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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

BÁRBARA MACEDO MENDONÇA

E O QUE A MÚSICA TEM A VER COM ISSO? DIÁLOGOS SOBRE MÚSICA


E IDENTIDADES DE GÊNERO NA ESCOLA.

Rio de Janeiro
2016
BÁRBARA MACEDO MENDONÇA

E O QUE A MÚSICA TEM A VER COM ISSO? DIÁLOGOS SOBRE MÚSICA


E IDENTIDADES DE GÊNERO NA ESCOLA.

Dissertação submetida à banca


examinadora como parte dos requisitos
para a obtenção do título de Mestre em
Música, do Programa de Pós-
graduação em Música da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Musicologia. Linha de
pesquisa: “Etnografia das práticas
musicais”.

Orientação: Prof. Dr. Samuel Mello


Araújo Junior

Rio de Janeiro
2016

M539e Mendonça, Bárbara Macedo.


E o que a música tem a ver com isso? Diálogos sobre música e
identidades de gênero na escola / Bárbara Macedo Mendonça. – Rio de
Janeiro: UFRJ, 2016.
123 f. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Federal do


Rio de Janeiro, Escola de Música, Rio de Janeiro, 2016.

Orientador: Samuel Mello Araújo Junior.

1. Etnomusicologia. 2. Feminismo e música. 3. Música –


Aspectos sociais. 4. Teses – Música. I. Araújo, Samuel, 1952-
(Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de
Música. III. Título.

CDD: 780.89
RESUMO

Esta pesquisa trata das possíveis relações entre a música e os processos de


construção de identidades de gênero a partir de diálogos com estudantes de uma escola
pública do Rio de Janeiro. Tendo a pesquisa-ação participativa como metodologia e
baseada na percepção da escola como espaço pulsante de produção de significados,
busco como professora/pesquisadora realizar uma leitura mais aprofundada das
relações entre a música e a vida através de uma experiência coletiva na sala de aula.
Usando como suporte epistemológico a teoria queer, busco compreender a sexualidade
como construção discursiva em Foucault (2003) e o gênero como ação performativa
dos sujeitos em Butler (2015). À luz dessas bases teórico-conceituais, dos
conhecimentos trazidos pelas/os alunas/os, sujeitos dessa pesquisa, e de todo
conhecimento gerado a partir da experiência de reflexão coletiva, desenvolvo a
etnografia dos debates ocorridos nas aulas de música. Por fim, reconhecendo a
necessidade de conhecer e questionar os processos que produzem as desigualdades de
gênero dentro e fora da escola, busco na música, na etnomusicologia e na educação
musical caminho para identificá-las e lutar contra elas.

Palavras-Chave: Gênero - Música - Etnomusicologia - Pesquisa-ação participativa -


Educação Musical - Teoria Queer
ABSTRACT

This research deals with possible relationships between music and the process
of constructing gender identity from dialogues with students of a public school located
in Rio de Janeiro. As a teacher/researcher I try to deeply interpret the connections
between music and life through a collective experience in the classroom, using the
participatory-action research as methodology and based on the sense of school as a
beating space of meaning production. Using the queer theory as epistemological
support, I try to grasp sexuality as a discursive construction in Foucault (2003) and
gender as performative action of individuals in Butler (2015). I develop the
ethnography of the debates that have taken place in music classrooms in the light of
these theoretical and conceptual foundations added to the knowledge brought by
students – who are the individuals of this research – and the one created from the
experience of collective reflection. Finally, admitting the requirement to learn about
and to question the process that produce the gender inequalities inside and outside the
school, I seek in music, in ethnomusicology and in music education a possible way to
identify them and to struggle with them.

Key words: Gender - Music - Ethnomusicology - Participatory-action research -


Musical Education - Queer Theory
Dedico esse trabalho a Alan, Angêla, Bruna, Daniel, Dayanne, Emanoel,
Gabriela, Gilberto, Giselle, Graciely, Hamon, Irismara, Iuri, Jhennifer,
Larissa, Lucas, Luciana, Manoel, Mateus, Matheus A., Matheus G.,
Michelle, Pedro, Poliana, Rafael, Rhayane, Rian, Ruan, Samuel, Victor,
Vítor, Yuri, Letícia, Adriele, Ana Julia, Ana Victoria, Carolina, Daniel,
Danielly, Danillo, Eduardo, Eliandra, Ewelly, Filipe, Gedir, Guilherme,
Hugo, Joyce, Lariça, Leonardo, Luan, Mauricio, Maycon, Renan, Thaís,
Vinícius, Wilson, Paulo Sergio, Victória, Adriano, Aline, Amanda, Caio,
Carlos, Eduarda, Elton, Gabriel, Isabelle M., Isabelle C., Jennyfer, João
Victor, Joyce, Juan, Kaio, Karen, Luana, Marlon, Pedro, Riquelme, Romulo,
Ryan, Samuel, Victor Hugo, Lívia, Lorena, Igor, Ana Beatriz, Ana Luiza,
Júlia, que tendo cruzado meu caminho, me ensinaram a ressignificar a
experiência do amor e assim vão me formando professora dentro da
experiência do coletivo.

Agradecimentos

Apesar da escrita ser um momento solitário demais pro meu gosto, todo esse
caminho foi desenhado com o suporte, apoio e carinho de muitas pessoas com quem
puder contar.
Agradeço em primeiro lugar à minha mãe, Regina, que além de ser meu
primeiro e melhor exemplo de professora, foi quem esteve ao meu lado durante todos
os dias desse trajeto, minha parceira de dúvidas reflexões, a presença mais afetuosa e
gentil que eu poderia ter.
Ao meu pai, Paulo, pela leitura dedicada, pelos livros emprestados, pelo
carinho e a preocupação em me fazer acreditar que tudo daria certo.
Aos meus irmãos, Ana e Lucas, pela alegria em ser criança e por entenderem a
distância necessária, ao Pedro, por compartilhar comigo a descoberta da academia, da
etnomusicologia e por me ajudar com as inúmeras dúvidas que surgiram ao longo da
caminhada e à Maria Gabriela, por ser meu colo, por cuidar de mim, por acreditar em
mim em qualquer circunstância e ser amor pra vida toda.
Ao meu sobrinho, Benedito, por ser a alegria necessária para ter vontade de
terminar, afinal não vejo a hora de ter finais de semana livres para ser só Titia Babi.
Ao meu amor, companheiro, Gustavo, que foi o melhor refúgio e suporte
durante o final dessa jornada, além de ser também exemplo de professor amoroso e de
luta, que me ajuda a seguir firme e forte no dia a dia, por vezes muito duro, da escola.
Ao Benjamim, pelo cuidado e carinho nesses 15 anos de convivência. A toda a
minha família, tias e tios, primas e primos, por serem alegria de domingos e datas
festivas e por serem também espaço de reflexões e discussões sobre a vida. Aos meus
avós, Nilza, Francisco, José e Zoraide por serem grandes exemplos de amor e dedicação
ao próximo, cada um ao seu modo.
Ao meu querido orientador, Samuel Araújo, por sua confiança, por ser exemplo
de luta dentro da universidade e por ter topado me auxiliar nessa ainda desconhecida
vida acadêmica.
Nessa rede gigante de amor e suporte, agradeço também às amigas, Fernanda,
pela tradução de última hora, por ser exemplo de dedicação, a mais estudiosa do méier,
a rainha do “faz tudo ao mesmo tempo”, a amigona, parceria, fechamento. Manuela,
por ser afago apesar da distância, por me inundar de arte quando isso já parecia não
fazer mais sentido, pelas horas intermináveis de divagações sobre a existência, e Paula,

pelo amor, pelos momentos de encontro e risadas, pelo incentivo e por vibrarmos juntas
pelas conquistas.
Pela parceria diária no “chão da escola”, Mariana, Fernanda e Dani que são
força pra enfrentar a realidade, principalmente quando essa se mostra mais dura, e por
terem, em vários momentos, desenrolado para mim o que parecia impossível durante
esse ano para que fosse possível essa pesquisa acontecer.
Às amigas e colegas de profissão, Jéssica, Marta, Renata e Aline por terem me
acolhido quando da minha chegada no magistério. E por termos tido a tão maravilhosa
oportunidade de seguirmos aprendendo umas com as outras sobre a importância de ser
ponto de amor e resistência dentro da escola.
Por fim, agradeço a cada uma/um das/os estudantes que me acompanharam
nessa caminhada. Estão cada uma/um delas/es, em um lugar garantido no meu coração,
na minha memória, por terem sido parte fundamental de tudo o que foi realizado ao
longo desses três anos de trabalho, mas em especial nesse último ano. Posso dizer que
aprendi muito com essa experiência e que seus rostos felizes e a alegria que tínhamos
em estar juntos é o melhor resultado que esse trabalho poderia ter, muito, muito, muito
obrigada!

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10
CAPÍTULO 1 - METODOLOGIA 14
1.1 Que pesquisa é essa? 14
1.2 A Pesquisa-Ação Participativa como escolha política: primeiros contatos. 14
1.3 Procedimentos de pesquisa. 17
1.4 Fazendo Pesquisa-Ação Participativa dentro da escola: a busca pela
horizontalidade em uma estrutura verticalizante. 21
1.5 Cruzando os procedimentos e a pesquisa-ação participativa. Detalhes de
compreensão da metodologia no campo. 27
CAPÍTULO 2 – ENCONTROS EPSTEMOLÓGICOS COMO SUPORTE
PARA AS REFLEXÕES DO COTIDIANO. 30
2.1 E o “queer” é isso, afinal? 31
2.1.1 O princípio de uma teoria ativista 31
2.1.2 Ideias centrais para a (des)construção da teoria. 34
2.1.3 Teoria queer ou teoria cu - Traduções e torções da teoria no Brasil em sua
potencia decolonial. 45
2.2 Por uma educação queer. Propostas e pensamentos sobre teoria e a escola. 50
2.3 Da musicologia feminista à musicologia queer: Um campo ainda em
construção. 53
2.3.1 E no Brasil? Sobre a presença dos estudos em gênero e música no cenário da
musicologia brasileira. 58
CAPÍTULO 3 - ETNOGRAFIA DOS DEBATES 63
3.1 O parto das ideias. 63
3.2 Precisamos falar sobre a cultura do estupro. O primeiro debate. 65
3.3 Segundo debate: As “tais” histórias que a música conta. 81
3.4 Analisando a presença das desigualdades de gênero na música:
Terceiro debate. 96
3.5 E o que a música tem a ver com isso? Último debate. 106
CONCLUSÃO 116
REFERÊNCIAS 120
10

INTRODUÇÃO

Este trabalho surge como fruto de um emaranhado de questões que me


acompanham durante meu processo de formação como mulher e professora de música
da rede pública de ensino. As vivências, olhares e percepções que me levaram a decidir
o meu objeto de pesquisa, me pareciam somente pessoais, até que pude encontrá-las em
outras mulheres, autoras que já haviam pensado sobre grande parte das questões que
me mobilizavam. Deparei nesse momento com o caráter político do que para mim, até
então, parecia tão somente pessoal. Minha pesquisa carrega em si uma marca de
militância política, e essa marca é resultado da minha história.
Minha carreira docente começou no ano de 2011 e de todos os aspectos do
trabalho na escola o mais encantador para mim sempre foi a possibilidade de
estabelecer um diálogo com aquelas/es estudantes, que passaram a representar parte
significativa da minha vida. A cada dia de convívio me tornava professora, encontrava
naquelas/es companheiras/os do cotidiano respostas a muitas das minhas dúvidas sobre
o papel da escola e da educação, em especial, da educação musical nas nossas vidas.
Mas não foram só as respostas que eu encontrei. Enchi-me também de perguntas,
questões que, em constante cruzamento com as experiências que eu trazia comigo,
foram criando em mim o desejo de desenvolver essa pesquisa.
Ser mulher nunca pareceu para mim uma escolha, embora em alguns momentos
da vida eu tenha tido o desejo de ser homem. Durante a minha formação escolar e
musical, as questões de gênero me causavam estranhamento: por que na banda marcial
da escola onde estudei somente alunos tocavam instrumentos como caixas, repiques,
surdos, enquanto às alunas eram designados pratos e liras? Por que mesmo durante as
aulas de música dentro do currículo regular ainda assim havia restrições quanto à
escolha dos instrumentos para as mulheres (geralmente ficávamos com chocalhos,
tamborins, reco-recos e algumas vezes com pandeiros, nunca com instrumentos de
tamanho maior)? Sempre respondi a mim mesma usando as diferenças físicas entre
homens e mulheres como justificativa, seria uma questão de força. Hoje revivendo essa
reflexão, percebo que essa não seria a melhor forma de justificar, afinal, uma lira não é
um instrumento leve.
Ainda que determinados questionamentos tenham feito parte da minha vida, e
que as situações de desigualdade de gênero tenham marcado minha história, essas
lembranças passaram a ser mais presentes no final da minha formação como professora.
11

Foi durante a minha participação como bolsista do projeto de pesquisa Musicultura, nos
últimos anos do meu curso de licenciatura em música pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), que tive meu primeiro contato com o feminismo como teoria. Mas
somente quando iniciei minha carreira como professora da escola pública, se tornou
linha de frente dos meus processos de reflexão.
Na posição da docência observava o quanto eram distintos os tratamentos dados
às mulheres, em especial àquelas que escapavam aos padrões socialmente estabelecidos
para elas, e aos alunos homossexuais. Os apelidos usados para se referir a essas/es
estudantes nos espaços de reunião de professoras/es, a forma como se expunham
questões ligadas a elas/es, além do alto índice de reprovação desse grupo de alunas/os
em especial, sempre me saltou aos olhos. Essa se tornou uma questão central da minha
atuação como professora.
Não foram poucos os momentos em que as sexualidades desaprovadas que
escapavam à normal estabelecida pela escola foram justificadas através das relações da
juventude com a música. Os comentários indicavam uma ligação direta entre uma
música julgada como extremamente sexualizada (característica da música dos anos
2000 na visão de algumas/uns professoras/es), e uma relação afirmada por alguns como
conflituosa dessa geração com o sexo e a sexualidade de forma geral. Eu discordava
desse ponto de vista, mas tinha o desejo de saber o que as/os alunas/os pensavam disso.
Estava aí o pontapé inicial do desenvolvimento do meu objeto de pesquisa.
Comecei a desenvolver esse projeto pensando gênero e os estudos de gênero
como sinônimo de estudos feministas, e acreditando que essa seria uma categoria de
estudos sobre a condição da mulher na sociedade. Deparei-me com outras concepções,
e tive que encontrar o caminho teórico que fosse consonante com as sensações e
percepções que eu tinha, era uma investigação que ao encontro de minha condição
como mulher. Esse processo também significou para mim autoconhecimento.
Descobri que segundo Judith Butler (2015, p. 242) a ideia de “gênero como uma
identidade não estável, mas sim como uma identidade tenuemente constituída no
tempo, instituída num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos”.
Entendi portanto que durante a vida me constituí mulher através de um processo que,
segundo ela, trata-se de uma “realização performativa, em que a plateia social
mundana, incluindo os próprios atores, passa a acreditar, exercendo-a sob forma de uma
crença” (BUTLER, 2015, p. 243).
12

Esse encontro com a teoria queer e a ideia de identidade de gênero como


construção social, me fez repensar não só minha existência, mas também minha prática
docente. Busquei na educação exemplos que conversassem com essa nova (ao menos
para mim) concepção. Era uma forma de encontrar justificativas que me ajudassem a
continuar. Foi em Guacira Lopes Louro (2013, p. 116) que busquei substância para
transformar minha atuação na escola. Acreditando na necessidade de construir uma
formulação pedagógica que “apoie-se no reconhecimento das desigualdades vividas por
meninas e mulheres em relação aos meninos e homens, no interior das instituições
escolares”, a teoria queer passa a indicar também uma nova abordagem pedagógica.
O próximo desafio seria justamente o título desse trabalho: E o que a música
tem a ver com isso? Em primeiro lugar, acreditava que a principal mudança deveria se
dar na relação entre alunas/os e escola. Era necessário o esforço de não mais reproduzir
os comportamentos que reforçam as desigualdades e no meu caso o espaço da aula de
música era o lugar para isso. Mas eu gostaria de ir além, queria que isso fosse uma
pauta, queria que as/os adolescentes me dissessem as suas respostas pra essa pergunta,
queria que essa fosse uma experiência que nos permitisse conhecer juntos, construir no
coletivo. Esse meu desejo já me apresenta parte fundamental dessa pesquisa: a
metodologia.
No capítulo 1 apresentarei metodologia adotada por mim. Começo por ela pois
é parte fundamental na constituição desse trabalho. Foi através da minha opção
metodológica que pude encontrar meios de conjugar as várias vertentes da minha vida
que me fizeram chegar a essa investigação. Alinhada a um desejo de transformação da
vida, da sociedade e consequentemente da escola em espaços mais justos. Onde a pauta
por igualdade de raça, gênero e classe seja princípio. Adotei a perspectiva metodológica
da pesquisa-ação participativa, como caminho para a construção de uma pesquisa
acadêmica assumidamente interventiva.
No capítulo 2 pretendo trazer os meus diálogos com a epistemologia que
sustenta essa pesquisa. A teoria queer e suas abordagens em diferentes campos do
conhecimento foram meu suporte para compreender melhor quais eram as questões de
gênero que eu desejava investigar. As relações da musicologia com os estudos de
gênero, fundamentais para que eu entendesse de que forma as diferentes perspectivas
nessa área se desenvolveram nas pesquisas em música.
No terceiro capítulo compartilho os diálogos através da etnografia dos debates
que realizamos em sala de aula. Tento preservar as conversas, a linguagem, o ambiente.
13

Apresento algumas considerações e percepções que tive durante o processo de


participação nos debates, de escrita da etnografia e de avaliação do trabalho. Mas
gostaria deixar de os holofotes desse texto para as os diálogos, como parte mais
importante da reflexão.
Por fim, apresentarei minhas conclusões, como um retorno a tudo que foi
construído a partir dessa pesquisa. Trago ainda os desdobramentos desse trabalho junto
aos coletivos que são parte dessa investigação e na minha formação e atuação como
professora/pesquisadora.
14

CAPÍTULO 1: METODOLOGIA

1.1 Que pesquisa é essa?

Decido iniciar esse capítulo apresentando local e sujeitos dessa pesquisa. A


escola da qual falarei, pública, localizada na zona norte da cidade, cujo corpo discente
é composto por turmas do 6º ao 9º ano do ensino fundamental. São parte desse processo
de reflexão estudantes de 3 diferentes turmas, além de eu mesma, que, como professora,
participei de todo o processo de discussão. As alunas/os com quem dialogo tem em
média 14 a 16 anos e se dividem em duas turmas de 8º ano e uma de 9º ano. Acompanho
essas turmas como docente desde o ano de 2014, e ainda que tenha havido algumas
alterações na configuração desses grupos, de modo geral, tenho com a maioria, uma
relação de maior tempo e consequentemente de maior liberdade.
A minha intenção foi propor espaços onde pudéssemos dialogar e fosse possível
ouvir todas as vozes da sala de aula sobre as questões que me mobilizavam. Ainda que
seja um trabalho construído a partir de uma demanda minha, gostaria de tentar realiza-
lo da forma mais democrática possível. Como um importante objetivo busquei que o
desenvolvimento da pesquisa pudesse ser ferramenta para um processo de
desconstrução de alguns padrões e comportamentos que reforçavam as desigualdades
de gênero dentro da sala de aula e da escola de modo geral. A metodologia escolhida
para essa pesquisa passa por esses desejos: a busca interminável pela horizontalidade e
pela igualdade de gênero, de raça e de classe.

1.2 A Pesquisa-Ação Participativa como escolha política: primeiros contatos.

O meu primeiro contato com a Pesquisa-Ação Participativa se deu através da


minha atuação como pesquisadora do grupo Musicultura. O referido grupo faz parte do
projeto “Música, memória e Sociabilidade na Maré” e acontecia, durante os anos em
que dele fiz parte, (2009 até 2011), através de uma parceria entre o Laboratório de
Etnomusicologia da UFRJ e a Organização Não-Governamental Centro de Ações
Solidárias da Maré (CEASM). Durante esses anos em que participei do projeto, esse
grupo, que denominávamos como coletivo de pesquisadores, era composto por
“estudantes de escolas públicas de nível médio, alunos da Universidade Federal do Rio
de Janeiro em diversas áreas de conhecimento e residentes voluntários interessados nas
15

práticas de pesquisa e debates promovidos pelo grupo”. De um modo geral a proposta


do grupo tem sido realizar pesquisas sobre as práticas musicais presentes no bairro
Maré1 e a partir delas “dialogar com a realidade da cidade do Rio de Janeiro e sua
inserção no mundo contemporâneo como um todo” (MUSICULTURA, 2011, p. 334).
O desenvolvimento da proposta metodológica do Musicultura se dava através
de uma intensa interlocução com a literatura de Paulo Freire, e em especial com uma
concepção dialógica de educação. O trabalho de Freire fundamenta-se na crença da
educação como “instrumento de transformação social da relação do indivíduo com o
mundo do qual faz parte” (MUSICULTURA, 2011, p. 334). A ação educacional nesse
sentido se daria através da valorização do conhecimento do educando, em conjunto com
uma constante reflexão crítica sobre a sociedade, em uma prática dialética com a
realidade. Essa ação se contrapõe ao que ele denomina como “educação bancária”, que
é uma crítica tecida acerca do modelo tradicional de educação, que vê o educando como
“vazio” e assim propõe “encher os educandos de conteúdo” e “depositar” aquilo que se
acredita ser o “verdadeiro saber” (FREIRE, 2005, p. 72). Em contraposição à “educação
bancária”, que reproduziria as relações de poder potencialmente opressivas entre
educadores e educandos, Freire busca propor um experiência de educação que possa
auxiliar no sentido da libertação das pessoas frente às opressões que são fruto de uma
sociedade desigual, antidemocrática e injusta. Essa proposta, chamada por ele de
educação libertadora, reconhece na relação entre educador e educando uma estrutura
autoritária de poder que deve ser enfrentada através da busca por, em uma perspectiva
coletiva, construir a consciência autônoma de todas/os envolvidos nesse processo.
Tendo como chave a crença na ação educativa como um processo de construção
coletiva do conhecimento, que se dá através do diálogo e da necessidade do
estabelecimento da horizontalidade entre educador e educando, poderíamos abrir
caminhos para uma transformação social que aconteça no sentido de uma sociedade
mais justa, igualitária e livre. A presença desse pensamento de Paulo Freire justifica e


1
A Maré foi reconhecida oficialmente como bairro através da Lei Municipal número 2.119, de 19 de
janeiro de 1994, estabelecendo sua separação do bairro de Bonsucesso. De acordo com os dados do
Censo Maré 2000, o bairro Maré é um conjunto de 16 favelas situadas entre duas das principais vias da
cidade, a Avenida Brasil e a Linha Vermelha, atravessado pela Linha Amarela, próximo ao Aeroporto
Internacional e vizinho à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com o passar dos anos, e com as
constantes intervenções individuais e públicas, tornou-se, segundo a mesma fonte, o maior conjunto de
favelas do Rio de Janeiro, com aproximadamente 132.000 moradores que residem em cerca de 38.000
domicílios. (MUSICULTURA, 2011, p. 336)
16

é parte substancial na proposta metodológica adotada pelo grupo Musicultura que


afirma que:
Mais que exaltar retoricamente os predicados da educação libertadora
(como verificado em não poucos trabalhos que lhe são aparentemente
afins), procuramos exercitar essa linha de trabalho para não ceder à
tendência de reproduzir ideais educacionais tradicionais, que
embutem uma relação de poder conservadora, sem espaço para a
reflexão, oprimindo a expressão individual, e assim podando a
construção do conhecimento de forma coletiva. (MUSICULTURA,
2011, p. 335-336)

A preocupação em exercitar esse pensamento leva o Musicultura à pesquisa-


ação participativa. Desenvolvendo pesquisa em um modelo de gestão coletiva todas as
etapas são debatidas e as decisões tomadas a partir de consenso. Os integrantes buscam
compartilhar e construir conhecimento de maneira coletiva e horizontal. Constitui-se
portanto, como “ideia central do projeto, o foco na participação efetiva da juventude no
processo de criação e formulação de atividades de pesquisa” e essa participação se dá
através da manifestação da “liberdade de opinião, sem hierarquias” e que privilegia,
dessa forma, “a participação política na própria periferia e, de uma maneira geral, na
sociedade” (ARAÚJO et al, 2006, tradução nossa). Fazer isso é fazer pesquisa-ação
participativa.
A minha escolha pela pesquisa-ação participativa é, sem dúvida, em grande
parte, resultado da minha experiência no Musicultura, inclusive por conta da expressiva
influência que essa vivência teve na minha prática docente e, consequentemente na
minha relação com a escola, meu local de pesquisa. Em um movimento constante de
reflexão acerca do meu lugar como professora e também da minha prática, foi essencial
o reencontro com o que eu tinha vivido na Maré e com Paulo Freire. A experiência do
Musicultura havia me ensinado que através da pesquisa-ação participativa seria
possível conceber a pesquisa acadêmica como ação política. Com isso, era também
possível, e no meu caso fundamental, pensar num objeto de estudo que fosse, de fato,
conectado e engajado com uma perspectiva de transformação da sociedade e de luta
contra as desigualdades sociais, de gênero, de raça e de classe. Investigar a escola não
era possível para mim de outra forma. Afinal, trata-se de uma busca por compreender
questões do cotidiano com o objetivo de intervir naquele espaço de modo
transformador.
17

1.3 Procedimentos de pesquisa

Nessa parte do capítulo, busco explicitar a organização da pesquisa. Detalharei


os procedimentos adotados por mim durante o trabalho de campo e também anteriores
e posteriores a ele.
A escola onde os debates aqui relatados aconteceram é o meu local de trabalho,
dessa forma eu faço parte institucionalmente do campo que trago na pesquisa. Diante
disso, as atividades propostas por mim se enquadram nas orientações da rede da qual a
escola faz parte. Para as séries onde o trabalho, encontramos os seguintes objetivos:
“desenvolver a leitura do mundo por meio das marcas da produção musical
contextualizadas dos povos e seus grupos sonoros” (RIO DE JANEIRO, 2013, p. s/n)
e também “desenvolver a leitura de mundo por meio das marcas da produção musical
de grupos diversos, minorias e etnias, na contemporaneidade e em várias épocas” (RIO
DE JANEIRO, 2013, p. s/n). Indica-se como conteúdo para trabalhar os objetivos
anteriormente descritos: “música como produto cultural e histórico” (RIO DE
JANEIRO, 2013, p. s/n). Pensar no coletivo dessas turmas as possíveis marcas e
relações entre a música e o processo de construção das identidades de gênero
certamente é uma forma de buscar os dois objetivos propostos pelo documento que citei
anteriormente, bem como considero como parte fundamental do conteúdo apresentado
para esse.
Durante todo o tempo em que estive no curso de mestrado meu trabalho se deu
na mesma escola e as três turmas que acabaram sendo minhas parceiras nesse processo
de reflexão, como já dito antes, estiveram comigo ao longo desses anos. Cito essa
questão pois a minha decisão quanto às formas de abordagem que usaria nessa pesquisa
mudaram diversas vezes durante o curso, só tendo total definição já em sua fase final.
No decorrer do meu primeiro semestre na pós-graduação, ainda com dúvidas de como
se daria a minha relação com o campo mantive um caderno de campo, onde anotava
algumas discussões que aconteciam livremente sem que eu as propusesse e que
tivessem alguma relação com gênero ou sexualidade, e ainda que elas acontecessem
com alguma frequência não me ajudaram a desenvolver a pesquisa em si. Essas
observações sempre foram boa fonte para aprofundar reflexões que eu fazia sobre a
relação que estabelecemos com a sexualidade, tanto cada um dos sujeitos ali presentes,
como a escola de modo geral. Elas tornavam explícitas tensões que surgiam em função
de debates entre as/os alunas/os nos quais discutiam acontecimentos das localidades
18

onde moram, da própria escola e das suas redes de um modo geral, grupos de amigos,
igrejas, família, me faziam notar que, ainda que não houvesse de forma mais
sistemática, o debate sobre as questões de gênero na escola, ele ocorria o tempo todo
entre os sujeitos que a compõe. Desse modo o objeto de estudo parte de uma questão
presente, viva e posta no coletivo da escola, o que se torna mais uma justificativa pela
minha opção em desenvolver pesquisa-ação participativa, questão que abordarei mais
detalhadamente na próxima seção. No entanto somente os debates soltos não
alcançavam o lugar que eu buscava, não havia por parte das/os estudantes qualquer
relação mais direta entre as situações relatadas e discutidas entre elas/es e a música.
Depois de alguns meses mantendo essa prática, fiz uma avaliação do material que havia
coletado e cheguei a conclusão de que deveria seguir outro caminho.
Notei que seria necessário haver um direcionamento das conversas para que o
assunto chegasse diretamente num entrelaçamento entre música e gênero. Fui
desenvolvendo possibilidades. Em um primeiro momento cogitei a alternativa de criar
dentro da própria escola um grupo de pesquisa, convidar estudantes para lermos,
debatermos e investigarmos juntas o assunto, faria um convite amplo e trabalharia fora
do horário regular com quem desejasse participar. Essa ideia não foi levada adiante por
alguns motivos que eu listarei a seguir. Em primeiro lugar: uma escola que funciona
em dois turnos, realizar esse tipo de atividade necessita escolher com qual turno vai se
trabalhar e propor encontros no turno oposto aquele em que as/os estudantes estão
regularmente matriculados. Essa logística é complicada para ser posta em prática, em
geral as/os estudantes assumem outras atividades e tarefas fora do horário da escola, e
desse modo é difícil contar com eles no contra turno. Há ainda outra questão, tendo em
vista essa dificuldade essa é uma estratégia que acaba realizando um recorte que exclui,
por exemplo, os estudantes que precisam trabalhar seja para auxiliar na renda familiar
ou mesmo em casa realizando tarefas domésticas e cuidando de irmãos menores.
Decidi então que trabalharia com as turmas na sua totalidade. A partir dessa
decisão foi necessário desenhar de que forma essa abordagem se daria, como seria seu
desenvolvimento, como seria o registro, de que forma que ele seria retratado na
dissertação, em que momento aconteceria dentre outras tarefas organizacionais que
foram surgindo ao longo da pesquisa e que eu decidi que seriam discutidas no coletivo.
A escolha das turmas que participariam da pesquisa se deu pelo fato de que já
estávamos juntos desde 2014 e esse tempo foi fundamental para que o diálogo
acontecesse. Entendendo essa escola como um espaço onde se busca reproduzir um
19

modelo de “educação bancária”, segundo o olhar de Paulo Freire, desenvolver


atividades que busquem o princípio da horizontalidade como base é, sem dúvida, um
imenso desafio. Mas dentro das brechas que esse modelo deixa, faço esse exercício
junto de outros pares que compreendem, assim como eu, a necessidade de traçar um
caminho para construir uma escola menos opressora. Diante disso, foi importante estar
com um mesmo grupo por um período maior que um ano letivo. Afinal, a construção
dessa horizontalidade em um espaço onde ela é exceção, se dá em um tempo que não
cabe nos prazos letivos ou do rito acadêmico. Afirmo, no entanto, que ainda teríamos
muito a caminhar, pois como já dito essa não é uma tarefa fácil. O modelo de escola
com o qual lidamos hoje não só é verticalizado como é um modelo que ainda acredita
na importância da manutenção da estrutura hierárquica como fórmula de sucesso para
a aprendizagem, subverter essa lógica é uma batalha cotidiana. Com essas turmas, esse
já era um exercício feito desde 2014, já tínhamos estabelecido o nosso modus operandi.
O processo de planejamento dos 4 debates é detalhado no capítulo 3, mas
destaco aqui para fins de compreensão da metodologia, que as aulas onde debatemos
as questões que fazem parte da pesquisa foram todas planejadas por mim, sem a
participação das/os estudantes. No entanto, é importante frisar que as questões de
gênero marcam presença diária nos corredores da escola e nas salas de aula. Desse
modo, considero que o objeto de pesquisa foi uma construção que parte de dentro desse
coletivo, através da percepção da escola, ainda que tenha sido sistematizado por mim.
O registro das aulas se deu através de gravação de áudio de todos os encontros
e posterior transcrição, anotações em um caderno que mantenho para planejar, avaliar
e organizar minha atividade docente e anotações feitas no diário de classe. As
gravações e o processo de transcrição foram a principal parte, visto que me permitiram
remontar os diálogos que aconteceram na sala de aula. Alguns momentos dos debates
não ficam claros nas gravações por conta da quantidade de pessoas que falam ao mesmo
tempo, mas acredito que qualquer outra forma de registro me traria questão similar,
uma vez que, ainda que eu pudesse tomar notas durante as aulas - procedimento que
somente seria possível caso eu fosse observadora dos processos, o que não se aplica já
que, como docente, participo ativamente deles - não seria possível ouvir e compreender
tudo que é dito nas conversas que em diversas situações as/os estudantes travam entre
si. O mesmo aconteceria caso eu decidisse por um caderno de campo onde eu detalhasse
por escrito depois de ocorrida a aula todos os diálogos. Diante dessas situações, optei
por um combinado entre os recursos de registros usados por mim e a memória, grande
20

aliada, para desenvolver o processo de interpretação do campo no qual eu estava


inserida.
As vozes presentes nesse texto são, com exceção da minha própria, de menores
de idade o que exigiu alguns cuidados como a autorização do responsáveis legais para
que fizessem parte desse trabalho, além da substituição de todos os nomes, garantindo
o anonimato. No entanto, gostaria de destacar um certo desconforto quanto a essa
autorização. Durante todo o processo da pesquisa as/os estudantes tinham absoluto
conhecimento de que se tratava, conversávamos sobre o mestrado, sobre fazer pesquisa,
sobre como seria escrita a dissertação, sobre a estrutura do trabalho, planejamento, tudo.
Dentro da concepção de educação que adoto na minha prática docente, já explicitada
nesse texto, acredito na total condição das/os próprias/os estudantes falarem por si, se
desejam ou não fazer parte desse processo. De fato, elas/es não estavam dentro da sala
de aula exatamente através de uma livre demanda, já que ao frequentar a escola, estar
na sala de aula é obrigação. No entanto, colocar-se durante as discussões, tendo total
conhecimento de que fazíamos pesquisa foi absolutamente optativo, tendo em vista que,
no nosso convívio, o desejo de permanecer em silencio sempre foi respeitado e assim
alguns o fizeram. Desse modo solicitei que elas/es próprias/os autorizassem ou não a
sua presença nesse trabalho final, acreditando que como sujeitos dos seus próprios
processos de formação devem ser autônomos e capazes de tomar essa decisão elas/es
mesmas/os.
Optei também por não identificar a escola. Essa escolha fiz por acreditar que
nossos diálogos, ainda construídos dentro das singularidades de cada um dos sujeitos
que deles participam, podem ser localizados através de informações menos especificas,
o que preserva em termos éticos todas/os envolvidos na investigação. Trata-se,
portanto, de diálogos ocorridos em uma escola pública do subúrbio carioca, com turmas
de 8º e 9º ano, estudantes entre 14 e 16 anos, em sua maioria moradores de favelas da
região onde a escola se localiza, uma professora de 28 anos, moradora de um bairro do
subúrbio localizado nas proximidades da escola e em aulas que fazem parte da grade
curricular da escola. Todas essas opções acima descritas são parte da minha escolha
metodológica, algumas me mostraram os limites em realizar o que desejava dentro da
escola e me colocaram submersa em vários outros processos de reflexão, sobre a escola,
sobre a universidade e sobre fazer pesquisa. Reflexões essa que tento trazer adiante.
21

1.4 Fazendo Pesquisa-Ação Participativa dentro da escola: a busca pela


horizontalidade em uma estrutura verticalizante.

