nietzsche afirma prejudicarem a vida são justamente as enfraquecidas, as que não conseguem permanecer na luta,
em decorrência de sua fraqueza e, em vez da destruição, inclinam-se para (é difícil encontrar uma expressão exata

102
inferiores: os tipos inferiores são um problema pulsional. Essa é a via interpretativa eleita por
Giacoia, que trata o enfraquecimento como ressentimento, ou seja, repetição de algo já sentido, o
que indica incapacidade pulsional de se livrar dos afetos, incapacidade pulsional de digerir
experiências ruins, incapacidade de descarregar a força acumulada, por meio, por exemplo, da
vingança. Nas palavras de Giacoia:

O tipo ressentido é aquele no qual ocorre uma inibição ou bloqueio na capacidade de


descarga de energias e afetos em direção ao exterior. Curiosamente, pois, aquele tipo
psicológico cujo mundo valorativo se constitui a partir da negação da alteridade – portanto
da influência de um estímulo externo – é também aquele que sofre de disfunção em sua
capacidade de descarga psíquica, não podendo desembaraçar-se de impressões vividas, em
especial das vivências de desprazer, da dor.
Se o desprazer faz parte da condição humana, afetando o nobre tanto quanto o plebeu, este,
no entanto, está condenado a não poder afastar da consciência a experiência do sofrimento.
Essa capacidade ou impotência para afastar da consciência a dor vivida é que
distingue a saúde da doença, a força da fraqueza. É dela que se origina o
ressentimento, enquanto variante internalizada do sentimento e instinto de vingança.
(GIACOIA, 2001, p. 83. Grifo meu).

Ao fazer a passagem da fraqueza para o ressentimento, Giacoia oferece-nos a mais


importante chave para compreensão dos tipos inferiores: se os tipos inferiores re-sentem o que
sentiram, isso é um indício de que eles não têm forças para se livrar do já sentido e seguem
repetindo-o. Os tipos fracos, assim como os fortes, são tipos pulsionalmente constituídos. Os
segundos são constituídos por pulsões exuberantes e fortalecidas, que têm poder para comandar
sem castrar. Os outros são constituídos por pulsões enfraquecidas, tão enfraquecidas que não
admitem a concorrência pulsional e precisam eliminá-la, enfraquecendo-se ainda mais. Nos
fracos há vontade de poder, mas uma vontade de poder enfraquecida. Nas palavras de Nietzsche,
neles há impotência para a potência (Ohnmacht zur Macht). Aqueles que afirmam que os tipos
superiores são definidos pela criatividade, porque apenas eles possuem força criativa, também se
enganam, pois os tipos inferiores também são criativos. O ressentimento é o poço sem fundo de
toda essa criatividade, e sua principal criação é, sem dúvida, a moral. A moral oferece aos
ressentidos a possibilidade de fazer a descarga das forças contidas por meio de um deslocamento

que descreva esse movimento das pulsões enfraquecidas) o repouso em busca de restauração. As duas interpretações
também se afinam na ideia de que há anarquia pulsional nos tipos fracos. Onate inclusive interpreta estranhamente a
citação de Nietzsche que ele mesmo utilizou: para o filósofo, ter de combater os instintos é móvel de
enfraquecimento porque os instintos não devem ser combatidos, mas fomentados e controlados por pulsões fortes o
suficiente para darem conta das tarefas organizadoras.

103
lógico bastante significativo, a passagem da noção nobre de responsabilidade para a noção
escrava de culpa.
A responsabilidade é um privilégio senhoril por conta da associação memória/controle de
si/consciência. Com esses elementos, o senhor é capaz de assumir compromissos e
responsabilizar-se por sua execução, posto que a memória mantém sempre no presente a
promessa feita no passado e que o controle de si impede a obliteração dessa memória por pulsões
subalternas e também garante que o Eu, permanecendo o mesmo e sob o domínio das mesmas
pulsões, executará a promessa. Mas os tipos superiores não são apenas o resultado de uma
memória poderosa, são também capazes de algo mais: esquecimento. O esquecimento possibilita-
lhes abandonar muitas coisas que atulham a consciência. Não se trata de perdão na forma de
esquecimento das ofensas, mas de uma autêntica digestão psíquica, na qual as ofensas são
digeridas pelas pulsões constituintes do si e passam a fazer parte da história de constituição deste
si.
Os tipos inferiores conhecem apenas a memória, a eles não chega a possibilidade do
esquecimento, como aqueles que Nietzsche chamou em Assim falou Zaratustra de aleijados ao
contrário, homens que são grandes orelhas, grandes ouvidos; a exemplo deles, os tipos inferiores
são grandes memórias. A moral oferece aos tipos inferiores uma possibilidade de lidar com a
grande memória que eles são. Não que a moral ofereça uma porta aberta ao esquecimento, mas
ela oferece uma porta aberta à redenção, ao pagamento, seja o pagamento pelo autossacrifício
seja pela compensação na forma de graça e bem-aventurança. No primeiro caso, o tipo fraco não
esquece nem digere suas más vivências, mas paga por elas, paga por possuí-las, transformando-as
em pecado e em seguida impondo-se ou recebendo do sacerdote a penitência relativa ao pecado
na forma de castigo expiatório; na verdade, o Eu é responsabilizado, e sobre ele esse si dos tipos
inferiores descarrega sua força enfraquecida, processo que, como se disse anteriormente, permite
a intensificação da sensação de força. Se as mais antigas relações humanas estão presas ao
comércio, como afirmou Nietzsche na segunda dissertação da A genealogia da moral, e a base
dessas relações é a pressuposição de que tudo tem um preço e de que tudo pode ser pago,52 há
também um comércio com Deus, no qual as dívidas contraídas com o altíssimo, por meio da
desobediência às suas leis, podem ser pagas por diversas formas de expiação. Mas a obediência a

52
É interessante ressaltar a observação feita por Nietzsche no texto mencionado de que, em alemão, dívida e pecado
são expressos com uma única palavra: Schuld.

104
essas leis também tem um pagamento, posto que tal obediência é uma dívida do crente, não com
Deus (pois o pagamento é feito na forma de graça, logo, nunca obrigatório, nunca garantido), mas
a dívida é do sujeito com sua própria consciência, que, tranquilizada e pacificada, ou seja,
despotencializada pela eliminação das potências dissidentes, abre-se, então, ao caminho da
iluminação, ocorrendo das mais diversas maneiras, como graça, milagre e bem-aventurança, e em
formas mais sutis e refinadas, como nirvana, iluminação etc. Que fique claro: a moral não
possibilita uma descarga das tensões internas dos tipos inferiores, o que ela possibilita é uma
internalização ainda mais aprofundada na memória desses desafetos, uma intensificação e
potencialização dos ressentimentos, que, todavia, deixam, mesmo que temporariamente, de
exercer pressão. Porém, se os pecados se tornarem tão volumosos que não possam ser soterrados,
ou expiados, entra em cena todo o espetáculo da redenção, que, para Nietzsche, no enredo bíblico
do cristianismo, significa o Deus fazendo-se humano e sacrificando-se pelos humanos, ou seja, o
Deus, móvel de toda a moral, acerta contas consigo mesmo, isentando o devedor de seus pecados,
mas criando nele mais um compartimento para os valores morais, o compartimento do Deus que
sacrifica a si mesmo em nome do amor total pelos seus filhos.
Depreende-se do que foi exposto que os tipos fracos têm uma psicologia e composição
bastante complexa, motivo pelo qual Nietzsche diversas vezes insistiu que eles são mais
interessantes, ao menos de serem estudados. Eles não são tão diferentes dos tipos superiores, a
diferença é quantitativa, mas que na concentração de forças pulsionais gera outra diferença, esta
sim podendo ser vista como qualitativa: a baixa quantidade de energia pulsional faz com que as
pulsões dominantes (pulsões enfraquecidas) não suportem a diversidade pulsional e busquem
eliminar qualquer força dissidente, enfraquecendo-se cada vez mais; esse enfraquecimento,
porém, é contido pelo mecanismo da culpa, que permite que o si, que são os tipos inferiores,
descarreguem sua pouca força sobre o seu Eu, que lhe é mais fraco e recebe o peso da culpa e o
ônus da expiação.
O que se analisará no item seguinte é um elemento fundamental para uma boa
compreensão da tipologia nietzscheana, em especial para as alterações que podem ocorrer a essa
tipologia e que estão diretamente ligadas ao problema educacional aqui analisado, isto é, o
problema da convalescença e da decadência tipológica.

105
2 – Convalescença e decadência tipológica

No que se refere à tipologia nietzscheana, uma das mais importantes perguntas que se
deve fazer é aquela da mutabilidade dos tipos: é possível haver transição entre os tipos? Ou, ainda,
um tipo superior pode tornar-se inferior e vice-versa? Essas perguntas têm sua importância
aumentada quando se trata do pensamento educacional de Nietzsche, principalmente neste
trabalho, que toma como pressuposto a ideia de que para ele só há educação quando a condição
de morte é distinta da condição de nascimento, o que indica, claramente, alteração nos arranjos
pulsionais, que, em nível máximo, é a própria mudança do tipo. Esses problemas ficaram
caracterizados no pensamento de Nietzsche sob a rubrica da decadência e seu contramovimento,
a ascendência.
A decadência não é um tema novo no pensamento ocidental, pelo contrário, ela se estende
desde a Antiguidade, ou ao menos das análises contemporâneas e modernas da Antiguidade.
Gibbon (2005) tratava dela como tema de grande importância para a cultura e a história ocidental,
assim como Arthur Herman (2001) também tentou seguir sua eclosão como forma de pensamento
na história do Ocidente. Isso dá mostras da importância que o assunto teve no pensamento
moderno e continua tendo no contemporâneo. Outro importante historiador, contemporâneo de
Nietzsche, profetizou também a decadência cultural da Europa: Jacob Burckhardt. Burckhardt
exerceu grande influência sobre o jovem Nietzsche quando este buscava progressivamente
afastar-se do pensamento de Schopenhauer e da arte wagneriana, ao ponto de Nietzsche
denominá-lo como “o maior mestre” (LARGE, 2000, p. 38-39). Nietzsche e Burckhardt foram
colegas de trabalho na Universidade da Basileia quando Nietzsche era então um professor
iniciante na carreira do magistério superior. A ideia de cultura de Burckhardt, em especial,
influenciou profundamente o jovem professor Nietzsche, e foi justamente por meio da cultura que
Nietzsche chegou à decadência, ou melhor, ao diagnóstico da decadência da Europa, isso em sua
obra juvenil.
Naquele momento, a ideia de decadência apareceu para Nietzsche como um tema legítimo
para outra discussão: a da cultura, em especial a cultura alemã e a música alemã, que o jovem
Nietzsche, preso em sua metafísica de artista, pensou que poderia promover um renascimento
europeu. Para ele, a cultura alemã degenerava, pois havia deixado de ver-se como um objetivo
em si mesma e passava a prestar serviços ao reich, o Estado alemão. Embora no período

106
intermediário Nietzsche tenha mudado seus referenciais, o problema da decadência, ao seu
entender, persistia. Todavia, naquele momento o filósofo começou a apontar seus pensamentos na
direção do que se tornaria, no futuro, sua teoria pulsional.
A passagem da decadência cultural para a decadência tipológica deu-se por meio de uma
associação operada por Nietzsche entre decadência, doença e saúde, que permitiu ao filósofo,
tardiamente, tornar a decadência um problema tipicamente fisiológico, como será mostrado
adiante. Mas, claro, tratar-se-ia então de outra fisiologia, uma fisiologia pulsional. Em Humano,
demasiado humano I, encontra-se o aforismo que demonstra essa aproximação: decadência
cultural, saúde e doença:

Enobrecimento da realidade. – O fato de que os homens viam no impulso afrodisíaco uma


divindade, e com reverente gratidão o sentiam atuar dentro de si, levou a que no curso do
tempo esse afeto fosse permeado com séries de concepções mais elevadas, assim ficando
realmente muito enobrecido. Em virtude dessa arte da idealização, alguns povos
transformaram doenças em poderosos auxiliares da cultura: os gregos, por exemplo, que
nos primeiros séculos sofreram grandes epidemias nervosas (...) e disso formaram o tipo
magnífico da bacante. Pois algo que os gregos não possuíam era uma saúde robusta – seu
segredo era venerar também a doença como uma divindade, desde que tivesse poder.
(NIETZSCHE, HDH I, p. 143).

Nietzsche explica que os homens antigos viam no impulso afrodisíaco uma divindade e
que, por senti-la em si, acabavam tratando-a com gratidão. A partir daí Nietzsche faz o jogo de
valoração dos senhores: aquilo que está no tipo superior é digno de admiração, mesmo a doença,
o que levou os gregos a tratarem suas doenças como algo digno de admiração, rendendo-lhe culto.
Nesse breve parágrafo encontra-se toda a complexidade que se tornaria, no futuro, o problema da
ascensão/decadência dos tipos: decadência e ascensão aproximadas de saúde e doença, ou seja,
tornadas problemas fisiológicos; ao mesmo tempo a cultura é colocada em uma relação que não é
nem inversa, nem direta, porém paralela com a doença: não é a cultura que adoece, mas é o
homem adoecido que gera a cultura. Esse homem, quando superior, admirará nele até a doença, e,
quando inferior, buscará extirpá-la, o que aumenta o problema, pois é possível pensar que a
doença (decadência) é útil e rica em possibilidades criativas, desde que seja a doença dos tipos
superiores, desde que não tenha dominado totalmente esse tipo superior.
No segundo livro de Humano, demasiado humano, há outro aforismo fundamental para a
compreensão do problema da decadência fora da esfera da decadência cultural, ideia recorrente
no jovem Nietzsche e mais próxima da perspectiva do Nietzsche maduro: a decadência como um

107
problema fisiológico-pulsional. Na citação anterior, saúde e doença são tomadas como saúde e
doença de alguém, como saúde e doença dos gregos, que as tornaram objetos de veneração.
Todavia, saúde e doença para Nietzsche não são estados pertencentes ao sujeito, mas estados
constituintes e/ou desagregadores do sujeito:

Utilidade da saúde frágil. – Quem freqüentemente está doente tem não só um prazer muito
maior em estar são, devido à sua freqüente reconquista da saúde, mas também um aguçado
sentido para o que é são ou doente nas obras e ações: de modo que, por exemplo,
justamente os escritores doentios – entre os quais estão quase todos os grandes,
infelizmente – costumam ter, em suas obras, um tom de saúde bem mais seguro e
constante, pois entendem mais que os fisicamente robustos da filosofia da saúde e
convalescença psíquica e de seus mestres: manhã, sol, floresta e fontes. (NIETZSCHE,
HDH II, p. 146).

Esse aforismo é uma antecipação do que Nietzsche, em 1866, escreveria no prefácio de A


gaia ciência sobre a saúde, mais precisamente em três pontos: perda e recuperação da saúde;
saúde e doença nas obras e nas ações; e uma filosofia que é a voz da saúde, da doença e da
convalescença. Esses são três pontos que tornam resplandecente, para estudos da ideia de
decadência e convalescença em Nietzsche, o prólogo de A gaia ciência. Ali, é fundamental estar
atento ao que se passa: o livro foi escrito após uma das piores e mais longas crises de saúde do
filósofo. A maior parte do livro não foi propriamente escrita por Nietzsche, mas ditada por ele ao
seu amigo Peter Gast, que tomava os apontamentos do filósofo adoecido. Nesse prólogo,
Nietzsche oferece a ideia-mestra para se entender a ideia de decadência como um problema
prioritariamente fisiológico-pulsional e não mais, ou não apenas, como um problema cultural: lá
Nietzsche explica como a doença filosofou nele e conta que foi o contato íntimo e próximo com a
doença, a decadência, que lhe permitiu recuperar a saúde. O que se depreende das afirmações do
filósofo é que a doença não era o seu mal, ou sua decadência propriamente dita; na verdade, a
doença foi o sintoma que permitiu ao filósofo recuperar a si mesmo, como futuramente escreveria,
o filósofo nele defendeu-o da decadência. Porém, se a doença não é a decadência em si, o que é a
decadência?
A decadência, como Nietzsche a pensou, é o processo pelo qual os tipos superiores se
enfraquecem, transitando entre os diversos tipos da mesma tipologia (espíritos livres, homens
superiores, bestas louras etc.), podendo até mesmo se tornar tipos inferiores. Se a principal
caracterização dos tipos superiores é encontrada na multiplicidade e coesão de sua constituição
pulsional, pois, como lembrou o filósofo, estes são “as formas mais ricas e complexas – pois a

108
expressão “tipo superior” não significa nada mais que isso”53 (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[133],
p. 317. Tradução minha), a coesão que não dispensa os conflitos internos, pelo contrário, permite
a expressão das múltiplas pulsões, tornando o querer manifestar-se das outras pulsões em “vozes”
de sua própria consciência. Se é esta complexa “sociedade” pulsional que constitui os tipos
superiores, a decadência, então, consiste na desagregação dessa sociedade, na instauração,
mesmo que em parte, do caos pulsional. Com essa ideia concorda Onate ao afirmar que:

Décadence significa sobretudo retração na intensidade vital ou, na refinada terminologia


do filósofo, impotência à potência (Ohnmacht zur Macht), determinando que, “onde, sob
qualquer forma, a vontade de potência declina, há também, toda vez, uma regressão
fisiológica, uma décadence” (AC/AC § 17). No décadent predomina a contradição dos
instintos, fruto da deficiência no centro de gravidade responsável pela força organizadora;
fica obstruído o canal hierarquizador natural, impedindo assim que os instintos
fundamentais desfrutem da supremacia e tornando-os gradativamente voláteis, vazios,
ideais. O universo instintivo básico estreita-se, cedendo terreno para um cabedal ilusório
de noções e princípios, que se apresenta como instrumento disciplinador do fluxo
instintual, mas que, no fundo, é mero corolário do decréscimo de potência, sua mais astuta
cartada dissimulatória. (ONATE, 1996, p. 25).

Onate oferece alguns elementos a mais para a compreensão da decadência: a) a


desorganização da hierarquia pulsional; b) a diminuição da vontade de poder; c) a alteração na
estrutura valorativa; d) e aqui o mais relevante, a regressão fisiológica. Pode-se afirmar que nos
três primeiros itens há uma relação causal: a desorganização da hierarquia pulsional (a) é o
processo interno no qual as pulsões mais fortalecidas e com força diretiva e organizadora são
subjugadas por conjuntos numéricos maiores, todavia individualmente mais fracos e,
consequentemente, sem a capacidade organizadora e a “vocação” para o domínio. Que não se
espante quanto a isso, a subjugação do número maior de pulsões enfraquecidas sobre aquelas
fortalecidas, pois, como Nietzsche asseverou em fragmento não publicado: “Nós desaprendemos,
agora, a falar do saudável e do doente como oposições: [a diferença VS] é de graus.” 54
(NIETZSCHE, KSA XIII, 14[119], p. 29. Tradução minha).
Sendo a saúde e a doença uma questão de graus, esse grau é o da força das pulsões em
comando, logo, é plausível e aceitável que um número maior de pulsões enfraquecidas
subjuguem pulsões fortalecidas, mas que estão em menor número. Tais acontecimentos gerariam
uma queda na vontade de poder (b), pois sendo a vontade de poder a resultante do conflito

53
Die reichsten und complexesten Formen — denn mehr besagt das Wort „höherer Typus“ nicht.
54
Nun haben wir verlernt, inzwischen, zwischen gesund und krank von einem Gegensatze zu reden: es handelt sich
um Grade.

109
pulsional, e as pulsões enfraquecidas dominando, e sendo a castração e destruição da diferença
seu modo de domínio, é de se esperar que a vontade de poder também diminua, e, por fim, a
mudança nas estruturas valorativas (c) se constitua como novo modus operandi das pulsões agora
em comando. Essa mudança valorativa assegura seu domínio sobre as demais pulsões, em
constante diminuição, e sobre o mundo externo das mais diversas formas. Mas em todas elas as
pulsões, agora em comando, deixam transparecer para o Eu e para a consciência uma nova tábua
de valores. Onate trouxe outra importante informação na citação acima: a decadência gera, ou
está associada, a um tipo de regressão fisiológica, com o que concorda Müller-Lauter ao afirmar
que: “Nietzsche evidencia a falta de unidade orgânica, que deve remeter por fim à décadence
fisiológica” (MÜLLER-LAUTER, 1999, p. 18).
Müller-Lauter tratou, em linguagem um pouco mais cifrada, o mesmo problema: falar que
a falta de unidade orgânica gera decadência fisiológica pode parecer, à primeira vista, redundante,
pois o orgânico e o fisiológico assemelham-se, mas, retomando o primeiro capítulo desta tese e a
relação pulsões/corpo orgânico, é possível afirmar que Nietzsche tomou ambos como simultâneos
e contíguos, embora, para fins de compreensão, tenha-se tratado as primeiras como constituintes
do segundo. Então, o que se tem é que um desarranjo orgânico, ou seja, pulsional, remete, por fim,
à decadência fisiológica, sendo o fisiológico duplamente significante, pois é corporal/somático,
mas também psíquico/psicológico.

Decadência, como Nietzsche a concebe, envolve uma carência de integração. Decadência


psicológica envolve uma falta de integração das pulsões ou instintos que compõem o si.
Enquanto Nietzsche claramente associa decadência com fraqueza, ele também a acha [a
decadência – VS] instrumentalmente valiosa. Ele escreve em Ecce Homo que ele pode
reavaliar os valores só porque ele experimentou ambas: decadência e saúde.55 (MULLIN,
2000, p. 400. Tradução minha).

A contribuição de Mullin é significativa ao clarear a ideia de que a decadência psicológica


concerne à integração das pulsões que constituem o si, si que representa a totalidade daquilo que
se é: a soma das pulsões e daquilo que é orgânico e possui relação de simultaneidade com as
pulsões. Mullin oferece outra contribuição que permitirá adentrar mais profundamente no
problema da educação no pensamento de Nietzsche e sua relação com a decadência e ascendência.

55
Decadence, as Nietzsche conceives it, involves a lack of integration. Psychological decadence involves a lack of
integration of the drives or instincts that make up the self. While Nietzsche clearly associates decadence with
weakness, he also finds it instrumentally valuable. He writes in Ecce Homo that he can revalue values only because
he has experienced both decadence and health.

110
Evocando citação da autobiografia de Nietzsche, a autora firma que o filósofo experimentou a
decadência e a saúde, ou seja, viveu tanto o processo de decadência como desagregação pulsional,
como a ascendência, ou seja, retomada da saúde pulsional e de sua organização hierárquica. Seria
bastante simples admitir tal hipótese se não se esbarrasse com um trecho de fragmento póstumo
no qual o filósofo afirmou que: “O tipo permanece constante: não se pode ‘desnaturar a
natureza’.”56 (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[133], p. 315. Tradução minha). Se o tipo não pode ser
modificado, aparentemente todo o esforço educativo se perde; porém, essa seria uma conclusão
ligeira demais. É necessário antes compreender toda a discussão que envolve o trecho citado.
Trata-se de um texto póstumo da primavera de 1888, um dos que Nietzsche intitulou de
“Anti-Darwin”, e não sem motivos, pois todo o texto se constitui em uma crítica ao pensamento
darwinista, baseada em dois pontos centrais: (1) a seleção natural e seu corolário; (2) a
preponderância do melhor adaptado, que na interpretação nietzscheana significava o mais forte,
promovendo por fim a evolução. É este o ponto central da objeção nietzscheana: a evolução. O
filósofo de Zaratustra admitia modificações e mudanças nos seres humanos e nos demais animais,
já que Nietzsche não distinguia entre humanos e outras espécies. Todavia, para Nietzsche, a ideia
de evolução como Darwin havia proposto estava eivada de ideias morais, principalmente a
finalidade e a melhoria em um sentido que, para Nietzsche, aproximava-se muito do
melhoramento do homem tentado pela Igreja, tanto que no início do texto o filósofo refere-se à
possibilidade de domesticar o homem, ou seja, amansá-lo, torná-lo pequeno, “melhoramento”
bastante criticado por Nietzsche.
Para Nietzsche, as transformações em uma espécie não tendem a um fim específico, mas
acontecem por acaso, e o acaso age de forma semelhante tanto para os tipos superiores quanto
para os tipos inferiores: “Nós, ao contrário, nos certificamos que, na luta pela vida, o acaso
favorece tanto aos fracos quanto aos fortes”. 57 (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[133], p. 315.
Tradução minha). Se o acaso, então, favorece aos fortes e aos fracos da mesma maneira, a seleção
natural não altera os tipos, por isso, Nietzsche pôde afirmar que o tipo permanece, e mais, não se
pode perder de vista que a distinção dos tipos era quantitativa e não qualitativa. Verifica-se, então,
claramente, que para Nietzsche a mudança tipológica é uma realidade e que está na conta do
acúmulo e perda de força no domínio pulsional, e tudo o mais decorre daí. Todavia, se a

56
Der Typus bleibt constant: man kann nicht „dénaturer la nature“.
57
Wir haben uns umgekehrt versichert, dass, in dem Kampfe um das Leben, der Zufall den Schwachen so gut dient,
wie den Starken.

111
decadência é claramente possível, assim como as mudanças tipológicas que a envolvem, resta
saber se o inverso também é possível e como ele acontece: em sua obra, Nietzsche dá alguns
exemplos de pessoas que degeneraram, é o caso de Napoleão e também de Pascal, mas há poucos
exemplos, ou talvez nenhum caso, de ascendência tipológica; o que se tem bem documentado na
obra do filósofo é apenas o próprio caso, ao qual o filósofo se referiu nos seguintes termos no
prefácio de O caso Wagner: “Tanto quanto Wagner, eu sou um filho desse tempo; quer dizer, um
décadent: mas eu compreendi isso, e me defendi. O filósofo em mim se defendeu.”
(NIETZSCHE, CW, p. 9). Confrontadas essas informações com aquelas da introdução de A gaia
ciência, onde o filósofo fala da recuperação de sua saúde, é possível perceber que Nietzsche, após
um período de decadência, restabeleceu-se, teve uma convalescença e ascendeu novamente ao
tipo ao qual ele achava que pertencia, o tipo superior.58 Quando Nietzsche afirmou que o filósofo
nele se defendeu, está claramente se referindo às pulsões que falam eu, ou seja, em sua
decadência, uma pulsão ou conjunto de pulsões fortalecidas assumiu o controle do todo,
impedindo que a decadência fosse maior. Essas pulsões fortalecidas são as que organizam e que
conseguem suportar sobre si, e sua consciência, o peso das demais. A ideia de curar-se a si
mesmo foi retomada no Ecce Homo, porém, com um agravante: “Tomei a mim mesmo em mãos,
curei a mim mesmo: a condição para isso – qualquer fisiólogo admitirá – é ser no fundo sadio.”
(NIETZSCHE, EH, p. 25).
O que quer dizer ser sadio no fundo? Esse é um problema fundamental para a
compreensão do outro movimento, o movimento contrário ao da decadência, a ascendência, e
também os seus limites. A esse trecho da autobiografia de Nietzsche faz eco outro texto, mais
intenso na agudeza do problema da transformação humana, mais intenso no problema da
mudança tipológica e, consequentemente, na possibilidade da educação como diferenciação entre
condição de nascimento e condição de morte.

Hoje, onde qualquer “o homem deve ser assim e assim” já nos põe uma pequena ironia na
boca, onde nós absolutamente asseguramos que alguém, apesar de tudo, apenas vem a ser
aquilo que é (apesar de tudo: quer dizer educação, instrução, meio, acidentes e acasos).59
(NIETZSCHE, KSA XIII, 14[113], p. 290. Tradução minha).

58
Ao longo de sua obra, Nietzsche se dá diversos codinomes, sempre na forma de “nós” seguido do qualificativo.
Tem-se então: “nós os espíritos livres”, “nós os imoralistas”, “nós os anticristãos”, mas, de todas as autoqualificações,
a mais relevante é, sem dúvida, a de espírito livre, figura pertencente à tipologia dos superiores.
59
Heute, wo uns jedes „so und so soll der Mensch sein“ eine kleine Ironie in den Mund legt, wo wir durchaus daran
festhalten, dass man, trotz allem, nur das wird, was man ist (trotz allem: will sagen Erziehung, Unterricht, milieu,
Zufälle und Unfälle).

112
Esse texto, em conjunto com o subtítulo da autobiografia de Nietzsche,60 oferece dupla
possibilidade interpretativa. A primeira delas é a impossibilidade da educação, assunto ao qual o
quarto capítulo deste trabalho será dedicado, que não convém antecipar agora. A segunda opção
interpretativa é aquela que apontará os limites da ascendência, ou seja, mostrará até que ponto
esta é possível.
Ao contrário da decadência, que é uma possibilidade constante,61 ilimitada e sempre à
espreita, a ascendência tem um limite: o limite no qual a multiplicidade pulsional não foi
totalmente destruída, ou seja, é possível convalescer e ascender a um tipo superior desde que as
demais pulsões não tenham sido totalmente destruídas, acontecimento que, enquanto
possibilidade, pareceu plausível a Nietzsche, sem que tal depauperamento final das pulsões
representasse a morte. Todavia, embora a especulação racional mostre essa possibilidade, em
uma espécie de niilismo ascético, o filósofo não deu exemplos disso; pelo contrário, na terceira
dissertação de A genealogia da moral, quando falou do sacerdote como o tipo ideal do ascetismo,
o que Nietzsche tentou mostrar foi justamente o esforço desse condutor de rebanho (o sacerdote
ascético) para impedir o total aniquilamento pulsional no interior de um indivíduo.
Desse modo, enquanto houver multiplicidade pulsional, mesmo que em “latência”, é
possível haver convalescença e ascendência, por meio de um atiçamento das lutas internas,
momento no qual as pulsões enfraquecidas, que no início estavam em maior número, mas foram
se destruindo, perdem seu lugar para as pulsões fortalecidas e com o poder para organizar o todo.
É o que se pode depreender de outro fragmento não publicado:

Nós não acreditamos que um ser humano se torne outro, se ele já não o é: ou seja, se ele
não é, como muitas vezes acontece, uma pluralidade de pessoas, ou ao menos de bases
para pessoas.62 (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[151], p. 332. Tradução minha).

60
O subtítulo em alemão é: Wie man wird, was man ist. O tradutor brasileiro da edição da Companhia das Letras
optou por “como alguém se torna o que é”. Rubens Rodrigues Torres Filho optou por “como tornar-se o que se é” em
sua célebre e importante tradução de Os Pensadores. Aqui, todavia optou-se pela tradução “como alguém vem a ser
o que é”. Tal opção foi feita em função de o verbo werden manter relação com a ideia de devir.
61
No quarto capítulo tratar-se-á do além-do-homem, onde se mostrará que ele está além das possibilidades da
decadência, pois esta é um fenômeno humano, e ele é o além-do-humano, motivo pelo qual também é um tipo fora
da tipologia. De hora, quando se tratar dos tipos humanos, a decadência vale para todos e não tem limites.
62
Wir glauben nicht daran, dass ein Mensch ein Anderer wird, wenn er es nicht schon ist: d.h. wenn er nicht, wie es
oft genug vorkommt, eine Vielheit von Personen, mindestens von Ansätzen zu Personen, ist.

113
Ou seja, a ascendência depende da multiplicidade pulsional ou, ao menos, como diz o
filósofo, de pulsões que possam simular vestígios de personalidade.63 Se o duplo movimento de
ascensão e decadência pulsional é possível, notar-se-á que ambos criam ou ensejam vertentes de
educação e de formações culturais distintas: uma cultura superior e uma cultura inferior. Se o
problema da organização pulsional de cada pessoa se sobressai como um problema de
constituição interna, não é possível ignorar as influências externas que se abatem sobre cada
pessoa no que diz respeito à sua organização pulsional. O sistema educacional para Nietzsche era
acima de tudo um esforço coletivo e social de modelagem pulsional. Resta saber que tipo de
modelo pulsional se busca estabelecer com esses sistemas educacionais e os limites deles na
realização daquilo que para Nietzsche realmente era educação: diferenciação entre condição de
nascimento e condição de morte.

3 – Problemas conceituais

As experiências de decadência e ascensão tipológica ensejam, sem dúvida alguma,


experiências educacionais, nas quais a estruturação pulsional dos indivíduos é alterada, fazendo
com que eles experimentem diversidade nas condições de vida. A própria experiência de vida de
Nietzsche revela-se esclarecedora nesse sentido – a maneira como sua condição de vida sofreu
alterações ao longo de diversas experiências: a do amor perdido e ressentido em relação a Lou-
Salomé; o desengano com o renascimento artístico alemão por meio do drama musical
wagneriano; a profunda vivência de condições enfermiças em si mesmo. Todos esses elementos
foram diversificando as condições de vida de Nietzsche de tal modo que ao morrer sua condição
de morte realmente distinguia-se totalmente da condição de nascimento. Todavia, a experiência
escolar propriamente dita pouco pôde fazer no sentido de promover essa real educação, o que
Nietzsche relata claramente em dois textos da juventude sobre a educação, Schopenhauer como
educador e, em especial, Conferências sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino,
textos nos quais o filósofo comentou a impossibilidade de a escola formar o gênio.

63
Aqui se usa a palavra personalidade na tentativa de significar o conjunto de hábitos e características que fazem
com que um membro da espécie humana pareça único aos demais membros dessa espécie. De resto, em outros
momentos do texto são usadas palavras como pessoa, indivíduo, gente etc., com o intuito de significar o si que um
membro da espécie humana é, e como os outros membros dessa espécie o reconhecem e distinguem, e como ele
mesmo, ou melhor, o Eu de seu si apresenta-se para si mesmo.

114
É sabido que Nietzsche acreditava na educação, embora a considerasse um processo
bastante raro, chegando a afirmar que na tentativa de modificar outras pessoas acaba-se
modificado por elas (conf. NIETZSCHE, GC, p. 214). A educação é rara porque toda
configuração pulsional dominante esforça-se por prolongar o seu domínio, mantendo sua vontade
de poder intacta em face das outras pulsões. A condição de nascimento de um indivíduo, a rigor,
repete um processo de estruturação pulsional que lhe é anterior, a organização pulsional de seus
pais,64 que tentam, desde cedo, impor-lhe um arranjo pulsional que lhes seja semelhante, o que é,
também, vontade de poder, pois o que tentam as pulsões que constituem os pais é moldar o filho
à sua imagem e semelhança, embora aí surja também um conflito pulsional entre os pais.65
Para além da vontade de poder dos pais, que tenta se moldar nos filhos, há ainda outra
vontade de poder, uma vontade de poder social, que organiza a sociedade, suas instituições e seus
membros a partir de um modelo pulsional comum. Para Nietzsche, no mundo moderno esse
modelo pulsional comum é, claramente, o da decadência pulsional, o modelo dos tipos inferiores.
Esse modelo de organização pulsional, que visa se preservar mais que se expandir,66 é o que se
instaurou com as revoluções burguesas e que ganhou força com as políticas democráticas; é esse
modelo, pois, que organiza a sociedade, que está presente em todo o sistema escolar, das creches
às universidades, e que pressiona, ao longo de mais de vinte anos, todos os indivíduos, para que
neles o arranjo pulsional seja como o dos demais, para que, desse modo, em cada um deles,
pulsões diferentes não tentem se rebelar, ameaçando o poder das pulsões tradicionalmente em
comando naquela pessoa e em toda a sociedade.
Seguindo Foucault, seria possível traçar uma longa genealogia pulsional de diversas
outras instituições sociais que trabalham na perspectiva de manter a mesmice pulsional,
impedindo o surgimento de novos arranjos pulsionais que ameacem a vontade de poder do grupo

64
Nietzsche usou com frequência o termo herança (Vererbung) para referir-se a conjuntos de caracteres transferidos
através das gerações. Para o filósofo, porém, esses caracteres não se limitam aos biológicos; hábitos, crenças etc.,
fazem parte dele. É o que se percebe pelo seguinte trecho de Além do bem e do mal: “Não se pode extinguir da alma
de um homem o que seus ancestrais fizeram com o maior prazer e constância (...). Não é possível que um homem
não tenha no corpo as características e predileções de seus pais e ancestrais: mesmo que as evidências afirmem o
contrário.” (NIETZSCHE, ABM, p. 180).
65
Aqui, claro, foi tomado como exemplo uma família nuclear tradicional, na qual há pais presentes, modelo que
diminui no Brasil, mas isso não tira a força do exemplo, pois é possível supor outros modelos de “família”, desde
abrigos institucionais até a orfandade e vida nas ruas. Em todo caso, estando o ser humano sujeito a outros seres
humanos, estes tentarão imprimir naquele sua vontade de poder.
66
Para Nietzsche, a vontade de poder que visa à preservação e não à expansão é já uma vontade de poder
enfraquecida e que dá testemunho de um conjunto pulsional dominante que se encontra em decadência face às
pulsões que comanda.

115
pulsional dominante.67 Todavia, tal análise, apesar de sua importância, não cabe neste trabalho.
Essas instituições todas são a explicação para que Nietzsche, principalmente em suas obras da
juventude, insistisse tanto na dificuldade, quase impossibilidade, de que a escola criasse o gênio,
recaindo na ideia de que o gênio precisa ser protegido e cultivado individualmente, o que a escola
não se propõe a fazer, até pelo contrário. Essa ideia, nos períodos seguintes da filosofia de
Nietzsche, tornou-se ambígua, pois ao passo que os tipos superiores precisam de proteção,
precisam também da luta tanto com outros tipos superiores quanto com os tipos inferiores, para
que não sucumbam a estes. No período final de produção filosófica de Nietzsche, além do clamor
de que é necessário defender os tipos superiores dos inferiores e suas instituições, ao mesmo
tempo em que é necessário que aqueles superem estes, encontra-se uma distinção fundamental
para a compreensão da dificuldade de se educar o ser humano, ou seja, de promover uma
mudança nos seus arranjos pulsionais; tal distinção é aquela que Nietzsche realizou entre
civilização e cultura.
Grosso modo, pode-se dizer que a civilização é um processo de repetição pulsional, no
qual conjuntos pulsionais dominantes, em indivíduos, organizações etc., esforçam-se para que
não haja alterações nos arranjos pulsionais, esforçam-se para que a condição de morte repita a
condição de nascimento. Cultura, por sua vez, é o processo de desregramento pulsional capaz de
promover a educação, ou seja, capaz de produzir a diferença entre condição de nascimento e
condição de morte. Pode-se mesmo falar de uma cultura superior e uma cultura inferior, ambas
promotoras de educação, ao lado da civilização, que representaria a impossibilidade da educação.
Ao lado dos problemas tipológicos, e conjuntamente com o problema da ascensão e
decadência dos tipos, há outro ponto que requer esclarecimentos no que diz respeito ao problema
educacional em Nietzsche, em especial quando o problema da decadência pulsional toca o da
decadência social, imbricando-se em uma aparente cadeia causal na qual indivíduos impuseram
ao caos uma semelhança e regularidade intensa, moldando nele uma imagem de suas próprias
vontades de poder, formando, assim, as sociedades à sua imagem e semelhança e tornando-a,
como se disse, um instrumento de repetição dessa estruturação interna. Esse problema ao qual se
faz referência é o da cultura e civilização.

67
Novamente aqui depara-se com o problema da linguagem, de sempre se atribuir aos arranjos pulsionais uma
intencionalidade por meio de uma linguagem estratégica; então, não é muito repetir que as pulsões não possuem
volição no sentido tradicional do termo, as pulsões não podem querer ou deixar de querer, seu movimento é sempre
em direção ao poder; e mesmo as pulsões decadentes, aquelas que buscam mais a conservação que a expansão,
encontram-se em estágio de preparação para retomar sua expansão.

116
3.1 – Formação, Educação, Civilização e Adestramento

No emaranhado conceitual de Nietzsche, encontram-se dois grupos linguísticos distintos


quanto à possibilidade das mudanças pulsionais, o grupo linguístico cuja chave é a ideia de
civilização e o grupo linguístico cuja chave é a ideia de cultura. Na cultura, o que se tem é a
possibilidade da educação, tanto a educação superior quanto a inferior, ou seja, aquele conjunto
linguístico que compreende a possibilidade da ascensão e da decadência; e, paralelo a este,
flertando, mas não se misturando a ele, o conjunto linguístico que fala da impossibilidade da
educação, ou melhor, da tentativa de barrá-la. Este grupo linguístico traz como palavras
emblemáticas os vocábulos alemães Erziehung e Bildung, ambos comumente traduzidos para o
português como educação, embora a segunda admita também a tradução “formação”. O
dicionário de sinônimos Directmedia (Berlim, 2003) apresenta ambas como sinônimas, o mesmo
se dá com o dicionário Duden, mas, mesmo as duas palavras sendo comumente cambiáveis e
traduzíveis como educação, Bildung possui um espectro semântico mais vasto. A palavra é
formada pelo verbo bilden, que possui um sentido muito amplo, mas sempre associado à ideia de
organização, formação e enquadramento. Este último termo é similar ao substantivo neutro
Bilden (das), que é definido como “representação sobre uma superfície”68 (tradução minha) e
também pode ser usado para definir objetos artísticos como quadros e fotos, nos quais está
presente a ideia de enquadrar, dar forma.
A tradição filosófica alemã sempre teve grande simpatia pela palavra Bildung (que
doravante aparecerá no texto apenas como formação), em especial por sua ideia de modelagem.
Nietzsche não escapou a tal tradição, pelo menos não no período inicial de sua obra, marcado
pela III Consideração extemporânea: Schopenhauer como educador (Erzieher), e também por
uma série de conferências intituladas Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino
(Bildungsanstalten). A palavra formação está presente ao longo de todo o período de produção
filosófica de Nietzsche. Seu uso, contudo, diminui no período intermediário e torna-se quase raro
no período final de sua obra, momento em que o filósofo deu preferência ao termo Erziehung
(que doravante aparecerá no texto apenas como educação), algumas vezes opondo-o à cultura ou
a um tipo específico de cultura. Esse tipo específico de cultura é aquela que impede o surgimento
68
Darstellung auf einer Fläche. Duden, op. cit. p.162.

117
dos tipos superiores, a cultura dominante de uma época, que Nietzsche mais comumente
denominou como civilização (Zivilisation). Formação, educação e civilização estão presas a uma
ideia comum para Nietzsche, que é a impossibilidade da educação, o esforço social para que não
surjam homens diferenciados; nem diferenciados em ascensão, nem diferenciados em decadência.
A esse conjunto linguístico (formação, educação e civilização) soma-se a domesticação
(Zähmung).
O termo domesticação, retirado diretamente do vocabulário dos tratadores de animais, dá-
nos uma ideia de como Nietzsche pensava a educação, pelo menos a educação que ele conhecia.
Para o filósofo de Zaratustra, formação, educação e civilização nada mais são do que processos
de domesticação do ser humano, processos por meio dos quais o homem é tornado manso,
incapaz de ferir ou de atacar. A palavra Zähmung também pode ser traduzida como adestramento,
reforçando ainda mais a noção de educação como processo no qual o ser humano é tornado dócil
e cordato, disposto à obediência irrestrita, processo descrito detalhadamente em toda a segunda
dissertação de A genealogia da moral. Todavia, para Nietzsche, isso está longe de ser o que ele
queria da educação, que deveria ser uma estufa para plantas raras. Com este conjunto de palavras
(formação, educação, civilização e domesticação), Nietzsche quis indicar um processo de
congelamento pulsional no qual o ser humano permanece sempre o mesmo, impedindo o
nascimento da diferença, seja ela ascendente, seja decadente. Afinal, se na tipologia de Nietzsche
há tipos superiores e inferiores, há também subtipos dessa inferioridade e superioridade, como o
filósofo afirmou em fragmento póstumo:

Eis o que ensino: o rebanho busca perpetuar um tipo e se defende dos dois lados: contra os
que degeneram dele (criminosos etc.) e contra os que o excedem. O rebanho tende à
paralisia e à conservação, nele não há nada criativo. (NIETZSCHE, VP, p. 165).

Tem-se, então, uma definição nietzscheana da educação na chave do conceito de


civilização: um esforço constante do rebanho para que não haja ascensão ou decadência pulsional
em relação a ele, uma total paralisia pulsional que impeça a mudança tipológica. Nietzsche a este
respeito foi ainda mais claro em O crepúsculo dos ídolos, utilizando o jogo de palavras que para
ele indica essa paralisia pulsional:

Tanto o amansamento (Zähmung) da besta homem como o cultivo (Züchtung) de uma


determinada espécie de homem foram chamados de “melhora”: somente esses termos
zoológicos exprimem realidades – realidades, é certo, das quais o típico “melhorador”, o

118
sacerdote, nada sabe – nada quer saber... Chamar a domesticação (Zähmung) de um
animal sua “melhora” é, a nossos ouvidos, quase uma piada. Quem sabe o que acontece
nas ménageries duvida que a besta seja ali “melhorada”. Ela é enfraquecida, tornada
menos nociva; mediante o depressivo afeto do medo, mediante dor, fome, feridas, ela se
torna uma besta doentia. – Não é diferente com o homem domado, que o sacerdote
“melhorou”. (NIETZSCHE, CI, p.50).

Se o esforço social em torno da educação ou formação consiste em um processo de


amansamento do animal homem, Dumur equivocou-se ao afirmar que cultura (Kultur) e
formação (Bildung) não podem existir separadamente:

Cultura (Kultur) e formação (Bildung) não podem existir separadamente; cada civilização
inclui uma verdadeira cultura paralela à sua formação (Bildung). É verdade que Nietzsche
não especifica se a cultura pode existir sem formação (Bildung). Mas muitas vezes ele
menciona que formação (Bildung) pode se desenvolver sem produzir uma cultura. 69
(DUMUR, 2009, p. 276-7. Tradução minha).

No pensamento de Nietzsche, cultura e formação não estão presas ao mesmo esquema


conceitual, pelo contrário, encontram-se em esquemas conceituais distintos e contrários. Para
Nietzsche, o esforço da educação ou da formação é o de impedir qualquer transformação
pulsional, seja decadência, seja ascendência, ao passo que a cultura é justamente o contrário, o
esforço pela mobilidade pulsional, que pode ser traduzido em criações sociais a partir de uma
vontade de poder atuante. E quando Dumur afirma que para Nietzsche é possível haver formação
sem que esta produza cultura, ele está sendo redundante, pois a formação é justamente o esforço
do rebanho para impedir o surgimento da cultura. Se civilização e formação pertencem ao mesmo
esquema conceitual, não é possível que cultura esteja associada à formação, pois elas são
distintas, como Nietzsche afirmou em fragmento não publicado:

Os ápices da cultura e da civilização estão separados entre si: não devemos nos deixar
extraviar sobre o abissal antagonismo entre cultura e civilização. Moralmente falando, os
grandes momentos da cultura sempre foram tempos de corrupção; e, novamente, as épocas
da voluntária e coerciva domação animal (“civilização”) do homem foram tempos de
intolerância para as naturezas mais espirituais e ousadas. A civilização quer outra coisa
que a cultura quer: talvez algo inverso... (NIETZSCHE, GP, p. 51).

69
Kultur and Bildung cannot exist separately; every true civilization includes a culture parallel to its Bildung. It is
true that Nietzsche does not specify whether culture could exist without Bildung. But he often mentions that Bildung
can develop without producing a culture.

119
Se civilização e cultura querem coisas diferentes, e a formação está inscrita no mesmo
esquema conceitual de civilização, fica claro que formação não pode coexistir com cultura, pois
são antagônicas. Se a cultura, nessa linguagem moral, é um período de corrupção, isso se dá
porque a cultura é a força do si que é cada indivíduo a fim de superar em si, e também no mundo,
as vontades de poder que lhe são opostas; isso quer dizer, inclusive, superar a educação e a
formação de seu tempo e de sua tradição familiar, ou seja, o que se tem é as pulsões lutando e
manifestando sua vontade de poder, buscando novas formas de organização e domínio que sejam
capazes de criar modificações na condição de vida. Opondo-se ao esquema conceitual da
civilização, encontra-se o da cultura, aquele que pode realmente promover a educação dos
indivíduos, aquela educação que promove as mudanças entre condição de nascimento e condição
de morte.

3.2 – Cultura e Cultivo

É sabido que o jovem Nietzsche afirmou que “Cultura é, acima de tudo, unidade de estilos
artísticos em todas as expressões da vida de um povo”70 (NIETZSCHE, KSA, III Consideração
Extemporânea, p. 159. Tradução minha), porém, essa ideia é claramente influenciada pela
metafísica de artista do jovem Nietzsche, ideia baseada na dualidade de papéis na composição
artística, dualidade exercida pelos deuses Apolo e Dionísio. Todavia, o Nietzsche do período
intermediário e também o do período final afastaram-se dessa ideia, aparecendo nas obras desses
períodos apenas citações esporádicas sobre o tema, e não mais na forma da dualidade, mas
deixando claro o triunfo da ideia dionisíaca sobre a apolínea.
O substantivo feminino Kultur (doravante apenas cultura) tem um significado simples e
semelhante ao do português. No dicionário Directmedia, cultura é definida como “A totalidade
dos valores espirituais e criações materiais” 71 (Berlim, 2003, p. 446) e tem como sinônimos
civilização (Zivilisation), formação (Bildung) e Zucht, palavra de sentido amplo que pode ser
traduzida como criação, cultivo e disciplina. Definições semelhantes são encontradas no
dicionário Duden, onde cultura é definida como “Totalidade das criações espirituais e realizações

70
Kultur ist vor allem Einheit des künstlerischen Stiles in allen Lebensäusserungen eines Volkes.
71
Die Gesamtheit der geschaffenen materiellen u. geistigen Werte.

120
criativas dos humanos (Menschen)”72 (Duden, 1998, p. 443). Em seguida, o dicionário oferece
exemplos como as expressões “as culturas da África”73, “A cultura dos gregos”74, “Um povo de
alta cultura”75. Como sinônimos o dicionário Duden oferece formativo (Ausbildung) e criação,
cultivo, disciplina (Zucht).
Esse sentido amplo da palavra cultura, chegando a ser usada como sinônimo de
civilização, difere bastante do sentido dado à palavra pelo jovem Nietzsche. Todavia, em seu
período intermediário, o uso da palavra cultura assemelha-se muito ao que se encontra nos
dicionários; é o que se constata em alguns aforismos de Humano, demasiado humano I:

Microcosmo e macrocosmo da cultura. – As melhores descobertas acerca da cultura o


homem faz em si mesmo, ao encontrar em si dois poderes heterogêneos que governam.
Supondo que alguém viva no amor das artes plásticas ou da música e também seja tomado
pelo espírito da ciência, e que considere impossível eliminar essa contradição pela
destruição de um e a total liberação do outro poder: então só lhe resta fazer de si mesmo
um edifício da cultura tão grande que esses dois poderes, ainda que em extremos opostos,
possam nele habitar, enquanto entre eles se abrigam poderes intermediários conciliadores
com força bastante para, se necessário, aplainar um conflito que surja. Mas esse edifício da
cultura num indivíduo terá enorme semelhança com a construção da cultura em épocas
inteiras e, por analogia, instruirá continuamente a respeito dela. Pois em toda parte onde se
desenvolveu a arquitetura da cultura, foi sua tarefa obrigar à harmonia os poderes
conflitantes, através da possante união dos outros poderes menos incompatíveis, sem no
entanto oprimi-los ou acorrentá-los. (NIETZSCHE, HDH I, p. 188).

