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(Re)conhecendo o sagrado
Reflexões teórico-metodológicas
dos estudos de religiões e religiosidades
Adone Agnolin
Cristiana Tramonte
Edgard Leite
Franco Delatorre
Mundicarmo Ferretti
Nicola Gasbarro
1
Maranhão Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (org.).
2013
(Re)conhecendo o sagrado. Reflexões teórico-
metodológicas dos estudos de religiões e religiosidades /
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº (org.).
São Paulo: Fonte Editorial, 2013, 289 p.
ISBN: 9788566480672
2
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . 05
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº
Éticas em campo: breves reflexões sobre dilemas éticos entre os campos legislativo e
etnográfico . . . . . . . . . . . 239
Franco Delatorre
Correndo prá Jesus à beira-mar: esporte, religiosidade e cura na Bola de Neve Church.
. . . . . . . . . . . . 261
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº e Talita Sene
4
Apresentação
No primeiro capítulo deste livro Solange Ramos de Andrade pergunta: por que estudar
religiões? Certamente, há muitos motivos para tal, dentre estes o fato de estarmos imersos em
experiências religiosas – nossas e/ou dos/as outros/as. Muitos exemplos contemporâneos
podem ser elencados, como as “guerras santas” combatidas inclusive no âmbito do marketing,
as múltiplas formas de (in)tolerâncias religiosas e o crescimento das bancadas religiosas no
Congresso, especialmente a formada por políticos/as que se declaram evangélicos/as.
Temas como este fazem florescer a cada dia novos trabalhos que procuram dar conta de
atividades de instituições religiosas e de múltiplos agenciamentos subjetivos em busca de
respostas a inquietações e por sentidos de pertença. As religiões e religiosidades,
definitivamente, estão em pauta. Este livro nasceu da percepção da necessidade de (mais)
análises que apresentem perspectivas teórico-metodológicas que auxiliem novas pesquisas e
análises sobre as crenças e sacralidades.
Os três primeiros textos contemplam a História das Religiões – com alguma ênfase na Escola
Italiana das Religiões. Solange Ramos de Andrade apresenta um histórico sobre estes estudos
e algumas de suas possibilidades de abordagem a partir de quatro autores: De Certeau,
Bourdieu, Chartier e Eliade. Adone Agnolin traceja a geneologia da História das Religiões e
contempla as relações entre religião, história e antropologia. Nicola Gasbarro, precursor desta
Escola, contribui com o texto Religione e/o religioni? La sfida dell'antropologia e della
comparazione storico-religiosa, em que diferencia religião de religiões através de uma
1
Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em História pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC), especialista em Marketing e Comunicação Social pela Fundação Cásper
Líbero, graduado em História pela USP. Contato: edumeinberg@gmail.com.
5
perspectiva teórico-humanista associada à prática antropológica e da comparação histórico-
religiosa.
Émerson José Sena da Silveira apresenta algumas das tensões entre a visão monista da
ciência da religião e a pluralista das ciências das religiões, em meio à riqueza da alteridade
metodológica e epistêmica e o descompasso entre olhares/lugares frente à dispersão da
autoridade para interpretar os fenômenos. Ítalo Domingos Santirocchi faz uma anatomia sobre
a historiografia e teoria da história do catolicismo no Império, apontando para a
interdisciplinaridade, enquanto Edgard Leite apresenta os humanistas italianos – notadamente
Maquiavel – como provedores de substratos para análises modernas sobre o fenômeno
religioso.
Carlos Alberto Steil e Rodrigo Toniol identificam parte da produção das ciências sociais da
religião no Brasil, demarcando traços comuns às pesquisas de distintos períodos e apontando
a horizontes interpretativos a partir de conceitos como tradição, modernidade, sincretismo,
campo religioso e rede. Patrícia Carla de Melo Martins desenvolve sua argumentação a partir
da análise de diferentes autores sobre o mito e o rito como imprescindíveis à prática religiosa,
entendendo seu papel aglutinador nas relações humanas como propiciadores da promoção de
significados e valores subjetivos.
6
Franco Delatorre problematiza as pesquisas de campo com espíritos, sujeitos de pesquisa não
descritos pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, enquanto Frederico Santos dos
Santos reflete sobre os modos como o/a etnógrafo/a constrói sua metodologia quando se é um
iniciado na religião. No último capítulo, Talita Sene e eu abordamos a relação esporte,
religiosidade e cura na Bola de Neve Church e ensaiamos algumas notas sobre os
procedimentos metodológicos de uma pesquisa entre autores, sinalizando as dificuldades de
pesquisar uma agência evangélica em dupla quando os pesquisadores tem diferentes relações
com esta.
Este é um livro introdutório, de caráter inconclusivo. Muito poderia ter sido abordado. Mas
esperamos que esta obra possa contribuir para novos diálogos acerca dos estudos de religiões
e religiosidades no Brasil. Os/as autores/as desta obra desejam a todas/os uma excelente
leitura.
7
8
História das religiões e das religiosidades: uma breve
introdução
1. Introdução
Como todo objeto a ser analisado necessita de um recorte preciso, neste capítulo abordo
alguns aspectos concernentes ao estatuto dos estudos históricos em religiões e religiosidades.
Em primeiro lugar, situo a importância da abordagem que realizo, conceituo os termos
complexos e escorregadios de religião e religiosidade e traço um breve histórico da disciplina.
Para apresentar possibilidades de trabalho com a temática, apresento quatro autores que
considero essenciais na minha trajetória de pesquisas na área. Vale lembrar que esta é apenas
uma das inúmeras possibilidades de análise e não tem a pretensão de ser a mais importante.
1
Solange Ramos de Andrade – Doutorado em História, Professora Associada do Curso de Graduação em
História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR).
Bolsista Produtividade em Pesquisa pela Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico/PR.
2
NYE, 2008
9
importante na análise de vários grupos sociais a partir de suas formas de sociabilidade, de
contato com a alteridade e de como esses grupos se apropriam de uma realidade que é social 3.
Em geral, a religião pode ser descrita como um sistema unificado de pensamento, sentimento
e ação que é compartilhado por um grupo e que dá a seus membros um objeto de devoção,
alguém ou alguma coisa sagrado em que acreditar, como um deus ou um conceito espiritual.
Na maioria das vezes, a religião também lida com o que poderia ser chamado de
transcendente, de sobrenatural ou de espiritual, sobre as forças e poder além do controle dos
seres humanos. Além disso, a religião trabalha de uma forma ou de outra, com a salvação.
Isso pode incluir salvar as almas dos seres humanos, quer de uma forma literal, com um céu
após a morte, como no cristianismo, ou de uma forma mais simbólica, como na obtenção de
um fim para o sofrimento como o nirvana, como em algumas religiões orientais, incluindo o
budismo.
A religião normalmente atua a partir de alguma forma de organização e de culto, bem como
por meio de ritos sagrados ou rituais, livros sagrados, um clero ou sacerdócio que administra a
religião e lugares, símbolos, e os dias que são sagrados para os crentes. Por serem
organizações instituídas, compartilham certas características comuns. Estas incluem, mas não
estão limitadas a: tradição e manutenção do sistema de crenças; utilização do mito e do
símbolo; um conceito de salvação; lugares e objetos sagrados; a ações sagradas ou rituais;
escrituras sagradas, locais de culto, experiências sagradas; códigos de comportamento ético;
um corpo de especialistas que atendem as necessidades de seus grupos.
3
CHARTIER, 2002.
4
BOURDIEU, 2007, p. 34.