Eu desejava desenvolver uma pesquisa coletiva, junto com as/os estudantes que
me acompanhavam nessa empreitada, onde pudéssemos ter nossas vozes sendo
colocadas de maneira mais horizontal possível. Inicialmente, buscava na experiência
do Musicultura uma inspiração e, como já descrevi na seção anterior, pensei em formar
um pequeno grupo de pesquisa dentro da escola. Acabei não dando segmento a essa
proposta por perceber que o meu real desejo era preservar o caráter coletivo da sala de
aula. Geralmente quando fazemos projetos na escola, temos contato com um mesmo
grupo de alunas/os, que são as/os que se propõem a participar desse tipo de iniciativa,
e, com isso, perdemos a oportunidade de ouvir a todas/os. A heterogeneidade da sala
de aula me encantava, ali não havia “seleção”. Eu acreditava que essa característica
enriqueceria o debate.
Em Fals Borda, encontrei pela primeira vez em forma de proposta metodológica
de pesquisa, aquilo que já havia experimentado no Musicultura e no encontro com a
concepção freireana de educação. Entendendo que “não podemos ignorar o impacto
social, político e econômico do nosso trabalho e, portanto, devemos saber escolher, para
os nossos propósitos, o que está em harmonia com a nossa visão de responsabilidade
social.” 2 (BORDA, 2014a, p. 213, tradução nossa) faço minha escolha. A proposta de
pesquisa-ação participativa, ou IAP (Investigacíon Acción Participativa) como
geralmente aparece na bibliografia de Orlando Fals Borda e outros, surge de um
movimento de reflexão pelo qual passavam alguns pesquisadores colombianos. Nesse
movimento, pensava-se em questões do tipo: como combinar o fator empírico nos
processos de mudança radicais pelos quais vinha passando a sociedade? Quais
caminhos seguir para superar o desafio da vinculação entre conhecimento e ação, teoria
e prática? Então, os estudos mais profundos dos problemas econômicos e sociais foram
mostrando que era necessário abandonar as pautas mecanicistas e organicistas às quais
se estava acostumado. Esses eram movimentos para entender onde estavam como
pesquisadores. E o desenho dessas respostas vem da responsabilidade de, como
membros da comunidade científica, interpretar essa transformação que ocorria e obter


2 “[...] no podamos desconocer el impacto social, político y económico de nuestros trabajos, y que, em
consecuencia, debamos saber escoger, para nuestros fines, aquello que sea armónico com nuestra
visión de la responsabilidade social.”
22

dados suficientes para entendê-la e, assim, ajudar a construir o futuro. (BORDA,


2014a).
Quando fala do início da construção da IAP, Fals Borda (2014b, p. 265-266,
tradução nossa) afirma que foi “a partir da conhecida insistência acadêmica sobre a
neutralidade valorativa e a independência na investigação e as insatisfações que estas
produzem, resultou em uma necessidade para muitos de assumir posições pessoais mais
definidas quanto à evolução das sociedades”3. Ele também afirma que foram tensões
como essa que “foram ativando durante os anos técnicas e conhecimentos relativamente
novos, comprometidas por completo com a ação social e política, que vem tendo como
objetivo induzir as transformações consideradas necessárias”. Esse movimento
aconteceu diante de uma difícil conjuntura, onde foi necessário que os pesquisadores
envolvidos nesse processo realizassem uma autocrítica radical e reorientassem a teoria
e a prática social. Nesse panorama, Fals Borda junto a outros pesquisadores
colombianos no início da década de 1970 se organizaram em uma ONG que foi
chamada “la Rosca de Investigación y Acción Social”. Eles deixam as universidades e
passam a trabalhar diretamente com camponeses e indígenas para combater o
latifúndio. Um esforço era feito, portanto, para “mais do que estabelecer uma ciência
rigorosa e pertinente, prestar atenção ao conhecimento das pessoas comuns” 4
(BORDA, 2014b, p. 268, tradução nossa).
Nessa conjuntura, esses pesquisadores assumiram três grandes desafios “com a
desconstrução científica e reconstrução emancipatória” 5 que desejavam realizar. “O
primeiro tinha a ver com as relações entre ciência, conhecimento e razão; o segundo,
com a dialética entre teoria e prática; e o terceiro, com a tensão entre sujeito e objeto”6
(BORDA, 2014b, p. 269, tradução nossa). E, diante disso, foram se delineando
soluções teóricas alternativas que permitissem aproximar-se melhor da realidade para
entende-la e transformá-la.

“A resposta mais adequada foi oferecida pelo método dialético


aplicado em medidas alternativas e complementares; da seguinte

3
“A partir de la conocida insistencia académica sobre la neutralidad valorativa y la independencia en la
investigación, por las insatisfacciones que éstas producen resultó compulsivo para muchos asumir
posiciones personales más definidas em cuanto a la evolución de las sociedades.”
4
“Además de establecer las reglas de una ciencia rigurosa y pertinente, quisimos prestar atención al
conocimiento de las gentes del común.”
5
“[...] com la deconstrucción científica y reconstruccíon emancipatória que queríamos realizar.”
6
“El primer reto tuvo que ver con las relaciones entre ciencia, conocimiento y razón; el segundo, conla
dialéctica entre teoría y práctica; y el tercero, con la tensión entre sujeto y objeto.”

23

forma: (1) promover um intercâmbio entre conceitos conhecidos ou


pré-conceitos e os fatos (ou sua percepção) com observações
apropriadas ao ambiente social; (2) seguir com ação a nível das
bases para constatar na realidade do meio o que se queria
conceitualizar; (3) retornar para refletir sobre este conjunto
experimental para derivar conceitos mais adequados ou obter
melhor luz sobre velhos conceitos ou teorias que se adaptariam ao
contexto real; e (4) recomeçar o ciclo de investigação para que
culmine na ação.”7 (BORDA, 2014a, p. 223, tradução nossa)

De um modo geral, a “ideia central ao redor da qual se cristalizou o que podia


ser considerado como base do paradigma alternativo, foi a possibilidade de criar e
8
produzir conhecimento científico na própria ação das massas trabalhadoras”
(BORDA, 2014a, p. 224, tradução nossa). Desse modo, entendeu-se que a investigação
social e a ação política junto aos trabalhadores “podem sintetizar e influenciar
mutuamente para aumentar tanto o nível de eficácia da ação quanto o entendimento da
realidade”9 (BORDA, 2014a, p. 224, tradução nossa). Tendo em conta que o "critério
de correção do pensamento é, naturalmente, a realidade, o último critério de validez do
conhecimento científico viria a ser então, a práxis, entendida como uma unidade
dialética formada por teoria e prática, em que a prática é ciclicamente determinante.”10
(BORDA, 2014a, p. 225, tradução nossa). Reforça-se a certeza do princípio da práxis
para determinar a validade dos trabalhos locais e as possibilidades de desenvolver ali o
paradigma alternativo da ciência social crítica. E mais: “disso pode sustentar-se outra
vez que a práxis tem força definidora, e que vincular teoria e prática no âmbito da
mudança radical ou revolucionária não é tão difícil nem tão complexo como se parece
em nosso meio”11 (BORDA, 2014a, p. 227-228, tradução nossa).


7
“La respuesta más adecuada la ofreció el método dialéctico aplicado en pasos alternos y
complementarios, así: 1) propiciando un intercambio entre conceptos conocidos o preconceptos y los
hechos (o sus percepciones) con observaciones adecuadas en el medio social; 2) siguiendo con la
acción a nivel de base para constatar en la realidad del medio lo que se quería conceptualizar; 3)
retornando a reflexionar sobre este conjunto experimental para deducir conceptor más adecuados u
obtener mejores luces sobre viejos conceptos o teorias que así se adaptaron al contexto real; 4)
volviendo a comenzar el ciclo de investigación para culminarlo em la acción.”
8
“Pero la idea central alrededor de la cual cristalizó lo que pudiera considerarse como base del
paradigma alterno, fue la posibilidad de crear y poseer conocimiento científico em la propiá acción de
las masas trabajadoras [...]”
9
[...] pueden sintetizarse e influirse mutuamente para aumentar tanto el nível de eficácia de la acción
como el entendimento de la realidade”
10
“el critério de la corrección del pensamento es, por supuesto, la realidade, el último critério de
validez del conocimiento científico venía a ser, entonces, la praxis, entendida como uma unidad
dialéctica formada por la teoria y la práctica, en la cual la práctica es ciclicamente determinante.”
11
“De allí que pueda sostenerse outra vez que la praxis tiene fuerza definitória, y que vincular la teoría
a la práctica en el âmbito del cambio radical o revolucionario no es ni tan difícil ni tan complejo como
parece, em nuestro medio.”
24

Sinto-me próxima da proposta de IAP apresentada por Fals Borda. A pesquisa


se faz ação na sua intervenção no espaço e participativa por surgir de uma demanda real
daquele espaço onde acontece e dos sujeitos que fazem parte dele. O debate das
questões de gênero não surge através de um pedido meu, ele já existia e vinha sendo
feito pelas alunas e alunos cotidianamente. No entanto, não me parece uma tarefa nada
simples a tentativa de realizar essa forma de pesquisar na escola. Algumas questões
surgem durante o meu percurso e vou buscando soluções que me permitam alinhar a
pesquisa que desejo com esse modo de fazer. Em primeiro lugar, me propus a aproximar
as leituras que fiz acerca dessa proposta de abordagem metodológica, que tratavam de
experiências ocorridas junto aos trabalhadores, aos camponeses, aos indígenas, ao que
eu desejava fazer na escola, junto aos jovens. Reconheço uma grande aproximação
quanto à compreensão de um fazer pesquisa a partir do saber popular e de compreender
a pesquisa em si como ação política, mas seria necessário assimilar de que forma aquela
pesquisa que se desenhava na minha cabeça poderia ser desenvolvida com esse objetivo
dentro dos limites que me eram impostos pelas estruturas de poder presentes na escola
como instituição.
Vejo em Fals Borda que (2014a, p. 228, tradução nossa)

“Se se admitir que a práxis de validação, como a concebemos aqui,


é antes de tudo política, a problemática da investigação-ação
conduz necessariamente a qualificação das relações entre os
investigadores e as bases populares ou seus organismos, com as
quais se desenvolve o trabalho político. Este é um aspecto
fundamental do método de pesquisa porque, como foi dito, o
propósito deste é um conhecimento que tenha relevância para a
prática social e política: não se estuda nada porque sim.”12

Na minha prática docente, já inspirada por Paulo Freire e também pela minha
experiência no cotidiano da escola, sempre busquei construir minha relação com as/os
estudantes dentro de uma perspectiva horizontal. O ponto de partida para o
planejamento do trabalho que realizaria sempre se deu através de discussões coletivas
e uma constante busca por conhecer cada um dos sujeitos que estavam partilhando
comigo o espaço da sala de aula. Ao longo dos anos, dentro da escola pública percebia


12
“Si se admite que la praxis de validación, como la concebimos aquí, es ante todo política, la
problemática de la investigación-acción lleva necesariamente a calificar las relaciones entre los
investigadores y las bases populares o sus organismos con los cuales se desarrolla la labos política.Este
es un aspecto fundamental del método de investigación porque, como queda dicho, el propósito de éste
es producir conocimiento que tenga relevancia para la práctica social y política: no se estudia nada
porque sí.”
25

o quanto a real disponibilidade ao diálogo era o melhor caminho para uma aproximação.
E “sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo.” (FREIRE, 2005, p. 92).
Minha relação com os educandos é hoje, portanto, uma relação amorosa. Essa relação
é anterior à proposta da pesquisa, portanto, ela não acontece como um caminho para
que seja feita uma investigação nos moldes do que propõe a IAP. Pelo contrário, é a
pesquisa que passará a fazer parte desse contexto de longo prazo, por isso a necessidade
de encontrar uma abordagem metodológica que faça sentido.
De fato, como já relatei anteriormente, a minha formação como professora foi
muito marcada pela minha experiência com a pesquisa-ação participativa no grupo
Musicultura, então, de todo modo, a minha prática na sala de aula talvez sempre tenha
sido, de certo modo, consonante com essa forma de fazer pesquisa. Não consigo ao
certo precisar onde termina o diálogo que estabeleço entre matriz curricular e cotidiano
de sala de aula e onde começa o fazer pesquisa e vice-versa. No entanto, não posso
negar que, por maiores que sejam os esforços em construir junto aos estudantes minha
proposta de trabalho, isso não me tira do lugar que ocupo como professora e não é
possível negar todas as implicações que essa posição traz no desenvolvimento de uma
pesquisa na escola. Afinal, a escola é, na sua estrutura, um lugar que muito ainda
acreditam que serve justamente para que se respeite hierarquias, e no caso da relação
professor - aluno, nessa escola onde se desenvolve essa pesquisa, elas representam
questões de raça, de classe e também de gênero. Essas questões acabam por criar
abismos entre os diversos segmentos que fazem parte da comunidade escolar, inclusive
entre as/os próprias/os trabalhadoras/es.
A sala de aula acaba sendo um espaço onde os conflitos gerados por essas
tensões se fazem presentes. Acredito ser importante, de antemão, ainda que
reconhecendo-me trabalhadora, reconhecer a distância entre a minha realidade social e
aquela que vivem as/os estudantes e nesse sentido propor-me a ouvi-los quanto a isso.
No entanto, por mais que eu o faça ainda percebo na escola um constante desprezo do
que essas/es estudantes e suas famílias nos trazem em termos de modo de viver, de
cultura, desse modo não posso esquecer que, como professora, eu também represento
o que é a escola para elas/es. Nesse sentido, inicio uma reflexão quanto à minha posição
na pesquisa. Em Fals Borda (2014a, p. 237, tradução nossa), encontro as primeiras
reflexões que uso sobre o sujeito e o objeto do conhecimento quando ele afirma que “o
paradigma da ciência social crítica estipula que a diferença entre sujeito e objeto pode
26

ser reduzida na prática da investigação”13. Ainda diz que:

esse entendimento entre pessoas de diferentes origens, treinamento


e, muitas vezes classe social, teve lugar quando aquelas que se
consideravam mais bem preparadas modificaram a concepção do
seu papel - seja como quadro ou como investigadoras - e adotaram
uma atitude de aprendizagem e de respeito pela experiência, o saber
e a necessidade das outras, e se preparando ao mesmo tempo, para
deixar-se ‘expropriar’ a sua técnica e conhecimento.14 (BORDA,
2014a, p. 238, tradução nossa).

Contudo, diante dos conflitos entre a relação que gostaria de vivenciar na sala
de aula e o que de fato acaba sendo possível em função da minha posição como docente,
trago Vasco Uribe, cuja análise acerca dessa questão aproxima-se um pouco mais das
questões que percebo durante o trajeto dessa pesquisa. Ressalto, que apesar de me sentir
sujeito e objeto dessa investigação, tendo em vista o fato concreto de que a professora
também é parte de todos os diálogos travados dentro desse espaço, reconheço não ser
possível dentro da escola o estabelecimento de uma relação que seja totalmente
horizontal. Como diz Uribe (2002), há uma diferença entre pessoa e indivíduo, sendo
esse uma criação histórico-social. Com isso, ele defende que o que sou como indivíduo
está determinado de fora de mim, pela sociedade, acreditando que não é possível
sustentar a ideia do etnógrafo como indivíduo, quer dizer, como sujeito pessoal da
investigação. O autor ressalta que segundo os critérios que haviam sido estabelecidos
da IAP, “a relação de desigualdade entre pesquisador e pesquisado, sujeito e objeto,
aparece como uma questão voluntarista e, consequentemente que pode desaparecer por
um ato voluntário do etnógrafo, como se não tivera seus fundamentos na realidade
objetiva”15 (URIBE, 2002, p. 693, tradução nossa) Essa relação de desigualdade existe
nessa pesquisa, e eu não poderia dizimá-la. Não conseguiria derrubar os “muros da
escola” sozinha.


13
“el paradigma de la ciência social critica estipula que na diferencia entre sujeto y objeto puede
reducirse em la práctica de la investigación.”
14
“Este entendimento entre personas de distinto origen, entrenamiento y, muchas veces, classe social,
tuvo lugar cuando aquella que se consideraba mejor preparada modificó la concepción de su papel –
sea como cuadro o como investigador – y adoptó uma actitud de apendizaje y de respeto por la
experiencia, el saber y la necesidad de la outra, alistándose al mismo tiempo para dejarse ‘expropiar’ su
técnica y conocimiento.”
15
“la relación de desigualdad entre investigador-investigado, sujeto-objeto, aparece como una cuestión
voluntarista y, por consiguiente, que puede desaparecer por um acto voluntario del etnógrafo, como si
no tuviera sus fundamentos en la realidad objetiva.”

27

1.5 Cruzando os procedimentos e a pesquisa-ação participativa. Detalhes de


compreensão da metodologia no campo.

Nesse momento, pretendo explicitar de que forma os procedimentos dessa


pesquisa se enquadram na proposta da pesquisa-ação participativa. Em primeiro lugar,
o objeto desse trabalho é a reflexão, a partir de uma experiência coletiva, sobre de que
modo as desigualdades de gênero podem estar presentes na música e também acerca de
como isso pode ou não se relacionar com a nossa liberdade em ser o gênero que
quisermos ou em construir a nossa própria relação com a sexualidade. Esse processo de
reflexão pretende a tomada de consciência e a enxerga como ação política. Do mesmo
modo, o momento do pensar sobre essas questões como ponto de partida para tocar a
luta contra as desigualdades. Acredito portanto, que estivemos durante o tempo da
pesquisa formando nossas posições perante as questões de gênero e o resultado disso
foi notado e avaliado por todos como descreverei no momento final desse trabalho.
Nessa perspectiva, assumo, como diz Fals Borda ao descrever a investigação ativa, uma
pesquisa que “trabalha para armar ideologicamente e intelectualmente, as classes
exploradas da sociedade, para que assumam conscientemente seu papel como atores
da história. Esse é o destino final do conhecimento, o que valida a práxis e cumpre o
compromisso revolucionário”16 (BORDA, 2014a, p. 232, tradução nossa).
Fiz a opção por realizar os debates antes de uma total imersão na literatura que
eu viria a utilizar para a formação da epistemologia desse trabalho. Primeiro, vivi o
campo, que aliás já vivia diariamente há alguns anos, mas com o direcionamento para
que juntos pensássemos sobre as questões colocadas. Interessava-me participar dos
debates tendo como conhecimento principal aquele mesmo com o qual estávamos
lidando nos nossos encontros, aquele que eu havia formulado na minha experiência
como mulher. Reconheço nessa minha decisão o “método dialético aplicado em
medidas alternativas e complementares” do qual tratou Fals Borda, já citado aqui
anteriormente. O ponto final do trabalho foi um retorno para refletir sobre o
conhecimento que havíamos trocado, produzido, registrado em nossas conversas e
então nesse processo de reflexão entram os “conceitos ou teorias que se adaptariam ao
contexto real”. Assim o fiz, esse movimento e depois o retorno aos diálogos, inclusive,


16
“[...] trabaja para armar ideológica e intelectualmente a las clases explotadas de la sociedad, para que
asuman conscientemente su papel como acotres de la historia. Este es el destino final del conocimiento,
el que valida la praxis y cumple el compromisso revolucionario.”
28

gerou uma indispensável autocrítica. De certo modo, buscava com isso “transcender a
individualidade, romper com a ficção do sujeito e eliminar a ideia de que o sujeito do
conhecimento é o etnógrafo”17 (URIBE, 2002, p. 694, tradução nossa). A opção por
desenvolver a pesquisa dentro dos coletivos das turmas com as quais trabalhei partia do
entendimento de que “o sujeito deve ser um conjunto, social, integrado pelo
etnógrafo”18 (URIBE, 2002, p. 694, tradução nossa). Colocando-me constantemente no
lugar de conhecer, acho importante ressaltar que não considero “válido o princípio da
etnografia tradicional de observar lá e conhecer aqui, pois a própria vida é princípio,
meio e fim do conhecimento”19 (URIBE, 2002, p. 698, tradução nossa).
Sobre o momento de escolha do objeto da pesquisa, ele foi uma decisão minha.
Mas entendendo-me como parte campo que etnografei, mesmo considerando as
questões que já desenvolvi acerca do lugar que socialmente ocupo como professora
dentro da sala de aula, entendo que sua concepção foi formulada dentro do coletivo. É
coletivo pois se deu a partir da percepção de tensões que existiam ali.
Essas tensões se tornaram claras para mim não somente através da observação
atenta ao cotidiano na escola, mas também através de mapeamento realizado
anteriormente, onde as/os estudantes apontavam as questões que acreditavam que
deveriam ganhar espaço nos nossos debates dentro das aulas. Não era pouco comum as
questões de gênero e a forma como a música trata delas serem assunto nos mais diversos
momentos das aulas de música, a reflexão final das/os estudantes me confirmou essa
hipótese. Trago novamente Vasco Uribe (2002) e sua crítica ao foco em uma adequação
da linguagem a ser utilizada como uma preocupação principal, ele defende que o
essencial não está na maneira de comunicar os produtos de nossas investigações, mas
sim no nosso modo de fazer antropologia. Assim sendo, essa não é uma preocupação
central para mim, nem no sentido de buscar uma linguagem “mais acessível”, mas
também não em adequar o uso que fazemos da língua no cotidiano da sala de aula ao
que muitas vezes se espera de um trabalho acadêmico.
Finalizo colocando em questão a própria prática etnográfica, que, segundo
Uribe (2002), para o pós-modernismo encontra sua essência na escrita, o que acaba


17
“trascender la individualidad, romper con la ficción del sujeto y eliminar la idea de
que el sujeto del conocimiento es el etnógrafo.”
18
“[...] el sujeto debe ser conjunto, social, integrado por el etnógrafo, [...]”
19
“Por eso no es válido el principio de la etnografía tradicional de observar allá y conocer aquí, pues la
vida misma es principio, medio y finalidad del conocimiento.”

29

supervalorizando o texto com relação ao trabalho de campo. Ao colocar em dúvida os


fundamentos epistemológicos desse último momento da etnografia, entra em dúvida a
validade da representação que se realiza com a escrita. Por hora, não encontro resposta
para essa dúvida. O momento da escrita não se sobrepõe ao vivido nos encontros, no
campo, cada um faz parte de diferentes formas de produzir conhecimento. Acabo, por
fim, entendendo que essa pesquisa é uma tentativa de dividir o conhecimento produzido
nas aulas de música com a universidade e não o contrário, a produção de conhecimento
já aconteceu no “chão da escola”, aliás acontece diariamente e já está em cada uma/um
de nós em forma de ferramentas de empoderamento e de luta contra as desigualdades
de raça, de classe e é claro, de gênero.
30

CAPÍTULO 2 - ENCONTROS EPISTEMOLÓGICOS COMO SUPORTE PARA


AS REFLEXÕES DO COTIDIANO.

Quando decidi iniciar essa pesquisa, no momento de construção do projeto para


o ingresso no curso de mestrado, imaginava-me uma pesquisadora feminista. Não tinha
conhecimento do que essa classificação significava em termos de teorias e não tinha
encontrado ainda, em nada do que havia lido até então, suporte epistemológico para os
principais questionamentos que eu fazia quanto às desigualdades de gênero percebidas
por mim no cotidiano.
Durante o tempo em que me dediquei a pensar as questões de gênero busquei
quais seriam as principais contribuições que poderiam me auxiliar no desenvolvimento
de uma compreensão do campo que eu me propunha a pesquisar. Realizava
cruzamentos entre, o que eu acreditava ser uma “teoria feminista”, a música e a
educação. As primeiras autoras que eram apontadas, com base nessas interseções, eram:
Susan McClary no caso da música e Guacira Lopes Louro representando o campo da
educação. As duas me ajudaram na construção de uma ideia inicial de pesquisa e me
acompanham no desenvolvimento das minhas reflexões. No entanto, ainda não seria
através delas, embora na obra de Louro a referência queer seja clara e marcante, que se
daria o que eu chamo de “encontro epistemológico”.
O termo queer já havia aparecido diversas vezes durante os encontros e
conversas de um grupo feminista do qual eu fiz parte, que se organizava dentro do
Sindicato dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEPE RJ),
formado por educadoras de diferentes redes de ensino do estado. Era comum também
ouvir a defesa de um feminismo interseccional e ainda que eu não compreendesse
exatamente o que esses nomes carregavam consigo, sempre que pedia que me
explicassem o que eles significavam me sentia contemplada, acreditava ser essa a forma
como eu entendia gênero e sexualidade.
Foi necessário que eu encontrasse na epistemologia uma forma de olhar o
gênero que me auxiliasse no processo de compreensão das questões que me
mobilizavam. Através de conversas com colegas que se interessavam pelo assunto,
companheiras da organização feminista e com meu orientador, buscas na internet e em
livrarias e cheguei a Judith Butler e com ela o ponto de partida para a construção de um
cruzamento entre os estudos queer, a educação e uma musicologia feminista.
Certamente a quase inexistente discussão acerca das teorias de gênero no programa de
31

pós graduação em música do qual faço parte ou até mesmo a inócua presença de autoras
mulheres na bibliografia proposta durante a minha trajetória no mestrado pode ter
constituído um obstáculo, que eu espero ter conseguido ultrapassar.
Nesse capítulo apresentarei a teoria queer, suas interlocuções com a educação e
também a musicologia feminista. Escritos, estudos, ideias e reflexões que foram suporte
para as análises e interpretações da etnografia que relato nessa pesquisa, e
consequentemente parte da construção de um processo de transformação da minha
prática como educadora que tenho vivido como fruto dessa investigação.

2.1 E o “queer” é isso, afinal?

Essa seção do capítulo foi subdividida em partes onde organizo as informações


necessárias para que possamos entender o que é a teoria queer, fundamental para o
desenvolvimento desse trabalho. Começo com as origens do pensamento, situando
histórica, política e teoricamente os primeiros passos do que hoje chamamos de queer.
No segundo momento, me debruço sobre as principais ideias em diálogo com expoentes
autoras e autores que costuram essa forma de olhar o gênero e a sexualidade. Na terceira
e última parte, apresento algumas reflexões sobre a chegada, o uso e o desenvolvimento
da teoria no Brasil.

2.1.1 O princípio de uma teoria ativista.

A teoria queer, como já podemos imaginar por seu nome, não surge no Brasil.
Segundo Richard Miskolci (2016, p. 21), o que hoje chamamos de queer “surge como
um impulso crítico em relação à ordem sexual contemporânea”. Esse impulso é
relacionado com as demandas dos movimentos sociais na década de 1960. Miskolci
(2016) também aponta para o fato desses movimentos sociais terem sido, a posteriori,
denominados novos, por terem surgido depois do movimento operário e trabalhador e
por fazerem uma tentativa de superar uma perspectiva “economicista” desses
movimentos anteriores. É importante ressaltar que o próprio autor reconhece que essa
visão que concede a esses movimentos a nomenclatura de novos, apresenta um olhar
“eurocêntrico”, “pois atribui caráter de vanguarda apenas ao movimento operário das
sociedades industriais do Ocidente, ignorando o movimento abolicionista que lutou
32

pela libertação dos escravos um século antes, sobretudo em países como o Brasil e os
Estados Unidos.” (MISKOLCI, 2016, p. 21).
Das novas características desses movimentos sociais da década de 1960 cito a
participação de outras camadas da sociedade, parte das classes média e até populares
que se juntavam a lutas que já estavam em curso, mas que vão tomando novo corpo,
através de outras demandas que surgem por conta de um diferente cenário político, onde
se começa a questionar a representatividade e a autoridade das instituições tradicionais,
como o Estado e os partidos políticos. Podemos pontuar como os 3 mais significativos:
o movimento pelos direitos civis da população negra do sul dos Estados Unidos, o
20
movimento feminista da chamada segunda onda e o, até então denominado,
movimento homossexual. Nesse cenário surge também um apontamento, que vinha das
alas mais ousadas e a vanguarda desses movimentos, do corpo, do desejo e da
sexualidade como alvo e veículo através dos quais se manifestavam as relações de
poder (MISKOLCI, 2016). Isso seria o que o autor considera como o surgimento do
queer em termos políticos, “expresso na luta por desvincular a sexualidade da
reprodução, ressaltando a importância do prazer e a ampliação das possibilidades
relacionais.”
No campo acadêmico, foi durante a década de 1980 que a teoria queer começou
a tomar forma através de diferentes forças. No caso dos estudos feministas, como indica
Sara Salih (2015, p. 18-19), esse é o momento em que se inicia, dentro do campo, um
questionamento em torno da categoria “sujeito feminino” como entidade estável e
evidente, nas palavras dela:
Uma série de teóricas, influenciadas por Foucault, rejeitava a ideia de
que o “sexo” era - como até então se acreditava - uma entidade
biologicamente determinada, utilizando, em vez disso, as
formulações de Foucault sobre os modos pelos quais o sexo e a
sexualidade são discursivamente construídos ao longo do tempo e das
culturas para desenvolver outra visão. (SALIH, 2015, p.19)

Nessa mesma década de 1980, mais especificamente na segunda metade, outro


fator vem contribuir com a nova visão que começa a ser desenvolvida no interior do


20
A 2ª onda do movimento feminista aconteceu entre as décadas de 1960 e 1980 e se diferencia da
primeira, onde a luta era mais direcionada a conquista de direitos políticos, como o sufrágio, colocando
o problema da desigualdade, discutindo problemas culturais e políticos e incentivando a luta contra as
estruturas sexistas de poder. Chamo atenção para o fato de que nesse momento o movimento feminista
ainda não apresentava um caráter interseccional, ou seja não apresentava reflexões sobre sobreposição
ou intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou
discriminação, era um feminismo branco não relacionado com questões de classe.
33

movimento homossexual e também do feminista, o que Pelúcio (2014, p. 29) chama de


“histeria higienista” diz respeito ao surgimento da epidemia de aids nos Estados
Unidos, 21 quando segundo ela “fomos aterrorizados pelo pânico moral da aids, quando
um surto de ignorância médica ressuscitou palavras medievais como ‘peste’ e ‘praga’.”.
A autora aponta que os movimentos buscavam saídas para esse momento quando
termos como “homossexualismo” e “perversão” que, tão antigos quanto o século XIX,
voltavam a ser utilizados e mais, povoando a imaginação midiática (PELÚCIO, 2014,
p. 29). Esse episódio gerou como aponta Miskolci (2016, p. 22-23) “um dos maiores
pânicos sexuais de todos os tempos”. Ele também afirma que a epidemia é tanto um
fator biológico como uma construção social, justificando ao dizer que a aids foi
construída culturalmente quando houve a decisão de delimitá-la como uma doença
sexualmente transmissível (DST), o que serviu quase como um castigo para aqueles
que não seguiam a ordem sexual tradicional. Essa compreensão da epidemia acabou se
tornando resposta conservadora à Revolução Sexual22 e no mundo todo essa reação
gerou consequências até hoje perceptíveis na forma como aprendemos a lidar com a
nossa sexualidade, como aprendemos sobre nos mesmos e como vivemos nossos afetos
(MISKOLCI, 2016, p. 23).
Diante de um refluxo conservador detonado pela epidemia da aids pensadores
desenvolveram diversos estudos sobre a hegemônica política heterossexual
(MISKOLCI, 2014, p. 11). Essa onda conservadora fez com que parte do movimento
gay e lésbico se tornasse ainda mais radical e questionasse os próprios fundamentos da
sua luta política. Miskolci (2016, p. 23) aponta a aids como um “catalisador biopolítico”
que gerou formas mais radicais e astutas de resistência. Grupos organizados com
propostas de ação direta contra o poder discutiam a aids, como por exemplo o ACT UP
(AIDS Coalition to Unleash Power) ou o Queer Nation, conhecida por suas táticas de
confronto, e desse modo materializaram essa resistência. E então “pensadores e
pensadoras queer fizeram uso, desde o início de conformação desse campo de
proposições teóricas, dessa potência” (PELÚCIO, 2014a, s/n). E ousaram escolher e
adotar “a ofensa, a identidade atribuída e nunca reivindicada, como seu lugar político:


21
No Brasil a epidemia também acontece e se relaciona diretamente com a chegada e consolidação dos
estudos queer por aqui. Falarei um pouco mais sobre isso na próxima parte desse mesmo capítulo.
22
Fenômeno ocorrido no mundo ocidental dos anos 1960 aos anos 1970, onde ocorreram diversas
mudanças quanto aos códigos de comportamento sexual, através do questionamento e discussão de
regras até então estabelecidas.

34

queer.” (PELÚCIO, 2014a, s/n). “E assim surge o queer, como reação e resistência a
um novo momento biopolítico instaurado pela aids.” (MISKOLCI, 2013, p. 24).

2.1.2 Ideias centrais para a (des)construção da teoria.

Buscando no dicionário Oxford o significado da palavra queer. A primeira


acepção apresentada é: strange, unusual, o que eu traduziria como estranho,
desconhecido, incomum. Em segundo lugar, sinalizado como um slang, ou seja, uma
gíria, aparece: forma ofensiva de descrever um homossexual, especialmente homem,
que é, no entanto, usada por alguns homossexuais para falar sobre si mesmos.
(HORNBY, 2000, p. 1080, tradução nossa). Essas definições por si só já me sinalizam
mudanças necessárias na minha maneira de pensar: se esse era o nome dado a essa
teoria para onde me levavam as autoras com as quais iniciei esse diálogo, gênero não
poderia ser usado como sinônimo de feminismo. Se seu nome faz referência aos
homossexuais, em especial homens, não podemos estar falando somente da luta por
igualdade de direitos da mulher na sociedade, ainda que ela faça parte disso. Nesse
primeiro olhar percebo que meu caminho seria traçado em diálogo com uma “teoria
estranha”, se feita a tradução literal. Não sabia que ainda encontraria muitas outras
pesquisadoras brasileiras que também já tinham se dedicado a pensar essas traduções
ou torções como disse Larissa Pelúcio (2014), sobre as quais me debruçarei mais a
frente.
Pretendo nesse momento apresentar algumas ideias importantes que norteiam a
teoria queer. Guacira Lopes Louro aponta essas ideias como antinormalizadoras, como
representantes do raro, do estranho, do esquisito, dos sujeitos da sexualidade desviante,
do excêntrico que não deseja ser “integrado” ou “tolerado”. Para ela,

queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer
como referência; um jeito de pensar que desafia as normas da
sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do ‘entre
lugares’, do indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda,
perturba, provoca e fascina. (LOURO, 2016, p. 7-8)

Sara Salih (2015, p.19) diz que “o queer não está preocupado com definição,
fixidez ou estabilidade, mas é transitivo, múltiplo e avesso à assimilação.” Faço uso de
suas palavras para dizer que não me proponho a definir a teoria, mas apresentar ideias
chave que compõem os estudos queer de modo a tornar compreensíveis minha escolha
35

por essa linha epistemológica além das questões, reflexões e interpretações surgidas e
realizadas a partir do trabalho de campo.
A teoria queer toma forma em um momento onde os movimentos sociais
defendiam a necessidade de afirmar as identidades das minorias como forma de lutar
por direitos, por tolerância, por inclusão. O pensamento queer representa a proposta de
repensar essa defesa. Aponta-se para o fato de que essa forma de luta poderia ao
contrário de libertar esses grupos minoritários reiterar a concepção de que havia
comportamentos normais/anormais. Colocava-se em cheque o binarismo presente na
sociedade nas seguintes formas: homem/mulher, masculino/feminino,
heterossexual/homossexual e como já citado antes normal/anormal. Esse olhar binário
diante da vida excluía as diversas formas de “ser” e apresentava relações de poder que
foram discutidas e questionadas através do estudos queer.
Diante dessa perspectiva o primeiro objeto de investigação desses estudos foi o
sujeito. “A teoria queer surgiu, pois, de uma aliança (às vezes incômoda) de teorias
feministas, pós-estruturalistas e psicanalíticas que fecundavam e orientavam a
investigação que já vinha se fazendo sobre a categoria do sujeito.” (SALIH, 2015, p.
19). Segundo a mesma autora a palavra de ordem seria: desconstruir. Essa seria a
principal ação em torno das identidades sexuadas e “generificadas”. Essa posição
aparentemente significou uma mudança de paradigma em relação aos estudos de
gênero, os estudos gays e lésbicos e a teoria feminista que tinham tomado a existência
de “o sujeito” (isto é, o sujeito gay, o sujeito lésbico, a “fêmea”, o sujeito “feminino”)
como um pressuposto (SALIH, 2015).
Uma das importantes obras usadas como mote para o desenvolvimento dessa
corrente de pensamento foi a “História da Sexualidade I” de Michel Foucault que
analisa a produção discursiva da sexualidade. Foucault (2003) desconstrói a “hipótese
repressiva”, mostrando que, pelo contrário, houve uma “explosão discursiva” sobre
sexo ocorrida nos últimos séculos. Através desse processo houve a depuração do
vocabulário autorizado, controle dos enunciados, ou seja, a definição de como, onde e
quando era permitido ou não falar sobre sexo, constituindo-se uma “economia
restritiva”. Nesse estímulo ao invés da censura constitui-se uma aparelhagem para
produzir discursos sobre o sexo. Cabe ressaltar que as formulações de Foucault sobre o
discurso o definem como:
Grandes grupos de enunciados’, que governam o modo como falamos
e percebemos um momento ou momentos históricos específicos.
36

Foucault compreende os enunciados como eventos reiteráveis que


estão ligados por seus contextos históricos. [...] Foucault está
interessado particularmente nas posições de sujeito pressupostas
pelos enunciados e no modo como os sujeitos são discursivamente
constituídos” (SALIH, 2015, p. 69).