Na citação, Nietzsche trata cultura como civilização e faz coincidir no espectro semântico
da palavra cultura as criações espirituais humanas, como os dicionários definiram anteriormente.
Cultura, nessa citação, abrange as criações artísticas e científicas humanas, abrange também a
ideia civilizatória de fazer com que elementos antagônicos convivam harmonicamente sem
perderem sua liberdade e também sem se destruírem. Aqui Nietzsche está bem distante da ideia
de sua juventude, de cultura como unidade de estilos; cultura, na citação, não quer a unidade, mas
a multiplicidade.
Essa ideia é complementada por um texto do mesmo período, porém da obra Aurora, onde
Nietzsche fala de uma cultura de mercadores (NIETZSCHE, AU, p. 127) e lá descreve os
elementos que constituem essa cultura e a tornam específica, como nas definições apresentadas,
onde se viram exemplos do uso do termo cultura em “culturas da África” e “cultura dos gregos”.

72
Gesamtheit der geistigen, gestaltenden Leistungen von Menschen.
73
Die Kulturen Afrikas.
74
Die Kultur der Griechen.
75
Ein Volk von hoher Kultur.

121
É a partir dessa ideia que se desenvolve a noção propriamente nietzscheana de cultura, onde o
substantivo sempre aparece adjetivado: cultura superior, cultura aristocrática etc. Essa ideia
nietzscheana de cultura transparece em citação anterior, em que o filósofo afirma que “Os ápices
da cultura e da civilização estão separados entre si: não devemos nos deixar extraviar sobre o
abissal antagonismo entre cultura e civilização”. A civilização representa sempre a estabilidade
pulsional, a castração pulsional, a total impossibilidade da educação como diferenciação entre
condição de nascimento e condição de morte. Já a cultura, seja ascendente, seja descendente, pois
Nietzsche sabia da existência das duas, representa a educação, ou seja, a mobilidade pulsional
que permite a diversificação da condição de morte em relação à condição de nascimento.
Nietzsche associou à palavra cultura adjetivada (cultura superior etc.) outro termo alemão
de grande relevância, bastante presente na obra Além do bem e do mal e de grande importância
para a discussão sobre a educação em seu pensamento: é o substantivo feminino Zucht (disciplina)
e seus derivados, especialmente o substantivo feminino Züchtung. Derivada do verbo züchten, a
palavra tem forte conotação zoológica e botânica, significando, na maior parte das ocorrências
dos dicionários utilizados, cultivo (como doravante será tratada). No dicionário Directmedia, a
palavra também é indicada como sinônimo de educação (Erziehung) e aparece com formação
(Bildung) e civilização (Zivilisation) como sinônimos da palavra cultura (Kultur), mas, em
Nietzsche, pode-se perceber o sentido específico em que o filósofo empregou a palavra:

(...) Ensinar ao homem o futuro do homem como sua vontade, dependente de uma vontade
humana, e preparar grandes empresas e tentativas globais de disciplinação (Zucht) e
cultivo (Züchtung), para desse modo pôr um fim a esse pavoroso domínio do acaso e do
absurdo que até o momento se chamou “história” – o absurdo do “maior número” é apenas
sua última forma. (NIETZSCHE, ABM, p. 103).

Há, nessa passagem, a ideia clara de Nietzsche sobre disciplina e cultivo, os quais, para o
filósofo, sempre estão juntos: cultivo significa preparação para uma cultura superior, tornar o
homem capaz de controlar em si e no mundo os elementos dispersos e caóticos, como o filósofo
afirmou alhures, aplicar regularidade ao caos, ou seja, impor a vontade de poder humana a toda a
natureza e ao próprio homem como natureza. Em última instância, o cultivo é o próprio trabalho
educacional superior, que visa formar uma cultura superior, embora não se oponha à inferior
diretamente, e sim à civilização, à imobilidade pulsional, óbice a todo e qualquer tipo de
educação. Se cultura e cultivo participam do mesmo espectro semântico no pensamento de

122
Nietzsche, aquele que possibilita a educação, o cultivo, tem um sentindo muito mais específico,
ele se refere apenas à criação de uma cultura superior e à consequente e necessária educação para
essa cultura superior.
Se na tipologia de Nietzsche tem-se com tanta frequência alusão a tipos superiores e
inferiores, o cultivo é fundamental na elaboração do primeiro, porém, que não haja equívocos a
este respeito: esse cultivo não é proteção e facilitação, pelo contrário, o caminho para a elevação
do homem aos tipos superiores é árduo e perigoso, pois sua realização nunca é uma certeza, ao
passo que seu fracasso é uma constante. Há nesse processo de ascensão e decadência dos tipos,
que significa a educação na forma de mudança entre condição de nascimento e condição de morte,
há, como se dizia, outro ponto que requer análise detalhada: o problema da autossuperação e da
autossupressão.

3.3 – Supressão e Superação

São muito comuns as referências à ideia de autossuperação em Nietzsche, talvez boa parte
do seu pensamento seja tida como uma filosofia da autossuperação, em especial o seu
pensamento educacional sempre desperta discussões a esse respeito, mais ainda no que se refere
às ideias de superação do tipo, superação do período histórico e superação da moral. De fato, a
ideia de autossuperação é de grande importância no pensamento de Nietzsche, desde que se
façam as ressalvas necessárias quanto ao papel do Eu no processo de autossuperação, para que
não se pense em um sujeito aos moldes cartesianos superando a si mesmo e as suas limitações.
Por ter papel assim relevante no pensamento de Nietzsche é que se deve evitar a confusão entre
autossuperação e outro termo semelhante no pensamento alemão, principalmente na filosofia de
Hegel, mas que no pensamento de Nietzsche, todavia, não tem o mesmo sentido, que é a
autossupressão.
A palavra alemã Aufhebung possui um amplo espectro semântico, sendo uma das poucas
na língua que possui significados contrários e contraditórios, que reforça as anedotas filosóficas
de que só é possível filosofar em alemão. Dentro dos seus significados encontra-se: revogação,
supressão e abolição (DROSDOWSKI, 1988, p. 88). No dicionário de sinônimos Directmedia
(Berlim, 2003) há também “suspensão, no sentido técnico do direito, significando o fim do prazo
de validade de última instância”. Hegel, sobre tal palavra, afirmou:

123
Aqui é o lugar oportuno para recordar o duplo significado de nossa expressão alemã
aufheben (superar). Por um lado, aufheben quer dizer tirar, negar; nesse sentido, por
exemplo, dizemos que uma lei, uma instituição etc., são suprimidas, superadas
(aufgehoben). Por outro lado, porém, aufheben significa também conservar; e, nesse
sentido, dizemos que algo está bem conservado através da expressão wohl aufgehoben.
Essa ambivalência do uso lingüístico do termo, pelo qual a mesma palavra tem sentido
negativo e positivo, não deve ser considerada casual, sequer deve-se fazer disso motivo de
acusação contra a linguagem, como se fosse causa de confusão; pelo contrário, nessa
ambivalência se reconhece o espírito especulativo da nossa língua, que vai além da
simples alternativa ‘ou-ou’ própria do intelecto. (HEGEL, apud REALE, 1991, p. 109-10).

Se a expressão Aufhebung, derivada do verbo aufheben, tornou-se com Hegel um conceito


significativo no momento especulativo de sua dialética, representação da síntese do pensamento,
momento em que se tem, a um só tempo, supressão e conservação, o mesmo não se pode dizer do
uso que Nietzsche deu ao termo, uso apenas negativo e sem o sentido conceitual que a palavra
possui no pensamento de Hegel. É isso que afirma o tradutor brasileiro Paulo César de Souza:

(...) O verbo aufheben significa primariamente “levantar, pegar (algo do chão)”, e também
“conservar, guardar” ou “cancelar, abolir, acabar”. Com base na riqueza de sentidos do
termo, Hegel o elaborou e transformou em conceito filosófico – prática comum na
filosofia de língua alemã. No texto de Nietzsche, porém, Aufhebung tem claramente o
significado de “supressão, cancelamento”. (NIETZSCHE, GM, p. 156).

Em Hegel, o mesmo vale para o correlato de Aufhebung, o termo Selbstaufhebung, onde a


partícula selbst, o self inglês ou o si da língua portuguesa, dá o sentido tanto de autossupressão
quanto de autossuperação. Em Nietzsche, porém, como anteriormente, a palavra também não tem
a conotação conceitual encontrada em Hegel, o sentido é puramente negativo, é o que se percebe
na segunda dissertação de A genealogia da moral:

A justiça, que iniciou com “tudo é resgatável, tudo tem que ser pago”, termina por fazer
vista grossa e deixar escapar os insolventes – termina como toda coisa boa sobre a terra,
suprimindo a si mesma (selbst aufhebend). A auto-supressão da justiça (Selbstaufhebung):
sabemos com que belo nome ela se apresenta – graça; ela permanece, como é óbvio,
privilégio do poderoso, ou melhor, o seu “além do direito”. (NIETZSCHE, GM II, p. 62).

A confusão em torno dessa palavra e do uso que Nietzsche lhe deu (uso comum, não
conceitual) acontece quando ela é confundida com outro termo bastante utilizado por Nietzsche, a
palavra alemã Überwindung e seu correlato Selbstüberwindung, significando, respectivamente,
superação e autossuperação, ambas com carga semântica tipicamente nietzscheana, utilizadas

124
como conceitos, mas comumente confundidas com Aufhebung e Selbstaufhebung. É o que fez,
por exemplo, Zuckert em seu texto de 1983:

A tentativa não apenas de reprimir, mas, finalmente, destruir e assim negar o instinto
animal do homem, Nietzsche sugere, constitui uma tentativa de mudar a natureza humana.
Como tal, a tentativa não pode ter sucesso, porque os seres humanos são
fundamentalmente animais, seres vivos. Para destruir os instintos, é necessário matar a
besta. Não simples negação, mas a transformação (Aufhebung) – dar nova configuração,
forma e significado – da existência humana é o que é necessário.76 (ZUCKERT, 1983, p.
62. Tradução minha).

As palavras que a autora usou para descrever transformação (Aufhebung), “dar nova
configuração, forma e significado”, não compreendem o espectro semântico que Nietzsche
aplicou ao vocábulo Aufhebung, e sim ao vocábulo Überwindung, que, embora muitas vezes seja
usado como sinônimo de Aufhebung, teve, todavia, uso distinto no pensamento de Nietzsche.
O substantivo feminino Überwindung deriva do verbo überwinden, tem como primeiro
significado no dicionário Duden o vocábulo “derrotar” e traz como exemplo de utilização: “Ele
derrotou o adversário depois de uma luta dura”77; a segunda definição traz um conjunto de três
palavras: lidar (bewältigen), subjugar (bezwingen) e tornar-se mestre (meistern). Curiosamente, a
terceira definição não traz uma palavra, mas a descrição de uma ação: “Abandonar/superar uma
resistência interior e finalmente fazer algo”78. No dicionário de sinônimos da editora Directmedia,
encontra-se também a descrição de uma ação: “Livrar-se de um pesado fardo psicológico”79 .
Desse modo, Überwindung, que doravante será tratado apenas como superação, é o substantivo
que define o processo descrito pelo verbo superar (überwinden).
Nietzsche, porém, não estava interessado em qualquer forma de superação; embora a
palavra lhe fosse bastante cara, o que mais interessava ao filósofo era a autossuperação
(Selbstüberwindung), que, de acordo com Zaratustra, era abandonar o que lhe era mais caro,
tornar-se adversário daquilo que ele mesmo havia criado, para poder seguir criando, nunca
apegado ao que já foi, ao que já está criado, nas palavras do profeta de Nietzsche: “O que quer

76
The attempt not merely to repress but finally to destroy and so to deny man's animal instincts, Nietzsche suggests,
constitutes an attempt to change human nature. As such, the attempt cannot succeed, because human beings are
fundamentally animal, living beings. To destroy the instincts, it is necessary to kill the beast. Not simple negation but
the transformation (Aufhebung) – the giving of new shape, form and meaning – of human existence is what is
required.
77
Er hat seinen Gegner nach hartem Kampf überwunden.
78
Einen inneren Widerstand aufgeben und etwas schließlich doch tun.
79
Sich von einer starken psychischen Belastung befreien.

125
que eu crie e como quer que isso eu ame, – em breve deverei ser seu adversário e do meu amor:
assim quer a minha vontade.” 80 (NIETZSCHE, KSA IV, Za – Da auto-superação, p. 148.
Tradução minha).
Nas palavras de Zaratustra, é perceptível a diferença entre autossuperação e
autossupressão. A autossupressão, pensada na dialética hegeliana, poderia ser representada
graficamente por uma espiral, tendo um objetivo conhecido na forma do absoluto, nesse
movimento não há perda ou negação total, mas apenas uma negação parcial, que, por não ser total,
permite a manutenção do que foi aparentemente negado, na verdade absorvido, se não no todo, ao
menos em suas qualidades superiores; o que foi suprimido não deixa de existir, mas passa a
existir como algo inserido em um contexto maior do qual se torna função, cada figura do novo
traz em si os elementos que lhe foram anteriores, mas que, dialeticamente superados e suprimidos,
constituem também o novo. A auto-superação poderia ser representada por um oroboro, símbolo
alquímico no qual uma serpente devora a própria cauda, formando um círculo infinito de
autodestruição. A autossuperação é a negação absoluta, não manutenção do já sido, avanço
constante em direção a novas criações, que implica, necessariamente, o total abandono e guerra
ao passado e, ao mesmo tempo, entrega total ao devir, que no movimento cíclico do eterno
retorno são uma e a mesma coisa.81
Aqui o pensamento de Nietzsche obriga o estudioso a incríveis exercícios de interpretação,
pois autossuperação e autossupressão, embora aparentemente contrárias, podem fazer parte de um
mesmo processo. É o que afirmou Nietzsche na terceira dissertação de A genealogia da moral, §
27:

(...) Todas as grandes coisas perecem por obra de si mesmas, por um ato de auto-
supressão: assim quer a lei da vida, a lei da necessária “auto-superação” que há na
essência da vida (...). Desta maneira pereceu o cristianismo como dogma, por obra de sua
própria moral; desta maneira, também o cristianismo como moral deve ainda perecer –
estamos no limiar deste acontecimento. (NIETZSCHE, GM III, p. 148. Grifo meu).

Pela afirmação de Nietzsche, a lei da vida, que é a lei da autossuperação, quer que haja
também autossupressão, dando a entender que a autossupressão está dentro de uma lei maior ou
um acontecimento maior, que é a autossuperação; porém, quando fala do cristianismo como

80
Was ich auch schaffe und wie ich's auch liebe, — bald muss ich Gegner ihm sein und meiner Liebe: so will es
mein Wille.
81
O eterno retorno será tratado no quarto capítulo deste trabalho, sendo aqui apenas uma alusão antecipativa.

126
dogma, o filósofo dá mostras de que a autossupressão à qual se refere não é a autossupressão em
sentido hegeliano. Para Nietzsche, o cristianismo, ao tornar a busca pela verdade seu ponto
fundamental, 82 condenou a si próprio, pois foi a busca pela verdade que levou o homem a
finalmente constatar a inexistência de Deus. A abolição do cristianismo e a abolição de seus
dogmas são uma supressão de algo criado pelo homem, e chega o momento, como disse
Zaratustra em citação anterior, de odiar e fazer guerra ao que um dia foi uma criação bem amada.
Não se trata, como na dialética hegeliana, de superar a estrutura primitiva, conservando os
valores superiores (dogma e moral), e sim do abandono do todo. Desse modo, a supressão do
cristianismo faz parte do necessário processo de autossuperação da moral de cada indivíduo que
quer tornar-se o que Nietzsche nomeou de espírito livre.
Se a destruição na forma dessa autossupressão pode resultar em autossuperação, isso não
indica que sempre a destruição redundará criativa, pelo contrário, na maior parte das vezes
redunda apenas em grande desperdício. Afinal, como Nietzsche tantas vezes insistiu, a natureza é
pródiga em desperdícios. Esse é um motivo para que a educação, em especial seu aspecto de
ascensão, seja tão rara: ela é sempre dispendiosa.

Educação (Erziehung): um sistema de meios para arruinar as exceções em proveito da


regra. Formação (Bildung): um sistema de meios para dirigir o gosto contra a exceção, em
proveito do mediano. Dito dessa forma, isso é rude; entretanto, economicamente
considerado [é, OGJ] completamente racional. Ao menos por um longo tempo, onde uma
cultura ainda se mantém em pé com esforço, e toda exceção representa uma espécie de
dissipação de força (algo que desvia, seduz, adoece, isola). Uma cultura da exceção, da
tentativa, do perigo, da Nuance – uma cultura de estufa para plantas não habituais só tem
direito à existência quando está à mão força suficiente para que, daí em diante, até mesmo
a dissipação se torne econômica. (NIETZSCHE, GP, p. 50).

A citação acima é bastante rica, pois nela Nietzsche mostrou o quanto o surgimento de
tipos superiores é um acontecimento raro e como a educação (na chave do conceito de civilização)
tem se esforçado justamente para impedir tal acontecimento. A educação tem sido, para o filósofo,
o conjunto de meios para a prevalência dos tipos inferiores sobre os tipos superiores. Sabendo
que a educação e a formação (na chave do conceito de civilização) trabalham de modo a impedir
uma autossuperação, ou seja, impedir a ascendência do tipo, impedir que pulsões fortalecidas

82
Essa é uma afirmação de Nietzsche; para tal, ele se baseou no Evangelho de João 8:32: “Conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará”.

127
assumam o domínio do conjunto, percebe-se o quanto a autossuperação é um acontecimento raro,
percebe-se o quanto a ascensão tipológica não é recorrente.
Por fim, é lícito levantar um último problema antes que se siga para o próximo capítulo:
ao nascer, um determinado indivíduo possui uma determinada condição de nascimento,83 as mais
diversas experiências de vida (dores, sofrimentos, alegrias, encontros, desencontros, reencontros
etc.), contudo, alteram-lhe a condição de nascimento, de modo que aos quarenta anos de idade o
conjunto pulsional que ele é, em seus arranjos e hierarquias internas, tornou-se totalmente diverso
daquele que era quando nasceu e que a sociedade esforçou-se por manter por meio da educação e
formação (na chave do conceito de civilização); essa mesma pessoa, por meio de novas
experiências reencontra e redescobre seu passado, do qual esteve afastada para que a memória,
importante trunfo na guerra pelo controle pulsional, não enfraquecesse o novo arranjo de domínio
pulsional. Todavia, esse reencontro efetiva o perigo que sempre representou, e há nesse sujeito
novas transformações pulsionais, que, por fim, restauram o arranjo pulsional que era ao nascer,
fazendo com que a condição de morte repita a condição de nascimento.
O que se tem nesse exemplo é uma distinção inicial entre condição de nascimento e
condição de vida, mas uma repetição da condição de nascimento na condição de morte, a despeito
das mudanças ao longo da condição de vida, ou seja, por fim, a condição de morte repetiu a
condição de nascimento. Para Nietzsche, tal repetição não seria possível, a não ser, claro, na
figura do eterno retorno do mesmo, mas esse problema será analisado no quarto capítulo. O
filósofo de Zaratustra não admitia que um arranjo pulsional pudesse ser repetido, apenas o tipo
poderia ser repetido. Se o sujeito do exemplo anterior nascesse como um tipo inferior, poderia
ascender tipologicamente com as experiências da vida e tornar a decair, sem, contudo, tornar-se o
mesmo que era anteriormente. O mesmo pode-se dizer em sentido contrário: se fosse um tipo
superior, poderia decair e, convalescendo, ascender novamente a um tipo superior, mas não o
mesmo tipo superior que tinha sido antes. Com esse exemplo torna-se evidente o sentido da
autossuperação: a autossuperação requer sempre o novo e o diverso, a autossuperação não admite
a repetição dos arranjos pulsionais, mas sempre a criação de novos arranjos pulsionais. O sujeito
que se supera, independentemente do patamar tipológico no qual se encontre, cria sempre o novo,
torna-se o novo. Essa autossuperação é, então, sem dúvida, o objetivo da educação (na chave do

83
Condição de nascimento, que, como se viu, “tende” a repetir a organização pulsional dos pais e da própria
sociedade.

128
conceito de cultura), que é um cultivo de tipos superiores; a superioridade do tipo, mesmo quando
herdada, 84 só é mantida a custo de constantes novas autossuperações, a custo de constante
conflito pulsional e mudança nos arranjos pulsionais, ou então de constantes novas conquistas das
pulsões dominantes e vitoriosas. Não havendo autossuperação, o tipo degenera e decai.
O capítulo seguinte analisará as duas vertentes possíveis da educação nietzscheana, a
educação para a ascensão e a educação para a decadência, e como a civilização, por meio da
imobilidade pulsional, favorece a segunda.

84
No caso de uma criança nascida em uma sociedade aristocrática, essa sociedade a pressionaria desde cedo para que
suas configurações pulsionais repetissem a da própria sociedade, logo, o tipo seria herdado.

129
III – A Educação Possível

Não sendo a tipologia humana um acontecimento irreversível, e havendo a possibilidade


de ascensão e decadência tipológica, como se viu no capítulo anterior, é necessário agora discutir
o papel que a educação exerce nas transformações pulsionais pelas quais os seres humanos
podem ou não passar, e de que modo a educação associa-se à transformação ou não
transformação da organização pulsional e à constante formação e reformulação do Eu. Essa
discussão será feita sob o duplo registro tipológico proposto por Nietzsche e analisado no
capítulo anterior. Dessa forma, será possível perceber a maneira como a civilização tenta impedir
a educação, ou seja, tenta impedir que haja qualquer modificação nos arranjos pulsionais que
constituem um indivíduo, esforçando-se para que a condição de morte repita a condição de
nascimento. Aqui, finalmente, poderá ser mostrada a associação que há entre civilização e cultura
inferior: se a civilização se esforça por manter a estabilidade pulsional, ela favorece a cultura
inferior, pois esta surge do rareamento das forças pulsionais em disputa. O segundo registro sobre
o qual se analisará a educação é o dos tipos superiores e a educação que lhes é própria, uma
educação para a cultura superior.
A civilização e a educação que lhe é própria desempenham um papel ambíguo e
interessante, pois, como será mostrado, se a educação para a civilização favorece indiretamente a
cultura dos tipos inferiores, ela também favorece a dos tipos superiores.

1 – A educação e a dupla possibilidade de constituição do Eu

É bastante conhecida a apreciação que Nietzsche sempre teve pelas sociedades


aristocráticas, em especial as da Grécia e Roma antiga e em menor grau as sociedades italianas do
Renascimento. Todavia, tal apreciação esteve baseada em valores muito mais românticos do que
historicamente reais e, até certo ponto, incompatíveis com aquilo que no pensamento de
Nietzsche são os tipos superiores, exceção talvez feita apenas à besta loura, modelo máximo ao
qual pôde chegar qualquer aristocracia, como afirmou Rogers:

131
Nenhuma aristocracia jamais fez [algo – VS] ou pôde viver à altura do retrato lisonjeiro
que pinta de si mesma. Ela [apenas – VS] está sob a ilusão romântica; e ver as coisas como
são geraria uma humildade fatal para reivindicações aristocráticas. Portanto, do ponto de
vista do realismo intelectual, o típico temperamento aristocrático implica um defeito.85
(ROGERS, 1920, p. 452. Tradução minha).

A avaliação de Rogers sobre as aristocracias é bastante sensata; também nos romances de


cavalaria a realidade das sociedades aristocráticas é bem distinta daquela pintada por Nietzsche
no que se refere aos tipos superiores. Mesmo sua proximidade com a besta loura não é
frequentemente encontrada: nem sempre é possível ver nessas aristocracias a força, bravura e
valentia, a completude psíquica onde nada falta. Mesmo na Ilíada percebe-se a covardia entre os
nobres, como é o caso do roubo de Helena, esposa de Menelau, impetrado por Páris. Mesmo o
grande herói troiano, Heitor, na última escaramuça dos aqueus, ao ver Aquiles perseguindo-o no
campo de batalha, foge de medo e só se detém devido a um estratagema da deusa Atena, que o
ilude, fazendo-o pensar que poderia vencer Aquiles.
No tocante à educação, a situação também não é diferente. Apesar da reverência de
Nietzsche pelas sociedades aristocráticas, elas nunca foram as estufas para plantas raras, capazes
de criar com profusão os tipos superiores, principalmente pelo compromisso das sociedades
aristocráticas com seus valores tradicionais, que devem sempre ser mantidos. Nesse aspecto, as
sociedades aristocráticas assemelham-se muito às sociedades democráticas: em ambas a educação
é um esforço por manter os valores da tradição. Nas sociedades democráticas também os valores
futuros, ou melhor, a perspectiva de manutenção, no futuro, de valores atuais, mas para o bem das
gerações futuras, constitui uma moral civilizatória que tenta barrar as mudanças pulsionais, logo,
uma moral contrária à educação. Se, como visto anteriormente, a civilização quer algo distinto do
que quer a cultura, talvez algo contrário, e esse algo é a imobilidade pulsional, é inevitável ter de
admitir que as sociedades aristocráticas, as legítimas criadoras das sociedades e civilizações para
Nietzsche, foram também sociedades intolerantes com o novo, inclusive com o homem novo,
aquele no qual há reorganização pulsional e que por isso pode vir a ser um tipo superior. É claro
que para Nietzsche nas sociedades aristocráticas restavam ainda a consciência e o controle não
castrador como possibilidades de manutenção do conflito pulsional que impede a diminuição das
forças, sem uma construção social totalmente aplainada, mas nesse ponto, como diz Rogers na

85
No aristocracy ever did or ever could live up to the flattering portrait it draws of itself. It is under the romantic
illusion; and to see things as they are would generate humility fatal to aristocratic claims. From the standpoint of
intellectual realism, therefore, the typical aristocratic temper implies a defect.

132
citação, a realidade também é distinta do retrato que dela se pinta, por isso, é necessário conhecer
o papel exercido pela educação em sua dupla vertente (para cultura e civilização) nas
transformações pulsionais que podem ocorrer nos seres humanos, isso porque, se sociedades
aristocráticas e democráticas são diferentes no nome e nas organizações políticas, não o são nos
objetivos educacionais: promover a inércia pulsional e impedir a mudança tipológica seja na
forma da ascensão seja na da decadência; assim, essa dupla vertente da educação possível não
está presa ao binômio político-administrativo aristocracia/democracia, pois ambas erigem morais
pulsionalmente conservadoras. Essa dupla vertente trata então da possibilidade de ascensão e
decadência pulsional no duplo registro da civilização e cultura.

1.1 – A educação e a formulação e reformulação do Eu

Um dos principais problemas no tocante à educação quando se fala do pensamento de


Nietzsche é saber até que ponto a escola pode ou não interferir na organização pulsional que cada
indivíduo é e vem a ser e, por meio dessa interferência, torná-lo algo distinto ou mantê-lo como é
e tem sido. Problema que tem remetido diversos pesquisadores aos textos do jovem professor
Nietzsche, principalmente à terceira consideração extemporânea e ao texto das conferências sobre
o futuro das escolas alemãs e do próprio ensino alemão. Remetendo-se, porém, a esses textos, os
pesquisadores tomam as elucubrações do jovem Nietzsche como “o” pensamento de Nietzsche,
deixando escapar matizes e transformações importantes que afetaram tanto o pensador como o
pensamento nos anos posteriores a essas primeiras obras. Tais discussões, presas principalmente
a esses dois textos, acabam girando em torno de problemas lá apresentados, em especial a
possibilidade de formação do gênio e o problema da educação em massa. Quando, apesar disso,
vislumbram discussões mais importantes, por não trazerem o problema para a filosofia madura de
Nietzsche, esses pesquisadores acabam deixando de lado o maior manancial teórico do filósofo e
o que mais pode esclarecer quanto à possibilidade de, por meio da escola, atingir, alterar ou ainda
manter as organizações pulsionais que constituem cada indivíduo.
Têm sido cada vez mais constantes os esforços por legitimar Nietzsche como um filósofo
da educação, pela constatação de que a maior parte dos seus projetos filosóficos, se realizáveis,
seriam apenas como projetos educacionais. Mas qual educação? A escolar ou alguma outra forma
de educação tal qual a experiência de vida? Ambas, mas o primeiro caso tem chamado mais a

133
atenção dos pesquisadores acadêmicos por meio de uma discussão que se esforça por aproximar
Nietzsche de um pensamento realmente pedagógico, na forma de uma discussão que tem sido
chamada por diversos nomes, mas sempre fazendo referência à construção, à reconstrução ou às
mudanças do si. Em inglês, o termo mais comum tem sido autorreformulação ou, ainda,
reformulação de si ou do si, todas as hipóteses sendo admissíveis para traduzir o termo inglês
self-reformulation. Fennell afirma, citando para fins de crítica Bingham, que: “auto-reformulação
é um processo por meio do qual indivíduos sistematicamente reconsideram quem eles são”86
(FENNELL, 2005, p. 85. Tradução minha). Todavia, a proposta não é tão simples assim. Nas
palavras de Bingham:

Uma pedagogia nietzscheana concorreria para reformular a individualidade encorajando


aluno e professor a olharem para o si como um esforço interpretativo. Para clarear essa
noção interpretativa do si, nós podemos começar pelo que o si interpretativo não é. Para
Nietzsche, o si não é uma substância estável, que se presta à mesma interpretação várias
vezes. O si também não é uma substância profunda, que se presta a uma interpretação mais
profunda ao longo do tempo. Assim, a escola não é um lugar onde os alunos devem vir
para expressar quem eles são dia após dia. Também não é um lugar onde os alunos
deveriam aprender mais precisamente como expressar quem eles são. Uma pedagogia
nietzscheana não conceitua o si como uma substância autêntica que precisa ser respeitada
pelo que é, e pelo que foi.87 (BINGHAM, 2001, p. 349. Tradução minha).

Pelo que o autor afirma, uma legítima pedagogia nietzscheana careceria, antes de tudo, de
uma nova concepção do que é o si e, após afirmar de maneira bastante precisa o que esse si não
pode ser, ao menos no pensamento de Nietzsche, o autor faz a proposta de um si interpretativo
que pode ser reformulado pelo trabalho conjunto de alunos e professores, embora o autor não dê
mais detalhes do que seja esse si interpretativo. Pelo trecho citado é possível chegar a uma
compreensão do que seria esse si interpretativo: o conjunto de fatores e características que tornam
um sujeito o que ele é. Apenas por esse motivo, ele poderia ser reinterpretado e reformulado por
meio de um esforço conjunto dos alunos (o Eu que irá se transformar) e dos professores, que
seriam então os facilitadores desta autorreformulação. O autor ainda oferece algumas dicas de
como essa pedagogia da autorreformulação agiria sobre os alunos e o processo educacional:
86
"Self-reformulation" is a process through which individuals systematically reconsider who they are.
87
A Nietzschean pedagogy would further reformulate selfhood by encouraging student and teacher to look at the self
as an interpretive endeavor. To unpack this notion of the interpretive self, we can begin with what the interpretive
self is not. For Nietzsche, the self is not a stable substance that lends itself to the same interpretation over and over.
Nor is the self a deep substance that lends itself to a more profound interpretation over time. Thus, the school is not a
place where students should come to express who they are day after day. Nor is it a place where students should
learn more precisely how to express who they are. A Nietzschean pedagogy does not conceptualize the self as an
authentic substance that needs to be respected for what it is, and what it has been.

134
Tal entendimento interpretativo do si do aluno tem vastas implicações para a educação e
currículo. Uma típica (não interpretativa) questão educacional poderia ser: “O que você
aprendeu e o que você aprenderá a seguir?” Uma educação interpretativa perguntaria, ao
invés: “O que você aprendeu e que novas compreensões da sua vida você tem agora que
você aprendeu isso?” Como resultado de novos aprendizados, uma educação interpretativa
pede aos alunos para reaprenderem sobre suas próprias vidas. Isto é exatamente o oposto
de formulações educacionais como a noção de experiência de John Dewey. Para Dewey,
aprender deve proporcionar uma nova experiência para o aluno. Um encontro é
“educativo” se ele conduzir ao “crescimento”. Para a pedagogia de Nietzsche da não
identidade do si, por outro lado, um encontro é educativo se provoca uma reconsideração
do que se é. Em vez de pedir à identidade para encontrar uma nova experiência, Nietzsche
pede à experiência para encontrar uma nova identidade. Enquanto um romance educativo
escrito por Dewey incentivaria a ler a continuação, o mesmo romance escrito por
Nietzsche incentivaria o leitor a reler o livro.88 (Idem).

Pelas perguntas que essa tal educação interpretativa faria ao aluno, fica claro que o autor
toma o si como o conjunto de caracteres e acontecimentos que constituem o sujeito e que tal
educação interpretativa incentivaria o Eu do aluno a se reformular, a partir de uma retomada de
sua própria vida, sempre que aprendesse algo novo ou vivesse algo diverso, e essa retomada da
própria vida mudaria as características que a constituem como um si. Se é acertada a opinião do
autor sobre o que o si não é, é bastante confusa sua ideia do que ele é. Ao acreditar que o si possa
ser reformulado por um esforço do aluno, aqui tornado sujeito do processo, em conjunto com o
professor, Bingham inverte a lógica da constituição da subjetividade humana, afinal, como se viu
até agora, não é o Eu que forma o si, mas o contrário. Desse modo, o Eu jamais poderia
reformular o si, embora possa, todavia, achar que o faz. Como ficou claro em capítulo anterior,
em citação de Zaratustra, o si faz o Eu, o si ordena que o Eu sinta dor e ele sente, ordena que ele
sinta alegria e ele sente. Bingham ignora o conceito de pulsão e o modo como ele impede
qualquer associação entre o pensamento de Nietzsche e noções de um sujeito que modele a si
mesmo, ou que seja modelado de fora. É claro que as condições externas nas quais cada ser
humano vive afetam sua constituição pulsional; isso não quer dizer, porém, que elas afetem o Eu,

88
Such an interpretive understanding of the student self has wide implications for education and curriculum. A
typical (noninterpretive) educational question might be, “What have you learned, and what will you learn next?” An
interpretive education would instead ask, “What have you learned, and what new understandings of your life do you
have now that you have learned this?” An interpretive education asks learners to relearn their own lives as a result of
new learnings. This is quite the opposite of educational formulations such as John Dewey’s notion of experience. For
Dewey, learning should provoke new experience for the student. An encounter is “educative” if it leads to “growth”.
For Nietzsche’s pedagogy of self nonindentity, on the other hand, an encounter is educative if it provokes a
reconsideration of who one is. Instead of asking identity to encounter new experience, N. asks experience to
encounter new identity. While an educative novel written by Dewey would encourage on to read the sequel, such a
novel written by N. would encourage one to reread the book.

135
aquela máscara que o si cria para facilitar seu domínio, embora, mais uma vez, as condições do
mundo externo possam obrigar que o si altere seu Eu.
Quando Fennell criticou a ideia de uma pedagogia nietzscheana baseada na
autorreformulação, como proposta por Bingham, ele tinha em mente ainda outro problema que
Bingham ignorou e que torna seu projeto bem pouco assemelhável ao pensamento nietzscheano,
o problema da necessária relação entre escola e educação de massas. A ideia da pedagogia da
autorreformulação admite que todas as pessoas podem realizar tal autorreformulação por meio da
escola e que, dessa maneira, todos poderiam atingir os stati mais superiores da tipologia
nietzscheana. Foi contra essa democratização da educação nietzscheana que se voltou o artigo de
Fennell quando criticou a pedagogia da autoformulação, afirmando que uma educação que não
respeita hierarquias e não tem seu ponto mais alto na produção do gênio e da excelência, mas,
sim, no convívio de todos em prol de um ideal comum, uma educação como esta, defende Fennell,
não é condizente com o pensamento de Nietzsche. O autor afirma que:

Nietzsche sempre acreditou em uma hierarquia da existência humana e manteve a opinião


de que existe um tipo diferente de aprendizado adequado para os diferentes tipos de
homem. Não é que o primeiro Nietzsche falhou ao ver as possibilidades radicais das
escolas. Muito pelo contrário: Nietzsche, tanto jovem quanto maduro, entendeu que tais
instituições são capazes de produzir a mediocridade estável, essencial para o surgimento
do que é superior.89 (FENNELL, 2005, p. 103. Tradução minha).

De fato, o jovem Nietzsche nutriu grande desconfiança contra a expansão do ensino na


Alemanha, em especial do ensino superior, desconfiança que se estendeu para a democratização
da atitude da escola e dos professores em relação aos alunos, desconfianças muito bem
documentadas em suas duas obras da juventude sobre a educação. Também é clara e muito bem
documentada na obra do filósofo sua mais que desconfiança, seu repúdio pelo pensamento
democrático, pois ele, além de ignorar a hierarquia que há entre os seres humanos, representava,
para Nietzsche, uma espécie de política moralista, baseada nos valores cristãos de que todos os
seres humanos são iguais. Apesar de todas essas desconfianças, o filósofo admitiu que as mesmas
condições que produzem os tipos inferiores também podem produzir os tipos superiores, o que se
pode estender também para a escola e o ensino: o mesmo ensino e a mesma escola que trabalham

89
Nietzsche always believed in a hierarchy of human existence, and held that there is a different kind of learning
appropriate for the different sorts of men. It is not that the early Nietzsche failed to see the radical possibilities of
schools. Quite the contrary: Nietzsche, both young and old, understood that such institutions are capable of
producing the stable mediocrity essential for the emergence of what is higher.

136
para produzir os tipos inferiores podem produzir os tipos superiores, isso porque Nietzsche
percebeu que, ao contrário da sua ideia inicial sobre o gênio, os tipos superiores não devem ser
preservados, mas testados constantemente, submetidos à tensão e à luta, pois é só nessas
condições que pode haver elevação tipológica e só sob tais condições que o tipo mantém sua
superioridade e impede a decadência. A escola, nos moldes em que hoje existe, possibilitaria o
surgimento dos tipos superiores na exata medida em que trabalhasse pela mediocrização dos seres
humanos desde sua infância. Embora isso soe contraditório, é a exata expressão do pensamento
de Nietzsche: só lutando contra constantes condições adversas o tipo ascende e/ou mantém sua
superioridade. Todo favorecimento pode redundar em enfraquecimento. Por isso, o filósofo, em
um fragmento póstumo, escreveu, de forma dura e dramática:

Àqueles seres humanos que ainda me são próximos, eu desejo sofrimento, desolação,
doença, abuso, humilhação, – que não lhes seja desconhecido o profundo autodesprezo, a
tortura da suspeita contra eles, a miséria dos vencidos: eu não tenho nenhuma compaixão
por eles porque eu desejo-lhes a única coisa que hoje pode provar se alguém tem valor ou
não – que ele se mantenha... Eu ainda não encontrei nenhum idealista, mas muitos
mentirosos.90 (NIETZSCHE, KSA XII, p. 513, 10[103]. Tradução minha).

Apesar da dureza e da gravidade das palavras de Nietzsche, tem-se com elas uma ideia
bastante clara do que constitui ou pode constituir a educação que forma os tipos superiores, e, de
fato, a escola atual, principalmente em sua incrível vertente democrática, que admite que todos
têm e devem ter os mesmos direitos, pois são todos iguais perante a lei, na qual o educando é tido
como uma espécie de rei sem súditos, talvez com súdito único... nessa escola, o indivíduo que
ensaia uma elevação tipológica, ou que já está constituído como um tipo superior, conhecerá tudo
aquilo que Nietzsche lhe desejaria para que pudesse persistir como superior: conhecerá o escárnio
da igualdade, a humilhação do nivelamento e do rebaixamento, o desprestígio da proteção e do
favorecimento, até mesmo a doença na forma de recorrentes temporadas de decadência. Somente
assim os tipos superiores serão provados, somente assim será possível saber até onde eles podem
aguentar, até que ponto eles conseguem realmente suportar. Em face dessas perspectivas
escolares antevistas por Nietzsche para a criação dos tipos superiores, uma pergunta ganha

90
Solchen Menschen, welche mich etwas angehen, wünsche ich Leiden, Verlassenheit, Krankheit, Misshandlung,
Entwürdigung, — ich wünsche dass ihnen die tiefe Selbstverachtung, die Marter des Misstrauens gegen sich, das
Elend des Überwundenen nicht unbekannt bleibt: ich habe kein Mitleid mit ihnen, weil ich ihnen das Einzige
wünsche, was heute beweisen kann, ob Einer Werth hat oder nicht, — dass er Stand hält… Ich habe noch keinen
Idealisten, aber viele Lügner kennengelernt.

137
destaque: isso é realmente necessário? E quanto àquela estufa para plantas raras e seletas? Não
seria possível, ao contrário, uma educação que emulasse todos esses acontecimentos, de modo a
oferecer um ambiente hostil, porém, controlado? Afinal, em uma experiência de elevação como
essa, encontram-se lado a lado, quase se interpenetrando, a possibilidade de elevação e a de
decadência.
Aqui se pode, por fim, buscar a importante distinção que mostra duas educações, uma
para a elevação humana e outra para o rebaixamento dos tipos humanos. É possível, então, falar
em uma educação para a civilização e outra para a cultura. No primeiro caso, dar-se-ia a
imobilidade pulsional, uma educação focada na utilidade e que, nos termos nietzscheanos, nem
poderia ser considerada como educação; no segundo, uma educação para a transformação
pulsional, tanto na ascendência quanto na decadência.

1.2 – Educação civilizatória

Tem-se discutido muito nos meios educacionais a questão da reprodutividade escolar e


tem-se lançado diversas e severas críticas a essa escola que busca reproduzir um modelo social
vigente, que a criou e estruturou. Segundo as principais críticas, tal estruturação escolar impede o
surgimento do novo na escola, tornando os alunos como que autômatos, que repetem aquilo que
lhes foi impingido como educação, sem, contudo, analisar esses conhecimentos, sua validade,
pertinência e utilidade. Poderia supor-se que Nietzsche seria um partidário dessa crítica, dada a
ideia do filósofo de que a escola também pode trabalhar juntamente com outras instituições para a
criação dos tipos superiores, mas a análise que se pode fazer partindo do pensamento de
Nietzsche não se coaduna com tais superficialidades, menos ainda com as ideias-pano-de-fundo
que as inspiram.
Se a escola é uma estrutura de reprodução, ela só reproduz a estrutura social
secundariamente, pois primariamente o que busca reproduzir é a organização pulsional que
modela a sociedade, ou seja, a escola tenta decalcar nas crianças que lhe chegam uma série de
valores que fortalecem determinada organização pulsional, a qual está na base da organização de
toda a sociedade e que, espraiando-se sobre novos indivíduos, tem intensificada sua sensação de
poder. A escola talvez seja o mais importante trunfo na luta da vontade de poder dos fracos em
sua tentativa de domínio global e enfraquecimento dos fortes e, ainda, e ao mesmo tempo, o

138
melhor mecanismo possível para prevenir seu surgimento, o que Nietzsche justifica de maneira
bastante irônica evocando um provérbio chinês:

No fundo todas as civilizações têm um medo profundo do “grande homem”, o que só os


chineses reconheceram com o provérbio “o grande homem é um infortúnio público”. Em
princípio, todas as instituições são criadas, para que ele surja o mais raramente possível e
cresça sob as condições mais desfavoráveis possíveis: que maravilha! 91 Os pequenos
cuidaram de si mesmos, dos pequenos!92 (NIETZSCHE, KSA IX, p. 626 14[15]. Tradução
minha).

A escola é uma dessas instituições que trabalham para que raramente surja o homem
superior. Na verdade, é a melhor de todas elas, pois elimina qualquer possibilidade de
crescimento tipológico de um indivíduo em uma fase na qual ele é fraco demais para se defender.
Mas que não se nutra compaixão para com os tipos superiores malogrados desde cedo aos montes
em todas as escolas. Esse sentimento compassivo apenas agravaria o fracasso da elevação e, de
fato, eles sempre representaram um infortúnio público, pois o que o indivíduo superior faz, ao
tentar plasmar no mundo sua vontade de poder, é justamente destruir o mundo que já está posto
por meio dos mais diversos tipos de violência, criando um mundo novo que reflita não mais a
vontade de poder dos fracos que estruturava a antiga sociedade, mas sim a sua vontade de poder.
A educação, em todos os tempos, incumbiu-se de barrar esse crescimento tipológico. Nas
sociedades aristocráticas, embora Nietzsche não gostasse de admitir, como se viu anteriormente,
a beleza e o fulgor dos nobres eram muito mais romanceados que reais, e, nessas sociedades
aristocráticas, o homem superior, aquele que é diferente e aspira à diferença, foi combatido
ferrenhamente por meio de uma supervalorização do passado: ser diferente dos antepassados era
ser um criminoso, ser ingrato com os fundadores, que mesmo em espírito ainda eram
mantenedores da comunidade. Obviamente, essa é uma estratégia política, todas as sociedades
aristocráticas tiveram sua força em uma supervalorização de seu passado, elevando-o, por fim, à
categoria de mito, origem dos grandes heróis e suas façanhas.

91
A expressão “que maravilha!”, que aqui traduz “was Wunder!” tem claramente um sentido irônico, pois Wunder é
uma palavra que expressa admiração, semelhante ao inglês wonder. Conhecendo o pensamento de Nietzsche, não se
pode admitir como maravilhoso tal processo de impedimento do surgimento do homem superior, restando apenas a
ironia como forma de tratá-lo.
92
Im Grunde haben alle Zivilisationen jene tiefe Angst vor dem „großen Menschen“, welche allein die Chinesen sich
eingestanden haben, mit dem Sprichwort „der große Mensch ist ein öffentliches Unglück“. Im Grunde sind alle
Institutionen darauf hin eingerichtet, dass er so selten als möglich entsteht und unter so ungünstigen Bedingungen als
nur möglich ist heranwächst: was Wunder! Die Kleinen haben für sich, für die Kleinen gesorgt!

139
Na escola/educação contemporânea também se tenta barrar o surgimento dos tipos
superiores por meio de uma estratégia política, porém, temporalmente oposta: nas escolas atuais,
o crescimento tipológico é castrado por meio de um apelo ao futuro, às gerações futuras. Esse é o
apelo da democracia, e que hoje ganha contornos incríveis no discurso de zelo e cuidado pelo
planeta para garanti-lo às gerações futuras. Nessa perspectiva, o homem superior, que, de fato, é
um infortúnio público e que tenta se diferenciar do rebanho humano logo cedo, é tratado com
piedade e complacência, sua vontade de poder nascente é transferida de seus interesses pessoais
para os interesses da coletividade, da civilização, talvez principalmente da ainda-não-civilização,
ou seja, a civilização do futuro; o conjunto pulsional dominante já antevê a possibilidade de se
expandir no futuro dos tempos, desde que obtenha sucesso no seu principal intento: impedir o
surgimento dos tipos superiores.
É bastante conhecida a crítica que o jovem Nietzsche fez à educação de sua época, em
especial nos textos Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino,93 mas que também está
presente em sua Terceira consideração extemporânea: Schopenhauer como educador. O que
motivou as críticas do jovem Nietzsche à educação de sua época foi a democratização do ensino.
É difícil estabelecer ao certo quais problemas o jovem Nietzsche detectava na educação
democrática de sua época, principalmente porque esse democratismo da educação apenas
despontava. Talvez o incômodo de Nietzsche fosse realmente um ranço aristocrático misturado
com a sensação, quase presciente, do quanto a educação democrática desvalorizaria o professor e
o tornaria um elemento acessório no processo educacional; todavia, com o amadurecimento do
filósofo e o advento de dois elementos basilares de sua filosofia madura, a crítica à democracia
ganhou novo e pungente significado. Esses dois novos elementos são a crítica da moral e a
constituição pulsional humana.

1.2.1 Democracia utilitária e moral

Para Nietzsche, a educação moderna é uma educação feita pela utilidade e para a utilidade
e tem como instrumentos centrais a crença e os desejos democráticos, mas por trás dessa

93
O título original em alemão é Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten, que também admite como tradução
“nossas instituições de ensino”, todavia, se adotará o título já traduzido por ser de grande circulação no Brasil e fácil
consecução.

140
democracia há algo ainda mais profundo e arraigado no ser humano, para utilizar uma palavra
que agradava Nietzsche, o que está por trás de tudo isso é o atavismo moral.
A educação que se baseia na utilidade e que busca formar homens laboriosos e
trabalhadores que se sintam felizes em assim sendo, essa educação está claramente talhada em
função da própria maquinaria civilizatória e dos conjuntos pulsionais que a criam, mantém e
servem de modelo. Diversas ideias filosóficas foram desenvolvidas desde o início da
modernidade e cada vez mais serviram ao intuito pulsional civilizatório, em especial as teorias da
totalidade social, aquelas que veem a sociedade como um corpo no qual cada indivíduo é uma
parte, uma célula, um órgão, e desempenha uma função, teorias que, atualizadas pela Revolução
Industrial, tornaram-se ainda mais incríveis e opressoras: cada indivíduo torna-se uma parte na
grande máquina social, o seu valor, todo o seu valor é determinado em função da sua natureza de
peça de máquina, e qualquer tentativa de fugir a essa máquina gera as mais diversas penalidades,
desde as mais “brandas”, geralmente calcadas na moral que ensina e aconselha a necessidade de
se trabalhar pelo todo e de se pensar a coletividade antes de se pensar na individualidade, até as
medidas punitivas mais drásticas como o isolamento, as prisões e os manicômios. Embora na
Antiguidade não houvesse a noção de máquina ou organismo para nessa noção localizar o
indivíduo, havia a de família e de polis, que desempenhavam papel semelhante, e qualquer
tentativa de fugir dessa utilidade pública era também castigada de maneiras bastante severas,
como o degredo e a morte. O que se percebe é que onde houve civilização houve uma educação
para a utilidade coletiva em detrimento dos interesses e das necessidades do indivíduo. Essa ideia
também é defendida por Mintz, quando afirma que:

A principal crítica de Nietzsche à educação encontra-se em um pressuposto inerente à sua


cultura: a de que a educação deve criar um bom cidadão; em outras palavras, o cidadão
deve aprender a servir a sociedade, em vez de seus próprios objetivos egoístas. Nietzsche
reage contra todas as formas de ensino que buscam desenvolver um indivíduo para o bem
dos outros. A moralidade é usada na educação para subordinar o indivíduo ao costume e,
assim, para servir a sociedade.94 (MINTZ, 2004, p. 163. Tradução minha).