10
2. Religião(ões) e religiosidade(s)
A antropóloga Maria Jesús Buxó I Rey, descreve a religião numa perspectiva histórica como
sendo um sistema de crenças, rituais e hierarquias eclesiásticas como um conjunto de
estratégias cognitivas relativas à significação da vida e da morte 5. A religião representaria o
resultado da elaboração discursiva de uma elite institucional que estabelece as chaves
interpretativas do dogma, dominando a tecnologia da escritura, a qual outorga às suas
produções a qualidade de legado transcendental. Já a religiosidade faria referência à vitalidade
da imaginação popular, reinterpreta a leitura sacerdotal a partir de suas experiências
cotidianas, reelaborando crenças religiosas e expressões rituais próprias e espontâneas, que
mantêm vivas suas convicções e esperanças. Enquanto na religião os modos cognitivos se
manifestam principalmente em discurso escrito ou lido, na religiosidade esses se constituem,
fundamentalmente, em imagens e movimentos rituais, sem escrita e discursos institucionais.
De acordo com Rodríguez Becerra6, o fenômeno religioso é uma realidade viva que se
modifica relacionado com a economia, a política, as formas de organização da sociedade, as
mudanças ecológicas e todos os elementos que constituem a cultura. Não se pode negar a
extraordinária importância das crenças e práticas religiosas, tanto no que se refere à
manutenção como à transformação radical das estruturas humanas, psíquicas e sociais.
Para estudar a religião devemos partir do conhecimento do contexto social e cultural de onde
surge e se desenvolve; devemos dar conta dos fatos religiosos em termos da totalidade da
cultura e da sociedade em que se encontram, buscando compreendê-los como um fato total.
5
BUXÓ I REY, 2003, v II, p. 8. Maria Jeús Buxó I Rey, professora da Universidad de Barcelona, foi uma das
coordenadores de uma coleção sobre religiosidade popular, resultante do Primero Encuentro Sobre Religiosidad
Popular, promovido pela Fundación Machado del Sevilla no ano de 1989.
6
RODRIGUEZ BECERRA, 2003, v I, p. 7.
11
Para Mauro Batista7, a religiosidade é vista enquanto modo de viver a religião, de pensar a
religião, de praticar a religião. Consiste em atos, pensamentos, ações. É tudo aquilo que
expressa a religião. Já Mandianes Castro8 afirma ser a religiosidade plural e serve de elemento
identificador para os diferentes quadros sociais; de um povo, de uma nação, de uma classe
social e, de uma etnia.
A História das Religiões iniciou como disciplina da mesma maneira que as demais
disciplinas: no século XIX com a organização das ciências no nível acadêmico. Foi Max
Müller que impôs a expressão “ciência das religiões” ou “ciência comparada das religiões” ao
utilizá-la no prefácio do primeiro volume de sua obra Chips from a German Worshop
(Londres, 1867).9
A primeira cátedra universitária de história das religiões foi criada em Genebra no ano de
1873; em 1876, fundaram-se quatro na Holanda. Em 1879, o Collége de France, em Paris,
criou também uma cátedra para a disciplina, seguido em 1885 pela École des Hautes Études
da Sorbonne, que organizou uma seção especial destinada às ciências religiosas. Na
Universidade Livre de Bruxelas, a cadeira,foi instituída em 1884. Em 1910, seguiu se a
Alemanha, com a primeira cátedra em Berlim, depois em Leipzig e em Bonn. Os outros
países europeus acompanharam o movimento.10
Em 1880, Vernes fundava em Paris a Révue de l’Histoire des Religions; em 1898, o dr.
Achelis publicava o Archiv für Religionswissenschaft, em Friburg Brisgau; em 1905, Wilhelm
7
BATISTA, 1984, p. 109-122.
8
MANDIANES CASTRO, 2003, p 44-54.
9
ELIADE, 1992, p. 5
10
ELIADE, 1992, p. 5.
12
Schmidt iniciava em St. Gabriel Módling, perto de Viena, a revista Anthropos, consagrada
sobretudo às religiões primitivas; em 1925 surge Studi e Materiali di Storia delle Religioni, de
R. Pettazzoni.11
Em 1900 teve lugar, em Paris, o Congresso de História das Religiões, assim denominado por
excluir dos seus trabalhos a filosofia da religião e a teologia. O oitavo congresso internacional
foi realizado em Roma, em 1955.12
Atualmente as revistas mais clássicas da disciplina são: Revue de l'Histoire des Religions
(París), History of Religions (Chicago, fundada por Mircea Eliade) e Numen (que tem como
subtitulo International Review for the History of Religions), e o foro internacional da
disciplina é a IAHR (International Association for the History of Religions).13
Esta perspectiva ia ao encontro de uma visão de história fundada em manuais, com uma visão
que antevia o fim da religião por estar vinculada a um processo primitivo do conhecimento
humano. O progresso científico não permitira a continuidade tanto da instituição religiosa
como da própria religião.15
Durante muito tempo, foi reservado ao historiador o trabalho com temas e documentos
voltados para o oficial. Esse oficial era vislumbrado dentro de um contexto de história
política, no sentido tradicional, ou seja, a história dos atos governamentais, tratados,
biografias de grandes nomes, dentre outros. Com o constante repensar dos objetivos da
história na sociedade, esses temas foram se alargando à medida que setores populares foram
ganhando voz e espaço para suas reivindicações. As pessoas comuns passaram a ser objeto de
11
ELIADE, 1992, p. 5.
12
ELIADE, 1992, p. 5.
13
DIEZ DE VELASCO, 2002, p. 2.
14
ALBUQUERQUE, 2007, p. 1.
15
Daí os constantes congressos, simpósios e livros escritos no final do século XX , tentando perscrutar o
“retorno do religioso”, como se o fim da religião ocorre por uma iniciativa intelectual.
13
estudo, não apenas por serem de algum lugar exótico ou por terem hábitos estranhos, mas por
serem vistas como membros de uma sociedade em constante transformação.
Daí a importância dos estudos das religiosidades, como crenças e práticas que fogem do
caráter institucional, seja traduzindo os conteúdos institucionais para um universo no qual sua
crença faça sentido, seja negando completamente sua influencia como matriz religiosa. E este
processo também ocorreu com os historiadores das religiões, pois seus objetos foram
agregados à profusão de temas que passaram a ser objeto de estudo, tais como a história do
medo, a história da beleza, a história da feiura, dentre outros.
Na sequencia, a noção de documento histórico é alargada, pois tudo o que existe torna-se um
registro histórico, seja uma certidão de nascimento, seja um livro, seja um objeto material
(cadeira, mesa, casa), seja um depoimento, que são vistos e assumidos como documentos,
como meios de compreensão de uma determinada realidade.
Em fins dos anos 1980 e inícios da década de 1990, várias eram as possibilidades de pesquisa
sobre as religiões, tanto no que diz respeito ao próprio objeto de pesquisa, como nos tipos de
documentos utilizados. Em nossa dissertação de Mestrado, por exemplo, na pesquisa sobre a
história de um santo popular utilizamos como documentação os jornais da Região de Maracaí
e relatos orais, visando recuperar a história do santo e detectar qual o elo de identificação
entre Santo e fiel. Tanto os jornais como a história oral são de grande valia para quem
trabalha com a história religiosa recente.18
Michel Vovelle apresenta como possibilidade para se trabalhar a história religiosa, o estudo
das inscrições feitas nos túmulos, ou o estudo dos próprios túmulos para analisar
determinadas práticas religiosas na França.20
O estudo dos rituais também é outra forma de abordagem da história religiosa. As festas
religiosas, com toda a sua heterogeneidade e complexidade têm sido objeto de estudo não
somente de antropólogos, mas também de historiadores.21
18
DAVID, 1994.
19
MANOEL, 1988.
20
VOVELLE, 1987.
21
REIS, 1991; COUTO, 1998.