Essa incitação, que nasce no século XVIII, é política, econômica, técnica e se


dedica a formular um discurso que não fosse meramente moral, mas sim que passasse
pela racionalidade, que acontecesse sob forma de análise, de contabilidade, de
classificação e de especificação. É que nesse mesmo século, com o surgimento da ideia
de “população”, seria necessário lidar com ela e não mais com o sujeito ou com o povo,
então o sexo se torna uma questão política e econômica e com isso um objeto de disputa
entre cidadão e Estado, já que este estabelece uma conduta de “regulação” do sexo. O
autor também fala do “sexo das crianças e adolescentes” como um importante foco em
torno do qual se dispuseram inúmeros dispositivos institucionais e estratégias
discursivas, a escola sem dúvida foi, e ainda é, um desses dispositivos.
Foucault (2003), diz que houve uma “implantação perversa” no momento em
que explicita quais foram as consequências dessa “explosão discursiva” ocorrida nos
séculos XVIII e XIX, ele o faz apresentando suas análises desses discursos. Análises
essas que têm grande presença e importância no desenvolvimento da teoria queer, pois
através delas é possível compreender de que maneira se deu o processo de
estabelecimento daquilo que, dentro do campo da sexualidade, é a norma, cuja
compreensão e contestação é um dos grandes pressupostos dos estudos queer.
Até um determinado momento, a maior parte de regras e recomendações era
direcionada ao sexo dos cônjuges, à relação matrimonial, era sobretudo sobre ela que
se falava. Mas depois de ter sido estabelecida, através desses discursos, como norma, o
casal legítimo com sua sexualidade regular ganha direto à maior discrição tendendo a
funcionar como uma norma talvez mais rigorosa, no entanto, mais silenciosa. E ainda
que no campo das práticas e prazeres essa ainda seja a regra interna, um “movimento
centrífugo em relação a monogamia heterossexual” passa a acontecer. E a partir desse
momento, nas palavras de Foucault:
Em compensação o que se interroga é a sexualidade das crianças, a
dos loucos e dos criminosos; é o prazer dos que não amam o outro
sexo; os devaneios, as obsessões, as pequenas manias ou as grandes
raivas. Todas essas figuras, outrora apenas entrevistas, têm agora
de avançar para tomar a palavra e fazer a difícil confissão daquilo
que são. Sem dúvida não são menos condenadas. (2003, p. 39)
37

Diante disso “a sexualidade regular o será a partir dessas sexualidades


periféricas, através de um movimento de refluxo” (FOUCAULT, 2003, p. 39). Segundo
o autor é importante perceber o momento em que a medicina passa a ocupar um lugar
que até então era da igreja, quando os que não se encaixam passam a povoar as casas
de correção. O poder exerce outra função que não a da interdição, ou seja, não se
manifesta no sentido de impedir que a sexualidade seja um assunto a ser tratado. Desse
modo Foucault (2003) identificou quatro operações diferentes da proibição, que
seguiam a lógica de tratar da sexualidade ao invés de coibi-la. Estabelecendo a norma
através dessas operações. Dedico-me a elas pois se entrelaçam diretamente não só com
a formação da teoria queer, mas também com as reflexões presentes nesse trabalho.
Em primeiro lugar “considerando-se as velhas proibições de alianças
consanguíneas e a condenação do adultério” (FOUCAULT, 2003, p. 42), os recentes
controles, desde o século XIX, passam a atacar a sexualidade das crianças e a perseguir
seus hábitos solitários. Essa primeira relação mostra diferentes mecanismos de poder,
onde inicialmente estava presente a lei e posteriormente a medicina, a penalidade e
depois o adestramento e portanto a tática instaurada não é a mesma. O onanismo das
crianças foi tratado e combatido por médicos e pedagogos como uma epidemia a ser
extinta. Através de uma campanha secular, o mundo dos adultos foi mobilizado em
torno do sexo das crianças. Os prazeres tênues deveriam ser constituídos em segredo,
deveriam ser escondidos para que pudessem ser descobertos, investigava-se suas
fontes, origens e seus efeitos. Nos locais onde poderiam se manifestar aparecem os
aparatos de vigilância, foram impostos discursos inesgotáveis e corretivos, pais e
educadores deveriam estar sempre alertas e entre eles foi semeada a desconfiança de
que todas as crianças eram culpadas, e eles também o seriam no caso de não
desconfiarem o suficiente. “Foi prescrita a sua conduta e recodificada a pedagogia; e
implantadas sobre o espaço familiar as bases de todo um regime médico-sexual.”
(FOUCAULT, 2003, p. 43). Foucault considera que sobre esse apoio o poder avança,
multiplica suas articulações e efeitos. “Trata-se, aparentemente, de um dispositivo de
barragem; de fato, organizaram-se, em torno da criança, linhas de penetração,
infinitas.” (FOUCAULT, 2003, p. 43, grifos do autor).
O poder exerceria outra função, na argumentação do autor, através da caça às
“sexualidade periféricas”, que causa a “incorporação das perversões” e um novo
processo de “especificação do indivíduo”. O homossexual antes não aparecia, a
sodomia era um ato interdito e a relação com seu autor passava pelo viés jurídico. No
38

século XIX, o homossexual torna-se uma personagem, um passado, uma história, uma
infância, um caráter, uma forma de vida. “Nada daquilo que ele é, no fim das contas,
escapa à sua sexualidade” (FOUCAULT, 2003, p. 43). Assim que a homossexualidade
é caracterizada, ela constitui sua categoria psiquiátrica, psicológica e médica. Antes o
sodomita: um reincidente. Agora o homossexual: uma espécie. Assim se deu essa
mecânica de poder, tratando as “sexualidades periféricas” como espécies. Sua
especificação, distribuição regional, garantiu que fossem, através de sua disseminação
semeadas ao real e incorporadas ao indivíduo.
A terceira forma de poder que Foucault descreve se distingue das velhas
interdições quando exige presenças constantes para se exercer. Ela implica em
proximidades, acontece através de exames e observações insistentes. Tem a
“medicinalização do insólito sexual” como efeito e instrumento. Assim, o poder toma
para si a sexualidade e “açambarca o corpo sexual”.
O poder funciona como um mecanismo de apelação, atrai, extrai
essas estranhezas pelas quais se desvela. O prazer se difunde através
do poder cerceador e este fixa o prazer que acaba de desvendar. O
exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico e
os controles familiares podem, muito bem, ter como objetivo global
e aparente dizer não a todas as sexualidades errantes ou improdutivas
mas, na realidade, funcionam como mecanismos de dupla incitação:
prazer e poder. (FOUCAULT, 2003, p. 45)

Isso define o que o autor chama de “perpétuas espirais de poder e prazer”. E


delas, os “dispositivos de saturação sexual” que são, segundo ele, característicos do
espaço e dos ritos sociais do século XIX. Esses dispositivos têm relação com a forma
como a sociedade moderna organizou (e fez proliferar), grupos com elementos
múltiplos e sexualidade circulante. As sexualidades desejadas e perseguidas
relacionando-se em um regime de proximidades significam a vigilância como
mecanismo de intensificação, como “contatos indutores”. Foucault destaca a família, à
qual ele também trata como “as pessoas da casa”, como uma rede de prazeres-poderes
articulados. Onde sistemas de polarização como quarto dos pais/quarto das crianças,
meninos/meninas e também métodos de vigilância ligados à sexualidade das crianças,
à puberdade, por exemplo, compõem uma “rede complexa, saturada de sexualidades
múltiplas, fragmentarias e móveis.” (FOUCAULT, 2003, p. 46). As instituições
escolares ou psiquiátricas, com seus ritos ou espaços privilegiados também são citadas
pelo autor como espaços onde outras formas de uma sexualidade que foge à regular é
solicitada e implantada.
39

As formas de estabelecer esses discursos acerca da sexualidade que Foucault


apresenta na obra citada apontam para uma das bases que constituiu a teoria queer. O
poder que foi exercido sobre o corpo e o sexo, um poder que se fez presente não sob
forma de interdição, mas ao contrário fixou-se através da redução das “sexualidades
singulares”. Um poder que incitou os “comportamentos polimorfos”, interferiu
diretamente sobre os corpos e seus prazeres contribuindo para o crescimento das
perversões e estabeleceu uma “fisionomia rígida” delas. Definiu, especificou, limitou,
isolou, consolidando assim as “sexualidades periféricas”, que se multiplicam medindo
o corpo e penetrando nas condutas e também garantindo grandes lucros econômicos
decorrentes da concentração analítica do prazer e também do aumento do poder de
quem o controla, intermediados pela medicina, psiquiatria, prostituição e pela
pornografia.
O olhar sobre a presença desses mecanismos de poder em torno da especificação
das sexualidades, nos ajuda a compreender o motivo pelo qual a teoria queer é
concebida, como afirma Louro (2016), como uma teoria pós identitária. Ela parte de
questões acerca da formação da identidade e da subjetividade, analisa as estruturas de
poder presentes nesses processos de definição. Essa postura é visível na forma como a
teoria passa a se desenvolver como autocrítica dentro dos movimentos feminista e
homossexual que até então, como já citado anteriormente, defendiam a necessidade da
afirmação da identidade como “o” caminho para a conquista de direitos. Haveria de se
pensar nos percursos e conjecturas de poder presentes nessa afirmação, seria necessário
questionar a identidade e sua definição, afinal, definir, de certo, não é um verbo queer.
Seguindo essa linha de reflexão trago Judith Butler (2015) como importante
influência no meu trabalho. Em seu livro Problemas de Gênero, ela desconstrói o
conceito de gênero sobre o qual a teoria feminista se apoiava até então. A autora
questiona a dualidade: sexo como biológico, gênero como social e é justamente esse
questionamento que se contrapõe ao conceito que apresentara a mulher como sujeito
do feminismo, pois aponta o sexo como uma construção discursiva e cultural tal qual o
gênero. De um modo geral, encontramos nessa obra reflexões acerca do processo de
constituição do sujeito, ou seja, os modos através dos quais a identidade, em especial a
identidade de gênero, é construída no e pelo discurso.
Segundo Butler (2015, p. 38) “os debates feministas contemporâneos sobre o
essencialismo colocam de outra maneira a questão da universalidade da identidade
feminina e da opressão masculina”. Algumas mulheres afirmavam que essa identidade
40

também era normativa e excludente. Diziam que “essa insistência sobre a coerência e a
unidade da categoria das mulheres rejeitou efetivamente a multiplicidade das
interseções culturais, sociais e políticas em que é construído o espectro concreto das
‘mulheres’.” (BUTLER, 2015, p. 39). É importante destacar que fazem parte desse
processo de discussão dentro do movimento feminista linhas importantes como o
feminismo lésbico e o feminismo negro que justamente questionavam essa suposta
unidade do sujeito do feminismo que lhes parecia excludente. O feminismo lésbico se
faz presente em Butler (2015) através do diálogo que ela trava com a autora Monique
Wittig, importante para essa linha de pensamento. Não encontro um diálogo com o
feminismo negro, não só em Butler, mas durante a maior parte da revisão de literatura
realizada nessa pesquisa.
Em Problemas de Gênero (2015), é possível encontrar formulações teóricas
como a crítica foucaultiana do sujeito e as leituras que Butler faz das teorias
estruturalista, psicanalítica e feminista. É nesse livro que a autora apresenta as teses
sobre as quais me dediquei para compreender a proposta queer. Ela descreve de que
forma os gêneros e os sexos são “feitos” no interior da matriz heterossexual e também
analisa como é possível “fazer” essas construções de maneiras diferentes. A sua
descrição e análise nos levam a alguns conceitos como o de performatividade e a
paródia de gênero, sobre os quais falarei nesse momento. É importante frisar que o
caminho que a autora segue é longo, denso e bastante complexo, sendo assim não tenho
a pretensão de me aprofundar na discussão dessas formulações, mas sim buscar que
sejam inteligíveis.
Dentre os diversos diálogos travados por Butler (2015) destaco aquele que ela
desenvolve com Freud, demonstrando especial interesse nas “disposições 23 ”. Essa
minha opção em evidenciar esse diálogo diz respeito ao fato de que ele desemboca em
uma hipótese acerca da constituição da identidade de gênero que é base essencial das
formulações que apresentarei a seguir. No entanto, devo salientar que seria uma enorme
quimera da minha parte acreditar ser possível retratar, em sua complexidade, e no
pouco espaço de que disponho, todas as formulações que a autora desenvolve a partir
dessa análise que ela faz de teses do psicanalista. Butler questiona Freud e afirma as


23 “Disposições: A inclinação a desejar, a partir do nascimento, pessoas do mesmo sexo ou do sexo
oposto” (SALIH, 2015, p. 78)
41

“disposições” como efeitos de “identificações24” com o progenitor do mesmo sexo ou


do sexo oposto e não como suas causas. Ela alega portanto, que o desejo não vem em
primeiro lugar. Seguindo esse caminho, Butler defende a tese de que anterior ao “tabu
do incesto” existiria um “tabu contra a homossexualidade”. Pontua que “nem toda
identificação de gênero baseia-se na implementação bem-sucedida do tabu contra a
homossexualidade”, mas aponta para o fato de que:
Se as predisposições masculina e feminina são resultado da
internalização efetiva desse tabu, e se a resposta melancólica 25 a
perda do objeto do mesmo sexo é incorporar e, a rigor, tornar-se esse
objeto, por via de construção do ideal do eu, então a identidade de
gênero parece ser, em primeiro lugar, a internalização de uma
proibição que se mostra formadora da identidade. (BUTLER, 2015,
p. 116)

Ela também evidencia uma certa “confusão” admitida pelo autor quanto ao que
seria “exatamente uma predisposição masculina ou feminina” e diante disso se
pergunta, “o que são essas predisposições primárias em que o próprio Freud parece se
embaraçar?” (BUTLER, 2015, p. 111). Sua resposta segue no sentido de sustentar as
“predisposições” como vestígios de uma história de proibições sexuais impostas.
História essa não contada e que, através da proibição, busca-se que se tornem indizíveis.
Tece um contraponto entre a narrativa psicanalítica, onde as “predisposições” seriam
“ensinadas, fixadas e consolidadas por uma proibição que posteriormente e em nome
da cultura, consegue subjugar o distúrbio criado por um investimento homossexual
irrefreado” e o ponto de vista da lei proibitiva como momento fundador da narrativa. A
lei aparece de três maneiras: em primeiro lugar produzindo a sexualidade na forma de
“predisposições”, em segundo “reaparece de maneira ardilosa” transformando as
“predisposições aparentemente naturais em “estruturas culturalmente aceitáveis de
parentesco exogâmico” e, em terceiro para ocultar sua genealogia como norma
produtora do próprio fenômeno, ela “instala a si mesma como princípio de continuidade
lógica numa narrativa de relações causais que toma os fatos psíquicos como seu ponto
de partida.” (BUTLER, 2015, p. 118).
A partir dessa discussão acerca das “predisposições”, Butler inicia um diálogo
com Foucault e a obra já citada nesse trabalho “História da sexualidade I”, quando ela


24 “Identificação: o processo pelo qual alguém vem a se identificar com alguém ou com algo; neste
contexto, o objeto que tinha sido perdido. As identificações ocorrem através de introjeção ou da
incorporação.” (Ibid, p. 78, grifos da autora)
25“Melancolia: a reação a uma perda imaginada” (Ibid, p. 77)
42

propõe que se desenvolva um ponto de vista de inversão da narrativa causal de Freud e


que se pense as disposições primárias como efeitos da lei. Nesse diálogo ela apresenta
a crítica de Foucault à “hipótese repressiva” e seu argumento de que o desejo, seja o
original, seja o recalcado, é efeito da própria lei coercitiva. Sendo assim, o tabu contra
o incesto ou contra a homossexualidade seria “localizado na noção de ‘predisposições’,
o qual sofre a repressão de um direcionamento libidinal originalmente homossexual e
produz o fenômeno deslocado do desejo heterossexual.” Relaciona esse pensamento
baseada na análise das hipóteses psicanalíticas com as teses desenvolvidas por Foucault
argumentando que, “a estrutura dessa meta-narrativa particular do desenvolvimento
infantil representa as predisposições sexuais como impulsos pré-discursivos” que
seriam “temporariamente primários e ontologicamente distintos” e também “dotados
de propósito e, consequentemente, de um significado anterior a seu surgimento na
linguagem e na cultura.” (BUTLER, 2015, p. 119) Desse modo, ela finaliza essa
argumentação parecendo concordar com Foucault ao afirmar que:
A lei repressiva efetivamente produz a heterossexualidade, e atua
não como um código meramente negativo ou excludente, mas como
uma sanção e, mais apropriadamente, uma lei do discurso,
distinguindo o que é dizível do que é indizível (delimitando e
construindo o campo do indizível), o que é legítimo do que é
ilegítimo. (BUTLER, 2015, p. 120)

Butler evidencia em diferentes momentos de “Problemas de gênero” a


argumentação na qual considera tanto o sexo quanto o gênero como “encenações” que
operam “performatividade” para estabelecer a aparência de fixidez corporal. E ainda
afirma que como “encenações” e não simples dados é possível encená-los de maneiras
inesperadas e potencialmente subversivas. O conceito de “performatividade” indica a
“generificação” de todos os corpos desde o começo de sua existência social e,
considerando não haver qualquer existência que não seja social, não haveria portanto
“corpo natural” cuja existência seja anterior à sua inscrição cultural. “Nesse sentido, o
gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois
vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas
práticas reguladoras da coerência do gênero.” (BUTLER, 2015, p. 56, grifos da autora).
Quando Butler (2015, p. 56, grifos da autora) afirma que “não há identidade de
gênero por trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente
constituída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resultados” uma certa confusão
aparece para algumas pessoas. Sara Salih (2015, p. 90, grifos da autora) nos ajuda a
43

compreender essa questão reiterando que “na verdade, Butler não diz que gênero é uma
performance, e faz uma distinção entre performance e performatividade”, lembra que,
segundo a autora, “enquanto a performance supõe um sujeito preexistente, a
performatividade contesta a própria noção do sujeito”. No entanto nesse mesmo livro
em que Judith Butler apresenta essa distinção diversas vezes ela usa o termo
performance, em especial ao tratar dos conceitos de paródia e drag.
O conceito de performatividade em Judith Butler também conversa com teorias
linguísticas de autores como J.L. Austin e Derrida. A performatividade linguística se
liga ao gênero quando esse é definido como um “ato que faz existir aquilo que nomeia:
neste caso, um homem ‘masculino’ ou uma mulher ‘feminina’.”(SALIH, 2015, p. 91).
“Aliás, compreender a identidade como uma prática significante, é compreender
sujeitos culturalmente inteligíveis como efeitos resultantes de um discurso amarrado
por regras, e que se insere nos atos disseminados e corriqueiros da vida linguística.”
(BUTLER, 2015, p. 249). É importante frisar, por fim, que ainda que Butler defenda o
potencial subversivo da constituição da identidade de gênero como um ato performativo
através de conceitos como a paródia de gênero ou a drag, por exemplo, isso não
significa afirmar que os sujeitos detêm a liberdade total dessa ação. Como Salih (2015)
exemplifica ao tentar desvendar Butler: é como se estivéssemos, na hora de nos vestir,
diante de um guarda roupa. Dentro desse guarda roupa, não estarão presentes todas as
possibilidades infinitas de estilos, combinações, tipos de vestimenta. Muito
provavelmente e na maioria das vezes encontramos nesse armário roupas que se
enquadram dentro de um padrão estabelecido para nós, pelo gênero, tamanho, moda da
época, tendências de mercado e etc. A possibilidade de criação existe, mas ela acaba
sendo construída dentro desse enquadramento, salvo raras exceções.
Inicio a apresentação do último conceito sobre o qual gostaria de tratar nessa
seção com a seguinte fala de Butler (2015, p. 236):
Se a verdade interna do gênero é uma fabricação, e se o gênero
verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos
corpos, então parece que os gêneros não podem ser nem verdadeiros,
nem falsos mas somente produzidos como efeitos da verdade de um
discurso sobre a identidade primária e estável.

Ainda que haja limites, deve ser possível “encenar” esse gênero de maneiras
que nos coloquem atentos aos processos de construção das identidades heterossexuais
que podem ter um interesse particular em apresentar-se como “essenciais” e “naturais”
e assim, seria legítimo afirmar que “o gênero em geral é uma forma de paródia, mas
44

que algumas performances de gênero são mais paródicas do que outras” (SALIH, 2015,
p. 93). Algumas performances paródicas como o drag, por exemplo, revelam a natureza
imitativa de todas as identidades de gênero ao destacar o afastamento entre o corpo do
performer e o gênero que está sendo encenado. “Ao imitar o gênero, a drag revela
implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero - assim como sua contingência”
(BUTLER, 2015, p. 237, grifos da autora). É portanto, parte do prazer da performance,
o reconhecimento de uma radical contingência na relação entre sexo e gênero.
Consideramos o gênero como um “estilo corporal”, um “ato” (ou sequência de
atos), ou até mesmo como uma “estratégia” de sobrevivência cultural, afinal quem não
“faz” seu gênero corretamente é punido pela sociedade (BUTLER, 2015, p. 240-241).
Destaco que essa noção de paródia que trago aqui “não presume a existência de um
original que essas identidades parodísticas imitem.” Saliento ainda que, “a paródia que
se faz é da própria ideia de um original” ou seja: “a paródia do gênero revela que a
identidade original sobre a qual se molda o gênero é uma imitação sem origem”
(BUTLER, 2015, p. 238)
A apresentação da paródia se faz como estratégia ou ato corporal subversivo,
mas há problemas com essa formulação que gostaria de ressaltar. O modo de escolha
do instrumento subversivo é limitado pelo próprio instrumento, ou seja, a subversão é
condicionada, talvez até determinada, por discursos dos quais não se pode fugir. Diante
disso, se há uma restrição da própria subversão em função do discurso, como é possível
dizer que há de fato subversão? Butler (2015, p. 239) afirma que, ainda que o gênero
seja em sua totalidade paródico, “a paródia não é subversiva em si mesma” e indica que
há meios de compreender que certos tipos de “repetição parodística” que efetivamente
rompem, verdadeiramente perturbam e que há as repetições que são domesticadas e
“redifundidas” como instrumentos da hegemonia cultural.
Desse modo, entendendo o gênero e a sexualidade inseridos e moldados através
do discurso e da lei como encontramos em Foucault (2003), a busca de Butler (2015,
p. 254) em “situar o político nas próprias práticas significantes que criam, regulam e
desregulam a identidade” questionando e denunciando a “não naturalidade” do
binarismo, é possível compreender como foram se moldando os estudos queer a partir
dessas perspectivas. Compreendendo não haver ontologia de gênero sobre a qual uma
política possa ser construída, “pois as ontologias do gênero sempre operam no interior
de contextos políticos estabelecidos como injunções normativas, determinando o que
se qualifica como sexo inteligível, invocando e consolidando as restrições reprodutoras
45

que pesam sobre a sexualidade” (BUTLER, 2015, p. 255), se faz necessário repensar a
identidade como fixa. Proliferar os pensamentos já existentes em torno das
configurações culturais do sexo e do gênero e torná-las articuláveis nos “discursos que
criam a vida cultural inteligível, confundindo o próprio binarismo do sexo e
denunciando sua não inaturalidade fundamental” (BUTLER, 2015, p. 256) são
objetivos. Concluo com uma questão apresentada por Butler (2015, p. 256), que é a
pergunta que eu me fazia ao construir essa pesquisa e a que me proporcionou o encontro
com a teoria queer: “Que outras estratégias locais para combater o “inatural” podem
levar a desnaturalização do gênero como tal?” Essa é uma busca que faço
cotidianamente na escola.

2.1.3 Teoria queer ou teoria cu - Traduções e torções da teoria no Brasil em sua


potencia decolonial.

Como citado na parte inicial desse capítulo o nome da principal teoria que
atravessa essa pesquisa carrega consigo uma postura política de enfrentamento. Autoras
e autores escolheram chamar uma teoria acadêmica com uma palavra que significa
ofensa e injúria aos homossexuais. Quando essa proposta chega ao Brasil,
diferentemente do que havia ocorrido nos Estados Unidos, tomando espaço na
academia e não através de demandas dos movimentos sociais, seu nome em inglês é
mantido. Essa tradução que se fez do queer quando chega ao Brasil é uma das questões
que nos ajudam a compreender a viagem dessa teoria até aqui. Além disso, a chegada
das autoras e autores que serviram de base para seu desenvolvimento, os
enfrentamentos entre as diferentes vozes que discutiam gênero e sexualidade nos
movimentos sociais e nas universidades frente a um novo olhar que surgia, nos auxiliam
nesse processo. Pensar essa teoria em uma perspectiva decolonial26 também carrega a
sua importância para a compreensão dos seus significados abaixo da linha do equador.
Pelúcio (2014b) descreve em seu artigo “Breve história afetiva de uma teoria
deslocada” como se deu seu encontro com a teoria queer. Ela conta que através de

26 “O pensamento decolonial é uma perspectiva crítica da “colonialidade do poder” – esta, uma
estrutura conceitual, política, ética e de gestão das esferas do social que se forjou na Europa nos
primeiros séculos de colonização. Na busca de se contrapor às lógicas da colonialidade, apresentando
outras experiências políticas, culturais, econômicas e de produção do conhecimento, o pensamento
decolonial vem alertando sobre certo direcionamento nas viagens das teorias e sobre uma geopolítica
que transforma uns em fornecedores de experiências e outros em exportadores de teorias a serem
aplicadas e reafirmadas.” (PEREIRA, 2015, p. 412)
46

Miskolci, outro autor que também aparece de forma recorrente durante esse trabalho,
conheceu Judith Butler e relata seu primeiro contato com a autora como uma paixão
inevitável e hiperbólica, como qualquer paixão. Diz ter adorado, odiado, devorado e
vomitado. Não foi pouco comum durante as leituras de estudos queer encontrar uma
descrição afetiva dos encontros das autoras/es com os principais escritos desse
pensamento que chegaram ao Brasil. A pesquisadora também narra o momento em que
o pensamento queer passa a povoar o cenário acadêmico brasileiro e as diversas
questões que surgem a partir dele. Um dos exemplos seria a dificuldade de traduzir
Butler, a dureza e o desafio presentes em sua literatura que apresentam aos cientistas
sociais a necessidade de sanar lacunas advindas da falta de leitura de autores como
Lacan e Freud e também a inevitabilidade de rever outros como Lévi-Strauss e
Foucault. A autora argumenta ter sido através dessa literatura que todo um “corpo
conceitual” passa a marcar presença nos textos e eventos, partindo inclusive de
pesquisadoras/es que pareciam ainda ter uma certa desconfiança em relação à teoria.
“Termos como ‘heteronormatividade’, ‘performatividade’, ‘heterossexualidade
compulsória’, ‘intelegibilidade de gênero e ‘abjeção’ ocupavam a partir dos primeiros
anos do novo século, fóruns políticos, arenas acadêmicas, páginas de comportados
periódicos científicos.” (PELÚCIO, 2014b, p. 28-29).
No Brasil, a chegada e tomada de espaço dessa teoria acontece nos anos finais
do século XX e no início do século XXI, então é importante salientar de que forma isso
a diferencia do modo como se desenvolveu nos Estados Unidos. Inicio lembrando que
“a teoria queer surgiu como argumento político e contestatório ao movimento
assimilacionista de gays e lésbicas norte-americano, mas, sobretudo de gays, aos
impactos da aids” (PELÚCIO, 2014b, p.27-28). Em seguida, destaco o seguinte
cenário: por aqui após o surgimento com maior intensidade da epidemia de aids na
década de 1980, o movimento homossexual ganhou força e muitos ativistas migraram
para organizações não governamentais (ONGs) que existiam em função dessa luta e
que recebiam fomentos de organismos internacionais através do Programa Nacional de
DST/aids.
No início do século XXI, essa forma de organização sofre grandes alterações
provocadas por múltiplos fatores. Dou ênfase ao final da fase de luta mais dura contra
a aids, o esgotamento dos recursos financeiros para as ONGs que existiam com esse
fim, a tentativa de articulação política com outros movimentos sociais e outras questões
trazidas pela dinâmica social e política do país que alteraram um pouco o objeto de
47

mobilização dos ativistas, passando a serem pautadas demandas relativas a direitos


sexuais, o que aos poucos fortaleceu o que viria a ser chamado de movimento LGBT,
mas também o movimento de mulheres e o movimento negro. Muitas bandeiras dessa
luta foram encampadas pelo Estado através das criação de secretarias e programas de
governo ligados aos direitos humanos, com objetivos de combate a homofobia,
promoção da igualdade racial e da igualdade de direitos para as mulheres (PELÚCIO,
2014b).
Nos primeiro espaços dedicados a discussão da teoria queer no âmbito da
universidade brasileira houve situações de embate entre movimentos sociais e
estudiosas e estudiosos que a ela se dedicavam. De início pareciam estar uns contra
as/os outro. Larissa Pelúcio (2014b, p. 33) aponta para a possibilidade desse conflito
ter se dado pois estava posta uma teoria que “desafiava os limites normativos das
identidades que haviam servido até então, como mote para a demanda de direitos” afinal
complementa ela, “o queer, como pensamento crítico, se propõe justamente a desafiar
as identidades, não por niilismo, e sim a fim de promover uma profunda revisão teórica
e política.” (PELÚCIO, 2014b, p. 33). Essa postura foi interpretada por alguns como se
estivessem “colocando em xeque lugares duramente conquistados por algumas/alguns
ativistas. E assim os postos políticos a partir do qual obtiveram respeitabilidade.”
(PELÚCIO, 2014b, p. 33). No entanto a proposta não seria de forma alguma
desqualificar esses lugares, mas sim se utilizar da teoria como “ferramenta de combate”
(PELÚCIO, 2014b, p. 33), forma sempre em construção de análise e intervenção.
Berenice Bento também desenvolve hipóteses quanto a esse formato acadêmico
que a teoria tomou aqui no Brasil. A pesquisadora conta que, nos Estados Unidos, os
grupos de pesquisa passaram a se assumir queer, a usar esse termo para se auto definir
e questiona a possível razão para o pensamento queer ter chegado por aqui pela
universidade e não ter saído dela. Ela diz achar que isso se deu pelo fato de as dinâmicas
dos movimentos sociais e a sua relação com o Estado aqui serem completamente
diferentes das estadunidenses. Segundo Berenice, aqui no Brasil o Estado “é um ator
central na estruturação das agendas políticas do movimento social. Não limitando esta
relação a um governo específico. Historicamente, a luta pela ampliação dos direitos
humanos e cidadania tem passado pelo Estado.” (BENTO, 2015, p. 148)
Realizam-se também nesse campo considerações acerca da tradução do termo
queer e essa é um discussão que nos auxilia no processo de compreensão do caminho
que os estudos queer tomam quando chegam ao Brasil. Inicio com um indagação
48

apresentada por Berenice Bento. A autora argumenta que, ao contrário do que acontece
quando usado nos Estados Unidos,
No Brasil se você fala que é queer, a grande maioria nem sabe do que
se trata. ‘Queer’, teórica queer, não me provoca conforto. Não tem
nenhum sentido para nós. No contexto norte-americano, o objetivo
foi dar um truque na injúria, transformando a palavra queer (bicha)
em algo positivo, em um lugar de identificações. Qual a potência do
queer na sociedade brasileira? Nenhuma. Se eu falo transviado,
viado, sapatão, traveco, bicha, boiola, eu consigo fazer com que meu
discurso tenha algum nível de inteligibilidade local. O próprio nome
do campo já introduz algo de um pensamento colonizado que não me
agrada de jeito nenhum. (BENTO, 2015, p. 147)

O uso de seu nome em inglês tem significados, representa, como disse Bento,
um pensamento colonizado. Isso poderia, por exemplo, explicar a distância desse
pensamento, da luta dos movimentos sociais que discutem questões ligadas às
sexualidades, sua possível permanência entre os muros das universidades e a
indiferença frente a ela. A autora diz fazer uso do termo “estudos/ativismos
transviados”, que ela define como “tradução cultural idiossincrática para teoria queer”,
para tentar das resposta à essa questão apresentada por ela (BENTO, 2015, p. 147). Há
autoras/es que argumentam que para que um nome possa representar aos ouvidos
brasileiros algo parecido com o que ocorre nos Estados Unidos seria necessário usar
uma palavra que pudesse soar aos ouvidos brasileiros como acontece com o queer na
língua inglesa . O uso de um termo dessa natureza foi feito no sentido de demonstrar
potência, adotar “a ofensa, a identidade atribuída e nunca reivindicada, como seu lugar
politico” (PELÚCIO, 2016, p. 126).
Pelúcio (2014a, p. s/n) defende o uso do nome “teoria cu” e em primeiro lugar
adverte: “não se deve falar de cu em contexto acadêmico”. Como argumentos para essa
escolha, a autora fala sobre os significados da palavra para nós brasileiros: “por sua
associação com dejetos, aqui, como em outros lugares, ele está associado a palavrões,
a ofensas, ao que é sujo, [...] no imaginário sexual local, o sexo anal está estreitamente
associado à homossexualidade masculina” (PELÚCIO, 2014a, p. s/n). Assim como o
queer para os norte americanos, cu, para nós, poderia fazer com que a teoria, já em seu
nome, demonstrasse seu potencial e sua proposta de “ação/reflexão” e nos aproximaria
da proposição de utilizar um “termo desqualificador para politizá-lo” (PELÚCIO,
2014a, p. s/n). Além disso, ainda poderia cumprir o importante papel de “reivindicar
uma indagação crítica sobre a própria posição da teoria, sobre seu caráter pretensamente
imaculado, como se alertasse contra aspirações por uma Teoria universal (eurocêntrica,
49

branca, hétero) que tudo abarcaria.” (PEREIRA, 2015, p. 413). Uma outra consideração
importante: o Brasil ao medir distância dos outros países que fazem parte daqueles que
detêm a produção hegemônica do conhecimento, como os Estados Unidos, por
exemplo, ou os países da Europa central é o “cu do mundo” usando uma expressão da
língua popular usada nas ruas. Ou seja: é muito distante. É a partir dessa afirmação de
Pelúcio que inicio um último ponto recorrente e importante para o desenvolvimento dos
estudos queer no Brasil.
A teoria queer carrega consigo uma posição de enfrentamento, mas quando
chega até nós aparentemente nos preocupamos mais em absorver e tentar aplicar tudo
que já havia sido produzido pelos principais autores/as reconhecidos nesse campo do
que tencionar. Hoje é perceptível, em todas as leituras de autoras/es brasileiros que fiz,
que se reconhece a necessidade de pensar o queer por aqui sob uma olhar decolonial.
Na perspectiva de Larissa Pelúcio (2014a) “se nutrir” das impressionantes
contribuições que fizeram as pensadoras e pensadores do chamado norte, é pensar junto
a elas, mas é também nos localizar diante delas. Afinal “nós guardamos marcas
históricas e culturais dos discursos que nos constituíram como periféricos. Isso, claro,
marca também nossos textos e reflexões.” (PELÚCIO, 2014a, p. s/n). Por isso entendo
como fundamental pautar o cruzamento da teoria queer com o pensamento decolonial,
mas sua complexidade poderia ser material para uma outra pesquisa, e meu objetivo
aqui é apresentar o cenário no qual eu conheci essa teoria, o brasileiro, portanto serei
breve e indicarei em alguns autores onde é possível um aprofundamento acerca dessas
questões. Pereira é um desses autores, ele nos diz que:
Em viagens múltiplas, em movimentos intensos de teorias e
pessoas, o queer encontra o pensamento decolonial, uma
perspectiva crítica da “colonialidade do poder” – esta, uma estrutura
conceitual, política, ética e de gestão das esferas do social que se
forjou na Europa nos primeiros séculos de colonização. Na busca
de se contrapor às lógicas da colonialidade, apresentando outras
experiências políticas, culturais, econômicas e de produção do
conhecimento, o pensamento decolonial vem alertando sobre certo
direcionamento nas viagens das teorias e sobre uma geopolítica que
transforma uns em fornecedores de experiências e outros em
exportadores de teorias a serem aplicadas e reafirmadas.
(PEREIRA, 2015, p. 412)

Encontramos ressonância do que diz Pedro Paulo Gomes Pereira também nos
escritos de Bento (2014; 2015), Pelúcio (2012; 2014a; 2014b; 2016), Miskolci (2014;
2016) e Louro (2001; 2016). Destaco algumas das falas dessas/es autoras/es para
pontuar de que se trata essa necessidade de localizar o queer abaixo da linha do equador.
50

Pelúcio (2014a, p. s/n), por exemplo, tece um comparativo entre nossas drags queens,
ou nossos homossexuais, ou o nosso armário e aqueles representados nas principais
obras queer norte americanas e reforça o fato de que nossas inúmeras “produções têm
mostrado a potencia das produções locais, na sua intensidade antropofágica.”. A autora
também critica o aparente desconhecimento por parte de autoras como Judith Butler ou
Beatriz Preciado (a quem ela se refere como Queen of queer) do que se produz por aqui
e lembra através de Foucault que saber e poder estão irremediavelmente tramados.
Berenice Bento (2015) apresenta uma crítica direta a Preciado e Foucault. Nos
dois casos quanto a falta de posicionamento diante de políticas do Estado francês, cuja
organização “está vinculada à sua política externa, ou seja, o colonialismo” (BENTO,
2015, p. 150). Pontua o fato de Foucault ter mantido silêncio diante do massacre que o
estado francês implementou na Argélia, mesmo escrevendo em um momento de crise
do projeto de colonização francês na África, em meio à luta por independência desse
país. E, no caso de Preciado, por nunca ter se posicionado quanto à situação das
mulheres trans imigrantes que trabalham se prostituindo no Bois de Boulogne27, por
exemplo. Isso faz com que autora se pergunte quem seriam as pessoas com quem
Preciado fala quando conclama todos a se unirem na luta contra os binarismos.
Sendo assim, acredito na potência de junto a essas pesquisadoras e
pesquisadores, que são somente um pequeno recorte de toda a produção queer no Brasil
hoje, se apropriar do corpo teórico produzido nos campos hegemônicos de produção de
conhecimento e ressignificá-lo de forma a fazer valer uma proposta teórica de combate
frente à construção normativa de nossos corpos e sexualidades. Afinal, como disse
Pereira (2015, p. 418), considerando que “os corpos queer são constituídos na diferença
colonial”, não é possível “separar corpos abjetos, sexualidades dissidentes de
localização geográfica, língua, história e cultura. A teoria queer é também uma política
de localização – queer e pensamento decolonial são teorias corporificadas.”.