O pressuposto ao qual se refere Mintz não é, porém, apenas da cultura de Nietzsche, ainda
hoje se educa nas escolas na perspectiva de se formar bons cidadãos, e, consequentemente, são

94
Nietzsche’s main criticism of education lies in a presupposition inherent in his culture: that education ought to
create a good citizen; in other words, the citizen must learn to serve society rather than his own selfish goals.
Nietzsche reacts against all forms of education that seek to develop an individual for the sake of others. Morality is
used in education to subordinate the individual to custom and, thus, to serve his society.

141
ensinadas e fomentadas as virtudes necessárias à boa cidadania, as virtudes da democracia. A
opinião de Mintz que aqui se utiliza é facilmente endossada pelas palavras do próprio Nietzsche:

As virtudes de um homem não são chamadas de boas em vista dos efeitos que tenham para
ele, mas em vista dos efeitos que pressupomos que tenham para nós e a sociedade (...) é a
natureza de instrumento que é louvada nas virtudes, quando se faz o elogio delas, e
também o impulso cego dominante em cada virtude, que não é mantido nos limites pelo
interesse geral do indivíduo; em suma: a desrazão da virtude, mediante a qual o indivíduo
se deixa transformar numa função do todo (...). A educação procede quase sempre assim:
ela procura encaminhar o indivíduo, por uma série de estímulos e vantagens, para uma
maneira de pensar e agir que, quando se torna hábito, impulso e paixão, vigora nele e
acima dele de encontro a sua derradeira vantagem, mas “para o bem de todos”.
(NIETZSCHE, GC, p. 69-71. Grifo meu).

Ao educar o indivíduo para que atenda às necessidades da sociedade, educa-se para que
seu arranjo e constituição pulsionais se amoldem ao da sociedade civilizada e, principalmente,
para que não se alterem. Se se atenta para as palavras destacadas em negrito na citação (“hábito,
impulso e paixão”), percebe-se que a educação age de maneira a fomentar ou mesmo criar
pulsões que aceitem a ordem pulsional vigente na sociedade civilizada, o que a educação
moderna quer é justamente fazer com que cada indivíduo se torne uma peça nessa grande
máquina, desindividualizando-o e despersonalizando-o. O caminho para esse objetivo é duplo e
consequente: a democracia na educação e aquilo que se esconde por trás dela, a moral.
Apesar de alguns esforços de leitores contemporâneos em criar uma democracia, ou ao
menos embasar uma democracia a partir do pensamento agonístico de Nietzsche, um contato
mínimo com a obra do filósofo mostra que isso não faz sentido.95 Alguns desses defensores de
uma democracia agonística, baseados em Nietzsche, transferem a ideia também para a educação,
podendo, então, afirmar que embora não haja textos explícitos defendendo a igualdade e a
democracia em Nietzsche, pelo contrário, a atitude que Nietzsche espera dos homens superiores
seria condizente com a atitude que a democracia liberal espera de cada indivíduo. É o caso da
professora Sassone, da Universidade de Illinois, que afirma que uma educação por meio do
currículo pode se aproveitar democraticamente do pensamento de Nietzsche:

95
Para mais detalhes ver os artigos: ROGERS, A. K. Nietzsche and Democracy. In: The Philosophical Review, Vol.
21, Nº 1, p. 32-50; Durhan (Connecticut): Duke University Press on behalf of Philosophical Review Stable, 1912; e
KATZ, Rebecca M. Communal Training of the Solitary Individual: A Nietzschean Puzzle Concerning Liberal
Education. In: Philosophy of Education Archive. Vl. 027, n. 04. p. 163-70. North America, 2004.

142
A pedagogia democrática de Nietzsche exige um início onde a pessoa se encontra, seja em
qualquer lugar e com qualquer pessoa. Ela requer um currículo democrático na medida em
que considera cada um em sua especificidade no que diz respeito a seu corpo, psique,
fixação,96 estratégia de vida (...). É nomeada filosofia através do currículo, porque em vez
de ser limitada a um período de aula, semestre ou um programa de estudo, é uma
postura/atitude/modo de ser-no-mundo contínua. Currículo aqui é definido para incluir as
diversas práticas de vida, que envolvem aprendizagem e tudo o que pode ser infundido
(misturado) com o que será desenvolvido como filosofia. A pedagogia filosófica de
Nietzsche está para além do currículo, se o termo currículo está restrito ao sentido dos
cursos ou das disciplinas que caracterizam os sistemas de ensino (...). Em última análise, a
relação pedagógica deve ser (e sempre/já é) interior ao indivíduo – cada um ensina a si
mesmo (o que não quer dizer que é impossível aprender com os outros).97 (SASSONE,
1996, p. 515. Tradução minha).

Esse é o típico caso, de resto já bastante conhecido na história do pensamento de


Nietzsche, em que as ideias do filósofo são interpretadas para caber em contextos estranhos ao
seu pensamento, buscando-se justificar qualquer ideia como aderente ou ao menos tangente ao
pensamento de Nietzsche. De fato, uma pedagogia nietzscheana não seria baseada em currículos,
ou em aulas ministradas em salas de aula, embora estas até pudessem ajudar na disciplina; tal
pedagogia se daria, sim, por meio da experiência de vida, e também, de fato, cada um aprenderia
por conta própria. Mas aqui se defronta com o primeiro problema da citação: o que quer dizer
esse “cada um”? E como ele pode aprender sozinho? É sabido que não há, no pensamento de
Nietzsche, o sujeito que ocupe o lugar do “cada um”, logo, esse aprender sozinho também estaria
interditado, e aquilo que chamamos de aprendizado, e mesmo o aprendizado da experiência de
vida é o resultado dos conflitos pulsionais: mas o aprendizado que se torna consciente para a
consciência do sujeito, do Eu, e que ele apreende de fato, como aprendizado seu, nada mais é do
que os produtos das lutas pulsionais, aquilo que o conjunto pulsional que domina o si deixa
transparecer para a consciência, fortalecendo no conjunto a falsa noção de Eu e de
individualidade, ferramenta, como mostrado nos capítulos anteriores, fundamental para a
manutenção, o domínio e o equilíbrio pulsional.

96
Traduziu-se por “inserção” o vocábulo embeddedness, neologismo derivado do substantivo embedded, que se
refere à colocação, incorporação, ser ou estar embutido. O referido neologismo dá a ideia de colocação de estar em
algo ou fazer parte de algo.
97
Nietzsche’s democratic pedagogy calls for a start where one is, anywhere with anybody. It requires a democratic
curriculum in that it takes each in their specificity with regard to their body, psyche, embeddedness, life strategy (...).
It is named philosophy across the curriculum because rather than being restricted to one class period, semester, or
program of study, it is a continuous stance/attitude/way of being-in-the-world. Curriculum here is defined to include
the various practices of life, all of which involve learning and all of which can be infused with what will be
developed as philosophy. Nietzsche’s philosophical pedagogy is beyond the curriculum, if curriculum is restricted in
meaning to the courses or disciplines that characterize systems of education (...). Ultimately the pedagogical relation
should be (and always-already is) interior to the individual – each one teaches herself (which is not to mean that it is
impossible to learn from others).

143
Ainda seria possível perguntar a Sassone que democracia é essa da qual ela fala? Pois uma
democracia que se feche na experiência de um único indivíduo, ou que mesmo o mundo de um
único indivíduo se feche em suas experiências pessoais, isso já não é democracia, que prima e
zela pelo espaço público, inclusive pelo espaço da formação pública.
Fala-se, ainda, entre os defensores da democracia agonística que se baseiam em Nietzsche,
que o filósofo valorizava o conflito como maneira de buscar soluções, mas sem a destruição dos
indivíduos envolvidos no conflito, o que pressuporia uma igualdade mínima entre as partes
conflitantes. Essa ideia é bastante defendida por Connolly, 98 que, todavia, ignora dois pontos
fundamentais, sendo um deles apontado por Redhead:

A igualdade em Nietzsche é algo que só é compartilhado por aqueles de igual poder,


porque são só estes seres que, evidenciando o mesmo nível de poder, não podem
engendrar uma relação de dominação e subjugação entre si. Somente entre aqueles que
não podem oprimir ou ser oprimidos uns pelos outros, que são capazes de exibir uma aura
de inimizade espiritualizada entre si, [somente entre estes – VS] pode um sentimento de
reciprocidade ser encontrado. Doutrinas como a justiça Connolliana, que glorificam um
sentimento de igualdade entre as pessoas que inerentemente manifestam diferentes graus
de uma natureza nobre, são os mais venenosos dos venenos porque essas doutrinas agem
como um anátema para a força mais criativa do mundo de Nietzsche, a vontade de poder
das almas mais nobres.99 (REDHEAD, 1997, p. 190. Tradução e destaques meus).

Em sua crítica a Connolly, Redhead atinge pontos extremamentes sensíveis do problema,


a saber: (a) a igualdade entre os nobres e a fugacidade da nobreza; (b) a igualdade entre os que
possuem graus distintos de nobreza; e (c) o ataque à vontade de poder.
De fato, os membros de uma mesma aristocracia tratam-se como iguais. Para Nietzsche,
isso é o sinal da saúde de uma aristocracia: respeito para com os iguais. Todavia, não se deve
ignorar que essa nobreza não é algo estático e permanente, estando um indivíduo nobre sujeito
aos diversos acontecimentos que podem conduzir à degenerescência, assim como um indivíduo
inferior pode ascender à tipologia dos superiores. Essa mobilidade torna praticamente impossível
localizar a igualdade como prática política e/ou educacional, pois os fortes, enquanto iguais entre

98
Ver: William Connolly. Identity/Difference: Democratic Negotiations of Political Paradox. Ithaca (N.Y): Cornell
University Press, 1991; e Political Theory and Modernity. 2nd edn. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1993.
99
Nietzschean equality is something that is only shared by those of equal power because it is only those beings who,
by evincing the same level of power, can not engender a relationship of domination and subjugation amongst
themselves. Only amongst those who can't overwhelm or be overwhelmed by each other, who are capable of
displaying an aura of spiritualized enmity towards each other, can a sense of reciprocity be found. Doctrines such as
Connollian justice that glorify a sense of equality amongst people who inherently manifest varying degrees of a
noble nature are the most poisonous of poisons because these doctrines act as an anathema to the most creative force
in the Nietzschean world; the will to power of the most noble souls.

144
si, estão sempre buscando a mudança para fugir ao enfraquecimento e à decadência. Outro ponto
importante a que a citação remete são os distintos graus de superioridade e também de
inferioridade. Já foi dito anteriormente que a hierarquia está em toda parte no pensamento de
Nietzsche, não apenas entre superiores e inferiores, mas nas subcategorias dos inferiores, assim
como nas subcategorias dos superiores, encontrando no tipo goetheano o apogeu do que é
humanamente possível. Todavia, como esse tipo superior além dos superiores lidaria com aqueles
que, sendo superiores, ainda lhe são inferiores? Ao que parece, Nietzsche não se importou em
desvelar essas minúcias, pois não se encontram informações a tal respeito em seu texto, mas, se o
pathos da distância caracteriza qualquer tipo forte, não haveria por que não pensá-lo também
nesse superior dos superiores; também ele não admitiria ser igualado aos demais tipos superiores.
A colaboração mais importante de Redhead é sem dúvida chamar a atenção para um ponto
central: toda tentativa de sobrevalorizar a igualdade, e ainda por cima justificar tal tentativa com
o pensamento de Nietzsche, é uma tentativa de enfraquecer o pensamento do filósofo de
Zaratustra, enfraquecendo aquilo que pode ser visto como a alma dessa nova filosofia: a vontade
de poder. Esse é o escopo da crítica nietzscheana à democracia: a democracia enfraquece os
indivíduos à medida que os supõe como iguais, e como, em tese, entre iguais não há, ou não é
necessário haver conflito, a democracia tende a escamotear os conflitos e tensões que constituem
os indivíduos, conflitos e tensões sem os quais o conjunto pulsional tem sua força decrescida,
torna-se decadente e doentio. Se o homem superior é um infortúnio público, como visto
anteriormente, a melhor maneira de evitar tal infortúnio é a democracia, mais ainda a educação
democrática. Todavia, seria equivocado ver na crítica que Nietzsche fez à democracia apenas o
ranço aristocrático. Há um motivo bastante significativo e importante, dentro de sua teoria
filosófica, para que a democracia seja atacada. Segundo o filósofo, a democracia é “(...) não
apenas uma forma de decadência das organizações políticas, mas uma forma de decadência ou
diminuição do homem, sua mediocrização e rebaixamento de valor” (NIETZSCHE, ABM, p.
103). Mas o que motiva essa crença, ou, em outras palavras, por que a democracia é tão ruim?
O primeiro pressuposto que levou Nietzsche a criticar a democracia e respectivamente
uma educação democrática foi o depauperamento pulsional do ser humano, como o filósofo
afirmou em fragmento póstumo: “A democracia como um racionalismo triunfante e em luta com
o instinto: este último é deformado.”100 (NIETZSCHE, KSA VII, p. 46, 2[3]. Tradução minha).

100
Die Demokratie als Rationalismus siegend und kämpfend mit dem Instinkt: letzterer verzerrt sich.

145
Mas como um instinto pode ser deformado? É possível, sem perda de sentido, substituir, nessa
citação, o deformado por enfraquecido. Tem-se, então, que a democracia como um racionalismo
triunfante e em luta contra os instintos, por fim, enfraquece-os. Se se lembrar que instinto é uma
palavra bastante usada por Nietzsche para designar pulsão, o que se tem na afirmação do filósofo
é que de alguma maneira a racionalidade da democracia é capaz de enfraquecer as pulsões que
constituem o humano. Mas, antes, é necessário compreender o que significa dizer que a
democracia é um racionalismo triunfante.
Historicamente, tendo como ponto de referência a contemporaneidade, é fácil
compreender por que a racionalidade democrática é triunfante: depois das intensas lutas do século
passado contra seu rival e meio-irmão, ainda mais odiado por Nietzsche, o socialismo, a
democracia finalmente triunfou na Europa e nos países culturalmente ligados a ela. Com o fim
dessa luta, a democracia lançou suas garras contra o restante do mundo, em um movimento de
absolutização da democracia, por mais paradoxal que isso possa parecer. Para isso basta que se
perceba como os Estados Unidos e a aliança militar por ele capitaneada têm imposto a
democracia aos seus inimigos, na forma de uma disputa de poder (vontade de poder) bastante
velada, como afirma Giacoia:

Para Nietzsche, vigora nesse processo um tipo impessoal e camuflado de vontade de poder,
que oculta – primeiramente a si mesmo – essa sua condição. Ao instituir-se como valor
absoluto, submetendo a si toda e qualquer outra forma de sentimento de valor e parâmetro
de avaliação, as “idéias modernas”, ao mesmo tempo em que levam a efeito o nivelamento
massivo do homem ocidental, satisfazem seu impulso inconscientemente tirânico.
(GIACOIA apud NIETZSCHE, GP, p. 12).

Como se vê, o racionalismo democrático é historicamente triunfante, e seu triunfo reside


justamente em sua racionalidade, uma racionalidade totalmente condizente com a lógica de vida
dos tipos inferiores, com aquilo que regra e guia suas vidas: a moral. Falar da lógica da
democracia é falar necessariamente da moral, é ela que como valor absoluto opera por trás das
pretensões políticas de igualdade, mas, antes de discutir a relação democracia/moral, é necessário
atentar para a economia de vida da democracia.
Nietzsche estava bastante ciente de que o estilo de vida senhorial é custoso em todos os
sentidos que se possa imaginar, mas em especial é humanamente custoso. O filósofo não
ignorava a veracidade presente no ditado chinês que afirma que o grande homem é um infortúnio
público, mas na avaliação senhorial o cálculo das vantagens e desvantagens não faz sentido: o

146
grande homem age grandiosamente justamente por não buscar o prazer e repelir a dor, também
não age em função do útil ou prejudicial. Aqui, mais uma vez, não se pode deixar extraviar nos
equívocos do Eu cartesiano e autorregulador: esse grande homem é uma pletora de pulsões
fortalecidas que o comandam. Aquilo que o faz como Eu nada mais é do que o resultado da
vontade de poder, aquele borbulhar do conflito de todo o conjunto pulsional que ele é. Aí surge a
paixão e a exuberância da ação; o cálculo, sua utilidade e mesquinhez estão associados a outro
tipo de consciência que não a senhorial, a consciência dos tipos inferiores, que, como Nietzsche
nunca se cansou de observar, sempre foram mais inteligentes e tiveram mais espírito, sempre
foram mais aptos para se preservar, embora não para se expandir,101 e na sua moral esse cálculo
se tornou o ponto central. Nietzsche, todavia, acreditava que a natureza se esforça por criar os
modelos superiores e mais exuberantes, chegando a afirmar que um povo é o rodeio que a
natureza faz para criar seis ou sete tipos superiores, cuja importância reside justamente na
possibilidade de obrigar os limites do natural a se expandirem, e estes indivíduos raros e especiais
não podem ser igualados aos demais.
Esse é outro elemento que levou Nietzsche a repudiar a democracia: a igualdade. A ideia
da igualdade é mais um passo no projeto de vitória das pulsões enfraquecidas e decadentes sobre
as fortalecidas, pois é mais uma estratégia movida por aquela lógica triunfante da democracia,
para diminuir a tensão ou escamoteá-la e, por consequência, diminuir o poder das pulsões mais
vitais. Onde há grande diferença nos níveis de potência não pode haver guerra, apenas submissão;
a guerra, ou o conflito pulsional, só é possível onde há uma pressuposição mínima de equilíbrio
nos graus de força, mas esse equilíbrio não é igualdade. Para o filósofo alemão, o esforço
democrático consiste, no tocante à igualdade, em passar do equilíbrio e da noção de equilíbrio de
forças em conflito para a igualdade. Operando novamente com sua lógica triunfante, as pulsões
enfraquecidas que se utilizam da democracia como instrumento de combate promovem o
raciocínio de que se o grau de força está em equilíbrio entre pulsões ou grupos distintos de
pulsões, aquilo que elevou e manteve o grau de força em cada um dos dissidentes é semelhante,
independentemente do que seja esse “aquilo”, logo (operador lógico) há entre eles mais
semelhanças do que dessemelhanças, tornando desnecessário qualquer conflito.

101
Aqui é necessário ter em mente que para Nietzsche “multiplicar” e “expandir” são acontecimentos distintos – os
pequenos se multiplicam, mas não se expandem.

147
O “aquilo”, porém, que mantém a força em sua constância e busca aumentá-la, é
justamente o conflito, e este é o ponto central para Nietzsche: os tipos superiores não se atritam
sem motivos lógicos ou utilitários, mas apenas para exercitar sua força e fazê-la crescer; quando a
lógica dos tipos inferiores interfere nesse processo, oferece a utilidade como motivo e desloca a
luta e o atrito da expansão do poder para a utilidade. A educação exerce papel preponderante aqui,
ela ensina a não esbanjar as forças em lutas que não são úteis ou necessárias, poupando essas
mesmas forças para as lutas realmente necessárias. Essa mesma educação, então, ensina quais são
as lutas necessárias. Mas, na lógica de Nietzsche, a luta em si é necessária, porque é ela que
expande a força; os motivos e as conquistas que podem advir da luta são efeitos colaterais,
mesmo a vitória na luta tem pouca importância. Apenas o pensamento calculista, utilitário e
mesquinho dos tipos inferiores preocupa-se com a vitória; a luta é a emulação das forças, e é esta
emulação que as faz crescer. A pressuposição da igualdade, novamente, mina a luta e, por
consequência, promove a decadência pulsional, assim, uma verdadeira igualdade, uma igualdade
na pequenez.
Aqui é necessário que se destaque a inversão lógica, ou o que para Nietzsche é uma
inversão lógica e que torna a lógica dos tipos inferiores triunfante: na lógica de Nietzsche, que o
filósofo afirmava ser a mesma dos tipos superiores, a semelhança na força é a pré-condição para a
luta, pois se esse equilíbrio de forças está ausente não haverá luta, porém, subjugação,
consequentemente, também não haverá esforço necessário para que haja a expansão das forças,
pois tal expansão só se verifica quando no conflito há resistências a serem vencidas, barreiras a
serem derrubadas. Na lógica dos tipos inferiores, a semelhança de forças tem papel invertido, ela
é tornada igualdade de forças, momento em que entra em cena o operador lógico: “se há
igualdade de forças, então a luta não é necessária”. Com essa inversão lógica, o único elemento
que assegura que a luta promoverá a expansão é, de imediato, interditado; apresenta-se aí também
a regra de luta dos tipos inferiores: só se luta quando há diferença nos graus das forças, só se luta
quando se pode vencer.
Em sua autobiografia, Nietzsche mostrou o que poderia ser nomeado como uma regra de
cavalheiros ou tipos superiores para a guerra e o conflito. Nessas regras, percebe-se facilmente o
quão está afastado o combate por utilidade e interesse, típico dos tipos inferiores:

A força do agressor tem na oposição de que precisa uma espécie de medida; todo
crescimento se revela na procura de um poderoso adversário – ou problema: pois um

148
filósofo guerreiro provoca também os problemas ao duelo. A tarefa não consiste em
subjugar quaisquer resistências, mas sim aquelas contra as quais há que investir toda a
força, agilidade e mestria das armas – subjugar adversários iguais a nós... Igualdade
frente ao inimigo – primeiro pressuposto para um duelo honesto (...). Minha prática de
guerra pode-se resumir em quatro princípios. Primeiro: ataco somente causas vitoriosas –
ocasionalmente, espero até que sejam vitoriosas. Segundo: ataco somente causas em que
não encontraria aliados (...). Terceiro: nunca ataco pessoas – sirvo-me da pessoa como
uma forte lente de aumento com que se pode tornar visível um estado de miséria geral,
porém dissimulado, pouco palpável (...). Quarto: ataco somente coisas de que está excluída
qualquer diferença pessoal, em que não existe pano de fundo de experiências ruins.
(NIETZSCHE, HH, p. 32. Grifos meus).

Note-se no primeiro destaque o motivo para a guerra entre os tipos superiores: o


crescimento. Não se fala em utilidade ou em vantagem, os tipos superiores atacam e fazem a
guerra apenas para terem aumentado o seu poder, a vitória é de menor importância, é um efeito
colateral assim como a derrota, não é o resultado da guerra que aumenta ou diminui a força das
pulsões, mas a própria guerra. É por esse motivo que se deve sempre buscar adversários de igual
força, subjugar um mais fraco não aumentaria a sensação de poder, pelo contrário, poderia até
diminuí-la; quando se enfrenta um oponente mais fraco, a luta não pode perdurar, não obrigando
ao estímulo máximo e à destreza máxima das forças. Desse modo, a guerra não é proveitosa, a
luta contra tal adversário ainda pode dar uma noção equivocada da própria força, pois se pode
pensar que se é mais forte do que realmente se é. Foi por esse motivo que Nietzsche afirmou que
o combate requer como adversários causas vitoriosas e que ocasionalmente esperava que elas se
tornassem vitoriosas para serem inimigas dignas. Em sua segunda regra para a guerra, Nietzsche
é ainda mais profundo e feliz em captar os meios para que a guerra faça crescer: ataca-se sozinho
e sem aliados – apenas uma guerra individual mostra a força que se tem, ou, por outro lado, a
força de que se carece. Se os inimigos são tão importantes para Nietzsche, era necessário escolhê-
los com cautela, e, sabendo que no campo das inimizades o filósofo preferia as causas às pessoas,
é facilmente compreensível o motivo que o levou à crítica da moral. Mas esse é apenas um dos
aspectos do problema.
É bastante conhecida a crítica de Nietzsche à moral, talvez esse seja o aspecto mais
conhecido de toda a sua filosofia. É menos conhecido, contudo, o reconhecimento que o filósofo
sempre prestou à moral pelos serviços de preservação da vida, em especial da vida que degenera
e que ameaça perecer. Não sem motivos, na terceira dissertação de A genealogia da moral, ele
presta elogio ao sacerdote ascético por preservar o rebanho e os fiéis do rebanho, na dupla
perspectiva de que esses homens podem servir aos senhores, mas que também podem ascender

149
aos tipos superiores. Em um magistral texto não publicado, parte das inúmeras anotações de
Nietzsche, intitulado pelo filósofo como O niilismo europeu, vê-se de maneira clara e objetiva a
importância da moral. Segundo o filósofo:

Ela evitava que o homem se desprezasse como homem, que ele tomasse partido contra a
vida, que ele desesperasse ao conhecer: ela foi um meio de conservação; – in summa:
moral foi o grande antídoto contra o niilismo prático e teórico. (NIETZSCHE, GP, p. 56).

Nietzsche segue explicando que quando os fracos de todos os tempos se deparavam com a
dureza dos nobres, em especial das bestas louras, sua tendência instintiva era procurar a morte,
pois ser ferido pelos próprios homens sempre foi pior do que ser ferido pela natureza: no primeiro
caso imagina-se uma intencionalidade e uma vontade que poderia agir de modo diverso, ao passo
que a natureza, mesmo em seu aspecto mais destruidor, é sempre vista como um mecanismo
espontâneo e não controlável; essa moral tratou os ricos e poderosos como inimigos dos
pequenos e dos quais estes precisavam ser defendidos. A melhor maneira de efetivar essa
proteção foi o ódio a tudo o que é superior, em especial o ódio à própria vontade de poder que é
superior, marca clara dos tipos superiores. Todavia, a moral foi bastante efetiva em esconder
desses pequenos e humilhados que o seu ódio aos senhores e o seu combate a tudo o que é
senhorial não era, de fato, a vontade de Deus, mas apenas um disfarce para a própria vontade de
poder; com isso, puderam continuar vivendo e utilizando de suas artimanhas para, por fim, vencer
os fortes e subjugá-los. Como é possível, então, que a moral ao mesmo tempo prejudique e
proteja a vida?
A moral torna-se nociva quando se torna vitoriosa, pois sai do solo onde deveria consolar
e proteger os malogrados e atinge os senhores. A moral também conduz à luta, e uma rápida
olhada no passado cristão da humanidade não esconderia isso de ninguém, porém, a luta moral
não é uma luta conduzida pelas regras propostas por Nietzsche em citação anterior, ela não espera
que algo cresça e se torne forte para então poder enfrentá-lo. A moral também não quer elevar os
pequenos ao patamar dos grandes para que então estes possam se enfrentar, o que a moral busca,
ou melhor, o que se busca por meio dela é um rebaixamento geral de todas as condições humanas,
para que então possa haver a luta. Sim, a moral é partidária de uma luta, mas a luta mínima para
que os indivíduos nem ascendam nem degenerem do rebanho moral. Em um fragmento não
publicado, um ensaio para Assim falou Zaratustra, Nietzsche afirmou categoricamente que os
homens não são iguais e não devem se tornar iguais, pelo contrário, devem tornar-se cada vez
150
mais desiguais, pois esse é o único caminho possível para o surgimento do além-do-homem
(NIETZSCHE, KSA X, p. 410-1, 12[43]).
Para Nietzsche, a moral está na base da formação da comunidade dos tipos inferiores, é
ela que estrutura a comunidade a partir da necessidade dos tipos inferiores de estarem juntos para
se protegerem. Nietzsche explicitou a relação entre comunidade e moral em uma seção de Aurora:
reflexões sobre os preconceitos morais, o texto tem por título Conceito da moralidade do
costume. Utilizando-se de termos alemães para moralidade e costume, Sittilichkeit e Sitte,
respectivamente, Nietzsche joga com a construção linguística do alemão, pois Sitte, que é
costume, está na base de composição da palavra Sittilichkeit, que é moralidade, deixando claro
que na base da moralidade encontra-se o costume. Sobre o título dessa seção de Aurora, o
tradutor brasileiro da coleção Os Pensadores fez importante observação em nota de rodapé:

Eticidade ou moralidade, duas palavras que perderam a referência ao significado original


de costume, que têm por base (ethos em grego, mos em latim). O texto alemão, ao dizer
Sittilichkeit der Sitte, o evoca muito mais diretamente – é que a língua não perdeu
totalmente a memória dessa ligação, tanto que Ética se diz Sittenlehre (doutrina dos
costumes) e já Kant reservava a fundamentação da moral para uma “metafísica dos
costumes”. (TORRES FILHO, Rubens Rodrigues, apud Nietzsche, 1999, p. 141).

A moralidade, dessa forma, está pautada no costume e reflete o costume, por isso o
filósofo alemão pôde afirmar que há diferentes tipos de moralidades, dependentes dos hábitos dos
grupamentos sociais nos quais elas podem surgir. Todavia, a moralidade dos tipos inferiores, em
especial a moralidade cristã, tomou-se como única moral existente e única moral possível, ao
lado da qual todas as outras se tornaram heresias. No racionalismo triunfante da democracia,
parte desse triunfante deve-se justamente à atitude absolutista assumida pela moral dos pequenos,
à firme disposição em não admitir ao lado de si nenhuma outra moral como noção de verdade e
valor. Se o que constitui os tipos superiores é a diversidade de suas constituições pulsionais, é de
se supor que eles também possam lidar com uma diversidade moral bastante significativa. Já com
os tipos inferiores dá-se justamente o oposto: se é a baixa diversidade pulsional que enfraquece e
apequena o ser humano, é necessário que esse apequenamento seja reforçado por uma teoria
moral que se tome como única e não admita diversidade nesse campo, como de resto em nenhum
outro. A moral dos tipos inferiores, como um tipo velado de vontade de poder, caçou e destruiu
todas as morais rivais e divergentes.

151
(...) a moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que obediência a costumes,
não importa quais sejam; mas costumes são a maneira tradicional de agir e avaliar. Em
coisas nas quais nenhuma tradição manda não existe moralidade; e quanto menos a vida é
determinada pela tradição, tanto menor é o círculo da moralidade. O homem livre é não-
moral, porque em tudo quer depender de si, não de uma tradição (...) se uma ação é
realizada não porque a tradição ordena, mas por outros motivos (a utilidade individual, por
exemplo), mesmo por aqueles que então fundaram a tradição, ela é considerada imoral e
assim tida mesmo por seu autor: pois não foi realizada em obediência à tradição.
(NIETZSCHE, AU, p. 17-8).

O poder dessa moralidade está justamente em conseguir manter a comunidade unida e


protegê-la do desespero no qual a ausência de perspectivas lançaria qualquer indivíduo. É
bastante compreensível que essa moral se alastrasse entre os tipos inferiores, dominasse-os e
organizasse sua maneira de ser e de pensar. Todavia, como essa moralidade pôde dominar mesmo
os tipos superiores? Não se pode ignorar a constante advertência de Nietzsche de que os tipos
inferiores têm mais espírito e inteligência que os superiores; para que os tipos superiores também
aceitassem essa moral, foi necessário que antes eles fossem apequenados e adoecidos, apenas
tornando-se os tipos superiores adoecidos eles aceitaram o remédio dessa moral da igualdade e da
unicidade.
Pois bem, se a moral estrutura a comunidade dos carentes e necessitados, sendo uma
maneira velada de vontade de poder, e essa moral rege que cada um aja de acordo com as
necessidades da coletividade, e não de acordo com suas necessidades individuais, e que todos são
igualmente responsáveis pelos desvios que se cometam em relação a essa moral, pois o castigo
divino recai sobre todos eles, já que perante o Deus que instituiu a moral eles são iguais, é
fundamental, então, que essa moral tenha um forte esquema de transmissão no tempo para que as
novas gerações não a percam, e esse é o papel decisivo da educação. A educação na forma de
transmissão dos costumes (a educação civilizatória) é a verdadeira guardiã da moral que
estruturou e que ainda mantém a comunidade.
Quando Nietzsche lançou suas críticas à educação de sua época, que já mirava a utilidade
e o emprego, que buscava tornar cada indivíduo uma engrenagem em uma máquina,
apequenando-o, o que ele mirava era o que estava em segundo plano na educação utilitária: a
moral dos pequenos, que estrutura a comunidade e a educação dessa comunidade. Mas o
problema de Nietzsche ainda não é efetivamente esse. Para o filósofo, nunca foi um problema que
houvesse os tipos inferiores e a comunidade dos tipos inferiores com sua educação própria, pelo
contrário, na sua concepção, o custo do surgimento daquele infortúnio público que é o homem

152
superior é pago pelo esforço e trabalho dos tipos inferiores. O problema de Nietzsche é o fato de
essa moral e essa educação se tornarem universalmente triunfantes, como afirmou em fragmento
não publicado: “Forma-se um novo ser-escravo – zelemos para que também uma nova
aristocracia se forme.”102 (NIETZSCHE, KSA IX, p. 483, 11[118]. Tradução minha). E ainda:
“Que a Europa democrática se dirige apenas para um cultivo sublime da escravidão, a qual deve
ser comandada por uma raça forte para suportar a si mesma”.103 (NIETZSCHE, KSA XII, p. 166,
2[179]. Tradução minha). O cerne da crítica nietzscheana à educação moderna é que ela não é
capaz de criar essa raça forte, essa raça de homens superiores de compleição senhorial para guiar
os destinos dos demais.
Essa é uma atitude totalmente razoável: é natural que os pequenos em cujo modelo de
organização pulsional se estrutura a civilização não se esforcem para criar homens de tipo
superior, aquele flagelo público a que se aludiu anteriormente; é natural que a educação
civilizatória não queira tornar o homem um tipo superior, e sim um tipo utilizável e laborioso, um
bom cidadão, um bom patriota etc. Nesse sentido, a civilização é bastante coerente, pois cada vez
mais aperfeiçoa seus sistemas educacionais para que eles reproduzam universalmente nos
educandos um modelo pulsional da repetição e mesmice. Porém, e os que são de crenças
diferentes? Aqueles que acreditam na necessidade do surgimento de tipos superiores, ou que
simplesmente assumem sobre si o fado de que não é possível ser igual? Nietzsche indicava que o
acaso favorece da mesma maneira a ascensão e a decadência tipológica e que as condições nas
quais se formam os tipos inferiores também podem servir de estufa para a formação dos tipos
superiores, porém, claro, por meio de um processo significativo de dores, humilhações e
constrangimentos. A educação civilizatória não se processa de modo miraculoso, ela tem um
método bastante prático e efetivo, do que se tratará agora.

1.2.2 – Os instrumentos da educação civilizatória

A educação civilizatória, em seu esforço por igualar os seres humanos, reduzindo ou até
anulando os conflitos internos e externos que podem aumentar a vontade de poder e diversificar a
condição tipológica de cada indivíduo, utiliza-se da moral como uma ferramenta bastante precisa,
102
Es bildet sich ein Sklavenstand — sehen wir zu, dass auch ein Adel sich bildet.
103
Dass das demokratische Europa nur auf eine sublime Züchtung der Sklaverei hinausläuft, welche durch eine
starke Rasse kommandiert werden muss, um sich selbst zu ertragen.

153
que no processo educacional atua de duas maneiras aparentemente contraditórias, mas que na
lógica da educação civilizatória são complementares: a formação e o fortalecimento da noção de
Eu; e o abandono da ideia do Eu por meio do sentimento de compaixão e afins.
As ideias de formação de personalidade e caráter são fundamentais para a escola
moderna.104 Essa dupla formação na perspectiva civilizatória consiste em desenvolver no aluno
uma autoimagem sólida, que valha, enquanto imagem, também para os demais. Embora nem
sempre sejam coincidentes as imagens que esse aluno terá de si e a que os demais terão dele, esta
será sua personalidade, e ao lado dela tenta-se desenvolver nos alunos uma série de valores que
facilitam e favorecem a convivência com os demais alunos, professores, funcionários etc. Em
escala mais ampla, na própria sociedade, esses valores são as virtudes, os elementos constituintes
do caráter.
Esses dois elementos, caráter e personalidade, devem ser, na educação civilizadora, o
porto seguro no qual é atracada a imobilidade pulsional; para que se evite mudanças na condição
de vida, que podem fazer com que a condição de morte se diferencie da condição de nascimento,
é necessário, desde cedo, formar uma aparência do que é cada ser humano, uma identidade que
reflita não seu arranjo pulsional, mas o arranjo pulsional da sociedade na qual se encontra, com
pouco espaço para manifestações realmente individuais, e que acabará se tornando, se a educação
triunfar, com maior ou menor semelhança, o seu próprio arranjo pulsional. A formação da
personalidade atende às necessidades da civilização, não do indivíduo, 105 só tardiamente esse
conjunto de pulsões já formado como indivíduo achará fundamental para si possuir uma
personalidade, e o grau de confiabilidade de sua personalidade na relação com as outras
personalidades que constituem a sociedade, ou o rebanho, como Nietzsche preferiria dizer, é dado
por seu caráter. É fundamental, para que as pessoas confiem umas nas outras e interajam
harmonicamente no mecanismo social, do qual são feitas para serem peças, que elas tenham
caráter, para que possam receber a dádiva da confiança dos outros membros do grupo. Ter caráter,
nesse caso, é estar dotado das virtudes apreciadas e recomendadas pela civilização, em último
caso é estar pulsionalmente organizado de modo a não se atentar contra a civilização e seus

104
Obviamente, hoje agregam-se a essas duas ideias diversas outras, tais como a formação profissional, a preparação
para a universidade, a cidadania, mas todas são variações e complementos dessas duas ideias básicas.
105
Indivíduo, aqui, quer dizer o membro da espécie humana em sua totalidade; enquanto si e, ao mesmo tempo,
enquanto Eu desse si. Com todas as suas possibilidades de elevação e rebaixamento pulsional, distinto do meio social
em que está inserido e dos outros membros da espécie humana, distinto, inclusive, na configuração de seus arranjos
pulsionais, que, todavia, a sociedade tenta moldar à sua imagem e semelhança.

154
membros, nem de forma física nem de forma intelectual; o caráter oferece a transparência
necessária para que as relações no rebanho sejam bem-sucedidas. Para Nietzsche, a citação
abaixo descreve perfeitamente o cânone das relações interpessoais no rebanho humano:

Moral da veracidade no rebanho. “Tu deves ser reconhecível, tua natureza interior deve ser
expressa por meio de sinais constantes e claros – caso contrário tu és perigoso, e se tu és
mau a tua capacidade de fingir é o pior para o rebanho. Nós desprezamos o que é estranho
(irreconhecível) e que permanece secreto. – Consequentemente tu deves manter a ti
mesmo como reconhecível, tu não deves te esconder de ti mesmo, tu não deves acreditar
em tua mudança.” Portanto: a exigência da veracidade pressupõe a cognoscibilidade e
a permanência da pessoa. 106 (NIETZSCHE, KSA X, p. 657, 24[19]. Tradução e
destaques meus).

Percebe-se pelo texto o quanto a personalidade é fundamental para o rebanho, tão


importante que o filósofo alemão opera a passagem da personalidade para o caráter: ter
personalidade é uma questão de caráter. Ter uma personalidade e manter-se estável e transparente
nela é também ser virtuoso, não usar máscaras, e estar aberto ao reconhecimento do outro.
Retoma-se aqui importante questão do primeiro capítulo deste trabalho: a consciência do Eu
desenvolve-se sobre a forte pressão da necessidade de comunicação. Quanto mais enfraquecido é
um ser humano, mais carece de proteção e defesa contra seus agressores, mais carece, então, de
um meio de reconhecimento e comunicação rápido com os que se encontram nas mesmas
condições; mais carece, portanto, da consciência. A mudança, como no trecho destacado na
citação, é vista como algo ruim, nela não se deve crer, nela não se deve investir, pois a mudança
torna difícil, talvez mesmo impossível, o reconhecimento. Aqui vigora o mais forte pensamento
da tradição na seguinte fórmula: “o mundo nos foi legado pelos antepassados, querer mudá-lo ou
nos modificarmos nele é atentar contra a vontade dos antepassados, que criaram a comunidade
que nos garante a segurança”. Claro, a tradição é sempre um argumento de força mais intenso nas
sociedades aristocráticas, que também são civilizadoras, porém, nas sociedades democráticas, a
fórmula não varia tanto, apenas nela se acrescentam, no lugar da tradição, as gerações futuras. O
final do fragmento póstumo citado acima lança ainda mais luz na relação da educação com a
civilização, suas necessidades e seus valores:

106
Moral der Wahrhaftigkeit in der Heerde. „Du sollst erkennbar sein, dein Inneres durch deutliche und constante
Zeichen ausdrücken — sonst bist du gefährlich: und wenn du böse bist, ist die Fähigkeit dich zu verstellen, das
Schlimmste für die Heerde. Wir verachten den Heimlichen Unerkennbaren. — Folglich mußt du dich selber für
erkennbar halten, du darfst dir nicht verborgen sein, du darfst nicht an deinen Wechsel glauben.“Also: Die Forderung
der Wahrhaftigkeit setzt die Erkennbarkeit und die Beharrlichkeit der Person voraus.

155
Na verdade, é responsabilidade da educação conduzir os membros do rebanho a uma bem
determinada convicção sobre a essência do homem: ele primeiro fabrica esta crença e
depois [com base nela – VS] exige “veracidade”.107 (Idem).

A crença na essência do homem foi um ponto decisivo para a educação civilizadora, foi
ela que mais firmemente imobilizou as organizações pulsionais que constituem o ser humano,
impedindo diversificações na condição de vida. Se o conteúdo que preenche essa pura forma foi
variado na tradição filosófica ocidental, a forma em si mesma foi sempre indispensável, como foi
indispensável que a educação se encarregasse de fazer com que todas as gerações acreditassem
nessa essência e tentassem realizá-la em cada um de seus indivíduos. A exemplo da moral, a
crença na essência humana, independentemente do conteúdo dessa essência, surgiu tardiamente
nas sociedades, e como na moral seu surgimento lançou suas “luzes” sobre o passado,
justificando toda a história que lhe foi anterior, até o ponto de ignorar seu próprio passado e
reconstituir sua história fazendo parecer que ela esteve presente desde os primórdios, e que foi
mesmo seu surgimento que tornou a vida útil, graciosa e possível, obviamente, não se pode
ignorar a importância da filosofia e de todos os apelos filosóficos no processo de educação
civilizatória, pois nenhuma outra disciplina do conhecimento humano gritou com tanta força os
bordões do autoconhecimento. É lícito que se evoque o próprio Platão: se a verdade é imutável, o
homem bom é aquele que busca em sua vida a constância e a imutabilidade.
Ao lado da ideia de que há uma essência humana, que é e deve ser imutável, e que os
indivíduos não podem e não devem acreditar nas mudanças, a educação civilizadora criou ainda
outro importante instrumento na sua lógica vitoriosa: a compaixão, ou melhor, a moral da
compaixão.
A crítica que Nietzsche lançou à compaixão foi, sem dúvida, um dos pontos que mais
impressionaram os seus contemporâneos e mesmo estudiosos futuros do seu pensamento. Mas
qual o problema com a compaixão? O vocábulo alemão utilizado por Nietzsche é Mitleid; a
formação do termo é muito semelhante à do vocábulo português “compaixão”: leid deriva do
verbo leiden (sofrer) e mit (com), logo o que se tem é um “sofrer com”.
Para Nietzsche, a compaixão é o centro mesmo de toda a moral dos tipos inferiores, pois
ela parte do pressuposto de que as dores humanas são cambiáveis ao ponto de uma pessoa sofrer

107
Thatsächlich ist es Sache der Erziehung, das Heerden-Mitglied zu einem bestimmten Glauben über das Wesen des
Menschen zu bringen: sie macht erst diesen Glauben und fordert dann darauf hin „Wahrhaftigkeit“.

156
apenas com a visão da dor do outro, mas tal intercâmbio de sensações só seria possível se, de fato,
as pessoas fossem iguais. O apelo a esse “sofrimento conjunto” reforça a ideia de igualdade e, ao
mesmo tempo, escamoteia a vontade de poder; ela não desaparece, mas age disfarçada e sub-
repticiamente. Se se supusesse uma inversão moral na qual saísse a compaixão e entrasse o
cuidado de si, poderia haver o mesmo resultado: cada indivíduo tomando conta de si próprio,
todos continuariam cuidados, todavia, essa ideia não é concebível para o rebanho, porque ao
passo que cada um cuida de si mesmo, os laços do rebanho enfraquecem-se, a compaixão e a
pressuposição de que as dores são cambiáveis também fortalecem os laços comunitários.
Todavia, parece haver uma contradição entre fortalecimento e imutabilidade do Eu e
compaixão, que é prioritariamente cuidado com o outro. O movimento de fixação no Eu só é
paradoxal com a compaixão (preocupação com os outros) superficialmente, os dois são
complementares: a educação ensina um membro do rebanho que ele é um Eu, em seguida,
obriga-o a esquecer-se de si como Eu para ocupar-se dos outros e encontrar-se nos outros (pois
são iguais), mas o Eu que esse elemento é, é uma máscara das pulsões que ele é, ao passo que o
Eu que o outro é, é uma máscara das pulsões que ele é. A compaixão impede que essa máscara
seja vista como máscara e, principalmente, que esse Eu seja abalado por algum conjunto de
pulsões rebeldes no interior de cada ser humano; se tal possibilidade surge, todos os membros do
rebanho, pela pressuposição da igualdade, podem rapidamente compreender o que se passa com
aquela “ovelha desgarrada” e partir cheios de compaixão em seu auxílio. O que se tem é um
duplo movimento: o Eu é fortalecido inicialmente por uma crença coletiva no Eu, não por uma
crença singular do indivíduo em seu próprio Eu, seu valor e o valor do seu Eu não são dados por
ele mesmo, mas pela coletividade, e é por meio da compaixão que cada membro dessa
coletividade simula em si mesmo o que se dá com o outro e pode, assim, conhecer e valorar o
outro; a compaixão é fundamental para a transparência dos membros do rebanho e sua
consequente compreensibilidade e valoração:

Aquilo de que sofremos de modo mais profundo e pessoal é incompreensível e inacessível


para quase todos os demais: nisso permanecemos ocultos ao próximo, ainda que ele coma
do mesmo prato conosco. Sempre que somos notados como sofredores, porém, o nosso
sofrer é interpretado superficialmente; é da essência do afeto compassivo despojar o
sofrimento alheio do que é propriamente pessoal: – nossos “benfeitores” são, mais do que
nossos inimigos, diminuidores de nosso valor e nossa vontade. (NIETZSCHE, GC, p. 226-
7).

157
Furtar-se à compaixão, não aceitá-la, é atentar contra a exigência de transparência que é
fundamental no rebanho; supervalorizar uma dor pessoal como incompreensível aos que não a
sofrem é ser egoísta e querer tornar-se distinto e irreconhecível pelos demais. Quando a educação
civilizadora valoriza a compaixão requerendo que os alunos coloquem-se no lugar dos outros, o
que ela busca é justamente impedir que qualquer um dos seus membros se tome por algo
realmente distinto dos demais – a dor cambiável é o índice da igualdade para o rebanho.
Se essa é a educação civilizadora, é possível alguma outra? É possível uma educação que
valorize o indivíduo pelas suas forças pessoais e não por sua habilidade em ser uma peça em uma
grande maquinaria? Se as condições nas quais surgem os tipos inferiores também são propícias
para o surgimento dos tipos superiores, não se pode ignorar que, nessas condições, seu fracasso é
sempre mais provável do que seu sucesso, e este, quando acontece, é por meio de um tortuoso
caminho. O que Nietzsche pretendeu no tocante a uma educação para a cultura superior foi
oferecer as bases para que se pensasse em uma instrumentalização da natureza humana por meio
da educação para a cultura superior, o que o filósofo nomeou de grande política, do que se tratará
agora.

2 – Experimentação e autoexperimentação humana: o problema da


grande política

Tradicionalmente, Nietzsche não foi pensado como um filósofo político, pois suas obras
não pretendiam nem se propunham a qualquer tipo de discussão ou sistematização das
experiências humanas ou propostas no sentido de administração política das coletividades. O que
se encontra com frequência são suas críticas sociais, que acabam atingindo também a política, em
especial as ideias políticas do século XIX: liberalismo, democracia, socialismo e anarquismo.
Coube principalmente a Ansell-Pearson começar a mostrar um aspecto até então pouco explorado
em Nietzsche; em suas duas obras Nietzsche as political tought (ANSELL-PEARSON, 1997)108 e
Nietzsche contra Rousseau, Pearson traçou o novo panorama de discussões acerca do pensamento
de Nietzsche: o Nietzsche político. No que consistiria o pensamento político de Nietzsche?
Exatamente no que se disse anteriormente: uma tentativa de instrumentalização da natureza
humana e das sociedades humanas para que se conseguisse promover o surgimento dos tipos

108
Em português nas referências bibliográficas.

158
superiores sem tantas frustrações e fracassos, e a isso Nietzsche nomeou claramente como seu
pensamento político, a sua grande política (Grosse Politik).
O termo é sui generis: para Nietzsche, a grande política opõe-se radicalmente às
concepções políticas de sua época, em especial ao liberalismo democrático e ao
socialismo/anarquismo. Essa oposição se encontra no objetivo, mas também nos meios. Para
Nietzsche, claramente, a democracia liberal e o socialismo/anarquismo eram tentativas
civilizatórias de se fazer política, consequentemente, nesses sistemas políticos a negação do
conflito está no ponto central, ou, quando não a negação, a utilização ou assunção do conflito
como caminho para a harmonia. Logo, está no ponto central o enfraquecimento pulsional humano,
impedindo a diversificação na condição de vida e fazendo com que a condição de morte repita a
condição de nascimento. A grande política colocar-se-ia no extremo oposto: tentativa clara de
dominar todos os ascendentes que constituem o humano, não apenas os pulsionais, embora
principalmente estes, mas também os que lhe são correlatos e derivados – mentais, biológicos etc.
–, promovendo uma experimentação e autoexperimentação humana racional e controlada no
sentido de produzir os tipos humanos superiores. Para Nietzsche, com o avanço do niilismo e a
crescente descrença em Deus e nos valores éticos divinos milenares, apenas uma proposta como a
grande política poderia livrar a humanidade do que, para ele, parecia, então, a irreversível
derrocada da espécie humana.
Em citação anterior, evidenciou-se a preocupação de Nietzsche ao perceber que na Europa
de sua época se formavam as condições para um novo tipo de escravidão, o que tornava
necessário que se desenvolvessem também as condições para um novo tipo de nobreza. É a
incerteza do surgimento dessa nova nobreza que preocupava o filósofo e levou-o a lançar as bases
teóricas da sua concepção política, o que torna a grande política claramente um contramovimento
às tendências políticas de todo o século XIX, em especial em sua segunda metade. Giacoia aponta
a relação entre niilismo, morte de Deus e a educação civilizatória, conjunto que levou Nietzsche a
pensar essa nova política:

Depois da “morte de Deus” e da conseqüente dissolução da crença na alma, filosofia e


pedagogia parecem ter sido mobilizadas numa formidável tarefa de maquinalização de
corpos e mentes, mais característica do “último homem” e da tirania universal do “rebanho
uniforme” do que de um ideal de conhecimento libertário, que fosse a celebração de um
corpo transfigurado e transfigurador. (GIACOIA, 2005, p. 189).