15
4. Referenciais para analisar as religiões e as religiosidades
Quais os autores que poderiam ser utilizados para trabalharmos com algumas categorias
vinculadas às religiões e as religiosidades? Minha proposta consiste em apresentar quatro
autores: Mircea Eliade, Pierre Bourdieu, Michel de Certeau e Roger Chartier. Os dois
primeiros não são historiadores, mas tornaram-se referências paradigmáticas para a análise
das manifestações religiosas.
Os autores abordados são apresentados a partir de como as categorias por eles trabalhadas
podem ser utilizadas nas pesquisas acerca da história das religiões e religiosidades. O fato de
estarem resumidos deve-se a uma necessidade didática e até mesmo uma necessidade de
limitar as páginas. Aconselho ao leitor, se tiver interesse, ler os textos que aparecem nas
referências bibliográficas no final do capítulo.
Mircea Eliade e seus estudos sobre o fenômeno religioso é referencia fundamental para a
análise das manifestações de religiosidade, a partir das categorias de sagrado e profano.
Em 1978, Mircea Eliade definia o sagrado como a pedra angular da experiência religiosa e
afirmava que toda consciência do mundo real e significativo para o homem está ligada à
descoberta que ele faz do sagrado. O sagrado é, pois um estado estrutural da consciência,
uma modalidade de ser no mundo.22
De acordo com Eliade em cada experiência religiosa veremos que a linha divisória entre
sagrado e profano é fundamental, mas é sempre fixada empiricamente pelo homem e pode ser
modificada. Assim o sagrado é antes de tudo um fato, observável e analisável, que nós
captamos num quadro de vida, de instituições, de rituais, porque ele estrutura uma ordo
rerum( a natureza das coisas, o cosmos).
O sagrado é real, eterno e eficaz. O homem conhece o sagrado porque ele se manifesta,
mostra-se diferente do profano. A hierofania é o ato de manifestação do sagrado. Desde o
principio a historia das religiões é constituída consideravelmente por hierofanias. Estas
22
ELIADE, 1978, p. 57.
16
possuem tipos variados, das mais simples (manifestada numa pedra) a suprema (Deus
encarnado em Jesus). Trata-se da manifestação de algo de ordem diferente em objetos do
mundo.23
Para Eliade (2001), os fatos sagrados são encontrados nos mitos, nos ritos, nas formas divinas,
nos objetos sagrados e venerados, nos símbolos, nas cosmologias, nos homens consagrados,
nos animais, nas plantas, nos lugares sagrados, toda forma de manifestação deve ser
considerada.
Eliade (2001) defende que, porque para o homem religioso, nem o espaço, nem o tempo, se
revelam como fenômenos homogêneos ou contínuos. Dessa forma, o culto piedoso, as festas
devocionais, as peregrinações, entre outras manifestações, propiciam a recriação de práticas
antigas, muitas vezes associadas com elementos novos e pessoais, sobretudo nas relações de
reciprocidade, detectadas especialmente, na religiosidade católica, no pagamento de
promessas, nas ofertas de flores, velas ou ex-votos.
A diferença entre sagrado e profano não é nada tênue: o sagrado se opõe radicalmente ao
profano. Eliade, Campbell, Otto e Caillois 25 (só para citar alguns autores) conceituam o
sagrado como “aquilo que difere do profano”, isto é, o que está num tempo e num espaço
23
ELIADE, 2001.
24
ELIADE, 1998.
25
ELIADE 1992; CAMPBELL,1990; OTTO 1985; CALLOIS, 1979.
17
diferente porque diz respeito a realidades que transcendem o nosso cotidiano, que é mundano,
logo profano. Um exemplo: para entrar em contato com o sagrado o homem religioso deve
“abandonar o mundo”, sair das preocupações do dia a dia para estabelecer contato com aquilo
que o ultrapassa. Em termos de valoração, o importante é entrar em contato com o sagrado,
que é qualitativamente superior ao profano.
Para o homem religioso, os lugares e os tempos não são todos iguais e igualmente
significativos. Alguns desses lugares foram dotados de especial importância porque neles se
revelou a presença ou a ação de Deus, ou também porque têm a capacidade de despertar
sentimentos religiosos ou de dar lugar a experiências desse tipo.
Em nosso estudo analisamos o campo religioso, observando como são construídas as relações
de poder em seu interior. Buscamos entender como a religião pode atuar como elemento de
manutenção do poder e fabricação do consenso.
Em nosso estudo acerca da Igreja católica a partir de sua estrutura e lógica de funcionamento
interno27, nos valemos da ideia de campo religioso na análise do discurso católico.
Acreditamos que o conceito permite uma análise desse objeto a partir das relações travadas
em seu interior, levando em conta sua autonomia.
26
BOURDIEU, 2007.
27
ANDRADE, 2012.
18
No interior dos campos existem relações de forças que se configuram enquanto relações
simbólicas de poder. O poder simbólico seria o elemento que constitui e legitima as relações
das diferentes estruturas. Este seria imperceptível aos indivíduos que o exercem ou aos quais
estão sujeitos. Essa invisibilidade garantiria a sua força de ação. É a aceitação da posse do
poder simbólico pelos que estão a ele subjugados que o constitui e legitima. Em outras
palavras, o poder simbólico impõe significações e legitima relações sociais contribuindo na
construção e manutenção de uma ordem vigente.
Para Bourdieu, uma estrutura não pode ser pensada fora do mecanismo no qual é criada. Aí
já está um conceito dinâmico do campo religioso. Outro aspecto dessa dinâmica se encontra
na própria concepção de estrutura utilizado por Bourdieu que, apesar da aparência estática,
somente funciona a partir de confronto de interesses no interior dos campos. A teoria geral
dos campos aponta para o conflito incessante entre, de um lado, aspectos que estão
estruturados e que interessa aos grupos que detém o poder a sua manutenção e até a
aparência de imobilidade e, por outro lado, forças internas que se movem para a mudança .
Logo, as estruturas possuem um aspecto estruturado, isto é, imóvel como também um aspecto
estruturante, que oferece a possibilidade de mediações, elaboração de consensos e permite
que o campo ao mesmo tempo apresente algumas alterações e permaneça hegemônico. Por
isso minha afirmação de que o conceito de campo religioso permite entender como as
estruturas religiosas se estabelecem e como se transformam.
28
BOURDIEU 2007, pp. 27-29
29
BORDIEU, 2007.
19
(magia ou feitiçaria) do sagrado, quer se trate de uma profanação objetiva (a magia ou a
feitiçaria como religião dominada), quer se trate da profanação intencional (a magia como
anti-religião ou religião invertida).
Toda prática ou crença dominada está fadada a aparecer como profanadora na medida em que,
por sua própria existência e na ausência de qualquer intenção de profanação, constitui uma
contestação objetiva do monopólio da gestão do sagrado e, portanto, da legitimidade dos
detentores deste monopólio. A sobrevivência constitui uma resistência, isto é, a expressão da
recusa em deixar-se desapropriar dos instrumentos de produção religiosa.
Michel de Certeau afirma que toda análise do passado orienta-se por uma leitura do
presente30. Propõe uma reescrita da história religiosa, o que significa lidar não somente com
uma visão de religião diferenciada, como também lidar com disputas religiosas, eclesiásticas
e/ou populares sobre práticas e crenças religiosas.
Certeau conceitua lugar como o domínio dos produtores, o locus onde são desenvolvidas as
estratégias que visam a controlar os consumidores31. Lugar é assim definido como uma
configuração instantânea de posições, na qual cada elemento está situado em uma locação
própria e específica, uma locação que é definida pelo elemento em questão. Assim, lugar
implica em uma indicação de estabilidade. No entanto, quando o lugar é usado pelos
consumidores, ele torna-se espaço. Nessa concepção espaço é um lugar praticado, o qual
existe em termos de vetores de direção, velocidades e variáveis temporais, ou seja, pela
interseção dos elementos móveis 32. Enfim todo relato é uma prática de espaço.