2.2 Por uma educação queer. Propostas e pensamentos sobre teoria e a escola.

No livro de Miskolci “Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças” (2016)


ele apresenta um anexo escrito por Giancarlo Cornejo, sociólogo peruano, cujo título
é: “A guerra declarada conta o menino afeminado”. Nesse anexo, encontramos a


27 Bosque localizado no 16º arrondissement da cidade de Paris.
51

história desse autor no encontro da sua sexualidade com a escola. Ao final da leitura,
eu estava em choque. Reconhecia em cada passagem histórias vividas a todo momento
dentro das escolas onde trabalho e trabalhei. Percebo a urgência de aprofundar a
compreensão das questões de gênero e sexualidade e mais, brigar para que sejam pauta
constante dentro da escola. Desse modo apresento aqui as propostas de alguns autores.
Segundo Miskolci (2016, p. 37), os estudos queer surgem no Brasil com
expressiva representatividade do campo da educação na década de 1990, especialmente
através de Guacira Lopes Louro, que havia tido contato com essa vertente quando de
sua estada na Universidade da Califórnia, “local de batismo dessa linha de reflexão”.
Ora, se considerarmos a educação como forma poderosa de “normalização coletiva”,
como propõe Foucault (2007 apud MISKOLCI, 2016, p. 40), a proposta de pensar uma
“pedagogia queer” como propõe Louro (2016) ou de “estranhar a educação” nos termos
de Miskolci (2016) faz todo sentido, se compreendemos a teoria queer como
antinormalizadora. A autora afirma que a teoria queer sugere novas formas de pensar a
cultura, o conhecimento, o poder e a educação e reitera que “pensar queer significa,
questionar, problematizar, contestar todas as formas bem-comportadas de
conhecimento e de identidade” (LOURO, 2016, p. 49). Problematizando o fato de a
teoria queer ser uma teoria não propositiva e o campo da educação “viver de projetos,
programas, objetivos, intenções e planos de ação”. Louro (2016, p. 48) alega que uma
“pedagogia e currículo queer estariam voltados para o processo de produção das
diferenças”.
Entendendo a sexualidade e sua tendência a ser vista por nós como de caráter
íntimo, nossa parte mais reservada e por vezes até secreta do eu, não é surpreendente
que nela a sociedade tenha encontrado um meio de normalizar as pessoas. Desse modo
Miskolci (2016, p. 42-43) argumenta que “a abjeção acaba sendo maior via sexualidade
porque ali se unem esses sentimentos mais profundos, em que a pessoa mais se sente
em confronto com a ordem social”. Entende-se o abjeto “como algo pelo que alguém
sente horror ou repulsa como se fosse poluidor ou impuro, a ponto de ser o contato com
isso temido como contaminador e nauseante” (MISKOLCI, 2016, p. 43). O autor afirma
ser a abjeção o princípio da violência dos xingamentos ou da injúria, por exemplo,
presença constante na realidade da escola. Nesse ato de violência “não se está apenas
dando um ‘nome’ para esse outro, está julgando essa pessoa e a classificando como
objeto de nojo” (MISKOLCI, 2016, p. 43). A escola acaba sendo marcada por atos de
violência, dentre eles a própria socialização. Socializar-se “costuma ser um processo
52

marcado por formas muito violentas de recusa, em si mesmo, do que a sociedade quer
evitar como ‘contaminante’, seja uma identidade de gênero diferente das mais
conhecidas ou formas de desejo fora do modelo em voga” (MISKOLCI, 2016, p. 43).
Pensar a educação em uma perspectiva queer pode evitar ou, pelo menos,
contribuir para que todos, independente de suas decisões sobre as suas relações
amorosas e sexuais, “não adotem irrefletidamente preconceitos por meio da adesão a
modelos comportamentais.” (MISKOLCI, 2016, p. 46). O fato de que, infelizmente,
quase toda a educação e produção de conhecimento ainda seja feita em uma perspectiva
heterossexista (ou seja a partir da pressuposição de que todos são, ou deveriam ser,
heterossexuais) permite e até estimula a produção da abjeção. O empenho em lançar
um olhar a partir das diferenças na educação nos propõe a tentativa de perceber os
modelos, os padrões, as normas e convenções culturais que acabam se impondo de
forma indireta por meio do material didático por exemplo, de discussões correntes na
mídia, ou até mesmo das discussões de docentes dentro da escola. Desse modo, é
importante nesse movimento de um olhar queer sobre a educação, ter em mente que
geralmente “quando algo se apresenta como neutro, como ‘científico’, deve-se
desconfiar de que foi feito em uma perspectiva masculina, branca, ocidental, cristã e
heterossexual” (MISKOLCI, 2016, p. 47).
Destaco ainda a abordagem de Miskolci (2016, p. 48-49) quanto à importante
distinção entre diferença e diversidade. Ele aponta que o termo diversidade surge da
“preocupação com conflitos étnicos-raciais, e mesmo culturais, na Europa e na América
do Norte, entre as décadas de 1980 e 1990.” Dentro desse contexto, surge uma demanda
por reflexões políticas e acadêmicas que sejam apaziguadoras e conciliatórias. “A
noção de diversidade busca compreender as demandas por respeito, por acesso a
direitos por parte de pessoas que historicamente não tiveram esses direitos
reconhecidos” (MISKOLCI, 2016, p. 49), no entanto essa demanda acaba por incitar
“que esses direitos particulares sejam reconhecidos dentro de um contexto institucional
universalista” (MISKOLCI, 2016, p. 49),, justamente por seu caráter conciliatório e
apaziguador. Enquanto as demandas sociais são de reconhecimento da diferença, o
filtro político as representa na forma da tolerância à diversidade. Mas “tolerar é muito
diferente de reconhecer o Outro, de valorizá-lo na sua especificidade, e conviver com
a diversidade também não quer dizer aceitá-la” (MISKOLCI, 2016, p. 49). Desse
modo “a retórica da diversidade parece buscar manter intocada a cultura dominante,
criando apenas condições de tolerância para os diferentes, os estranhos, os outros.”
53

(MISKOLCI, 2016, p. 50).


A proposta dos pós-coloniais, dos queer, dos saberes subalternos é a defesa de
uma política da diferença, o reconhecimento de quem é diferente para transformar a
cultura hegemônica. Segundo Miskolci (2016, p. 51), enquanto “a diversidade trabalha
com a ideia do poder horizontal”, incentivando um multiculturalismo que
popularmente seria o equivalente ao “cada um no seu quadrado” que visa “manter as
relações de poder intocadas”. Na “perspectiva da diferença, reside a proposta de mudar
as relações de poder” (MISKOLCI, 2016, p. 51). Distinguir entre diferença e
diversidade ajuda a tornar mais inteligível a proposta queer. Por isso, é fundamental
compreender que:

A diversidade serve como uma concepção horizontal de relações


sociais que tem como objetivo evitar a divergência e, sobretudo, o
conflito. Por sua vez, lidar com as diferenças impõe encarar as
relações sociais em suas assimetrias e hierarquias, reconhecendo que
a divergência é fundamental em um contexto democrático.
Reconhecer diferenças é o primeiro passo para questionar
desigualdades, o que pode criar conflito, mas também consenso na
necessidade de mudar as relações de poder em benefício daqueles e
daquelas que foram historicamente subalternizados. (MISKOLCI,
2016, p. 52-53)

Desse modo, para tentar “estranhar o currículo” ou “queering the curriculum”,


como propões Louro (2016), a pedagogia e o currículo presentes na escola deveriam
ser, tal qual é a teoria queer, subversivos e provocadores. Seria a educação que, “ao
invés de contemplar uma sociedade plural”, se propusesse a perceber “as disputas,
negociações, conflitos constitutivos das posições que os sujeitos ocupam”. Uma
educação que questionasse inclusive o binarismo conhecimento x ignorância. Buscar a
garantia da presença de outros recortes identitários nesses processos de reflexão, pensar
raça, nacionalidade ou classe tentando “mostrar o queer naquilo que é pensado como
normal e o normal naquilo que é queer” (LOURO, 2016, p. 51).

2.3 Da musicologia feminista à musicologia queer: Um campo ainda em


construção.

Acompanhando mudanças no próprio campo da musicologia que nessa mesma


década aconteciam. Durante a década de 1970, alguns estudos sobre as mulheres no
campo da música já eram realizados (MCCLARY, 1993), não eram muitos e não
54

ganharam muito destaque. É de fato na década de 1990 que a categoria gênero começa
a ter as primeiras consequências visíveis no âmbito da Musicologia histórica
(CASCUDO; AGUILAR-RANCEL, 2013). Essas mudanças que apontavam para o que
seria a Nova Musicologia eram fruto de uma reflexão que indicava, como assinala
Kerman (1987, p.10), que quase todos os pensadores musicais estavam “muito aquém
das ‘locomotivas’ mais recentes da vida intelectual em geral.” Segundo ele, somente
alguns dos mais ousados estudos musicais daquele momento recorriam à semiótica,
hermenêutica e fenomenologia. O autor também apontou para o fato de que o pós-
estruturalismo, a desconstrução e o feminismo sério ainda não haviam estreado na
musicologia ou na teoria musical. Dando destaque a maneira como o autor se refere aos
estudos feministas (indicando haver algum feminismo que não seja sério) é possível
notar que haveria um desafio pela frente.
Em princípio, foram feitos estudos que tratavam da presença feminina, ou a falta
dela, na história das tradições musicais euro-centradas. Autoras como Susan McClary
com “Feminine endings: Music, Gender and Sexuality” (1991), Marcia Citron com
“Gender and the Musical Canon” (1993) e Ruth Soli e a edição de “Musicology and
difference” (1993) se destacaram. Mesmo dando continuidade a essa tendência de
buscar as mulheres na história, que já vinha se construindo duas décadas antes, essas
obras “marcaram a introdução - sobretudo impulsionada pela musicologia feminista -
de novos enfoques fundamentados [...] na categoria de gênero” 28 (CASCUDO;
AGUILAR-RANCEL, 2013, p.38, tradução nossa).
Susan McClary (1993, p. 399, tradução nossa) aponta para o fato de que “antes
de 1970 muito pouco era conhecido ou, pelo menos, lembrado sobre as mulheres na
29
história da música.” Considerando que “as mulheres haviam desaparecido;
praticamente não restavam vestígios em programas de concerto, em livros de
bibliotecas, ou em livros que músicos (mais que profissionais da maioria dos outros
campos ) absorviam como evangelho”30 (MCCLARY, 1993, p. 399, tradução nossa),
era necessário se dedicar de modo a sanar essa lacuna. A autora também relembra que
durante seus estudos de pós-graduação na Universidade de Harvard lhe disseram que
“se tivesse havido compositoras mulheres, as pessoas teriam sido informadas sobre


28
“Com todo, también marcaron la introduccíon – impulsada sobre todo por la musicologia feminista –
de nuevos enfoques fundamentados [...] em la categoria de género”
29
“Prior to 1970 very little was known-or, at least, remembered-about women in music history.”
30
“Woman had vanished; virtually no traces remained on concert programs, on library shelves, or in
the textbooks that musicians (more than practitioners in most other fields) absorb as gospel.”
55

elas”31 (MCCLARY, 1993, p. 399, tradução nossa). A não existência das mulheres na
história da música ocidental que contavam os autores marcavam a invisibilização da
figura feminina nas formulações universalizantes presentes no discurso acadêmico
sobre música.
Entendendo que as “questões de gênero que estão na base de um paradigma
narrativo poderoso, em cujo âmago está o ponto de vista masculino” (MELLO, 2007,
p.s/n), McClary (2002, p. 09, tradução nossa) também se dedicou a analisar os “aspectos
generificados da teoria tradicional da música”32, além do “gênero e da sexualidade na
narrativa musical” 33 (MCCLARY, 2002, p. 12) e a “música como um discurso de
gênero”34 (MCCLARY, 2002, p. 17). A autora lança um olhar sobre de que forma os
códigos da música tradicional reproduzem a oposição binária masculino/feminino
como forte/fraco, reproduzindo a lógica da dominação. Essa relação se dá através por
exemplo na denominação de certas convenções como: quando os tempos fortes de um
determinado trecho musical são considerados “masculinos”, enquanto que os fracos,
“femininos”; a estruturação da forma sonata-allegro onde o tema de abertura deve ter
um “caráter masculino”, enérgico, determinado, heroico, enquanto que o tema
subsidiário é “feminino”, flexível, considerado o “outro”; bem como as terminações
que serão “masculinas” quando acontecem no tempo forte e “femininas” quando no
tempo fraco. “O feminino nunca recebe a última palavra neste contexto: no mundo da
narrativa tradicional, não há terminações femininas.” 35 (MCCLARY, 2002, p. 16,
tradução nossa)
Ainda que a perspectiva de uma recriação da história da música ocidental que
trate de “desinvisibilizar” as mulheres tenha até os dias atuais uma considerável parcela
de representatividade dentro das pesquisas em gênero na musicologia, na própria
década de 1990, novos caminhos surgiriam a partir de novas teorizações de gênero que
surgiam não só dos estudos feministas, mas também dos estudos gays e lésbicos, dentre
elas a teoria queer. A própria McClary passa a realizar análises também da música
popular a luz da seguinte perspectiva:
Nós tendemos a assumir que, embora a música popular seja, sem
dúvida, uma mercadoria, não é apenas isso, mas também é um meio


31
“[…] if there had been women composers, we most assuredly would have been told about them […]”
32
“Gendered aspects of tradicional music theory”
33
“Gender and sexuality in musical narrative”
34
“Music as a gendered discourse”
35
“The feminine never gets the last word within this context: in the world of traditional narrative, there
are no feminine endings.”
56

público que ajuda a moldar nossas noções de nós mesmo,


sentimentos, sexo, desejo, prazer, corpo e muito mais. Assim, em vez
de concentrarmo-nos exclusivamente nas dimensões exploradoras da
indústria, discutimos o que está sendo articulado através dos aspectos
performativos e musicais da indústria.36 (MCCLARY, 1993, p. 404,
tradução nossa)

Segundo Cascudo e Aguilar-Rancel (2013) outro marco trata da incorporação


do corpo no âmbito desses estudos para abordar épocas, gêneros e autores habituais na
musicologia histórica. A autora Suzanne Cusik foi uma autora representativa nesse
campo, ainda que seu ponto de partida não tenha sido muito diferente do que estava
sendo feito até então. Cusik (1994 apud CASCUDO; AGUILAR-RANCEL, 2013, p.
42, tradução nossa) defende que a teoria musical feminista devia teorizar “As práticas
de performance dos corpos, os corpos mais propensos a promulgar metáforas de gênero
ou a promulgar a constituição do próprio gênero.”37
Além disso, destaco também que a partir de estudos que traziam uma
38
“articulação da categoria de gênero com práticas ou orientações sexuais”
(CASCUDO; AGUILAR-RANCEL, 2013, p. 40, tradução nossa), uma musicologia
gay e lésbica passa a ser delineada. Em 1994 com o lançamento de “Queering the
pitch”, a primeira coleção de ensaios gays e lésbicos sobre o repertório histórico, de
Philip Brett, Elizabeth Wood e Gary C Thomas. A linha de trabalhos que se desenvolve
a partir dessa coleção acaba sendo também considerada como uma musicologia queer.
No entanto, houve reação por parte da musicologia tradicionalista diante desses
estudos 39 . Dizia-se que “só pretendiam tirar compositores do armário e estabelecer
relações simplistas desse fato com suas obras”40 (CASCUDO; AGUILAR-RANCEL,
2013, p. 40, tradução nossa). A resposta dada pelos autores da coleção era que
“reconheciam o direito à militância civil de gays e lésbicas em qualquer campo, mas
declaravam que o ‘descobrir’ as preferências sexuais não era o assunto da edição e que


36
“We tend to assume although popular music is unquestionably a commodity, it isn't just a
commodity but is also a public medium that helps shape our notions of self, feelings, gender, desire,
pleasure, the body, and much more. Thus, instead of focusing exclusively on the exploitative
dimensions of the industry, we also discuss what is being articulated through the performative and
musical aspects of the enterprise.”
37
“the pratices of performing bodies, the bodies most likely to enact metaphors of gender or to enact the
constitution of gender itself”
38
“[...] la articulación de la categoria de género com prácticas u orientaciones sexuales.”
39
Parte desse embate do pensamento tradicionalista com essa nova corrente de pensamento é bem
representada em Brett e Wood (2013) quando contam os processos de negociação para a publicação do
verbete “Gay and Lesbian Music” no dicionário Groove.
40
“[...] sólo pretender sacar compositores del armário y de estabelecer relaciones simplistas de este
hecho com sus obras [...]”
57

a ênfase nas políticas de identidade não era um objetivo prioritário”41 (CASCUDO;


AGUILAR-RANCEL, 2013, p. 40, tradução nossa). Entendendo que: “o ensaio crítico
ou acadêmico sempre se relaciona com a identidade e suas políticas subsequentes
incluindo quando estas não se declaram, ao menos, eram honestos em sua abordagem
a partir de um posicionamento explicitamente gay.” 42 (CASCUDO; AGUILAR-
RANCEL, 2013, p. 41, tradução nossa), Essa resposta traz para a discussão outra
concepção que estava sendo pautada na musicologia:
A suposta neutralidade das abordagens musicológicas tradicionais
partiam muito preferentemente de uma não posicionada neutralidade,
de um apoio implícito de uma agenda conservadora e essencialista,
onde o “normal” era entendido aqui como o heterossexismo
normatizado, “elevado a uma categoria universal e natural” 43 .
(CASCUDO; AGUILAR-RANCEL, 2013, p. 41, tradução nossa)

De certo modo, a partir das abordagens apresentadas anteriormente, talvez com


exceção da última, “não se revisaram nem os paradigmas nem a epistemologia, mas se
seguiu e se imitou os modelos existentes para o estudo do que pouco a pouco foi se
chamando ‘história das mulheres’, em grande medida viva até hoje”44 (PALACIOS,
2013, p. 59, tradução nossa). Considero ainda, que ao tomar a mulher como uma
categoria universal e ter em grande parte suas bases vinculadas ao binarismo
masculino/feminino, esses estudos se alinham com a definição hegemônica do gênero
e, inclusive, da categoria “mulher”. Dessa forma não se abre espaço para os discursos
não-hegemônicos próprios aos grupos subalternos. Palacios (2013) propõe que através
de um diálogo com outros feminismos como, como os “feminismos negros” ou a
problematização das sexualidades não normativas sob uma perspectiva analítica queer,
possa ser possível construir novas vias para seguir na história da música.
O diálogo da teoria queer com a musicologia já acontece a partir de estudos que
buscavam romper com a narrativa hegemônica acerca da sexualidade. No entanto,


41
“Reconocían el derecho a la militância civil de gays y lesbianas em cualquier campo, pero
declaraban que el ‘destape’ de preferências sexuales no era el asunto de la edición y que el énfasis en
las políticas de identidade no era um objetivo prioritário”
42
“[...] partiendo de que el ensayo crítico o académico siempre se relaciona com la identidade y sus
políticas subsiguientes incluso cuando éstas no se declaran, al menos, eran honestos em su
acercamiento desde um posicionamento explicitamente gay.”
43
“La supuesta neytralidad de los acercamientos musicológicos tradicionales partían muy
preferentemente de una no posicionada neutralidade, implícito soporte de uma agenda essencialista y
conservadora, donde lo ‘normal’ era entendido aqui como normativizado heterosexismo, elevado a uma
‘categoria universal y natural’.”
44
“No se revisaron ni los paradigmas ni la epstemología, sino que se siguió e imitó los modelos
existentes para el estúdio de la que poco a poco fue llamándose ‘historia de las mujeres’, em gran
medida viva todavia hoy”
58

algumas problemáticas foram percebidas. Em primeiro lugar, uma imensa dificuldade


de aceitação pelo fato da teoria queer ser considerada por muitos como “ativismo, luta,
guerrilha” e por isso não aplicável ao mundo acadêmico. E depois do uso da teoria
como suporte para os estudos em musicologia, a “ideia de queer era associada quase
que exclusivamente a interpretação, composição ou recepção da música por parte do
coletivo homossexual, o que de alguma forma reduziu as possibilidades do próprio
conceito”45 (PALACIOS, 2013, p. 67, tradução nossa). Em termos de mudanças em
aspectos como a metodologia, a autora acredita que nem a musicologia feminista, nem
os estudos queer em musicologia foram capazes de trazer significativas inovações. No
entanto, ela acredita que a maior renovação se deu na nossa “escolha dos objetos de
pesquisa, naquilo que priorizamos, nas perspectivas com que vamos às fontes, ou
aqueles elementos que levamos em conta na hora de objetivar nosso discurso” 46
(PALACIOS, 2013, p. 65, tradução nossa).

2.3.1 E no Brasil? Sobre a presença dos estudos em gênero e música no cenário


da musicologia brasileira.

Durante todo o curso de mestrado tive a oportunidade de ler, nas bibliografias


das disciplinas oferecidas pela universidade, somente uma autora mulher. Oportunidade
essa, conquistada após muitos embates sobre o assunto, que acabaram culminando na
alteração da bibliografia inicialmente proposta para o curso de modo que o texto em
questão fosse discutido. Em um ano de estudo geral da musicologia, o tema
“musicologia feminista” surgiu por alto em alguns momentos e as pautas colocadas por
mim constantemente sobre a necessidade de incluir em nossos estudos os recortes de
gênero, raça, e classe eram, em geral, vistos com maus olhos e eu tida como aquela
aluna inconveniente e demasiadamente questionadora. Em alguns momentos, chegando
a ser inclusive motivo de piadas, quando colegas diziam: “espera a Bárbara ir ao
banheiro”, para poder reproduzir comentários que reforçavam a misoginia ainda muito
marcada dentro do ambiente acadêmico no campo da música. No geral estávamos, nós


45
“la idea de queer suele ir associada casi em exclusiva a la interpretacíon, composicíon o recepción de
la música por parte del colectivo homossexual, lo que de alguna forma reduce las possibilidades del
próprio concepto.”
46
“[...] elección de los objetos de estúdio, em aquello que priorizamos, em las perspectivas com las que
miramos las fuentes, o em aquellos elementos que tenemos em cuenta a la hora de objetivar nuestro
discurso.”
59

mulheres, sempre em presença absolutamente minoritária, assim como os negros, sendo


ainda muito mais improvável esbarrar em uma mulher negra nas cadeiras do programa.
Era sempre perceptível: o que pautava a maior parte das escolhas teórico-
conceituais dos cursos era a produção hegemônica do conhecimento. Logo, a leitura de
homens, brancos, europeus ou norte-americanos estava dentro do esperado. Mas eu me
questionava com frequência: será que a produção dos conhecimentos por grupos
subalternizados é tão incipiente e por isso não é pautada nesses espaços? Ou será que
mesmo sendo produzida de forma significativa, ainda assim fica de fora das escolas
conceituais do programa? Caso de fato a produção fosse pouco significativa, o que aliás
não se confirma, o que causava isso? E de que forma poderíamos reverter essa questão?
Somente durante os momentos em que pude me dedicar a uma maior imersão
dentro dessa pesquisa, é que outras possibilidades me foram postas. Em grande parte,
através indicações do meu orientador, Samuel Araújo, mas principalmente através de
uma busca solitária de trabalhos já realizados em gênero e música mundo a fora e
também no Brasil. Não foi uma tarefa fácil, mesmo com a velocidade que a internet nos
oferece hoje, esbarrei na questão da língua, da indisponibilidade de muitas referências
importantes para download, da impossibilidade de adquirir livros, em especial no que
diz respeito à bibliografia internacional. Foi fundamental nesse desenvolvimento a
coletânea organizada por Isabel Porto Nogueira e Susan Campos Fonseca intitulada
“Estudos de gênero, corpo e música: abordagens metodológicas” que foi lançada na
Série de Pesquisa em Música no Brasil da Associação Nacional de Pesquisa e Pós
Graduação em Música, a ANPPOM.
A autora Laila Rosa foi sem dúvida uma das autoras mais apontadas como
representante dos estudos de gênero no campo da música e em especial, da
etnomusicologia. Em sua tese de doutorado, sobre música e performances de entidades
espirituais femininas no culto da jurema em Olinda, PE, Rosa já aponta a defesa do
desenvolvimento de uma etnomusicologia feminista e indica que:
Na etnomusicologia brasileira hoje já se discute os estudos de gênero
com mais naturalidade e respeito. Contudo, o panorama de estudos
de gênero na etnomusicologia no Brasil ainda é restrito. O foco maior
ainda é a questão racial e políticas públicas, muitas vezes sem
considerar as especificidades de gênero, como a questão das
representações, da sexualidade, e da violência que se configuram de
forma específica para mulheres e homens a depender de diversos
outros fatores (e suas relações) como raça/etnia, sexualidade, geração
e classe. (ROSA, 2009, p. 48)
60

Essa mesma autora hoje faz parte de um coletivo chamado “Feminaria Musical: grupo
de pesquisa e experimentos sonoros” que reúne pesquisadoras/es na Universidade
Federal da Bahia. Um dos projetos realizados pelo grupo trata das epistemologias
feministas e da produção de conhecimento recente sobre mulheres e música no Brasil.
Já tendo publicações nesse sentido elas/es apresentam um mapeamento dessas
produções aqui no Brasil, o que foi muito importante para me ajudar a compreender
algumas das questões que coloco logo no início dessa seção.
O mapeamento realizado pelo grupo Feminaria Musical diz considerar como
produção sobre mulheres e música:
desde as possíveis relações entre os feminismos e música e suas
articulações e interseccionalidades com as questões étnico-raciais,
das sexualidades sob as lentes dos estudos queer e da produção
feminista lésbica pós-colonial latino americana, a abordagens sobre
representações de feminino na música, e também trabalhos
biográficos sobre mulheres e musicistas: sobre compositoras e suas
obras instrumentistas, educadoras musicais e suas obras. (ROSA; et
al, 2013, p. 111)

Elas/es apontam como objetivo desse trabalho de mapeamento, “fomentar uma reflexão
a partir das lentes feministas, pós-coloniais, antirracistas e anti-
lesbo/homo/transfóbicas” (ROSA; et al, 2013 p. 111). Como forma de buscar esse
objetivo acreditam na busca pelo “rompimento de determinadas zonas de silenciamento
que se configuram numa violência epistêmica eurocentrada” (SPIVAK, 2010 apud
ROSA; et al, 2013, p. 111).
A perspectiva de desenvolver estudos que rompam com essa “zona de
silenciamento” já indica por exemplo a necessidade de rever o próprio feminismo a ser
usado como referência, considerando que o feminismo hegemônico foi construído
baseado majoritariamente em referências também hegemônicas. Isso acabou por
excluir outras falas, a das mulheres negras, por exemplo, quando da afirmação de uma
categoria “mulher” na qual eram representadas as mulheres brancas de classe média.
Rosa (et al, 2013) aponta autoras que podem servir como suporte para esse novo olhar
necessário. E também defende a necessidade de que, a partir dessa pluralidade
epistemológica, sejam traçados novos caminhos analíticos na música, “que dêem conta
desta pluralidade, não legitimando um cânone feminista hegemônico, mas
considerando o que já está consolidado e ampliando os horizontes epistemológicos para
nossa realidade periférica do sul” (ROSA; et al, 2013, p. 113). Desse modo, concordo
com as/os autoras/es do grupo Feminaria Musical ao acreditar que a construção de
61

epistemologias feministas não se restringe ao recorte temático apenas, ou seja, falar


sobre mulheres. “Mas sobretudo, se traduz na forma como produzimos conhecimento
sobre mulheres, sobre cultura, política e, finalmente, sobre música” (ROSA, et al, 2013,
p. 113).
Esse mapeamento indica os principais estudos que tornaram-se referência pelo
esforço em buscar “caminhos analíticos e discursivos alternativos feministas e queer”
(ROSA et al, 2013, p. 114) no campo da musicologia. No caso do Brasil, apresenta
referências como Rita Laura Segato, a “primeira pesquisadora a desenvolver trabalho
sobre gênero e música no Brasil, no início dos anos 1980” (ROSA et al, 2013, p. 114),
e sua abordagem pioneira por “considerar as relações de gênero, sexualidade e música,
mas também a invisibilidade lésbica no contexto de terreiro de tradição iorubá
pernambucana”. Maria Ignez Cruz Mello, cuja tese de doutorado apresentada em 2005,
trata das “relações de gênero entre os Wauja, especificamente, sobre o Iamurikumã,
cerimônia realizada exclusivamente por mulheres Wauja” (ROSA et al, 2013, p. 115).
Destacam também o trabalho de Helena Lopes Silva em educação musical que trata de
identidades de gênero e preferências musicais no campo escolar.
Inicialmente, apresentei algumas questões que surgiram ao longo da minha
trajetória no curso de mestrado, a presença quase inexistente desses estudos do campo
da musicologia feminista e os outros que se relacionam com ela aqui apresentados, me
fazia supor que eram realmente poucos. E de fato são. No levantamento realizado pelo
Feminaria Musical entre as dissertações e teses do Banco Digital de Teses e
Dissertações (BDTD) realizadas entre 2007 e 2011 no país, foram feitas buscas em 8
das maiores universidade públicas brasileiras (UFBA, UFPE, UFPB, UFMG, UFRJ,
UNESP, UNICAMP e USP). Foram encontrados somente 20 trabalhos que de fato se
aproximavam daquilo que o grupo considera como produção sobre mulheres e música,
o que é um número muito pequeno perto dos 8.420 trabalhos que inicialmente
apareceram quando usadas as palavras-chave: “música, gêneros musicais, popular,
samba, performance, feminino, mulheres, compositora, musicista, instrumentista”,
juntas e também separadamente (ROSA; et al, 2013, p. 115). As outras buscas
realizadas entre periódicos, anais de encontros nacionais e regionais na área da música
e também de estudos feministas, no portal CAPES e no SCIELO47, a representatividade


47
Portal que abriga uma coleção de artigos e periódicos brasileiros. Acessível em:
<httpp://www.scielo.com.br>
62

desses estudos segue um padrão parecido ao encontrado do BDTD, talvez


demonstrando ainda menor presença.
Somando um total de 46 publicações encontradas, as/os autoras/es identificaram
4 diferentes áreas de enfoque:
“(1) Corpo e performance; (2) Mulheres e relações de gênero -
relações de poder, discursos feministas e/ou as construções de
gênero; (3) Composição e mulheres - compositoras e/ou as suas
composições; e (4) Educação musical e mulheres - transmissão e
aprendizagem musicais e mulheres” (ROSA; et al, 2013, p. 115)

Desses trabalhos, 54% é realizado no campo da Etnomusicologia, enquanto


24% vem da Educação musical e 22% da Composição/Musicologia. Rosa (et al, 2013,
p. 130) vêem essa diferença como consequência da relação mais estabelecida que a
etnomusicologia tem com os “discursos e trabalhos das ciências sociais”, campo que já
tem, desde a década de 1970, uma tradição consolidada que “atende a questões de
gênero, de classe e raça/etnia” (ROSA et al, 2013, p. 131).
Compreender os obstáculos que ainda fazem a mulher e ainda mais a mulher
negra não fazer parte da construção de conhecimento que se dá na academia pode nos
ajudar a buscar caminhos para garantir essa presença. No entanto, considero que
reavaliar as metodologias e teorias que ainda são bases da maior parte da pesquisa em
música, é absolutamente necessário para garantir que seja possível realizar trabalhos
que, como disse Rosa (et al, 2013), dêem conta dessa pluralidade que buscamos. Posso
afirmar que não tenho, nem seria possível que tivesse, conhecimento de toda a produção
usada no campo da música, mas uso como base a minha experiência durante os 4 anos
que passei na graduação e os 2 anos na pós-graduação. Defendo também, que haja
representatividade não somente através da presença de pessoas que não correspondam
à norma que até então ainda vigora, ou seja pessoas que sejam “queer”, mas também
por via de um esforço em buscar conhecimento metodológico e epistemológico
voltados à essas pessoas, junto a elas, mas principalmente por elas. Esse certamente é
um grande desafio, o qual eu não tenho pretensão de solucionar sozinha, nem acredito
em uma única “fórmula mágica” capaz de fazê-lo. No entanto, também não assumo o
tamanho do desafio como forma de me eximir da responsabilidade de, como mulher,
professora, suburbana, militante e parte desses espaços, mirar possibilidades de
construir uma outra realidade.
63

CAPÍTULO 3: ETNOGRAFIA DOS DEBATES

Reconhecendo a vivência no campo como parte fundamental para a realização


do trabalho em etnomusicologia, e em especial, para a pesquisa-ação participativa,
inicio esse capítulo onde me proponho a, de certo modo, abrir as portas das salas de
aula. Esse espaço, para mim muito íntimo e particular, é onde potencialmente
desenvolvemos as nossas reflexões coletivas e também nossas relações de afeto, sendo
portanto um grande desafio dividi-lo com alguém que leia e não faça parte dele. Nas
próximas páginas relatarei os diálogos que nós (eu e as/os cerca de 90 estudantes meus
companheiras/os dentro desse espaço) travamos sobre gênero e música. Sejam bem-
vindas/os.

3.1 O parto das ideias.

Ao início de cada ano letivo escolho um tema norteador, aquele que será
motivador das discussões, auxiliará na escolha de repertório e através dos quais
faremos/pensaremos a música. Em 2016, optei em propor que o tema fossem as
questões de gênero. Essa escolha feita por mim ainda durante as férias, foi discutida
com as alunas/os das três turmas envolvidas na primeira aula do ano, o planejamento
do trabalho só foi iniciado após haver concordância dos grupos.
Durante o primeiro bimestre realizamos, em diferentes aulas de cada uma das 3
turmas nas quais eu atuava, algumas discussões sobre questões trazidas pelas/os
estudantes. Definições de conceitos que têm estado mais presentes no nosso cotidiano,
sobre os quais nos interessávamos. Reflexões sobre situações que fazem parte da vida,
feminismo, machismo e relacionamentos abusivos foram alguns dos temas abordados.
Utilizamos vídeos, debates e também realizamos um processo de composição coletiva,
quando tentamos falar um pouco sobre o que havíamos discutido em forma de canção.
As discussões de gênero chegaram à minha vida de diversas maneiras, como
relatado em outro momento desse texto, e então tornaram-se o pilar dessa investigação.
Como já dito durante a apresentação dos procedimentos da pesquisa, foi necessário
direcionar os debates no sentido de abordar os subtemas que dentro das questões de
gênero eu de fato gostaria que fossem o objeto da reflexão. Por essa razão, o ciclo de
debates presentes nessa etnografia foi pensado e planejado por mim.
64

O tempo passava e era cada vez mais urgente a necessidade de que esse ciclo
acontecesse o mais rápido possível. Em função dos prazos de realização da pesquisa,
que se aproximavam, me detive a planejá-los. Foi quando, no final de maio um
acontecimento veio à tona: um estupro, supostamente praticado por mais de trinta
homens, foi filmado e circulara nas redes sociais. A jovem vítima do crime, de apenas
dezesseis anos, virara o principal tema dos noticiários, a principal discussão nos fóruns
populares da cidade, mesas de bar, festas de família, grupos de WhatsApp:48 não se
falava em outra coisa. Entre julgamentos e defesas, o país, em especial a cidade do Rio
de Janeiro, mostrava um dos aspectos mais cruéis de uma sociedade machista: a cultura
do estupro.49 Eu, particularmente, não tinha dúvida alguma da dimensão e da crueldade
do crime cometido. No entanto, aquilo que a mim parecia óbvio era questionado de
forma sistemática por uma enorme parcela da população, inclusive nos grupos de
educadoras/es nas redes sociais das quais faço parte. Enquanto assistíamos a jovem
vítima de um estupro documentado através de um vídeo que circulou pela rede tendo
sua vida devastada, os juízes da sociedade patriarcal prontamente já se sentiam tendo
investigado e publicamente davam seu veredicto. Como já era de se esperar: a moça era
a culpada. Não havia escapatória: mais que fundamental, seria irresponsável não
discutir o ocorrido em sala de aula.
Passei, então, a buscar em diferentes tipos de mídia informações sobre esse
crime: minha intenção não era coletar dados sobre o ocorrido, mas sim observar a
repercussão entre as pessoas, opiniões, discursos, falas. Em pouco tempo de buscas,
algo me saltou aos olhos: em muitos espaços de discussão o fato da vítima ser uma
frequentadora de bailes funk e de aparentemente os suspeitos pelo crime terem feito
referência a um funk quando gravaram o vídeo que serviu como prova do crime se
tornou caminho para que a cultura do estupro ficasse clara através da culpabilização da
vítima. Nesse caso, a música era usada como justificativa para tal, isso tudo me
mostrava qual seria o ponto de partida da discussão na sala de aula.
Elaborei uma série de quatro aulas/debates que seriam realizadas com as três
turmas que fazem parte dessa pesquisa. No primeiro encontro, usaríamos um material
preparado por uma colega professora com um panorama geral sobre a cultura do

48 Aplicativo de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smartphones.
49 Trata-se de um conceito sem definição específica ou origem definida, mas que faz parte do
vocabulário do movimento feminista desde a década de 1970. O filme documentário “Rape Culture”
de Margaret Lazarus feito em 1975, tem o crédito pela primeira definição do conceito. (WILLIAMS,
2007, p. s/n)
65

estupro. Seria uma forma de abordar o fato ocorrido na semana anterior com base em
dados e apontamentos documentados para dessa forma, seguirmos em um debate onde
as diferentes posições fossem ouvidas e também houvesse reflexão sobre a situação
apresentada. No segundo encontro, eu mesma produzi um material: nessa ocasião o
tema central era pensar na música como discurso e refletir sobre os possíveis
estereótipos que cada gênero musical carrega junto a si. Para o terceiro encontro
selecionei onze diferentes letras de música, oriundas de diversos gêneros musicais, com
uma característica em comum: todas elas representavam no seu conteúdo algum tipo de
violência contra a mulher. A proposta era que as/os estudantes se dividissem em onze
pequenos grupos, duplas e trios que analisariam as letras das canções e identificariam
as opressões ali contidas para, posteriormente, escrever sobre isso, da forma como
preferissem e, ao final, apresentariam as discussões internas dos grupos para que a
turma toda conhecesse o conteúdo das letras e as reflexões feitas em torno dele. Por
fim, no último encontro, o material utilizado foram três vídeos que falavam sobre
identidade de gênero e serviram de ponto de partida para a pergunta final de todo o
ciclo: a música tem relação com os processos de construção de identidade de gênero?
Apresento a seguir a etnografia desses debates, onde será possível encontrar detalhes
sobre o material utilizado, os porquês dessas escolhas, e as discussões, reações,
questões surgidas desses momentos, ou seja: vozes e diálogos da escola.