159
É de se atentar na relação entre pedagogia, filosofia e as necessidades democráticas
modernas, o que se tem aqui, descrito por Giacoia, é o esforço da educação civilizatória, contra o
qual se levanta inegavelmente essa nova política nietzscheana, que, consequentemente, como se
mostrará adiante, concebe uma nova educação, a educação para a cultura superior. Todavia, antes
de se falar dela é ainda necessário elucidar alguns pontos sobre a grande política. Em especial, é
preciso discutir sua motivação e necessidade no pensamento de Nietzsche. Na introdução à sua
seleção e tradução de aforismos não publicados por Nietzsche, Giacoia afirma que o núcleo da
grande política, aquilo que mais a legitimava aos olhos de Nietzsche, era a necessidade de
proteger a exceção contra a regra, de oferecer aos indivíduos que se apresentam como
constituições pulsionais distintas daquelas das do rebanho a chance de se cultivarem como
diferença pulsional, oferecer-lhes a chance do crescimento tipológico, de modo que floresçam
como esses tipos superiores que são capazes de justificar a própria espécie. Porém, se os tipos
superiores são um infortúnio público, seu surgimento tem um custo...

2.1 – Escravidão e grande política

Este é um ponto nevrálgico da grande política: a expansão humana sobre o planeta. O


progressivo domínio tecnológico dos humanos sobre o mundo lançaria, em pouco tempo,
segundo o filósofo, a humanidade toda em uma espiral de autodestruição, porque os tipos que
dominam o planeta e a técnica sobre este são justamente os tipos inferiores; constituídos pelo
medo e desconfiança de tudo aquilo que é diferente, não tardariam em destruir toda a diferença e,
por fim, a própria suposta igualdade na qual criam. Em outras palavras, a continuidade da própria
espécie humana depende do surgimento dos tipos superiores, capazes de regrar não apenas a si,
mas também aos inferiores, plasmando o mundo de acordo com sua vontade de poder e
modelando nele a sua própria constituição pulsional de diversidade e multiplicidade. É sabido
que para Nietzsche tais acontecimentos humanos só foram possíveis até o presente momento em
sociedades aristocráticas,109 em sociedades que acreditavam na diferença e valorizavam-na, além
das hierarquias da diferença. Mais uma vez, a sociedade aristocrática se distingue por não ser

109
De acordo com a idealização nietzscheana dessas aristocracias.

160
adepta da lógica triunfante dos pequenos: ela não faz cálculos e está disposta a sacrificar tudo,
inclusive a si própria, em nome dos seus ideais de elevação e nobreza.110
Nesse ponto, o pensamento paradoxal de Nietzsche apresenta-se com fulgor: se a lógica
aristocrática está disposta a “sacrificar seres humanos à sua causa, não excluindo a si mesmo [o
nobre – VS]” (NIETZSCHE, CI, p. 88), ao passo que os tipos inferiores pensam sempre em
conservação, como é possível que justamente o contrário se dê? Como é possível que, com essas
lógicas distintas, os tipos inferiores arruínem e mesmo ameacem de destruição a espécie humana
e que os tipos superiores a conservem e expandam? Para Nietzsche, a educação civilizadora
lançou raízes tão fortes nas pessoas, que se acredita e vivencia a realidade da lógica dos tipos
inferiores como única possível. A contradição só é real quando se ignora a constituição pulsional
humana: as pulsões necessitam do conflito; sem ele, elas definham e morrem. Os tipos superiores
estão dispostos a manter o conflito, seja interno seja externo, ou mais exatamente ambos. A
lógica dos tipos inferiores, ao preservar a vida em suas necessidades basais, castra a diferença e
aquilo que ela oferece – o conflito. Essa lógica vai paulatinamente depauperando a própria vida.
Só essa aristocracia do espírito é capaz de preservar a espécie, oferecendo-lhe o tempo e o campo
para seu crescimento. Nas palavras de Nietzsche:

(...) creio, finalmente, que até agora, toda elevação do tipo homem foi obra de uma
sociedade aristocrática, que acreditava em uma longa escada de hierarquia e diferença de
valor entre homem e homem, e tinha necessidade da escravidão: sim, que sem o pathos da
distância, tal como este cresce a partir da encarnada diferença entre os estamentos, do
permanente contemplar e olhar para baixo, por parte das castas dominantes, para os
submissos e instrumentos, e de seu igualmente constante adestramento em comandar,
manter à distância e abaixo de si, também não pode surgir, em absoluto, aquele outro
pathos mais cheio de segredo, aquela exigência de sempre novos alargamentos de
distância no interior da própria alma, a configuração de estados sempre mais elevados,
mais raros, mais remotos, mais tensionados, mais abrangentes, em resumo, a
“autosuperação do homem”, para tomar uma fórmula moral em um sentido extra moral.
(NIETZSCHE, GP, p. 33).

Mais do que a exuberância da existência humana, que nem sempre se encontrou


historicamente nas sociedades aristocráticas, o que realmente caracterizou a maior parte dessas
sociedades e seus sistemas políticos foi a escravização de uns seres humanos a outros, o que torna,
assim, e analisando-se historicamente, as sociedades aristocráticas bem próximas das
democráticas: em ambas o domínio político de um grupo é feito com o trabalho forçado e/ou

110
Deve-se ter em mente a distinção entre o ideal de nobreza defendido por Nietzsche e as sociedades aristocráticas
historicamente conhecidas.

161
compulsório de outros, apenas nas sociedades democráticas esse domínio e escravidão se
espiritualizaram. Mas o filósofo alemão continuou defendendo sua necessidade. Falar de
escravidão em sociedades democráticas é sempre muito assustador e difícil, motivo talvez pelo
qual o próprio Nietzsche tenha moderado, em suas obras publicadas, a discussão de tal problema.
Porém, em seus fragmentos não publicados há textos que lançam grande luz sobre a questão:

O governo da Terra é um problema próximo. A pergunta radical é: deve haver escravidão?


Ou melhor: isso não é uma pergunta, mas um fato: e só o maldito anglo-europeu não pode
[can’t] fazer. Na verdade sempre há escravidão – quer se goste ou não! Por exemplo, o
funcionário prussiano. O erudito. O monge.111 (NIETZSCHE, KSA XI, p. 72-3, 25[225].
Tradução minha).

Dois pontos fundamentais sobre a escravidão no pensamento de Nietzsche aparecem aqui:


ela não é dispensável e também não é sinônimo de agressão e domínio físico. Ao citar o
funcionário público prussiano como um escravo assim como o monge, Nietzsche dá uma ideia de
a que escravidão se refere, mas ao citar o erudito como um escravo fica ainda mais claro:
Nietzsche tem em mente uma escravidão espiritualizada. Mas, ainda assim, uma escravidão,
poder-se-ia objetar; não se tem aqui a intenção de isentar a filosofia de Nietzsche de seus pontos
mais duros, muito pelo contrário, gostar-se-ia mesmo de exaltá-los, pois escondê-los é
enfraquecer e despotencializar o pensamento do filósofo alemão, já que são essas agruras que
desafiam o pensamento. Todavia, não é possível ignorar que essa escravidão seja desejada não
apenas pelo idealizador dos tipos superiores, ou mesmo pelos eventuais tipos superiores, todos ou
quase todos, a desejam. Não se pode negar que a busca da maior parte dos seres humanos
contemporâneos seja justamente por essa escravidão espiritualizada. Nietzsche nunca teve ideais
salvacionistas, até considerava-os despudorados, logo, nunca esteve preocupado em convencer do
contrário aqueles que desejavam tal escravidão, aqueles que sonhavam com ela e se preparavam
para ela. Não era do interesse do filósofo convencer estes, que já se encontravam apequenados,
de que há outras possibilidades. Nietzsche teria sido, então, motivo de chacota se o tivesse
tentado, o que se dá com Zaratustra, quando no começo da obra homônima tenta convencer os
homens do mercado de que o homem deve ser superado em direção de algo que lhe seja superior:

111
Die Erd-Regierung ist ein nahes Problem. Die radikale Frage ist: muß es Sklaverei geben? Oder vielmehr: es ist
gar keine Frage, sondern die Thatsache: und nur der verfluchte englisch-europäische Cant macht. In Wahrheit giebt
es immer Sklaverei — ob ihr es wollt oder nicht! Z.B. der preußische Beamte. Der Gelehrte. Der Mönch.

162
o que Zaratustra encontra é o descaso e a pilhéria. A relação destes novos escravos com o poder
político seria, porém, distinta do que foi historicamente:

(...) Forma-se um novo gênero de homens que têm o mesmo significado que os escravos
na Antiguidade (...). Enquanto isso, os artistas e intelectuais pertencentes a esta classe
trabalhadora, eles a servem, porque querem muito dinheiro. A incapacidade para o ócio e
a paixão é a característica de todos.112 (NIETZSCHE, KSA IX, p. 248, 6[200]. Tradução
e destaques meus).

No segundo capítulo deste trabalho, evocando citação de Deleuze, afirmou-se que “é


mesmo a lei do curso ou da superfície do mundo ser conduzido por escravos” (DELEZUE, 2006,
p. 91), e essa escravidão é desejada pela maioria, a escravidão que tem o cetro do poder político e
econômico. O que caracteriza tais escravos, como se vê na citação do próprio Nietzsche, é a
incapacidade para o ócio e para a paixão. Aquela lógica triunfante dos tipos inferiores é fria e
calculista, é utilitária, não se pauta sequer na busca do prazer e repúdio à dor, mas apenas no
repúdio à dor; é possível para eles viverem sem o prazer. Essa escravidão que se veste de ouro na
atualidade não consegue ser ociosa por um motivo simples: o ócio é o momento de parada no
qual o espírito reflete sobre si mesmo. Em linguagem nietzscheana: o ócio é o momento no qual o
conjunto de pulsões que um ser humano é toma consciência de si como conjunto de pulsões e o
Eu percebe-se como máscara e que sua consciência é apenas instrumento de comunicação e
intensificação do poder por meio das lutas internas das pulsões. Por esse motivo, o ócio é raro e
acessível aos poucos que constituem os tipos superiores. Os tipos inferiores, porém, conhecem
algo que se traveste de ócio, a preguiça; ausência de força para autodeterminação ou, se se
preferir, para o autocontrole pulsional. O esforço de elevação pulsional custa caro, e esse preço,
apesar de todo o dinheiro e riqueza, os tipos inferiores não estão dispostos a pagar, não podem
pagar.
Essas duas estruturas de vivência política, o liberalismo democrático e a grande política,
se atravessam e interpenetram na medida em que o primeiro tenta sempre cooptar o segundo,
oferecendo recompensas tentadoras, usando uma linguagem figurada bastante ilustrativa: é a
tentação de Satanás a Jesus Cristo no deserto, quando aquele oferece a este todos os reinos e

112
(...) Er bildet eine neue Gattung Menschen welche die Bedeutung haben wie die Sklaven im Altertum (…).
Einstweilen gehören die Künstler und Gelehrten zu diesem Arbeiterstande, sie dienen ihm, weil sie viel Geld wollen.
Die Unfähigkeit der Muße und der Leidenschaft ist Allen zu eigen.

163
riquezas da terra, tentação que é recusada em nome de um compromisso com o Deus único.113 Os
tipos superiores são sempre assediados pela política democrática, e só a custo de grande arte de
travestimento conseguem escapar à decadência dessas esdrúxulas alianças. Não sem motivo, o
filósofo de Zaratustra afirmava que tudo o que é profundo ama a máscara, ou as máscaras, as
diversas máscaras que o conjunto pulsional ascendente usa para fugir à decadência, sem, contudo,
fugir à luta. Os dois devem viver lado a lado sem, todavia, se misturar:

O objetivo não é considerar os últimos como senhores dos primeiros: mas: os dois tipos
existirão lado a lado – preferencialmente separados, um como os deuses epicuristas, não se
preocupando com os outros.”114 (NIETZSCHE, KSA X, p. 244, 7[21]. Tradução minha).

Se o ócio é fundamental à formação dos tipos superiores e os inferiores são inaptos para
ele, é interessante retomar a ligação que a palavra ócio tem com o termo que tardiamente passou
a significar escola. Quem elucida essa relação é Jean-François Mattéi:

O termo skholé, cuja etimologia permanece obscura, significa propriamente a “parada”, o


“repouso”, e, conseqüentemente, o “ócio”, essa pausa que permite ao homem não estar
mais submetido à urgência da vida quotidiana, e sim levar tempo. O segundo sentido do
termo será a ocupação do homem ocioso, não a ociosidade vazia, mas a plenitude de uma
reflexão estudiosa. Apenas relativamente tarde é que a skholé adquirirá o sentido de um
estudo regular e constante conduzido numa escola filosófica. Ainda que Platão tenha
criado a primeira escola em Atenas, em 387 a.C., segundo o modelo das comunidades
pitagóricas da Magna Grécia, ele não utiliza esse termo para designar a Academia ou
qualquer outro lugar de estudo. Em contrapartida, dá várias indicações preciosas sobre os
vínculos que unem a skholé à Paidéia e à philosophia de um lado, à vida e à agitação dos
negócios de outro. É no Teeteto que Sócrates opõe o filósofo que conquistou sua liberdade
porque se entrega a um “ócio” real, skholé, ao homem grosseiro e inculto, apaideutos, que
recebeu uma formação de escravo (...). Pela primeira vez Platão liga o ócio, entendido
como suspensão dos negócios em curso e, portanto, como uma parada, ao exercício do
pensamento que é seu próprio fim para si mesmo. (MATTÉI, 2002, p. 210).

O ócio, ou o afastamento dos negócios e do burburinho buliçoso da vida, constituiu o


próprio sentido clássico de escola. Foi só na modernidade que as guildas e corporações de ofício
possibilitaram a associação entre escola e aprendizado para o trabalho por meio da formação que
se dava nas oficinas pelos mestres artesãos. Desde então, para a burguesia emergente que se
tornaria, não muitos séculos depois, a dominante política e econômica do mundo, a educação tem

113
Lucas 5, 5-8.
114
Es ist durchaus nicht das Ziel, die letzteren als die Herren der Ersteren aufzufassen: sondern: es sollen zwei Arten
neben einander bestehen — möglichst getrennt; die eine wie die epikurischen Götter, sich um die andere nicht
kümmernd.

164
progressivamente sido associada ao aprendizado prático e profissional, o qual não tolera o ócio,
pois é improdutivo. Para Nietzsche, a educação dos tipos superiores carece do ócio, mas não se
esgota nele. O filósofo cria que era necessário muito trabalho para tornar uma pessoa um tipo
superior, ou para impedir que decaísse, como será mostrado a seguir.

2.2 – A educação para a cultura superior

A preocupação com o apequenamento humano está no núcleo da discussão pela


legitimidade da grande política como projeto educacional de instrumentalização da natureza para
o surgimento dos tipos superiores. Sua legitimidade engloba a preservação de toda a espécie
humana em sua diversidade, ou seja, a preservação dos fracos, dos fortes e das diferenças entre
eles, mas a existência separada dos dois tipos e suas formas intermediárias, assim como a
diferença entre eles é de pronto ameaçada pela política e educação civilizatória, e como afirma
Giacoia na já referida introdução à seleta de textos nietzscheanos:

É sob o signo desse tipo de saber que se leva a efeito a Grande Política como um epocal
contra movimento ao triunfo quase irreversível da tendência dominante à “sujeita da
pequena política”. Se a meta da pequena política consiste em submeter o particular ao
individual, o indivíduo à comunidade, tomando o primeiro como um instrumento do bem
comum, o propósito da Grande Política se delineia em sentido inverso. Ele se articula
como um programa filosófico que visa defender a exceção contra a regra, criar, deliberada
e experimentalmente, as condições propícias para o surgimento de uma nova aristocracia
do espírito, que tomará corpo na figura dos novos filósofos, os espíritos livres, muito livres.
Eles, justamente, seriam também os “fortes do futuro”. (GIACOIA apud NIETZSCHE,
GP, p. 16-7),

e, por fim, complementa:

Aquilo que, efetivamente, está em jogo, nessa crítica da modernidade política, é a criação
das condições para o surgimento dessa nova aristocracia do espírito, dessa excelência na
virtude, que é forte o suficiente para transfigurar força em beleza, rigor moral em
consciência do dever e honestidade intelectual, severidade em doçura, e de dar à própria
vida a bela forma da obra de arte. (Idem. p. 20-1).

Contra essa tentativa, porém, os tipos inferiores e sua educação civilizatória estão atentos,
e o surgimento dos tipos superiores, aquele infortúnio público, só acontece com muito custo e
muita dor, com uma série de traumas que afetam esse indivíduo, diminuindo em muito a

165
possibilidade do seu surgimento. A grande política é claramente um esforço no sentido de
racionalizar esse processo, de proteger a exceção contra a regra, logo, ela só é visível para
Nietzsche como um projeto educacional. Apenas por meio de uma nova forma de educação
poderiam surgir esses tipos superiores.
Mas quando se fala na produção dos tipos superiores de modo artificial por meio de um
processo educacional, esbarra-se em um problema: se as condições educacionais nas quais
surgem os tipos inferiores também são propícias ao surgimento dos tipos superiores, não faria
sentido a criação de um mecanismo específico para o surgimento destes, e mais, se se supõe essa
educação específica para esses tipos superiores em nome da diminuição da crueldade que para
eles é o sistema educacional civilizatório, não se consegue com isso justamente o inverso? Ou
seja, se este elemento que se quer elevar pulsionalmente é protegido e circundado de todos os
lados, o que se tem não é justamente o contrário, seu enfraquecimento e sua decadência pulsional?
Nietzsche tinha tudo isso em mente quando propôs a grande política como
instrumentalização da natureza para a produção dos tipos superiores, mas, ainda assim, pareceu
ao filósofo que o risco valia a pena, pois o surgimento do homem superior, apenas por meio das
condições naturais, não artificiais, sempre foi raro e esporádico, devido às próprias barreiras que
a natureza lhe impunha. Todavia, essas barreiras na sociedade civilizada e consciente de si não
são mais naturais: criou-se artificialmente as condições para o rebaixamento tipológico do
homem, montou-se, ou vem se montando e intensificando, mecanismos humanos, demasiado
humanos, totalmente artificiais, para que o tipo não se eleve. A consciência do rebanho e seu
poder social expandiram-se a tal ponto e dominaram de tal maneira as mais diversas técnicas –
por meio da mobilização, em seu favor, até mesmo da filosofia e pedagogia –, que esse estado de
coisas tornava o contramovimento educacional sumamente necessário para o filósofo, pois, se em
condições normais o surgimento dos tipos superiores era raro, nas condições da modernidade e
contemporaneidade ele assume as feições do impossível. Por isso, o filósofo, em fragmento
póstumo, indagou-se:

Uma questão vem a mim sempre novamente, uma questão tentadora e maléfica talvez:
vamos dizê-la ao ouvido das almas mais fortes de hoje, as quais também têm o melhor
controle sobre si e o direito a tais questões dúbias (fragwürdigen): já não seria o tempo,
quanto mais se desenvolve agora na Europa o tipo “animal de rebanho”, de tentar fazer o

166
cultivo (Züchtung), fundamentalmente artificial e consciente do tipo oposto e suas
virtudes?115 (NIETZSCHE, KSA XII, p. 73, 2[13]. Tradução e destaques meus).

A proposta de um cultivo que seja fundamentalmente artificial e consciente é, sem dúvida


alguma, a educação para a cultura dos tipos superiores de seres humanos, e para o filósofo estava
claro que dessa empreitada dependia o próprio futuro da espécie humana, pois Nietzsche cria que
a contínua expansão dos tipos inferiores mais cedo ou mais tarde poria a própria espécie em
perigo.
Para compreender essa educação, é necessário relembrar o elemento fundamental na
constituição dos tipos superiores e que os distingue radicalmente dos tipos inferiores: o domínio
pulsional. O objetivo dessa educação não é criar um indivíduo que tenha controle pulsional. O
controle pulsional não pode ser produzido artificialmente, o que se quer criar artificialmente são
as condições que obriguem esse indivíduo ao domínio pulsional, ou, mais claramente, que
despertem nele a vontade/necessidade do domínio pulsional. Todavia, tal controle só é obtido por
meio de uma relação complexa na qual as pulsões fortalecidas se encontram no controle do si e
estimulam o conflito interno das pulsões para que a força pulsional seja mantida. Isso, claro,
representa um perigo ao próprio domínio dessas pulsões fortalecidas, pois elas podem ser
derrotadas e ceder seu lugar para outras pulsões, até mesmo pulsões enfraquecidas que existam
em grande número e tenham estratégias bastante eficazes e fugidias 116 de combate, o que,
historicamente, segundo o filósofo, foi o principal resultado desses conflitos pulsionais.
Entretanto, novamente, o risco vale a pena. A educação para a cultura dos tipos superiores, então,
deveria estimular em seus educandos o conflito, uma verdadeira guerra pedagógica que fosse
capaz de manter as forças constantemente tensas e conflitantes entre si e, ao mesmo tempo,
disciplinar esse educando para ver na multiplicidade e diversidade sua única possibilidade de
crescimento e elevação, fazê-lo sentir mesmo carinho e zelo pelo que lhe é diferente e que lhe
pode espicaçar e fazer crescer; somente assim a diversidade não seria morta. Porém, o risco
persiste, pois se deve valorizar até mesmo os tipos inferiores que sempre o ameaçariam de
maneira covarde e sorrateira.

115
Fragen haben, den stärksten Seelen von heute, welche sich selbst auch am besten in der Gewalt haben: wäre es
nicht an der Zeit, je mehr der Typus „Heerdenthier“ jetzt in Europa entwickelt wird, mit einer grundsätzlichen
künstlichen und bewussten Züchtung des entgegengesetzten Typus und seiner Tugenden den Versuch zu machen?
116
Eficazes justamente por serem fugidias – é o caso da moral, que quanto mais escamoteia a luta (uma estratégia
fugidia) mais se torna poderosa.

167
Em um texto de Humano, demasiado humano I, intitulado Educação Milagrosa (§242),
Nietzsche explicou que durante muito tempo se viu o gênio, o tipo superior, como uma espécie de
milagre, como se seu surgimento fosse alheio ao próprio caos e desordem em meio ao qual brota.
Então, Nietzsche afirma que, olhando mais de perto, porém, esse processo não tem nada de
milagroso e que, para cada um que sobrevive a ele, diversos outros perecem, mas que, de fato, o
sobrevivente torna-se mais forte. Em seguida, o filósofo apresenta sua proposta para uma
educação que já não crê em milagres:

Uma educação que já não crê em milagres deve prestar atenção a três coisas: primeiro,
quanta energia é herdada?; segundo, de que modo uma nova energia pode ainda ser
inflamada?; terceiro, como adaptar o indivíduo às exigências extremamente variadas da
cultura, sem que elas o incomodem e destruam sua singularidade? – em suma, como
integrar o indivíduo ao contraponto de cultura privada e pública, como pode ele ser
simultaneamente a melodia e seu acompanhamento. (NIETZSCHE, HDH I, p. 167).

Embora seja um texto do período intermediário de Nietzsche, já se percebe nele todos os


elementos constituintes do seu pensamento maduro quanto à educação e à grande política, em
especial a crença na possibilidade de se constituir artificial e metodicamente as condições de
surgimento dos tipos superiores. A educação para o surgimento dos tipos superiores seria
constituída de três etapas: 1) “quanta energia é herdada?”, ou seja, o atual estado da constituição
pulsional do indivíduo; 2) como “uma nova energia pode ainda ser inflamada?”, ou seja, como
aumentar o conflito pulsional de modo que a energia dessas pulsões, da vontade de poder,
cresçam?; e 3) como lidar com a complexa relação entre o indivíduo, e o conjunto pulsional que
ele é, e a sociedade, e o conjunto pulsional que ela representa e no qual esse indivíduo está
situado?
Antes de se analisar essas três etapas da educação do homem superior, é necessária uma
observação: até agora não se falou do educador, aquele que conduzirá esse processo. Ele é, sem
dúvida, uma figura central, todavia, achou-se melhor que tal discussão estivesse presente no
último capítulo desta tese, momento no qual se analisará a obra Assim falou Zaratustra e abordar-
se-á o papel educativo da personagem Zaratustra como modelo do educador por excelência para a
construção dos tipos superiores.
Perguntar pela energia herdada é perguntar pela condição atual dos arranjos pulsionais
que constituem cada indivíduo, ou seja, a pergunta é, na verdade, pela condição de vida do
educando: quais são as pulsões que o constituem? Quais estão no comando e quais são

168
subalternas? Como o si e as pulsões que dominam o si construíram o Eu? Qual o conteúdo da
consciência desse Eu? E a mais importante de todas as perguntas: qual o nível da tensão pulsional
no interior desse indivíduo? Todas as perguntas são importantes e apontam a quantidade de
energia herdada, mas apenas a última dá uma noção clara do trabalho por fazer nesse educando,
apenas ela mostra os caminhos a seguir na segunda etapa. Se a tensão interna é pequena porque
valores na consciência desse indivíduo apontam o conflito como ruim e reivindicam, ao contrário,
a falsa harmonia, que se consegue com a castração da diferença, que é não harmonia, mas
decadência pulsional; ou se, por outro lado, a tensão é grande porque a consciência do Eu,
máscara do si, abriga em si diversos monstros que lutam por domínio, o que revela descontrole e
caos pulsional, criando a total anarquia interior, ameaçando a destruição de todo o conjunto e a
existência do próprio si; ou, ainda, se há conflito interno, este é fomentado por um conjunto de
pulsões fortalecidas que dominam o si, e a consciência do Eu captura em si o querer-manifestar-
se das outras pulsões como angústia sua e transforma-a em subvozes no interior dessa
consciência, que são um índice de criatividade do indivíduo – esses são alguns estados pulsionais
que podem constituir a condição de vida do educando –, seria, ainda, necessário conhecer as
condições externas para saber o real estado da energia pulsional. Nesse ponto, o pensamento de
Nietzsche apresenta-se ainda mais sui generis: suas constantes metáforas nas quais a consciência
é comparada ao estômago e as vivências humanas são discutidas como digeríveis ou não; o
esquecimento ativo é comparado com uma boa digestão, a memória absoluta à dispepsia, tudo
isso mostra a importância que Nietzsche dava à alimentação como elemento externo que pode
influenciar a organização interna das pulsões; mas também os lugares que se frequenta e onde se
vive; e, principalmente, as companhias que se tem, os encontros, relações afetivas e amorosas etc.
Isso tudo conduz quase um cálculo infinitesimal de possibilidades que, todavia, interfere
inegavelmente na elevação ou no rebaixamento do indivíduo; mas isso é apenas a etapa inicial,
como que o diagnóstico antes de se traçar as novas estratégias educativas, que correspondem à
segunda etapa.
Essa segunda etapa se pergunta pela possibilidade e pelo modo da elevação da energia
pulsional, ou seja, como essa energia pode crescer, como variar a condição de vida de uma pessoa
por meio do acréscimo de novas forças e intensificação do conflito pulsional? O final da pergunta
já traz a resposta preliminar: a energia pode ser aumentada pela intensificação da tensão pulsional.
O caminho para isso, no entanto, é duro, e nele se depara com o que há de terrível nessa guerra

169
pedagógica, que, embora seja pedagógica, é ainda guerra, e nela estão presentes as durezas da
guerra; dessa forma, o caminho para a intensificação dos conflitos pulsionais não poderia ser
outro que não o descrito por Nietzsche neste fragmento póstumo:

Isso vale para o indivíduo humano: o problema da educação é dar tanta firmeza e vigor a
alguém, [de modo – VS] que como um todo ele não possa mais ser desviado do seu
caminho. Mas, então o educador tem que causar ferimentos a ele:117 então, se a dor
originar a necessidade, algo novo e nobre também pode ser inoculado.118 (NIETZSCHE,
KSA VIII, p. 258, 12[22]. Tradução e destaques meus).

Mais uma vez, Nietzsche obriga o intérprete a intensos exercícios hermenêuticos. Como
interpretar essas feridas que o educador deve infligir ao educando para que este adquira tanta
firmeza e vigor que não se desvie de seu caminho? Esse mesmo texto aparece em versão um
pouco diferenciada em Humano, demasiado humano I. Nessa versão, Nietzsche afirma que o
educador deve causar os ferimentos ao educando “ou utilizar os que lhe produz o destino”
(NIETZSCHE, HDH I, p. 156). Claramente, a possibilidade de que o educador não precise
provocar as feridas ameniza o peso do texto nietzscheano, porém, o problema da necessidade das
feridas persiste. Elas são realmente necessárias para a educação ou para essa fase da educação em
que se busca intensificar a energia pulsional? Comentando o texto de Humano, demasiado
humano, Mintz afirma que:

Nietzsche observa que o professor não precisa necessariamente causar as feridas ele
mesmo, mas só “empregar as feridas causadas nele [educando – VS] pelo destino”. Se o
destino já causou as feridas ao educando, o papel do educador permanece importante da
mesma maneira. Sem a provocação do educador, o homem pode escolher suportar estas
feridas. Nesta passagem, pelo menos, Nietzsche diz que o educador tem que trazer as
feridas causadas pelo destino à atenção explícita do espírito livre, de forma que o espírito
livre ficará completamente consciente delas e será forçado a reagir a elas. Assim, a dor
fará o educando buscar um caminho diferente do que ele trilhou até então e o espírito
estará livre.119 (MINTZ, 2004, p. 165. Tradução minha).

117
Optou-se por traduzir ihm Wunden beizubringen por “causar ferimentos a ele”, e não “feri-lo”, porque a tradução
“causar ferimentos a ele” oferece a ideia de acontecimentos localizados, ao passo que “feri-lo” oferece uma noção
mais ampla do ato de ferir.
118
Ebenso der einzelne Mensch: das Problem der Erziehung ist, jemanden so fest und markig hinzustellen, daß er als
Ganzes gar nicht mehr aus seiner Bahn gebracht werden kann. Dann aber hat der Erzieher ihm Wunden beizubringen:
und wenn so der Schmerz, das Bedürfniß entstanden ist, kann auch dort etwas Neues und Edles inokulirt werden. Die
Gesammtkraft wird es jetzt in sich hinein nehmen und so veredelt werden.
119
Nietzsche notes that the teacher may not necessarily have to inflict the injuries himself but only “employ the
injuries inflicted upon him by fate.” If fate has already inflicted injuries on the student, the educator’s role remains
just as important. Without the provocation of the educator, the man may choose to endure these injuries. In this
passage, at least, Nietzsche says that the educator must bring the injuries inflicted by fate to the explicit attention of
the free spirit, so that the free spirit will become fully conscious of them and will be forced to react to them. Thus,

170
De fato, Mintz tem razão ao enfatizar o papel do educador, porém, estranhamente ignora o
papel das feridas como tentativa de ocultar esse aspecto terrível, ou visto como terrível, do
pensamento de Nietzsche. Essas feridas não podem ser físicas, dado que o destino não seria capaz
de produzi-las. A continuação do texto no qual Nietzsche fala primeiramente da necessidade de
os educadores criarem as feridas nos alunos oferece uma boa ideia do que elas sejam:

Os alemães não foram apenas feridos, eles quase sangraram até a morte, lhes foram tirados
liberdade, costumes, religião e língua (Sprache). Eles não sucumbiram: mas que eles são
uma nação profundamente sofredora, eles provam quando se descobre a sua música; eles
descobriram a bênção da doença.120 (NIETZSCHE, KSA VIII, p. 259, 12[22]. Tradução
minha).

Os alemães foram feridos e quase sangraram até a morte, essas feridas são representadas
por perdas severas: liberdade, costumes, religião e língua. Essas não são perdas físicas, porém,
culturais. As feridas que o educador deve infligir nos educandos são, não resta dúvida, culturais.
Faz parte do processo de acréscimo das forças pulsionais aquilo que Nietzsche nomeou como
transvaloração dos valores. No pensamento do filósofo, a transvaloração é o próprio ato criador
dos tipos superiores, transvalorar é revalorar: a crítica de Nietzsche à moral cristã foi uma atitude
de transvaloração. Com tal crítica, Nietzsche questionou o valor de um determinado valor, sua
real importância para a vida: se ele a fomentava ou, pelo contrário, a destruía. A transvaloração,
na forma de ferida cultural infligida pelo educador dos tipos superiores, representa o espaço que
se abre para a criação do novo. Esse é um processo doloroso, pois esses valores que serão
transvalorados são tidos como eternos e constituem a base ética de cada indivíduo, valores que
habitam sua consciência e que são fundamentais para sua comunicação com outros indivíduos.
Quando o educador abre tais feridas no educando, ou se aproveita das que já estão abertas, ele
obriga o educando a se defrontar com realidades para as quais não tinha, até determinado
momento, dado atenção. As feridas culturais permitem que, na fossilizada estrutura do Eu e das
pulsões que o criaram, sustentam e comandam, sejam inseridos novos “atores”, novas pulsões

the pain will cause the student to seek a different path than the one that he had hitherto been treading and the free
spirit will be liberated.
120
Die Deutschen wurden nicht nur verwundet, sondern fast zum Verbluten gebracht, man nahm ihnen Sitte Religion
Sprache Freiheit. Sie sind nicht zu Grunde gegangen: aber daß sie eine tief leidende Nation sind, haben sie bewiesen,
dadurch dass sie die Musik erfanden; sie haben den Segen der Krankheit erfahren.

171
que tragam nova dinâmica aos arranjos internos e que ameaçam as estruturas antigas, obrigando-
as a se modificar ou sucumbir.
A terceira etapa nessa educação para a cultura dos tipos superiores talvez represente um
dos mais antigos problemas da filosofia política: como conciliar as necessidades pessoais com os
interesses coletivos? Problema que se agrava quando o pessoal é um conglomerado pulsional em
constante luta por domínio e expansão, tanto interna quanto externamente, e o coletivo é moldado
à imagem de outros conjuntos pulsionais que se opõem e tentam dominar o que cada indivíduo é.
Nesse cenário de constituição de subjetividades e coletividades, a relação de cada pessoa com o
todo tem importância decisiva para a educação e a formação dos tipos superiores.
Como se sabe, há uma realidade bem distinta entre o aristocrata da tipologia nietzscheana
e os aristocratas que compuseram as aristocracias históricas nas quais o filósofo baseou sua
tipologia. As exigências de reprodução e obediência às regras nas sociedades aristocráticas
sempre foram intensas. Tanto ou mais do que nas sociedades liberais, as aristocráticas sempre
estiveram longe de ser uma estufa para o crescimento dos tipos superiores, tentando muito mais,
como nas democracias, barrar qualquer transformação pulsional, o que as torna tipologicamente
semelhantes às sociedades democráticas. Em ambos os casos, as exigências que se faz ao
indivíduo são de obediência, de modo que ele perceba e declare que a sociedade deve ser mais
importante do que o indivíduo. Esse modelo de relação da coletividade com o indivíduo é
claramente um óbice aos tipos superiores, cuja genialidade de criação é comprimida nessas
sociedades. Percebe-se que essa relação dos tipos superiores com a cultura das sociedades em que
vivem sempre será conflituosa, o que não podia ser diferente. Se esses tipos superiores não são
seres gregários e comunitários, mesmo vivendo em sociedade com outros elementos, a tendência
constante é que sejam massacrados ou dominados e enfraquecidos, conduzidos ao rebanho da
gregaridade. Por isso esse último elemento da educação dos tipos superiores é tão importante:
como fazer com que ele não se isole, o que seria pulsionalmente danoso, e ao mesmo tempo não
seja destruído pela sociedade?
A resposta mais uma vez é a escravidão, a escravidão espiritualizada da
contemporaneidade da qual já se falou, essa escravidão ao conforto e ao menor esforço tão
desejada e cobiçada na atualidade. Nietzsche pensava a vida pública como um constante perigo
aos tipos superiores, pois ela obriga justamente a essa escravidão; quanto mais prazer se tem com
as deferências alheias, mais a pessoa se dispõe a sacrifícios pela manutenção dessas deferências,

172
essa é a lógica triunfante da sociedade dos tipos inferiores. Mesmo Napoleão, figura histórica tida
em alta conta por Nietzsche, não foi capaz de fugir a essa sina, levando o filósofo a afirmar que o
grande general francês, quanto mais se envolveu com a política francesa, mais decaiu. Todavia,
se a vida pública é perigosa, os tipos superiores podem se beneficiar do labor voluntário desses
novos escravos em seu próprio favor.
Na seção 41 (§41) de Além do bem e do mal, Nietzsche afirmou que “tudo que é profundo
ama a máscara”. As palavras do filósofo mostram o complicado relacionamento dos tipos
superiores com a sociedade de sua época: uma relação paradoxal – os tipos superiores não podem
se isolar, o que causaria o declínio de suas forças por ausência de conflitos; todavia, o convívio
com a sociedade e suas diligências são armadilhas de captura e morte dos tipos superiores.
Nietzsche apontou a máscara como solução do impasse. A seção acima mencionada termina nos
seguintes termos: “Todo espírito profundo necessita de uma máscara: mais ainda, ao redor de
todo espírito profundo cresce continuamente uma máscara, graças à interpretação perpetuamente
falsa, ou seja, rasa, de cada palavra, cada passo, cada sinal de vida que ele dá.” (NIETZSCHE,
ABM, p. 46). Os tipos superiores devem usar máscaras para lidar com a sociedade, assim, podem
se aproveitar dela e da escravidão voluntária que tantas vezes fomenta suas regras e leis. Claro
que a máscara também oferece perigos, em especial o de que a pulsão ou o conjunto pulsional
fortalecido que comanda um indivíduo, nos exercícios de simulação e autossimulação, perca o
controle do Eu, cedendo espaço para pulsões enfraquecidas. Esse risco, porém, é inerente ao
exercício do domínio e à luta pulsional que mantém a força pulsional em expansão. Fugir a essa
luta, temendo-lhe os riscos, já seria decréscimo.
Como se percebe, os esforços educativos para formar os tipos superiores são enormes e
demandam grande energia. Todavia, sua construção não pode ser diferente. Quando Nietzsche
pensou a grande política como instrumentalização da natureza para que esse tipo fosse produzido
artificialmente, o filósofo sabia da sua necessidade, mas também tinha consciência desses
esforços, esforços educativos e individuais.
O que se viu até aqui é que, no pensamento de Nietzsche, cultura e civilização são coisas
distintas e, desse modo, há uma educação para a civilização e outra para a cultura. Em termos
nietzscheanos, apenas a segunda seria realmente educação, porque apenas ela faz o esforço de
promover a mobilidade pulsional nos indivíduos, variando a condição de vida para que a
condição de morte seja diversa da condição de nascimento. Essa mobilidade pulsional pode

173
ocorrer em dois sentidos diferentes, que são as duas vertentes possíveis para a educação: a
elevação tipológica por meio da elaboração de tipos superiores, ou a educação para que um tipo
se torne ou se mantenha superior; mas também o rebaixamento tipológico, possibilidade
constante do processo educacional, pois, uma vez que se disponha a alterar a estrutura pulsional
de um indivíduo, nada garante que ele se tornará um tipo superior, podendo, pelo contrário, sofrer
uma decadência tipológica. Isso vale tanto para os tipos superiores quanto para os tipos
intermediários (que para Nietzsche já são tipos inferiores), que poderiam cair ainda mais baixo,
degenerar do próprio rebanho tornando-se tipos abaixo do rebanho, os quais Nietzsche
geralmente nomeia como criminosos:

O tipo criminoso é o tipo do ser humano forte sob condições desfavoráveis, um homem
forte que tornaram doente. Falta-lhe a selva, uma natureza e forma de existência mais livre
e mais perigosa, em que tudo o que é arma e armadura, no instinto do homem forte, tem
direito a existir. Suas virtudes foram proscritas pela sociedade; os instintos mais vivos de
que é dotado logo se misturam com os afetos deprimentes, com a suspeita, o medo, a
infâmia. Mas isso é praticamente a receita para a degeneração fisiológica (...). É na
sociedade, em nossa mansa, mediana, castrada sociedade, que um ser natural, vindo das
montanhas ou das aventuras do mar, necessariamente degenera em criminoso.
(NIETZSCHE, CI, p. 94-5).

O esforço civilizatório, baseado em uma educação para a imobilidade pulsional, porém,


corrobora a degenerescência pulsional mais do que a estabilidade pulsional, já que onde há
estabilidade, no que se refere à constituição pulsional da subjetividade humana, logo haverá
decadência, pois, quando as pulsões cessam, a luta e o conflito, seja interno, seja externo, tendem
a decair. A educação civilizatória tenta oferecer a democracia como índice de luta mínima, luta
suficiente apenas para evitar um rebaixamento tipológico do rebanho, para que seus membros não
se tornem criminosos. Porém, com o avanço da democracia e a transformação da política em
administração, até mesmo essa luta tem escasseado, uma vez que a democracia, ao suprir todas as
necessidades do indivíduo, antes mesmo que ele as tenha, ou, ao criar novas necessidades, que
rapidamente serão saciadas, uma vez que a democracia realiza esses contentamentos dos
indivíduos, ela vai minando paulatinamente sua vontade de poder de modo que a educação
civilizatória se torna essencialmente uma educação do rebaixamento humano, não podendo, por
muito tempo, manter sequer a estabilidade pulsional almejada.
Nas escolas, essas estratégias educacionais se tornam nítidas e claras por meio das novas
políticas de ensino e massificação: ensina-se tudo a todos e promove-se o seguimento escolar do

174
educando mesmo quando ele não foi capaz de dar mostras de ter aprendido qualquer coisa.
Mesmo não dando essas mostras, ele correspondeu, ainda assim, às expectativas dessa educação,
pois elas variam entre o nulo e o muito baixo: não se espera muito do ser humano que está sendo
educado, há ojeriza ao rigor e a exigências intensas; essa nova educação ensina o educando a ter
desejos moderados, que serão rapidamente saciados, e também o incentiva a não exigir muito de
si e dos outros.
Opondo-se a esse descalabro educacional, Nietzsche sugeriu outra educação, uma
tentativa de cultivar os tipos superiores, uma estufa para plantas raras e seletas. Essa educação,
por meio de um projeto político de instrumentalização da natureza humana, a grande política, está
disposta a exigir muito do educando, a forçá-lo ao impensado, a solicitar cada vez mais desse
aluno, cobrar, por fim, a excelência. A linguagem dessa educação não é piedosa e complacente,
como afirmou Nietzsche em um fragmento póstumo:

Não vejo como possa novamente dar um jeito alguém que tenha deixado de ir, na época
certa, a uma boa escola. Um sujeito assim não se conhece; anda pela vida sem ter
aprendido a caminhar; a musculatura flácida denuncia-se ainda a cada passo. A vida é, às
vezes, tão compassiva que ela permite a recuperação quanto a essa rígida escola: talvez
anos a fio de enfermidade, a exigir a mais extremada força de vontade e auto-suficiência;
ou uma situação emergencial, que se imponha de repente, estendendo-se inclusive para
mulher e filho, e que obrigue a uma atividade que novamente dê vigor às fibras
amortecidas e recupere a tenacidade para a vontade de viver... O mais desejável continua
sendo, em todas as circunstâncias, uma rígida disciplina na época certa, ou seja, ainda
numa idade em que desperte orgulho ver que muito é exigido de si mesmo. Pois isso
diferencia de qualquer outra a escola da dureza como boa escola: que muito é exigido; que
é exigido com rigor; que o bom, que até o excepcional é exigido como normal; que o
louvor é raro, que não há indulgência; (...). Uma escola assim é necessária em todos os
sentidos: isso vale tanto para o mais corpóreo quanto para o mais espiritual: funesto seria
querer separar aqui! (NIETZSCHE, FF, p. 151).

A escola da dureza é rígida em suas exigências, ela quer apenas o melhor, a excelência, e
não aceita substitutivos meios-termos. Mas em face dessa dureza toda, é lícito que se pergunte:
para que, então, instrumentalização? Não seria melhor simplesmente entregar esse educando aos
sabores do acaso e às possibilidades casuais da própria vida em produzir um elemento superior?
Nietzsche não aceita essa hipótese por conta da autoconsciência que a civilização e o rebanho
tomaram de si, eles sabem o que são e sabem do seu poder, logo, traçam como objetivo claro e
consciente barrar qualquer mudança pulsional que eleve os tipos humanos. Desse modo, apenas
com o contramovimento também claro e deliberado de produzir esses tipos superiores, eles

175
surgirão novamente. Todavia, por mais que essa educação esforce-se por elevar o tipo homem,
ela ainda tem um limite intransponível, o limite do tornar-se o que se é.

3 – Tornar-se o que se é e o limite da educação

O “tornar-se o que se é”, sem dúvida, é um dos elementos mais importantes do


pensamento de Nietzsche, e também dos mais controversos. É, ainda, uma das ideias mais antigas
do filósofo e sofreu pouca mudança ao longo do seu trajeto filosófico, pois já era verificada em
suas primeiras obras e atingiu a importância máxima no período final de seu pensamento, quando
a expressão se tornou subtítulo de sua autobiografia.
O tornar-se o que se é não é ideia de sentido único no pensamento de Nietzsche, podendo
ser interpretada de diversas maneiras, todas relacionadas com a educação. A mais comum é a
ideia do fazer-se ou educar-se, de que se tratará mais profundamente no último capítulo desta tese.
De qualquer forma, o fazer-se encontra profundo eco no subtítulo da autobiografia de Nietzsche.
Em alemão diz-se wie man wird, was man ist. A tradução mais comum para o título é “como
alguém se torna o que é”. Essa é a tradução de Paulo César Souza na já consagrada edição da
Companhia das Letras, porém, outra tradução de grande relevância, a de Rubens Rodrigues
Torres Filho, da coleção Os Pensadores, traz “como tornar-se o que é”. Rubens Rodrigues
suprime claramente em sua tradução a partícula man, que torna a frase pessoal, e que Paulo César
Souza traduziu como “alguém”. A opção de Walter Kaufmann na edição americana da Penguin
Books é semelhante à de Paulo César: How one becomes what one is. Em todos os casos, o que se
tem é o trabalho de autoformação, que talvez seja o sentido mais amplo de uma autobiografia, em
especial a de Nietzsche.
Porém, o vocábulo wird, declinação do verbo werden, oferece outras possibilidades de
compreensão do subtítulo da autobiografia do filósofo, possibilidades que, se não foram
exploradas pelos tradutores, não são absurdas de serem levadas em conta. As três primeiras
definições que o dicionário Duden oferece para o verbo werden são: 1) entrar ou ingressar em um
determinado estado; 2) adquirir certa qualidade; e 3) sofrer um desenvolvimento ou evolução.121
Se se repara bem, as duas primeiras definições oferecem a mesma compreensão da ação e do

121
Respectivamente: “in einen bestimmten Zustand kommen”; “eine bestimmte Eigenschaft bekommen”; “eine
Entwicklung durchmachen” (Duden, 1998, p. 816)

176
agente da ação, nos dois casos tem-se a ideia de um ato voluntário, o mesmo que se obtém
quando se traduz wird como “tornar-se”. Todavia, a terceira definição traz uma ideia distinta,
pois nela o sujeito é claramente passivo; nessa definição, o sujeito sofre a ação, não a executa.
Desse modo, já não seria possível falar em alguém se tornando o que se é, porém, sendo tornado,
ideia que, como se viu, não é absurda em Nietzsche em face da impossibilidade de o sujeito ser
realmente o autor de qualquer transformação que possa ocorrer ao indivíduo e nele. O verbo
werden também pode ser usado com o mesmo sentido semântico do verbo português “devir”,
nesse caso ter-se-ia “como alguém devém no que é”, aí também anulada a importância do sujeito
agente e que se faz. No entanto, há de se admitir que a autobiografia de Nietzsche possui
claramente o sentido do fazer-se, do educar-se.
Mas o que exatamente é esse “tornar-se” ou “educar-se”? Essa pergunta é fundamental,
pois sua resposta é bastante simples, mas suas consequências não: tornar-se ou educar-se é o
apelo para que o indivíduo devenha em multiplicidade, em outras palavras, é o apelo pela
mobilidade pulsional, o apelo para que os esforços de cada ser humano ocorram no sentido de
promover a diversidade de sua condição de vida para que ao morrer a condição de morte seja
distinta da condição de nascimento. Nesse caso, é possível encontrar na autobiografia de
Nietzsche o duplo sentido aqui mencionado e explicitado pela riqueza semântica do verbo werden,
o tornar-se o que se é é um duplo trabalho, é ao mesmo tempo o fazer-se, porém, não dirigido
pelo Eu, e sim pelas pulsões dominantes que o constituem; ao mesmo tempo é entrega ao devir.
Esses dois processos eram, para o filósofo, complementares e acessíveis apenas aos tipos
superiores: o fazer-se superior ou manter-se superior, trabalho árduo das pulsões dominantes,
quando, claro, são pulsões fortalecidas. Esse trabalho de fazer-se só é possível quando se aceita o
devir e assume-se o seu peso específico: o duplo peso da incerteza e da irreversibilidade do já
sido.
Os tipos superiores, de vontade firme, que podem querer no futuro o que quiseram no
passado e seguem querendo no presente, esses tipos superiores, que sabem que a luta é
fundamental para o crescimento da sua superioridade, veem no devir seu maior inimigo, mas não
fogem a esse combate e fazem a si mesmos tipos superiores justamente nessa luta. Haverá no
próximo capítulo oportunidade para uma análise mais profunda e detida da relação dos tipos
superiores com o tempo, esse inesgotável inimigo, tão fundamental ao fortalecimento desses tipos.
De imediato, porém, pode-se adiantar que enfrentar o tempo como inimigo e construir-se no devir

177
do tempo significam viver o tempo, não escamoteá-lo com a eternidade e a imortalidade, ou
alguma espécie/possibilidade de reversão do já sido. Só há vivência do tempo quando se aceita a
sua ação destrutiva, que abre as feridas tão importantes para a educação: a condição para que haja
temporalidade é a assunção de que o tempo destrói tudo o que é perecível, destrói tudo. O tornar-
se o que se é depende dessa dupla vivência do sentido do verbo werden. É esse o sentido da
observação de Frezzatti Júnior quando afirma que:

O “tornar-se o que se é” nada mais seria do que o processo de aumento de potência de uma
configuração de impulsos que atinge seu quantum máximo de potência. Aqui as condições
fisiológicas – a configuração, o arranjo, a hierarquia dos impulsos – teriam uma
importância substancial e as condições culturais, subordinada. (FREZZATTI JÚNIOR,
2004, p. 127).