O que caracteriza a religiosidade é o fato de ela exercer uma prática estratégica, que faz com
mantenha maneiras de sobrevivência dentro quadro social e faça das suas transformações
formas de contatos com outras interlocuções às quais esta inserida, uma vez que “postula um
lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e, portanto, capaz de servir de base a uma
gestão de suas relações com uma exterioridade distinta”33. A capacidade do homem de
30
CERTEAU, 1982, p. 34
31
CERTEAU, 1984, p. 19.
32
CERTEAU, 1998, p.117
33
CERTEAU, 1994, p. 46.
20
vivenciar o sagrado demonstra as maneiras pelas quais estes espaços se tornam pontos em que
a ritualização pode ser exercida e praticada. A visão de mundo seria o modo como um grupo
ou sujeito interpreta aquilo que vive: seus desejos, necessidades, insatisfações, reivindicações
O que diferencia uma prática da outra são os procedimentos que empregam para, de um lado,
produzir cultura e, de outro, para consumi-la. As práticas culturais valem-se de procedimentos
estratégicos pelos quais circunscrevem um lugar como próprio, a partir do qual se relacionam
com a exterioridade. Os grupos sociais promovem mecanismos de resistência; mecanismos de
defesa prontos para agir naturalmente, por estarem presentes desde nossos primeiros
ancestrais. Esses mecanismos de defesa são conceituados como táticas. 35
Essas práticas são chamadas táticas. Diferentemente das estratégias, as táticas são
fragmentárias, não têm uma base a sua disposição e dependem do timing apropriado, estando
sempre em busca de oportunidades para serem executadas. Muitas das práticas de caráter
cotidiano, tais como ler, caminhar, cozinhar, descansar, etc. têm caráter tático.36
Enfim, Certeau (1996) defende que a cultura dominante seria a daquele que detém os meios
de controle, produção e disseminação cultural, enquanto que a cultura do dominado (popular)
seria a daqueles que não possuem meios de empregar sua cultura, de torná-la oficial. Para dar
conta da tal tensão, entre o dominante e o dominado, Certeau apresenta dois conceitos: o de
estratégia e o de tática. Ligadas à cultura dominante, as estratégias seriam as situações e os
valores cotidianos criados por instituições que produzem objetos, normas e modelos sociais
de comportamento. Ligadas à cultura do dominado, as táticas seriam os modos de fazer e
sobreviver daqueles que são desprovidos do lugar próprio e dos meios de emprego cultural.
Certeau apresenta as táticas como um jogo meio que sorrateiro, levado pelo que ele denomina
de “homem ordinário” que subverte as regras comuns para fugir ao conformismo e resignação
presentes nas relações de poder.
Chartier é leitor de Certeau. Muito da discussão que Chartier realiza sobre as práticas culturais
é com base no livro A Cultura no Plural, de Certeau.37 A principal diferença são as categorias
com as quais os dois trabalham: Chartier com os conceitos de apropriação e representação
coletivas e seguiu suas pesquisas para as práticas de leitura, principalmente abordando as
formas como as realizamos; Certeau com os conceitos de estratégias e táticas estava mais
preocupado em analisar a maneira pela qual a alteridade podia ser analisada a partir dos
discursos proferidos pela Igreja católica no século XVII e a sua relação com os discursos
místicos. Também lhe interessava entender como ocorria os mecanismos de controle no
cotidiano e como os grupos dominados reagiam a eles
36
CERTEAU, 1998, pp. 13-14.
37
CERTEAU, 1995.
22
Segundo Chartier, para pensar historicamente as formas e as práticas culturais deve-se pensar
em duas definições, a primeira que designa as obras e os gestos que, em uma sociedade,
tangem ao julgamento estético ou intelectual. A segunda visa às práticas ordinárias tecidas nas
tramas das relações cotidianas e exprimem a maneira como uma comunidade vive e reflete
sua relação com o mundo e com o passado.38
É necessário primeiro ressaltar que por “representação” entendemos as práticas que visam
fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de estar no mundo, a
significar simbolicamente um estatuto e uma posição.39
Segundo Chartier, para pensar historicamente as formas e as práticas culturais deve-se pensar
em duas definições, a primeira que designa as obras e os gestos que, em uma sociedade,
tangem ao julgamento estético ou intelectual. A segunda visa às práticas ordinárias tecidas nas
tramas das relações cotidianas e exprimem a maneira como uma comunidade vive e reflete
sua relação com o mundo e com o passado.42
38
CHARTIER, 2002, p. 93
39
CHARTIER, 2002.
40
CHARTIER, 2002, p.72.
41
CHARTIER, 2002, p.73.
42
CHARTIER, 2002, p. 93.
23
Chartier defende que as representações sociais são alvo de disputa e revelam as tensões de
poder, interesses e contradições43. Essas representações dizem muito da dinâmica da vida
social. Defende que não devemos tomar a qualificação de inferior ou ilegítima para alguns
aspectos que envolvem as práticas culturais, pois ao denominarmos tais práticas desta
maneira, estaríamos reproduzindo os mecanismos de dominação simbólica que qualificam os
modos de consumo dos dominados como algo menor.44 Podemos apreender esse movimento
nos discursos das religiões dominantes com relação às manifestações não-institucionais: em
muitos casos são denominadas de seitas, de crendices, enfim, de algo menor, logo ilegítimo.
Chartier defende que os mecanismo de apropriação da realidade (que é sempre uma realidade
social) e sua posterior representação coletiva, informam ao historiador as visões de mundo
existentes num determinado momento. Cada grupo ou, num âmbito maior, cada sociedade se
percebe de acordo com uma complexa interação entre, de um lado, as normas vigentes e, de
outro, as formas como elabora essas normas no seu cotidiano.
5. Considerações
De fins do século XIX a inícios do século XXI religião garante sua especial significação
dentro do panorama cultural. De qualquer maneira que se interprete e valore sua mais recente
metamorfose, se trata de um fenômeno de grande interesse que se impõe a atenção de todos.
Como consequência disso, também tem crescido e a variado a demanda de conhecimento com
relação a uma faceta tão importante e distintiva da experiência humana que pertence “ao mais
profundo do homem”. Por esse motivo requer ser conhecida não somente por suas
manifestações históricas que acompanham desde suas origens à história da humanidade como
também por si mesma em sua lógica e sua dinâmica. Tratar de satisfazer este interesse é uma
característica fundamental de nossa sociedade, que tem se transformado em uma encruzilhada
de línguas e culturas, assim como também de crenças e tradições religiosas. Ao haver entrado
43
CHARTIER, 1990.
44
CHARTIER, 1995.
24
em crise o monopólio das igrejas tradicionais, o mercado dos bens religiosos se caracteriza
por um pluralismo e hibridismo que estão destinados a aumentar sua importância. 45
Referências
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
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25
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Chamberry (1859-1919). Doutorado, USP, São Paulo, mimeo.
REIS, João José. A Morte é uma Festa. Ritos Fúnebres e Revolta Popular no Brasil do
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BUXÓ I REY, Maria Jesús; RODRIGUES BECERRA, Salvador (orgs.) La Religiosidad
Popular. I: Antropologia e História. 2 a. edição. Rubi, Barcelona: Anthropos Editorial, 2003,
pp 7-12.
27
28
História das Religiões: teoria e método
Adone Agnolin1
O presente artigo pretende responder ao convite de oferecer alguma contribuição para o livro
“(Re)conhecendo o sagrado: reflexões teórico-metodológicas dos estudos de religiões e
religiosidades”, dedicado a problemáticas de teoria e metodologia da História das Religiões.
