You are on page 1of 5
HISTORIA OBAL: COMO FAZEB, COMO PENSAR' Xénia de Castro Barbosa Um trabalho académico e sua comunicagao final devem corresponder 20 sujetto-pesquisador que o desenvolve, ao geu sistema de referéncias, a sua concepedo de mundo, Por bem conhecer os aulores deste livro, pesqui= sadores dedicados e militantes de uma histéria oral emancipada, posso afirmar que a correspondéncla 6 inequivoca, Fabjola Holanda 6 professora adjunta do Departamento de Histéria da Uni- versidade Federal de Rondénia, fundadora do Centro de Hermenéutica do Present e pesquisadora associada ao Nicleo de Estudos em Histéria Oral da USP (NEHO/USP) José Carlos Sebe Bom Melhy ¢ professor aposentado do Departamento de Hisi6ria da Universidade de Sio Paulo e coordenador do Niicleo de Estu- dos em Hist6ria Oral, onde hd mais de 15 anos desenvolve pesquisas nessa ‘A obra que ora vai a piblico 6 acentuadamente ousada! Permitird ao leitor| se inteirar da trajet6ria da histéria oral no Brasil, de suas lutas para se fi mar enquanto campo legitimo do conhecimento e de como tem se mostra- do instrumento eficaz para a claboragao de registros de experiéncias de vida, “Historia Oral: como fazer, como pensar” é reflevo de mais de uma déca- da de experiéncias de ensino e pesquisa desenvolvidas por integrantes do NEHO. Depois de (Re) introduzindo histéria oral no Brasil? e de cinco ed Jgdes do Manual de Histéria Oral” essa obra demonstra com afinco e su tilezas as convicgdes tedricas, politicas ¢ éticas que esses pesquisadores dlesenvolveram ao longo dos tillimos anos no fazer/pensar a hist6ria oral no Brasil Itaz consigo o ser manual, na medica em que orienta de manei- ra didatica procedimentos, expde conceltos, definicdes, modelos de fichas HISTORIA ORAL: COMO FAZER, COMO PENSAR de acompanhamentos do projeto © de autorizacao do uso de entrevistas, esbocos de etnografias registradas em caderno de campo, exemplos de transcrigdo, tedtualizagdo e transcriagdo, mas transcende o “ser manual”, mediante dislogo com outros textos, reflewies sobre 0 oral, 0 escrito, 0 ato da entrevista, teoria e empiria, formas de transcriagao e devolugao do ma- terial resultante das pesquisa Na primeira parte: “como fazer" nos deparamos com um roteira preciso para a claboracdo de projetos de hisi6ria oral que engloba desde pros- ‘suposios "bisicos", como a conceituaco de hist6ria oral e documentago proveniente da oralidade, 0 que & entrovista e os passos de um projeto, bom como uma discusstio sobre elotrOnica, goneros de historia oral e sou cestatuto, De acordo com os autores, histéria oral é um conjunto de procedimentos ‘que se inicia com a elaborago de um projeto. Este projelo prevé o estabe- lecimento de um grupo de pessoas a serem entrevistadas (comunidade de destino) as delimitagdes e recortes que se faz para melhor compreendé-lo ‘om suas especificidades (colbnia, redes),esclarecimento dos papéis das co- laboradores da pesquisa (quem entrevista e quem é entrevistado, 0 tempo ‘que ambos tém disponivel para a gravagio da entrevista, data e local do ‘encontro, que preferencialmente deve possiblitar a privacidade entre os co- laboradores e a boa qualidade das gravacoes, akém da transcrigdo, textual- lwagao, transeriagdo, conferéneia ¢ autorizacao da narativa - por meio de carta de cessio -e arquivamento, Importante destacar que os passos do trabalho de histéria oral acima men- Ccionados sio imprescindiveis em projetos de pesquisa, especialmente nos de carater académico, mas podem ser relativisados ou desenvoWvidos de forma parcial quando se tratar de projetos de iniciativa popular ou mes- mo de instituigdes, conforme as demandas do grupo. Um exemplo so os projetos que visam constituigio de bancos de histérias e acervos orais © nao constam em seus objetivos 0 estabelecimento de textos formals, tran- scriados, mas sim 0 regisiro de experiéncias relovantes vivenciadas pelo grupo, sa de forma direta, seja mediante as historias narradas por seus integrantes de mais idade, Um dos pré-requisitos e caracteristicas da histéria oral é a democracia, Movidos polo ideal da fala livre e responsdvel, da parnésia que deve ha- ver para que um regime seja de fato democratico, Meihy @ Holanda apre- sentam e discutem outras definigoes