Tornar-se o que se é é um apelo que não tem validade para a diminuição, apenas para a
ascendência pulsional, ao contrário da educação, dita em sentido nietzscheano, implicando
apenas mudança pulsional. O tornar-se o que se é é um apelo pela elevação pulsional. Ele pode
ser pensado ainda em outro registro bastante caro a Nietzsche: o da ascensão à natureza, ou
melhor, ao natural ou à naturalidade. É o que se depreende da seguinte leitura de O crepúsculo
dos ídolos:

Goethe – não um acontecimento alemão, mas europeu: uma formidável tentativa de


superar o século XVIII com um retorno à natureza, com um ascender à naturalidade da
Renascença, uma espécie de auto-superação por parte daquele século (...) o que queria era
a totalidade; combateu a separação de razão, sensualidade, sentimento, vontade (– pregada,
com horrendo escolasticismo, por Kant, o antípoda de Goethe), disciplinou-se
(disciplinirte sich) para a inteireza, criou a si mesmo (er schuf sich). (NIETZSCHE, CI, p.
98-9).

É interessante notar como Nietzsche entrelaça a ideia de ascensão ao natural ou à natureza


com disciplina e criação de si. Para falar disciplina, Nietzsche utilizou-se de um vocábulo latino e
germanizou-o (disciplinirte), vocábulo que não é sequer encontrado nos dicionários alemães
atuais. A palavra alemã corrente para disciplina é Disziplin, cujo primeiro sinônimo é Ordnung; e
quando se procura por sinônimos para este último vocábulo, encontra-se Zucht, que, como se viu
no segundo capítulo, está na raiz de Züchtung, que Nietzsche usa como referência à educação,
geralmente no sentido de cultivo e autocultivo. Pelo que se vê da citação anterior, Goethe não
apenas criou a si mesmo, ele se disciplinou, o que significa, claramente, que cultivou a si mesmo.
Essas duas atitudes estão na base de sua ascensão ao natural.
178
É importante que se faça uma ressalva sobre a ideia de ascensão à natureza, de modo que
ela não seja confundida com a ideia de Rousseau de retorno à natureza. O que as distingue não é
meramente uma questão vetorial. A diferença está bem além da ideia de retorno e ascensão,
embora essas palavras já deem alguma noção do que cada uma quer. Ansell-Pearson, em seu livro
Nietzsche contra Rousseau, afirmou que:

O principal aspecto da crítica de Nietzsche a Rousseau é que ele critica seu pensamento
por postular uma oposição irremediável entre uma bondade natural da natureza humana,
por um lado, e as instituições sociais que a corrompem, por outro, culminando na ilusão de
que, uma vez que as instituições sociais corruptas tenham sido derrubadas e reformadas,
nossa escondida, reprimida bondade natural emergirá e florirá inocente e livre. A crítica de
Nietzsche a Rousseau é também uma crítica do espírito revolucionário que inspirou a
política da era moderna.122 (ANSELL-PEARSON, 1991, p. 20. Tradução minha).

A diferença principal, como dito, está além das direções vetoriais que se espera que o
homem siga para chegar novamente à natureza. O problema está radicado na própria
compreensão de natureza, pois Rousseau a compreendia como naturalmente boa, ou seja, atribuía
à natureza uma valoração moral tipicamente humana e, por fim, essa bondade natural teria sido
perdida com a ação da sociedade sobre o homem. Ainda segundo Ansell-Pearson:

A ideia de uma bondade natural do homem é uma refutação do argumento de Hobbes de


que os seres humanos são inerentemente agressivos e possuem um desejo inato de
dominação sobre os outros. Ao contrário, Rousseau objetiva mostrar que o desejo de poder
sobre os outros é um resultado de certo desenvolvimento histórico no qual o crescimento
das desigualdades no poder político e social ocasionou o nascimento de certas qualidades
tais como vaidade e orgulho.123 (Idem, p. 57).

Ao tributar valores morais tipicamente humanos à natureza e esperar que o homem retorne
a essa natureza, Rousseau pretende que aquilo que ele nomeia como mal seja abandonado e se
retorne para uma vida novamente repleta de bondade. A compreensão de natureza em Nietzsche é
radicalmente contrária. Para o filósofo alemão, a natureza não é moral, e toda tentativa de

122
A major aspect of Nietzsche’s critique of Rousseau is that He criticizes his thought for postulating an unmediated
opposition between the natural goodness of human nature, on the one hand, and social institutions which corrupt it,
on the other, culminating in the delusion that, once corrupt social institutions have been overthrown and reformed,
our hidden, repressed natural goodness Will emerge and blossom innocent and free. Nietzsche’s critique of Rousseau
is also a critique of the revolutionary spirit which has inspired the politics of the modern age.
123
The idea of man’s natural goodness is a rebuttal of Hobbe’s argument that human beings are inherently aggressive
and posses an innate desire for dominion over others. Instead, Rousseau aims to show that the desire for power over
others is a result of a certain historical development in which the rise of inequalities in social and political power
have given birth to certain qualities such as vanity and pride.

179
qualificação moral da mesma, em termos de bem e mal, é imprecisa e insuficiente e esconde
vontades diversas de dominação e ressentimento por trás de si. Há mais do que diferença, há uma
enorme contradição na compreensão de natureza dos dois pensadores, pois o que Nietzsche
compreendia como ascensão à natureza é justamente o abandono do que Rousseau queria quando
pregava o retorno à natureza. Para Nietzsche, ascender à natureza é responder ao chamado para
que alguém se torne o que é.
O tornar-se o que se é envolve um problema de autoconhecimento, mas não no sentido
socrático da ideia. Esse tornar-se o que se é não é a busca de um sujeito por sua verdadeira
essência ou fundamento ontológico, logo, o que se tem não é o encontro de uma consciência
contemporânea com seu fundamento que se encontra no passado, possibilitando uma
reconciliação eudemônica no tempo. Também não se trata da busca de um sujeito por sua
verdadeira identidade, que, quando encontrada, daria a ele a estabilidade e a perenidade desejadas
e também garantiria a paz, pois a mudança representa tormento. Em termos nietzscheanos, poder-
se-ia dizer que não se trata de um autoconhecimento, porém, de um conhecimento de si. Aqui o si
recebe o sentido profundo que Nietzsche lhe dava com o vocábulo alemão Selbst: é a totalidade
do ser humano em seu aspecto pulsional e orgânico. Quando em citação anterior Nietzsche
afirmava que Goethe havia se disciplinado para a totalidade, ele dizia que Goethe havia adentrado
esse novo universo de conhecimento, o conhecimento de si ou, mais propriamente, do si. O
conhecimento do si implica a assunção por parte de uma pessoa daquilo que ela é: um conjunto
de pulsões em constante conflito e luta, que só de quando em quando encontra uma configuração
de estabilidade e que todo esforço por perpetuar essa estabilidade, por meio, por exemplo, da
educação civilizatória, é um risco à própria existência, pois isso que se é, o si, só sobrevive
enquanto o conflito se mantém. Daniel Andrade afirma que:

Nesse “tornar-se o que se é” que a autobiografia nietzscheana oferece aos homens não se
trata de se tornar aquilo que sempre se foi, de assumir uma identidade profunda desde
sempre dada, mas que seria mascarada e reprimida pelo poder ou pela moral. Não é, por
exemplo, no caso de Nietzsche, revelar a loucura como a sua verdade última, como o
sujeito oculto que subterraneamente lhe determinava. “Tornar-se o que se é” é fazer
ensaios consigo, é vir-a-ser outros, é aventurar-se na diversidade; mas, por outro lado,
é dominar esta vastidão própria, é impor uma ordem ou estilo ao caos interno, é
lograr a inteireza sobre sua multiformidade. Daí que isto se constitua como uma
fórmula para os homens do futuro conquistarem a grandeza, ou seja, “ser tanto múltiplo
como inteiro, tanto vasto como pleno” (ABM 212). (ANDRADE, 2008, p. 299-300. Grifos
meus).

180
Não se trata de vasculhar o interior do si para saber qual pulsão é fundamental e qual tem
dominado o conjunto, nem tentar associações entre a condição de nascimento e as condições de
vida a determinadas pulsões, tornando, então, essas pulsões como novas identidades, na qual um
indivíduo poderia afirmar sobre si mesmo “eu sou a resultante de tal e qual pulsão mais do que de
outra”. Isto é importante: a pulsão, ou conjunto de pulsões dominante, não é um micro-Eu, não é
um Eu pequenino que determina o grande Eu, o Eu do si, pois o que se é não é resultado de uma
pulsão, mas de todo o conjunto pulsional em seus conflitos, o Eu como máscara do si não é um
reflexo das pulsões em domínio, mas o reflexo da interação de todas as pulsões. Na citação
anterior, as partes destacadas apontam para o que é o conhecimento do si: a autoexperimentação
humana. Apenas a pessoa que se assume como um si e se vivencia dessa forma, não mais como
um sujeito, pode estar realmente aberta para a transformação e para o fazer-se e disciplinar-se,
como fez Goethe consigo. Retomando brevemente a discussão do primeiro capítulo, é muito
difícil para qualquer ser humano que foi educado nos moldes da educação civilizadora pensar a si
mesmo como um si e não um sujeito, pensar a si mesmo como uma multiplicidade, onde tudo é
periferia e nada é centro e que quando algo tenta tornar-se centro a periferia ameaça engoli-lo.
Por isso, quando se pensa em tal situação, ainda se imagina um sujeito vindo à tona do caos
pulsional e comandando esses processos, assegurando que os ensaios consigo aconteçam,
assegurando que a diferença venha sempre à tona, mas uma diferença que é conduzida já não é
diferença. Nessa nova realidade pulsional que é a do homem superior, do homem que se tornou o
que é, o sujeito já não tem importância alguma, o todo pulsional abdica da máscara. Como o
tornar-se o que se é não é um movimento evolutivo pensado darwinianamente, ele não precisa de
um ponto arquimediano de apoio, o que torna o sujeito ainda menos importante para a totalidade
pulsional, o sujeito e sua consciência não são mais o ponto central da manifestação das pulsões
no mundo, logo, são relegados a segundo plano.
Apesar de toda a profundidade e caótica multiformidade da proposta nietzscheana do
tornar-se o que se é, esse acontecimento, que só é alcançado nos últimos degraus da tipologia dos
tipos superiores, como última possibilidade de automodelação e constituição, representa também
o limite da educação. A perspicácia de Nietzsche joga o leitor em uma encruzilhada, pois apesar
dos esforços que qualquer um faça, apesar da intensidade de forças que estejam em jogo no
interior de cada um na forma de conflito pulsional, “O homem apenas se torna o que ele é, apesar
da educação (Erziehung), da instrução (Unterricht), do meio, do acaso e dos acidentes. Não se é

181
livre para ser o que não se é.” (FREZZATTI, 2004, p. 127). Inicialmente, isso soa tautológico: é
claro que alguém só pode se tornar o que é, assim como é claro que alguém não pode se tornar o
que não é; não é dado a um humano tornar-se um cachorro, por exemplo. Mas não há aqui um
problema tautológico, e, se isso parece simples, suas implicações são terríveis: aquele que se
torna o que é descobre, por fim, o limite da educação e da autoeducação; não é dado ao ser
humano realmente tornar-se diverso, a despeito de seus esforços, ele nunca poderá ser outra coisa
que não um conjunto pulsional, e qualquer esforço por modificar isso provavelmente o eliminará.
A educação não é forte o suficiente para tornar uma pessoa outra coisa, nem a educação para a
cultura dos tipos superiores ou inferiores, nem mesmo a deseducação civilizatória que tenta
castrar a diversidade pulsional. Não é dado ao humano tornar-se algo que não é humano, que está
para além do humano (Übermensch). Desse modo, o além-do-homem nietzscheano não é um tipo
humano, não está na tipologia e não pode ser alcançado, remanescendo como um projeto, uma
parábola educativa, mas não como algo alcançável.
Se neste capítulo se tratou de uma educação possível, a educação para a mobilidade
pulsional e a autoexperimentação humana, percebe-se que há no pensamento do filósofo uma
educação impossível, que se descortina aos olhos do leitor por meio da maior proposta educativa
de Nietzsche: o tornar-se o que se é. Essa educação impossível que tem seu fulcro no além-do-
homem é o que se tratará no capítulo seguinte.

182
IV – Do além-do-homem ao eterno retorno

Nas discussões feitas até aqui acerca da tipologia nietzscheana, evitou-se, o quanto
possível, evocar uma das figuras mais recorrentes na obra filosófica de Nietzsche: o além-do-
homem. Ele é complexo demais para ser tratado em capítulo no qual não fosse o ponto central,
pois, na própria obra de Nietzsche, o status do além-do-homem não é suficientemente claro,
figurando de maneiras distintas em períodos diferentes da obra do filósofo.
Neste capítulo discutir-se-á a figura do além-do-homem, vinculando sua existência ao
eterno retorno e seu peso educativo. Como se viu no capítulo anterior, há, no pensamento de
Nietzsche, uma educação possível de ser alcançada e realizada, aquela para a criação dos tipos
superiores e aquela para a criação dos tipos inferiores. Ao se falar de uma educação impossível e
relacioná-la com o além-do-homem, quer-se, com isso, mostrar o caráter inatingível dessa figura
dentro da obra de Nietzsche; afirmação que necessitará da análise de pontos explicitamente em
contrário nos livros do filósofo e também na literatura subsidiária de seus comentadores e
estudiosos.
É claro que essa afirmação tem um peso determinante: se o além-do-homem nunca foi
alcançado, como se verá adiante nas palavras de Zaratustra, como foram sempre alcançados os
tipos superiores, e mais ainda os tipos inferiores, então, qual o papel do além-do-homem no
pensamento de Nietzsche?
O capítulo será dividido do modo mais didático e acessível possível, porém algumas
discussões e trechos citados serão retomados em momentos diferentes, pois os assuntos
abordados guardam entre si relações quase orgânicas, tornando bastante difíceis as análises
separadas. Sua primeira parte traçará um histórico do termo além-do-homem na obra de
Nietzsche e alguns problemas relativos à sua tradução, bem como o status do além-do-homem ao
longo dos livros de Nietzsche, incluindo suas obras publicadas; as preparadas para a publicação,
mas publicadas apenas após sua morte, e também os fragmentos não publicados e não destinados
a publicação.
A segunda parte do capítulo assumirá determinada noção de além-do-homem, que parece
ao autor deste trabalho a que, efetivamente, melhor reflete a seletividade de tal conceito e sua
profundidade filosófica. Uma vez tal noção assumida e explicitada, mostrar-se-á como essa figura

183
“sobre-humana” permanece inatingível mesmo a Zaratustra. Ainda nessa segunda parte, discutir-
se-á outro elemento fundamental para a compreensão do além-do-homem, que está na raiz de sua
constituição: o eterno retorno. Serão discutidas as diversas interpretações dadas ao eterno retorno,
que vão desde o imperativo ético até a tese cosmológica; também será demonstrada a inexistência
de incompatibilidades entre o eterno retorno e o além-do-homem como veem alguns intérpretes.

1 – A origem do além-do-homem

Embora a palavra além-do-homem já tenha aparecido algumas vezes no texto, somente


agora se pretende discutir tal conceito, e, consequentemente, a palavra em si. Além-do-homem é
uma das possíveis traduções para a palavra alemã Übermensch, vocábulo composto pela
preposição über, de espectro semântico bastante vasto, mas que traz, na maior parte de suas
ocorrências no dicionário, o sentido de direção, em especial direção ascendente. O substantivo
Mensch, por sua vez, equivale à palavra “humano”, mas também traduzível por homem, pessoa,
indivíduo, ser humano. Em uma tradução literal, ter-se-ia “além-do-humano” em vez de além-do-
homem. Todavia, para não aumentar ainda mais a polissemia das traduções do mesmo vocábulo,
que muitas vezes complica e dificulta desnecessariamente o acesso aos textos e seus conceitos,
utilizar-se-á o segundo termo, por já ser bastante usado na literatura especializada do Brasil,
embora não seja a tradução mais popular.
A tradução mais comum no Brasil é super-homem, popularizada, entre outros motivos,
por ser a adotada pelo maior grupo de estudos e discussões acerca do pensamento do filósofo no
país, o Grupo de Estudos Nietzsche (GEN), da Universidade de São Paulo. 124 Embora tal
tradução não seja incorreta, há nela dois problemas: o primeiro é que, ao traduzir über por super,
perde-se a ideia central da preposição alemã, que é a direção ascensional, e, consequentemente, a
ideia de algo que está para além do homem, que não é o homem, nem mesmo o homem
aperfeiçoado, mas algo além do homem. Em um fragmento do mesmo período de Assim falou
Zaratustra, Nietzsche afirmou que:

124
Outro fator decisivo foi a utilização do termo pelo tradutor Paulo César de Souza, responsável pela tradução das
obras de Nietzsche publicadas pela Companhia das Letras, exceção feita ao livro O Nascimento da Tragédia, cuja
tradução é devida a J. Guinsburg.

184
O homem é o não animal125 (Unthier) e além-do-animal (Überthier), o homem superior é
o não homem (Unmensch) e além-do-homem (Übermensch): eles se pertencem. 126
(NIETZSCHE, KSA XII, p. 426, 9[154]. Tradução minha).

Percebe-se pelo texto acima que a conotação da preposição über em Überthier é a mesma
em Übermensch. Todavia, nesse caso, não faria sentido algum traduzir Überthier por
“superanimal”, pois, com isto, se perderia o sentido do texto nietzscheano, que não é afirmar que
o homem é um animal poderoso ou mais desenvolvido, mas algo para além do animal, algo
propriamente humano; o mesmo vale para o Übermensch, ele não é um super-homem, um
homem poderoso ou superdesenvolvido, mas algo para além do homem. O segundo problema
ligado à tradução de Übermensch como super-homem é de menor importância, porém, não
insignificante: tal tradução faz ecos desagradáveis com o super-herói das histórias em quadrinhos
de mesmo nome, e, de fato, não se quer confundir a figura nietzscheana com o super-herói que
usa as cores da bandeira norte-americana.
Os problemas relativos à tradução do termo Übermensch ocorrem também em outras
línguas. Em inglês, por exemplo, há duas versões, que repetem o problema português, o próprio
super-homem (superman) e outro equivalente, porém, de forma mais exata ao além-do-homem
(overman). Em francês e espanhol utiliza-se, com maior frequência, respectivamente surhomme e
superhombre (SOUZA, Paulo César. Apud NIETZSCHE, 1995).
Walter Kaufmann afirma que Nietzsche não foi o responsável pela criação do termo, que
data, pelo menos, do século II a.C.:

Primeiro de tudo, pode-se notar que Nietzsche não cunhou a palavra além-do-homem
(Übermensch). O hyperanthropos pode ser encontrado nos escritos de Luciano, no
segundo século d.C. – e Nietzsche, como um filólogo clássico, tinha estudado Luciano e
fez referências frequentes a ele em sua Philologica.127 Em alemão, a palavra tinha sido
usada por Heinrich Müller (...), por Herder, por Jean Paul – e por Goethe (...). 128
(KAUFMANN, 1960, p. 266-7. Tradução minha).

125
O vocábulo “Unthier”, cuja grafia atual é “Untier”, também pode ser traduzido como monstro. Outra tradução
adequada seria “inanimal”, pois o prefixo “un" admite tal tradução. Ter-se-ia, então, que o homem é o inanimal e o
além-do-homem é o inumano, porém evitou-se esta tradução pelo peso semântico que inumano carrega no português
brasileiro, sempre associado a “desumano” no sentido de cruel.
126
Der Mensch ist das Unthier und Überthier; der höhere Mensch ist der Unmensch und Übermensch: so gehört es
zusammen.
127
Coleção de trabalhos filológicos de Nietzsche, em sua maioria anteriores às suas publicações filosóficas.
128
First of all, one may note that Nietzsche did not coin the word Übermensch. The hyperanthropos is to be found in
the writings of Lucian, in the second century A.D. – and Nietzsche, as a classical philologist, had studied Lucian and
made frequent reference to him in his philologica. In German, the word had been used by Heinrich Müller (…), by
Herder, by Jean Paul – and by Goethe (…).

185
Na sequência do texto, Kaufmann dá a entender que a primeira ocorrência do termo além-
do-homem na obra de Nietzsche deu-se em A gaia ciência, §143, nos seguintes termos:

(...) A invenção de deuses, heróis e super-homens de toda espécie, e também de quase-


homens e sub-homens, de fadas, anões, sátiros, demônios e diabos, foi o inestimável
exercício prévio para a justificação do amor-próprio e da soberania do indivíduo (...).
(NIETZSCHE, GC, p. 156. Grifo meu).

Embora a tradução em português apresente o termo super-homens, que, como se viu, é


129
geralmente utilizado para traduzir o termo alemão Übermensch, a palavra utilizada
originalmente por Nietzsche foi Uebermenschen. Apesar da semelhança, há uma pequena
diferença na grafia de ambas: neste caso o prefixo über foi substituído por ueber. Oliveira Júnior,
comentando afirmação semelhante de Roberto Machado a respeito da primeira ocorrência do
termo “além-do-homem” nas obras de Nietzsche como sendo a supracitada seção de A gaia
ciência, afirma a incorreção da tradução de Uebermenschen por super-homens, sugerindo como
tradução o termo “sobre-humanos”.
Apesar de útil, a tentativa de Oliveira Júnior é dúbia, haja vista que o autor não oferece
informação sobre a origem de tal tradução, uma vez que a palavra Uebermenschen não consta em
nenhum dos dicionários alemães consultados, nem mesmo seu radical ueber, e mesmo na edição
crítica das obras completas de Nietzsche (KSA) a palavra aparece esta única vez. Difícil saber,
assim, qual é sua origem. De toda sorte, o fato de Nietzsche ter variado a grafia pode significar
diversas coisas, entre elas a possibilidade de que o autor não queria, naquele momento, utilizar o
termo além-do-homem, a não ser em um sentido muito específico, como o que o filósofo daria à
palavra em sua obra seguinte, Assim falou Zaratustra.
É certo que, se a expressão além-do-homem não aparece em A gaia ciência, obra de 1882,
os fragmentos do período de elaboração da mesma já indicam o fato de Nietzsche ter
“descoberto” o além-do-homem; é o que se percebe no texto a seguir, escrito entre novembro de
1882 e fevereiro de 1883: “Eu quero ensinar às pessoas o sentido das suas vidas: que é o além-
do-homem.” 130 (NIETZSCHE, KSA X, p. 225, 5[28]. Tradução minha). Essa passagem, do
período imediatamente posterior à publicação de A gaia ciência, já mostra qual será, por um bom

129
Nesse caso, por se tratar de plural, tem-se Übermenschen.
130
Ich will die Menschen den Sinn ihres Lebens lehren: welches ist der Übermensch.

186
tempo, a ideia de Nietzsche sobre o além-do-homem. Dessa forma, é possível confirmar que a
origem da expressão nas obras de Nietzsche não seja A gaia ciência, e sim Assim falou
Zaratustra, onde a expressão aparece logo no prefácio.

1.1 – O além-do-homem nos livros e notas de Nietzsche

Se é em Assim falou Zaratustra que o termo é mencionado pela primeira vez, é também
ali que ele foi mais empregado, aparecendo posteriormente de modo bastante escasso nas demais
obras de Nietzsche, seja as que o autor escreveu e publicou (Além do bem e do mal, onde o termo
não aparece uma vez sequer, a não ser na forma do adjetivo übermenschliche; A genealogia da
moral, onde aparece apenas uma vez; O caso Wagner, onde não há registro do termo), seja nas
obras elaboradas, mas não publicadas, que vieram a público pelos esforços conjuntos dos amigos
e da irmã (O crepúsculo dos ídolos, onde o termo aparece apenas uma vez; O anticristo, onde
também aparece apenas uma vez; e por fim a autobiografia de Nietzsche, onde há maior
incidência do termo, aparecendo seis vezes, sendo quatro no capítulo destinado a discutir a obra
Assim falou Zaratustra e três apenas como citações desse livro). A palavra aparece mais quatro
vezes nas formas adjetivas übermenschlich, übermenschlichen, übermenschlicher.
Nos fragmentos não publicados, a situação não é diferente, aparecendo o termo
principalmente nos diversos rascunhos elaborados para a obra Assim falou Zaratustra, 93 vezes e
outras sete nas formas adjetivas. Nas obras publicadas, sua incidência diminui bastante após o
período de Assim falou Zaratustra: quatro vezes no período de 1886 a 1889 e outras nove nas
formas adjetivas.
Talvez cause estranheza ao leitor131 a pouca incidência de um termo tão importante da
filosofia de Nietzsche em suas obras, mas não é de se espantar, pois o mesmo se dá com outros
dois termos fundamentais da filosofia madura de Nietzsche: o eterno retorno do mesmo, que
aparece 39 vezes, sendo a maioria nos fragmentos não publicados (31) e o restante dividindo-se
entre Assim falou Zaratustra (6), Crepúsculo dos Ídolos (1) e Ecce Homo (1). Já a expressão
amor fati aparece apenas nove vezes, a maior parte (5) nos fragmentos.

131
À primeira vista pode parecer que 93 aparições não podem ser consideradas como baixa incidência, porém, se
comparadas com palavras de menor importância na filosofia de Nietzsche, como por exemplo, o verbo comer (essen),
que aparece 77 vezes, ou o substantivo vaca (Kuh), que entre formas singulares e plurais aparece 38 vezes, percebe-
se que, de fato, a incidência do termo Übermensch é baixa.

187
É difícil, então, compreender o real papel do conceito além-do-homem na filosofia de
Nietzsche, dada a grande importância que o filósofo atribuiu a ele e o pouco espaço que lhe deu.
Isso levou Leiter a afirmar, sobre o além-do-homem, que:

Infelizmente, ele recebeu muito mais atenção por parte de comentadores do que ele
merece: o tipo superior de ser humano (um Goethe ou um Nietzsche) é mais importante
para a compreensão de Nietzsche do que a hiperbólica e muitas vezes obscura retórica de
Zaratustra sobre o Übermensch.132 (LEITER, 2002, p. 116. Tradução minha).

Leiter engana-se quanto à importância do conceito para a filosofia do pensador alemão,


mas aponta para um problema de significativa relevância quando afirma que os tipos superiores
são mais importantes para a compreensão do pensamento de Nietzsche do que o além-do-homem.
A ideia de Leiter chama a atenção para um problema que precisa ser analisado: o status do além-
do-homem e, principalmente, sua relação com os tipos superiores; pois quando Leiter os cita em
registros tipológicos distintos, faz alusão à ideia que Nietzsche manifestou em Assim falou
Zaratustra sobre o além-do-homem como distinto dos tipos superiores, mas que, ao que parece,
foi alterada posteriormente, pelo menos uma vez.

1.1.1 – O além-do-homem em Assim falou Zaratustra: o atingível inatingido

A ideia do além-do-homem é bastante indeterminada na obra Assim Falou Zaratustra: um


livro para todos e para ninguém. Ali, o além-do-homem aparece ora como algo atingível e
realizado, ora como algo atingível, porém, até então, não realizado. O livro inicia-se com o
personagem Zaratustra abandonando sua caverna, na qual viveu por dez anos, e descendo ao vale
em busca dos homens. Isso se dá nas seções um e dois do Prólogo de Zaratustra. E embora a
primeira aparição do termo além-do-homem se dê na seção três da mesma parte, as duas
primeiras seções já trazem conceitos ou ideias que podem ser vistas em associação com o além-
do-homem, conforme se vê a seguir:

132
Unfortunately, it has received far more attention from commentators than it warrants: the higher type of human
being (a Goethe or a Nietzsche) is more important for understanding Nietzsche than the hyperbolic, and often
obscure, Zarathustrian rhetoric about the Übermensch.

188
Vê! Esse cálice quer esvaziar-se novamente, e Zaratustra quer novamente tornar-se
homem.133 (NIETZSCHE, KSA IV, Za – Prólogo 1, p. 11. Tradução minha),

Mudado está Zaratustra, Zaratustra tornou-se uma criança (...).134 (Ibidem, p. 12).

Na primeira passagem, se Zaratustra quer tornar-se novamente homem, é porque ele


deixou de sê-lo. É certo que se poderia dizer que ele, no período vivido no isolamento em sua
caverna, decaiu em um tipo inferior, porém os tipos inferiores, assim como os superiores, são
tipos humanos, o que, ao que tudo indica, não é o caso de Zaratustra; além disso, o prólogo não
permite tal interpretação: se Zaratustra não é mais homem, o que sobra é ele ter se tornado o
além-do-homem.
A segunda passagem é menos óbvia e traz um escolho interpretativo: pelo trecho citado,
tem-se outro indício de que o além-do-homem foi alcançado em Zaratustra, todavia, as palavras
não são de Zaratustra, mas de um santo com quem o protagonista se encontra na floresta, ao
descer de sua caverna. Não é recomendável, porém, tomar a afirmação dele sobre Zaratustra tão a
sério, afinal este reconhece no santo um devoto do deus morto, que não percebeu sequer que tal
deus havia morrido; logo, sua percepção sobre Zaratustra também pode ser incorreta.
Na terceira seção, Zaratustra chega à cidade mais próxima e faz sua primeira pregação do
além-do-homem, afirmando, entre outras coisas, que este é o sentido da terra; e embora todo o
discurso tenha um tom evolucionista,135 o além-do-homem ali é ensinado como o sentido da terra
e o homem como algo que deve ser superado:

Eu vos ensino o além-do-homem. O homem é algo que deve ser superado. O que fizeste
para superá-lo? (...)
O além-do-homem é o sentido da terra. Que sua vontade diga: que o além-do-homem seja
o sentido da terra!136 (Ibidem, p. 14).

133
Siehe! Dieser Becher will wieder leer werden, und Zarathustra will wieder Mensch werden.
134
Verwandelt ist Zarathustra, zum Kind ward Zarathustra (…).
135
Zaratustra afirma que os homens percorreram o caminho que leva do verme ao homem, mas que eles ainda têm
muito do verme, e fala que muitos homens foram macacos e que muitos continuam sendo. Apesar de uma possível
interpretação evolucionista, fica mais patente, quando Zaratustra afirma que alguns continuam sendo macacos, ou
tendo muito do verme, que se trata de ironia.
136
Ich lehre euch den Übermenschen. Der Mensch ist Etwas, das überwunden werden soll. Was habt ihr gethan, ihn
zu überwinden? (…).

189
Essa nova citação parece contradizer as anteriores: se o homem é algo que deve ser
superado, e essa superação dar-se-á em favor do além-do-homem, então ele ainda não foi
superado, nem mesmo em Zaratustra. Se a vontade deve dizer “que o além-do-homem seja o
sentido da terra”, é porque ele ainda não o é. O além-do-homem como algo ainda não atingido é a
visão corrente do restante da obra, pois em suas andanças o que faz Zaratustra é ensinar o além-
do-homem e profetizar sua chegada,137 a ponto mesmo de afirmar que:

Nunca houve até agora um além-do-homem. Nus eu vi ambos, o maior e o menor dos
seres humanos. Eles ainda são muito semelhantes entre si. Na verdade, mesmo o maior, eu
achei – demasiado humano! 138 (NIETZSCHE, KSA IV, Za – Dos Sacerdotes, p. 119.
Tradução minha).

Zaratustra evoca as duas figuras tipológicas conhecidas, os tipos inferiores e superiores,


em seguida afirma a semelhança entre ambos, o que confirma a ideia defendida até aqui, de que
não há diferença, a não ser de grau, entre eles. Afirma que mesmo o maior entre os maiores ainda
é apenas humano, e tudo isso para justificar a afirmação com a qual abre a citação: nunca houve
um além-do-homem.
Essa afirmação sela a posição e o status do além-do-homem em Assim falou Zaratustra.
Daí em diante as pregações do além-do-homem diminuem sensivelmente, pois Zaratustra percebe
que, mais do que pregá-lo e anunciá-lo, deve descobrir como alguém se torna aquilo que não é,
ou seja, como um homem se torna o além-do-homem, momento no qual a personagem,
suspendendo suas pregações, começará a viver as situações que o colocarão face a face com a
possibilidade de tornar-se o além-do-homem.
Deste modo, tem-se que, nessa obra, o além-do-homem é algo alcançável, porém não
alcançado, e, o mais importante: esse além-do-homem é distinguido claramente dos tipos
superiores, seja no trecho anterior, seja na parábola Das três metamorfoses, na qual Zaratustra
compara os tipos inferiores e os superiores ao camelo e ao leão respectivamente, e, para
simbolizar o além-do-homem, evoca a imagem da criança. Resta perceber agora como o mesmo
conceito sofre rápida transformação nas obras seguintes.

137
Isso vai até o primeiro contato de Zaratustra com o eterno retorno, que se dá no início da segunda parte, momento
em que ele desloca sua pregação do além-do-homem para o eterno retorno.
138
Niemals noch gab es einen Übermenschen. Nackt sah ich Beide, den grössten und den kleinsten Menschen: —
Allzuähnlich sind sie noch einander. Wahrlich, auch den Grössten fand ich — allzumenschlich!

190
1.1.2 – O além-do-homem nas obras posteriores a Assim falou Zaratustra

Após Assim falou Zaratustra, o além-do-homem só torna a aparecer em A genealogia da


moral, nas últimas linhas da seção 16 da primeira dissertação. Passagem essa que mostra uma
nova formulação no sentido do além-do-homem, como se vê a seguir:

(...) Como uma última indicação do outro caminho surgiu Napoleão, o mais único e mais
tardio dos homens, e com ele o problema encarnado do ideal nobre enquanto tal –
considere-se que problema é este: Napoleão, esta síntese de inumano (Unmensch) e sobre-
humano... (Übermensch). (NIETZSCHE, GM II, p. 45).

Como mostrado em capítulo anterior deste trabalho, Nietzsche sempre tomou Napoleão
como um exemplo dos tipos superiores. Todavia, nessa passagem, ele é associado ao termo além-
do-homem, que o tradutor Paulo César Souza prefere grafar como “sobre-humano”. Mas, se
Napoleão é o além-do-homem, então o além-do-homem não apenas é alcançável, como já foi
alcançado e realizado em Napoleão. Restaria saber se com tal comparação Nietzsche rebaixa o
sentido de além-do-homem, em relação àquele que predomina em Assim falou Zaratustra, ou se,
por outro lado, o filósofo está afirmando que Napoleão superou a condição humana e tornou-se
um ser realmente sobre-humano, tornou-se o próprio além-do-homem.
Mediante tal passagem de A genealogia da moral, Walter Kaufmann afirma que Napoleão
não podia ser o além-do-homem de Nietzsche:

No final, entretanto, Nietzsche não considerava Napoleão um além-do-homem. Na


Genealogia, ele chamou Napoleão de “esta síntese de inumano (Unmensch) e sobre-
humano (Übermensch)”, evidentemente [Nietzsche – VS] não se encantava com as
qualidades desumanas de Napoleão. E nas notas de A vontade de poder139 encontra-se esta
frase explicativa sobre Napoleão: “Ele mesmo, porém, havia sido corrompido pelos meios
que teve de empregar e perdeu a nobreza de seu caráter”.140 (KAUFMANN, 1960, p. 273.
Tradução minha).

139
Pretenso livro de Nietzsche, na verdade o filósofo elaborou um plano para escrevê-lo, mas o abandonou,
dividindo o que seriam alguns de seus capítulos nas obras Crepúsculo dos Ídolos e O Anticristo. Após a morte do
filósofo, sua irmã publicou uma coletânea de anotações sob o título A vontade de poder. Alguns textos presentes
nesse livro têm sua veracidade questionada; todavia, o texto mencionado por Kaufmann encontra-se na KSA X,
7[27], p. 251.
140
In the end, however, Nietzsche did not consider Napoleon an Übermensch. In the Genealogy he called him “this
synthesis of Unmensch and ÜBermensch”, evidently not charmed by Napoleon’s inhuman qualities; and in the notes
of The Will to Power one finds this explanatory statement about Napoleon: “he himself, however, had been
corrupted by the means which he had to employ, and had lost the nobilityi of this character.

191
Se a única justificativa que Kaufmann tem para negar o status de além-do-homem a
Napoleão é aquela citação de Nietzsche, o argumento perde sua validade, pois o texto é do
período de 1883-4, anterior a A genealogia da moral, escrita em 1887. Outro texto de Crepúsculo
dos ídolos, que toma César Bórgia como um além-do-homem, contradiz ainda mais a afirmação
de Kaufmann, embora lance nova luz sobre o problema. No trecho referido, Nietzsche analisa
comentários apresentados em um jornal sobre uma de suas obras, quando afirma:

(...) Sobretudo me instaram a refletir sobre a “inegável superioridade” de nossa época no


julgamento moral, o progresso realmente obtido nesse ponto: comparado a nós, um César
Bórgia não poderia absolutamente ser apresentado como um “homem mais elevado”, uma
espécie de super-homem141 (NIETZSCHE CI, p. 85. Grifo meu).

Ao afirmar que César Bórgia é também uma espécie de além-do-homem, e,


principalmente, ao dizer que ele é um homem mais elevado, é possível compreender que
Nietzsche passou a usar o termo além-do-homem como um sinônimo para os tipos superiores, ao
contrário do que fez em Assim falou Zaratustra. Em Além do bem e do mal, Nietzsche chamou
César Bórgia de animal de rapina (p. 95, §197), mas os animais de rapina, a exemplo da besta
loura, são tipos superiores; afinal, um dos animais de Zaratustra é rapinante.
César Bórgia é visto como um tipo superior, como um “homem mais elevado”, e o ser
elevado é tornado, então, sinônimo do além-do-homem. Note-se que Nietzsche não diz que César
Bórgia é “o” além-do-homem, ou “um” além-do-homem, mas sim uma espécie de além-do-
homem. Se César Bórgia é uma espécie de além-do-homem, por ser um tipo superior, pode-se
então compreender a afirmação de Nietzsche sobre Napoleão sob o mesmo registro: Napoleão é
um tipo de além-do-homem, ao contrário da suposição de Kaufmann.
O além-do-homem é mencionado também em O Anticristo, em um registro bastante
parecido com o encontrado em Crepúsculo dos ídolos:

Num outro sentido se acha um contínuo êxito de casos particulares, nos mais diversos
lugares da Terra e nas mais diversas culturas, nos quais um tipo mais elevado realmente se
manifesta: algo que, em relação à humanidade como um todo, é uma espécie de super-
homem. Tais casos felizes de grande êxito sempre foram possíveis e talvez sempre serão.
E tribos, estirpes, povos inteiros podem, em algumas circunstâncias, representar um tal
acerto. (NIETZSCHE, AC, p. 12. Grifo meu).

141
Lembrando que o tradutor das obras aqui tomadas como referência, a edição da Companhia das Letras, elege o
termo super-homem, ou sobre-humano, como os mais adequados para traduzir Übermensch.

192
Aqui também o além-do-homem é comparado ao homem superior, pois Nietzsche
menciona-o no registro comunitário, muito semelhante a outros registros nos quais liga o homem
superior à comunidade na qual ele surgiu. É o caso do curto aforismo de Além do bem e do mal:
“Um povo é o rodeio que a natureza faz para chegar a seis ou sete grandes homens”
(NIETZSCHE, ABM, p. 76). Também no Anticristo Nietzsche escreveu a respeito de “uma
espécie de super-homem”, evitando usar o artigo definido “o”.
O problema que se inicia quando Nietzsche nomeia Napoleão como um tipo de além-do-
homem, o de saber se Napoleão se elevou à condição do além-do-homem, continuando esse
conceito a indicar o sobre-humano, ou, se, em outro sentido, Nietzsche passou a usar o conceito
como um sinônimo para os tipos superiores, este problema, como se vinha dizendo, parece
encontrar fim na autobiografia de Nietzsche, onde o termo faz suas últimas aparições.
Ecce Homo parece confirmar a ideia de que o além-do-homem, após Assim falou
Zaratustra, passa a ser um mero sinônimo para os tipos superiores; é o que se pode depreender da
passagem a seguir:

(...) A palavra super-homem para designação de um tipo que vingou superiormente, em


oposição a homens “modernos”, a homens “bons”, a cristãos e outros niilistas – palavra
que na boca de Zaratustra, o aniquilador de toda moral, dá o que pensar (...).
(NIETZSCHE, EH, p. 53-4).

Ao indicar o conceito de além-do-homem como antônimo dos homens “modernos” ou dos


homens “bons”, Nietzsche deixa bastante claro que esse além-do-homem é um dos tipos
superiores. Essa é a explicação do além-do-homem oferecida por Oswaldo Giacoia. Para ele, esse:

É um conceito que só pode ser corretamente apreendido em antagonismo com a figura do


último homem, pois ele constitui um contra-ideal da tendência ao nivelamento e à
uniformização que, para Nietzsche, caracteriza a moderna sociedade de massa. Para ele, o
homem pode ser visto não como um fim – como o deseja o último homem –, mas como
um meio para conquistar possibilidades mais sublimes de existência. (GIACOIA, 2000, p.
57).

A compreensão corrente de Assim falou Zaratustra, de um além-do-homem como um ser


sobre-humano, não pertencente à tipologia nietzscheana, nem mesmo ao registro dos tipos
superiores, que, como se viu em citação anterior, ainda são demasiado humanos, permanece
isolada no contexto da obra de Nietzsche. É bastante difícil compreender o que exatamente se dá:

193
como o além-do-homem nessa obra tem um status de elevação sobre-humana, para, nas seguintes,
tornar-se apenas um tipo superior, um tipo ainda demasiado humano.

1.2 – A escolha de um além-do-homem

Como dito desde o início deste trabalho, muitas vezes o pensamento de Nietzsche põe o
pesquisador em uma encruzilhada, momento no qual, em função do perspectivismo do filósofo, a
escolha de um caminho que exclua as outras possibilidades de interpretação não se mostra
suficientemente satisfatória para a elucidação dos intrincados labirintos filosóficos,
principalmente quando se trata de uma exclusão definitiva. Todavia, a pesquisa acadêmica requer
escolhas, e aqui há de se fazer uma delas.
Como se viu, há duas interpretações possíveis para o além-do-homem, aquela de Assim
falou Zaratustra e outra presente nas obras posteriores a esse livro. Doravante abordar-se-á o
além-do-homem apenas no registro de Zaratustra, salvo explicação em contrário, pois se crê que
a assimilação do além-do-homem aos tipos superiores, além de uma das muitas armadilhas do
pensamento de Nietzsche, pode ocasionar também uma perda conceitual irreversível, porque o
além-do-homem tem um papel fundamental na educação dos tipos superiores e tal papel se
assenta justamente em seu ineditismo histórico, embora continue sendo possível e alcançável.
A escolha do além-do-homem de Assim falou Zaratustra, em detrimento da compreensão
do mesmo conceito nas obras posteriores, não é, no entanto, puramente arbitrária: a assimilação
do além-do-homem aos tipos superiores, mesmo sendo possível pelas obras posteriores, gera um
déficit conceitual bastante expressivo; ainda assim, essa é a interpretação mais corrente entre
estudiosos e comentadores do pensamento do filósofo alemão.
Nas primeiras páginas de seu livro, Oliveira Júnior já deixa clara sua adesão a tal
interpretação, ao afirmar: “Embora o termo super-homem não esteja manifesto nas obras iniciais,
trabalhei com a hipótese de serem os conceitos de gênio e espírito livre – presentes desde as
primeiras obras do filósofo – ideias embrionários do super-homem” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2004,
p. 15). O autor, porém, não se encontra sozinho nessa interpretação. Ideia semelhante é percebida
em Salter:

194
Wagner tinha passado, as ilusões iniciais sobre ele haviam desaparecido, mas a visão
transcendente de excelência sobre-humana, que Nietzsche tinha momentaneamente
identificado com aquela grande figura [Wagner – VS], sobreviveu (...). O “além-do-
homem” é uma designação poética para grandes indivíduos levados ao seu mais elevado
limite humano, para “pessoas” no sentido pleno do termo. O além-do-homem é o homem
como ele pode ser – não outra espécie, mas a nossa própria carne e sangue humano
transfigurados.142 (SALTER, 1915, p. 422. Tradução minha).

Também Bernd Magnus, um dos mais importantes intérpretes americanos do pensamento


de Nietzsche, é adepto dessa interpretação, quando atribui ao além-do-homem características
próprias dos tipos superiores:

Ser um além-do-homem, nessa interpretação, é possuir ou apresentar determinados traços


de caráter, traços que, nesse caso típico, são associados com as noções de autossuperação,
sublimação, criatividade e autoperfeição. O além-do-homem, interpretado dessa forma,
expressa a visão de Nietzsche do ideal humano, do que os seres humanos devem ou podem
ser. Nesse sentido, Nietzsche simplesmente continua o antigo projeto de articulação do
ideal humano, a concepção de perfectibilidade humana. 143 (MAGNUS, 1983, p. 633.
Tradução minha).

Mas qual o problema em se atribuir ao além-do-homem características típicas dos tipos


superiores? Ou em se tomar um como sinônimo do outro? As respostas para essas perguntas
ajudarão a compreender os tipos superiores e sua constante luta para fugir à decadência pulsional,
mantendo assim uma condição de vida baseada no conflito e multiplicidade pulsional; situação na
qual o além-do-homem assume papel deveras estratégico.
Em citação anterior, Magnus (1983, p. 633) afirma que o além-do-homem está ligado ao
fato de se “possuir ou apresentar determinados traços de caráter, traços que, nesse caso típico são
associados com as noções de autossuperação, sublimação, criatividade, e autoperfeição”. Foi
mostrado no segundo capítulo desta tese que a autossuperação e a sublimação estão ligadas à
ascendência e à decadência tipológicas, logo, são problemas ligados ao fluxo pulsional e dizem
respeito aos tipos superiores e inferiores, mas não ao além-do-homem.

142
Wagner had gone, the early illusions about him had vanished; but the transcendent vision of superhuman
excellence which Nietzsche had momentarily identified with that great figure survived (…). "Superman" is a poetic
designation for great individuals carried to their utmost human limit, for "persons" in the full sense of that term.
Superman is man as he might be-not another species, but our very human flesh and blood transfigured.
143
To be an Übermensch, on this reading, is to possess or exhibit certain traits of character, traits which in the typical
case are associated with notions of self-overcoming, sublimation, creativity, and self-perfection. Übermensch,
construed in this way, expresses Nietzsche's vision of the human ideal, of what human beings should or might be like.
In this sense Nietzsche merely continues the ancient project of articulating the human ideal, the conception of human
perfectibility.

195
De fato, o filósofo alemão, em especial em sua obra Assim Falou Zaratustra, associa a
figura do além-do-homem com a autossuperação. Porém, no tocante ao além-do-homem, ela tem
um sentido diverso do que tem quando diz respeito à autossuperação que conduz dos tipos
inferiores aos tipos superiores. Na passagem dos inferiores aos superiores, o processo nomeado
como autossuperação implica, necessariamente, acentuação do conflito pulsional, única maneira
de fazer com que a estruturação pulsional que uma pessoa é quando nasce, sua condição de
nascimento, se modifique, fazendo-a devir em um tipo diferente. A guerra e a luta são as
condições para a autossuperação tipológica na relação tipos inferiores/tipos superiores. A
autossuperação, quando diz respeito ao além-do-homem, está relacionada a outro elemento, não
mais à guerra, mas, como se verá adiante, à relação da pessoa com o tempo, mediada pelo eterno
retorno. Apenas se a autossuperação do além-do-homem fosse semelhante àquela que se dá na
relação tipos inferiores/tipos superiores, faria sentido a seguinte afirmação de Magnus:

Nenhum conjunto rigidamente especificável de traços, ou características, ou preferências


precisa seguir da caracterização de Nietzsche da além-da-humanidade.144 Por outro lado,
Nietzsche tinha alguns traços marcantes e atributos preferidos [para caracterizar a além-
da-humanidade – VS] (...). Nessa perspectiva, além-da-humanidade, a antítese do “último
homem”, não implica em virtudes específicas, em atributos pessoais específicos. Ao invés,
o que ela abrange é certa atitude para com a vida e o mundo, atitude que considera ambos
[vida e mundo – VS] dignos de repetição infinita.145 (MAGNUS, 1983, p. 634-5. Tradução
minha).

Todavia, ao afirmar que o além-do-homem é um caso particular de autossuperação, e que,


cada um se autossuperando, devém em um tipo distinto de além-do-homem, com características e
até níveis diversos, o autor ignora a diferença processual nos dois casos de autossuperação e dá
margem a duas interpretações insustentáveis em relação ao pensamento de Nietzsche, mesmo

144
O autor Bernd Magnus se recusa a utilizar qualquer tradução em inglês das expressões Übermensch (além-do-
homem) e seu correlato Übermenschlichkeit, que deriva do adjetivo Übermenschlich, e que por analogia traduziu-se
como além-da-humanidade. Todavia, o termo Übermenschlichkeit poderia, ainda, ser traduzido como sobre-
humanidade, o que, com certeza, seria mais adequado, todavia, ter-se-ia outro problema: se sobre-humanidade traduz
bem Übermenschlichkeit, o mesmo não se pode dizer de sobre-humano, em relação a Übermensch; deste modo, para
manter a padronização e não se utilizar ainda mais traduções, que sempre podem ser móvel de confusão, resolveu-se
optar pela opção unificadora “além-da-humanidade”, mesmo reconhecendo sua insuficiência e principalmente sua
inadequação estética. Para mais detalhes, conferir BERNARDO, Gustavo. Übermensch. Disponível em:
<http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/editor15.htm#*>. Acesso em: 12 set. 2010.
145
No rigidly specifiable set of traits or characteristics or preferences need follow from Nietzsche's characterization
of Übermenschlichkeit; on the other hand, Nietzsche had some strong trait and attribute preferences of his own (...).
On this view, Übermenschlichkeit, the antithesis of "the last man" does not baptize specific virtues, specific
attributes of persons; rather what it captures instead is a certain attitude toward life and world one which finds them
worthy of infinite repetition.

196
baseando sua visão de além-do-homem nas obras posteriores a Assim falou Zaratustra. A
primeira é o democratismo aplicado ao além-do-homem: se, como mostrado no capítulo anterior,
a capacidade de atingir os tipos superiores não é acessível a todos, o que se dirá do além-do-
homem, que, segundo Nietzsche, pelas palavras de Zaratustra, nunca chegou a existir? A segunda
é imaginar a existência de tipos distintos de além-do-homem, como os há no caso dos tipos
superiores, resultado necessário da suposição de Magnus, de que o além-do-homem é resultante
da autossuperação de cada pessoa.
Um dos textos mais emblemáticos de Nietzsche mostrando a diferença entre o além-do-
homem e os tipos superiores é o discurso Das três metamorfoses, presente na primeira parte de
Assim falou Zaratustra. Essa parábola mostra um além-do-homem menos democrático do que
Magnus gostaria e mostra principalmente a distância e hierarquia entre três elementos, dois deles
humanos: o camelo, símbolo dos tipos inferiores, e o leão, símbolo dos tipos superiores. Um
terceiro elemento, não mais humano, justamente por conta de sua além-da-humanidade, seria
simbolizado pela criança.