Para tanto, em vista da publicação recente de um nosso trabalho desenvolvido, com amplo
fôlego, exatamente sobre - e a partir de - esse aspecto geral, pensamos em costurar no
presente texto algumas das contribuições específicas que se encontram naquele outro espaço
textual. A seleção bastante restrita que realizamos para tal fim tentou manter, todavia, certa
unidade e coerência com relação aos dois objetivos discutidos tanto por este livro,
“(Re)conhecendo o sagrado”, quanto em algumas partes do nosso recente trabalho do qual
tiramos, de forma bastante sintética, essa nossa contribuição.2
Uma breve nota se impõe, de início, para enquadrar o contexto do surgimento de uma
problemática histórico-religiosa. O único objetivo desta nota é aquele de traçar um brevíssimo
pano de fundo geral do contexto do nascimento e da colocação histórica da problemática em
questão: mesmo que a própria disciplina, assim como foi se delineando no contexto do século
XIX, tenha-se voltado para uma perspectiva des-historicizante com relação a seu objeto. Sem
aspas, este último termo, justamente enquanto a religião foi abordada, inicialmente, a partir de
uma dimensão autônoma, transcendente e holística: isto é, por além (ou aquém) de sua
1
Professor de História Moderna e História das Religiões do Departamento de História – FFLCH-USP.
2
AGNOLIN, 2013. Mesmo que em algum caso levemente modificadas, as partes selecionadas do livro e aqui
propostas dizem respeito à Iª Parte do livro em sua Introdução e no que diz respeito ao Capítulo III, com uma
seleção parcial do Capítulo VIII da IIª Parte. Finalmente, para poder oferecer um quadro bastante sintético da
Escola Italiana de História das Religiões (analisada em modo bem mais conspícuo e consistente neste nosso
livro), selecionamos apenas uma parte necessariamente reduzida de um nosso artigo mais antigo (“Breve
História da História das Religiões...”) que foi publicado na Revista “Projeto História”, nº 37 (“História e
Religiões”), Julho/Dezembro/08, Revista do Programa de Estudos em Pós-Graduação do Departamento de
História da PUC-SP, pp. 13-39.
29
dimensão propriamente histórica. Levar em consideração essa breve nota contextual servirá,
em primeiro lugar, para colocar o problema de qual História das Religiões estamos falando
(ainda hoje e, sobretudo, no Brasil, existe uma confusão bastante grande a esse respeito); em
segundo lugar, deve servir para entender a especificidade e as características inscritas na
vertente propriamente histórico-religiosa italiana.
30
Ora, segundo o que veremos a seguir, em contraposição a essas instâncias, aquilo que nós
ocidentais chamamos por longo tempo – e ainda continuamos a chamar – de “religião”, pelo
menos de um ponto de vista histórico-cultural, deve ser visto, substancialmente, enquanto
uma codificação humana de valores. Estes se devem prospectar em uma durabilidade que
sirva, justamente, a superar as contingências efêmeras, complexas e incompreensíveis da
história, para oferecer uma perspectiva ao operar humano. Somente na perspectiva de valores
dando sentido à contingência é que esta última adquire um sentido e que os primeiros
oferecem uma perspectiva à vida. Dito de outra maneira, as culturas representam estruturas
em e de contingência: enquanto tais podem construir modelos absolutos de valores que,
todavia, o historiador tem a função de considerar como relativos a um tempo, a um espaço e a
um contexto relacional de “aculturação”: trata-se, portanto e substancialmente, de descobrir a
contingência histórica da formação de um absoluto, cultural e historicamente construído
enquanto valor.
No entanto, vale evidenciar que é neste momento histórico do segundo Oitocentos que surge a
manualística histórico-religiosa (os primeiros manuais, modelares e exemplares, de História
das Religiões) e isso, significativamente, a partir do conceito de religião no seu sentido mais
ocidental, objetivo, transcendente, impermeável (com relação à historicidade do próprio
Ocidente): não é por acaso que o berço privilegiado desta manualística tenha sido aquele
contexto teológico-protestante que, sem questionar-se sobre o próprio percurso histórico,
predispôs e afinou seus instrumentos para a abordagem ao problema.
Os manuais de História das Religiões nascem, de fato, nesta época e neste contexto: o
primeiro – prototípico de uma importante tradição – é o Lehrbuch der Religionsgeschichte
(1887-1889), do teólogo holandês, professor da Universidade de Amsterdã e de Leida, Pierre-
Daniel Chantepie de la Saussaye. Em 1887 saiu a segunda edição da obra (traduzida em
francês em 1904), na qual Chantepie se utilizou da colaboração de especialistas de diferentes
competências e em 1925, em Tübingen saiu sua quarta edição completamente renovada sob a
direção de Alfred Bertholet (teólogo e biblista em Basiléia, e, sucessivamente, historiador das
religiões: comparativista e fenomenólogo) e Edward Lehmann (professor de
Religionsgeschichte und Religionsphilosophie na Faculdade de Teologia da Universidade de
Berlim, sucessivamente professor de História das Religiões junto à Universidade de Lund).
Ora, segundo uma importante observação, relativa a esta 4ª edição da obra (de 1925), proposta
por Sabbatucci:
5
Para um aprofundamento do conceito de Império Simbólico, cf. GASBARRO, 2011, pp. 17-47.
32
[É] na edição do Manual organizada por Bertholet e Lehmann são exclusas
as religiões de Israel (o primeiro campo de pesquisa de Bertholet!) – que, ao
contrário, figuravam nas edições anteriores – e aquela cristã. É este o sinal
indicativo de uma realidade não justificável cientificamente, mas sim
historicamente. Queremos dizer: mesmo se, teoricamente, a História das
Religiões teria que compreender tanto o Cristianismo quanto o Hebraísmo,
de fato a História do Cristianismo se caracteriza por uma problemática e
uma metodologia nitidamente distintas daquelas histórico-religiosas. Isto
depende da rejeição da problemática comparativa, própria da História das
Religiões, quando se trata de matéria considerada, evidentemente,
‘incomparável’, como o Cristianismo (e, por consequência, o Hebraísmo do
qual surge o Cristianismo). [...] Os estudiosos ocidentais reservam um
tratamento diferente à própria religião, como se o Cristianismo não fosse
uma religião, mas a religião.6
A partir dessa primeira manualística, portanto, pelo menos em seus pressupostos, o fato de
que o Cristianismo se torne a religião – modelo fundamental do conceito e do instrumento
operativo na base do qual medir e reduzir as outras “religiões” – não se deve tanto ao
compromisso fideístico (como ainda acontece na Idade Moderna), quanto à formação
histórica do conceito de religião: também nesse sentido, portanto, o século XIX representa
propriamente, segundo a definição de Benedetto Croce, o “século da História”: que, neste
caso, impõe um modelo sub-repticiamente orientado segundo pressupostos implícitos (o
Cristianismo enquanto a religião) que se querem e estabelecem uma perspectiva histórica cuja
análise dos próprios pressupostos lhe é interditada.
6
SABBATUCCI, 1985, pp. 7-8. Com relação à problemática da primeira manualística histórico-religiosa, à qual
estamos nos referindo aqui, veja-se até p. 11.
33
Em 1925, com a Revista “Studi e Materiali di Storia delle Religioni” (SMSR), nasce na Itália,
através da obra de Raffaelle Pettazzoni, o endereço de estudos histórico-religiosos. Através da
comparação que produziu os estudos antropo-etno-lógicos, este endereço de estudos se
propõe ressaltar a historicidade dos fatos religiosos, isto é, “des-ontologizá-los”, tanto a partir
do pressuposto fundamental de sua possível e necessária redução à razão histórica, quanto
pela necessidade de acolher e definir, nesta perspectiva, aqueles fatos que não resultassem
redutíveis aos modelos analógicos (isto é, constituídos ao redor de denominadores comuns)
sugeridos pela pesquisa comparada.