de histéria oral, seus significados e conseqiiéncias, como a que a entonde como “L) alternativa para estudar a sociedade por meio de uma documentagdo feita com 0 uso de entrevis- 169 170 XENIA DE, CASTRO BARBOSA. tas gravadas em aparelhos eletrOnicos ¢ transformadas om textos escri- tos" (p19). Somado a iss0 os autores introduzem uma reflexio sobre uma das marcas de nosso tempo. a eletrénica, que intermedela nossas relagdes com 0 mundo alterando nossas formas de cognico e apreensio dos fend ‘menos sécio-culturais. Os avangos tecnolégicos que ocorreram no con- texto da Grande Guerra e a necessidade do se captar © comproender as experincias trauméticas dela decorrentes possibiitou 0 advento da mod- cera historia oral, Se ela nao se faz sem os meios eletronicos, tecnol6gicos « informacionais, também depende da interacdo direta entre dois ou mais, sujetos (entrevistador ¢ entrevistados) do contato pessoal ¢ da atitude di- aldgica pautaca na confianga e no desejo de saber. Como gravadores nao gravam a ‘dor’, oralista precisa estar atento ao momento da entrevista & 8 performance de seu colaborador: seus gestos ¢ expresses facials, sor- rio, lagrimas, mudangas na entonacio vocal. pois tudo isso constitui a entrevista No tépico “histéria oral, documento representatividade” consta a prob- Jematizagtio do que 6 documento om hist6ria oral: se © arquivo de dudio, 2 transcrigio literal da entrevista ou 0 texto final autorizado pelo nar- rador. Em muitos casos essas entrevistas tem sido utlizadas cle forma complementar a outros documentos excritos ou para proencher vazios documentais, no entanto, poder ser utilizadas como corpus documental independente de outras fontes e “pode-se propor anilises das narrativas para a verificagdo de aspectos ndo revelados, subjetivos, altornativos aos documentos escritos” (p24. A historia oral justifica a construc de ent- revistas em trés situacSes especiais: quando exisiem versOes diferentes da histéria oficializada; quando hd a necessidade de se elaborar outros textos historiograficos, por motivo de inlerdicio e ideologias ofensivas a determi- nadas segments sociais; ¢ no caso de estudos de meméria, construca0 de identidades e de projetos comunitérios, sejam politicos, étnicos ou de valorizagio das manifestagSes culturais. COutra questio abordada na primeira parte do livro 6 a que diz respeito, 108 géneros de historia oral: de vida, tertica e tradigo oral. Conforme os autores: “As duas primeiras podem servir a projetos de bancos de historia, ‘ou implicar andlises que superom o sentido da recolha, mas a tradicao oral alude exames longos e complexos, incapazes de sintese. Nesse caso, alids, a observagio deve ser constante, continuadla, impessoal e sobre 0 coletivo" (p34) A histéria oral em sua modalidade “de vida" centra-se na. subjetividade e busca a valorizagéo das experiéncias de vida do sujeto ‘como um todo, Nese tipo de entrevista 0 que conta é a verdade narrativa, 2 forma como © narrador apreendou determinados fatos socials © no a HISTORIA ORAL: COMO FAZER, COMO PENSAR ‘maneira como estes sio evidenciados e atestados pelos demais documen- tos. A histria oral temtica almeja 0 esclarecimento de tema ou temas de Inieresse do projeto e se realiza por meio de questionérios, muitas vezes composto por argiides diretas e objetivas.Tradigio oral requer longos ‘anos de observacao participante na cultura do outro, de estudo de invest- gacio sobre sua meméria coletiva, seus fundamentos narrativos, miticos, ‘econémicos, cerimoniais e suas nogées de arte e de tempo. Fssa modal- dade de histéria oral é prima-irma da etnografia, que trabalha com per- ‘manéncias, re-atualizagbes © mitos, com a visto de mundo de individuos & Comunidade que tém valores ftrados por estruturas mentais asseguradas em referéncias a um passado distante, por isso percebe os individuos © 1s grupos estudados diferenternente da histéria oral de vida ou tematica, “onde prevalece 0 tempo presente. ‘A sogunda parte: “como pensar” 6 endossada por textos que promovem discussio teérica acerca de questes com as quas a hist6ria oral se vin- cala, como colaboracio, mediacio, tratamentos dos documentos. resu tantes do entrevisias, ipos de histéria oral (pura ou iarbeida, assim como