Três metamorfoses do espírito vos nomeio: como o espírito se torna camelo, e em leão se
torna o camelo, e em criança por fim o leão.
Muitos pesos há para o espírito, o espírito forte, espírito de carga, em que habita a
reverência: pelo pesado e o mais pesado demanda sua força.
O que é pesado? Assim pergunta o espírito de carga, então ele se ajoelha, como o camelo,
e quer ser bem carregado.
O que é o mais pesado, ó heróis? Assim pergunta o espírito de carga, para que eu o tome
sobre mim e minha força se alegre?
Não é isto: humilhar-se para ferir o próprio orgulho? Deixar brilhar sua loucura, para
zombar de sua sabedoria?
Ou isto é: apartar-nos 146 de nossa causa quando ela celebra sua vitória? Escalar altas
montanhas, para tentar o tentador?
Ou isto é: alimentar-se de bolotas e grama do conhecimento e pela verdade sentir fome na
alma?
Ou isto é: estar doente e mandar embora os consoladores e fazer amizade com os surdos,
que nunca ouvem o que tu queres?
Ou isto é: entrar em água suja, quando esta é a água da verdade, e não repelir de si as rãs
frias e os sapos quentes?
Ou isto é: amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma, quando ele quer nos
assustar?
Todas essas coisas mais pesadas o espírito de carga toma sobre si: como o camelo, que
carregado corre para o deserto, assim se apressa ele para o seu deserto.147 (NIETZSCHE,
KSA IV, Za – Das três metamorfoses, p. 29-30. Tradução minha).

146
Traduziu-se por apartar o verbo scheiden, de espectro semântico bastante amplo; entre seus significados estão
despedir-se e também divorciar-se.
147
Drei Verwandlungen nenne ich euch des Geistes: wie der Geist zum Kameele wird, und zum Löwen das Kameel,
und zum Kinde zuletzt der Löwe.

197
Embora o discurso de Nietzsche tenha por título Das três metamorfoses, o texto mostra
apenas duas: a transformação do camelo em leão e do leão em criança, a primeira metamorfose
não é mostrada, mas, como pressuposição, é aquela na qual o espírito tornou-se camelo. Logo nas
primeiras linhas, parece claro que o camelo, ou o espírito de carga, é uma alusão aos tipos
inferiores, em especial aqueles que vivem sob a égide da moral cristã e sua recomendação de
resignação. Todavia, conforme o texto avança, a clareza parece diminuir, pois Nietzsche parece
tributar ao camelo elementos aparentados com virtudes dos tipos superiores: força, resistência,
voluntariedade etc. Afinal, esse espírito de carga interpela mesmo os heróis e pede o maior de
todos os pesos, alusão perigosa e indicativa de uma eventual interpretação do camelo como um
tipo superior. Afinal, o maior de todos os pesos é o eterno retorno, como se mostrará adiante.148
Em seguida, Nietzsche vai mesclando elementos que parecem caracterizar um tipo
superior com outros que se referm a um tipo inferior, sempre mediados pelo “não é isto” ou “ou
isto é”, dando a entender que não há clareza sobre o status do camelo. Todavia, a atitude passiva
dele, confrontada com a do leão, próxima metamorfose do espírito, mostrará claramente que entre
o camelo e o leão há uma diferença hierárquica, estabelecida pela força pulsional, que no caso
dessa parábola é simbolizada pela capacidade de rebelião e de criação pela rebelião; este é o
diferencial do espírito de carga quando se torna leão: ele não mais suporta os pesos que lhe são
impostos, nem mesmo o peso da dúvida, carregado pelo camelo, dúvida que no texto é marcada

Vieles Schwere giebt es dem Geiste, dem starken, tragsamen Geiste, dem Ehrfurcht innewohnt: nach dem Schweren
und Schwersten verlangt seine Stärke.
Was ist schwer? so fragt der tragsame Geist, so kniet er nieder, dem Kameele gleich, und will gut beladen sein.
Was ist das Schwerste, ihr Helden? so fragt der tragsame Geist, dass ich es auf mich nehme und meiner Stärke froh
werde.
Ist es nicht das: sich erniedrigen, um seinem Hochmuth wehe zu thun? Seine Thorheit leuchten lassen, um seiner
Weisheit zu spotten?
Oder ist es das: von unserer Sache scheiden, wenn sie ihren Sieg feiert? Auf hohe Berge steigen, um den Versucher
zu versuchen?
Oder ist es das: sich von Eicheln und Gras der Erkenntnis nähren und um der Wahrheit willen an der Seele Hunger
leiden?
Oder ist es das: krank sein und die Tröster heimschicken und mit Tauben Freundschaft schliessen, die niemals hören,
was du willst?
Oder ist es das: in schmutziges Wasser steigen, wenn es das Wasser der Wahrheit ist, und kalte Frösche und heisse
Kröten nicht von sich weisen?
Oder ist es das: Die lieben, die uns verachten, und dem Gespenste die Hand reichen, wenn es uns fürchten machen
will?
Alles diess Schwerste nimmt der tragsame Geist auf sich: dem Kameele gleich, das beladen in die Wüste eilt, also
eilt er in seine Wüste.
148
O primeiro aparecimento do eterno retorno na obra de Nietzsche deu-se em A gaia ciência, na seção 341, cujo
título é justamente O maior dos pesos (Das grösste Schwergewicht).

198
pelos constantes “ou isto é”. Rebelando-se contra esses pesos, o leão cria o espaço para novas
criações:

Mas no mais solitário deserto acontece a segunda metamorfose: aqui o espírito torna-se
leão, liberdade para si quer conquistar e ser senhor em seu próprio deserto.
Seu último senhor, ele busca aqui: quer se tornar seu inimigo e de seu último deus, pela
vitória ele quer lutar com o grande dragão.
Qual é o grande dragão, ao qual o espírito não quer mais chamar de senhor e deus? “Tu
deves” chama-se o grande dragão. Mas o espírito do leão diz “eu quero”.
“Tu deves” está em seu caminho, resplandecente de ouro, animal de escamas, e em cada
escama resplandece “Tu deves!”.
Valores milenares resplandecem nessas escamas, e assim fala o mais poderoso de todos os
dragões, “todo o valor das coisas – ele resplandece em mim”.
“Todo o valor já foi criado, e todo valor criado – esse sou eu. Em verdade, nenhum “eu
quero” deve mais haver! Assim fala o dragão.
Meus irmãos, para que é preciso o leão no espírito? Em que não basta o animal de carga,
que renuncia e é reverente?
Criar novos valores – isso nem mesmo o leão pode: mas criar para si a liberdade para
novas criações – isso pode a força do leão.
Criar a própria liberdade e um sagrado não até mesmo diante do dever: para isso, meus
irmãos, é preciso o leão.
Tomar para si o direito a novos valores – essa é a mais terrível conquista para um espírito
de carga e reverente. Realmente, para ele é uma rapinagem e coisa de um animal de rapina.
Como o seu mais sagrado, amava ele outrora o “Tu deves”: agora ele precisa encontrar
ilusão e arbítrio mesmo no mais sagrado, para tomar149 sua liberdade desse amor: para essa
rapinagem é preciso o leão.150 (Ibidem, p. 30-1).

149
Aqui “tomar” traduz raube. A palavra aparece no período anterior, porém nas formas substantiva Rauben
(rapinagem) e adjetiva raubenden Thieres (animal de rapina). Como se vê, a palavra comporta diversas traduções,
todas elas, porém, trazem a ideia de roubo e usurpação.
150
Aber in der einsamsten Wüste geschieht die zweite Verwandlung: zum Löwen wird hier der Geist, Freiheit will er
sich erbeuten und Herr sein in seiner eignen Wüste.
Seinen letzten Herrn sucht er sich hier: feind will er ihm werden und seinem letzten Gotte, um Sieg will er mit dem
grossen Drachen ringen.
Welches ist der grosse Drache, den der Geist nicht mehr Herr und Gott heissen mag? „Du-sollst“ heisst der grosse
Drache. Aber der Geist des Löwen sagt „ich will“.
„Du-sollst“ liegt ihm am Wege, goldfunkelnd, ein Schuppenthier, und auf jeder Schuppe glänzt golden „Du sollst!“
Tausendjährige Werthe glänzen an diesen Schuppen, und also spricht der mächtigste aller Drachen, „aller Werth der
Dinge — der glänzt an mir.“
„Aller Werth ward schon geschaffen, und aller geschaffene Werth — das bin ich. Wahrlich, es soll kein „Ich
will“ mehr geben! “Also spricht der Drache.
Meine Brüder, wozu bedarf es des Löwen im Geiste? Was genügt nicht das lastbare Thier, das entsagt und
ehrfürchtig ist?
Neue Werthe schaffen — das vermag auch der Löwe noch nicht: aber Freiheit sich schaffen zu neuem Schaffen —
das vermag die Macht des Löwen.
Freiheit sich schaffen und ein heiliges Nein auch vor der Pflicht: dazu, meine Brüder, bedarf es des Löwen.
Recht sich nehmen zu neuen Werthen — das ist das furchtbarste Nehmen für einen tragsamen und ehrfürchtigen
Geist. Wahrlich, ein Rauben ist es ihm und eines raubenden Thieres Sache.
Als sein Heiligstes liebte er einst das „Du-sollst“: nun muss er Wahn und Willkür auch noch im Heiligsten finden,
dass er sich Freiheit raube von seiner Liebe: des Löwen bedarf es zu diesem Taube.

199
Vários elementos indicam que essa transformação representa a ascensão pulsional; a
passagem de um tipo inferior, o camelo, para um tipo superior, o leão. A figura do leão parece tão
bem escolhida como a do camelo. Se na postura do camelo se destacam características como a
força e a resistência, destaca-se também a reverência. Afinal, o camelo se abaixa para ser
montado e carregado.
A figura do leão não é apenas um símbolo de força e de rapinagem animal/natural, é
também um símbolo de domínio. E esses são os dois elementos que prevalecem na descrição de
Nietzsche: a rebelião contra a moral, muito bem marcada na oposição entre o “tu deves” e o “eu
quero”, representa não apenas a força para se opor aos valores milenares, mas também o controle
de si, típico dos tipos superiores, controle que permite que um tipo superior queira no presente e
siga querendo no futuro o que quis no passado, sinal de inteireza e harmonia pulsional no interior
do indivíduo.
Nessa oposição leão/dragão, fica caracterizado outro elemento constituinte dos tipos
superiores: o conflito. O leão quer o conflito, busca no deserto seus inimigos, quer vencê-los e
quer tornar-se senhor. Querer o conflito e buscá-lo é a condição de possibilidade para o
surgimento do leão. E, embora Nietzsche não enfoque a decadência tipológica nessa parábola, ela
é possível, como reverso da ascensão, basta que o leão fuja ao conflito.
Tem-se, até então, os dois tipos humanos muito bem caracterizados: os inferiores na
figura do camelo e os superiores na figura do leão, assim como também está caracterizado o fluxo
entre essas duas figuras. Todavia a ação de ambos é bastante limitada, ela circunscreve-se à
obediência e à desobediência. Mesmo com toda sua força, o leão pode, tão somente, rebelar-se,
mas não pode criar o novo, embora sua rebelião seja fundamental para criar o espaço para o novo,
aquilo que Heidegger nomeou como a clareira do pensamento.151
Embora a diferença entre os dois tipos seja muito bem demarcada, demarcada também é a
semelhança entre ambos: há um caminho que conduz de um ao outro, mostrando, mais uma vez,
que os tipos superiores e inferiores são distintos apenas em grau, mas não em algo que se poderia
chamar de essência. Toda a força dos tipos superiores é uma força de reação e repulsão, ambas

151
Para mais detalhes sobre o conceito de Clareira no pensamento de Heidegger, ver: HEIDEGGER, Martin.
Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução e notas: Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1997. (Os
Pensadores) e HElDEGGER, M. Seminarios de Zollikon [1965]. S. Paulo: Educ./Petrópolis: Vozes, 2001. (Editor:
Medard Boss).

200
voltadas contra seu passado e sua constante possibilidade de declínio pulsional, como afirma
Higgins:

Eu certamente concordo com Gooding-Williams que o estágio de leão é apresentado como


um sucessor desejável para o estágio de camelo. Mas é importante notar que o estágio de
leão oferece sua própria armadilha. Na medida em que o leão é absorvido no projeto de
negar os valores da tradição, o leão assim como o camelo é definido por essa tradição. O
leão inverte o sentido do conteúdo de sua herança, mas ele continua se definindo
exatamente nos termos deste conteúdo.152 (HIGGINS, 2007, p. 53-4. Tradução minha).

O leão, por sua negatividade e constante esforço por evitar a decadência, flerta
constantemente com ela e é definido por sua luta com ela, ou seja, há no leão muito do camelo,
na forma de pulsões enfraquecidas que ameaçam o domínio das pulsões fortalecidas. Por mais
forte que seja o leão, ele ainda é um tipo humano, demasiado humano, em constante luta para a
manutenção de uma condição de vida na qual haja exuberância e diversidade pulsional, mas pode,
a qualquer momento decair e tornar-se um tipo inferior, cuja condição de vida é marcada pela
diminuição do conflito pulsional em uma suposta democracia pulsional, na qual as pulsões
enfraquecidas tendem a despotencializar todo o organismo e, invertendo a lógica da vontade de
poder, conduzir a vida ao declínio.
Nietzsche anteviu uma possibilidade de mudança mais radical do que aquela que se dá
entre tipos inferiores e superiores, ou seja, anteviu uma possibilidade de transformação para além
dos limites da humanidade. Essa transformação é aquela que acontece na terceira metamorfose,
quando o leão torna-se uma criança, símbolo, nesse momento, do além-do-homem. Nietzsche
anteviu não uma humanidade transformada, mas um ser, que não é um ser humano, mas um ser
pós-humano, transformado. A marca dessa transformação pós-humana é a ausência de ligações
com o passado humano, é uma criatividade sem as amarras do ressentimento, e isso o leão não
pode fazer. Há uma criação realmente leonina: a criação do espaço no qual os novos valores
surgirão, mas o leão não é o semeador dos novos valores, este é o além-do-homem, simbolizado
pela criança. Pois, como afirma Gillespie: “O espírito destrutivo do leão, então, não é motivado

152
I certainly agree with Gooding-Williams that the lion stage is presented as a desirable successor to the camel stage.
But it is important to note that the lion stage offers its own trap. Insofar as the lion is absorbed in the project of
negating the tradition values, the lion as much as the camel is defined by that tradition. The lion inverts the valence
of the contents of his heritage, but he is still defining himself in terms of exactly those contents.

201
por amor espontâneo, mas pelo que Zaratustra chama de o espírito de vingança, o ódio ao ‘foi
assim’”153 (GILLESPIE, 2005, p. 60-1. Tradução minha).
Enganam-se os que pensam que o ódio é o antônimo do amor, se há um antônimo ao amor
é a indiferença, única força capaz de desligar aquilo que um dia esteve ligado, o ódio é uma
corrente tão forte quanto a do amor. Como a construção do leão é um ódio ao que já foi, ao “foi
assim”, ele está ligado a esse “foi assim” mais do que pensa. Apenas o além-do-homem pode
criar sem ressentimento, porque ele, em seu fazer-se, tornou o “foi assim” em “assim eu o quis,
quero e seguirei querendo”. Isso pode parecer o controle pulsional dos tipos superiores, que
seguem querendo o já querido, mas é, como se verá em breve, a assunção do eterno retorno do
mesmo, caminho único para o surgimento do além-do-homem.
E aqui se pode, por fim, justificar a escolha do além-do-homem de Assim falou Zaratustra
em detrimento do que está no restante da obra de Nietzsche: o além-do-homem como sinônimo
dos tipos superiores não antevê a criação baseada no amor e liberdade plenos, mas apenas a
criação baseada no ressentimento, falta aos tipos superiores a força para se libertar do passado
pela exata assunção e amor ao passado. Enquanto se luta contra o passado e seus significados e
implicações, não é possível amá-lo, logo se cria a partir dele, tentando dele fugir.
A criança na parábola Das três metamorfoses representa a criatividade sem ressentimentos,
representa uma educação até agora impossível, pautada em uma organização não humana, pós-
humana, além-da-humanidade do conjunto pulsional, na qual futuro e passado se unem no laço de
um eterno presente, e o ressentimento para com a vida é, por fim, superado.
O além-do-homem precisa existir como algo distinto dos tipos superiores, pois ele é o
espelho em que se miram os tipos superiores, sem ele há sempre o risco de esses tipos decaírem,
por pensarem que o trabalho está concluído e que atingiram o último grau da ascensão humana. A
ideia de um trabalho encerrado ou encerrável é um dos grandes perigos para os tipos superiores,
por isso o além-do-homem vive uma realidade sem fim, na qual não há nem escatologia nem
teleologia, mas uma constante repetição do já sido. Aquilo que Nietzsche nomeou como o eterno
retorno do mesmo é simbolizado no comportamento da criança:

Mas dizei, meus irmãos, o que pode fazer a criança, que o leão não poderia? Qual a
necessidade do rapace leão tornar-se também criança?

153
The destructive spirit of the lion thus is motivated not by spontaneous love, but by what Zarathustra calls the spirit
of revenge, the hatred of the “it was”.

202
Inocência154 é a criança e esquecimento, um novo começo, um jogo, uma roda girando por
si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim.
Sim, para o jogo do criar, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: sua vontade quer
agora o espírito, o que estava perdido para o mundo conquista para si o seu mundo155.156
(NIETZSCHE, KSA IV, Za – Das três metamorfoses, p. 31. Tradução minha).

A escolha da criança como símbolo do além-do-homem tem um sentido bastante amplo.


Além de apoiar-se no imaginário cristão que tem na criança um símbolo da inocência e da
ascensão ao reino dos céus,157 recorre também ao fragmento 52 de Heráclito, com o qual o texto
de Nietzsche guarda mais afinidade: “Tempo é criança brincando, jogando; de criança o reinado”
(HERÁCLITO, apud Os Pensadores, 1973, p. 90).
A criança é inocência no duplo sentido de não ter responsabilidade (que também traduz
Schuld) e de não ter compromissos com o que aconteceu antes dela. O esforço da educação
civilizatória é ligar essa criança ao passado, inculcar-lhe as noções morais de dívida, culpa e
responsabilidade. Mas, além de ser inocência, ou seja, além de não ter amarras morais, a criança,
símbolo do além-do-homem, é um eterno recomeço, uma roda girando por si mesma, ou seja, o
além-do-homem está intrinsecamente ligado ao eterno retorno do mesmo, apenas este pode criar
aquele, e apenas a assunção do eterno retorno do mesmo proporciona o constante “dizer-sim” à
vida.
Retomando a distinção feita no capítulo anterior, entre as nobrezas realmente existentes e
o ideal nietzscheano de nobreza, é possível afirmar que essas nobrezas também amarram ao
passado seus educandos, por meio de uma supervalorização dos feitos notáveis dos antepassados

154
Aqui “inocência” traduziu unschuld; esta é, de fato, a sua tradução mais comum, todavia ela não deixa perceber o
amplo espectro semântico da palavra unschuld, que é composta pelo prefixo de negação un- e o substantivo feminino
Schuld, que significa culpa, dívida. A palavra tem um peso especial na crítica da moral feita por Nietzsche. A
segunda dissertação de A genealogia da moral traz schuld em seu título, associada com schlechtes Gewissen, que é
má consciência. Nas primeiras seções desse texto Nietzsche se esforça por mostrar, genealogicamente, como a noção
moral/cristã de culpa surgiu da noção mercantil de dívida utilizando em tal explicação, inclusive, a passagem da
oração Pai-Nosso onde se diz “Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos os nossos ofensores”, que é
frequentemente substituída por “Perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos os nossos devedores”. A
palavra unschuld” é ainda sinônimo de virgindade e pureza.
155
Nietzsche faz uma sutil alusão à parábola evangélica do Filho Pródigo, onde um filho caçula retorna para a casa
de seu pai após viajar para uma terra distante e gastar toda sua herança. Após o retorno o pai fala para um empregado:
“este meu filho estava perdido e se achou”. Conf. Lc 15, 24.
156
Aber sagt, meine Brüder, was vermag noch das Kind, das auch der Löwe nicht vermochte? Was muss der
raubende Löwe auch noch zum Kinde werden?
Unschuld ist das Kind und Vergessen, ein Neubeginnen, ein Spiel, ein aus sich rollendes Rad, eine erste Bewegung,
ein heiliges Ja-sagen.
Ja, zum Spiele des Schaffens, meine Brüder, bedarf es eines heiligen Ja-sagens: seinen Willen will nun der Geist,
seine Welt gewinnt sich der Weltverlorene.
157
Conf. Mt 19, 13-5.

203
e da dívida para com esses antepassados. Logo, falta a educação para o além-do-homem, por isso,
essa educação permanece até hoje impossível. Não se pôde criar até agora uma educação voltada
para o além-do-homem, porque essa educação é uma experiência pessoal, que o indivíduo
experimenta no contato com o eterno retorno.

2 – O eterno retorno do mesmo e a constituição do além-do-homem

No início de sua autobiografia, Nietzsche afirma que o pensamento do eterno retorno é a


concepção fundamental de Assim falou Zaratustra, pois o eterno retorno é a forma suprema de
afirmação da vida. A partir dessa afirmação, muito se discute sobre o papel do eterno retorno e
sua relação com o além-do-homem nessa obra. Alguns comentadores afirmam que Nietzsche a
iniciou tendo no além-do-homem o seu ponto mais elevado, mas, que, enquanto desenvolvia o
livro, foi mudando seu foco, de modo que o além-do-homem vai perdendo importância conforme
o eterno retorno assoma ao plano central da obra e preenche as experiências e ensinamentos de
Zaratustra (GOODING-WILLIAMS, 2001, cap. V). Todavia, tentar compreender esses dois
conceitos basilares do pensamento de Nietzsche separadamente gera um déficit de sentido, isso
porque o além-do-homem e o eterno retorno estão estreitamente unidos: para Nietzsche, o além-
do-homem é necessário, porque apenas ele tem a energia e a capacidade criadora, como a criança
da parábola Das três metamorfoses, porém, a única maneira de se atingir o além-do-homem é o
eterno retorno, esses dois elementos estão intensamente ligados, e a experiência de Zaratustra
indica que sua aproximação com o além-do-homem se dá por meio do eterno retorno.
O eterno retorno é, sem dúvida, um dos pontos mais polêmicos e discutidos do
pensamento de Nietzsche, embora, como já foi mostrado, faça poucas aparições na obra do
filósofo. Nietzsche considerou, de fato, o eterno retorno uma de suas maiores descobertas, o
pensamento que poderia modificar toda a estrutura do mundo e da própria filosofia, como
afirmou em uma carta a seu amigo Overbeck, logo depois da conclusão da terceira parte de Assim
falou Zaratustra:

Quem pode saber o que carrego sobre mim e de que força precisaria para me suportar!
Não saberia dizer como consegui chegar a isso, exatamente – mas é possível que, pela
primeira vez, tenha tido o pensamento que divide ao meio a história da humanidade.
Esse Zaratustra é apenas prólogo, preâmbulo, vestíbulo – precisarei tomar coragem, pois,
de toda a parte, tudo vinha me desencorajar: coragem para carregar esse pensamento! Pois

204
ainda estou longe de poder dizê-lo e representá-lo. Se ele for verdadeiro, ou melhor, se
for considerado como verdadeiro – então, todas as coisas vão se modificar vão virar do
avesso, e todos os valores que prevaleceram até então serão desvalorizados. (NIETZSCHE
apud Rubira, 2008, p. 182. Grifos meus).

Um pensamento de tal magnitude, claro, despertou as mais diversas interpretações,


geralmente divididas em dois grandes grupos: as interpretações cosmológico-científicas e as
ético-existenciais. Os dois grupos de interpretações, porém, partem de um mesmo pressuposto –
Nietzsche acreditou na real existência de um eterno retorno, ou, ao menos, quis que ela fosse real
– e ignoram a parte destacada no texto acima: Nietzsche não queria que o eterno retorno fosse
verdadeiro, mas tomado como verdadeiro, ou melhor, suposto como verdadeiro.
A interpretação do eterno retorno tem outro escolho: a suposta diferença entre as diversas
enunciações da doutrina feitas por Nietzsche, em especial a que aparece em A gaia ciência, a de
Assim falou Zaratustra e as diversas variáveis presentes nos fragmentos póstumos. Explorar-se-á
agora algumas dessas interpretações mostrando sua insuficiência para tratar do problema, pois ora
cindem o pensamento de Nietzsche, ora dão ao eterno retorno características que o filósofo não
atribuiu ao mesmo.

2.1. – O status do eterno retorno

A primeira grande polêmica em torno do eterno retorno é a definição de seu status: nas
obras publicadas por Nietzsche, ou escritas para publicação, o eterno retorno é sempre visto como
tendo um peso humano, ou, como afirma Marton, existencial (MARTON, 2001, p. 90). Nos
fragmentos póstumos, porém, uma segunda possibilidade é encontrada: o eterno retorno como
uma tese cosmológico-científica ou como explicação metafísica do universo.
A primeira menção clara ao eterno retorno aparece na seção 341 de A gaia ciência, e sua
estrutura é totalmente desencorajadora de qualquer interpretação de caráter científico ou
metafísico. Escreve Nietzsche nesta seção intitulada O maior dos pesos (Das grösste
Schwergewicht):

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada
solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver
mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada
prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em

205
sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem – e assim
também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A
perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de
poeira!”. – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que
assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você
é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal
como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa,
“Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como
o maior dos pesos! Ou quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para
não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (NIETZSCHE, GC, p.
230).

Parece claro, por esse texto, que o eterno retorno tem um sentido ético, psicológico, ou
existencial, ou autoeducativo, mas nunca um sentido cosmológico ou metafísico. Tudo no texto
evoca elementos de uma experiência singular e individual, quase uma experiência mística: o
demônio, na forma do tentador, mas cuja tradição filosófica registra outro sentido no daimon de
Sócrates. A noite e a mais desolada solidão como indicativos de experiência única e singular,
fechada para qualquer espectador. E por fim o apelo à vida individual e singular de cada um:
“esta vida, como você a está vivendo”. Todos os elementos indicam uma experiência
autoeducativa, em especial as linhas finais do texto que mostram que essa ideia do eterno retorno
pesaria sobre a pessoa interpelada pelo demônio como um peso, obrigando-a a rever sua própria
vida e até que ponto tem feito algo de belo dessa vida, algo do qual não se arrependa e deseje
viver novamente, inumeráveis vezes, sem modificações.
Há mesmo um apelo educacional ao Eu do si que poderia ser traduzido em: transforme-se
e viva como se fosse único, viva de modo pleno e intenso, a fim de desejar reviver essa vida
incontáveis vezes. Esse pode ser visto, sem dúvida, como um imperativo educacional para os
tipos superiores: desejar o eterno retorno é desejar no futuro o que se desejou no passado; mas,
como já foi mostrado, os tipos superiores não são fortes o suficiente para isso, pois ainda são
humanos, demasiado humanos, por isso, se o eterno retorno for um imperativo educacional, ele é
o imperativo educacional do além-do-homem.
Esse não é, porém, o único texto no qual o eterno retorno é claramente indicado. A base
para a interpretação cosmológica é encontrada nos fragmentos não publicados, embora algumas
passagens de Assim falou Zaratustra, também evocadas como passíveis de tal interpretação,
estejam, porém, nos fragmentos – os textos mais explícitos nesse sentido.
Nietzsche tinha um grande interesse pela ciência de sua época, como afirmou Marton: “(...)
Nietzsche não despreza a contribuição que as ciências têm a oferecer. Pretende discutir as

206
questões candentes que elas então se colocam; quer tomar parte nos debates científicos de sua
época” (MARTON, 2001, p. 104). O filósofo costumava ler trabalhos e livros de divulgação
científica na área de biologia, química e física e, na tentativa de não afastar sua filosofia da
ciência de sua época, em suas anotações e rascunhos ensaiou, de fato, por diversas vezes, uma
estrutura cosmológica para o eterno retorno; todavia, depara-se novamente com o problema
metodológico de como utilizar os fragmentos não publicados.
É bastante estranho dar maior importância a textos que o filósofo escolheu não publicar
do que àqueles que ele, deliberadamente, quis que se tornassem públicos; portanto, tentar
interpretar o eterno retorno como uma hipótese cosmológica pode significar se perder da opinião
concreta de Nietzsche e investir em especulações, e até mesmo treinos retóricos do filósofo. É
claro que os fragmentos são de importância crucial, pois ajudam a compreender pontos obscuros
nas obras publicadas, e até mesmo trazem questões inéditas, todavia, no caso do eterno retorno, é
absurdo querer que os fragmentos póstumos sejam mais importantes do que os livros publicados
por Nietzsche. Ainda assim, não se pode furtar a uma análise dessa ideia cosmológica.
A maior parte dos textos com explicações cosmológicas são da década de 1880, contudo,
em uma carta a Overbeck, de 1881, o filósofo admitiu não ter conhecimentos suficientes para
levar adiante suas especulações, mencionando a vontade de se dedicar mais intensamente ao
estudo da física e da matemática (PFEFFER, 1965). A explicação cosmológica baseia-se nas
seguintes ideias, mais intuitivas e especulativas do que empíricas, do filósofo alemão: o tempo é
infinito, mas o espaço é finito e limitado. A matéria, por sua vez, ou os átomos que a constituem
são finitos e limitados como o espaço. Dessa combinação especulativa de elementos, Nietzsche
derivou sua interpretação cósmica do universo como sendo um eterno retorno: se o tempo é
ilimitado, mas a matéria e o espaço no qual ela se encontra são limitados, é de se esperar que as
combinações possíveis para a matéria limitada, em um espaço limitado, atinjam em um
determinado momento o seu limite, pois, se a matéria é limitada, suas combinações, em um
espaço limitado, também serão limitadas. Como, porém, o tempo é ilimitado, é presumível que as
combinações da matéria limitada no espaço limitado, acabem, em determinado momento, se
repetindo.
Se é possível que essas combinações venham a se repetir, nada impede que já tenham se
repetido inumeráveis vezes, conforme afirma Nietzsche em um fragmento do período de 1881:

207
O mundo das forças não é passível de nenhuma diminuição: pois senão, no tempo infinito,
se teria tornado fraco e sucumbido. O mundo das forças não é passível de nenhuma
cessação: pois senão esta teria sido alcançada, e o relógio da existência pararia. O mundo
das forças, portanto, nunca chega a um equilíbrio, nunca tem um instante de repouso, sua
força e seu movimento são de igual grandeza para cada tempo. Seja qual for o estado que
esse mundo possa alcançar, ele tem de tê-lo alcançado, e não uma vez, mas inúmeras
vezes. Assim este instante: ele já esteve aí uma vez e muitas vezes e igualmente retornará,
todas as forças repartidas exatamente como agora: e do mesmo modo se passa com o
instante que gerou este, e com o que é filho do de agora (NIETZSCHE apud RUBIRA,
2008, p. 139).

Resta saber agora o que Nietzsche entendia pela expressão “mundo das forças” (Welt der
Kräfte). Rose Pfeffer afirma que a ideia de força em Nietzsche distingui-se bastante de qualquer
teoria atômica de seu tempo, e aponta muito mais, para as contemporâneas teorias da energia, em
um conceito que, segundo a autora, descreve perfeitamente o apresentado no início desta tese
como o conceito nietzscheano de pulsão.158 Dessa forma, o que se tem é apenas um exercício
retórico de Nietzsche, no qual o filósofo tentou mostrar, a um só tempo, a validade do seu
conceito de pulsão e do eterno retorno e relacioná-los de modo aparentemente científico, mas não
como querem alguns, uma autêntica hipótese cosmológica defendida por Nietzsche e que poderia
substituir a interpretação educativa do eterno retorno.
Os defensores da hipótese cosmológica, porém, dizem encontrar também em Assim falou
Zaratustra argumentos para se justificar, e conseguem, assim, fugir ao problema metodológico de
sobrepor os fragmentos não publicados aos textos publicados. É o caso de Gillespie, que vê no
discurso Da visão e do enigma da III Parte de Assim falou Zaratustra um indício para essa
interpretação cosmológica, como afirma em seu texto:

O eterno retorno, como ele é apresentado em “Da visão e do enigma”, é uma doutrina
cosmológica que analisa o processo a partir do exterior, que de uma maneira filosófica ou,
pelo menos, apolínea, vê o eterno retorno como um processo no qual o indivíduo está
inapelavelmente envolvido.159 (GILLESPIE, 2005, p. 61-2. Tradução minha).

O texto ao qual o autor se refere é o segundo no qual o conceito de eterno retorno aparece;
claramente, é também, ao mesmo tempo, um dos textos mais complexos de toda a obra de
Nietzsche, devido à alta carga metafórica do texto. O núcleo dessa passagem de Assim falou
Zaratustra é a narração que o personagem faz a uma audiência de marinheiros de uma visão que
158
Ibidem, p. 279.
159
The eternal recurrence as it is presented in “The Vision and the Riddle” is a cosmological doctrine that looks at
the process from the outside, that in a philosophic or at least Apollinian way sees it as a process in which the
individual is ineluctably involved.

208
teve, e é nessa visão que o eterno retorno reaparece de modo claro; pelo menos outras duas vezes,
uma delas afirmada pelo inimigo de Zaratustra, o anão que ele carrega às costas durante a visão,
chamado de “espírito de gravidade”, e a outra vez anunciada pelo próprio Zaratustra, sem contar,
claro, que a visão culmina em um símbolo não oral do eterno retorno, um portal com duas
estradas correndo eternamente para trás e para frente.

Sombrio, eu caminhava recentemente no pálido crepúsculo – sombrio e duro, com os


lábios comprimidos. Não apenas um sol se pusera para mim.
Um caminho, que subia desafiadoramente por entre pedregulhos, um caminho mau,
solitário, sem ervas, sem o conforto160 sequer de arbustos: um caminho montanhoso rangia
sob o desafio de meus pés.
Mudo, caminhava sobre o ruído zombeteiro dos seixos, pisava as pedras, que faziam meu
pé deslizar: assim forçou-se meu pé para cima.
Para cima: — puxado para baixo, pelo espírito tentador,161 puxado em direção ao abismo,
pelo espírito de gravidade, meu demônio e arqui-inimigo.
Para cima: — embora ele sentasse sobre mim, meio anão, meio toupeira; aleijado;
aleijador; pingando chumbo em meu ouvido, e pensamentos de chumbo em meu
cérebro. 162 (NIETZSCHE, KSA IV, Za – Da visão e do enigma, p. 197-8. Tradução
minha).

Antes de apresentar a parte do texto onde o eterno retorno é propriamente nomeado, é


importante passar por algumas partes que lhe antecedem, de modo a poder compreender o sentido
da visão de Zaratustra e observar também o comportamento e a caracterização do outro
personagem que o acompanha nessa visão, o espírito de gravidade, pois é ele quem, no momento
seguinte, enunciará o eterno retorno pela primeira vez.

160
“Conforto” traduziu zusprach, que, embora tenha como principais definições falar, participar e tomar parte, traz
como sinônimo trösten, cuja principal tradução é conforto.
161
“Espírito tentador” traduziu Geiste zum Trotz. Na tradução da Civilização Brasileira, feita por Mario da Silva, a
expressão é suprimida, e o único adjetivo que caracterizara o espírito é “gravidade” (Geiste der Schwere). Walter
Kaufmann na tradução americana da Penguin Books opta por Upward defying the spirit that drew it downward; ele
traduz Trotz como um verbo na forma do gerúndio, defying, todavia, a palavra, grafada com letra inicial maiúscula é,
claramente, um substantivo, porém, a preposição que lhe antecede, zum, torna-a uma locução adjetiva, sendo mais
adequada a tradução aqui empregada, “espírito tentador”; soma-se a isso o fato de Zaratustra chamar, ao final do
parágrafo, esse mesmo espírito de seu demônio, e uma das características do demônio na tradição cristã é ser
justamente o espírito tentador.
162
Düster gieng ich jüngst durch leichenfarbne Dämmerung, — düster und hart, mit gepressten Lippen. Nicht nur
Eine Sonne war mir untergegangen.
Ein Pfad, der trotzig durch Geröll stieg, ein boshafter, einsamer, dem nicht Kraut, nicht Strauch mehr zusprach: ein
Berg-Pfad knirschte unter dem Trotz meines Fusses.
Stumm über höhnischem Geklirr von Kieseln schreitend, den Stein zertretend, der ihn gleiten liess: also zwang mein
Fuss sich aufwärts.
Aufwärts: — dem Geiste zum Trotz, der ihn abwärts zog, abgrundwärts zog, dem Geiste der Schwere, meinem
Teufel und Erzfeinde.
Aufwärts: — obwohl er auf mir sass, halb Zwerg, halb Maulwurf; lahm; lähmend; Blei durch mein Ohr, Bleitropfen-
Gedanken in mein Hirn träufelnd.

209
Uma visão é caracterizada por um estado alterado de consciência, e o lusco-fusco desse
momento parece bem claro pelo local no qual tal visão se dá: um caminho montanhoso e
pedregoso, solitário, cuja única companhia é, assim como em O maior dos pesos, de A gaia
ciência, um espírito caracterizado como demônio e tentador. Ou seja, os elementos que aparecem
na primeira enunciação do eterno retorno reaparecem agora, até mesmo a aranha e o luar estarão
presentes, além disto, o esforço de Nietzsche para, por meio de Zaratustra, caracterizar o mais
literariamente possível a experiência, utilizando-se de figuras como ausência de árvores ou
mesmo as pedras que rolam e fazem os pés deslizar, esse esforço mostra, novamente, uma
experiência individual e não uma cosmologia, como se vê abaixo:

“Alto anão!”, eu falei. “Ou eu ou tu! Mas eu sou o mais forte de nós dois –: tu não
conheces meu pensamento abissal! Esse – tu não poderias suportar!” –
Então, aconteceu algo que me deixou mais leve: o anão saltou-me do ombro, o curioso! E
agachou-se sobre uma pedra diante de mim. Mas havia um portal exatamente onde nós
paramos.
“Olha esse portal, Anão!”, e prossegui: “Ele tem duas faces. Dois caminhos se encontram
aqui: ninguém os percorreu ainda até o fim.
Esta longa senda para trás: ela dura uma eternidade. E aquela longa senda para frente –
isto é outra eternidade.
Eles se contradizem, esses caminhos; eles se chocam face a face: – e é aqui, nesse portal,
que eles se juntam. O nome do portal está escrito acima ‘Instante’.
Mas quem fosse adiante por um deles – e sempre adiante e sempre mais longe: acreditas,
anão, que esses caminhos se contradiriam eternamente?” –
“Tudo o que é reto mente”, murmurou o anão desdenhosamente. “Toda verdade é torta, o
próprio tempo é um círculo.”
“Tu espírito de gravidade!”, disse eu zangado, “não tornes as coisas tão leves para si
mesmo! Ou eu te deixo aí agachado, onde estás agachado, manco,163 – e eu que te trouxe
tão alto!”
“Vê”, continuei a falar, “esse instante! Desse portal instante corre uma longa, eterna senda
para trás: atrás de nós há uma eternidade.
Não é preciso, que de todas as coisas, aquilo que pode fluir,164 já tenha percorrido uma vez
essa senda? Não é preciso, que de todas as coisas, aquilo que pode acontecer, já tenha
acontecido uma vez, sido feito, transcorrido?
E se tudo já esteve aí: o que acha tu anão deste instante? Não é preciso que este portal
também – já tenha estado aí?
E não estão as coisas tão firmemente amarradas, que este instante arrasta atrás de si todas
as coisas vindouras? E assim – – ele próprio também?
Porque, de todas as coisas, aquilo que pode fluir: também por esta longa senda para frente
– uma vez mais precisa fluir! –
E esta lenta aranha, que rasteja ao luar, e este próprio luar, e eu e tu neste portal,
cochichando juntos, cochichando sobre coisas eternas – não é preciso que todos nós já
tenhamos estado aí?

163
“Manco” traduziu Lahmfuss. Aqui há implícita certa crueldade do idioma alemão, que atribui a palavra Zwerg
tanto para anão quanto para duende, gnomo etc. Desse modo, Lahmfuss diz respeito ao modo de andar dos gnomos e
duendes da mitologia nórdica, que sempre mancam.
164
“Fluir” traduziu laufen, que tem como sinônimo fliβem, que pode significar fluir.

210
– e voltar e percorrer essa outra senda, à frente, diante de nós, essa longa, arrepiante senda
– nós não devemos retornar eternamente?” –
Assim eu falei, e cada vez mais baixo: porque estava com medo dos meus próprios
pensamentos e dos pensamentos que escondiam atrás deles. Então, de repente, eu ouvi
próximo o uivo de um cão.165 (Ibidem, p. 199-201).

Os intérpretes que veem no eterno retorno uma hipótese cosmológica baseiam-se também
nos dois trechos citados para afirmar que Nietzsche tentou mostrar o eterno retorno como uma
tese cosmológica, pois, para eles, as duas sendas se encontrando no portal instante são uma
metáfora para o eterno retorno em sentido cosmológico, como se Zaratustra estivesse explicando
ao anão o funcionamento do universo. Mas, embora Zaratustra fale que no mundo tudo o que foi
será novamente, por esse mecanismo de repetição, no qual passado e futuro se encontram no
presente, no portal chamado instante, a linguagem continua sendo extremamente metafórica, e
também estão presentes nessa visão todos os elementos que anteriormente já apareciam em O
maior dos pesos: o luar, a aranha, o demônio, palavra que Nietzsche usa para caracterizar o anão.
É certo que o demônio assume, agora, uma postura aparentemente diversa da que tinha em
O maior dos pesos: lá o eterno retorno é anunciado pelo demônio, e, embora em Assim falou

165
„Halt! Zwerg! sprach ich. Ich! Oder du! Ich aber bin der Stärkere von uns Beiden —: du kennst meinen
abgründlichen Gedanken nicht! Den — könntest du nicht tragen!“ —
Da geschah, was mich leichter machte: denn der Zwerg sprang mir von der Schulter, der Neugierige! Und er hockte
sich auf einen Stein vor mich hin. Es war aber gerade da ein Thorweg, wo wir hielten.
„Siehe diesen Thorweg! Zwerg! sprach ich weiter: der hat zwei Gesichter. Zwei Wege kommen hier zusammen: die
gieng noch Niemand zu Ende.
Diese lange Gasse zurück: die währt eine Ewigkeit. Und jene lange Gasse hinaus — das ist eine andre Ewigkeit.
Sie widersprechen sich, diese Wege; sie stossen sich gerade vor den Kopf: — und hier, an diesem Thorwege, ist es,
wo sie zusammen kommen. Der Name des Thorwegs steht oben geschrieben „Augenblick“.
Aber wer Einen von ihnen weiter gienge — und immer weiter und immer ferner: glaubst du, Zwerg, dass diese Wege
sich ewig widersprechen?“ —
„Alles Gerade lügt, murmelte verächtlich der Zwerg. Alle Wahrheit ist krumm, die Zeit selber ist ein Kreis.“
„Du Geist der Schwere! sprach ich zürnend, mache dir es nicht zu leicht! Oder ich lasse dich hocken, wo du hockst,
Lahmfuss, — und ich trug dich hoch!
Siehe, sprach ich weiter, diesen Augenblick! Von diesem Thorwege Augenblick läuft eine lange ewige Gasse
rückwärts: hinter uns liegt eine Ewigkeit.
Muss nicht, was laufen kann von allen Dingen, schon einmal diese Gasse gelaufen sein? Muss nicht, was geschehn
kann von allen Dingen, schon einmal geschehn, gethan, vorübergelaufen sein?
Und wenn Alles schon dagewesen ist: was hältst du Zwerg von diesem Augenblick? Muss auch dieser Thorweg nicht
schon — dagewesen sein?
Und sind nicht solchermaassen fest alle Dinge verknotet, dass dieser Augenblick alle kommenden Dinge nach sich
zieht? Also — — sich selber noch?
Denn, was laufen kann von allen Dingen: auch in dieser langen Gasse hinaus — muss es einmal noch laufen! —
Und diese langsame Spinne, die im Mondscheine kriecht, und dieser Mondschein selber, und ich und du im
Thorwege, zusammen flüsternd, von ewigen Dingen flüsternd — müssen wir nicht Alle schon dagewesen sein?
— und wiederkommen und in jener anderen Gasse laufen, hinaus, vor uns, in dieser langen schaurigen Gasse —
müssen wir nicht ewig wiederkommen? —“
Also redete ich, und immer leiser: denn ich fürchtete mich vor meinen eignen Gedanken und Hintergedanken. Da,
plötzlich, hörte ich einen Hund nahe heulen.

211
Zaratustra o demônio/anão não faça o anúncio, ele torna a repetir as palavras ou ideias do eterno
retorno, momento em que é repreendido por Zaratustra, que lhe diz para não tornar as coisas tão
leves para ele mesmo. Mas como pode ser isso? Aparentemente o anão está apenas chancelando
as palavras de Zaratustra, de que tudo retorna. Mas a estrutura da narrativa mostra uma singular
diferença entre a noção do eterno retorno do anão e a introduzida por Zaratustra: a atitude.
O anão afirma o eterno retorno como forma de fugir a ele, como se dissesse: “tudo bem,
ele existe, sigamos adiante”. Forma de não ser impregnado por ele, de manter uma relação de
conveniente distância; e é isso que Zaratustra repreende no anão, aquele quer ser impregnado por
tal pensamento, por isso detém-se e analisa o eterno retorno em suas diversas possibilidades: o
caminho percorrido para trás; o caminho percorrido para frente; a necessidade de que aquilo que
já foi torne a ser; e a necessidade de que aquilo que ainda não foi já tenha sido. E o mais
importante e duro em tudo: o constante repetir-se de tudo: do próprio Zaratustra e de seu arqui-
inimigo, o anão tentador, o espírito de gravidade.
Tentar tornar o eterno retorno uma tese cosmológica é aproximar-se dele como o anão o
faz: “tudo bem, ele existe, sigamos adiante”. Tentar torná-lo uma hipótese cosmológica é esvaziá-
lo de seu real sentido, é preenchê-lo com um conteúdo que permita uma aproximação e um
distanciamento rápidos, ou seja, é conformar-se a ele, por incapacidade de amá-lo, relembrando a
proposta do demônio em O maior dos pesos, é querer se enterrar e morrer, e não, pelo contrário,
se alegrar, é assumir a inexistência, na própria vida, de um instante extraordinário, capaz de
justificar toda a vida e transformar o seu “foi assim” em “assim eu o quis”.
Todavia, isso também não torna o eterno retorno uma teoria ética aos moldes
nietzscheanos, embora o descaracterize como hipótese cosmológica. Brodsky, comentando
Magnus, afirma:

Mas, como Bernd Magnus aponta, “não existe nenhum argumento que sustente o status
cosmológico do eterno retorno em qualquer obra publicada por Nietzsche ou por ele
autorizado para publicação”. Em vista disso e do fato de que a noção do eterno retorno é
apresentada numa linguagem hipotética na GS 341, Magnus conclui que, embora
Nietzsche tenha se interessado em “encontrar confirmação empírica” para essa doutrina,
isso foi um resultado de sua convicção de que a doutrina tinha grande importância
normativa e não o contrário.166 (BRODSKY, 1998, p. 41. Tradução minha).

166
But as Bernd Magnus points out, “no sustained argument for the cosmological status of eternal recurrence exists
in any work published by Nietzsche or authorized by him for publication. In view of this and of the fact that the
notion of eternal recurrence is presented in hypothetical language in GS 341, Magnus concludes that while Nietzsche
became interested in “finding empirical confirmation” for this doctrine, this was a result of his conviction that the
doctrine had great normative importance rather than vice versa.

212
Resta saber se o eterno retorno tem realmente peso normativo ou se, ao menos, esse era o
interesse de Nietzsche, somente assim se poderia afirmar que o eterno retorno tem um sentido
ético. Mas para isso é necessário antes discutir outro ponto fundamental do eterno retorno: o que
retorna?

2.2 – O que retorna no eterno retorno?

Discutir o que retorna no eterno retorno pode parecer ocioso, haja vista que aqui não se
assume o eterno retorno como uma hipótese cosmológica, mas em outro sentido, que, como será
mostrado agora, também não é o ético-existencial, e sim aquilo que adiante chamaremos de
“aposta de Nietzsche”. Desse modo, só faria sentido discutir o que retorna no eterno retorno se
realmente se supusesse o retorno como algo que aconteceu, acontece e vai acontecer, aí sim faria
sentido analisar o que retorna no retorno.
É necessário, porém, explicar um ponto importante no problema do que retorna, para
tornar compreensível a ideia de que o eterno retorno também não é um imperativo ético, mas, sim,
uma aposta que Nietzsche propõe: é preciso compreender que o eterno retorno é o retorno do
mesmo, e não um retorno seletivo.

2.2.1 – Eterno retorno do mesmo ou seletivo?

Nietzsche chamou o eterno retorno de seu pensamento abissal, não apenas por ser a mais
profunda de suas ideias, mas também por ser a mais assustadora; todavia, é sempre possível fugir
a esse poder evocador que o abismo tem sobre as pessoas, que, à sua beira, querer olhar o fundo:
a atitude do anão carregado por Zaratustra diz que tudo que é reto mente, que toda verdade é torta
e que mesmo o tempo é um círculo; essa atitude é uma das maneiras de se fugir ao poder abissal
do eterno retorno: aceita-se sua existência para em seguida continuar sua vida, como dizer “há ali
um abismo, mas não quero sondar-lhe o fundo” e depois prosseguir a vida normalmente.
Há, no entanto, outras maneiras de fugir ao poder de abismo do eterno retorno, que é
interpretá-lo como uma hipótese cosmológica e atribuir-lhe status de verdade, ou então negar sua

213
possibilidade e, assim, soterrar o abismo. Dentro da hipótese cosmológica, há outra que também é
bastante significativa, possível apenas em função da hipótese de o eterno retorno ser real. Essa
outra possibilidade é a seletividade do eterno retorno.
Que fique claro: discutir se o eterno retorno é verdadeiro ou falso é fugir ao seu poder de
abismo e despotencializá-lo. Da mesma forma, imaginar uma seletividade no eterno retorno é
retirar toda a sua força: seu aspecto trágico. Mas essa é uma postura recorrente entre alguns
intérpretes do pensamento de Nietzsche – o mais notável de todos, a imaginar um retorno seletivo,
é Deleuze. O filósofo francês afirma em seu Diferença e repetição que o eterno retorno

(...) opera praticamente uma seleção das diferenças segundo sua capacidade de produzir,
isto é, de retornar ou de suportar a prova do eterno retorno. O caráter seletivo do eterno
retorno aparece nitidamente na idéia de Nietzsche: o que retorna não é o Todo, o Mesmo
ou a identidade prévia em geral. Não é nem mesmo o pequeno ou o grande como partes do
todo ou como elementos do mesmo. Só as formas extremas retornam – aquelas que,
pequenas ou grandes, se desenvolvem no limite e vão até o extremo da potência (...).
(DELEUZE, 2006, p. 74).