Assim, o próprio Pettazzoni formulou seu programa manifestando o fato de que “cada
phainomenon é um genomenon”: formulação que, em polêmica com a obra de Mircea Eliade,
queria destacar como em cada fenômeno – e para longe de sua mera objetivação – é possível
re-percorrer e recuperar o momento de sua formação histórica, isto é, “des-objetizá-lo”.
Tratava-se, finalmente, de opor às indagações fenomenológicas a necessidade da interpretação
histórica. Isto significa que, para compreender um fato cultural qualquer, dever-se-ia procurar,
antes de tudo, a reconstrução da sua gênese, da sua formação. De fato, se a operação
fenomenológica se configura como uma objetivação da religião, a crítica histórica se
contrapõe a ela enquanto – nas palavras de Dario Sabbatucci – uma “vanificação do objeto
religioso”. Trata-se, finalmente, de tornar inconsistentes as categorias religiosas que, no
fundo, resultam arbitrárias, até chegar a tornar vã a própria categoria do religioso que resulta
desviante e inútil para se aproximar às culturas diferentes da nossa e, nas quais, a diversidade
se manifesta também, ou sobretudo, pela falta de um “cívico” contraposto ao “religioso”. O
problema principal que se desprende dentro dessa perspectiva crítica consiste em que os fatos
culturais “outros” foram interpretados, arbitrária e acriticamente, sub specie religionis
incluindo-os numa função cultural que é aquela que a religião tem dentro de nossa específica
cultura, enfim, dentro de seu próprio e específico percurso histórico.
O fato é que, se a religião pode ser analisada segundo diferentes perspectivas (filosófica,
teológica, psicológica, etc.), sendo, todavia, a cultura o objeto específico e limitativo do
próprio historiador, a partir do momento em que a religião é objeto de pesquisa histórica não
pode ser posta de lado sua observação em função de uma determinada cultura. Finalmente, a
contraposição entre o endereço fenomenológico e aquele histórico consiste, justamente, no
fato que o primeiro descuida desta relação entre religião e cultura, enquanto para o segundo a
religião torna-se um dos fatores privilegiados para qualificar uma determinada unidade
cultural. Esta contraposição, todavia, não é rígida porque, de fato, a prática dos estudos
demonstra como tanto o fenomenólogo opera em cima do material histórico, assim como
quanto o historiador é condicionado pela referência a um conceito de religião que supera as
religiões consideradas por si mesmas. Contudo torna-se importante a análise da relação
religião-cultura dentro de algumas diferentes escolas histórico-religiosas para individualizar
as diferentes formas em que se constituiu o entrelaçamento desta problemática e como foi
35
temporariamente resolvida: tudo isso a fim de tentar esclarecer a justa colocação da
problemática propriamente histórica.
7
Com relação a esses autores e à sua respectiva, paralela e, muitas vezes, contraposta fundação de uma “vertente
sistemática” da abordagem à problemática religiosa, cf. nosso trabalho, já anteriormente citado, História das
Religiões: perspectiva histórico-comparativa, às pp. 27-38.
36
(prática e exclusivamente Eliade), mas que é de fato e propriamente uma “fenomenologia”.
Finalmente, a esquematização se propõe agilizar a leitura por contrastes, a partir das
características comuns de uma abordagem que, em termos gerais, denominaremos de
“fenomenológica”, com relação àquela propriamente histórico-religiosa.
Para tanto, vale a pena destacar, inicialmente, que, segundo a primeira perspectiva
(fenomenológica), a objetivação da religião se define enquanto:
Nesta primeira contraposição geral, como já vimos, destaca-se o fato de que a História das
Religiões parte, justamente, do pressuposto contrário, isto é, de uma:
A partir dessa contraposição geral – implícita nos pressupostos metodológicos das duas
abordagens – desprende-se, portanto, uma pontual contraposição dos percursos de
investigação propostos. Isto é:
- mais uma consequência importante, exemplar com relação aos diferentes resultados
obtidos: enquanto a primeira perspectiva fala em religião (no singular) porque
descontextualizada, a segunda pluraliza as religiões (contextualizadas), assumindo
essa pluralidade inclusive na própria autodenominação segundo a qual se define;
38
Para esclarecer melhor esse último ponto, vale a pena ressaltar que, como temos visto, se a
abordagem fenomenológica concebe a religião enquanto um dado transcendente (um
fainómenon, de fato), em contraposição à abordagem histórico-religiosa que a concebe
enquanto um fato histórico (genómenon, nas palavras de Pettazzoni); se esse pressuposto
permite à segunda uma historicização do conceito (religião), impossível para a primeira
perspectiva; e se, por consequência, isso permite à História das Religiões de realizar uma
operação – absolutamente impossível à primeira perspectiva – de historicização dos próprios
instrumentos da análise (de fato, historiográfica); em decorrência de tudo isto, a diferença
substancial entre as duas perspectivas é que, enquanto a primeira, justamente a partir da
analogia universalista e totalizante, pretende alcançar uma essência religiosa que já era dada
como pressuposto inicial da análise; a segunda fundamenta-se, necessariamente, na
comparação histórica (histórico-religiosa) – não analógica –, de processos de formação.
Esses pressupostos metodológicos diferenciais explicam e esclarecem, acreditamos, o último
item acima delineado, isto é:
Tendo em vista tudo isso, portanto, na medida em que a Fenomenologia se constitui enquanto
uma teleologia, pressupostamente científica – que no final de seu percurso reencontra as
origens inscritas em seus pressupostos iniciais –, a História das Religiões se configura
enquanto, propriamente, uma ciência histórica (com todas as incertezas próprias das Ciências
Humanas). Daí o fato que, ao objetivismo ontológico da sacralidade (esta que pré-existe e
resiste à verificação historiográfica) da primeira perspectiva, a segunda lhe contrapõe,
efetivamente, o percurso obrigatório de uma história das relações entre civilizações: negando
39
a perspectiva objetiva e totalitária da Fenomenologia para (partindo do etnocentrismo crítico)
torna-se culturalmente subjetiva.
E isso vem a exemplificar, mais uma vez, quanto a primeira perspectiva se fundamenta numa
– constrói seu objeto, a religião, enquanto – essência não falsificável, na medida em que a
segunda se verifica, exatamente, numa constante falsificabilidade de seu objeto (a “religião”).
Enfim, fechando o círculo implícito em seus pressupostos, a Fenomenologia reduz os vários
fenômenos religiosos ao modelo (único) de religião pré-concebida, na medida em que,
respondendo à sua fundamental exigência historiográfica, a História das Religiões multiplica,
necessariamente, as religiões, até, como vimos verificar-se com Sabbatucci, poder fazer
explodir o próprio instrumento conceitual de “religião”.
Para sintetizar numa melhor visualização o sistema das pontuais contraposições propostas,
podemos até sintetizar essas no esquema a seguir:
40
Ciência (fenomenologia) da Religião História das Religiões
41
Ciência (fenomenologia) da Religião História das Religiões
2. Portanto lhe é impossível pensar a uma 2. O primeiro pressuposto lhe permite uma
historicização do conceito de “religião” historicização do conceito de “religião”
42
2. Método: a Escola Italiana das Religiões
Em decorrência de quanto vimos até aqui, podemos inferir que, a religião pode, sem dúvidas,
ser analisada segundo diferentes perspectivas (filosófica, teológica, psicológica, etc.).
Todavia, sendo a cultura o objeto específico e limitativo do próprio historiador, quando a
religião é objeto de pesquisa histórica não pode ser posta de lado sua observação, seu estudo e
sua análise em função de uma determinada cultura. Finalmente, a contraposição entre o
endereço fenomenológico e aquele histórico consiste, justamente, no fato de que o primeiro
descuida desta relação entre religião e cultura, enquanto para o segundo a religião torna-se o
fator privilegiado – ou, quanto menos, um dos fatores privilegiados – para qualificar uma
determinada unidade cultural.