um seu panorama, trajet6rias e caracterfsticas no Brasil No balango da experiéncia brasileira com a hist6ria oral Methy ¢ Holanda destacam caracteristicas de sua histéria, como o de ter nascida no exilio, por ocasio da ditadura militar (964-1985), 0 fato e se ater, em. muitos ca- ‘50s. um colonialismo “dependontista’, manifesto na importagao de textos ‘ calegorias analiticas estrangeiras, que nao levam em conta as especifici dacies nacionais e regionais,¢ 0 fato de se fechar na academia, resistindo aos domais selores capazes de produgao de conhecimento. Apesar do sou Contexto de origem ser desfavordvel ao livre falar, como que por vinganca pelo siiéncio imposto, foi o germe da repressio militar que acabou por tacitar 0 aparocimento de uma histéria oral vibrante, contestat6ria.” (pil ‘© apesar de constar nesse balanco experiéncias que na concep¢ao dos autores foram mal-sucedidlas devido a falta de vinculos com a sociedade, do dinamismo dos participantes ¢ de ambiente democratico,ressalta que a histéria oral no Brasil atualmente é uma realidade e abwo de boas expectati- vas nacionais e internacionais, gragas 20 trabalho competente desenvolvido por diversos grupos de pesquisa nas varias regiBes do Brasil No fazer histéria oral percebemnos duas fases distintas, sendo a primeira empirica © constituinlo do substrato da pesquisa, pois é o momonto de feitura das entrevistas, estabelecimento do riicleo documental e das im- pressées de campo. Para que aconiega de modo satisfatéria ¢ importante 6 estabelecimento de uma nova relagdo entre os sujéios da pesquisa, na {qual o modelo vertical pesquisador-pesquisado (ruitas vezes chamado de im re. XENIA DE, CASTRO BARBOSA. informante e depoente, desapareca para dar espago a um novo, de 6o- laboracao, de trabalho em conjunto, Como eixo dessa nova relagdo entre © pesquisador e aquele que narra suas experiéncias em entrevista, esté a ‘gia de Colaboraciio (MFIHY, 20051, que altera de forma bilateral posigao tradicionaimente estabelecida entre os integrantes da pesquisa. Com a Co- laboragdo o pesquisador toma para si a responsabilidade de ser 0 media- dor da pesquisa, de ser aquele que busca as melhores condigdes para 0 dlidlogo, e o instiga com sua capacidade de ouvir, silenciar, questionar, © 6 entrevistado deixa do ser “simples” informante ou “objeto de pesquisa” para ser o que trabalha junto e assume feitura do texto que registra suas historias [As mudangas ocasionadas por essa nova postura que envolve colaborago © mediacao alteram também a nogao de autora: jé que o trabalho foi de- senvolvido polas duas partes, que a experiéncia e a histéria contada perten- com a um e as técnicas de registro e anilise, a outro, convencionou-se que © texto resultante ce pesquisa em histéria oral 6 um texto de co-autoria, ‘mas que o diretor da pesquisa deve assurnir as responsabildades juridi- cas sobre ele. Mais do que alterar posigSes, a Colaborago promove uma valorizagao integral das experiéncias narradas e cle seus narradores. Pelo {ato de a entrevista ser do campo da empiria, nela tudo pode ser dito, indo- pendente de comprovacées. O mais importante & saber como a entrevista 6 constituida, realiza-la com um rigor que ateste sua construcio colabo- rativa ¢ sua efiedcia enquanto proposta de registro documental, bem como compreender que é um corpus capa. de produzir uma légica interna, pr cnhe de significado social [A segunda fase da pesquisa caracteriza-se como analitica e pode ou nao acontecer, conforme o tipo de projeto, Analises formas ¢ teorias sao vali- das e necessérias para que a histbria ora valde sua prépria eritica frente ‘08 demais modelos de estudo dos fenémenos sociais dentro da Academia, ‘mas nao pode perder seu sentido de compromisso social, do contraio seria apenas teorizagio. A histéria oral, para aleangar seu sentido politico requer acima de tudo a interpretagao que se di na préxis a escrita que se revola na vida e expressa nossos posicionamos frente a necessidade © as, possibilidades de agdo, “Historia Oral: como fazer, como pensar” é obra indispensiivel a todos os que se intoressam pola moderna histéria oral e desejam conhecer sua tra- jet6ria e estado atual. Sua leitura 6 agradavel erica em exemplos.

You might also like