Para Deleuze, então, apenas as formas extremas da vontade de poder retornam, e esse
retorno dissolve toda a identidade. De fato, a constituição pulsional que os indivíduos são é
radicalmente alterada pelo eterno retorno, como se verá adiante, mas, quando Deleuze postula
que apenas as formas extremas da vontade de poder retornam, ele exclui, necessariamente, o que
torna o eterno retorno o pensamento abissal de Nietzsche, e o que lhe dá o seu caráter realmente
trágico: o retorno é o retorno do todo. Ainda não fica claro nessa citação de Deleuze, mas o que o
autor quer realmente é negar que no retorno retorne também o que é pequeno e mediano. Se na
citação acima Deleuze mostra o eterno retorno como uma prova, é necessário perguntar: o que
exatamente ele prova?
Se o que o eterno retorno prova é a força dos tipos superiores em quererem a repetição da
vida, independentemente das circunstâncias, essa prova é falsa, pois eles afirmam querer a
repetição da vida, independentemente das circunstâncias, mas sabendo de antemão que o que
retorna não é tudo, então querem apenas o retorno do que retorna, dos extremos, mas não do todo.
Essa prova, como Deleuze chama o eterno retorno, é, na verdade, uma consolação, o que fica
mais claro na passagem a seguir:

(...) A mais profunda diferença de natureza está entre as formas médias e as formas
extremas (valores novos): não se atinge o extremo levando-se ao infinito as formas médias,

214
servindo-se de sua oposição ao finito para afirmar sua identidade no infinito. Na
representação infinita, a pseudo-afirmação não nos faz sair das formas médias. Do
mesmo modo, Nietzsche censura em todos os procedimentos de seleção fundados na
oposição ou no combate o fato de operarem em proveito da média e de atuarem em
benefício do “grande número”. Cabe ao eterno retorno operar a verdadeira seleção,
porque ele, ao contrário, elimina as formas médias e extrai “a forma superior de tudo o que
é” (...). Se o eterno retorno é uma roda, é preciso ainda dotá-la de um movimento
centrífugo violento que expulsa tudo o que “pode” ser negado, o que não suporta a prova.
(Ibidem, p. 91. Grifos meus).

Embora Nietzsche não fale em seleção no mesmo sentido de Deleuze nessa citação, é
bastante claro, na obra do pensador alemão, que a sociedade e a moral atuam em benefício dos
homens medianos. Todavia, quando o autor associa as formas medianas ao “grande número”,
percebe-se então do que ele está falando: o grande número para Nietzsche é um sinônimo dos
tipos inferiores, logo, Deleuze defende que o eterno retorno elimina o grande número, ou seja,
elimina os tipos inferiores, porque eles não são fortes o suficiente para se manterem no retorno,
assim, são esmagados ou simplesmente somem no processo do retornar. A ideia é interessante,
mas não é de Nietzsche: o filósofo de Zaratustra é bastante claro em todos os seus textos sobre o
eterno retorno – o retorno é um retorno do mesmo, até mesmo os detalhes, se se lembra de O
maior dos pesos: retorna o luar, retorna até mesmo a aranha.
Se os tipos inferiores fossem suprimidos no movimento do eterno retorno, então o eterno
retorno se tornaria um consolo exprimível pela ideia: “seja forte, lute para ser um tipo superior,
deseje o eterno retorno e como prêmio você terá uma repetição na qual não terá mais que aturar
os tipos inferiores”. Se os tipos inferiores forem suprimidos no eterno retorno, os tipos superiores
também o serão: é preciso apenas lembrar que o que mantém um tipo como superior é sua
constante luta contra os outros tipos superiores e também contra os inferiores. Se um falta, a luta
é deficitária. O tipo superior também precisa resistir aos constantes assédios da pequenez e da
inferioridade.
O eterno retorno não pode ser um consolo! Introduzir a seletividade no retorno é tirar sua
força trágica, é soterrar o pensamento abissal de Nietzsche e torná-lo quase como um novo céu,
um céu imanente apenas na sua aparência, pois simula novamente o local paradisíaco onde o mal,
o ofensivo, o mesquinho não é possível. Se o eterno retorno for seletivo e for pensado como uma
certeza íntima que dá força aos tipos para se manterem superiores, ele se assemelha ao evangelho
descrito por Nietzsche: “A ‘boa nova’ é justamente que não mais existem oposições (...)”

215
(NIETZSCHE, AC, 38). Se os tipos inferiores não retornam, cessa-se uma parte do conflito, e
isso é inaceitável para Nietzsche.
O eterno retorno é trágico justamente porque nele tudo se repete, ele é o eterno retorno do
mesmo. E essa repetição não tem caráter meramente pessoal, não é apenas uma vida e os
elementos de uma vida que se repetem, tudo se repete, toda a história, todos os acontecimentos
que se encadearam, das maneiras mais sutis, para que o agora fosse o que é. O que se repete não é
o “e se”, mas o “foi”. Esse é o conteúdo trágico do eterno retorno, por isso ele é um peso quase
insuportável, nas palavras de Gillespie:

Querer o eterno retorno significa não apenas aceitar a morte e a tortura de crianças como
necessária, mas também cometer esses assassinatos e levar a cabo estas torturas, e querer
fazer assim.167 (GILLESPIE, 2005, p. 63).

É sempre ruim recorrer a uma citação com tamanho peso como esta, mas apenas ela dá a
noção do que é o eterno retorno em seu sentido trágico e do que significa aceitá-lo: aceitá-lo e
amá-lo e desejá-lo é tornar-se coautor de todas as tragédias humanas, pois é querer o retorno do
todo, inclusive dessas tragédias, não querer que o mundo como ele é fosse de outra maneira. É
desse peso que Deleuze foge quando atribui seletividade ao eterno retorno. Mas de todas as
coisas há uma que, de fato, não retorna: o Eu.

2.2.2 – A constituição pulsional humana perante o eterno retorno

Se o eterno retorno é o retorno do mesmo, é de se pensar que o Eu também retorne, ou que


as pulsões que constituem um indivíduo e sua atual organização retornem em algum momento,
fazendo com que em uma repetição futura uma pessoa que existe torne a existir,168 sempre nas
mesmas circunstâncias. Alguns autores criam, a partir da ideia do eterno retorno, quase um
sistema de reencarnações do si e do Eu do si, chegando a imaginar alguma espécie de
solidariedade entre um Eu de agora e o mesmo Eu do retorno, todavia, essa ideia foge bastante à
lógica do eterno retorno como Nietzsche a pensou. É o que se percebe pela análise deste texto:

167
To will the eternal recurrence means not merely to accept the murder and torture of children as necessary, but also
to commit those murders and to carry out that torture, and to want to do so.
168
E como é tentador “dizer”: “Que uma pessoa que agora vive torne a viver”, mas aí o eterno retorno já seria
colocado como uma experiência do Eu.

216
Devemos ter o cuidado de lembrar que o eterno retorno é eterno retorno do mesmo. Isso
significa que é impossível fazer qualquer coisa na nossa vida presente que não fizemos
em nossas vidas anteriores. Nada de novo ou diferente pode ocorrer. No entanto, a única
coisa que resulta disso, a única coisa que podemos deduzir do que tem acontecido até o
presente momento em nossa vida atual é que cada detalhe deve ter sido o mesmo em
nossas vidas passadas (assumindo, naturalmente, que o eterno retorno é verdadeiro). Nós
ainda não sabemos, em nossa vida presente, o que vamos fazer durante o resto da nossa
vida. E o eterno retorno não é capaz de nos dizer nada sobre isso. O eterno retorno não me
dá nenhuma informação antes da hora sobre o que eu posso ou não fazer pelo resto da
minha vida atual.169 (KAIN, 2007, p. 107. Tradução minha).

Pela maneira como o autor escreve, percebe-se que ele crê, de fato, na ficção do Eu e o
trata como uma realidade, como se o Eu que uma pessoa é agora, que nada mais é do que uma
máscara do si que é tal pessoa, fosse retornar infindáveis vezes, sempre como um mesmo Eu,
como uma mesma personalidade. É certo que o autor assevera que isso não faz diferença alguma,
porque não é possível nenhuma antecipação, haja vista que há uma perda de memória, isto é, o
que um Eu é agora não influencia o que ele foi em sua “vida anterior”, como o autor afirma.
Mas Kain não está sozinho nessa linha de interpretação, é possível encontrar ideia
semelhante em Nehamas. Em seu artigo “The Eternal Recurrence”, o autor critica algumas visões
comuns do eterno retorno, para em seguida apresentar a sua própria compreensão nos seguintes
termos:

“Se minha vida fosse se repetir, ela se repetiria de maneira exatamente idêntica.” Essa
interpretação não tem nada a ver com a física. Ela não pressupõe a verdade da cosmologia
que discutimos, ou mesmo a sua coerência (uma vez que não afirma que minha vida
poderia se repetir em algum momento). Por outro lado, ela tem muito a ver (embora se
hesite em usar a palavra em conexão com Nietzsche) com a metafísica. Trata-se da relação
de um sujeito para com suas experiências, ou, mais genericamente, de um objeto para com
suas propriedades, e tem implicações psicológicas diretas e sérias.170 (NEHAMAS, 1980,
p. 342. Tradução minha).

169
We must be careful to remember that eternal recurrence is eternal recurrence of the same. That means that it is
impossible to do anything in our present life that we have not done in our previous lives. Nothing new or different
can occur. Nevertheless, the only thing that follows from this, the only thing we can deduce from what has gone on
up to the present point in our current life, is that every detail must have been the same in our past lives (assuming, of
course, that eternal recurrence is true). We do not know yet, in our present life, what we are going to do during the
rest of our life. And eternal recurrence is able to tell us nothing at all about that. Eternal recurrence gives me no
information ahead of time about what I can or cannot do in the rest of my present life.
170
“If my life were to recur, it would recur in exactly identical fashion.” This construal has nothing to do with
physics. It does not presuppose the truth of the cosmology we have discussed, or even its coherence (since it does not
assert that my life ever could recur). On the other hand, it has much to do (though one hesitates to use the word in
connection with Nietzsche) with metaphysics. It concerns the relation of a subject to its experiences, or more
generally of an object to its properties, and it has direct and serious psychological implications.

217
Ao tomar como base a afirmação “se minha vida fosse se repetir, ela se repetiria de
maneira exatamente idêntica”, o autor já condiciona o eterno retorno a uma experiência do Eu, ou
seja, o eterno retorno é pensado como uma experiência que atinge um Eu, e novamente a
discussão gira em torno da possibilidade de o Eu repetir-se ou não; mas, não faz sentido discutir a
repetição do Eu, pois ele é apenas uma máscara, uma ficção do conjunto pulsional que domina o
indivíduo.
Contudo, pode-se perguntar: se tudo retorna, retornam também as pulsões que constituem
o indivíduo, e em algum momento a organização que uma pessoa é se repetirá, então, por
consequência, também não deve se repetir o Eu que essas pulsões criam como função de seu
domínio? A resposta para essa pergunta é sim, porém, Nehamas, como Kain, inverte a lógica da
constituição da subjetividade humana: não é o Eu que retorna como fenômeno central, sua
reconstituição é apenas um efeito colateral do retorno das pulsões que ora constituem
determinada pessoa.
É certo que Nietzsche em alguns momentos utilizou expressões que poderiam dar a
entender que o eterno retorno é uma experiência da ordem da ipseidade, da essência constituinte
do Eu, como neste fragmento:

Vocês acham que terão um longo descanso até o renascimento – mas não se enganem!
Entre o último momento de consciência e a primeira aparição da nova vida não resta
“tempo algum” (keine Zeit) – passa rápido como o um relâmpago (...). A atemporalidade e
a sucessão se acomodam assim que o intelecto se vai.171 (NIETZSCHE, KSA IX, p. 564-
5,11[318]. Tradução minha).

Todavia, novamente, é necessário tomar cuidado com a interpretação que se faz dos
fragmentos póstumos de Nietzsche, para que ensaios e experimentos não sobreponham o que o
autor escolheu para colocar em suas obras. E, embora Nietzsche fale em renascimento, dando a
entender uma vida nova, ele também fala que, findo o intelecto, acaba também a temporalidade,
isso porque qualquer mensuração é relativa ao sujeito que mensura, e esse sujeito deixa de existir,
juntamente com sua intelectualidade, assim, não resta ponte ou vínculo entre o que se é agora e a
repetição na qual se será novamente. O eterno retorno não é uma evolução do estado de coisas
atual, não há resíduo de consciência ou Eu que perdure na repetição. E as pulsões se

171
Ihr meint, ihr hättet lange Ruhe bis zur Wiedergeburt — aber täuscht euch nicht! Zwischen dem letzten
Augenblick des Bewusstseins und dem ersten Schein des neuen Lebens liegt „keine Zeit“ — es ist schnell wie ein
Blitzschlag vorbei (...). Zeitlosigkeit und Succession vertragen sich miteinander, so bald der Intellekt weg ist.

218
reencadeando e retornando, de modo a repetir o que alguém é hoje, não podem guardar resquício
de como se combinaram e relacionaram antes, pois aí seria tornar as pulsões substâncias e
equivalê-las às mônadas de Leibiniz.
Só seria coerente falar em manutenção ou preservação da consciência em dois casos, e,
em ambos, ter-se-ia de abrir mão do pensamento de Nietzsche como se explicou até aqui. O
primeiro caso seria o da inversão da subjetividade humana, fazendo com que o Eu fosse o centro
e a realidade de um indivíduo, aí sim o eterno retorno seria o retorno do Eu, todavia, neste caso,
abrir-se-ia mão da formação pulsional humana. O segundo caso em que a manutenção da
consciência faria sentido é o da existência de uma consciência externa que não fosse afetada pelo
retorno, algo como o Deus soberano e onipotente do cristianismo, o que Nietzsche também não
admitia. Essa opinião é endossada por Marton, quando afirma que:

Na passagem de uma série de acontecimentos a outra, ninguém conte com evolução ou


progresso, ninguém suponha alteração ou mudança, ninguém espere sequer continuidade.
Nada se mantém – muito menos a memória ou a consciência. Por sua origem biológica, a
consciência não passa de “um meio de comunicabilidade”, “um órgão de direção”.
(MARTON, 2001, p. 111).

Desse modo, a consciência é dissolvida, e o Eu ao qual ela pertence também; o eterno


retorno é o retorno do todo, incluindo, claro, o Eu, mas como mero efeito colateral da repetição
do todo, da repetição do infindável encadeamento das pulsões em sua disputa por mais poder.
A inversão lógica apontada anteriormente, porém, mostra dois problemas: a possibilidade
de o Eu se alterar de uma repetição para outra, o que, como se viu, é descartado pelos autores;
mas também a possibilidade do eterno retorno ser pensado como imperativo ético, ou seja, a
possibilidade de que ele tenha peso normativo capaz de levar um indivíduo a se alterar, sob o
influxo de tal realidade ou mesmo de sua possibilidade, em uma mesma vida.

2.3 – Eterno retorno do mesmo: da normatividade à aposta de Nietzsche

Se o eterno retorno não deve ser interpretado como uma hipótese cosmológica, também
não o deve como uma proposta ética nietzscheana, por dois motivos: primeiro, o eterno retorno
não tem poder normativo; segundo, uma ética pressupõe, além de um sujeito ético, a

219
possibilidade de mudança de vida a partir dessa ética, e os dois elementos são excluídos pelo
eterno retorno.
Seria possível dizer que o eterno retorno tem uma força normativa e que tal norma se
daria de maneira bastante semelhante ao imperativo categórico kantiano em uma máxima como
“vive tua vida de tal maneira que tu desejes sua eterna repetição” ou “vive tua vida de tal maneira
que, caso o eterno retorno seja verdadeiro, tu não te arrependas dele e, pelo contrário, o desejes”.
Essa associação entre o eterno retorno e a normatividade de uma lei moral aos moldes do
imperativo categórico kantiano é explorada por Hicks, quando afirma que:

(...) O eterno retorno é quase uma ideia “regulativa” no sentido kantiano – um postulado
prático que provê um estímulo favorável para a posterior melhoria da vida e da cultura (...).
O pensamento do eterno retorno nos oferece um “teste”, do tipo que determina se temos
ou não a “força de vontade” para rejeitar “a necessidade metafísica” de ilusões
reconfortantes e suportar viver em um “mundo sem sentido” precisamente porque nós
“aprendemos a configurar uma pequena porção dele” para nós mesmos. Ele (o eterno
retorno – VS) nos oferece uma estratégia imaginativa experimental, na qual a vontade de
reviver nossas vidas mais e mais é tomada – até mesmo aqueles aspectos que implicam
violência ou sofrimento e que parecem impossíveis de aceitar – como uma medida da
força e avaliação positiva que colocamos em nossa atual vida, não recorrente. Para testar a
força e afirmatividade de uma pessoa nesse sentido imaginativo/metafórico, uma pessoa
deve querer “ir adiante com o experimento” – o que significa dizer que uma pessoa deve
estar disposta a imaginar a repetição da vida como contínua e, portanto, com a adição de
sofrimento e alegria ao seu estado de vida atual. E para que a experiência tenha êxito,
Nietzsche insiste, a pessoa deve aprender a criar ou configurar um si que seria capaz
de responder com alegria (e não desespero ou resignação) quando confrontado com a
famosa proclamação do demônio em A gaia ciência: “Esta vida, como você a está
vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes”. De acordo
com Nietzsche, a mensagem do demônio constitui um desafio à nossa habilidade para
imaginar como seria um verdadeiro ideal imanente de vida.172 (HICKS, 2009, p. 168-9.
Tradução e grifos meus).

172
(…) Eternal recurrence is almost a “regulative” idea in the Kantian sense—a practical postulate that provides a
stimulus conducive to the further enhancement of life and culture (…). The thought of eternal recurrence offers us a
“test,” of sorts, for determining whether or not we have the “strength of will” to reject “the metaphysical need” for
comforting illusions and to endure to live in a “meaningless world” precisely because we have “learned to configure
a small portion of it” for ourselves. It offers us an imaginative, experimental strategy in which we take the
willingness to relive our life over and over—even those aspects that entail violence or suffering and that seem
impossible to embrace—as a measure of the strength and positive valuation that we place on our actual, nonrecurring
life. To test one’s strength and affirmativeness in this imaginative/metaphorical way, one must be willing to “go
forward with the experiment”—that is to say, one must be willing to imagine the recurrence of one’s life as
continuous with and therefore as adding suffering and joy to one’s current life situation. And for the experiment to
succeed, Nietzsche insists, one must learn to create or configure a self who would be able to respond with joy (and
not despair or resignation) when confronted with the demon’s famous proclamation in the Gay Science: “This life as
you now live it and have lived it, you will have to live once more and innumerable times more.” As Nietzsche sees it,
the demon’s message poses a challenge to our ability to imagine what a truly immanent ideal of living would be like.

220
O autor tem razão quando afirma que Nietzsche via no eterno retorno uma possibilidade
de desafio, mas a ética não é um desafio, porque, apresentada como um postulado, ela pressupõe
a verdade deste postulado e oferece uma garantia em troca. Em toda tradição filosófica a ética e o
bem viver, o viver ético, sempre estiveram associados à felicidade; o eterno retorno, porém, não
traz garantia alguma de felicidade, e seu poder normativo é inexistente.
Quando Kant formulou seu imperativo categórico, tomou, como pressuposto, a igualdade
entre todos os seres humanos, de modo que qualquer ser humano, cuja faculdade da razão
encontre-se em perfeito funcionamento, tem condições suficientes de agir de forma acertada, em
qualquer lugar do mundo e em quaisquer circunstâncias. O eterno retorno não se presta a uma
regulação universal do comportamento humano, pois, para Nietzsche não há uma igualdade
universal dos seres humanos que os capacite a agir sempre da mesma maneira; falta ao eterno
retorno, justamente, a universalidade, pois sua experiência é extremamente singular.
Ao afirmar que “a pessoa deve aprender a criar ou configurar um si que seria capaz
de responder com alegria (e não desespero ou resignação) quando confrontado com a
famosa proclamação do demônio em A gaia Ciência”, Hicks ignora um problema lógico em
sua proposição, que invalida qualquer possibilidade de interpretação do eterno retorno como uma
norma ética: o eterno retorno é retorno do mesmo, logo, não faz sentido aderir a uma ética, ou
mesmo propô-la, pois, se o eterno retorno for verdadeiro, o que se repete é o mesmo, logo, não há
espaço para a mudança. Se alguém aceita o desafio de viver de acordo com o eterno retorno, deve
tomar sobre si também um segundo peso: nada é modificável! Se nada é modificável, qualquer
apelo ético que possa ser inserido no eterno retorno perde seu sentido, pois, independentemente
dos esforços que alguém faça, eles apenas repetem, eternamente, configurações pulsionais
anteriores, indefinidamente, nesse grande ano do devir, como Nietzsche também nomeou o eterno
retorno.
Qual o sentido de uma ética que quer ser tomada como verdadeira, mas que, se for tomada
como verdadeira, perde sua força cogente? Pois é este o problema da interpretação ética do eterno
retorno: se ele for tomado como uma verdade, e o indivíduo tiver certeza sobre ele, qualquer
esforço ético desse indivíduo é destituído de sentido, haja vista que todos os seus esforços não
são capazes de alterar aquilo que ele foi e sempre será. A não ser, claro, que se parta da ideia de
que a vida que ora se vive, e na qual se é interpelado pelo demônio que propõe o eterno retorno,
seja a primeira vida, o ponto de partida do ciclo infinito das repetições, e que os atos que nela

221
forem tomados se repetirão. Contudo, nada nas obras de Nietzsche recomenda tal interpretação,
conforme afirma Loeb:

Nietzsche é bastante claro em outro lugar (e o mais importante, em Assim falou Zaratustra)
que o eterno retorno se estende para trás bem como para frente: não há vida inicial ou
original que eu já não tenha vivido, e não há identidade final ou conclusiva e uma vida
eternamente recorrente que eu não vá viver novamente. Aplicando este ponto ao aforismo
de A gaia Ciência, é simplesmente implausível que Nietzsche supusesse que o demônio
viria para me informar das inumeráveis vidas, qualitativamente idênticas, por vir após esta
primeira vida não recorrente que eu estou vivendo agora. A mensagem do demônio
implicitamente me orienta a extrapolar para trás de tal forma que eu reconheça essa
mensagem como uma repetição exata da mensagem que foi entregue em uma vida idêntica
prévia, e assim por diante.173 (LOEB, 2006, p. 174-5. Tradução minha).

De fato, na seção O maior dos pesos de A gaia ciência a ideia de que a vida que é vivida
no momento já se repetiu não é textual, todavia, nada autoriza a interpretação oposta, de que ela
seria a vida original, a primeira na série de repetições. Esse problema é esclarecido de forma
definitiva em Assim falou Zaratustra, pois, como já se viu, o portal chamado instante possui duas
sendas, uma para trás e uma para frente, que, contudo, sendo sempre percorridas, deixariam de se
contradizer, ou seja, se o eterno retorno descreve um círculo, ele não tem começo ou fim, não há
vida originária, tudo está no ciclo, a vida e o próprio tempo, como afirma Zaratustra, e não como
pensa Hicks, apenas a vida girando sobre um tempo extracíclico.
Mas Hicks está certo quando afirma que Nietzsche pensou o eterno retorno como um
desafio, ou melhor, uma aposta, uma maneira de emular a vontade de poder para que o conjunto
pulsional que cada indivíduo é perseverasse na luta pulsional que cria os tipos superiores, fugindo
assim à moral, principal mecanismo de enfraquecimento que os tipos inferiores criaram para
prender os tipos superiores; por isso, o eterno retorno não pode ser associado a uma proposta
ética, porque, como já se disse, uma proposta ética pressupõe uma igualdade, elemento
fundamental para a moral e o rebaixamento tipológico.
Fugir à moral ou a leituras moralizantes cria um último problema na compreensão de
diversos autores sobre o eterno retorno: muitos afirmam que o eterno retorno enquanto

173
(…) Nietzsche is quite clear elsewhere (most importantly, in Thus Spoke Zarathustra) that eternal recurrence
extends backward as well as forward: there is no initial or original life that I have not already lived, and there is no
final or concluding identity and eternal recurrence life that I will not live again. Applying this point to the Gay
Science aphorism, it is simply not plausible that Nietzsche meant the demon to inform me of the innumerable
qualitatively identical lives to come after this very first non-recurring life that I am now living. The demon’s message
implicitly instructs me to extrapolate backward so that I recognize this message as an exact repetition of the message
that was delivered in a previous identical life, and so on.

222
proposição é internamente incoerente, ou que é incoerente com a proposta de um além-do-
homem ou mesmo de transformação pulsional, haja vista a aparente contradição entre repetição e
mudança. No entanto, isso faz parte da estratégia de Nietzsche para manter seu pensamento
abissal o mais seguro possível dos desvirtuadores, dos enfraquecedores, dos anões, que admitem
sua existência para em seguida fugir a ele. É o que faz Loeb quando, analisando o eterno retorno,
acaba por considerá-lo conceitualmente incoerente:

(...) Como acabamos de ver, a nossa suposição de que a repetição da minha experiência é
qualitativamente idêntica implica que eu não posso ser relembrado da primeira instância
dessa experiência. Além disso, como a maioria dos comentadores mais tardios
concordaram, a repetição exata da minha experiência significa que todas as minhas
escolhas e ações são predeterminadas. Então, o eterno retorno não pode ser de qualquer
importância para aquele que repete, e o pensamento de Nietzsche é psicologicamente e
eticamente insignificante. Finalmente, Simmel sugere que, mesmo que nós admitíssemos a
possibilidade de consciência da repetição, a importância da repetição “exige, porém, que
um ego persista”. Mas “na realidade não é de modo algum Eu quem se repete, mas aparece
apenas um fenômeno que absolutamente coincide comigo em todas as suas características
e experiências”. Assim, Nietzsche precisa postular a identidade numérica do eterno retorno.
E, na verdade, como vários comentadores já trabalharam, se as repetições da minha
experiência são qualitativamente idênticas em todos os sentidos, então elas também devem
ser temporalmente idênticas. Mas desde que o tempo era o nosso único meio de
diferenciação dessas repetições (como “primeira” e “segunda”, ou “antes” e “depois”),
isso significa que elas são de fato numericamente idênticas. Então, o que deveria ser um
número infinito de recorrências ou repetições acaba por ser apenas uma ocorrência
singular. A doutrina de Nietzsche, portanto, revela-se conceitualmente incoerente. 174
(LOEB, 2006, p. 171-2. Tradução minha).

A estratégia de Loeb ao tentar julgar logicamente o eterno retorno terá sempre o mesmo
resultado, a conclusão pela irracionalidade do eterno retorno; porém, essa é uma das maneiras de
se fugir ao seu peso, pois a análise racional proposta por Loeb tira do eterno retorno sua
característica central, a de ser uma experiência singular de um indivíduo singular e
pulsionalmente composto. Porém, um comportamento contrário ao de Loeb mostra-se igualmente

174
(…) As we have just seen, our supposition that the repetition of my experience is qualitatively identical entails
that I cannot be reminded of the first instance of this experience. Besides, as most later commentators have agreed,
the exact repetition of my experience means that all my choices and actions are predetermined. So eternal recurrence
cannot be of any importance to those who recur, and Nietzsche’s thought is psychologically and ethically
insignificant. Finally, Simmel suggests, even if we were to grant the possibility of recurrence awareness, the
importance of repetition “requires rather that an ego persists.” But “in reality it is in no way I who recurs, but only a
phenomenon appears that absolutely agrees with me in all of its traits and experiences.” So Nietzsche needs to
postulate the numerical identity of eternal recurrence. And, indeed, as several commentators have since elaborated, if
the repetitions of my experience are to be qualitatively identical in every respect, then they must also be temporally
identical. But since time was our only means of differentiating these repetitions (as “first” and “second,” or “earlier”
and “later”), this means that they are in fact numerically identical. So what were supposed to be infinitely many
recurrences or repetitions turn out to be only a single occurrence. Nietzsche’s doctrine thus proves to be conceptually
incoherent.

223
funesto para a vivência do eterno retorno – ou seja, a aceitação do eterno retorno como verdade
ou sua negação como incoerente – conduz a um mesmo resultado: a perda do sentido educativo
do eterno retorno. Tal sentido só é mantido quando o eterno retorno é visto como uma aposta – a
aposta de Nietzsche.

2.3.1 – A aposta de Nietzsche

Mas o que significa chamar o eterno retorno de aposta? Significa que, para atingir seu
objetivo, o eterno retorno não pode ser em momento algum uma certeza, pois, se o indivíduo está
certo de que ele acontecerá, também está certo de que já aconteceu, e, assim sendo, nada que
tente fazer de original fará qualquer sentido. Por outro lado, se o eterno retorno for descrido de
vez, o mesmo se dá, ou seja, ele perde sua capacidade desafiadora das forças constituintes de
cada pessoa, o que também acontece se se tentar provar sua realidade ou falsidade.
O eterno retorno só tem sentido se pensado como uma aposta, a aposta de Nietzsche, que,
embora se assemelhe com a de Pascal, inverte, porém, sua lógica. A aposta de Pascal pode ser
resumida no esquema a seguir:

1. Se alguém acredita em Deus, e age em acordo com tal crença, e estiver certo, tal pessoa
obterá a salvação.
2. Se alguém acredita em Deus, e age em acordo com tal crença, mas estiver errado, com a
morte e o fim de tudo, tal pessoa nada terá perdido.175
3. Se alguém não acredita em Deus, e estiver certo, com a morte e o fim de tudo, tal descrença
não terá mais sentido.
4. Se alguém não acredita em Deus, e estiver errado, sua descrença terá como consequência a
danação.

Baseado em tal lógica utilitarista, e abrindo mão de discuti-la rigorosamente, Pascal


acreditava que o melhor era sempre crer em Deus e agir em acordo com tal crença, pois dela nada
adviria de ruim. O eterno retorno de Nietzsche, enquanto aposta, não joga com a crença, a

175
Embora para um hedonista niilista isso seja altamente questionável.

224
descrença e a verdade ou falsidade das mesmas, seu peso reside, como na aposta de Pascal, na
incerteza. A aposta de Nietzsche pode ser resumida no esquema seguinte:

1. Se uma pessoa tem certeza de que o eterno retorno é real, ele não pode agir sobre ela, pois tal
certeza recai também sobre a imutabilidade da vida.
2. Se uma pessoa tem certeza de que o eterno retorno é falso, ele não pode agir sobre ela, pois
seu peso é totalmente anulado.
3. Se uma pessoa aceita a aposta de que o eterno retorno existe e vive sob o peso de tal aposta
(se será vitoriosa ou não); sobre essa pessoa, o eterno retorno exerce seu peso, baseado na
incerteza e no espaço de angústia que o incerto sempre abre.
4. Se uma pessoa aceita a aposta de que o eterno retorno não existe, essa pessoa também vive
sob seu peso, pois a aposta pressupõe a incerteza quanto ao resultado final da aposta.

Na primeira anunciação do eterno retorno em O maior dos pesos, ele é colocado como
uma aposta, o que se evidencia pelo início do aforismo: “E se um dia, ou uma noite, um demônio
lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse”. O “e se” (wie wenn)
introduz uma hipótese, mas também pode introduzir uma aposta, de tal sorte que o que o demônio
fala nesse aforismo pode ser visto não como uma hipótese, mas como aposta, cuja lógica,
invertida, seria a seguinte: “e se o eterno retorno fosse real, você se alegraria ou se mataria?”.
A outra quebra na lógica da aposta de Pascal que a de Nietzsche traz é quanto ao prêmio;
como desafio que é, toda aposta traz ao vencedor um prêmio e ao perdedor uma prenda. Na
aposta de Pascal joga-se alto: o prêmio é a salvação e a prenda a condenação da alma. Na aposta
de Nietzsche não se joga baixo também, mas a forma de vencer ou perder tal aposta é outra: ela
não se confirmará na consumação dos tempos, vence o desafio de Nietzsche aquele que conseguir
sustentar a dúvida por mais tempo, perde aquele que primeiro tiver certeza, seja da verdade, seja
da falsidade do eterno retorno.
O prêmio que a aposta de Nietzsche reserva ao seu vencedor é sui generis: o além-do-
homem. Apenas aquele que conseguir manter, sempre, e em cada instante, o peso da incerteza
quanto ao eterno retorno pode tornar-se o além-do-homem. Por isso, Nietzsche afirma pela boca
de Zaratustra que este nunca existiu. Como diz a música “Esquinas”, de Djavan, cada um sabe as
esquinas pelas quais passou, e é tal certeza do próprio passado (ao menos) e a certeza do próprio

225
futuro como campo aberto de possibilidades, sempre mais ou menos dependentes dos esforços de
cada um, que constituem o caráter humano.
A educação civilizatória se esforça por manter a regularidade nesse jogo de certezas e
probabilidades, maneira de fazer com que um indivíduo persevere na própria vida, pois, na
ausência dessa certeza, os mais fracos se desesperariam e morreriam, como Nietzsche afirmou no
Lenzer Heide: “Ora, a moral protegeu a vida do desespero e do salto no nada” (NIETZSCHE, GP,
p. 59). A incerteza quanto ao eterno retorno é mais poderosa do que a certeza da sua existência. É
possível se acomodar mesmo às piores dores e ao seu retorno quando se tem certeza sobre elas,
mas a incerteza quanto a isso esmaga, não é possível pensar em construir novos planos, em
planejar um novo futuro quando não se tem certeza sobre o futuro; é isso o que leva Zaratustra a
esbravejar com o anão quando ele, antecipando o eterno retorno, afirma que tudo o que é reto
mente.
Mas a educação para a cultura pode ser diferente? Tem ela forças para manter seu
educando na corda bamba e lidar com a angústia que a incerteza traz? Também não. Como
afirmou Zaratustra, o maior e o menor dos homens ainda são demasiado humanos. A lógica dos
tipos superiores, e sua manutenção como tal, é a guerra e os esforços da guerra; sua criação,
como as do leão, é ressentida. Os tipos superiores não são fortes o suficiente para a mais
importante de todas as tarefas: transformar o “foi assim” em “assim o quis”. Apenas o além-do-
homem tem força para tal, mas ele permanece inalcançável, porque tornar-se o além-do-homem
significa ter vencido a aposta, ter chegado ao final dela, mas essa hipótese não existe, já que o
eterno retorno traga qualquer possibilidade de fim ou de começo. O além-do-homem é uma
ficção nietzscheana, ao menos em Assim falou Zaratustra, pois, como foi mostrado, nas obras
posteriores ele é um sinônimo dos tipos superiores.
Se em A gaia ciência o eterno retorno é uma aposta, em Assim falou Zaratustra o que se
vê é já o efeito de tal aposta. Se o eterno retorno é o pensamento abissal de Nietzsche, é porque
seu peso e efeito sombrio são esmagadores. Assim falou Zaratustra foi escrito na perspectiva de
mostrar a vida dessa personagem vivendo sob a aposta. Zaratustra aceita-a aposta e tenta viver de
acordo com ela.

226
Conclusão
A última tentação de Zaratustra

Como se viu até aqui, Assim falou Zaratustra tem concepções distintas das que ocorrem
no restante da obra de Nietzsche; em especial a ideia de além-do-homem recebe uma
conceituação diferente daquela encontrada nas obras que lhe são posteriores. A especificidade
desse livro é fundamental na obra de Nietzsche, pois foi nele que o filósofo investiu com maior
intensidade, e nele também aparecem os conceitos de forma mais profunda e original.
O que se fará agora é mostrar uma intrincada relação que perpassa todo o livro: o além-
do-homem, o eterno retorno do mesmo e o amor fati. A obra Assim Falou Zaratustra tenta
mostrar esses três conceitos aplicados à vida de um personagem conceitual, que vai, ao longo do
livro, realizando um processo de autoeducação, pautado pela aposta de Nietzsche, ou seja,
Zaratustra se autoeduca na perspectiva do jogador que aceitou a aposta de Nietzsche. É nesse
sentido que ele primeiro busca o além-do-homem como objetivo da terra, como maior objetivo ao
qual a humanidade deve almejar, para, em seguida, buscar o meio exato de um indivíduo se
tornar o além-do-homem, momento no qual Zaratustra descobre o eterno retorno do mesmo.
Parece haver aqui um problema lógico: como Zaratustra pode se portar como o jogador que
aceitou a aposta de Nietzsche, se ele só conhece tal aposta (o eterno retorno do mesmo)
posteriormente?
No entanto, não há contradição, pois a aposta de Nietzsche, estribada no eterno retorno do
mesmo, anula a ideia de um início e um fim; Zaratustra já é colocado, desde o início do livro, em
processo de repetição eterna. Quando ele desce de sua montanha, por estar saturado de sua
própria grandeza, e quer perecer em contato com os homens, ele já está se repetindo, ou melhor,
nele o eterno retorno do mesmo já está em movimento; assim, na lógica do eterno retorno do
mesmo a vida de Zaratustra sempre foi e sempre será uma aposta.
A personagem procura o além-do-homem, mas não sabe como alcançá-lo; e quando
descobre que o caminho único para alcançá-lo é o eterno retorno do mesmo vivido na forma de
uma aposta, ele teme por sua própria força e se nega à aposta, o que se dá no primeiro contato
com o eterno retorno do mesmo, no discurso aqui já apresentado Da visão e do enigma. Momento

227
misterioso no qual Zaratustra é obrigado a enfrentar o maior de todos os pesos, o pensamento
abissal do eterno retorno do mesmo na companhia de seu maior inimigo, o espírito de gravidade.
Na terceira parte do livro, no subitem O convalescente, Zaratustra depara-se novamente
com o eterno retorno do mesmo, porém, sua companhia agora é outra: ele está cercado por seus
animais de estimação e, apesar de entrever o peso da aposta que lhe era proposta, aceita tomá-la
sobre si, aceita jogar com tudo o que tem. Na quarta e última parte do livro, o que se vê é um
Zaratustra jogador, que tenta viver sob a constante tensão de uma nova espada de Dâmocles e que
sabe que a qualquer momento pode perecer duplamente: ou pelo aniquilamento de uma força
maior, representada pelo peso do eterno retorno do mesmo; ou ainda por abandonar a postura do
jogador e passar para a certeza da existência ou inexistência do eterno retorno do mesmo.
É nesse cenário que ocorre a última tentação de Zaratustra. A personagem reconhece sua
inaptidão para ser o além-do-homem e aceita ser apenas o arauto dele, aceita ser um homem de
tipo superior e reconhece a distância que há entre si e o além-do-homem – o ciclo se fecha. O
além-do-homem nunca existiu e, por repetição, continuará sem existir.

Eterno retorno do mesmo: amor fati versus vontade de poder

Foi dito anteriormente que no primeiro contato de Zaratustra com o eterno retorno do
mesmo em Da visão e do enigma a personagem nega-se a aceitar a aposta. É necessário entender
bem o sentido da negativa de Zaratustra, pois aqui será apresentada uma interpretação diversa da
que se tem encontrado para o final da narrativa de Zaratustra nesse trecho.
A parte de Da visão e do enigma analisada anteriormente neste capítulo encerra-se com
Zaratustra ouvindo perto de si o uivo de um cão que o faz despertar de seu transe, pois após ouvir
o uivo ele se questiona se estava sonhando, já que o anão e o portal haviam desaparecido, e ele se
via, novamente, sozinho em meio aos rochedos, momento em que narra a segunda parte de sua
visão e aprofunda o sentido enigmático de toda essa seção do livro:

Mas lá jazia um homem! E lá! O cachorro pulando, eriçado, ganindo – agora, ele me viu
chegar – ele uivou novamente, e gritou: – Terei eu ouvido alguma vez um cão gritar assim
por socorro?
E, na verdade, o que eu vi, eu nunca tinha visto igual. Eu vi um jovem pastor,
contorcendo-se, sufocando, tremendo, com o rosto desfigurado, com uma pesada serpente
negra pendendo de sua boca.

228
Terei eu alguma vez visto tanta repugnância e pálido horror sobre um rosto? Teria ele
provavelmente dormido? E então a serpente rastejou para sua garganta – e lá se prendeu
firmemente com uma mordida.
Minha mão puxou e puxou a serpente: — em vão! Ela não tirou a serpente da garganta.
Então algo gritou de dentro de mim “Morde! Morde!
Arranca a cabeça! Morde!” – assim gritou de mim minha piedade, meu ódio, meu
desgosto, meu horror, todo o meu bem e meu mal gritou de mim em um único grito. – (...)
Quem é o pastor, para cuja garganta a serpente rastejou? Quem é o homem, para cuja
garganta rastejarão todas as coisas pesadas e negras?
— O pastor, porém, mordeu, como meu grito aconselhava; mordeu com uma boa mordida!
E cuspiu longe a cabeça da serpente –: e levantou-se de um pulo. –
Não mais pastor, não mais homem, — um transfigurado, um iluminado, que ria! Nunca na
terra riu um homem como ele riu!
Oh, meus irmãos, eu ouvi um riso, que não era um riso humano, — e agora uma sede me
devora, um desejo, que nunca se aquieta.
Meu desejo por este riso me devora: oh, como posso eu ainda suportar viver! E como
poderia suportar morrer agora! — (Nietzsche, KSA IV, Za – Da visão e do enigma, p.
201-2. Tradução minha).

A linguagem figurada ainda predomina nessa parte do texto, e Zaratustra se refere a tudo
o que foi dito como uma visão ou um sonho a carecer de elucidação. Tal elucidação não é simples,
pois a visão está repleta de imagens e atos extremamente ambíguos, tanto no pensamento de
Nietzsche quanto na cultura ocidental. Um bom esclarecimento dessa passagem depende das
respostas para estas quatro perguntas:

1. Quem é o pastor?
2. Quem ou o que é a serpente?
3. Qual é o significado do grito de Zaratustra para o pastor? (A maneira como esse
acontecimento é descrito ajuda a compor o quebra-cabeça que nem o próprio
Zaratustra, de imediato, consegue solucionar.)
4. O que significa, ao final da passagem, o riso do pastor e o anseio que Zaratustra passa
a ter por tal riso?

A resposta para alguns desses problemas encontra-se em outro texto fundamental de


Assim falou Zaratustra, O convalescente. Nesse texto o eterno retorno do mesmo é apresentado
pela segunda vez, e é justamente ele que esclarece algumas dúvidas que Da visão e do enigma
deixou. Com O convalescente e a sequência de cantos que lhe seguem, encerra-se a terceira parte
do livro. Se em Da visão e do enigma Zaratustra se depara com o eterno retorno do mesmo numa
espécie de transe, em O convalescente a personagem de Nietzsche está acordada, o ambiente não

229
é mais estranho – sua caverna –, e ela também não está só, junto estão seus animais de
estimação.176 Se em Da visão e do enigma tudo parece um sonho, O convalescente inicia-se com
Zaratustra despertando certa manhã. Ele gesticula como um louco e em seguida faz o inesperado:
evoca de dentro de si um pensamento, o seu próprio pensamento abissal.
A evocação desse pensamento é bastante poética, mas não oculta o que Zaratustra
realmente quer: defrontar seu pensamento abissal. Não mais vê-lo ou senti-lo em um transe, mas
estar acordado e “consciente” para tal enfrentamento: “Eu, Zaratustra, o defensor177 da vida, o
defensor do sofrimento, o advogado do círculo – eu chamo o meu pensamento abissal!”
(NIETZSCHE, KSA, IV, p. 271, O convalescente I. Tradução minha). Zaratustra evoca algo de
dentro de si mesmo. Como se o Eu que seu si possui quisesse perceber-se e ver-se como si, ou
ainda como se esse si quisesse, finalmente, mostrar-se como tal ao seu próprio Eu, destruindo-o,
claro. Em seguida fala Zaratustra: “Acene para mim! Tu vens – eu te ouço! Meu abismo fala, eu
revirei e trouxe178 à luz minha última profundeza. Acene para mim! Vamos! Dê-me a mão179 – –
ah! Ah!180 – Nojo, Nojo, Nojo – – – ai de mim!” (Idem).
Zaratustra ainda não é capaz de mensurar o quanto o eterno retorno do mesmo tem poder
sobre ele. Pensava que seria capaz de lidar com seu próprio pensamento abissal, mas o relato do
livro mostra que ele estava enganado, pois após esse contato com o pensamento abissal Zaratustra
adoece. Após sete dias de prostração começa a sua convalescença. Depois do despertar da doença,
e no início da convalescença, a personagem conversa com seus animais, revelando a eles quem é
o pastor e o que é a serpente.
Os animais de Zaratustra falam a ele sobre o eterno retorno do mesmo, mas em um tom
consolador, quase calmante, na perspectiva de devolver Zaratustra à sua vida e à sua missão.
Zaratustra interrompe, então, a cantilena de seus animais e diz:

Oh, seus bufões e realejos! Respondeu Zaratustra e riu novamente, como vocês sabiam o
que deveria se cumprir em sete dias: — e como aquele monstro rastejou para minha
garganta e me sufocou! Mas eu mordi-lhe a cabeça e cuspi-a para longe de mim. E vocês

176
Os animais de Zaratustra são uma cobra e uma águia. É interessante notar que no Evangelho de Mateus (Mt 10,
16) a serpente é tomada como símbolo de prudência por Jesus.
177
O vocábulo Fürsprecher aparece três vezes nessa frase, sendo traduzido como “defensor” e “advogado”.
178
“Revirei e trouxe” traduzem gestülpt. O verbo tem um sentido de movimento, de trazer à luz, mas também está
presente nele a ideia de revirar das profundezas, para só então trazer à luz.
179
“Dê-me a mão” complementa a ideia expressa na nota anterior. Há a ideia de algo/alguém que sobe e é auxiliado
por algo/alguém que já está no alto.
180
Nietzsche usa aqui uma série de expressões intraduzíveis, mas que estão presentes em todas as línguas e trazem a
ideia de nojo, asco, repulsa.

230
já fizeram disso um estribilho?181 Mas eu agora estou aqui deitado, ainda cansado daquela
mordida e cuspida, doente de minha própria redenção. (Ibidem, p. 273. Grifos meus).

A primeira questão está respondida: Zaratustra é o pastor. Mas essa resposta está longe de
trazer qualquer conforto, muito pelo contrário. Ela traz duas novas inquietações: como Zaratustra
pode ser, ao mesmo tempo, ele próprio e o pastor com quem ele grita? E o que quer dizer a
afirmação, ao final da citação anterior, de que Zaratustra estava doente de sua própria redenção?
A teoria pulsional apresentada e discutida nesta tese oferece uma resposta à primeira
pergunta: em Da visão e do enigma, o que Zaratustra tem não é apenas uma visão, mas uma visão
introspectiva, tudo o que ali se passa é Zaratustra. Ou melhor, as pulsões que são o si Zaratustra.
Nessa cena, zaratustra182 representa as pulsões fortalecidas, ao passo que o anão, seu inimigo,
representa as pulsões enfraquecidas. O grande acontecimento dá-se em face ao portal instante, a
primeira anunciação do eterno retorno do mesmo. Se o anão (as pulsões enfraquecidas do si) o
aceita, para logo lhe fugir, zaratustra (as pulsões fortalecidas do si) mergulha na profundidade do
eterno retorno do mesmo simbolizado pelo portal instante.
Mas a visão, ou melhor, essa parte da visão é dissipada pelo grito do pastor, que é também
Zaratustra, ou melhor, uma parte ou algo no si que é Zaratustra. Quando zaratustra acode ao grito
e se depara com a serpente sufocando o pastor, ordena que ele (o pastor) morda e cuspa fora a
serpente.
A organização pulsional que Zaratustra é, o si que se chama Zaratustra, é totalmente
desestabilizado pelo contato com o eterno retorno do mesmo. As pulsões enfraquecidas (anão)
fogem ao contato do eterno retorno do mesmo, as fortalecidas (zaratustra) tentam se aprofundar
no eterno retorno do mesmo, mas tal tentativa é cortada e o portal se desvanece, para que, em
seguida, o eterno retorno do mesmo se reapresente de uma maneira ainda mais sombria: a
serpente. Novamente Zaratustra/zaratustra falha em aceitar o eterno retorno do mesmo, em
aceitar a aposta que ele representa, a aposta de Nietzsche. Esse fracasso tem duas causas: a
piedade que zaratustra sente pelo pastor (ou que sente por si mesmo?) e a própria serpente, com
seu significado profundo.
181
“Estribilho” traduziu Leier-Lied. Sobre tal tradução, é interessante citar a nota de rodapé que o tradutor Rubens
Rodrigues Torres Filho (Os Pensadores) escreveu: “Leilerlied (literalmente: cantiga de lira), Leier (lira); mas Leier
também é o nome para “realejo” e serve de imagem para “repetição monótona” (“cantilena” ou “estribilho”); note-se
sempre aqui, e mais adiante, a importância da ideia de repetição.” (TORRES FILHO apud NIETZSCHE, 1999, p.
238).
182
Usou-se minúscula propositadamente, para significar as pulsões fortalecidas, que em Da visão e do enigma são
representadas como Zaratustra.

231
Antes, porém, de se dizer o que, ou quem, é a serpente, é necessário compreender por que
Zaratustra foge ao eterno retorno do mesmo em Da visão e do enigma e por que, na citação acima,
Zaratustra adoece de sua redenção. A resposta será fundamental mais adiante, quando se
confrontar a vontade de poder a outra ideia fundamental em Assim falou Zaratustra: o amor fati.
Na parte de Assim falou Zaratustra intitulada Da redenção, o filósofo conta o que exatamente é a
redenção. Nas palavras do filósofo:

Redimir o passado e então transformar todo “foi assim” em “assim eu o quis!” – apenas
isso significaria para mim redenção!
Vontade – assim se chama o libertador e trazedor de alegria: assim vos ensinei, meus
amigos! E agora aprendei também isso: a própria vontade ainda é/está183 prisioneira.
A vontade liberta: mas como se chama aquilo que mantém em correntes até o libertador?
“Foi assim”: assim se chama o ranger de dentes e a mais solitária aflição da vontade.
Impotente contra Isso,184 o que está feito, ela (a vontade – VS) é uma má espectadora de
todo o passado.
A vontade não pode querer para trás; que ela não possa quebrar o tempo e a avidez do
tempo, – essa é a mais solitária aflição da vontade. (NIETZSCHE, KSA IV, Za, Da
redenção, p. 179-80. Tradução e grifo meus).

