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Devir cão [ou, a mordida dos Cínicos] –


Razão Inadequada
Escrito por Rafael Trindade
6-8 minutes

Os Cínicos fazem parte de uma escola socrática menor que surgiu


após a morte de Sócrates, por volta de 399 a. C.. Dentre sua figura
de maior representação está Diógenes de Sínope. A palavras
“cínico” vem do grego, Kynos, que significa “cão”. Há inúmeras
teorias que tentam explicar porque os Cínicos teriam ganhado este
apelido, mas a mais provável e direta é porque eles simplesmente
viviam e se comportavam como cães.

Certa vez, Alexandre foi até ele, postou-se à sua frente e disse-lhe:
‘sou o rei Alexandre, o Grande’. Ele replicou: ‘e eu sou Diógenes, o
Cão’. Quando lhe perguntaram o que costumava fazer para o
chamarem de cão, ele respondeu: ‘abano a cauda para os que me
dão; ladro para os que me negam; e mordo os perversos'” –
Diógenes de Laércio, A Vida dos Filósofos

Os Cínicos têm uma missão, eles se portam como cães de guarda,


latindo e procurando mostrar àqueles que estão em volta a
hipocrisia e insanidade na qual transformaram suas vidas. A
postura cínica consiste em morder a perna do homem, mostrando a
eles sua verdadeira natureza, ao invés de as deixarem afundar
cada vez mais em sua depravação.

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No kynikos, as animalidades são uma parte de sua autoestilização.


Mas são também uma forma de argumentar” – Peter Sloterdijk –
Crítica da Razão Cínica, p. 158

O devir cão não passa pelos poodles de madames, histéricos e


mimados. Diógenes de Sínope, por exemplo, é um cão de caça.
Ele está sempre atento, sempre à espreita: late para os ignorantes,
mas respeita os sábios; rosna com ferocidade para os poderosos,
mas chama a atenção amigavelmente mordendo a barra da calça
de seus amigos. O Cínico é odiado por muitos e admirado por
poucos porque ele, e apenas ele, suporta a vida que impôs a si
mesmo.

O cínico é o homem do cajado, é o homem da mochila, é o homem


do manto, é o homem das sandálias ou dos pés descalços, é o
homem de barba hirsuta, é o homem sujo. É também o homem
errante, é o homem que não tem nenhuma inserção, não tem casa
nem família” – Foucault, Coragem da Verdade, p. 148

Para a filosofia dos Cínicos, a ordem: “animal – homem – Deus” é


subvertida. É preciso trocar de lugar o homem com o animal. Por
isso, para eles, a animalidade é uma evolução em relação à
cultura. A cultura é o que afasta o homem da natureza, caminho
reto e necessário para a felicidade. Por isso um representante do
cinismo realiza suas necessidades naturais na frente de todos sem
se envergonhar: come quando tem vontade, dorme onde encontra
espaço, se masturba quando precisa. As necessidades naturais
devem prevalecer sobre as convenções, costumes e normas.
Diógenes assumiu o apelido de cão como se este fosse seu
verdadeiro nome, porque a natureza é maior que a cultura e os
costumes.

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Para não ser inferior ao animal, é preciso ser capaz de assumir


essa animalidade, como forma reduzida mas prescritiva de vida. A
animalidade não é um dado, é um dever” – Foucault, Coragem da
Verdade, p. 234

Alexandre e Diógenes, por Edwin Henry Landseer

Para devir cão, os cínicos se serviam de quatro preceitos:

1. Vida impúdica: um cachorro não tem vergonha de si, ora, sigamos


o exemplo. Tudo que se fizer em particular, que também se faça
em público! Não há razão para envergonhar-se da natureza, não
há razão para não se mostrar como se é. A natureza é a única
realidade, por que não afirmar o que se é? O Cínico se masturba
em público, não mede suas palavras não importa com quem esteja
falando (Parresía), não se preocupa em escandalizar as pessoas.
Somente os cães e os cínicos ousariam agir assim: “O animal

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político rompe a política do pudor. Ele mostra que, de um modo


geral, os homens têm vergonha das coisas erradas” (Peter
Sloterdijk – Crítica da Razão Cínica);

2. Vida indiferente: os Cínicos não se importavam com a maioria das


coisas que os ateniense davam valor: riqueza, prestígio. Se fosse
hoje, Diógenes zombaria daqueles com roupas de marca,
desfilando com seus Iphones, preocupados com seus deuses
(dinheiro, time de futebol, bandas de rock). Um cão não se
preocupa com outra coisa além de um chão para dormir e um prato
de comida para se alimentar, não se prende a nada e contenta-se
com o que tem;

3. Vida militante: devir cão é também encarregar-se de uma missão,


é um entrar para uma guerra, estar sempre preparado para a luta.
A batalha dos cínicos é travada diariamente onde quer que seja, no
teatro, nas praças, na feira, na Ágora. Seu campo, seu front, seu
ringue é todo lugar, por isto ele está sempre ativo, olhando ao
redor, farejando;

4. Vida zelosa: o cão é fiel e cuida do homem, o faz seguir pelo


melhor caminho, mostra os perigos, reconhece seus aliados,
protege a vida de seus amos.

Por isso o devir cão não cede a um dos maiores perigos que
Zaratustra também enfrentou: o nojo do homem. Não, Diógenes
permanece atento, à espreita, sempre no meio do povo, no meio
dos gregos que o amam e desprezam ao mesmo tempo. O nojo do
homem, este é um dos grandes perigos daqueles que criticam os
valores vigentes. Mesmo assim, Diógenes é um cão que ladra, mas
também é fiel.

Por que não comer onde quer que sentisse fome? Por que não

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urinar sempre que sua bexiga estivesse cheia? Por que não
satisfazer sua volúpia sexual sempre que sua disposição física o
exigisse? Por que bajular os desejos dos outros e se resignar às
regras artificiais deles? Se insistiam em chamá-lo “Cão”, estavam
corretos, já que ele era um cão e como tal se comportava” – Luis
Navia, Diógenes, o Cínico, p. 80

Diógenes, por Jean Léon Gérôme

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