3.2 Precisamos falar sobre a cultura do estupro. O primeiro debate.

Como já dito durante a introdução do capítulo, o início da elaboração desse ciclo


de debates surgiu a partir de um acontecimento triste que, estampado nos principais
veículos de mídia, atravessaria, sem dúvida, os espaços da escola. Esse primeiro
momento de discussão, com isso, tem a particularidade de ter sido proposto em função
da necessidade urgente de examinar o cotidiano em sala de aula.
Para esse encontro eu utilizei um material preparado por uma colega
professora,50 também pesquisadora na área de gênero. Tratava-se de uma série de slides
que apresentavam o conceito da cultura do estupro e apontavam sua presença na nossa
sociedade não somente através de dados que comprovavam a ocorrência muito


50 Professora Fernanda Moura, pesquisadora na área ensino de história a quem agradeço imensamente
a dedicação em ter disponibilizado um material tão completo para ser utilizado em sala de aula.
66

constante de crimes dessa natureza em diversos países do mundo, mas também através
de atitudes que não são consideradas criminosas, mas incentivam e tentam legitimar
essa cultura, como campanhas publicitárias, abordagens jornalísticas e falas que
repetimos e ouvimos no dia a dia. Nenhuma parte da apresentação usada durante a aula
citava diretamente o crime ocorrido dias antes na Praça Seca51, mas eu já imaginava
que essa associação aconteceria, trazendo à tona essa discussão.
A primeira turma onde os debates aconteciam era a turma de 9º ano, com 34
estudantes. Meus encontros com elas/es acontecem às quintas-feiras nos 2 últimos
tempos do turno da tarde e possuem duração de 2 tempos de aula, o que totaliza 1 hora
e 40 minutos. No entanto, por se tratar dos últimos tempos do dia (os dois após o
recreio), sempre levamos cerca de 15 a 20 minutos para começar de fato: é o tempo
necessário para que todos subam para a sala, entrem, e nos organizemos. As nossas
aulas acontecem geralmente ou nas próprias salas das turmas, ou na sala de música e
teatro da escola. As salas das turmas em geral são mantidas na tradicional organização
em fileiras, já na sala de música e teatro não existem mesas, apenas cadeiras dispostas
em círculo e alguns colchonetes. Na maioria das aulas dou preferência para o uso da
sala ambiente da disciplina, mas como ela não possui um aparelho projetor fixo como
a maioria das outras salas, vez ou outra, ao não conseguir utilizar um outro aparelho
que a escola mantém “solto”, acabo ficando nas próprias salas. Contudo, noto
considerável diferença na quantidade de estudantes que participam das aulas
dependendo da arrumação do espaço, sendo a disposição em círculo a que propicia
maior interação.
Nesse dia, 2 de junho, começamos a aula com um bate papo, e assim que disse
que o tema do encontro tinha relação com alguns acontecimentos da semana anterior,
várias/os alunas/os já se manifestaram falando coisas como: “ah! Os trinta e três”, “vai
falar sobre estupro?”, “da novinha da praça seca?”. Mas a minha fala inicial era no
sentido de saber se todas/os se sentiam confortáveis que discutíssemos essa questão,
deixando claro que meu objetivo não era abordar o caso do estupro coletivo em si, mas
que se fosse do desejo do coletivo isso também poderia acontecer. Fiz um pedido para
que, em primeiro lugar, estivéssemos dispostos a nos ouvir e pensar de fato sobre as
questões colocadas, que evitássemos dar risada sabendo que trataríamos de um assunto
sério e que isso fosse uma regra principalmente em relação à fala de colegas, para que


51
Bairro localizado na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro.
67

dessa forma todas/os se sentissem à vontade para se colocar da maneira como achassem
válido e usando o vocabulário que acreditassem ser necessário. Isso serviria, inclusive,
para que eu pudesse me sentir livre para compartilhar meus pensamentos, após aparente
concordância seguimos adiante.
O título da apresentação era: “ Precisamos falar sobre a cultura do estupro”,
contendo cinquenta e oito slides que se dividiam entre explicação do conceito,
exposição de material gráfico de campanhas publicitárias que contribuem para que ele
exista, exposição de imagens que relatem situações cotidianas onde essa cultura
também se faz presente, dados sobre os crimes de estupro praticados no Brasil e no
mundo, dados sobre outros tipos de violência contra a mulher, informações
quantitativas sobre diferenças na criação entre meninos e meninas, recortes de jornais
e revistas onde pessoas públicas incentivaram de alguma forma a prática do crime de
estupro. O conteúdo era direcionado à compreensão do que é a cultura do estupro, de
que formas ela é naturalizada na nossa sociedade e a gravidade dessa naturalização.
Durante a maior parte do tempo eu li os slides, os textos, as imagens e tabelas:
praticamente uma aula em modelo expositivo. Apesar do meu desconforto com esse
tipo de proposta pedagógica, a ideia era que as colocações fossem feitas ao final da
apresentação, o que não aconteceu. Afinal, a cada novo tema que aparecia, sempre
havia algo a ser dito e a minha conduta era não reprimir nenhuma fala ou manifestação.
Sendo assim durante toda a leitura e fala nossas ideias e questões foram se cruzando e
assim se constituiu o diálogo. Trago então a descrição que Uribe faz da sua proposta
dialógica, “que teria relação direta com o método decisório e organizativo dos próprios
índios com quem trabalhou - direto e auto gerido - tornando-se assim mais interessante
realizar o trabalho de campo desta maneira também” (URIBE, 2002 apud
MENDONÇA, 2016, p. 720). E concluo que a percepção do modo de organização do
próprio grupo foi fundamental no planejamento das atividades que viriam depois e
também da abordagem nas turmas que eu encontraria no dia seguinte, a forma como a
gestão do coletivo já se dava, deveria ser meu ponto de partida.
Nos primeiros minutos, enquanto eu apresentava o conceito, as pouquíssimas
vozes ouvidas eram rapidamente silenciadas por alguém que em segundos soltava o
famoso: “shiiiiiiiuuu” e assim seguimos até a apresentação das primeiras imagens.
Essas mostravam campanhas publicitárias onde a mulher, de várias formas estava
sempre sofrendo algum tipo de violência, é nesse momento em que as primeiras
colocações acontecem. A primeira, feita por Luan, faz uma comparação entre as
68

propagandas mostradas e a recente campanha publicitária de uma grande marca de


roupas onde a divisão binária da vestimenta era questionada e homens vestiam roupas
socialmente identificadas como femininas e vice-versa. Antes mesmo que eu
respondesse, várias pessoas dizem que seu comentário “não tem nada a ver”. Digo que
o ponto de vista da campanha é interessante e que, apesar de ter sim relação com a pauta
do gênero, talvez não tenha tanta relação com essa nossa discussão. Antes de seguirmos
a aula, repito que é importante estarmos atentos as nossas reações frente às colocações
das/os colegas, pois tratá-las de forma debochada pode acabar oprimindo alguém e com
isso podemos perder preciosas colocações, importantes para a nossa reflexão.
Uma segunda fala acontece, dessa vez Ricardo pede para que eu explique uma
das imagens, pois ele e os outros alunos sentados ao redor não conseguem entender que
tipo de violência contra a mulher está representada. Digo a eles qual a leitura que eu
faço da imagem, na qual vejo uma mulher que aparece caída sobre uma cerca e presa a
ela por estacas, pergunto se eles se sentem satisfeitos com a resposta e seguimos. Em
pouco tempo, esse mesmo grupo sentado no meio da sala já se manifesta de novo: vendo
uma propaganda de cerveja, lembram da campanha de uma cervejaria e aparentemente
se divertem dizendo: “Vai Verão, vem Verão!” 52 . Ainda durante a exposição de
propagandas, pela primeira vez escuto intervenções femininas quando aparecem duas
campanhas que sexualizam crianças, onde especialmente meninas aparecem em
situação mais vulnerável. Diante de um outdoor onde uma menina posava com as
pernas de fora ao lado da frase: “Use e se lambuze”, propaganda de uma marca de
roupas infantis, ouço vozes femininas que dizem: “Que absurdo!” “É uma criança!” e
essa é a postura também durante a apresentação de outra campanha publicitária nos
mesmos moldes.
As vozes dos alunos voltam a ser ouvidas no momento em que a apresentação
nos traz dados. Uma tabela dizendo que os meninos, especialmente quando têm irmãs
meninas, realizam muito menos tarefas domésticas que suas irmãs causa certa revolta
e pelo menos quatro alunos se manifestam. Eles acusam os dados de não serem
verdadeiros e dizem fazer a própria cama e lavar a louça de vez em quando. Tendo


52
Essa campanha publicitária é protagonizada por uma mulher que é chamada de Verão, e durante os
comerciais a frase “Vai Verão, vem Verão” é usada com duplo sentido, referindo-se tanto à estação
mais quente do ano, quando ao movimento de ir e vir dessa mulher cujo corpo é sempre observado por
um grupo de homens.
69

depois disso a palavra, novamente questiono cada um dos alunos que se “defendiam”
diante dos dados apresentados: nenhum deles têm irmãs.
Sigo por grande parte do tempo, sendo a voz mais ouvida dentro da sala,
especialmente quando inicio a apresentação de dados sobre o crime de estupro, o que
causa em mim, durante esse momento de análise, um grande desconforto. Coloco em
questão minha própria conduta, tenho dúvidas quanto a legitimidade da minha
abordagem, mas naquele momento em particular, esse não é um pensamento que me
vem a cabeça, a autocrítica acaba sempre sendo um movimento posterior. Nessa turma
em especial há, durante todo o tempo, pequenas conversas paralelas: em algumas
situações eu interrompo minhas falas e solicito que as questões sejam divididas no
coletivo, mas em outros momentos sigo em frente acreditando que nos diálogos entre
elas/es também há construção de conhecimento e nem sempre eu preciso ser parte desse
processo.
Durante a apresentação desses dados, as únicas reações registradas são de vozes
masculinas, que fazem algumas piadas com situações apresentadas, como com o fato
de que uma menina, mesmo dentro do seu próprio quarto lendo a bíblia, possa ser
estuprada, já que 79% dos casos com crianças e 77% dos casos com adolescentes
acontecem dentro das próprias residências. Durante a apresentação da tabela e da
situação fictícia em questão ouço Natan dizer: “Mas aí foi Jesus que estuprou ela”.
Rodrigo responde com uma brincadeira que eles costumam fazer entre si e diz: “Pense
numa coisa dessas”. Todos os alunos sentados juntos, eram sete, soltam gargalhadas.
Não fiz nenhum tipo de intervenção imediata, apesar de provavelmente ter expressado
através do meu rosto minha preocupação e desconforto com as risadas e brincadeiras
sobre o tema.
Surge então uma matéria da revista “Super Interessante” onde situações
vivenciadas pelas mulheres são apresentadas de forma invertida, como se fossem
homens os protagonistas. Quando surge a frase: “você acha que um homem sem camisa
está pedindo para ser estuprado?”, que faz referência aos julgamentos direcionados a
forma de se vestir das mulheres, Luana diz: “claro que não! Por que isso? Não entendi”.
Explico como entendo a perspectiva apresentada pela revista e travamos um curto
diálogo sobre isso, ela diz: “é, as mulheres vão sempre estar sendo mais julgadas por
tudo que os homens, isso é um absurdo, ninguém merece ser estuprado”.
Destaco agora uma outra situação que me saltou aos olhos quando falávamos
em quantidade de estupros registrados no país: 1 a cada 11 minutos (BUENO, 2015,
70

p.116). Ricardo fala, “isso deve ser mais que na África”. Eu respondo: “Sim, pode ser
que seja mais que em algum país africano, lembrando que a África é um continente,
com países muito diferentes entre si, culturalmente, politicamente”. Então, quando
abrimos a tabela com um ranking, realizado pela Organização das Nações Unidas
(ONU), dos países onde acontecem mais estupros no mundo, somos surpreendidos pelo
primeiro lugar ocupado pela Suécia, mas não houve nenhuma colocação que iniciasse
uma análise qualitativa dos dados apresentados. Muitos se manifestam, não é nem
possível saber quem fala o que, são muitas vozes, todas masculinas ainda, mas a maioria
delas apresenta certo espanto principalmente pelo fato de os Estados Unidos
registrarem mais estupros que o Brasil: percebo que muitos deles têm esse país como
referência de um lugar onde as condutas “corretas” são a regra.
Quando começo a apresentar tipos de violência contra a mulher, ainda que eu
estivesse explicando ponto a ponto, antes mesmo que eu chegasse a esse, Carlos me
pergunta o que é feminicídio. Defino como crime de ódio contra mulheres, ou
assassinato de mulheres somente pelo fato de serem mulheres, mas pergunto se ele já
tinha ouvido essa palavra antes, ele me diz que sim, já havia lido algumas vezes na
internet. Mais uma vez muitas vozes são ouvidas quando surge a figura do Deputado
Federal Jair Bolsonaro, em uma reportagem do jornal Extra (PINTO; LUCCIOLA,
2014), que noticia o acontecimento onde ele se dirige à Deputada Maria do Rosário
dizendo que “só não a estupra, porque ela não merece”. “Que idiota”, diz Luana, “mas
ele falou isso na frente de todo mundo?” me pergunta Luan, respondo que sim, em uma
seção da câmara dos deputados, “mas ele só fala merda né, professora!?” finaliza
Sérgio.
Encerrei a apresentação dos slides destacando a importância de conversarmos
sempre sobre esses assuntos e dizendo aos alunos que é fundamental que eles escutem
as alunas, afinal, ainda que eles sejam solidários, são dores e situações que só nós
mulheres sabemos e sentimos realmente. Para que o debate tomasse forma e eu pudesse
ouvi-las/os mais, contei algumas situações pelas quais eu mesma passei. Desde assédio
no ambiente de trabalho, na rua e até mesmo de situações que eu acreditava serem
normais, mas hoje depois de fazer essas reflexões eu percebia terem sido abusivas. É a
partir das minhas experiências que mais questões começam a aparecer. Paulo me
pergunta o porquê de eu não denunciar a pessoa que me assedia no ambiente de
trabalho. Respondo dizendo que tenho muito desejo, mas que o receio de criar um
ambiente hostil acaba sendo mais forte que o constrangimento e que eu sempre tenho a
71

esperança de que com o tempo essas situações vão mudar. Guilherme responde a uma
fala minha em que eu havia dito que acredito que é importante repensar todo o tipo de
associação do sexo com violência, pois considero que tudo isso pode ser parte da cultura
do estupro. Ele diz que: “as mulheres gostam de sexo violento e que se é gostoso qual
é o problema?”. Eu dialogo dizendo que a minha reflexão é justamente porque e quando
passamos a achar a violência e a dor algo prazeroso, não consigo dar uma resposta, é
uma questão sobre a qual ainda reflito e gostaria que fosse uma reflexão coletiva.
Eles conversam entre si, decido não interferir e sigo atenta, de modo geral as
vozes masculinas se fazem ouvir, falando mais alto, falam sobre sexo, preferências,
dificuldades das mulheres em chegar ao orgasmo, falam sobre depilação feminina,
surgem outros assuntos também, como racismo, padrão de beleza e homofobia.
Enquanto isso, Maria me chama no seu lugar: ela queria me contar uma situação que
tinha acontecido com ela em um ônibus, quando um homem insistia em “sarrar”53 nela.
Perguntou-me como ela poderia reagir sem que corresse riscos também de ser agredida
por ele. Perguntei se poderia dividir com a turma a questão. Tendo sua permissão, me
coloquei contando o ocorrido e contei também que isso já aconteceu comigo diversas
vezes, mas somente em uma eu tive coragem de reagir. Disse a ela que eu não tinha
como dizer o que ela deveria fazer, que eu gostaria de poder falar que sempre devemos
denunciar o agressor, mas que eu, como mulher, sei bem que nem sempre isso é possível
e seguro. Por isso, acho que cada situação deve ser avaliada de modo a preservarmos
nossa integridade em primeiro lugar, mas tentando lutar contra esse tipo de violência
sempre.
O tempo da aula vai chegando ao fim, encerro o debate e digo que na próxima
aula discutiremos as relações entre a música e essas questões, peço para que eles
pesquisem músicas que possam nos ajudar a pensar isso, mas me comprometo também
a levar um material de apoio nesse sentido.
No dia seguinte, dia 3 de junho o meu encontro seria com as minhas duas turmas
de 8º ano. Com a primeira turma, a 1804, as aulas acontecem nos 2 primeiros tempos
do turno da tarde, às sextas feiras. Eu acompanho essa turma desde o sexto ano: trata-
se de um grupo com oficialmente trinta alunos. No entanto, acredito que pelo fato de
os nossos encontros serem somente às sextas-feiras, muitas vezes a frequência na minha


53
Esfregar os órgãos genitais no corpo de outra pessoa.
72

aula é baixa, havendo estudantes que durante todo o bimestre não têm uma presença
sequer nas minhas aulas.
O projetor da sala dessa turma não funciona, e impossibilitados de usar o
aparelho móvel da escola, a atividade aconteceu na sala de outra turma. Essa sala abriga
uma “turma de projeto” 54 é organizada em formato de semicírculo, dispensando as
tradicionais fileiras. Ao mudarmos de sala, os primeiros comentários das/os alunas/os
são todos sobre a estrutura da sala, os móveis novos, o ar condicionado funcionando, a
cortina na janela que os permite ver a projeção no quadro mais claramente. Acomodam-
se à vontade: como de costume não faço nenhuma interferência na escolha dos lugares.
Como disse anteriormente, essa forma de organização da sala me agrada mais que as
fileiras, pois é mais fácil nos ouvirmos além de ser possível sempre olharmos uns aos
outros a todo momento. Desse modo, me sinto mais segura também em identificar com
intenção de registro posterior, as falas de cada aluna/o.
Ao contrário do que geralmente acontece na 1902, nessa turma é fácil que eu
fique falando durante todo o tempo da aula praticamente sozinha. É necessário que eu
sempre as/os estimule a se colocar. Caso eu não permaneça atenta nesse sentido,
qualquer proposta de debate pode se transformar em uma experiência monológica.
Sabendo disso, antes mesmo de eu iniciar a atividade já me ponho em estado de alerta.
Inicio com o mesmo bate papo do dia anterior, peço que todas/os fiquem à vontade para
se colocar, que não se sintam envergonhadas/os em falar sobre si, contar experiências,
trocar informações ou tirar dúvidas. Pergunto se alguém se sente desconfortável em
falar sobre o assunto e não havendo qualquer contrariedade sigo também dizendo que
gostaria eu mesma, de me sentir a vontade, inclusive em relação ao uso do vocabulário.
Começo então a apresentação dos slides.
Durante grande parte da leitura do material pouquíssimas vozes são ouvidas,
qualquer pessoa que tente começar a falar é imediatamente interrompida por:
“shiiiiuuu” e nesse ritmo o primeiro momento em que alguém se coloca é quando, já
falando sobre campanhas publicitárias, aparece uma imagem de propaganda de cerveja.
Ouço várias/os alunas/os falarem: “Itaipava” e se referem a mesma marca e campanha
que a turma do dia anterior já havia se referido. Quando começamos a ver as imagens
das marcas de roupas infantis, o grupo de meninos sentados à esquerda da sala dá risada,


54
Projeto aceleração 2 que recebe alunos com defasagem de idade para o sexto ano, esse projeto conta
com somente um professor regente que utiliza um material pronto para ministrar aulas de todas as
disciplinas do currículo (RIO DE JANEIRO, 2011, p.17)
73

Mariana se coloca: “que absurdo! A menina tá de saia curtinha, é muito pequena, como
assim use e se lambuze?”, Juliana também fala: “vocês tão rindo porque não é com
vocês”. Passando para as próximas imagens, uma marca de camisetas pertencente ao
apresentador Luciano Huck vende camisetas para meninas onde a estampa diz: “Vem
ni mim que eu to facinha” e para meninos dizendo: “Se eu não lembro, eu não fiz”.
Gabriel me pergunta sobre a camisa feminina: “O que está escrito ali?” quando eu
respondo os alunos dão risada novamente, Mariana chama a atenção deles: “para de rir,
isso não tem graça, que babaca! Ele também fez uma blusa escrito somos todos macacos
lembra? Por causa do racismo com o jogador de futebol”, finaliza ela lembrando de
uma outra polêmica campanha dessa mesma marca de camisetas.
Seguimos e, de modo geral, noto uma grande diferença entre essa turma e a
turma do dia anterior. Hoje todos se escutam mais, é difícil haver vozes que se cruzam
se não em diálogo. Ao apresentar um caso público sobre um ex-participante do reality
show “Big Brother Brasil” que foi preso por praticar estupro contra vulnerável, Juliana,
antes mesmo da leitura, diz quais eram as acusações e mostra já ter conhecimento do
caso. A discussão que vem logo em seguida, assim como na aula do 9º ano, causa
reações: trata-se da comparação entre a criação de meninos e meninas. Quando faço a
leitura de um slide onde estão escritas muitas frases com frequência ouvidas pelas
meninas durante todo o processo de crescimento, como: “não confie naqueles caras”,
“não saia sozinha”, “não beba muito”, “não use roupa muito curta”, “não sorria” e
outras, antes mesmo que eu finalizasse, Marcos fala: “ou seja, não viva”. Ao verem o
quadro estatístico sobre a realização das tarefas domésticas, novamente eles iniciam
sua defesa. Ouço vozes masculinas, várias que dizem: “eu lavo a louça”, “eu arrumo
minha cama” ou então “pra que arrumar a cama? Vai dormir de novo, minha mãe
arruma porque quer, eu não ligo”. Pergunto então a esses alunos que se manifestaram
quantos deles possuem irmãs e todas as respostas são negativas.
O próximo trecho da aula chega à discussão das estatísticas sobre o crime de
estupro e durante a maior parte do tempo não há nenhuma intervenção. A primeira
manifestação se dá quando digo que também existem notificações de crimes sexuais
praticados por mulheres contra homens, mas que eles são cerca de 1,8% dos casos e
onde geralmente as vítimas são crianças, todos dão risada. Fico tentando compreender
qual pode ter sido a razão para essa reação, tenho dúvidas. Gabriel se manifesta
dizendo: “acontece sim, por exemplo uma professora pode abusar de um aluno de, sei
lá, 13 anos, mas acontece muito menos né!?”, continuam as risadas.
74

O riso acaba sendo a reação à maior parte das informações fornecidas, e merece
destaque, pois gera conflitos entre alunas e alunos, as estudantes que se colocam mais,
Juliana, Mariana e Alice reclamam dessa postura. Quando leio uma informação de que
42,7% dos brasileiros concorda que uma mulher que usa roupa curta merece ser
estuprada e ela é recebida pelos alunos dessa forma, essa tensão parece ficar ainda mais
aparente. Eles são interrompidos por gritos das estudantes que dizem “tá maluco!?”, “é
por que não é com vocês”, “professora, olha isso!”, “qual é a graça?”, a forma agressiva
usada por elas para reagir me faz pensar em quão agredidas elas se sentem diante dessa
postura.
Quando falamos sobre as definições dos crimes sexuais de acordo com o código
penal, percebo o desejo ou necessidade de expor situações que exemplifiquem aqueles
crimes. Já no primeiro, assédio sexual, cujo texto presente no slide diz caracterizar-se
por constrangimentos e ameaças com a finalidade de obter favores sexuais feita por
alguém de posição superior à vítima, Gabriel cita a possibilidade de isso acontecer
quando por exemplo, um professor oferece vantagens de notas e aprovação em troca de
favores sexuais de uma aluna. Seguimos falando sobre importunação ofensiva ao pudor,
o conhecido assédio verbal, quando alguém diz coisas desagradáveis e/ou invasivas (as
famosas “cantadas”) ou faz ameaças. Mariana fala que isso acontece todo dia e relata
que tem se chateado com os motoristas de taxi que ficam em um ponto localizado no
caminho entre a favela onde grande parte dos alunos mora e a escola. Ela conta que
tanto na ida quanto na volta da escola eles sempre “falam gracinhas” para ela e também
para outras alunas da escola, mesmo ela já tendo reagido algumas vezes, o assédio
continua sendo constante.
Apresento então a definição de ato obsceno, que é quando alguém pratica uma
ação de cunho sexual (como por exemplo, exibir seus genitais) em local público, a fim
de constranger ou ameaçar alguém. Nesse momento, dou como exemplo duas situações
vividas por mim, uma quando eu tinha a idade delas/es e ainda era estudante e estava
indo para a escola em um ônibus e outra quando já era aluna da universidade e estava
no ponto de ônibus esperando o transporte para ir para uma aula. Mais uma vez os
alunos reagem com risadas quando eu conto as histórias, Mariana demonstra chateação
e diz: “poxa eu não entendo porque eles continuam rindo, isso é porque não acontece
com eles, só pode ser. É muito ruim ouvir eles rindo sobre essas coisas”. Digo que acho
que eles deveriam ouvir com mais cuidado os pedidos nesse sentido, realmente a risada
é incômoda. Penso se eles podem se sentir diante dos exemplos de violência contra a
75

mulher, como disse Bergson (1983), em seus estudos sobre o riso, afastados, assistindo
à vida como espectadores neutros. O autor afirma que através desse olhar “muitos
dramas se converterão em comédia”. Esse seria, sem dúvida, um objeto para uma outra
pesquisa, tamanha a sua complexidade. Já durante a apresentação da definição do crime
de estupro ninguém cita exemplos, mas Marcos diz: “professora, se você der essa aula
pra todas as turmas todas as meninas vão parar de ser amigas dos homens, vão ficar
com raiva da gente”, respondo que a minha intenção não é essa, mas, sim, que os
homens possam repensar suas atitudes pra gente mudar essa realidade.
O próximo diálogo acontece quando levanto a discussão sobre consentimento.
Ao apresentar um esquema que diz quando ou não uma pessoa tem permissão de tocar
o corpo da outra, falo que é comum um “não” de uma mulher ser desrespeitado e que
isso é mais comum ainda nos ambientes noturnos, baladas, bailes. Pergunto às alunas
quantas vezes elas já disseram que não queriam e foram beijadas mesmo assim. Marcos
complementa dizendo que “nem precisamos ir tão longe, e que dentro da própria escola
isso acontece”. Mariana reforça: “várias vezes a gente diz não e eles entendem como
sim”, Luiz responde dizendo: “claro vocês adoram fazer cu doce,55 como a gente vai
saber se é não de verdade?”, o debate não se encerra aí. Juliana intervém falando que
“esse lance de cu doce só existe porque as meninas são obrigadas a dizer não, porque
se você deixar o cara saber que você está afim dele ele já não vai mais querer”. Outras
afirmam em coro: “é tem que fazer a difícil”, “tem que se valorizar”. Fico observando
e, durante alguns segundos, avaliando qual seria a melhor forma de participar dessa
conversa. Questões que avalio como fundamentais estavam ali colocadas, acabo tendo
tanto medo de interferir de alguma forma que possa tolher o processo de reflexão que
elas/eles realizavam ali que acabo perdendo o tempo certo de me colocar e me chateio,
depois de terminada a aula, por ter perdido essa oportunidade.
Passo a apresentar as tabelas que quantificam as ocorrências do crime de estupro
no país, mas é quando vemos a tabela que estabelece um ranking entre os países do
mundo definindo quais são aqueles onde o crime acontece mais que surge uma nova
discussão. Ao notarem que o país que mais registra esse tipo de crime é a Suécia e que
comparativamente apresenta quase o dobro das ocorrências do país em segundo lugar
que é a Jamaica, elas/eles demonstram um certo choque verbalizado através da fala do


55
Essa expressão é usada na linguagem coloquial para descrever uma pessoa que finge não querer algo
que na verdade ela quer.

76

Gabriel que diz: “caraca! Mas a Suécia é um país rico não é!? Lá as pessoas não são
mais educadas? Bizarro!”, nessa turma surge uma análise qualitativa dos dados
apresentados, elas/eles passam a tentar buscar possíveis razões para justificar aqueles
dados ali colocados. Marcos responde Gabriel dizendo: “é um país rico, mas pode até
ser por isso, pensa bem, lá a polícia deve ser melhor e aí os criminosos devem ser presos
de verdade, aqui muitas vezes a mulher denuncia e não acontece nada com o cara, aí
elas ficam com medo de denunciar porque eles podem se vingar depois né!?”, Gabriel
complementa: “é verdade e também as mulheres lá devem ganhar mais dinheiro e aí
não ficam tão dependentes dos homens”. Eu finalizo argumentando que é sempre muito
legal pensarmos dados quantitativos dessa forma, e que de fato há uma grande
possibilidade de outros países não aparecem tanto nessa tabela por conta da
subnotificação.
Durante os últimos minutos da apresentação do material falo sem nenhuma
interrupção, elas/eles seguem atentos e em silêncio. Ao final não temos mais muito
tempo e de certo modo eu já estava bem contente com as discussões que foram surgindo
durante a aula, com a intenção de “amarrar” todas elas troco com eles algumas reflexões
que venho fazendo sobre o assunto. A primeira é sobre como geralmente nessas
situações de crimes sexuais as vidas das mulheres ficam expostas e consequentemente
são postas em julgamento, e digo que em relação ao estupro coletivo ocorrido na
semana anterior esse era um dos meus maiores incômodos. Me chamava atenção
especialmente o quanto nós mulheres temos dificuldades de nos colocar como
companheiras e de que forma isso também faz parte das imposições que a sociedade
machista nos faz. Toca o sinal e antes deles retornarem para a sala da turma lembro que
na próxima aula discutiremos as relações entre a música e todas essas questões e peço
para que contribuam buscando canções que possam fazer parte dessa nossa reflexão.
Depois do recreio, nesse mesmo dia, subo para a sala da turma 1802, também
ficarei por lá durante 2 tempos de aula. Essa turma tem 29 estudantes e uma divisão
espacial mais equilibrada, a maior parte do grupo se acomoda na parte da frente da sala,
com exceção de um grupo de seis alunos que sempre fica sempre no fundo. Geralmente
ficam com fones de ouvido e mexendo nos celulares, dificilmente participam de
qualquer atividade proposta e essa têm sido a postura deles desde o sétimo ano quando
esse grupo passou a fazer parte da mesma turma, são estudantes mais velhos que a
média de idade para a série deles. Ainda que essa relação com as aulas seja uma
constante, eu sempre insisto para que participem, guardem os celulares e fones,
77

cheguem mais perto de mim e quando temos aulas na sala de música para que toquem
instrumentos. Algumas vezes eles atendem meus chamados, em outras não.
Começo, assim como nas outras turmas, falando sobre a proposta para a aula,
sobre o material que utilizaremos e também sobre a necessidade de nos respeitarmos e
ouvirmo-nos durante o debate. Logo de início, noto uma grande diferença entre essa e
as outras turmas: o nível de interferência delas/es durante a apresentação do material é
bem menor e, apesar de acontecerem, trazem mais questões e dúvidas na expectativa
de que eu as responda que pontos de vista ou questões delas/es próprias. Ao fundo há
uma conversa constante, ela é localizada no grupo de alunos que senta lá. Eles mantêm
um volume muito baixo na voz, mas a postura me incomoda, e ainda que os tenha
convidado a participar três ou quatro vezes, não obtive sucesso.
Assim como nas outras turmas, o primeiro momento em que se colocam é
quando o material questiona a representação da cultura do estupro em campanhas
publicitárias. Mais uma vez a marca de cerveja Itaipava aparece como uma referência
desse tipo de abordagem. É unânime, em todas as turmas, a campanha da cervejaria é
lembrada como exemplo dessa cultura, ou seja, ela não só reproduz a objetificação do
corpo da mulher como isso é notado e faz parte da memória dessas/es jovens. As
propagandas infantis também chamam atenção e são apresentadas sob falas do tipo:
“bizarro!”, “que absurdo”, mas não chegam a gerar um debate. Quando passamos a
tratar da infância e das diferenças na criação de meninos e meninas eles se defendem,
dizem desempenhar sim tarefas domésticas, mas mais um vez quando questionados,
aqueles que se defenderam afirmam não terem irmãs meninas, noto que esse padrão
também se repetiu nas três turmas.
Ao iniciar o trecho que mostra os dados sobre os crimes de estupro João
pergunta: “e aquela garota professora? Que mais de trinta caras...?”. Respondo que esse
é um dos motivos para estarmos discutindo esse tema e que podemos falar sobre o caso
especificamente, caso seja do interesse deles. Luiza dá continuidade ao assunto
dizendo: “falaram que foi ela que quis”, provoco rebatendo com uma pergunta, “será
que alguém quer ficar desacordada sangrando?”. Ramon pergunta: “professora, foi mais
de trinta e três?”, fazendo referência ao suposto número de agressores que haviam
realizado o estupro, informação que depois de alguns dias foi desmentida pela polícia.
Respondo que não sei e que o certo é aguardarmos as informações das investigações, o
assunto é encerrado. Lendo a tabela intitulada “o que os brasileiros pensam sobre a
violência contra a mulher” (IPEA, 2014), as meninas reagem. A primeira informação
78

diz que 42,7% da população acredita que uma mulher que usa roupas curtas merece ser
atacada. Luiza, Ana e Carolina se manifestam: “claro que não!”, “óbvio que não”, digo
que ainda que para nós pareça óbvio existe uma porcentagem muito grande de pessoas
que pensa dessa forma.
Por cerca de 15 minutos, continuo a leitura do material falando sozinha:
nenhuma colocação é feita. Somente quando chego no momento de apresentação dos
crimes de violência de acordo com o código penal é que volto a ouvir manifestações.
Assim como na turma anterior, cito exemplos pessoais para ilustrar alguns dos crimes
citados, é a partir dessa aproximação com o cotidiano que eles voltam a se colocar.
Rafaela é a primeira a nos contar uma história vivida por sua prima, ela diz que dentro
do ônibus lotado tinha um homem atrás dela e ele a estava incomodando pela
proximidade excessiva, quando ela desceu do ônibus percebeu que ele havia ejaculado
na roupa dela. Luiza grita: “que nojo!”, Ana também pede a palavra e conta que na
semana anterior ao voltar pra casa viu um “cracudo”56 se masturbando na linha do trem,
diz ainda que várias pessoas que passavam pelo local começaram a filmar com seus
celulares, mas que nem isso foi o suficiente para que ele parasse.
Lucas, um dos meninos do grupo ao fundo da sala, começa a falar: “professora,
você viu o caso daquela mulher que pediu o carro no aplicativo e quando ela entrou o
motorista mandou ela tirar a roupa?57”. Ele se refere a um caso que se tornou público
através de uma denuncia pelas redes sociais, onde a vítima contava o que havia
acontecido. Renato se manifesta em seguida e o som que ele produz não é facilmente
transcrito, seria algo como: “ããããã”, mas é fácil compreender a conotação da sua
colocação pela reação que ela causa. Enquanto os alunos dão risada, Luiza fala:
“professora, olha que absurdo, eles estão achando graça!”, Rafaela complementa: “são
muito bobos”, seguida por Carolina: “isso é porque não é com eles”. E mais uma vez o
riso é motivo de tensionamento.
Bianca se coloca pela primeira vez, dizendo: “professora, e quando a gente tá
sentada no ônibus e eles ficam em pé roçando 58 no ombro da gente?” lembro-me
imediatamente de todas as vezes que isso aconteceu comigo, e também da minha mãe
relatando que isso também aconteceu com ela quando ela era adolescente. Ana