O que é a redenção? A vontade. Mas não qualquer vontade, e sim a vontade de poder,
apenas ela, compreendida na chave de interpretação da parábola Das três metamorfoses, em
particular na transformação do camelo em leão, apenas ela, a vontade de poder, pode transformar
o “foi assim” em “assim eu o quis!”. A vontade de poder dos tipos superiores é a verdadeira
redenção. Mas essa vontade de poder tem um limite: o já sido. A vontade de poder não pode
querer para trás, apenas o que ainda está por ser está sujeito ao seu poder.
Por mais forte e superior que seja um tipo, o que já aconteceu não pode ser alterado.
Afinal, o eterno retorno do mesmo não permite modificações, ele não é seletivo. Desse modo,
transformar o “foi assim” em “assim eu o quis” é uma tentativa de apropriação e validação do
passado em face do presente e das perspectivas futuras. Ignorando o problema teleológico que
aqui está claro, é interessante notar um outro maior, ao menos na perspectiva central da tipologia
nietzscheana: esse apoderar-se do passado é ressentimento ou consolação, que pode ser expresso

183
“É/está” traduziu ist, conjugação do verbo sein. Como no inglês to be ou no francês être, o verbo sein é, ao
mesmo tempo, ser e estar.
184
“Isso”, escrito com inicial maiúscula, traduziu Das, partícula de espectro semântico muito amplo, podendo ser
desde um artigo até um pronome relativo ou pessoal. Todavia, grafada em maiúscula, como Nietzsche o fez, tem
claramente sentido de substantivo, o “Isso”, este “Isso”, porém, faz referência direta à segunda parte da oração, “o
que está feito” (was gethan ist). Nesse caso, “o que está feito” não é apenas uma alusão ao passado e à sua
irreversibilidade, mas a um verdadeiro substantivo. “O que está feito” é o “Isso”.

232
na frase: “assim eu o quis, mas também não podia ser diferente, pois querendo ou não querendo,
teria sido assim”.
Esse é o ranger de dentes da vontade de poder; independentemente de seus movimentos
em direção ao poder, o mundo já está posto e sempre o esteve, e na chave interpretativa do eterno
retorno do mesmo, se não pode ser mudado agora, nunca o pôde. Se a vontade de poder é
impotente contra o passado, na lógica do eterno retorno do mesmo ela também o é contra o futuro.
E isso a vontade de poder não pode aceitar. Aceitar o eterno retorno do mesmo é o maior de todos
os paradoxos nietzscheanos, pois aceitar o eterno retorno do mesmo é aceitar o fim da vontade de
poder e do si.
É por esse motivo que Zaratustra está doente de sua redenção. Ele está doente de sua
vontade de poder. Se a vontade de poder cria os tipos superiores, ela não cria o além-do-homem.
Zaratustra, que quer tornar-se o além-do-homem, tem como barreira ele mesmo, o si que ele é e
sua vontade de poder. É por isso que ele foge, em Da visão e do enigma, do eterno retorno do
mesmo, foge da autoaniquilação. E novamente, junto ao pastor ele foge do eterno retorno do
mesmo, mas agora já é momento de analisar o que ou quem é a serpente que sufoca o pastor.
Claramente a serpente é outro símbolo do eterno retorno do mesmo. Todavia, em relação
ao portal em Da visão do enigma, que ainda empolga Zaratustra/zaratustra para que este queira
mergulhar nas profundezas do eterno retorno do mesmo, a serpente é o eterno retorno do mesmo
no seu aspecto mais sombrio, que não é nem um pouco encorajador para Zaratustra. Se em Da
visão do enigma ainda se fala em um instante extraordinário que justifique o eterno retorno do
mesmo, com o pastor e a serpente tem-se o aspecto verdadeiramente trágico do eterno retorno do
mesmo.
Nietzsche escolheu perfeitamente seu símbolo, pois, se na tradição cristã a serpente é o
símbolo da tentação, na alquimia é o símbolo da eternidade e da repetição eterna, na forma do
oroboro. Se Zaratustra é o pastor, como se viu anteriormente, uma serpente que lhe entra pela
boca tenta por meio de seu corpo fechar um ciclo, tenta criar a repetição. Pode parecer estranha
tal interpretação, pois ela evoca, necessariamente, uma relação entre a digestão do pastor e o
engolimento da serpente para que o ciclo se complete. Não se deve ignorar o quanto Nietzsche
apreciava as metáforas fisiológicas, em especial as digestivas. Mas por que a mudança entre a
primeira visão do eterno retorno do mesmo e esta agora? Ou seja, por que em face do portal que
prefigura a repetição Zaratustra tenta o aprofundamento e agora ele simplesmente foge?

233
No primeiro momento, Zaratustra está preso ao instante extraordinário, agora, porém, ele
se depara com o trágico no retorno, que ele próprio revela, novamente em O convalescente:

O grande desgosto com os homens – isso rastejou para minha garganta e me sufocava: e
aquilo que o profeta profetizou:185 “tudo é o mesmo, nada vale a pena, o conhecimento
sufoca”.186
Um longo crepúsculo coxeava perante mim, um cansaço mortal, um pesar embriagado de
morte, que falava com a boca bocejante.
“Eternamente ele retorna, o homem de que estás cansado, o pequeno homem” – assim
bocejava a minha tristeza, e arrastava o pé, e não podia adormecer. (Ibidem, p. 274).

A serpente é o aspecto trágico do eterno retorno do mesmo, e o conhecimento de que tudo


retorna, até o pequeno homem, é tão sufocante quanto a própria serpente. É isso que Zaratustra
não pode suportar na visão do pastor. E é por isso que pela segunda vez ele foge ao eterno retorno
do mesmo. E o que é mais importante: se perante o portal Zaratustra/zaratustra tenta se
aprofundar e quem deseja fugir é apenas o anão (as pulsões enfraquecidas), no caso do pastor
todo o Zaratustra quer fugir. Zaratustra, enquanto um si, quer negar o eterno retorno do mesmo,
seja o que nele é anão seja o que nele é zaratustra.
Zaratustra ordena ao pastor que morda e arranque a cabeça da serpente, impedindo assim
o fechamento do círculo. Em termos pulsionais, não são apenas as pulsões enfraquecidas (anão)
que mandam o pastor morder a cabeça da serpente, o próprio zaratustra (pulsões fortalecidas)
grita conjuntamente. O sentido do grito de Zaratustra para o pastor é muito importante. Na
verdade, ele começa dizendo que sua mão puxou a serpente, ele não diz que ele puxou a serpente.
Puxar a serpente é descrito como ato involuntário, como ato não do Eu, mas da própria
mão. Em seguida vem a confirmação de que o Eu foi suplantando e o si manifesta-se diretamente:
“então algo gritou de dentro de mim”. Não é Zaratustra que grita, não é o Eu do si que é
Zaratustra que grita, é algo dentro de Zaratustra. Gritam as pulsões, mas não gritam apenas as
fortalecidas (zaratustra), gritam todas, inclusive as enfraquecidas (anão): “assim gritou de mim

185
Alusão à seção O profeta da II parte de Assim falou Zaratustra. Há aqui um jogo linguístico alemão que
dificilmente pode ser reproduzido em português: “o profeta (Wahsager) profetizou (wahrsagte)”. A palavra
Wahsager é composta de duas outras palavras Wah, radical de Wahrheit (verdade) e o verbo sagen (dizer, falar). É
um substantivado para significar alguém que realiza a ação indicada pelo verbo, então, o que se tem é um “falador da
verdade”, cuja ação é descrita pelo verbo wahrsagte, que, desmembrado, possui a mesma estrutura de Warsager,
porém tornada verbo e significando, literalmente, “falar a verdade”. Por isso preferiu-se a tradução “o profeta
profetizou”.
186
É interessante notar que Nietzsche usou o mesmo verbo “sufocar” (würgen) tanto para o conhecimento quanto
para a serpente: ambos sufocam.

234
minha piedade, meu ódio, meu desgosto, meu horror, todo o meu bem e o meu mal gritou de mim
em um único grito”.
O si que é Zaratustra rompe a máscara do Eu e se manifesta em plenitude. O si que é
Zaratustra nega o retorno. O que está enfraquecido neste si nega o eterno retorno do mesmo
porque ele é a repetição do enfraquecimento e do apequenamento, e o que, neste si, está
fortalecido nega o retorno porque ele é o retorno do todo, inclusive do pequeno e enfraquecido,
da vileza e da mesquinhez humanas, demasiado humanas.
Mas se a mordida que o pastor desfere na serpente é a negação do eterno retorno do
mesmo, e, consequentemente, a permanência na condição humana, tendo em vista que apenas a
aceitação do eterno retorno do mesmo pode tornar o homem em além-do-homem, por que, então,
Zaratustra se impressionou tanto com o riso do pastor ao ponto de afirmar que após a mordida o
pastor se tornou um transfigurado e que aquele riso não era um riso humano?
Novamente aqui é necessário recorrer a uma interpretação pulsional. Zaratustra é uma
arena onde combatem as pulsões enfraquecidas (anão) e as pulsões fortalecidas (zaratustra); seu
status pulsional depende do resultado dessa batalha. O pastor é uma espécie de meio-termo entre
ambos. Na terceira dissertação de A genealogia da moral, Nietzsche afirma que o pastor é um
membro do rebanho, porém com uma função especial, que é a de proteger e dirigir o rebanho.
Proteger e dirigir, mesmo que o rebanho, e não a si mesmo, são funções de comando, logo,
pertencem aos tipos superiores, porém os instrumentos de proteção e direção usados pelo pastor
são tipicamente inferiores: a moral e seus derivados.
O pastor, então, é uma figura tipológica indeterminada, de grande transitoriedade e
mobilidade. E é essa figura que determina em Da visão e do enigma o destino de Zaratustra.
Naquele momento, quer parecer que a vontade de poder ascendente triunfa e que aquilo que em
Zaratustra é pastor põe-se ao lado do que em Zaratustra é zaratustra contra o que em Zaratustra é
anão. O riso do pastor é o riso da pulsão que ascende, que se fortalece, mas esse fortalecimento
dá-se na negação do eterno retorno do mesmo, ou seja, dá-se na ascensão de um tipo inferior a
um tipo superior, e apenas isso. Se Zaratustra fala que o riso do pastor não é humano, não chega a
afirmar, porém, que ele é sobre-humano. O riso do pastor representa o triunfo das pulsões
fortalecidas sobre as enfraquecidas, mas, ao mesmo tempo, representa o fortalecimento da
vontade de poder, logo, representa o fortalecimento daquilo que impede a passagem do homem
ao além-do-homem, por isso Zaratustra, em O convalescente, afirma estar doente de sua redenção.

235
É somente ao final de O convalescente que Zaratustra percebe o quão distante ainda está
do além-do-homem. Sabe que resvalou a decadência pulsional e que o que lhe salvou (a adesão
do pastor e o fortalecimento da vontade de poder) também lhe impede a última transmutação;
sabe que apenas superando a vontade de poder passará de leão a criança, apenas superando a
vontade de poder e aceitando o eterno retorno do mesmo conhecerá o amor fati, caracterização
única e suprema do além-do-homem.
O além-do-homem não é definido pela vontade de poder, pois esta é força e luta, já o
amor fati é definido pela aceitação, pelo dizer sim. Se a vontade de poder é luta, o amor fati é
entrega. Mas essa entrega, no pensamento de Nietzsche, tem um sentido de vitória: é a abertura
do si para a totalidade, tanto a totalidade das pulsões do mundo quanto a do tempo.
Em O convalescente, Zaratustra percebe que o sentido máximo de sua transformação, de
sua autoeducação, é tornar-se o além-do-homem. É só nessa parte do livro que ele aceita
efetivamente a aposta de Nietzsche e não foge mais ao eterno retorno do mesmo. É interessante
notar que na própria estrutura da obra e dos discursos de Zaratustra há uma modificação ou um
deslocamento: não mais o além-do-homem, mas, agora, o eterno retorno do mesmo é o tema
central dos discursos de Zaratustra. Todavia, parece que a personagem ainda se encontra
enfraquecida, a convalescença ainda não foi completa, pois são seus animais que dizem que ele se
tornou o mestre do eterno retorno do mesmo e que agora precisa de uma nova lira para as suas
novas canções (Ibidem, p. 275).
Findo O convalescente, vêm então, no livro Assim falou Zaratustra, as novas canções de
Zaratustra, cujo tema não podia ser outro: o eterno retorno do mesmo e o amor fati. E embora o
amor fati não seja nomeado, ele fica explícito no nome da última seção da terceira parte Os sete
selos (ou a canção do sim e amém). Nesse encerramento de capítulo, Nietzsche finaliza cada
“estrofe” da canção de Zaratustra com uma alusão ao eterno retorno do mesmo na forma de um
anel matrimonial com o qual Zaratustra selaria seu casamento com a única mulher com a qual
gostaria de ter um filho: a eternidade.
A aceitação da eternidade, inclusive sua aceitação como esposa, é um símbolo para o
amor fati, bem como o subtítulo dessa nova canção (sim e amém). O amor fati talvez seja um dos
mais belos e profundos pensamentos de Nietzsche; talvez, por isso mesmo, seja tão pouco
mencionado e tão pouco discutido pelo filósofo. Aparece, no conjunto de sua obra, entre textos

236
publicados e póstumos, apenas nove vezes. A primeira delas é no início da quarta parte de A gaia
ciência:

Para o Ano-Novo. – Eu ainda vivo, eu ainda penso; ainda tenho de viver, pois ainda tenho
de pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo sum [Eu sou, portanto penso: eu penso, portanto
sou]. Hoje, cada um se permite expressar o seu mais caro desejo e pensamento: também eu,
então, quero dizer o que desejo para mim mesmo e que pensamento, este ano, me veio
primeiramente ao coração – que pensamento deverá ser para mim razão, garantia e doçura
de toda a vida que me resta! Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é
necessário nas coisas – assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor
fati [amor ao destino]: seja este, doravante, meu amor! Não quero fazer guerra ao que é
feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única
negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas
alguém que diz Sim! (NIETZSCHE, GC, p. 187-8).

O amor fati é descrito, então, como amor ao destino, amor à vida como ela se apresenta,
com todos os seus aspectos felizes e trágicos. Para Nietzsche não fazia sentido negar qualquer
parte da vida. Mas é no Ecce Homo, capítulo Por que sou tão inteligente, que Nietzsche oferece a
definição mais clara do que é seu amor fati:

(...) Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para
trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos
ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o necessário – mas amá-lo...
(NIETZSCHE, EH, Por que sou tão inteligente, p. 51).

Desejar a vida em sua totalidade não porque ela não pode ser diferente, mas porque é
necessário que ela seja como é, e, então, amá-la por isso mesmo e desejar seu eterno retorno do
mesmo. Por isso o eterno retorno do mesmo é a chave para o amor fati, ou o amor fati a chave
para o eterno retorno do mesmo; de qualquer sorte, ambos estão sempre ligados. Mas dessa união
perpétua está excluída a vontade de poder.
A vontade de poder é força e resistência. E é ao mesmo tempo esforço de um si por se
perpetuar, enquanto si, no mundo e fazer o mundo à sua imagem e semelhança. É querer mudar o
mundo e distinguir-se deste. O amor fati e a vontade de poder são forças opostas. Pode-se dizer
que a vontade de poder descreve o existir humano: todo si vive a realidade da vontade de poder.
Já o amor fati descreve o existir do além-do-homem: o além-do-homem não é vontade de poder,
ele é amor fati, é entrega e eterno dizer sim a tudo.
É isso que busca Zaratustra na quarta e última parte do livro. Esse é o esforço de sua
autoeducação: tornar-se o além-do-homem, abandonar a vontade de poder e aceder ao amor fati.

237
Mas no caminho de Zaratustra há uma incrível pedra de tropeço, capaz de desencaminhar até o
mais superior de todos os tipos e pôr à prova seu amor pelo destino.

A última tentação de Zaratustra

Na quarta e última parte de Assim falou Zaratustra, a personagem se depara com o que é
sua última tentação, que define seu status tipológico. Na segunda seção da parte final dessa obra,
Zaratustra encontra-se do lado de fora de sua caverna, sentado sozinho sobre uma pedra, quando
vê surgir em seu campo de visão uma sombra, que é a do profeta. 187 Zaratustra recebe-o
cordialmente e enceta um breve diálogo, no qual o profeta pergunta se ele não ouve um vozerio e
um clamor que vêm das profundezas (NIETZSCHE, KSA IV, Za, O grito de socorro, p. 301).
Zaratustra, após alguns instantes de silêncio, consegue ouvir o grito e diz ao profeta:

Tu profeta de más novas, disse finalmente Zaratustra, isso é um grito de socorro e um grito
de um ser humano, que provavelmente vem de um negro mar. Mas que me importa a
miséria humana! O último pecado que me está reservado, – tu sabes como se chama?
– Compaixão! Respondeu o profeta de seu coração transbordante e levantando ambas as
mãos – oh, Zaratustra, eu venho te seduzir/tentar para teu último pecado! (Ibidem, p. 301).

Pelo que Zaratustra fala ao profeta, pode-se compreender que aquele não se importa com
as misérias humanas. Parece dizer ao profeta que não se apiedará por um simples grito. Em
seguida o profeta insiste, dizendo que o grito chama por Zaratustra. Por fim, Zaratustra se deixa
enredar na tentação e pergunta: “E quem é este, que me chama lá de baixo?” (Ibidem, p. 302).
Apesar de dar a entender que não se preocupa com as misérias humanas, Zaratustra quer
saber quem clama por ele, dando indícios de que já incorreu em seu último pecado, a compaixão,
aquele que lhe barrará, para sempre, a transmutação em direção ao além-do-homem. Mas a
compaixão de Zaratustra não é por todos os humanos, mas em especial por aquele que grita por
ele, que o profeta revela ser o homem superior (höhere Mensch). A caracterização de Zaratustra
após tal revelação também é reveladora.
Zaratustra parece entrar em um transe,188 e é nesse transe que parece se intensificar o
papel tentador do profeta, um duplo papel tentador, pois torna a repetir discursos já ditos

187
Ver nota 15.
188
O personagem é descrito, inclusive, como tendo a pele coberta de suor (seine Haut bedeckte sich mit Schweiss).

238
anteriormente a Zaratustra, em especial o discurso da desesperança, aquele que diz que nada vale
a pena, agora intensificado pela afirmação de que não existem mais sequer as Ilhas Bem-
Aventuradas. 189 O papel do profeta é duplamente tentador porque é essa última arenga, essa
última provocação que tira Zaratustra de seu transe, como se o último insulto tivesse feito
Zaratustra recobrar os brios. Mas isso é uma ilusão, ou melhor, é o desenvolvimento da dupla
tentação: é esse recobrar os brios que leva Zaratustra a abandonar o profeta em sua caverna e se
embrenhar pelos vales das montanhas em que fica sua caverna, em busca daquele que grita, em
busca do homem superior.
Zaratustra encontra diversas figuras do homem superior em suas andanças em busca do
grito de socorro. E todos que encontra, manda que subam à sua caverna. Ao final de suas
andanças, quando retorna à caverna, reúne-se com seus convidados em celebração. Na manhã do
dia seguinte, ao acordar, sair da caverna e sentar-se, novamente, em sua pedra, solitário, é que
Zaratustra percebe o que se havia passado com ele. Tudo não passara de sonho ou delírio:

O próprio Zaratustra, porém, surpreso e aturdido, levantou-se de seu assento, olhou em


volta, ficou lá pasmado, interrogou o seu coração, refletiu e estava sozinho. “O que ouvi
então? – finalmente disse ele lentamente, o que acaba de me acontecer?”
Veio-lhe então a memória, e ele compreendeu tudo em um relance, o que tinha ocorrido
entre ontem e hoje. “Aqui está a pedra, disse ele, e alisou a barba, sobre ela sentei-me
ontem pela manhã; e aqui veio o profeta até mim, e aqui eu ouvi pela primeira vez o grito,
que acabei de ouvir, o grande grito de socorro.
Oh, homens superiores, era a vossa miséria, que ontem pela manhã o profeta me
profetizou, –
– era para a vossa miséria que ele queria me seduzir e tentar: oh, Zaratustra, ele me disse,
eu venho para te seduzir para o teu último pecado.
Para o meu último pecado? – exclamou Zaratustra e riu furioso de suas próprias palavras:
mas o que me restou guardado como meu último pecado?”
– E mais uma vez afundou-se Zaratustra em si mesmo e sentou-se novamente na grande
pedra e ponderou. De repente ele saltou e pôs-se de pé, –
“Compaixão! A compaixão pelos homens superiores! – ele gritou, e seu semblante
transformou-se em bronze. Pois bem! Isso – já teve o seu tempo!” (Ibidem, O sinal, p.
407-8).

Todavia, como Jesus na cruz, no livro de Nikos Kazantzakis A Última Tentação de Cristo
(The last temptation of Christ), Zaratustra só consegue descobrir o pecado, seu último pecado e
tentação, após vivenciá-lo, ainda que em um delírio. Zaratustra não é forte o suficiente para
ignorar o grito dos homens superiores, a compaixão o demove. A compaixão de Zaratustra pelo

189
Ilhas Bem-Aventuradas (glückseligen Inseln) é o local no qual se encontra a caverna de Zaratustra. Aqui também
desempenha um papel não geográfico, alusão a um lugar feliz no qual a esperança de transformação e elevação do
homem é mantida.

239
homem superior é sua última queda. É incompatível com o amor fati. Aquele que ama o mundo
em sua completude não sente compaixão, pois sabe e sente que não poderia ser diferente. A
compaixão é ainda um sentimento humano, demasiado humano.
Zaratustra aceita a aposta de Nietzsche, mas essa aposta só é vencida por quem consegue
se manter mais tempo na incerteza quanto ao eterno retorno do mesmo. A compaixão pelos
homens superiores e o medo de que algo lhes aconteça tiram Zaratustra da incerteza, fundamental
à aposta de Nietzsche. A última tentação de Zaratustra é saber se ele é capaz de entregar o
homem superior ao seu próprio destino e não se preocupar mais com ele. Nada que Zaratustra
faça em relação ao futuro do homem superior poderá alterar as ascensões e decadências
envolvidas em uma vida humana. Nada que ele faça pelo homem superior pode impedir que haja
manutenção em sua condição de vida e que esta seja a ponte entre uma repetição da condição de
nascimento na condição de morte, pois o eterno retorno do mesmo faz com que o “por ser” seja a
eterna repetição do “já sido”. E isso o si que é Zaratustra e sua vontade de poder não podem
aceitar. Essa é a compaixão de Zaratustra pelo homem superior: que ele não possa auxiliá-lo a
fugir de toda a decadência.
A última tentação de Zaratustra não descreve apenas o limite da autoeducação de
Zaratustra, mas o limite da educação para Nietzsche. Por mais que a educação se realize
distinguindo a condição de nascimento e a condição de morte, por mais que a transição entre os
tipos permita a ascensão, e que a educação seja feita como ascensão tipológica, aos moldes da
educação para a cultura, a compaixão e o cuidado/preocupação que se tem pelo educando e seu
destino não permitem que o homem superior devenha em além-do-homem.

240
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251
Índice Remissivo

acreditar, 14, 56, 62, 130, aristocrático(a), 74, 85, 118, civilizado(a), 65, 80, 137,
150, 151 125, 126, 134, 135, 140, 161
adestramento, 113, 114, 150, 167 comentadores, 15, 17, 18,
156 ascensão, 23, 37, 71, 72, 73, 28, 81, 93, 178, 183, 189,
afeto, 24, 25, 26, 27, 30, 43, 75, 103, 108, 110, 112, 199, 218
57, 64, 67, 99, 101, 103, 113, 114, 119, 123, 124, compaixão, 132, 134, 149,
115, 152, 169 125, 126, 128, 148, 173, 151, 153, 233, 234
alegria, 26, 56, 124, 130, 174, 175, 195, 197, 198, condição de morte, 60, 69,
215, 216, 227 230 71, 72, 73, 75, 79, 83, 86,
além-do-homem, 17, 81, atrito, 98, 143 95, 102, 108, 110, 112,
177, 178, 179, 180, 181, aumento, 59, 60, 62, 63, 65, 116, 118, 119, 124, 126,
183, 184, 185, 186, 187, 144, 148, 163, 173 149, 154, 168, 172
188, 189, 190, 191, 192, autoconhecimento, 53, 151, condição de nascimento,
196, 197, 198, 199, 220, 175 60, 68, 69, 71, 72, 73, 75,
221, 222, 223, 228, 230, autosuperação, 156 79, 83, 86, 95, 102, 108,
231, 232, 233 barbárie, 22, 32, 62, 85, 86, 110, 111, 112, 116, 118,
alma, 55, 56, 57, 58, 69, 93, 97, 119, 124, 126, 149, 154,
94, 111, 139, 140, 154, besta loura, 32, 84, 85, 88, 168, 172, 176, 191
156, 161, 192, 220 97, 104, 126, 127, 145, condição de vida, 60, 69,
amizade, 22, 192 187 71, 72, 75, 79, 110, 116,
amor, 14, 17, 36, 62, 101, biológico(a), 29, 30, 31, 82, 124, 149, 151, 154, 163,
110, 117, 122, 181, 194, 202, 111, 154, 214, 238 164, 168, 172, 190, 196
197, 236 bom, 14, 96, 136, 137, 148, conflito, 21, 22, 30, 31, 34,
amor fati, 9, 10, 17, 27, 36, 151, 170, 181, 188, 224 35, 36, 37, 38, 42, 47, 50,
182, 222, 223, 227, 231, camelo, 185, 192, 193, 195, 55, 56, 58, 61, 62, 65, 66,
232, 233 196, 227 69, 87, 90, 93, 97, 98,
anão, 80, 204, 205, 206, cartesiano(a), 42, 43, 48, 105, 111, 117, 125,
207, 208, 221, 223, 226, 50, 53, 54, 119, 142 127,138, 139, 140, 142,
229, 230 castigo, 43, 100, 147 148, 143, 154, 156, 162,
anarquia, 58, 68, 79, 93, 95, ciência, 14, 36, 40, 44, 48, 163, 164, 165, 168, 169,
97, 98, 99, 107, 114, 153, 61, 104, 108, 117, 181, 175, 176, 190, 191, 195,
154, 164, 223, 225, 231 193, 200, 201, 205, 215, 196, 211, 236
animal, 29, 45, 51, 52, 84, 216, 217, 221, 232 conhecimento, 15, 19, 26,
85, 86, 88, 89, 115, 121, círculo, 48, 122, 147, 205, 30, 35, 36, 42, 43, 44, 45,
161, 180, 187, 194, 195 208, 217, 225, 229 46, 47, 48, 50, 53, 54, 77,
aposta, 208, 214, 217, 219, civilização, 40, 69, 72, 83, 86, 91, 128, 145, 151,
220, 221, 222, 223, 226, 91, 112, 113, 114, 115, 152, 154, 164, 175, 176,
231 116, 117, 118, 123, 124, 192, 229
aristocracia, 93, 126, 127, 125, 126, 127, 133, 135, consciência, 42, 46, 47, 50,
128, 139, 148, 155, 156, 136, 148, 149, 150, 168, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 58,
160, 167 170, 242 59, 61, 63, 66, 67, 68, 69,

253
85, 86, 88, 89, 90, 91, 92, cultura superior, 71, 83, 154, 155, 156, 159, 160,
94, 95, 96, 98, 99, 100, 110, 112, 118, 126, 153, 161, 162, 167, 168, 169,
101, 105, 106, 108, 127, 155, 160 170, 171, 172, 173, 175,
138, 142, 150, 158, 160, Darwin, 65, 107 176, 177, 178, 189, 197,
161, 164, 166, 168, 175, darwinismo, 22, 64, 176 198, 199, 221
176, 198, 205, 213, 214, decadência, 64, 71, 72, 75, educador, 76, 110, 113,
218 81, 83, 87, 96, 98, 101, 135, 163, 165, 166
consciente, 26, 30, 162, 102, 103, 104, 105, 106, erudito, 77, 79, 157
165, 170, 225 108, 109, 110, 111, 112, escola, 71, 95, 110, 112,
conservação, 25, 44, 45, 51, 113, 114, 115, 119, 124, 128, 129, 131, 132, 133,
62, 63, 64, 91, 112, 114, 125, 126, 128, 132, 133, 134, 135, 136, 149, 159,
120, 145, 156 140, 142, 143, 148, 159, 169, 170
contemporâneo(a), 62, 73, 161, 164, 168, 169, 184, escravidão, 148, 154, 156,
74, 79, 102, 135, 137, 190, 195, 196, 231 157, 158, 167, 168
151, 157, 175, 203 democracia, 62, 128, 135, escravo, 38, 65, 74, 75, 96,
contradição, 15, 16, 21, 33, 136, 137, 139, 140, 141, 97, 100, 159
43, 46, 52, 97, 105, 117, 142, 146, 153, 154, 167, espírito, 48, 50, 56, 65, 80,
152, 156, 175, 218, 222 169, 196, 238 94, 117, 120, 134, 142,
corpo, 24, 29, 30, 31, 38, democrático(a), 76, 85, 111, 147, 156, 158, 168, 174,
44, 50, 51, 53, 54, 55, 56, 127, 131, 132, 138, 148, 192, 193, 194, 196, 198,
57, 58, 59, 66, 69, 106, 150, 155, 156, 158, 159, 204, 205, 207, 223, 243
111, 136, 138, 154, 160, 192 espírito livre, 24, 76, 78,
228 Descartes, 41, 42, 48, 49, 79, 84, 104, 108, 123,
crença, 43, 44, 48, 49, 97, 73, 240 160, 165, 189
98, 101, 135, 140, 151, deserto, 158, 192, 194, 195, estudiosos, 16, 82, 122,
152, 154, 163, 219 238 151, 178, 189
crescer, 22, 66, 67, 77, 143, deus(a), 22, 32, 36, 39, 49, eterno retorno, 14, 16, 17,
144, 162, 164 74, 78, 79, 80, 100, 116, 27, 36, 80, 82, 83, 122,
crescimento, 31, 61, 62, 123, 127, 145, 147, 154, 124, 178, 179, 182, 185,
130, 134, 135, 143, 144, 159, 181, 214, 219 191, 193, 197, 199, 200,
155, 156, 162, 167, 172, dever, 160, 194 201, 202, 203, 204, 205,
174 disciplina, 87, 116, 118, 206, 207, 209, 210, 213,
criminoso, 114, 134, 169 138, 151, 162, 170, 173, 215, 216, 217, 218, 219,
cruel, 22, 26, 32, 180 176 220, 236, 244
crueldade, 52, 161, 205 dor, 44, 56, 58, 59, 90, 99, eterno retorno do mesmo,
cultivo, 17, 45, 103, 112, 115, 124, 130, 142, 148, 198, 208, 211, 212, 214,
114, 116, 118, 119, 125, 151, 152, 153, 158, 160, 222, 223, 224, 225, 226,
148, 162, 173 165, 200, 221 227, 228, 229, 230, 231,
cultura, 22, 38, 76, 80, 91, educação, 16, 17, 34, 42, 232
97, 102, 113, 115, 117, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 75, ético(a), 16, 17, 146, 154,
123, 127, 133, 136, 163, 77, 79, 85, 102, 106, 108, 166, 179, 200, 201, 207,
167, 168, 177, 187, 215, 109, 111, 112, 114, 115, 208, 214, 216, 217
221, 224 116, 118, 119, 123, 124, Eu, 27, 41, 42, 43, 47, 48,
cultura inferior, 110, 112, 125, 126, 127, 128, 130, 49, 50, 53, 54, 56, 58, 59,
126 131, 132, 133, 134, 136, 61, 66, 67, 68, 69, 73, 84,
137, 140, 143, 147, 148, 85, 86, 88, 89, 94, 95,
149, 150, 151, 152, 153, 100, 101, 106, 110, 119,
254
126, 128, 129, 130, 132, 123, 142, 152, 162, 164, histórico(a), 45, 73, 74, 75,
138, 142, 149, 150, 152, 168, 172, 196, 226, 229, 84, 119, 167, 168, 174,
158, 164, 166, 168, 172, 230 178, 189
176, 181, 184, 196, 201, forte, 25, 26, 28, 32, 40, 42, homem, 19, 22, 23, 26, 32,
211, 212, 213, 214, 218, 52, 64, 67, 68, 74, 82, 85, 48, 51, 57, 59, 64, 75, 77,
223, 225, 229, 230, 232 87, 91, 92, 93, 94, 97, 98, 79, 83, 85, 87, 88, 89, 90,
Europa, 14, 65, 75, 80, 102, 99, 107, 118, 133, 139, 91, 92, 93, 97, 98, 100,
141, 148, 154, 157, 161, 140, 144, 145, 147, 148, 104, 108, 115, 118, 119,
162, 173 150, 156, 160, 161, 163, 123, 127, 134, 137, 140,
evolução, 18, 51, 107, 171, 169, 177, 192, 196, 197, 141, 144, 145, 147, 159,
213, 214 201, 205, 210, 221, 227 171, 178, 180, 182, 189,
expansão, 19, 33, 35, 59, Freud, 19, 20, 29, 35, 39, 197, 198, 199, 210, 218,
61, 62, 63, 69, 111, 112, 41, 94, 236, 238, 240, 220, 222, 223, 224, 228,
131, 142, 143, 155, 162, 241, 245 229, 230, 231, 232, 234
167, 168 genealogia, 19, 32, 36, 51, humano, 16, 17, 20, 21, 24,
exploração, 62, 63, 65, 74 61, 65, 68, 77, 83, 85, 86, 27, 29, 30, 31, 34, 36, 38,
extraordinário, 86, 91, 207, 87, 88, 92, 100, 109, 111, 40, 41, 42, 43, 45, 47, 50,
228, 229 114, 120, 122, 144, 182, 52, 53, 55, 61, 62, 65, 66,
fé, 42, 48, 97 186, 243, 245 68, 69, 71, 72, 73, 74, 75,
felicidade, 22, 65, 80, 87, genealógico(a), 21, 33, 42, 76, 78, 80, 81, 82, 84, 86,
98, 136, 144, 187, 216 49, 50, 72, 84, 244 95, 96, 101, 103, 107,
filosofia, 236, 238, 241, gênio, 75, 76, 77, 78, 79, 109, 111, 112, 114,
242, 244 91, 110, 112, 128, 131, 117,121, 126, 128, 130,
força, 21, 22, 24, 25, 26, 27, 132, 163, 167, 189 131, 132, 133, 135, 136,
33, 34, 35, 36, 37, 40, 42, Goethe, 81, 84, 88, 173, 140, 146, 148, 149, 150,
45, 48, 59, 61, 62, 63, 67, 175, 176, 180, 183, 243 151, 154, 155, 156, 157,
82, 84, 85, 87, 88, 89, 90, grande política, 94, 153, 158, 160, 161, 162, 163,
91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 154, 155, 158, 160, 161, 165, 169, 170, 172, 174,
98, 99, 100, 101, 105, 163, 168, 170 175, 176, 177, 179, 181,
107, 111, 116, 117, 123, grandeza, 79, 175, 203, 183, 184, 185, 186, 187,
126, 127, 134, 139, 140, 222, 232 188, 190, 191, 192, 195,
142, 143, 144, 150, 151, guerra, 38, 56, 58, 63, 87, 196, 200, 201, 216, 221,
153, 158, 160, 162, 164, 88, 94, 122, 123, 124, 233, 243
166, 168, 170, 176, 192, 142, 143, 144, 162, 164, Hume, 39, 45
193, 194, 195, 197, 199, 191, 221, 232 identidade, 34, 36, 37, 45,
203, 209, 210, 215, 216, Hegel, 15, 73, 74, 119, 120, 46, 59, 130, 149, 175,
219, 221, 222, 223, 231, 239 176, 209, 210, 217, 218
232 hegeliano(a), 31, 96, 122, igualdade, 34, 36, 37, 45,
formação, 21, 23, 50, 66, 123 46, 59, 63, 67, 132, 137,
72, 113, 114, 115, 116, hierarquia, 58, 71, 74, 80, 139, 140, 141, 142, 143,
118, 123, 126, 128, 139, 85, 86, 105, 124, 131, 147, 152, 153, 155, 216,
146, 148, 149, 151, 159, 140, 155, 156, 173, 192 217
167, 171, 214, 246 história, 14, 15, 19, 22, 28, imperativo, 16, 17, 47, 179,
formulação, 37, 43, 128, 33, 40, 42, 44, 50, 54, 62, 201, 208, 214, 215, 216
131, 186 63, 65, 66, 80, 100, 102, impulsos, 22, 24, 25, 27,
fortalecido(a), 32, 67, 89, 118, 138, 151, 199, 211, 45, 62, 67, 87, 93, 94, 97,
97, 98, 99, 105, 108, 109, 237, 239, 245 98, 103, 137, 141, 173
255
inimigo, 14, 32, 80, 83, 87, 216, 219, 220, 221, 222, moralidade, 49, 96, 136,
89, 94, 139, 141, 144, 228 146, 147
145, 152, 172, 194, 195, loucura, 26, 63, 175, 192, Napoleão, 27, 59, 108, 168,
204, 207, 223, 226 225, 236 186, 187, 188
instante, 30, 38, 80, 201, manutenção, 30, 51, 52, 58, natural, 24, 25, 26, 98, 105,
203, 205, 206, 207, 217, 59, 66, 86, 88, 122, 127, 107, 142, 148, 161, 169,
220, 226, 228, 229 138, 167, 196, 214, 221 173, 174, 195, 239
instinto, 23, 24, 25, 26, 30, máscara, 54, 67, 85, 86, 89, natureza, 16, 32, 38, 40, 44,
38, 86, 88, 89, 90, 91, 98, 131, 150, 152, 158, 159, 47, 51, 53, 78, 79, 84, 85,
99, 105, 121, 140, 169 164, 168, 176, 212, 213, 88, 115, 118, 121, 123,
instintos, 26, 29, 50, 52, 90, 230 136, 137, 139, 145, 150,
93, 98, 99, 105, 106, 121, medo, 27, 59, 60, 115, 127, 153, 160, 168, 170, 73,
141, 169 134, 155, 169, 206 188, 209, 239
interpretação, 16, 17, 20, metafísico(a), 15, 16, 17, natureza humana, 39, 41,
24, 28, 29, 31, 35, 36, 37, 20, 21, 22, 23, 24, 29, 31, 62, 68
40, 55, 60, 61, 65, 68, 74, 32, 33, 36, 39, 40, 44, 48, nobre, 22, 26, 38, 79, 80,
76, 82, 90, 98, 99, 107, 49, 54, 68, 76, 78, 102, 99, 100, 127, 134, 145,
122, 129, 168, 184, 189, 116, 146, 200, 201, 212, 165
191, 193, 200, 201, 202, 215, 243 nobreza, 139, 154, 156,
203, 212, 213, 216, 217, moderno(a), 16, 39, 41, 42, 186, 198
223, 227, 228, 230, 241, 43, 49, 50, 56, 63, 68, 74, normativo(a), 207, 208,
245 79, 102, 111, 135, 137, 214, 215, 216
intérprete, 15, 38, 66, 165, 141, 148, 149, 155, 174, obediência, 25, 67, 87, 100,
179, 190, 206, 209 188, 245 114, 147, 167, 195
irracional, 17, 24, 27, 35, modernidade, 136, 159, ócio, 158, 159
52 160, 161, 238 orgulho, 27, 56, 86, 91,
justiça, 23, 45, 54, 120, momento, 30, 32, 36, 37, 170, 174, 192
139 41, 44, 47, 49, 52, 58, 63, paixão, 24, 26, 27, 30, 58,
Kant, 15, 31, 42, 44, 45, 73, 67, 68, 69, 72, 80, 81, 85, 92, 93, 137, 142, 158,
146, 173, 216 88, 102, 109, 113, 118, 237
kantiano, 42, 215 120, 123, 143, 155, 158, palavra, 17, 23, 24, 25, 26,
leão, 185, 192, 193, 194, 163, 166, 181, 185, 189, 27, 28, 29, 37, 38, 39, 43,
195, 196, 197, 221, 227, 196, 202, 204, 205, 207, 47, 50, 52, 56, 57, 58, 60,
231 211, 212, 213, 217, 219, 62, 68, 77, 78, 80, 85, 86,
liberalismo, 76, 137, 153, 222, 223, 228, 229, 230 89, 91, 92, 99, 100, 110,
154, 158, 167, 239 moral, 14, 23, 24, 26, 32, 113, 114,116, 117, 118,
língua, 18, 24, 38, 47, 54, 38, 40, 42, 51, 61, 62, 64, 119, 120, 121, 122, 129,
119, 120, 146, 166, 180, 65, 68, 69, 71, 72, 76, 82, 132, 134, 136, 137, 140,
225 88, 92, 94, 97, 98, 99, 141, 146, 155, 156, 159,
livre arbítrio, 40 100, 101, 107, 116, 119, 168, 172, 173, 174, 178,
lógico(a), 14, 28, 33, 34, 122, 123, 127, 128, 135, 179, 180, 181, 182, 184,
39, 40, 43, 44, 45, 46, 47, 137, 141, 142, 144, 145, 188, 192, 194, 198, 204,
48, 49, 51, 52, 54, 59, 61, 148, 150, 151, 156, 160, 205, 206, 207, 211, 212,
67, 100, 130, 141, 142, 162, 166, 174, 175, 182, 227, 229, 234
143, 149, 151, 156, 158, 187, 188, 193, 195, 198, pastor, 56, 223, 224, 225,
168, 196, 211, 213, 214, 210, 215, 217, 221, 236, 226, 228, 229, 230, 231
239, 240, 242, 243, 245
256
pathos da distância, 140, psicológico(a), 24, 41, 42, 166, 167, 176, 197, 212,
156 44, 67, 82, 99, 101, 106, 214, 218, 219, 232
pensamento, 14, 15, 16, 17, 121, 201, 212 rebanho, 56, 79, 97, 109,
18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, pulsional, 22, 46, 47, 55, 114, 115, 135, 144, 145,
27, 28, 29, 30, 31, 33, 34, 56, 65, 71, 75, 78, 83, 85, 149, 150, 151, 152, 153,
35, 36, 37, 38, 39, 41, 43, 87, 91, 102, 103, 104, 154, 155, 161, 167, 169,
44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 107, 113, 114, 115, 118, 170, 230
51, 52, 54, 55, 56, 57, 58, 124, 126, 127, 128, 130, reconhecimento, 83, 93,
59, 60, 62, 68, 71, 72, 73, 133, 135, 136, 138, 140, 144, 150
74, 75, 76, 81, 87, 90, 94, 143, 146, 148, 151, 154, reformulação, 126, 128,
96, 97, 102, 103, 106, 155, 159, 161, 164, 165, 129, 131
107, 115, 118, 119, 120, 167, 170, 173, 177, 190, repetição, 74, 99, 112, 124,
121, 122, 126, 127, 128, 191, 193, 195, 197, 209, 148, 191, 197, 206, 209,
129, 130, 131, 133, 134, 216, 217, 218 210, 211, 213, 214, 215,
137, 136, 138, 140, pulsões, 17, 19, 20, 21, 24, 216, 217, 218, 222, 223,
143,144, 147, 150, 151, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 226, 228, 230
153, 154, 155, 156, 157, 34, 35, 36, 37, 38, 40, 41, riso, 224, 230
159, 163, 164, 166, 168, 42, 43, 44, 50, 51, 52, 53, Rousseau, 15, 39, 153, 174,
171, 174, 176, 177, 178, 54, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 236
179, 183, 188, 189, 190, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 72, seleção, 71, 107, 155, 208,
191, 195, 199, 200, 204, 73, 82, 84, 86, 88, 89, 90, 209, 210, 227, 242
205, 206, 207, 208, 209, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, senhor, 26, 32, 64, 65, 66,
210, 211, 214, 215, 218, 99, 100, 101, 105, 106, 74, 75, 76, 79, 80, 84, 92,
221, 223, 224, 225, 231, 108, 109, 110, 111, 112, 96, 97, 100, 103, 144,
232, 236 116, 123, 125, 130, 137, 145, 159, 194, 195
pequena política, 160 141, 142, 144, 149, 152, serpente, 122, 223, 224,
perspectiva, 31, 33, 38, 40, 156, 158, 162, 163, 166, 225, 226, 227, 228, 229,
42, 59, 75, 79, 92, 94, 168, 169, 172, 175, 176, 230
103, 111, 127, 132, 135, 196, 203, 211, 213, 214, si, 41, 53, 55, 56, 58, 59,
136, 144, 147, 149, 191, 226, 229, 230, 231 61, 67, 86, 100, 116, 120,
221, 222, 225, 227 querer, 43, 64, 67, 83, 95, 129, 130, 131, 138, 162,
pessoa, 22, 25, 30, 59, 65, 105, 112, 150, 153, 164, 164, 175, 176, 201, 211,
67, 68, 72, 90, 108, 109, 170, 172, 202, 207, 208, 212, 226, 228, 229, 230,
110, 111, 124, 131, 138, 209, 211, 215, 227, 232 231, 232, 235
139, 144, 149, 150, 151, racional, 25, 26, 35, 39, 40, social, 42, 51, 57, 69, 71,
152, 156, 160, 164, 167, 44, 49, 52, 56, 57, 59, 76, 77, 78, 84, 85, 87, 88,
175, 176, 177, 179, 181, 109, 123, 141, 154, 218 90, 95, 110, 111, 112,
190, 191, 192, 201, 211, radical, 16, 45, 50, 59, 68, 114, 115, 127, 133, 136,
208, 212, 213, 215, 216, 77, 131, 157, 181, 196, 146, 149, 153, 161, 174
219, 220 229 sociedade, 19, 62, 76, 91,
piedade, 135, 224, 226, razão, 27, 28, 42, 47, 50, 97, 105, 124, 125, 126,
230 53, 67, 94, 166, 173, 216, 134, 137, 150, 151, 155,
Platão, 73, 151, 159 232, 238 156, 163, 167, 168, 169,
portal, 80, 204, 205, 206, realidade, 42, 48, 49, 53, 188, 210, 245
217, 223, 226, 228, 229 55, 58, 60, 62, 76, 103, Sócrates, 73, 159, 201
progresso, 65, 80, 187, 214 107, 114, 127, 128, 156,

257
sofrimento, 56, 90, 99, 124, útil, 31, 36, 53, 78, 103, viver, 87, 127, 158, 159,
132, 151, 152, 169, 171, 133, 135, 136, 142, 143, 170, 173, 185, 200, 201,
215, 225 144, 147, 151, 181 211, 215, 216, 217, 221,
superação, 17, 62, 79, 80, utilitário(a), 44, 61, 62, 65, 223, 224, 232, 238
94, 97, 98, 119, 120, 121, 143, 135, 147, 158 vivo(a), 22, 25, 30, 45, 61,
122, 173, 185, 238, 243 valor, 20, 26, 35, 42, 43, 66, 64, 69, 117, 121, 201,
super-homem, 79, 80, 179, 75, 80, 92, 94, 98, 101, 169, 232
180, 187, 188, 189 106, 116, 123, 126, 127, vocábulo, 30, 15, 113, 121,
supressão, 96, 119, 120, 131, 132, 133, 136, 140, 138, 151, 171, 173, 175,
122, 123 141, 146, 149, 150, 152, 179, 180, 225
tipologia, 32, 71, 72, 73, 74, 154, 156, 164, 166, 174, volição, 25, 26, 27, 34, 67,
86, 101, 102, 104, 108, 194, 195, 196, 200, 209, 112
109, 114, 119, 126, 131, 237, 241, 244 vontade, 26, 28, 35, 49, 53,
139, 167, 176, 178, 188, valoração, 23, 39, 51, 96, 56, 77, 122, 150, 152,
227 99, 105, 106, 103, 152, 162, 170, 172, 173, 184,
tipológico(a), 75, 103, 107, 174 185, 196, 198, 202, 215,
110, 112, 124, 128, 132, veracidade, 14, 50, 141, 217
134, 135, 148, 155, 161, 150, 151, 186 vontade de poder, 17, 20,
169, 183, 185, 190, 191, verdade, 32, 33, 41, 43, 45, 21, 25, 27, 33, 34, 36, 38,
195, 217, 230, 233 48, 49, 53, 63, 66, 67, 68, 55, 57, 58, 59, 60, 61, 62,
tipos inferiores, 73, 79, 80, 76, 89, 94, 100, 104, 115, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69,
82, 89, 91, 92, 95, 96, 97, 122, 123, 134, 143, 146, 71, 82, 83, 85, 86, 88, 91,
99, 100, 101, 104, 107, 147, 157, 162, 163, 175, 92, 95, 98, 99, 105, 111,
111, 112, 123, 124, 126, 185, 192, 194, 205, 208, 115, 116, 118, 133, 134,
131, 141, 142, 143, 146, 210, 218, 219, 220 135, 139, 140, 141, 142,
147, 148, 151, 153, 155, verdadeiro, 23, 35, 42, 46, 145, 146, 147, 148, 155,
156, 158, 160, 161, 162, 47, 50, 55, 86, 200, 209, 163, 169, 186, 209, 223,
168, 169, 178, 184, 185, 212, 215, 216, 227 227, 228, 230, 231, 232,
191, 192, 193, 195, 196, vida, 19, 22, 23, 24, 25, 29, 233
210, 211, 217, 230 31, 32, 35, 36, 45, 46, 51, Zaratustra, 14, 15, 18, 19,
tipos superiores, 71, 72, 74, 52, 58, 61, 62, 63, 64, 65, 23, 24, 29, 36, 55, 56, 57,
76, 78, 81, 83, 84, 85, 86, 77, 80, 82, 83, 85, 87, 88, 58, 59, 75, 77, 79, 80, 81,
87, 88, 93, 102, 103, 105, 92, 94, 97, 98, 107, 111, 100, 107, 114, 121, 122,
108, 109, 114, 119, 125, 122, 128, 130, 138, 141, 123, 124, 130, 140, 145,
127, 131, 132, 133, 134, 144, 145, 147, 156, 159, 157, 159, 163, 178, 179,
135, 140, 144, 145, 154, 160, 166, 167, 170, 174, 181, 182, 183, 184, 185,
157, 159, 163, 166, 167, 176, 181, 191, 197, 198, 186, 187, 188, 189, 191,
170, 172, 176, 183, 186, 199, 200, 201, 207, 208, 192, 197, 199, 200, 201,
187, 188, 189, 190, 197, 209, 211, 212, 213, 214, 203, 204, 205, 206, 207,
201, 209, 221, 223, 227, 215, 216, 217, 220, 221, 208, 210, 217, 220, 221,
228 222, 225, 232 222, 223, 224, 225, 226,
tradução, 113, 155, 171 virtude, 103, 137, 149, 160, 227, 228, 229, 230, 231,
transvaloração, 166, 241, 162, 169, 191, 193 233, 234
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