Esta contraposição, todavia, não é rígida porque, de fato, a prática dos estudos demonstra
como, tanto o fenomenólogo opera em cima do material histórico, quanto o historiador é
condicionado pela referência a um conceito de religião que supera as religiões consideradas
por si mesmas. Contudo torna-se importante a análise da relação religião-cultura dentro de
algumas, diferentes, escolas histórico-religiosas – como esboçamos até aqui –, para
individualizar as diferentes formas segundo as quais se colocou esta problemática, e como foi
temporariamente resolvida, e para tentar esclarecer, enfim, a justa colocação da problemática
histórica.
43
A peculiaridade histórica do percurso ocidental – que de algum modo repercorre o impor-se
de uma diferente relação histórica entre religião e cultura dentro do próprio Ocidente – pode
ser constatada, também, em relação ao outro par relacional, exemplar a respeito da
complexidade desta problemática: aquele de “sagrado” e “profano”. Totalmente centrada na
assim chamada “ambivalência do sagrado”, a teoria fenomenológica mostra mais uma vez, a
esse respeito, o descuido com que (não) leva em conta a específica relação entre religião e
cultura, de sua transformação no âmbito de um determinado percurso e contexto histórico
ocidental. Tanto os “primitivistas”, de um lado, quanto Rudolf Otto, de outro, mostram-se
ligados ao, e fortalecem o, conceito desta “ambivalência do sagrado”. A herança deste
dúplice, mas convergente percurso é sintetizada, finalmente, na posição de Mircea Eliade que
encontramos, por exemplo, expressa de forma pontual no sexto parágrafo do primeiro capítulo
de seu Tratado de História das Religiões que leva, de fato, o título de “O Tabu e a
Ambivalência do Sagrado”.
Mas como demonstrou muito claramente Sabbatucci8, a esse respeito, a própria teoria romana,
captada e formulada pelo historiador italiano, no interior de um sistema de oposições “sacer /
profanus = publicus / privatus”, não corresponde aos – e não pode ser entendida partindo dos
– pressupostos da teoria fenomenológica. Segundo Sabbatucci,
E é justamente verificando o conceito romano de sacer à luz da dialética geral entre sagrado e
profano que o autor obtém a emergência, no contexto histórico romano, do resultado segundo
o qual profanus, além de significar o contrário de sacer, podia significar, ao mesmo tempo,
8
SABBATUCCI, 1975. Cfr., sobretudo, o capítulo IX, “Sacro e Profano”.
9
Idem, Ibidem, p. 161.
44
algo de análogo a sacer, ou seja: “dedicado a um deus”. Finalmente, olhando para o
específico contexto histórico romano se evidencia o resultado mais significativo decorrente
desta relação. Isto é, torna-se claro que: profanus, quando não pode ser contraposto a sacer,
torna-se estranho ao sistema dominante da sapientia romana que destaca as oposições “sacer /
profanus = publicus / privatus”. Portanto, a estreita relação (mesmo na contraposição)
emergente entre o profano e o sagrado mostra como o fim último da profanatio é justamente
de tornar ‘livre do sagrado’, ou seja, tornar profanus significa liberar perante o sagrado a ação
do homem. 10
E se, por um lado, não se pode isolar a religião de um determinado contexto cultural, por
outro se impõe a necessidade de contextualizar (cultural e historicamente) o instrumento
“religião” em seu berço ocidental. Significativo, a esse respeito, o fato que a cultura ocidental,
nas palavras de Nicola Gasbarro, se constitui enquanto:
10
Como Sabbatucci demonstrará em seguida, no exercício de uma condição político e social peculiar que leva
Roma “do Fanum à Civitas”, título do sucessivo capítulo X do livro.
45
[...] única cultura no mundo a inventar-se em termos de civilização e de
religião, e a construir a própria história e depois aquela do mundo enquanto
uma contínua oscilação entre os dois termos,
A escola italiana de Histórias das Religiões manifesta-se, portanto, com essas características,
enquanto uma escola autenticamente histórica que, desde a sua fundação, deu-se como
objetivo de pesquisa histórica a religião ou aquilo que, nos termos classificatórios da nossa
cultura, é levado em consideração enquanto tal.
Finalmente podemos afirmar que a História das Religiões colocou e resolveu o problema de
uma definição da religião, dilatando o próprio conceito até conseguir torná-lo funcional às
culturas particulares estudadas. Operando dessa maneira, a disciplina recalcou
inconscientemente o próprio processo histórico do qual nasceu e se desenvolveu o conceito
“religião”: de fato, esse nosso conceito ocidental ampliou-se, histórica e progressivamente,
com o aumento dos termos de comparação, a começar das origens cristãs de sua
resignificação (verdadeiramente revolucionária) até os nossos dias. Não é por acaso que,
efetivamente, a adoção do termo religio, por parte das línguas europeias, depende diretamente
do processo de “cristianização” do termo e não daquele de sua “latinização”. Portanto, a
historicização do conceito de religião relativiza (tem que relativizar, necessariamente) o
próprio conceito em relação à nossa própria cultura. Esta relativização, enfim, implica o
reconhecimento de que:
11
GASBARRO, 1988.
46
2) “religião” no singular e sem denominações significa um espaço de ação que se
pode individualizar somente em contraposição a um espaço de ação “cívico”;
12
SABBATUCCI, 1987: p. 127.
47
É justamente nessa perspectiva que se coloca o problema da comparação que, na elaboração
da “Escola Italiana de História das Religiões”, encontrou uma nova colocação instrumental.
Esta preciosa ferramenta epistemológica constitui, de fato, a comparação histórica, não
enquanto uma comparação horizontal e estéril dos fenômenos culturais dados, mas enquanto
uma comparação de processos históricos (fenômenos culturais historicamente construídos):
isto significa que não se trata de uma comparação dedicada em nivelar e reduzir “fenômenos
religiosos”, mas, ao contrário, de um instrumento comparativo destinado a diferenciar e a
determinar as peculiaridades precípuas de cada processo histórico (que somente a comparação
pode destacar), para entender também, além das texturas fundamentais comuns, as não-
repetíveis soluções criativas concretas, historicamente realizadas.
Todavia, não podemos perder de vista uma consequência intrínseca à perspectiva e à estrutura
generalizante deste religioso: isto é, na medida em que tudo (ou seja, a diversidade que hoje
13
Que, dependendo dos vários momentos históricos e das diferentes ideologias modernas, pôde ser pensado
enquanto momento que preconizava, justamente, o último estágio (faltante e fundamental) de um processo
civilizacional ainda incompleto, aquele que esperava pela religião revelada; ou, de forma contraposta, enquanto
aviamento ou superação do modelo religioso referencial, até então, para o Ocidente cristão. A esse respeito, seja-
nos permitido remeter ao nosso: Jesuítas e Selvagens: a Negociação da Fé no encontro catequético-ritual
americano-tupi (séc. XVI-XVII). São Paulo, Humanitas/FAPESP, 2007.
48
definimos de cultural) se configura e se identifica com esta categoria, logo o religioso não
existe! Isto vem a significar que no ápice do processo de generalização antropológica das
sociedades etnográficas, o conceito explode tornando-se uma marca importante de sua própria
historicidade e da(s) historicidade(s) que, paralelamente, ele permitiu implementar. As
atormentadas aventuras históricas da categoria do religioso tornam manifesto, além do mais, o
possível e indispensável fundamento de uma (nova) historicidade das “sociedades sem
história”.
1. Religião
Não entramos aqui no mérito dos detalhes que caracterizam e acompanham a necessária
transformação, ao longo de todo o período, do sistema de universalização caracteristicamente
medieval, mas podemos apontá-lo em termos gerais tentando vislumbrar, pelo menos, sua
forte interferência no momento em que a primeira modernidade procura recuperar o antigo,
para fundamentar o processo histórico de uma ri-nascita civilizacional.