56
Expressão usada para se referir aos usuários de crack que geralmente moram nas ruas.
57
O caso virou notícia também nos grandes veículos de comunicação como o site G1: “Após denúncia
de assédio, motorista do Uber é excluído do aplicativo” (MACHADO, 2016)
58
Essa forma de falar “roçando” refere-se ao ato de esfregar os órgãos genitais em outra pessoa. Prática
geralmente realizada por homens em relações às mulheres.
79

responde: “eu dou logo um gritão, quero ver continuar”. Carolina concorda com ela:
“tem que explanar mesmo, que abuso!”. Depois desse momento, o ambiente fica mais
agitado, o que eu vejo como uma mudança qualitativa, surge uma quantidade muito
maior de colocações, o que eu avalio como sendo a forma de participação mais
interessante para esse tipo de aula. Ainda que nem todas essas falas sejam feitas para o
coletivo, noto algumas conversas paralelas sobre o assunto discutido, compreendo que
para algumas/uns possa ser difícil falar sobre isso no coletivo. À medida que a aula se
aproxima do final elas/es evitam falar, isso é comum, e acontece geralmente pelo desejo
de ir embora logo, acredita-se que, quanto menos se fala, mais rapidamente as
atividades serão encerradas.
Encerro lamentando a falta de tempo para realizarmos um debate final sobre
assunto, mas de todo modo havíamos dialogado bastante durante a atividade. Me
disponibilizo para, sempre que necessário, conversar sobre o assunto. Finalizo
apontando para a necessidade de pensarmos sempre sobre essas questões, buscar não
só identificar as violências contra a mulher no dia a dia, mas buscar ao máximo não
reproduzir isso e lutar para que não aconteçam mais. Aponto para o tema que será
discutido na próxima aula, as relações entre a música e tudo o que já debatemos, peço
que tragam contribuições e com todas/os já prontos com as mochilas nas costas me
despeço e em cerca de um segundo já fico sozinha na sala.
Inicio a partir de então um processo de reflexão solitária sobre os três debates.
Em primeiro lugar, avalio como positivas as oportunidades de conversar com elas/es
de maneira próxima, acredito na importância da discussão e também na qualidade da
abordagem, onde busquei apresentar mais dados e empenhei-me para que as questões,
situações, percepções sobre os assuntos debatidos fossem colocados por todos que
assim desejassem. Encerro essa primeira parte do processo acreditando que, ainda que
a música não tenha sido discutida nessa aula especificamente, ela será fundamental nas
discussões que virão em seguida, espero conseguir encontrar nos próximos encontros
vestígios desse primeiro nas colocações delas/es.
Traço um comparativo entre as três turmas em primeiro lugar sobre as
implicações da organização espacial da sala no resultado obtido: percebo ter sido na
turma 1804, onde estávamos sentados em formato de semicírculo o encontro no qual
houve uma participação mais constante, haja visto que em praticamente todos os
tópicos apresentados alguém se colocou. A questão da organização do espaço na sala
de aula, que já de início inevitavelmente é fechada e cheia de paredes e barreiras, se
80

relaciona diretamente com a proposta de educação que se deseja. No meu caso, e na


tentativa de construir algo que se assemelhe a proposta de educação libertadora de
Freire (2005), apresentada por mim no primeiro capítulo, as fileiras representam a
concepção de educação bancária. Colocar uns na frente e outros atrás, principalmente
em um trabalho que exige diálogo acaba por definir quem será mais ou menos ouvido.
Cito ainda o fato de que é uma prática da escola onde trabalho “marcar os lugares” da
sala, ou seja, que as/os docentes definam onde sentará cada aluno. Eu assumo profunda
discordância com essa prática por entender que ela faz parte de uma concepção não
somente de controle absoluto dos processos da sala de aula por parte do/a professor/a,
onde inclusive os critérios para ordenação acabam por decidir quem preferencialmente
participará das atividades em sala de aula e quem será mantido “à margem”.
Em segundo lugar, o fato que mais me tocou, tanto na 1902, quanto na 1804: a
presença das vozes masculinas é maior que das femininas. Busco pensar sobre quais
seriam as razões para tal discrepância, afinal posso notar que isso não se repete na 1802.
Penso nas características individuais das alunas e alunos cujas vozes se fazem presentes
e não encontro respostas. Em todas as turmas, há estudantes mulheres com presenças
marcantes, sinto falta de suas vozes nesse encontro. Passo então a uma análise mais
quantitativa e percebo que nas 2 primeiras turmas há uma quantidade maior de homens,
enquanto que na última a quantidade de mulheres é superior, sendo a seguinte
proporção na 1902 e na 1804 60% de alunos homens, na 1802 são 40%, ou seja, o
inverso. Penso que essa possa ser um fator que influenciou diretamente essa minha
percepção, é possível que por estarem presentes em maior número as alunas da 1802 se
fortaleçam como coletivo? Sintam-se menos oprimidas pela presença masculina?
Em terceiro lugar, destaco o incomodo demonstrado pelas alunas em todas as
turmas em razão de reações dos alunos, risadas e piadas não são bem vindas e causam
revolta. Essa é uma situação comum vivenciada por nós mulheres e também por outros
grupos minoritários, onde diversas formas de agressão são cotidianamente repetidas
sob forma de “humor”, não notando o quanto isso pode ser agressivo é comum os
homens se defenderem com a frase: “era só uma brincadeira”. Percebo através das
reações que as estudantes apresentam que não são poucas as mulheres que se sentem
desconfortáveis com isso. Esse é um tema que eu acredito que pode ser de grande
relevância para as discussões aqui propostas. No entanto, como não foi um debate
realizado junto ao coletivo, apesar das constantes queixas, deixa de ter maior espaço
81

nessa pesquisa. Gostaria de poder desenvolver em oportunidade futura essa reflexão


junto às/aos estudantes. Espero ansiosa pelos próximos encontros.

3.3 Segundo debate: As “tais” histórias que a música conta.

A proposta desse debate foi pensar a música de acordo com a concepção de


música que as/os alunos tinham dividido comigo ao início do ano. Geralmente elas/es
compreendem-na como uma forma de linguagem capaz de transmitir uma mensagem,
construir ideias e outras questões relacionadas a isso. Dizem que música é uma forma
de falar sobre as coisas, transmitir sentimentos, contar histórias.
Como já contei durante a introdução desse capítulo, me chamou atenção durante
a repercussão do crime de estupro coletivo sobre a qual desenvolvi esse fio condutor, a
enorme associação do funk ao crime. Dediquei-me a pensar então quais seriam as
possíveis razões para tal. Percebia nas falas reproduzidas, que não era o fato de a vítima
ter supostamente estado em um baile funk na noite do crime que estava sendo pautado,
mas a música funk em si e o juízo de valor que é feito sobre o seu conteúdo, nas palavras
das/os alunas/os sobre as histórias que ela conta, nas minhas os discursos que elas
representam. Acredito que há uma teia complexa de questões por trás desses
posicionamentos.
Penso que começam na criminalização da pobreza e consequentemente em tudo
que diante da sociedade representa o pobre, as roupas, a música, o uso da língua, a
cultura de modo geral. Mas também acho que tem relação com a produção discursiva
da sexualidade como aponta Foucault (2003) e de que modo através dos discursos
contidos nas músicas são afirmadas as sexualidades regulares, que o são através da sua
relação com as sexualidades periféricas. As estruturas hegemônicas de produção de
conhecimento definem o que seria a prática sexual permitida, saudável e segura, e então
através de diferentes formas de proliferação desses discursos, ela se torna a “regular”,
aquilo que foge a norma é o periférico, é o “insuportável” como diz Louro (2016). A
representação que é feita do sexo no funk, com destaque aos chamados “proibidões”,59
acaba se chocando com discursos vigentes de normatização da sexualidade como um
todo e com isso é rejeitado.


59
O proibidão é uma vertente do funk carioca das favelas da cidade que trata de temas como o tráfico
de drogas ou sexo explícito e por isso não é aceito perante a lei, sendo censurado, e portanto acaba por
circular através de meios clandestinos.
82

Minha intenção no debate desse dia era conversar com as/os estudantes sobre o
eles pensam que a sociedade acredita que cada gênero musical representa. Eu quis
através dessa discussão, saber se elas/es acreditavam que as músicas podem representar
algum tipo de comportamento, conduta ou maneira de pensar, ou seja, quais discursos
poderiam ser identificados em cada tipo de música. Silva (2006), em um artigo no qual
apresenta um estudo de caso com adolescentes sobre a música, afirma encontrar a
construção da identidade de gênero no espaço escolar através das preferências musicais.
Nessas preferências, por sua vez, apresentam-se discursos generificados que
reproduzem, por exemplo, o apontamento já feito por McClary (2002) quando analisa
os códigos musicais e as associações entre aquilo que é considerado fraco às mulheres
e o que é forte aos homens.
Silva (2006) mostra a constante associação às preferencias musicais das alunas
aos gêneros cuja representação significava “sentimentalismo” ou “fraqueza”, que no
caso desse estudo, era o pagode. E por outro lado, as preferências dos alunos associadas
a gêneros como o Rap e o Rock, observando que eles afirmam suas preferencias, em
grande parte, em função da negação daquilo que é preferido pelas alunas mulheres.
Fazem isso afirmando escolheres gêneros que consideram opostos ao apresentado pelas
alunas, no sentido de negar a possível preferência pelo que é “meloso”, “sentimental”
ou “expressa muitos sentimentos”. Ela afirma que:
A existência de um discurso dos próprios alunos e da professora,
partindo de uma postura essencialista das diferenças, “naturalizou”,
de uma certa forma, a seguinte concepção: “meninas, mais
sentimentais” e “meninos, mais racionais”. O fato de as meninas
admitirem a importância dos significados musicais em suas escolhas
musicais, como determinados cantores, letras de música associadas a
momentos de suas vidas, tornava-as menos capazes de poderem
argumentar, opinar sobre música. Esse discurso generificado
referente às meninas acabou sendo aceito e incorporado pelas
mesmas, ao argumentarem dizendo que na vida delas a música não
tinha a mesma importância do que na vida dos meninos, os quais
gostavam de música para dançar, cantar, se divertir. (SILVA, 2009,
p. 85)

Essa reflexão, ainda que a meu ver esteja muito pautada na ideia de gênero
dentro do binômio masculino/feminino, traz uma importante reflexão sobre o quanto
os próprios gêneros musicais já podem carregar consigo os discursos que reafirmam e
mantêm, não só as desigualdades de gênero, mas os padrões de sexualidade.
Esse debate não aconteceu na semana seguinte ao primeiro desse ciclo, por uma
questão de dificuldade de organização. Não produzi o material a tempo na semana
83

seguinte, então começamos a ensaiar uma música que eles já haviam pedido para
aprender a tocar. Como não costumamos trabalhar uma música durante apenas uma
semana, acabamos fazendo essa interrupção de duas semanas, de modo que as
discussões relatadas a seguir aconteceram nos dias 23 e 24 de junho.
O material que eu preparei para esse diálogo nas turmas traçava a seguinte linha
de raciocínio: em primeiro lugar, retomava o conceito de música como traçado por
elas/es no início do ano (uma linguagem, forma de se expressar, de contar histórias) e
apresentava a perspectiva da música como um discurso, ou seja, caminho para dirigir a
forma como falamos e percebemos situações específicas e também com isso modo de
construção dos sujeitos.
Em segundo lugar, apresentava um questionamento em torno da relação dos
aspectos sonoros da música com essas histórias contadas. Por fim, mais questões a
serem debatidas: Será que cada gênero musical trata sempre de assuntos específicos?
Dos mesmos assuntos? Que tipo de história acreditamos que cada tipo de música conta?
Quais discursos poderiam estar representados em cada gênero musical? Nesse sentido,
será que existe homogeneidade entre os gêneros musicais? A partir dessa proposta,
buscava que elas/es trouxessem suas questões e que pudéssemos enriquecer a discussão.
O primeiro encontro foi com a 1902. Como o primeiro debate havia acontecido
há duas semanas, comecei lembrando a elas/es que essa aula fazia parte de um ciclo de
quatro encontros onde discutiríamos as relações entre a música e as questões de gênero
(que vínhamos discutindo desde o início do ano), e também que isso é a pesquisa que é
parte das exigências da minha formação na pós graduação. Essa conversa se repetiu
diversas vezes ao longo de todo o percurso. Peço também que trabalhemos com essas
discussões de modo cumulativo, onde a cada debate possamos fazer uso das
informações, reflexões e questões levantadas nos debates anteriores, dou um breve
panorama do que havíamos feito na aula do dia dois de junho para Renata e Paula, as
únicas duas alunas que não estavam presentes.
Comecei a atividade apresentando a noção de música que eu tinha registrado
como aquela que elas/es entendiam como principal, perguntei se ainda concordavam e
ao ouvir a resposta positiva segui adiante. Em seguida, apresentei a concepção de
música como discurso. A minha próxima pergunta foi: de que forma nós identificamos
essa mensagem que uma música transmite? Luan responde rapidamente: “pelo que a
letra diz, professora”. Dou continuidade com outro questionamento, e quando se trata
de música instrumental, ou até de uma música cantada em uma língua que não
84

compreendemos, é possível identificar o “recado” que a música dá? Se for possível


como isso acontece? Digo a elas/es que trouxe dois exemplos de músicas eruditas pra
gente tentar fazer essa reflexão.
Escolhi para isso dois movimentos do Concerto n.1 em E, Op.8 de Vivaldi, a
primavera das suas “Quatro Estações”, o primeiro movimento em andamento Allegro
e o segundo um Largo. Essa escolha foi feita a partir do material de mídia que eu já
tinha disponível no meu celular e com base na opção por apresentar exemplos que
soassem contrastantes entre si. Pedi que escutassem os dois exemplos e que guardassem
suas impressões para o final.
Após ouvirmos os dois movimentos perguntei qual era a ideia que elas/es
achavam que cada um deles transmitia. Quando questionados sobre o primeiro trecho,
as respostas surgem rapidamente. Luan, Ricardo e Paulo o fazem quase que em um
uníssono: “felicidade!”, dizem. “Só isso?”, pergunto eu. Ouço um sonoro “aham” como
resposta.
Passo ao segundo exemplo, a resposta vem tão rápida quanto a primeira. Muitos
dizem: “tristeza”, “traição”, “luto”, “morte”, quando Natan diz “suspense”, Luana
retruca: “que suspense, criatura!?”, o diálogo termina em risada.
Peço para me dizerem o que elas/es identificam como características sonoras
que as/os fazem sentir o que descreveram anteriormente. O primeiro a responder é
Luan, ele diz que o primeiro exemplo é “mais rápido”, Ricardo em seguida diz que “tem
mais notas” e Carlos me pergunta se são os mesmos instrumentos usados nas duas
músicas que ouvimos, digo que sim. Sobre o segundo exemplo, Luan insiste em
perguntar se trata-se da mesma instrumentação, digo que sim e ele me parece um pouco
inconformado. Carlos diz: “é mais lenta” e Luana complementa “é mais grave
também”.
Busquei com esse exercício iniciar uma reflexão sobre os significados que nós
achamos que cada tipo de som pode ter e encontrei essa resposta nas leituras que as/os
alunas/os fizeram do que ouvimos. Digo a eles que como parte de uma cultura musical
eurocentrada, é normal que reconheçamos determinadas características como
representações desse ou daquele sentimento: são os significados criados e reproduzidos
através dos tempos. São os códigos musicais e todo um discurso que carregam consigo.
Ressalto que a música europeia representa uma pequena parte de tudo que existe em
termos de cultura musical no mundo todo, não sendo a certa ou a mais importante, e
que é essencial pensarmos sobre nossa história para entendermos nossa música.
85

Antes de começar a próxima discussão digo a elas/es que a minha intenção com
essa análise que eles fizeram antes não é separar letra e música, pois entendo isso como
uma coisa só, mas justamente lidar com a ideia de que todos os elementos apresentados
em uma música, seja lá qual forma ela tiver, fazem parte dos significados que vão estar
ali representados. A próxima proposta é pensar nos possíveis estereótipos que cada
gênero musical carrega consigo. Então, coloquei no material as seguintes perguntas:
“Quando pensamos nos gêneros musicais abaixo, mesmo sem nunca termos ouvido ou
conhecermos profundamente, sobre quais assuntos vocês acham que a sociedade pensa
que eles tratam?” seguidas dos seguintes gêneros: música popular brasileira (MPB),
pagode, samba, funk, ópera e sertanejo. Fui pedindo que dessem suas opiniões e fui
fazendo anotações disso no quadro.
Começamos pelo pagode. É difícil identificar exatamente quem faz cada
colocação, mas sigo tentando, na medida do possível. Dizem “dinheiro, cerveja,
mulher, churrasco, dor de corno, carência”, algumas colocações geram discordância.
Manuela questiona, “cerveja?” e Rafaela concorda dizendo “nada a ver”, tendo sua fala
complementada por Luan: “é, eu não bebo cerveja e gosto de pagode”. Os colegas dão
risada, Carlos fala: “não, cara! A gente tá falando sobre o que a música diz e não sobre
quem ouve.”, Ricardo lembra: “nunca ouviram Zeca Pagodinho? O cara é o rei da
cerveja.” e Natan finaliza dizendo: “Penso nele, vem logo uma Brahma na cabeça. O
cara é o bicho!”
A próxima parada é a MPB. Os diálogos se tornam confusos e quase inaudíveis,
mas faço um esforço para entender o máximo possível e vou tentando fazer as anotações
no quadro. É praticamente impossível saber quem fala o que, mas os únicos temas que
elas/es apresentam como abordados nesse gênero musical são amor e política.
Vamos então ao sertanejo. Assim que eu anuncio o gênero, Ricardo fala:
“música de corno”, Carlos diz também “mulher”, Manuela toca no nome do artista
Wesley Safadão e gera uma discussão sobre se a música que ele canta seria sertanejo
ou forró, elas/es não chegam a nenhuma conclusão. Luana fala: “professora, mas o
sertanejo, sem ser o universitário é aquela música de interior né?! Que fala da terra e
tal”, eu concordo e digo que são diferentes formas que podemos identificar dentro desse
gênero, Guilherme finaliza: “é tudo música de corno, ou a sofrência do interior”.
Aproveito a risada geral e sigo adiante.
Chegamos ao samba e em meio a muitas vozes consigo identificar: “alegria”,
“festa”, “cerveja”, “feijoada”, “cachaça”, “dança”. À medida em que nos aproximamos
86

da discussão sobre funk, vão crescendo as expectativas. Luan por exemplo diz: “Ih!
Quando a gente chegar no funk vai faltar quadro pra escrever”, Guilherme retruca: “só
merda, né!?”, Carlos o recrimina: “olha o preconceito”, ele diz. Essa expectativa parece
inclusive apressar as considerações sobre o samba. Assim que eu traço uma seta entre
o funk e a parte em branco do quadro, indicando que estou pronta para anotar o que eles
disserem, são tantas informações que tenho que fazer um grande esforço para ouvir a
todas/os e a lista é enorme: “putaria, bandido, drogas, tiroteio, baile, prostituição,
drogas, palavrão, sacanagem, sexo, dinheiro, ostentação, cerveja, vodka”. Elas/es ainda
falam durante mais algum tempo, mas se repetem. Assim que param de falar, sigo para
a ópera que aparece como última categoria para análise, Renata fala: “gritaria”, Luana
contribui: “sentimentalismo”, Luan diz que acha que só tem “coisa de rico” e Renata
finaliza a discussão dizendo: “tem mais putaria que música”.
Tento iniciar um processo de análise de todas as informações que anotei no
quadro. Chamo a atenção para o fato de que tudo o que estamos usando, inclusive essa
categorização por gêneros musicais, pode ser sempre discutido, é variável. Incluindo
aquilo que nos vem à cabeça quando pensamos em cada tipo de música, pode variar,
registrando diferentes percepções acerca de uma mesma música. Mas ao notarmos que
apesar de um ou outro embate, a maioria das respostas acaba sendo afirmada como
consenso, como podemos avaliar isso? Por que a maioria de nós concorda quanto aos
estereótipos carregados por essas músicas? Divido com elas/es a razão de eu ter
decidido propor uma reflexão em torno dos gêneros musicais, já apresentada por mim
no início desse capítulo: me parecia que em alguns momentos o funk aparecia como
culpado por crimes sexuais contra mulheres. Reconheço que há sim funks que tratam
de sexo, violência, inclusive objetificando a mulher ou relatando cenas de violência
contra ela, mas pergunto: “o funk só fala disso? E mais, só o funk fala disso?”, Ricardo
responde que “não, o Rap também”, Luana lembra: “não professora, e o Mc Marcinho?
Fala de amor”, Carlos ainda complementa: “tem outros tipos de música que também
falam, mas às vezes usam outras palavras”. Digo concordando com Carlos que, no meu
ponto de vista, se a música retrata a vida e, no caso, a nossa sociedade é machista, em
qualquer música isso pode estar representado. Despeço-me e elas/es deixam a sala.
No dia seguinte a proposta é a mesma, mas dessa vez com as turmas do oitavo
ano. Como de costume, nos dois primeiros tempos meu encontro é com a 1804. Começo
assim como no dia anterior, retomando as informações de discussões da última aula que
fazia parte desse ciclo, em primeiro lugar a discussão do conceito de música que
87

fizemos ao início do ano. Assim, como na turma de nono ano, elas/es falam da música
como uma forma de falar sobre algum assunto ou usando as palavras de Marcos: “é
uma forma de mandar o papo”.
Antes de apresentar o material que preparei ainda faço questão de mais uma vez
falar-lhes sobre o trabalho de pesquisa que estou realizando no mestrado e explicar de
que forma usarei nossas conversas dos quatro debates que acontecerão nas turmas.
Elas/es me fazem uma série de perguntas sobre o mestrado, para que serve, porque eu
escolhi fazer isso, qual a universidade, se tem prova para entrar e o que eu ganho com
isso. Vou respondendo uma a uma, compreendendo como uma das etapas importantes
dessa pesquisa a oportunidade de dividir essa parte do trabalho, a parte que acontece
dentro da universidade. Dou detalhes, falo sobre minha posição em voltar a ser aluna
mesmo depois de hoje já atuar como professora. Conto sobre como a minha primeira
experiência em pesquisa se deu na Maré, em um projeto junto com estudantes de vários
espaços, como escolas estaduais por exemplo. Ficamos bastante tempo conversando
sobre o assunto.
A primeira pergunta que faço é: “de que forma, através de quais elementos
conseguimos saber que papo é esse que a música quer mandar?”, elas/es dão risada. A
resposta é dada por Marcos mais uma vez e ele nos diz: “depende professora, nem
sempre é do mesmo jeito, pode ser a letra, pode ser a melodia”. Mariana complementa:
“com a letra é mais fácil entender, né!?”. Introduzo então a ideia já realizada na aula de
ontem, tentarmos identificar esse “papo” nos exemplos sonoros apresentados. Assim
como no dia anterior, ouvimos dois movimentos da primavera de Vivaldi.
Toco o primeiro exemplo e o reconhecimento da música causa um alvoroço,
Gabriel pergunta: “isso num é a música de uma propaganda?”, Juliana responde rindo:
“não, é música de metrô”. Depois de ouvirmos o segundo exemplo pergunto: “e aí?
Pensando nessa definição de música que vocês me deram, qual vocês acham que é o
papo de cada um desses trechos? Falem aí, sensações, impressões, o que quiserem”.
Humberto fala: “valsa” e aos risos Marcos intervém: “desde quando valsa é assunto?”
e segue dizendo: “o primeiro, no início ele fica mais calmo e depois ele fica meio
perturbador, o segundo foi mais calminho, relaxante”. Gabriel também participa: “o
dois foi tipo aquela parte que entra o morto, no filme, tá ligado?”, já Mariana diz que
“é uma música que ela usaria para meditação”. Pergunto se há algo mais a ser dito, a
resposta é o silêncio. Percebendo que no caso dessa turma não acontece um interesse
em fazer essa discussão, não insisto e passo para a próxima parte.
88

Chega o momento de falarmos sobre os gêneros musicais e os estereótipos


atribuídos a cada um deles. Digo então que no slide a seguir encontraremos alguns tipos
de música e que eu gostaria que me dissessem sobre quais assuntos poderíamos dizer
que eles falam. Começando pelo pagode pergunto: “quais são os assuntos em geral que
as pessoas acham que o pagode fala sobre?”. Gabriel responde: “música de corno”,
Mariana também: “sofrência60” e Gabriel se coloca mais uma vez: “falta de amor, na
maioria das músicas”. Mariana não concorda muito com ele, e diz: “não sobre a falta
necessariamente, pode contar história de amor, falar de amor em geral”. Humberto me
chama: “professora, fala de churrasco também”. Mariana é quem mais participa:
“discussão de casal, traição, bebidas, anotou professora?”. Um grupo de meninos
sentados do lado esquerdo da sala conversa entre si antes de se dirigir a mim. Então
Luiz parece ser um porta voz: “fala de mulher, professora”. Juliana parece responder
Luiz e traz a seguinte reflexão: “fala de mulher porque só os homens cantam né!?”, mas
sua fala não encontra muito eco. Fernando participa: “fala de sexo que eu sei”, alguns
meninos se manifestam discordando dele e Mariana finaliza: “professora, tem uma
música que fala: vou fazer justiça com meu próprio corpo. Isso é sobre sexo, não é!? É
que eles costumam usar outras palavras”.
O próxima gênero é a MPB. Assim que eu anuncio elas/es começam a falar
nomes de artistas que acreditam como sendo parte da MPB: “Maria Gadú, Alcione, Ana
Carolina, Cazuza, Cassia Eller, Chico Buarque, Roberto Carlos, Maria Bethânia,
Caetano Veloso” são alguns dos quais eu consigo identificar. Fernando é o primeiro a
se colocar: “fala de amor”, Luiz complementa: “fala de sexo”, Alice em tom de
reclamação diz: “tudo eles acham que fala de sexo”, Mariana se coloca: “é porque quase
tudo tem a ver com sexo mesmo”, Luiz grita do fundo da sala: “é tudo putaria, escreve
aí professora: putaria”. Juliana pergunta: “será que tem algum tipo de música que não
tenha nenhuma letra que fale sobre sexo?”, Marcos responde: “ópera!”, faço a ele uma
pergunta: “será?”. Lucas continua no mesmo assunto: “música de Deus” e Juliana
dialoga com ele: “mas quem criou o homem? Deus. E quem faz sexo? O Homem, então
sexo é de Deus, tudo a ver”, os risos tomam conta da sala e fica difícil continuar. Espero
alguns minutos em silêncio. Marcos me pergunta: “professora, não tem umas músicas


60
O termo sofrência passou a ser utilizado inicialmente para descrever músicas de gêneros como arrocha,
sertanejo e brega que contavam situações que até então eram chamadas de “dor de cotovelo”, ou seja
músicas que tratam de tristeza, decepção, frustração no geral em relação ao amor. Em 2014 com o enorme
sucesso de músicas nesses moldes do cantor “Pablo” a sofrência para na boca do povo e se torna adjetivo
comum para descrever alguma canção.
89

que falam de política também?”, escrevo mais esse assunto no quadro. Ao observar os
três temas listados no quadro: amor, sexo e política, Júlio fala: “professora a gente não
conhece tanta música de MPB, então fica mais difícil a gente falar muita coisa”.
Elas/es me perguntam: “vai falar sobre o que agora”, repondo: “sertanejo” e já
começo a ouvir as respostas: “música de corno, chifrudo” são as primeiras. Não consigo
saber onde começa a discussão, mas me chama a atenção. Assim como na aula do dia
anterior alguém cita o nome do cantor Wesley Safadão e Gabriel diz: “Safadão é forró”,
Humberto critica: “forró? É nada, é sertanejo universitário”, Mariana se coloca: “é forró
sim, ele é do nordeste”. Marcos me pergunta: “professora, você quer saber do sertanejo,
sertanejo mesmo ou do universitário?”. Respondo pedindo para que ele me diga que
diferença ele vê, e ele diz: “um eu acho que é interior, o outro acho que é balada”.
Juliana tenta complementar: “é professora, tem aquelas músicas que falam sobre roça,
e essas outras da sofrência, bebida e tal”. Pergunto se alguém ainda tem algo a dizer,
recebo resposta negativa e seguimos adiante.
Assim que anuncio samba como o próximo gênero vão surgindo as seguintes
colocações: “mulher”, diz Mariana. Luiz complemente: “alegria, festa, cerveja”, bem
como Gabriel, que diz: “santo, macumba, oxum” e se dirigindo à Mariana, que é uma
aluna praticante do Candomblé, ele diz: “vai falar que não é!?”, ela não responde. Ele
insiste: “não fala mesmo, tá me olhando desse jeito por que?” e então ela se coloca:
“fala sobre religião, religiosidade professora”. Marcos diz: “fala sobre diferentes
origens” e Humberto dialoga com ele: “é! Fala sobre o morro”. Elas/es parecem ter
terminado de se colocar, pergunto se podemos continuar, dizem que sim.
Ópera é a próxima parada. A primeira resposta é de Humberto que diz: “é sobre
dor, porque pra gritarem tanto só pode ser”, eu mesma rio junto com elas/es. Mariana
também fala “sofrimento, mas também pode ter alegria, sei lá, pode falar de qualquer
coisa... Podemos falar do funk?”, mais uma vez acabamos rindo. Não insisto e antes
mesmo que eu falasse qualquer coisa elas/es já começam a gritar muitas coisas, faço
um esforço grande para entender e para tentar reconhecer quem fala o que, em vão. Os
meus primeiros registros são: “gravidez, apologia ao crime, violência, drogas, putaria,
filho sem pai, festa, estupro”. Mesmo já tendo escrito, Mariana me chama e fala mais
uma vez: “Estupro, professora”, enquanto Gabriel sentado logo atrás dela diz rindo:
“fala sobre as novinhas de quinze anos, doidas pra dar”, outros alunos riem.
À medida que vou conseguindo anotar as hipóteses apresentadas por elas/es,
ouço menos vozes e vai ficando mais fácil identificá-las. Fernando diz: “fala de
90

impeachment”, ele repete isso várias vezes até que eu escreva. Mariana me chama:
“professora, fala da forma das meninas se vestir”. Aparecem ainda outros assuntos
como: “favela, ostentação, amor, vingança”, faço silêncio por alguns minutos, para
tentar entende-las/os melhor, aos poucos vão parando de falar também. Marcos então
se coloca: “fala sobre usar a mulher como objeto”, pergunto se ainda há algo que não
esteja escrito no quadro que elas/es queiram dizer e ainda surgem mais: “infidelidade,
briga”. Juliana me chama: “Bárbara, alerta machista aqui, ó” diz ela apontando para
Gabriel, “só consegue falar das novinhas, de gravidez, de estupro”, ele se cala.
Meu tempo já está quase acabando. Digo-lhes que busquei observar mais que
intervir, por que a intenção era ouvir os pensamentos que trariam ao coletivo. Mariana
diz: “professora tem muita gente que tem preconceito, por exemplo não pode ouvir uma
batida de samba que diz que é coisa de macumba. Tudo que é de negro as pessoas tem
preconceito”. Agradeço a colocação dela e digo que o meu desejo é construirmos
mesmo esse tipo de linha de raciocínio, tentando entender de que forma se constituem
as questões como essa apresentada por ela. Por fim, explico a atividade que
realizaremos na próxima aula: análise de músicas, de diferentes gêneros musicais, com
uma característica comum entre elas.
Nos dois últimos tempos é a vez da 1802. Inicio da mesma forma como já havia
feito nas turmas anteriores, não há muita diferença na forma como transcorre o debate
entre essa e as outras turmas. Quando retomo com eles a discussão sobre o conceito de
música, Rafaela é categórica ao afirmar que “a música é um caminho através do qual o
homem fala sobre alguma coisa”. Assim que ela finaliza a frase a turma grita, bate
palmas e faz uma grande bagunça.
Explico a primeira atividade, baseada na interpretação dos dois exemplos
sonoros e os executo. Sobre o primeiro exemplo pergunto qual a impressão delas/es,
Eduardo é o primeiro a responder. Segundo ele “a música passa uma mensagem de
entusiasmo” e João complementa dizendo que pensou em “alegria”. Quando pergunto
sobre o segundo exemplo, várias/os alunas/os se colocam. João fala em “morte”,
Eduardo em “tristeza”, Ramon diz: “caraca! Cês tão vendo muito filme”, Rafaela ainda
acrescenta: “angústia” e Eduardo responde: “caraca! Falou a poética”. “Algo mais?”
Eu pergunto, “bora, bora, tá bom” responde João. Peço então para que tentem me dizer
quais são os elementos que as/os fizeram me dar essas respostas sobre os trechos
ouvidos. Eduardo diz: “O ritmo, um é mais rápido, outro mais lento”.
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Tento continuar, mas hoje, em especial, há muitas conversas transcorrendo


paralelamente ao debate coletivo , o que somado ao barulho que já vem de fora da sala
de aula, acaba tornando o debate impossível em alguns momentos. Paro em muitos
momentos esperando que haja silencio e condições mais favoráveis. Desse modo,
acabamos não conseguindo finalizar nessa turma essa discussão e acabo passando ao
próximo passo sem aprofundar a conversa sobre o último tópico. Entendendo que
apesar de eu ter feito o planejamento, como já havia acontecido antes, mudar o caminho
a ser seguido é sempre uma opção. Não é parte da minha proposta obriga-los a travar
qualquer tipo de discussão.
Apresento então o ponto seguinte: a discussão dos estereótipos associados aos
gêneros musicais. Digo a elas/es que a ideia agora é a gente falar um pouco sobre os
assuntos retratados em alguns gêneros musicais. Deixo claro que a intenção não é falar
em verdades absolutas, mas sim sobre o que as pessoas, de um modo geral, acham que
essas músicas retratam. Elas/es começam a perguntar por gêneros que não estão na
minha lista, como o rock, por exemplo. Explico que escolhi apenas alguns para que
pudéssemos fazer esse exercício, e que foi uma escolha mais aleatória que pensada.
Começo pelo pagode. Pergunto: “quais são os assuntos que vocês acham que
aparecem mais nas músicas desse gênero?”. Marcelo é o primeiro: “amor”, diz ele.
Luciana também fala: “felicidade”, e é seguida por João que em tom debochado repete:
“felicidade”, ela de defende dizendo: “é a minha opinião” e, logo em seguida, ele diz:
“alegria”, e Luciana retruca: “nossa! Muito diferente, felicidade e alegria”, fala aos
risos. Carolina intervém discordando de todas/os: “que felicidade e alegria, gente!?
Pagode só tem tristeza”, Rafaela concorda: “é professora, traição”. Várias vozes
surgem, Artur grita do fundo da sala: “amizade, professora!” e imediatamente Renan e
Ramon cantam: “A amizade, nem mesmo a força do tempo irá destruir...” (trecho da
música “A amizade”, do grupo Fundo de Quintal. Que ficou conhecida entre elas/es
através de uma gravação do grupo Bom Gosto). Gabriela se coloca pela primeira vez:
“professora, fala de amor”, vou anotando todas as informações no quadro. Depois dela
Ana diz: “da cidade, fala da cidade professora” e mais uma vez os alunos fazem um
coro: “Madureira, lá laiá” (trecho da música “Meu lugar”, de Arlindo Cruz). Carolina
finaliza: “sobre a vida, o cotidiano, fala sobre as pessoas” e o coro volta a participar:
“É ser humano, ê. É ser humano” (trecho da música “Ser humano”, do Zeca
Pagodinho), tenho que esperar alguns minutos pra continuar. Yuri grita: “bora galera,
cala a boca!”, todas/os ficam em silêncio.
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“Sobre o sertanejo? O que vocês têm pra me dizer?”, pergunto. Ramon diz:
“arrocha”, João fala em seguida: “arrocha não é um assunto” e Artur fala aos risos:
“claro que arrocha é um assunto, vai dizer que tu não sabe o que é arrochar?”, ele ainda
acrescenta: “traição, professora”. As vozes vão surgindo, João, Ana, Rafaela, e Eduardo
dizem respectivamente: “coração machucado, sofrência, balada, bebida”. Carolina fala:
“amor” e mais uma vez sua colocação vira música na voz de Ramon que canta: “É o
amor! Que mexe com a minha cabeça e me deixa assim...” (trecho da música “É o
amor”, de Zezé de Camargo e Luciano). Fico em silêncio esperando que elas/es façam
o mesmo e João grita para Artur, que ainda conversa: “coé, parceirão, se controla”, ele
pede desculpas e para de falar.
Passo para o próximo gênero: “MPB”, anuncio. Logo em seguida Ramon fala:
“Música Popular Brasileira”, João brinca: “Música Pop Bolada” e antes mesmo que eu
pergunte elas/es já passam a enunciar os assuntos. O primeiro é Eduardo: “biografia”,
diz ele. Ana fala logo em seguida: “professora, eu não sei o que é MPB, Pitty é MPB?”,
Marcelo se dirigindo à ela diz: “é música democrática”. Eu mesma não respondo, quem
faz esse esforço é Rafaela que logo vira para a colega e diz: “música popular brasileira,
pode ser Pitty sim, apesar dela ser meio roqueira. Pensa assim: Maria Gadú, Seu Jorge,
Ana Carolina, Caetano Veloso, entendeu?”, não interfiro. Retomo a discussão anterior
e João diz: “felicidade”, seguido por Artur que fala: “raiva, inveja, sociedade”. Elas/es
continuam falando, mas não apresentam mais nada com relação à discussão da aula.
Espero em silêncio por alguns minutos, e à medida que a sala vai ficando mais
silenciosa pergunto se posso seguir.
A próxima parada é a ópera. Logo que digo isso a elas/es, João se manifesta:
“sei nem que que é isso”, eu digo que a minha ideia era essa mesmo, tentar escolher
algum gênero que pudesse ser mais distante deles, que talvez a maioria nunca tivesse
escutado, pra gente poder lidar com os preconceitos mesmo, aquilo que a gente fala
sobre as músicas mesmo sem nunca ter ouvido. Eduardo diz: “é tipo teatro né,
professora? Teatro com música?”, Ana também expõe impressões: “é sofrimento, as
mina gritam”, ouço ao fundo alguém que cantarola a ária da Rainha da noite, parte da
ópera “A Flauta Mágica” de Mozart. Eduardo acrescenta: “suspense, pode ser?” e Artur
faz a última colocação: “cotidiano”. Anoto tudo e mais uma vez espero silêncio.
Sinto-me um pouco cansada, as atividades nessa turma não costumam ter tantas
interrupções, o que me acostumou com um certo ritmo sempre que trabalho com elas/es.
Isso acaba diminuindo a qualidade do debate. Essas situações fazem parte do cotidiano
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do trabalho em sala de aula, procuro sempre encará-las com silêncio e conversa e é isso
que faço. Peço que busquemos nos ouvir mais e evitar falarmos todos ao mesmo tempo,
já que o barulho vindo de fora da sala de aula já nos atrapalha muito.
Último gênero a ser discutido, o funk, deixa todas/os em clima de ansiedade.
Assim que anuncio, começa uma enxurrada de colocações, e mais uma vez, faço um
grande esforço para não perder nenhuma delas. João começa: “ostentação”, Yuri repete
a mesma coisa. Renato acrescenta: “apologia ao tráfico” e é seguido por Ramon que
diz: “proibidão”. A partir desse momento fica praticamente impossível reconhecer
quem faz cada colocação, fico praticamente o tempo todo virada para o quadro só
tentando anotar tudo que escuto, a lista é extensa. “Drogas, satanás, amor, cotidiano da
favela, alegria, putaria, sacanagem, safadeza, sexo, tiroteio, pobreza, gingado”. Elas/es
passam a repetir coisas que já haviam dito, cantam e eu já não consigo mais organizar
nenhuma informação. Várias/os me chamam, ouço: “professora! Professora!” vindo de
todo o lado, mas sou incapaz de atender a todas/os, me sinto perdida. Só conseguimos
nos reencontrar quando literalmente dou um grito: “Gente! Eu tô ficando doida!”,
elas/es riem e, aos poucos, vamos nos organizando de novo.
Para encerrar, inicio uma análise breve daqueles dados escritos no quadro. A
primeira coisa que me chama a atenção e que eu sinalizo para elas/es é o fato de alguns
assuntos aparecerem em praticamente todos os gêneros. Falo um pouco sobre como
muitas vezes, mesmo sem nunca ter ouvido nada de um determinado gênero, as pessoas
julgam e condenam por tratarem desse ou daquele assunto e que a minha intenção é
pensarmos um pouco sobre como se dão esses processos. Lembro que na aula seguinte
vamos analisar músicas de diferentes gêneros musicais e buscar fazer uma relação entre
elas e nossas discussões sobre machismo e cultura do estupro. Encerro assim a
atividade.
Em tempo de realizar uma análise posterior desse segundo debate, percebo que
os assuntos relacionados aos gêneros musicais se repetiram nas três turmas, salvo
algumas exceções. Mesmo considerando a dificuldade em escutar todas as colocações
quando trabalhamos fora da ordenação mais comum na escola, onde buscamos que cada
um fale de cada vez, avaliei como positiva a forma como se sentiram livres para a
medida que pensavam em algo, fazer suas colocações. Não é fácil registrar ou conduzir
um debate dessa forma, no entanto, mais uma vez, ressalto que acredito ser importante
que a abordagem seja feita com base nos modos de organização do próprio coletivo
com o qual a pesquisa é realizada.
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Trago mais uma questão a essa minha reflexão: os processos através dos quais
os gêneros musicais são definidos. Em alguns momentos das discussões em sala de aula
é possível notar o quão tênues são as linhas que separam um gênero de outro. São
colocadas diferentes perspectivas quanto aos critérios que definem esse ou aquele
gênero musical, como por exemplo quando em duas turmas acontecem as discussões
sobre o Wesley Safadão. Enquanto uns utilizam o conteúdo de suas letras para defini-
lo como sertanejo, outros usam como critério a região do país onde nasceu e trabalha
o artista. Segundo Trotta (2008, p. 02), “a definição de um gênero musical é um
processo altamente complexo, resultado de associações diversas feitas pelos indivíduos
e assimiladas (ou não) pela sociedade como um todo”. Gêneros musicais seriam
portanto, um “conjunto de eventos musicais (reais ou possíveis), cujo curso é governado
por um conjunto definido de regras abertamente aceitas socialmente” (FABBRI, 1981,
apud TROTTA, 2008, p. 02). O autor afirma portanto, que “a construção de uma
classificação de gêneros musicais seria um processo ativo, resultado de diversas
associações.” (TROTTA, 2008, p. 02).
Apesar dele apontar para a primazia dos parâmetros sonoros (regras técnico-
formais) sobre os demais como condição prévia para estabelecimento das outras regras
de gênero (TROTTA, 2008, p.02), podemos perceber que outros modos de classificação
são pautados. Apesar de eu concordar que “somente depois de ser ouvida é que uma
determinada prática musical se transforma em experiência” (TROTTA, 2008, p. 03)
acredito que a escuta e a sonoridade não sejam os únicos aspectos que fazem parte dessa
definição, ao contrário do autor que postula ser essa experiência que “possibilita
qualquer tipo de classificação de gêneros, de semelhanças e de valorações.” (TROTTA,
2008, p.03).
Assim como Trotta (2008, p. 03), reconheço o papel fundamental que os
parâmetros sonoros desempenham na classificação dos gêneros musicais, mesmo
acreditando na existência de outros igualmente determinantes. Esse parâmetros
segundo ele seriam o ritmo, como “elemento cuja função demarcatória no universo dos
gêneros musicais é facilmente audível” cujo reconhecimento é “imediatamente
associado a determinado ambiente sócio-musical-afetivo” e a “sonoridade” que ele diz
tratar-se de “uma combinação de instrumentos (e vozes) que, por sua recorrência em
uma determinada prática musical, se transforma em elemento identificador.”
(TROTTA, 2008, p. 03). Pensando nesses aspectos e relembrando a primeira discussão
levantada junto às turmas nessa seção, reconheço nesse apresentação do autor sobre os
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parâmetros sonoros, os elementos que as/os estudantes percebem como aqueles através
dos quais reconhecemos “o papo dado através da música”.
Levanto também outra questão que trago comigo quanto à discussão dos
gêneros musicais que se refere à construção do gosto. Na seção anterior, apresentei
Silva (2008, p. 83) e um momento de sua pesquisa onde apresenta a possibilidade de
compreensão das identidades de gênero na escola através das preferências musicais
das/os estudantes. A autora declara perceber os discursos generificados das músicas nas
formas como as/os alunas/os definem seus gostos. Afirmando que elas/es acabam por
reproduzir estereótipos de gênero quando justificam sua escolha, e também a dos
outros, por esse ou aquele tipo de música. Segundo ela “a questão das diferenças entre
as preferências musicais reveladas no contexto escolar parecia estar mais associada aos
sentimentos que cada um podia ou se permitia declarar”. Acho importante também
nessa discussão ressaltar a não passividade dos sujeitos diante da construção do gosto.
Entendendo em Hennion (2011, p. 262) esse processo como “um trabalho e uma
construção conduzidos no tempo” e uma “atividade que se apoia sobre inúmeros
elementos heterogêneos”.
O autor defende a importância de “considerar reflexivamente a autoformação
pragmática do gosto pelos próprios amadores, e não de reduzir criticamente o gosto real
através de sua sujeição a uma intepretação purificada” (HENNION, 2011, p. 261). Essa
defesa me ajuda a rejeitar as associações feitas entre determinados grupos sociais e
alguns gêneros musicais, com base na compreensão de que socialmente esses se
relacionariam mais diretamente com os assuntos retratados por um outro tipo de
música. O que de fato não se confirma como aponta o Grupo Musicultura (2011, p.
349) ao falar sobre o consumo de música na Maré. Dizem ser “interessante observar
que muitas vezes o senso comum enfatiza o caráter violento da juventude favelada ao
destacar que a música preferida desta é o funk”. E então, apontam para a contradição
dessa hipótese do senso comum que se consolida através dos dados que “sugerem que
essa é a mesma juventude que prefere o pagode – gênero que em sua maioria apresenta
letras apaixonadas e românticas. Destaca-se, também, o fato de que, durante os
intervalos dos bailes funk, toca-se em geral um grande número de pagodes de sucesso.”
(MUSICULTURA, 2011, p. 349).
As discussões acerca dos gêneros musicais nos permitem pensar todas essas
questões e inclusive, através da compreensão de contradições do senso comum como
essa apresentada pelo Musicultura, podemos refletir sobre formas através das quais nos
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relacionamos socialmente com a música.

3.4 Analisando a presença das desigualdades de gênero na música. Terceiro


debate.

Nessa etapa do trabalho, minha ideia era pensarmos sobre a presença de


questões de gênero em diferentes gêneros musicais. Essa seria a última discussão antes
de pensarmos o quanto música e identidade de gênero podem, ou não, implicar uma na
outra. Como já dito anteriormente, a proposta foi: que as/os alunas/os realizassem a
análise de 11 diferentes letras de músicas atribuídas a diversos tipos de música em
pequenos grupos. O objetivo era elas/es buscarem marcas de desigualdade de gênero
nessas canções. Nesse momento, aparecem além das falas das/os estudantes, a
transcrição dos textos produzidos por elas/es nos quais descreveram suas impressões
sobre as desigualdades presentes nas canções analisadas.
As músicas escolhidas foram: “Ai que saudade da Amélia” de Mario Lago e
Ataulfo Alves; “Amiga da minha mulher” de Seu Jorge, Gabriel Moura, Pretinho da
Serrinha e Rogê; “Faixa amarela” de Zeca Pagodinho, Beto Gago, Jessé Pai e Luis
Carlos; “Gol anulado” de João Bosco e Aldir Blanc; “Levanta o copo” de Diego
Monteiro, De Simone e Roberto Sampaio, interpretada pela banda Aviões do Forró;
“Lôraburra” de Gabriel O Pensador; “Me lambe” de Fred, Rodolfo e Digão, da banda
Raimundos; “Mesmo que seja eu” de Erasmo Carlos e Roberto Carlos; “Se eu fosse teu
patrão” de Chico Buarque; “Segure o Tchan” de Bieco, Cau Lima e Cissinho,
interpretada pela banda É o Tchan e “Trepadeira” de Emicida e Felipe Vassão,
interpretada pelo próprio Emicida com participação de Wilson das Neves.
Essa escolha foi feita por mim através de consulta em blogs feministas que
buscando mostrar que o funk não é o único gênero musical onde a violência contra a
mulher é representada, fizeram um levantamento de músicas de diversos tipos onde
essa realidade fosse retratada.
Como sempre, comecei pela 1902, era dia 07 de julho. Mais uma vez, os debates
não aconteceram em semanas sequenciais, foi necessária uma interrupção. Dessa vez
ela se deu por conta do calendário escolar. A semana anterior a essa era a última antes
do Conselho de classe e do fechamento das notas das turmas, então usamos nossa aula
para realizar o processo de avaliação. No caso da minha disciplina, geralmente
realizamos uma autoavaliação com momentos individuais e coletivos, onde
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conversamos sobre cada uma das aulas que tivemos durante o bimestre, conferindo grau
de acordo com a participação, o que geralmente demanda os 2 tempos de aula.
Começo explicando a atividade e peço que se dividam em grupos de três
alunas/os no máximo. Digo que não vou interferir na formação dos grupos desde que
hajam 11 grupos no total da sala, para que todas as músicas possam ser analisadas.
Elas/es levam cerca de 10 minutos para se organizar. Vou entregando as letras das
músicas impressas aleatoriamente entre os grupos. Combinamos que, durante vinte
minutos, ficariam a vontade conversando entre si e que caso quisessem fala sobre
alguma questão, estaria à disposição. Esses 20 minutos acabam virando 40. Fui
chamada aos grupos poucas vezes, e em todas elas, sempre para confirmar alguma
hipótese que elas/es já tinham.
Assim que comecei a notar que todos os grupos haviam terminado, passei a
convocá-las/os para que em voz alta contassem a mim e ao resto da turma sobre a
música analisada por elas/es e as questões que encontraram nela. O primeiro grupo que
chamei eram Guilherme, que foi porta voz deles, Hugo e Luan e a música foi “Gol
anulado”. Ouvimos um pouco e ele lê os trechos da música destacados por eles “tirei
sem pensar o cinto e bati até cansar” e “Minha preta é uma rainha, porque não teme o
batente e se garante na cozinha”. Em seguida, faz a leitura do que eles haviam escrito
sobre cada um desses dois trechos. Sobre o primeiro, disseram: “Retrata uma cena de
violência doméstica. Ele agrediu ela porque ela comemora o gol do time adversário ao
dele”. E sobre o segundo trecho: “Reproduz o estereótipo de que é a mulher que tem
que fazer as tarefas domésticas”. A primeira fala da turma vem assim que Guilherme lê
a justificativa. Rodrigo grita: “Tinha que ser vascaíno”, referindo-se ao time do
personagem da música. Luana que já havia soltado um “que absurdo” enquanto
Guilherme lia o trabalho do grupo, se coloca novamente. Ela diz: “Isso é machismo! A
mulher pode ter o time que ela quiser!”
O segundo grupo a se apresentar é formado por Paula, Luana, Mariana e
Manuela que é a escolhida para falar pelo grupo. A música é “Amiga da minha mulher”,
novamente escutamos um pedacinho, elas/es conhecem a canção e muitas/os cantam
junto. Ela rapidamente lê as partes marcadas por elas que são: “Se fosse mulher feia
tava tudo certo, mulher bonita mexe com meu coração. Não pego, eu pego, não pego,
eu pego, não pego não”. Sobre isso, elas dizem: “O primeiro é porque a mulher é bonita
de qualquer jeito, não é uma opção de escolha para o homem. E depois porque ele está
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se referindo a ela como se fosse um objeto”. Assim que o grupo termina a apresentação,
Maria se coloca: “Pô, eu gostava dessa música. Nunca tinha pensado nisso”.
O terceiro grupo, Maria, Cristiano e Ricardo foi responsável pela discussão da
música “Ai que saudades da Amélia”. Elas/es marcaram as seguintes partes: “Aquilo
sim que era mulher” e “Amélia não tinha a menor vaidade, Amélia que era mulher de
verdade”, mas na sua análise da letra dizem que “em toda a música ele quer dizer que
a única mulher que presta é a mulher que não se importa, não gaste do dinheiro dele e
que viva a favor dele, rebaixando completamente a mulher”. Além de ler essa resposta,
Ricardo ainda finaliza dizendo que “quando ele fala que tem uma mulher como a
Amélia que é de verdade, ele tá criando um padrão de mulher certa”.
O quarto grupo, na verdade uma dupla, Renato e Rodrigo, ficou com a música
“Segura o Tchan” e as partes que eles selecionaram foram: “Menina que requebra, a
mãe pega na cabeça” e “Tudo que é perfeito a gente pega pelo braço, joga ela no meio,
mete em cima, mete em baixo. Depois de nove meses você vê o resultado”. As
anotações deles dizem o seguinte sobre a primeira frase sublinhada: “é machista porque
tá dizendo que mulher não pode dançar”, sobre a segunda: “tá achando que todo homem
tem direito sobre a mulher e ta tratando a mulher como um objeto” e sobre a terceira:
“ele diz que vai estuprar ela, ela vai engravidar sozinha, ele vai embora”. No caso
específico dessa música, a cada frase lida a turma toda dá risada.
A quinta música é “Faixa Amarela” e fazem parte desse grupo, Marcelo,
Leonardo e Natan. Logo que a gente ouve a música, eles já começam a ler o que haviam
marcado: “Mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela. Vou lhe dar uma banda de frente,
quebrar cinco dentes e quatro costelas”. As reações são muitas, “nossa, que horror”, eu
ouço. Peço para que eles leiam o que escreveram: “é machista, porque nenhuma mulher
merece sofrer violência como diz a letra da música, mesmo se ela contrariar um
homem”. A hora vai passando rápido e, com a proximidade do horário da saída,
acabamos seguindo a atividade com muito pouca discussão. Praticamente só ouvimos
os grupos lerem suas anotações.
O sexto grupo, Iara, Paulo e Guilherme ficou com a música “Trepadeira”. Logo
que começaram a falar, destacaram o fato de a maior parte da letra tratar a mulher de
forma pejorativa, e que embora tenha sido difícil elas/es destacaram alguns trechos
onde isso ficou mais evidente. “Perto dela as outras são capim”, “Ô, essa nega é
trepadeira, heim!?”, “Chamei de banquete, era fim de feira”, “Estendi o tapete, mas ela
é rueira. Dei todo amor, tratei como uma flor, mas no fim era uma trepadeira” e “Mas
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você não dá, ou melhor, dá, mas pra todo mundo”. Sobre esses trechos, Paulo vai
dizendo, uma a uma, quais são as questões encontradas por elas/es em relação à música
analisada.
No primeiro trecho, elas/es sinalizam que o autor trata a mulher como objeto,
pois a compara com capim, ele diz: “nesse pedaço ele tá desmerecendo ela”. Já no
segundo, além de falar sobre a questão de gênero, o grupo ainda questionou o fato de
se referirem à mulher como “nega” como uma postura racista. Para elas/es há um
julgamento da vida sexual da mulher, de acordo com a fala de Paulo: “ele tá tratando
ela como objeto sexual, ta ligado!?”. Sobre o terceiro, dizem: “chamou a mulher de
comida, como objeto de final de semana”, “essa aí é mais braba”, diz Ricardo,
Guilherme também se coloca, acrescentando: “tá dizendo que ela é comida barata
ainda” e é ainda complementado por Manuela que diz: “barata e podre”. Referindo-se
ao quarto trecho: “diz que é uma mulher que só quer farra e trepar” e sobre o último:
“diz que ela dá pra todo mundo por esporte”. Paulo finaliza a análise dizendo: “no geral,
professora, ele fala que essa mina não merece nada de bom só porque ela gosta muito
de sexo”.
Em seguida, chamo Eduarda e Felipe. Elas/es analisaram a música “Me lambe”.
Felipe começa a falar e logo anuncia: “professora a história toda que a música conta é
só pederastia”, Eduarda complemente: “é, aí fomos marcando, mas tipo, marcamos a
música toda, tem que falar no geral”. Felipe lê dois trechos da música que mais
chamaram a atenção delas/es: “O que que essa criança tá fazendo aí toda mocinha?” e
“Eu acho que com a sua idade já dá pra fazer neném”. A turma toda reage, ouço coisas
como: “bizarro”, “absurdo”, “pedofilia”, antes mesmo de Felipe terminar sua fala. Ele
diz: “professora, nessa primeira parte ele deixa claro que tá falando de uma criança e
depois fica falando várias coisas sexuais. Então a gente achou que ele está assediando
uma adolescente e estimulando a pedofilia”.
A oitava música é “Lôraburra”, que ficou aos cuidados de Carolina, Thaís e
Regina. Carolina é quem começa a falar, ela vai lendo alguns dos trechos selecionados
da música: “personalidade fraca, tem a feminilidade e a sensualidade de uma vaca”, “o
lugar dessas cadelas era mesmo no puteiro”, “cadelinhas de boate ou ratinhas de praia,
apenas os otários aturam a sua laia”, “vocês são o mais puro retrato da falsidade,
desculpa amor, mas eu prefiro mulher de verdade”, “você é medíocre e ainda assim
orgulhosa”, “mas só vou te usar, você não é nada pra mim”, “lôraburra, você não passa
de mulher objeto”, “mulheres vulgares, uma noite e nada mais”. Enquanto ela lê, várias
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reações podem ser ouvidas pela turma, sons como: “aiiii”, “uiii” e outras expressões do
tipo. Depois de ler quase a música inteira, Carolina nos diz o que elas escreveram sobre
isso: “todo esse texto é machista, porque além de deixar a imagem da mulher totalmente
ridicularizada, no final ainda fala ‘morena, ruiva, preta...’ então ele tá falando de todas
as mulheres”. Luana se coloca para complementar: “e na verdade ele tá julgando as
mulheres, dizendo qual é a que presta e a que não presta”.
Em seguida, chamo o nono grupo: Monique, Flávia e Miguel com a música
“Levanta o copo”. Elas/es não querem falar, então pedem para que eu leia o que foi
escrito, as/os três realmente falam bem pouco. Leio as partes destacadas: “gatinha
mamadinha vai, corre pro abraço” e “taca a cachaça que ela libera. Se você tá com medo
de pedir um beijo pra ela” e em seguida o texto produzido por elas/es: “é machista
porque ele acha que só porque ela está na balada e bebendo vai liberar o que ele quer”.
Assim que eu paro de falar Luana se coloca: “mais do que isso né professora?! Ele tá
dizendo que vai dar bebida pra ela já pensando que ela vai ficar facinha. Isso não é
estupro?”. Aceno que sim.
Estamos quase acabando e já é quase hora do final da aula o que sempre deixa
todas/os um pouco menos pacientes. A penúltima análise, feita por Sandro e Carlos é
da música “Mesmo que seja eu”. Carlos lê a parte destacada: “antes mal acompanhada
do que só. Você precisa de um homem pra chamar de seu, mesmo que esse homem seja
eu” e em seguida diz: “isso fala que a mulher tem que ter um homem, mesmo sendo
agredida ou maltratada, é melhor do que ficar sozinha”, ansiosos pelo fim da aula,
ninguém se coloca.
A última música é “Se eu fosse teu patrão” e o grupo que ficou com ela foi:
Bianca, Eduardo, Danilo e Sérgio. Eduardo nos mostra as partes selecionadas por
elas/es, são muitas: “se eu fosse teu patrão, aí, eu tratava como uma escrava, aí eu não
te dava perdão”, “te rasgava a roupa, morena”, “eu te encarcerava, te acorrentava, te
atava ao pé do fogão”, “eu encurralava, te dominava, te violava no chão”, “quando tu
quebrava, e tu desmontava, e tu não prestava mais não, eu comprava outra, morena” e
“eu te dava café pequeno e manteiga no pão. Depois te afagava, moreno”. Logo em
seguida, ele lê o texto que o grupo escreveu: “As frases destacadas na letra da música
representam uma ideia de que, se o homem fosse ‘patrão’ (como dono) da mulher, ele
poderia fazer o que quisesse com ela. Em algumas partes, são apresentados atos de
abuso sexual e que impunham a mulher como objeto que poderia ser trocado por outro
se ‘quebrasse’ (quando tu quebrava. E tu desmontava. E tu não prestava mais não. Eu
101

comprava outra). E mesmo depois de desrespeitada e maltratada, teria que cuidar do


homem como uma escrava”. O sinal tocou antes dele terminar a leitura do trabalho,
então assim que ele finaliza, todas/os já com suas mochilas nas costas se levantam.
Na sexta-feira, começo com meu encontro com a 1804. Do mesmo modo como
havia feito no dia anterior, explico a atividade e deixo que se organizem em grupos sem
a minha interferência. Assim que o fazem distribuo o material e durante cerca de 40
minutos elas/es seguem realizando suas análises das músicas propostas. O primeiro
grupo a apresentar seu trabalho é formado por, Juliana, Liana e Gabriela e ficou com a
música “Ai que saudades da Amélia”. Elas marcaram os seguintes versos: “Você só
pensa em luxo e riqueza”, sobre o qual escreveram: “falou que a mulher é interesseira,
só pensava em luxo e dinheiro” e “Amélia não tinha a menor vaidade”, cujo comentário
foi “falou que a mulher era relaxada, não gostava de se arruma, por isso que ele gostava
tanto dela”. Juliana, após ler o que haviam escrito, complementa: “ele tá falando mal
dela dizendo que ela é interesseira, mesmo ele dizendo que gostava dela. Essa coisa da
vaidade, acho que ele diz que gostava dela por causa disso, porque aí ele não teria
problemas com ciúmes, já que ninguém ia querer olhar pra ela”.
A segunda apresentação foi do mesmo grupo, pois havia sobrado uma música e
as meninas se disponibilizaram para analisar duas. Juliana então diz: “a próxima é
Levanta o copo, do Aviões do Forró”, a turma de manifesta gritando coisas como:
“uiiiiii” ou “uhuuulll”. Depois da interrupção ela continua: “fala bem assim “Gatinha
mamadinha. Levanta o copo, dá uma rodadinha, dá um golinho. Ihhh tá facinho. Taca
cachaça que ela libera. Taca cachaça que ela libera, se você tá com medo de pedir”
durante toda a leitura dela Gabriel, Luiz e William dão risada e fazem brincadeiras. Ela
lê a análise feita pelo grupo: “ele tá dizendo que a mulher libera mais fácil bêbada, na
parte que ele fala libera mais fácil bêbada na hora do SEXO61, ele tá sendo machista no
fato dele querer embebedá-la para ter relações sexuais com ela fora de si”. Juliana fala:
“isso é crime né professora? É estupro”.
Chamo o terceiro grupo, Fernando, Lucas e Júlio, responsáveis pela música
“Amiga da minha mulher”. Fernando nos diz que eles marcaram os seguintes versos:
“Ainda por cima é uma tremenda gata Pra piorar minha situação. Se fosse mulher feia
tava tudo certo” e “Não pego, eu pego, não pego, eu pego, não pego não. Não pego, eu
pego, não pego, eu pego, não pego não” e sobre isso fizeram os seguintes comentários:


61 Escrevo em letras maiúsculas tal qual escreveram as alunas durante a atividade.
102

“a primeira frase trata-se de demonstrar que se a mulher fosse feia seria fácil despreza-
la. A segunda trata a mulher como um objeto”.
A quarta apresentação ficou com Carla, Bruna e Adriana com a música
“Lôraburra”. Carla é quem nos apresenta, ela diz: “professora, achamos que a música
toda é muito machista, violenta, mas marcamos uma parte para dar um exemplo, pode
ser?”, aceno que sim e ela continua. “Nada na cabeça. Personalidade fraca. Tem a
feminilidade e a sensualidade de uma vaca. O lugar dessas cadelas era mesmo no
puteiro. Essas são as partes, e aí nós escrevemos: machismo a música inteira. Ofende a
mulher, falando que mulher não é mulher que presta. Chama de Burras, Personalidade
fraca, nada na cabeça, e só si importam com o corpo e não gostam quando elas falam.
Mas mulher não serve pra ser usada”.
Chamo Cíntia, Ana Luiza e Lúcia, elas ficaram com a música “Segura o Tchan”.
A Ana Luiza começa a ler o que elas escreveram, e é dessa forma que acontecem
praticamente todas as apresentações nessa turma, com pouco ou nenhum debate e muita
dispersão, elas/es não parecem muito interessados. Ela diz: “Pau que nasce torto, nunca
se endireita. Menina que requebra, a mãe pega na cabeça’. Essa parte ta falando que
menina que dança não presta não tem valor e que a mãe tem que ficar em cima dela.
Também marcamos: ‘Segure o tchan Amarre o tchan Segure o tchan tchan tchan Tchan
tchan’ e aqui a gente acha que tá falando sobre violência sexual. ‘Tudo que é perfeito
A gente pega pelo braço Joga ela no meio Mete em cima Mete em baixo’, isso está
falando como se a mulher fosse um objeto que seria obrigado a fazer o que o homem
quiser. E o último é ‘Depois de nove meses Você vê o resultado’, pode falar exatamente
o que a gente escreveu, professora?”, pergunta Ana Luiza rindo. Digo que sim, pedindo
para que continue. Ela finaliza: “depois do abuso sexual o cara fode com a vida da
mulher que sofreu um abuso, engravidando ela”.
É a vez de Luiz e William, que analisaram a música “Faixa Amarela”. Luiz lê
rapidamente o que eles haviam feito: “a gente marcou ‘Mas se ela vacilar, vou dar um
castigo nela. Vou lhe dar uma banda de frente, quebrar cinco dentes e quatro costelas’
e isso ta incentivando a violência contra a mulher”. Sem nenhum comentário chamo o
próximo. Gustavo fez o trabalho sozinho, aliás ele senta em um lugar completamente
isolado da sala e raramente se comunica com outras/os alunas/os. Ele pediu para que
eu lesse sua resposta, assim o fiz: “gente, o Gustavo analisou a música ‘Mesmo que
seja eu’ e ele marcou o verso ‘Antes mal acompanhada do que só’. Sobre o verso ele
103

disse o seguinte ‘esta frase fala que é melhor a mulher ficar com qualquer um do que
ficar sozinha’.
Quando começo a chamar os próximos grupos percebo que eles não fizeram a
atividade e já quase no fim da aula acabamos ficando sem discutir quatro das músicas
propostas. Os grupos responsáveis por “Gol anulado” e “Se eu fosse teu patrão”, não
chegaram nem a marcar algum verso que tivesse chamado a atenção, tentei perguntar
para os alunos responsáveis por essas músicas porque decidiram não participar da
atividade, mas nenhum deles me respondeu. No caso das músicas “Trepadeira” e “Me
lambe”, os grupos chegaram a marcar alguns versos, mas não escreveram nem quiseram
falar nada sobre eles.
No encontro com a 1802, repito todo o procedimento inicial, depois de cerca de
25 minutos todos os grupos já haviam terminado e começamos as apresentações.
Gabriela me pergunta: “professora é pra ler o que a gente escreveu?”, digo para ficarem
a vontade e apresentarem sua música da forma como acharem melhor. Aproveito e peço
para que o grupo dela comece. Eram parte desse grupo, Ramon, Kiara e a Gabriela que
é quem faz a apresentação. Ela lê o nome da música já rindo: “Trepadeira, do Emicida.
A gente marcou isso aqui ó: ‘Tipo casa das camélia, gostosa!’, ‘(Ô essa nega é
trepadeira, hein)’, ‘E os mano me falava que essa mina dava mais do que chuchu’,
‘Arrasa bi...scate! Merece era uma surra de espada de São Jorge Um chá de Comigo
Ninguém Pode (É, eu vou botar teu nome na macumba viu?! Se segura!)’, ‘Chamei de
banquete era fim de feira’, ‘Mas no fim era uma trepadeira’, ‘Também agora sai fora,
xô xô (Vai embora pode descer a ladeira. Vai, sai, sai andando, não merecia nem esse
rap, gastando tinta com isso aí, tá louco!) Mas que era bom, era’. Horrível essa música,
professora. Trata ela muito mal, de jeito 'medíocre'. Faz ela de gato e sapato, faz com
que ela se sinta uma esquecida, e até mesmo uma Puta”.
Pergunto quem que ser o próximo. Bianca se candidata. Ela, Renan e Carolina
analisaram “Amiga da minha mulher”. Bianca lê: “a gente marcou ‘Se fosse mulher
feia tava tudo certo’, nessa parte ele tem preconceito com a aparência da mulher e ‘Não
pego, eu pego, não pego, eu pego’, ele tá tratando ela como um objeto”. Rafaela pede
para ser a próxima. Nesse grupo estão além dela, Maria e Ana e a música delas foi
“Lôraburra”. Rafaela diz: “a letra todinha é ruim, professora, mas as partes que mais
nos chocaram foram: ‘lugar dessas cadelas era mesmo no puteiro’, ‘Cadelinhas de boate
ou rastinhas de praia Apenas os otários aturam a sua laia’ e ‘Vocês são o mais puro
retrato da falsidade. Desculpa amor, mas eu prefiro mulher de verdade’’’. Pergunto o
104

que elas acharam disso e Ana responde: “ele acha que porque é homem pode dizer
quem é e quem não é mulher de verdade. E é o Gabriel O Pensador heim!?”.
Partimos para o quarto grupo. A música é “Gol anulado” e o grupo é formado
por Thiago, Lucas e Renato. Pergunto qual foi a frase selecionada, quem responde é
Thiago: “Tirei sem pensar o cinto e bati até cansar”, eles têm dificuldade para
apresentar, Thiago em especial apresenta uma enorme lacuna em sua alfabetização e os
outros não ajudam muito. Preciso conduzir a discussão e a análise do trecho destacado
acaba sendo feita pela turma. Quando pergunto, o que vocês acham que esse verso
representa? Eduardo responde: “violência doméstica, professora”.
Em seguida Vinícius, Inácio e Marcelo anunciam a música “Faixa Amarela do
Zeca Pagodinho”. Gabriela diz: “ai a gente tinha que ter pegado o Zeca”, lamentando.
Vinícius lê o trecho destacado: “mas se ela vacilar vou dar um castigo nela. Vou lhe
dar uma banda de frente, quebrar cinco dentes e quatro costelas”. As reações da turma
são de espanto, algumas/uns falam: “pô, que vacilo”, “esperava mais do Zeca”, “e isso
toca no rádio heim!?”. Vinícius conclui: “a gente escreveu isso aqui ó: no pensamento
do homem a mulher só é boa quando faz coisas que agradam ele e quando a mulher faz
algo errado quer agredi-la.”
Eduardo é o próximo, ele fez o trabalho sozinho. Quando anuncio a música
“Segura o Tchan” Julia diz: “É o tchan? Todo mundo dança isso”. Eduardo começa a
ler as frases que destacou: “tudo que é perfeito a gente pega pelo braço. Joga ela no
meio, mete em cima, mete em baixo. Depois de nove meses, você vê o resultado”, em
seguida ele nos diz qual foi seu comentário sobre isso: “A música fala sobre forçar a
mulher ao que ela não quer, e fala que a mulher tem que ser estuprada”.
Quem vai agora? Pergunto eu. João se disponibiliza, no grupo estão, ele, Luan
e Tomaz e a música é “Se eu fosse teu patrão”. João começa a leitura, a medida que
eles vão lendo as partes marcadas, já leem logo em seguida qual foi o comentário que
escreveram: “Aí, eu tratava Como uma escrava Aí, eu não te dava perdão Te rasgava a
roupa, morena Se eu fosse o teu patrão. Nessa parte ele tratava ela muito mal”. Luan
segue a leitura: “Quando tu quebrava E tu desmontava E tu não prestava mais não Eu
comprava outra, morena Se eu fosse o teu patrão. Aqui ele tá dizendo que não queria
nem saber dela que ele podia pegar a mulher que ele queria”. Tomaz encerra a
apresentação: “Mas se tu cuspisse no prato Onde comeu feijão Eu fechava o teu
sindicato Se eu fosse o teu patrão. Se ela fizesse alguma que ele não gostasse ele botava
ela pra fora de casa.”
105

Chamo Luciana e Júlia. Júlia começa a falar: “olha, a gente marcou quase a
música toda, não vamos ler não tá? Na parte ‘ Sinto muito meu amigo, lhe dizer, mas
ela é de menor. Isso é crime’ fica claro que o homem era estuprador e tinha prazer em
estuprar meninas de dezessete anos ou até menos e ele sabia que isso é crime”. As
próximas são Talita e Sara com “Mesmo que seja eu”. Talita lê a única parte destacada
por elas: “Sei que você fez os seus castelos e sonhou ser salva do dragão. Desilusão
meu bem Quando acordou estava sem ninguém”. Noto que é o único grupo dentre as
três turmas que destaca um trecho diferente, talvez não por acaso o único grupo
formado por mulheres que analisou essa música. Pergunto então porque elas
escolheram esse. Talita me diz: “Quis dizer que tudo não passou de uma ilusão e que
não poderia acontecer. Acho que ele tá falando assim, que toda mulher sonha com um
príncipe e tal, aí quando não consegue é ‘mó’ desilusão, triste”. Percebo na leitura que
elas fizeram um ponto de vista muito baseado numa experiência bem feminina, que
talvez não fosse mesmo ser percebido por um homem.
O último grupo, Samara, Aline e Celina, analisou duas músicas. A primeira
apresentada foi “Levanta o Copo”. Celina é a porta voz delas, ela lê as partes destacadas
e o que elas escreveram: “Gatinha mamadinha vai, corre pro abraço. Levanta o copo.
Dá uma rodadinha, dá um golinho ihhh tá facinho. Taca cachaça que ela libera Se você
tá com medo de pedir um beijo pra ela. É só levantar o copo... ahhh... É muito fácil’. A
gente escreveu: porque o homem pensa que a mulher é um objeto é só deixar ela bêbada
e fazer o que quiser”. A última música é: “Ai que saudades da Amélia”, essa quem
apresenta é Samara. Ela nos diz o seguinte: “a gente marcou ‘Amélia não tinha a menor
vaidade. Amélia que era a mulher de verdade’. Isso é machista, porque o homem pensa
que a mulher é obrigada a fazer tudo o que ele quer e que se ela não for do jeito que ele
quer ela não é de verdade”. Acabamos em cima da hora de sair, então não consigo fazer
uma fala de encerramento e vamos embora.
Após essa atividade reavalio meu planejamento, pois apesar de termos
conseguido realizar a análise de todas as canções propostas na 1902 e na 1802, o
desanimo da 1804 me preocupa e me deixa um pouco decepcionada com a minha
própria proposta. Além dessa questão, fico sem saber se mesmo sem termos tido tempo
de realizar uma discussão que relacionasse mais diretamente essa atividade à anterior,
se essa relação seria feita por cada um. No entanto a possibilidade de um olhar crítico
em relação aos discursos que estão colocados nas músicas já tem grande valor. Ainda
mais entendendo que a música, como qualquer outro discurso social, só ganha
106

significado na medida em que as pessoas, acreditam nele e concordam com essa crença.
Afinal, “significado não é inerente à música como à nenhuma outra linguagem: ambas
são atividades que só são mantidas porque as comunidades de pessoas investem e
concordam coletivamente que seus sinais servem como moeda válida”62 (MCCLARY,
2002, p. 21, tradução nossa). Desse modo parte dos significados que vão sendo
constituídos através do discurso musical, podem se dar na medida em que não
realizamos olhar crítico, ou em que ainda que o façamos, concordemos com eles.
Destaco o fato de que após essa atividade se tornou muito comum que
diversas/os alunas/os me procurassem perguntando se eu considerava essa ou aquela
música machista. Mandavam mensagem pelo WhatsApp, por outras mídias sociais, ou
assim que eu chegava em sala me mostravam letras de canções no celular para que eu
desse a minha opinião. Desse modo avalio como positiva a oportunidade de no coletivo
termos feito essas leituras. Com o decorrer do tempo fui notando como havia sido
significativa a atividade, revertendo o meu sentimento inicial.

3.5 E o que a música tem a ver com isso? Último debate.

Para o último encontro deixei a seguinte discussão: será que a música se


relaciona com a construção das identidades de gênero? No entanto, julguei necessário,
antes de iniciar o debate propriamente dito, que falássemos um pouco desse termo:
identidades de gênero. O que é isso, afinal? O que isso tem a ver com todos os debates
que fizemos até então? Mais uma vez, preparei um material em power point usando,
dessa vez, alguns vídeos para termos esse papo inicial.
A primeira projeção desse material tinha uma pergunta: “você já ouviu alguma
vez o termo identidade de gênero?”, seguida pela apresentação de três vídeos de cerca
de 4 minutos de duração cada um. Esses vídeos foram selecionados por mim para
apresentar o conceito de identidade de gênero segundo a teoria queer. Os três vídeos se
complementam no sentido de afirmar o gênero como uma construção social, ou como
um “ato performativo” dos sujeitos (BUTLER, 2015). O terceiro vídeo fala
especialmente da necessidade de pautar essa questão dentro da escolas. Depois de ver
os vídeos minha ideia era que conversássemos sobre eles e por fim apresentaria a


62
“Meaning is not inherent in music, but neither is it in language: both are activities that are kept afloat
only because communities of people invest in them, agree collectively that their signs serve as valid
currency.”
107

pergunta que norteou essa minha investigação. Nesse momento vou narrar as discussões
relacionadas aos conceitos apresentados, os comentários sobre o material usado e
também as ideias trazidas pelas/os alunas/os.
Inicio essa última etapa na 1902 no dia 21 de julho. Começo a aula como já é
quase protocolar, lembrando-os de que esse é um debate, no caso o último, de uma série
que elaborei por conta da pesquisa de mestrado. E que todos esses encontros estão
sendo registrados em áudio e posteriormente serão descritos por mim através da
etnografia. No primeiro momento, projeto a pergunta inicial: “você já ouviu falar em
identidade de gênero?”: a maioria delas/es responde que sim. Digo que começaremos
assistindo três vídeos, peço que guardemos nossos comentários para o final e assim
acontece. Assim que terminamos, Maria pede a palavra ela nos diz: “tem um monte de
gente que morre por causa dessas coisas de gênero né!? Matam travestis e também
matam muitos caras em São Paulo só por serem homossexuais”. Maria ainda faz
referência a um crime63 que havia acontecido há alguns dias em uma boate gay em
Orlando, Estados Unidos, onde um atirador matou cinquenta pessoas. Luan interrompe-
a dizendo que tratava-se de um crime de terrorismo, pois o atirador era de religião
Islâmica: “nada a ver com o assunto, foi ataque terrorista”. Luana e Manuela gritam
para ele: “mas a boate era gay, criatura”, “ele escolheu atirar lá porque só tinha gay”.
Mais uma vez o próximo assunto é pautado por Maria, que me pergunta se eu
assisti na novela “Liberdade, liberdade” a cena de sexo entre dois homens. Digo que
não, mas que estava acompanhando as discussões sobre o assunto. Manuela nos lembra
que na novela “Em família”, exibida em 2014, também havia um casal homossexual
formado, entretanto, por mulheres e que a polêmica não tinha sido tão grande e Luana
complementa dizendo que casal de mulheres é “fetiche”. Os assuntos vão se
sobrepondo à medida que outras/os alunas/os vão se colocando. Ronaldo retoma uma
colocação de um dos vídeos que questiona algumas imposições feitas a mulheres e
homens já no início da vida dizendo: “professora, essa coisa de menina ter que gostar
de rosa e menino de azul. Eu agora tô morando na casa da minha tia e como meu quarto
era da minha prima ele é todo rosa”, Luan também fala sobre isso: “verdade! Meu
quarto é todo azul”. Luana ainda finaliza: “só porque você é menino ou menina já é


63
O crime ganhou grandes proporções tanto na grande mídia, quanto nas redes sociais. “Ataque em
boate gay deixa 50 mortos em Orlando, nos EUA” (G1, 2016).
108

pressionada a ser isso ou aquilo, tipo menino tem que ser pegador, menina tem que ser
princesa”.
A gente segue conversando sobre vários casos que surgem provocados pelos
vídeos. Conversamos sobre casos de pessoas trans que ganharam espaço na mídia como
Thammy Miranda, empresário e ator citado por Renata, que viveu sua transição
publicamente por ter se tornado conhecido do público ainda como mulher e ter, com
sua vida exposta, primeiramente assumido sua homossexualidade e por fim decidido
iniciar o processo de transição de gênero tornando-se um homem transgênero através
de cirurgias e tratamentos hormonais. Eu comento com elas/es o caso de Caitlyn Jenner,
atriz, socialite e ex-atleta americana que, por fazer parte de uma família famosa dos
Estados Unidos, as Kardashians, viveu sua transição, de Bruce para Caitlyn sob os
holofotes. Essa família tem seu cotidiano transmitido através de um reality show na
televisão norte americana que já soma doze temporadas (Keeping up with the
Kardashians). Durante a 10ª temporada, Bruce, marido da matriarca da família Kris
Jenner, se assume transexual e realiza o processo cirúrgico de transição, aparecendo na
temporada seguinte já como mulher. Luana encerra esse assunto dizendo que: “o legal
de saber dessas histórias é perceber que é mais comum do que a gente imagina”.
Depois de toda essa conversa decido fazer a pergunta final: “entendendo que
para além do sexo a constituição do gênero é um processo, que acontece dentro de cada
um, misturado com o que a gente é, o que a gente vive... O que vocês acham que a
música tem a ver com isso?”. Ficamos todos em silêncio durante alguns minutos.
Notando que havia dúvida sobre a minha questão, pergunto se elas/es desejam que eu
explique o que eu quero saber de outra forma, a resposta é positiva. Tento dar exemplos
para ver se fica mais claro e digo: “tipo, pensem nas músicas que a gente analisou, todas
elas tinham ali alguma forma de violência contra a mulher representada. Vocês acham
que isso é capaz de influenciar na forma como uma pessoa vai se sentir no mundo? Se
vai se sentir homem ou mulher, ou que tipo de homem ou mulher essa pessoa vai ser?.
Ou, por exemplo, vocês já ouviram a música “Ela só quer paz do Projota”? Ele fica o
tempo todo dizendo como uma mulher tem que ser pra ser perfeita, vocês acham que
isso de algum modo influência a forma como as mulheres acham que tem que ser pra
serem mulheres?”.
A primeira colocação é do Ricardo, ele diz que “a música é uma forma de
expressão, então que ela não influencia não, mas ela já afirma que as pessoas são assim,
ela diz como as coisas são”. Logo em seguida Guilherme fala: “sobre a música do
109

Projota, ele fica mesmo dizendo como uma mulher tem que ser, mas isso não pode ser
a opinião dele, o que ele acha da mulher?”, e Luana responde: “acho que o problema é
que ele fica comparando, dizendo que a menina que não for igual a essa não presta”.
Sigo tentando propor reflexões, pergunto então: “vocês acham que a gente escolhe
ouvir um determinado tipo de música por conta do que a gente é, ou que a gente se
torna o que a gente é porque escuta determinado tipo de música?”. Elas/es demonstram
não ter entendido a pergunta, tento exemplificar dizendo: “eu Bárbara, uma pessoa fofa
e amável. Eu ouço música pop porque eu sou fofa e amável? Ou eu sou fofa e amável
porque eu ouvi muita música pop?”, elas/es dão risada, Carlos diz: “você não é fofa”,
o clima na sala fica descontraído. Luan então se apressa em dizer: “pô, o favelado não
é favelado porque escuta funk. Ele é porque mora na favela e é por isso que ele escuta
funk”, Ricardo se contrapõe dizendo: “tu não conhece todo mundo da favela, nem todo
mundo que escuta funk, tá falando merda, tu não conhece”.
As respostas são variadas, algumas/uns dizem que sim, outras/os dizem que não,
mas são tantas vozes ao mesmo tempo que fico me esforçando para conseguir entende-
las/os. É uma pena, fico com a impressão de que é nessas conversas que acontecem
entre elas/es que as colocações mais interessantes são feitas . Peço para que tentem
organizar as falas de modo que eu possa ouvi-las/os melhor. Luana então diz:
“professora isso é complexo, mas eu acredito que a gente escolhe ouvir um tipo de
música por conta da nossa personalidade”, Ronaldo acrescenta um outro elemento:
“muitas vezes quando a gente faz parte de um determinado grupo, a gente escuta aquela
música por influência e não exatamente por escolha e aí eu acho sim que a gente pode
ser influenciado por aquilo que nos acostumamos a ouvir”. Sara, uma aluna nova em
sua primeira aula na turma também marca sua posição, ela diz que isso vai depender da
pessoa. Ouço Renata conversando, mas ela não fala para mim, mas sim com as colegas
sentadas ao seu lado: “é tipo a roupa que você usa, ela não diz quem você é. Por acaso
você é puta só porque usa short curto?”
Peço pra elas/es pensarem nas mulheres mais especificamente e em todas as
discussões que fizemos que tratavam das opressões que vivenciamos durante a vida na
sociedade, tentaríamos seguir uma reflexão baseados nisso. Pergunto se elas/es
acreditam que as músicas que retratam essas opressões, violências, como por exemplo
as que analisamos na outra aula, podem influenciar comportamentos, ou incitar as
pessoas a práticas machistas. A conversa acaba parando no funk. Luan fala:
“professora, acho que influencia sim, por exemplo, querendo imitar as coisas que os
110

funks putaria dizem tem um monte de menina que sai dando por aí”, e Ronaldo
concordando diz: “é, não só o funk, mas a música mais sexualizada que muitos
adolescentes ouvem hoje incentiva as pessoas”. Manuela apresenta um contraponto,
segundo ela: “a pessoa faz sexo porque tem vontade, não porque ouve uma música”,
Luana e Maria se colocam concordando.
Tento evitar intervir nesse momento, mas me chama a atenção a dureza com a
qual elas/es falam do funk e então falo isso. Quando perguntei se elas/es achavam que
a música influenciava as nossas atitudes e o exemplo foi dado com a música pop a
maioria das respostas foi negativa, já quando começaram a usar o funk como exemplo,
pessoas que antes tinham respondido de forma negativa pareceram ter mudado de ideia.
Faço essa reflexão junto a elas/es e pergunto se conseguem saber o porque disso.
Ricardo responde: “professora é porque funk é música de pobre, e tudo que é de pobre
é ruim”, instantaneamente Ronaldo diz: “não tinha pensado nisso”. Manuela ainda faz
uma última colocação a esse respeito: “quando é pra tocar na rádio o proibidão vira
funk melody”, Renata também participa do assunto: “tem Mc que já foi preso porque
canta sobre o tráfico, mas isso é a realidade da favela, ele tá só falando a verdade”. As
conversas sobre o funk sempre geram muitas questões.
Nos aproximamos da hora do final da aula e tento voltar à pergunta inicial pra
buscar uma finalização. Pergunto se elas/es acham que há consenso: se achamos que a
música pode influenciar nosso processo de construção de identidade de gênero, no
sentido de tornarmo-nos ou não uma mulher, dentro do que a sociedade espera que uma
mulher seja, ou homem, dentro do que a sociedade espera que um homem seja. As
respostas me deixam claro, não há consenso, umas/uns me dizem que sim, outras/os
acham que não. O debate chega ao fim.
No dia seguinte era a vez das turmas de 8º ano. Nesse dia nossa aula aconteceu
na sala de música e teatro. Havia poucas cadeiras por lá o que fez com que alguns alunos
se acomodassem nos colchonetes que temos na sala, criando um ambiente bem
informal. Assim como no dia anterior, inicio com a pergunta: “você já ouviu falar em
identidade de gênero?” e da mesma forma a resposta foi positiva. Depois disso
assistimos aos três vídeos. Ao contrário do que havia acontecido na 1902 os vídeos não
geraram discussão. Pergunto se há alguma dúvida, se elas/es entenderam o que tratamos
como identidade gênero e sendo a resposta positiva, sigo adiante. Decido escrever no
quadro a pergunta norteadora do debate. E, falando, a faço da seguinte forma: “será que
111

a música tem alguma coisa a ver com a forma como a gente se identifica como homem
ou como mulher na sociedade?”, ficamos alguns minutos em silêncio.
Marcos rompe o silêncio para dizer: “professora, não tô conseguindo pensar,
difícil, né!?”, tento explicar de outra forma. Como já tinha feito algumas reflexões
depois da aula na 1902 meu exemplo fica um pouco mais focado na constituição do
gênero. Usando o quadro, faço o desenho de uma bonequinha me representando e
começo a escrever algumas características minhas usando a seguinte fala: “eu Bárbara,
cisgênero”, Gabriel completa: “professora”, e eu digo, vamos pensar nas coisas que
podem me definir quanto mulher. Digo: “heterossexual”, Marcos segue: “carinhosa”,
eu respondo “de vez em quando” e ele discorda dizendo: “de vez em quando nada,
sempre. Dá de durona, mas é carinhosa sempre”. Luiz acrescenta: “ciumenta”, Juliana
também “chata às vezes, brigona”, eu me divertindo com todas as características que
elas/es falam sobre mim pergunto: “eu brigo muito?”, ela responde: “tô brincando, só
de vez em quando”.
Continuo a explicação: “aqui tem algumas características minhas, e apesar de
eu ser mais uma infinidade de coisas, parte do que sou, certamente tem a ver com o fato
de eu ter nascido mulher e ter sido submetida a várias coisas que quase sempre
acontecem com qualquer mulher. O sonho em ser princesa, o amor ao rosa, o destino
do matrimônio e outras coisas. Será que as músicas que eu ouvi durante a minha vida
me influenciaram a ser todas essas coisas?”. A resposta é um sonoro: “não”, que parte
de várias/os alunas/os. Uso uma mesma pergunta do dia anterior: “vocês acham que eu
sou uma pessoa fofa, porque eu ouvi muita música pop, ou que eu ouvi muita música
pop porque eu sou uma pessoa fofa?”. Marcos responde: “você ouviu muita música pop
porque você é uma pessoa fofa. Porque a música não influencia no que a pessoa é”,
Gabriel concorda: “exatamente, só porque uma pessoa ouve funk que é uma música da
favela não quer dizer que ela é favelada”.
Relembro a discussão da aula em que analisamos as letras das músicas e
pergunto: “será que a música através da história foi usada pra reproduzir as ideias que
a sociedade tem sobre o que é ser mulher ou ser homem?”. A resposta é dada por
algumas/uns: “sim”, “um pouquinho” e “de leve” são expressões que escuto. Faço outra
pergunta: “e de que forma vocês acham que isso é feito?”, Marcos responde ”ah! Se eu
faço uma música sobre qualquer ideia ou comportamento que eu queira influenciar no
mundo, se uma pessoa influenciável ouvir ela pode passar a pensar daquela maneira” e
112

ele ainda pergunta: “professora você não vai dar a sua opinião não?”. Respondo que,
por enquanto, prefiro ouvi-los.
Faço mais uma pergunta: “vocês acham que as pessoas são julgadas pela
sociedade pelo tipo de música que elas ouvem?”, a resposta é sim. Pergunto também se
nesse caso elas/es acham que esse julgamento é igual pra mulheres e homens: dessa
vez, a resposta é não. Pergunto o motivo e quem me responde é Mariana: “porque pra
sociedade a mulher tem que ser mais meiga”. Ela é interrompida por Marcos, que diz:
“por exemplo homem pode ouvir funk de boa, mas se mulher ouvir é piranha”.
Tento criar um cenário comparativo entre as turmas ao propor uma reflexão
sobre o funk, já que é sempre uma questão que aparece nos debates. Pergunto se, caso
o gênero musical escolhido pela nossa bonequinha desenhada no quadro fosse o funk,
todas as respostas seriam as mesmas. Ou seja, se eles acreditavam que uma menina
ouvia funk por conta das suas características e gostos ou se ela tinha construído seus
gostos e características porque ouvia funk. A resposta da turma é a mesma: ela escolhe
ouvir funk por conta de quem ela é, a música não a influencia. Gabriel se coloca
dizendo: “professora eu sei que tem preconceito, mas acho que o que a gente tem que
evitar é de achar que todo mundo que ouve funk por exemplo é favelado (usando o
termo com conotação pejorativa significando, escandaloso, bagunceiro), mesmo que a
pessoa more na favela, quer dizer, ficar generalizando”.
A minha última pergunta é: “então vocês acham que a música não influencia
ninguém?”, Marcos e Gabriel falam juntos: “depende da personalidade da pessoa”.
Marcos ainda complementa: “tem gente que é influenciável e pode ser influenciado por
qualquer coisa". Juliana encerra o debate com a seguinte fala: “não tem nada a ver. Por
exemplo, o que eu acredito: se um menino é gay ele já nasce gay, só que quando ele vai
crescendo ele vai descobrindo isso. E no caso da mulher, não acho que influencie em
nada, porque a pessoa é o que ela quer ser, não o que eu mundo quer que você seja”.
Gabriel a interrompe e fala: “mas tem gente que não é assim”, e ela continua “eu por
exemplo não sou assim, eu tenho o meu caráter, que eu formei no convívio com a minha
família, meus amigos, minha base, não é a música que vai mudar isso em mim”. A
turma, no seu clima descontraído, bate palmas. Faltavam apenas dez minutos para o
final da aula, peço para que organizem a sala e levo-as/os de volta para a sala da turma.
Nos dois últimos tempos desço com a 1802 para a sala de música e teatro.
Apresento a pergunta inicial e, mais uma vez, a resposta é positiva: todos já ouviram
falar em identidade de gênero. Apresento os vídeos e, assim como na 1804, eles não
113

geram discussão alguma. Lanço então a pergunta chave fazendo, antes, a seguinte
reflexão: “de acordo com essa teoria, esses estudos apresentados pelos vídeos que
assistimos, a construção da identidade de gênero vai acontecendo socialmente.
Pensando dessa forma, vocês acham que a música tem alguma relação com esse
processo? Tem alguma coisa a ver, por exemplo, com a forma como a gente se constitui
mulher no mundo?”, ouço duas respostas ao mesmo tempo: Artur diz que sim, enquanto
Lucas diz que não. Tento provocar um aprofundamento da discussão, mas ambos me
parecem meio envergonhados. Até que Lucas diz: “acho que não tem nada a ver, cada
um escuta a música que quiser” e Rita se coloca: “influencia sim”. Pergunto o porquê
e ela diz que prefere não opinar.
Sigo a estratégia usada na aula anterior: desenho no quadro a bonequinha para
me representar, escrevo minhas características e pergunto: “eu gosto de música pop.
Vocês acham que eu ouço música pop por causa disso tudo que eu sou, ou eu sou tudo
isso porque eu ouço música pop?”. Artur responde: “Nenhum dos dois”; pergunto o
porquê e ele diz: “acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra”. Rafaela também
dá sua opinião: “isso tem a ver com a sua personalidade" e Ana fala: “depende da
música”. Artur fala: “acho que não to entendendo, professora” e eu tento facilitar
dizendo: “por exemplo, eu sempre ouvi muito Sandy e Junior, e nessas músicas eram
contadas várias histórias de amor, essas histórias eram sempre protagonizadas por
casais heterossexuais, você acha que isso teve alguma influência no fato deu ser
hétero?”. Ele diz: “ah! Agora eu entendi”.
Convoco Ana, que havia dito que “depende da música”, a falar um pouco sobre
isso. Ela nos traz a seguinte reflexão: “por exemplo tem música assim que fala com a
mulher, mas tem homem que escuta, e não deixam de ser homem por isso, por exemplo
a Beyoncé”. A discussão não continua de forma fluida, percebo a necessidade de
estímulos para que ela aconteça. Decido mais uma vez perguntar: “se a minha
personagem aqui desenhada no quadro, ao invés de gostar de pop, gostar de funk, a
opinião de vocês muda?”. Artur responde: “completamente”, ele não é o único, Rita,
Ana, Rafaela, Lucas e João concordam com ele. Pergunto o porquê da mudança de
posição e Artur me diz: “ah professora, porque o funk dita a modinha, eles dizem e aí
todo mundo quer repetir, não vê a Daniela”, se referindo a uma colega, todas/os riem.
João também se coloca: “não vê, funk fica falando de sexo e lá vai as novinhas”, Ana
discorda dele dizendo: “nada a ver, faz porque quer, porque tem vontade”, “vocês não
ficam falando que o Lucas fuma maconha só porque ele escuta reggae”. Ramon
114

continua na mesma defesa de João: “vocês acham que um funk só de sexo não
influencia as pessoas a fazer?”, Rita responde: “influencia se você quiser”.
Artur me chama e fala: “professora, por exemplo tu acha que uma pessoa que
fica ouvindo uma música lá, tá monitorado (se referindo ao funk “Passou cracudo na
televisão” do Mc Rodson), tu acha que a pessoa não vai ficar com vontade de entrar pra
vida bandida!?”, nem respondo e outros colegas já travam o diálogo. Ana diz “pô acho
que não”, ele retruca: “eu acho que sim”. Ele ainda segue defendendo sua tese: “lá no
Guarda64 são muitas as pessoas que entram pro tráfico, e eu tenho vários amigos que
entraram por causa de música mesmo, eles ouviam e achavam maneiro”. Tento
redirecionar a conversa às questões de gênero. Tenho que esperar alguns minutos pois
a discussão acontece entre eles e não consigo mais acompanhar.
Percebo que temos nessa turma uma maior heterogeneidade de percepções. O
tempo todo elas/es perguntam o que eu penso: digo que prefiro ouvir mais e falar
somente ao final se der tempo. Digo que estou contente com a participação e peço para
que tentemos pensar mais nas questões de gênero e sexualidade. Rafaela, então fala:
“professora, então antes do funk falar sobre sexo, música nenhuma falava e não tinha
problemas? Tipo adolescente grávida?”. Rita é quem responde: “não, nada disso,
porque a minha mãe me teve com quinze anos” e em seguida, algumas/uns outras/os
alunas/os fazem o mesmo tipo de colocação, dizendo que haviam nascido quando suas
mães tinham, quatorze, quinze e dezesseis anos. Ana diz: “professora eu não sei como
era antes, mas agora é tudo modinha, se o funk fala que é legal, geral faz, geral quer
ser”. Tento sistematizar todas as falas e pergunto: “então quer dizer que vocês acham
que essa influência da música na vida, na formação acontece exclusivamente do funk e
em relação ao sexo e ao tráfico?”, elas/es não me respondem. As conversas atingem um
volume que tornam a continuação da atividade impossível, aguardo.
Depois de vários minutos esperando silêncio, Lucas pede a palavra. Ele havia
falado bem pouco durante o debate, e estava com os fones no ouvido durante todo o
tempo, mas pede a palavra: “professora posso falar uma coisa? Eu não concordo com
nada disso. Acho que é a família, a personalidade, o caráter que vão fazer você ser o
que você é. A música não influencia isso em nada. Muitas vezes, a gente ouve música
que fala pra gente fazer isso, fazer aquilo, que é legal ser assim ou assado, mas a gente
curte mesmo é o som, sabe!? Ouve porque acha maneiro e nem sempre porque concorda


64
Favela situada na zona norte da cidade.
115

com o que tá dizendo. É cada um cuidando da sua vida”. Faltando poucos minutos para
o final da aula, uso a fala do Lucas para encerrar.
Ao final dos três debates saio da escola em reflexão. Encontrei em todos os
grupos posições divergentes, não haveria de ser diferente dada a heterogeneidade da
escola. Nesse debate final, especialmentem percebo que fizeram parte das falas
questões que haviam sido parte das aulas anteriores. Aconteceram debates sobre a
música como agente de um discurso, que pode naturalizar a violência contra a mulher,
ou impor padrões femininos estabelecidos pela cultura machista. A discussão recorrente
acerca das preferências musicais, em grande parte provocada por mim, em função da
escolha do meu exemplo que questionava a possível causalidade entre meu gosto
musical e algumas das minhas características. Nessa discussão acerca das preferências,
percebo questões importantes, como por exemplo: a defesa do gosto como definidor de
identidade, a perspectiva da construção do gosto através da experiência social e também
a defesa da definição da preferência musical através da identificação somente com
aspectos sonoros, compreendendo o conteúdo da letra como elemento à parte disso.
As implicações das preferências musicais nas nossas vidas também foi pauta
desse debate, não somente em relação à identidade de gênero, como em outros aspectos,
chamados por elas/es de personalidade, caráter, ou ações e comportamentos. No fim do
processo, digo: não há uma resposta exata para a minha pergunta. A compreensão das
relações que estabelecemos com a música em nossas vidas é variável. De fato, não
esperava encontrar resposta exata, até porque ela não existe. No entanto, realizamos a
tarefa de dentro do coletivo, produzir conhecimento sobre o tema. Propor um olhar
crítico sobre a música. Buscar formas de identificar desigualdades pautadas mesmo
quando parecem ser invisíveis. Nos colocarmos atentos. Esse trabalho teve
desdobramentos que contarei na conclusão.
116

CONCLUSÃO

Para começar a conclusão desse trabalho, retorno às experiências que aos


poucos me levaram a ter o desejo de realizar a presente pesquisa. A forma como via as
desigualdades de gêneros serem reproduzidas na escola e a violência que era reservada
àqueles que fugiam à norma eram constante motivo de reflexão para mim. Não
conseguia me conformar diante do sofrimento dessas/es estudantes que eram postos à
margem, e nem com o pouco movimento que se fazia no sentido de transformar a
realidade, mesmo quando as pessoas se diziam atentas à ela. Entendi que uma forma
possível de repensar essas práticas e construir conhecimento que seja útil à luta por
transformação dessa realidade em uma outra onde cada sujeito possa ser livre para viver
seu gênero e sua sexualidade como desejar, poderia ser através do convívio cotidiano
com as/os estudantes.
Essa compreensão se deu através do meu encontro com Freire (1996, 2005) e
uma concepção de educação que, além descentralizar a ideia da produção de
conhecimento da figura da/o docente, afirma a necessidade e o potencial transformador
de uma educação amorosa, comprometida com a libertação, com a autonomia. Uma
proposta de respeito aos diferentes conhecimentos presentes na escola, que estimula a
constante reflexão acerca da prática ao entender o homem como ser inconcluso. Ao
acreditar que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se
educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2005, p. 78) é exatamente a
forma como eu vinha tentando ser professora na escola que me leva ao lugar que eu
gostaria de ocupar também como pesquisadora.
A pesquisa-ação participativa, metodologia diretamente relacionada à
concepção de educação apresentada em Paulo Freire, me possibilitou a construção de
uma forma de fazer pesquisa que se alinhasse à minha atuação dentro da escola.
Busquei realizar um trabalho etnográfico colaborativo que tivesse potencial para dar
voz e autoridade aos estudantes, através de processos que significassem
empoderamento (LASSITER, 2005, apud ARAÚJO, 2014). A forma como apresento
esses diálogos faz parte da minha necessidade de mudar a concepção da etnografia
musical, deslocar-se da “coleta de campo” e da “tradução de pensamento e taxonomias
nativas”, realizar pesquisa com mais reflexividade, construindo uma melhor relação
entre pesquisador e pesquisado. Quis intensificar uma relação mais próxima e menos
dominadora ou opressora. Busquei construir “texturas polifônicas” no texto
117

etnográfico, além de me sentir parte do coletivo que compõe esse texto, de ser o “outro
entre nós” e assumir uma postura reflexiva constante, que me faz não me perceber como
representante das/os turmas dessa escola, respeitando suas vozes como parte
fundamental na construção do texto etnográfico. Essas posições fazem parte do
caminho que tento traçar para fazer pesquisa com compromisso radical com a mudança
social e com o rompimento do statu quo, como propunham Freire e Fals Borda.
(ARAÚJO, 2014)
O compromisso com a transformação social e com o rompimento com o statu
quo é também e o que me leva a teoria queer. Uma teoria que surge na militância
política de grupos minoritários em sua luta por direitos, que significa reação, resistência
(MISKOLCI, 2016) e que chegando ao Brasil tem grande espaço no campo da
educação, compondo uma proposta subversiva e provocadora de educação (LOURO,
2016). Significando o questionamento de normas como a heteronormatividade, a
heterossexualidade compulsória e também a abjeção, que presentes na escola são
obstáculos no sentido da construção de uma “educação libertadora” (FREIRE, 2005).
Todo esse corpo teórico que fez parte dessa pesquisa foi o suporte que garantiu
que fosse possível que nossos diálogos cumprissem o papel de se tornarem as bases nas
quais nos apoiávamos ao pensar gênero instáveis, gerando assim o processo de reflexão.
A minha conclusão sobre a validade da pesquisa custou a aparecer. Acredito na
dissertação como uma forma de comunicar o processo de investigação, onde também
existe produção de conhecimento, e quando percebo o quanto em mim todo o percurso
se fez transformador. No entanto, é nas ações/reflexões engendradas no cotidiano que
acredito estar o conhecimento mais potencial desse trabalho. Somente na última aula
do ano pude ter essa certeza da dimensão disso.
A forma como consegui realizar essa reflexão final partiu de uma atividade que
eu, a principio, não entendia como parte da pesquisa. Como em todos os anos, na última
aula solicitei às/aos estudantes das 3 turmas que fizessem uma avaliação dos nossos
encontros durante todo o período letivo. Pedi para que atribuíssem uma nota às aulas
de música como um todo e justificassem essa avaliação. Para que me dissessem a
melhor e a pior aula do ano e para que sugerissem formas através das quais eu poderia
melhorar o meu trabalho. Essa solicitação, despretensiosa, me deu algumas respostas
que faltavam. Foram 51 avaliações realizadas, dentre as quais, 39 citavam alguma das
4 aulas realizadas durante o ciclo de debates propostos pela pesquisa como a melhor
aula do ano. Tendo sido as mais citadas o terceiro debate, em que analisamos as letras
118

das canções e a última em que discutimos as relações entre a música e a construção das
identidades de gênero. Dentre as justificativas apresentadas por elas/es para eleger essas
aulas como as melhores, estavam: “foi boa pois foi uma oportunidade de aprender sobre
coisas que estão do nosso lado, mas parecem desconhecidas”, “é muito importante
discutir sobre isso para lutarmos contra a homofobia”, “porque me ajudou a repensar o
meu lugar no mundo e o meu modo de estar no mundo”, “porque a gente pode falar”,
“uma forma de entender melhor a música”. De todas as avaliações, um aluno disse ter
sido o último debate a pior aula do ano, sua justificativa foi a seguinte: “me senti
incomodado vendo um vídeo de um travesti falando”.
Cabe ressaltar que todo o nosso processo de reflexão é perpassado por uma
concepção de música. Me parece evidente que na maioria dos momentos de discussão
ela se apresenta com ênfase no sentido da letra, sendo parte fundamental da constituição
da nossa compreensão de cada música. Esse caminho traçado por nós, suscita um debate
quanto aos limites da análise musical baseada nas letras e da música enquanto realidade
sonora independente delas. Acredito que essa seja uma questão relevante a ser
desenvolvida, no sentido de compreender quais são as justificativas culturais que
constroem nesse espaço essa concepção de música, no entanto não a questiono e é com
base nela que todo nosso trabalho é desenvolvido, afinal não seria coerente com a
metodologia de pesquisa escolhida tentar intervir de modo a mudar a concepção
presente naquele espaço. O que, no entanto, não nos impede de conversar sobre outras
possibilidades de análise. Pensar sobre essas diferentes formas de olhar a música seria
um outro objeto interessante de investigação, que ultrapassaria os limites desse
trabalho, mas que seria de fato relevante.
Um outro momento importante para essa conclusão foi no mesmo dia em que
fizeram a avaliação, a apresentação do trabalho às/aos alunas/os, levei os diálogos
impressos para quem tivesse o desejo de ler, conversei sobre as etapas de mestrado e
também, detalhadamente, sobre a escrita da dissertação, sua estrutura, de que forma
escrevo, quanto tempo levo para escrever, quantos livros eu li. A maioria delas/es não
quis ler tudo, deram uma olhada, perguntaram se eu escrevi todas as frases ditas por
elas/es, respondi que sim, todas que eram audíveis. Conversamos sobre o porquê da
necessidade de autorização para publicação, e todas/es muito orgulhosos diziam se
sentir importantes em fazer parte dessa história.
Ressalto ainda que, apesar de mesmo depois do término das discussões
direcionadas às questões de gênero, continuarmos sempre conversando sobre isso, a
119

cada nova música que elas/es me propunham trabalhar nas aulas, sempre surgiam
análises sobre de que forma era retratada a figura da mulher e então, pensávamos como
isso vinha sendo comum mesmo em músicas feitas atualmente, apesar de as discussões
sobre feminismo estarem muito pautadas nas redes sociais, principalmente. Tendo
havido discussões sobre se deveríamos ou não cantar uma música que impunha uma
norma de comportamento às mulheres. Ainda que, como já comentei durante a
etnografia, eu recebesse inclusive mensagens pelo celular quando estava em casa de
estudantes que me perguntavam se eu considerava determinada música machista ou
não. E de me procurarem pela escola pelo mesmo motivo. Foi somente quando li as
avaliações que tive certeza.
Havíamos construído juntos nossas percepções sobre música e gênero. A partir
disso, passamos a estar mais atentos. Dessas turmas, surgiram propostas de realização
de assembleia estudantil para que pudessem propor debates entre elas/es. Entendemos
então, a necessidade de travar nossas lutas por igualdade seja de gênero, de raça ou de
classe. Por fim, nos reconhecemos enquanto coletivo. Elas/es me acolhendo em espaços
extra-sala de aula, correspondendo-se comigo por redes sociais ou me solicitando fora
dos momentos das aulas para discutir questões de caráter político ou pessoal. Eu me
disponibilizando para essas demandas. Tentando extrapolar os limites da sala de aula e
também os limites da universidade, reconheço o tamanho desse desafio. Mas sigo
acreditando na possibilidade de fazer pesquisa, de conceber o processo educativo e o
fazer musical como parte de um compromisso com a transformação social.
120

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ataque-em-boate-nos-eua-deixou-50-mortos.html >. Acesso em: 11 set. 2016.

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