14
Trata-se da inscrição do pressuposto (e, depois, da consequente afirmação histórica de sua capacidade
operativa) de generalização que passa da civitas romana, para aquele da civitas Dei agostiniana. Com a
decorrente prioridade entregue ao direito divino (a lex aeterna) em relação à lei natural (lex naturalis) e à lei
positiva (lex positiva), que finalmente encontrar-se-ão subordinadas ao primeiro.
49
De fato, não é por acaso que, por um lado, a perspectiva do processo civilizador começa a
brotar e a se manifestar, em toda sua evidência, desde o confronto com a Antiguidade
realizado pelo Humanismo e pelo Renascimento; por outro lado, todavia, o influxo da
perspectiva religiosa incide particularmente sobre a diferente estrutura histórica emergente
deste confronto entre Antigo e Moderno. Isto é, na modernidade este influxo incide
emblematicamente sobre o modo de pensar a fé e a relação com a divindade. Com isso, a
modernidade vem se definindo a partir da colocação (e do consequente conflito) de duas
fundamentais e extremas alternativas: aquela que, por um lado, prospectava a salvação como
alcançável somente no interior da instituição eclesiástica e, por outro lado, aquela que via sua
possível realização somente por fora (além) dela. Seja para a interpretação das Escrituras, seja
para a salvação no Cristianismo católico (construído tanto na Antiguidade tardia, assim como
na e com a tradição pós-apostólica), não se pode dispensar a Igreja como instituição, na
medida em que naquela protestante moderna esta dependência torna-se, em princípio,
totalmente dispensável.
15
Ao ponto que se pode dizer Sacro Romano Império, mas não se pode chamar a Igreja em termos políticos, a
não ser juntando a expressão “de Deus”: por exemplo, civitas Dei em Agostinho.
50
Por outro lado não é menos evidente o fato de que, durante a primeira Idade Moderna, a
relação do Ocidente com as alteridades dos Novos Mundos continuou sendo construída,
sobretudo, em termos religiosos: e, de forma peculiar, esta se tornou uma característica que se
impôs ao longo de toda a história do Ocidente, até os nossos dias. Dito de outro modo: apesar
da perspectiva contratual (de Direito e civil) vigorar, na modernidade, internamente ao Estado
e ser estabelecida, progressivamente, enquanto código de relação entre os Estados europeus,
perante os povos extraocidentais continuava (e, muitas vezes, continua) prevalecendo a
perspectiva de uma universalização (de uma recuperação das alteridades externas ao
Ocidente) sub specie religionis.
Isto se deve ao fato que, depois do primeiro universalismo “civil”, construído pelo modelo do
Império romano, os sucessivos encontros (e choques) do Ocidente com as outras culturas
aconteceram quando ele identificava a si próprio com e na civitas Dei agostiniana. É assim
que, a partir desse momento, acabou se impondo a perspectiva de pensarmos (pudermos
pensar) o outro com o (e graças ao) conceito de religião: a equação que ia se estabelecendo,
então, correspondia à relação Nós : Civil = Outro : Religioso. Relação comparativa e
diferencial segundo a qual:
Tudo isso, enfim, comportou o fato de que o único critério de verdade sobre o qual o Ocidente
pôde fundar, de qualquer modo, uma comparação – ou no qual pôde procurar uma
compatibilidade comparativa –, era um critério teológico ou, no máximo, teológico-histórico.
Por outro lado, a comparação vinha se projetando segundo duas opostas dimensões: uma
diferencial (a relação: “religioso” versus “cívico”, correspondente, respectivamente, às
realidades: alteridade extraocidental versus identidade ocidental); outra analógica (o
“religioso” do outro enquanto correspondente ao significado da dimensão religiosa que o
Ocidente deixou por trás de si, de seu percurso histórico).
51
Significativo, ainda, que esses problemas comparativos se complicaram, final e justamente, a
partir do Humanismo. Este, de fato, veio a representar a nova centralidade cultural do civil:
aquilo que ainda hoje chamamos, impropriamente, de “laico”, “secular” ou “mundano”,
termos esses que, no fundo, podem ter um significado em nossa cultura somente se inseridos
no campo semântico do “civil”. E com a nova centralidade deste civil, o Humanismo vinha
acendendo, mesmo que lentamente, o progressivo processo de autonomia da política com
relação à religião. A partir, então, da comparação realizada segundo suas opostas dimensões
(diferencial e analógica), inevitavelmente entrelaçadas, é finalmente esta última complicação
que, mesmo abrindo um espaço de interlocução (todo ocidental) às outras culturas, tornou
quase impossível, para o Ocidente, realizar uma real compreensão sistemática dessas culturas
outras: que dão um valor diferente, mais ou menos sistemático, àquilo que nós chamamos de
religião.16
Como já apontamos, a oposição entre o civil ocidental e o religioso das outras culturas ganha
um novo impulso a partir da fratura essencial e dos consequentes e novos pressupostos
interpretativos que se estabelecem, no século XVII, no plano da representação da natureza e
de uma nova inserção do homem nela: trata-se daquela que denotamos como a emergência
histórica17 da específica “antropologia negativa” decorrente do fim do paradigma aristotélico:
de Hobbes, passando pelo empirismo inglês – e, consequentemente, por seu característico
deísmo –, de Locke a Hume, até Voltaire e Rousseau na França. Nesse momento
evidenciamos o surgimento de uma nova função social que a religião vinha assumindo, para
suprir, justamente, ao esvaziar-se da dimensão social (de aristotélica memória) própria do
homem de natureza: falamos então, a esse respeito, da aquisição de uma consciência civil da
religião e da consequente abertura teórica em direção à possibilidade de realizar uma sua
história natural (não mais sobrenatural). 18
Apenas para levar em consideração um exemplo, a esse respeito, podemos destacar como, no
berço dessa perspectiva, já a discussão entre Leibniz e Newton sobre a religião natural
16
Em plena época humanista podemos pensar, por exemplo, na própria civilização que mais perturbou o
ambiente cultural (e religioso) europeu e que representa, ao mesmo tempo, uma cultura que dá um valor
fortemente sistemático, mas diferente, àquilo que nós chamamos de religião: trata-se da cultura árabe clássica
que não conhece oposições como religioso/civil, eclesiástico/laico, espiritual/temporal ou outras dicotomias
ocidentais pensáveis somente no interior de uma cultura que é, ao mesmo tempo, civilização e cristã.
17
Nascida do forte impacto e da consequente transformação da cultura europeia que vêm se determinando com
as descobertas científicas do século XVII.
18
A primeira sancionada, por exemplo, pelo Contrato Social de Rousseau (1762), a segunda exemplificada,
entre outras, pela obra de David Hume, The Natural History of Religion (1757).
52
representa para Voltaire um motivo de atenção na medida em que, assumindo as defesas do
Deus de Newton, ele pode realizar a passagem necessária da metafísica à filosofia prática e,
particularmente, à filosofia política, tornando o Deus geômetra do universo newtoniano o
Deus garante do princípio da justiça comum a todos os homens cuja forma secularizada é, a
partir de Hobbes, o soberano. A salvação que o deísmo de Voltaire propõe, portanto, é uma
salvação terrena, baseada na fé de uma religião não dogmática, mas racional 19: em seus
preceitos pode-se encontrar o fundamento da existência social enquanto lei comum,
socialmente construída, não mais naturalmente dada. Nessa perspectiva, a relação céu-terra
não consiste mais em uma salvação que desce do céu para a terra, mas naquela de uma
racionalidade do homem – de uma sua construção artificial – que tem a função de elevá-lo da
terra ao céu.20
Esse representa o novo impulso do universalismo Iluminista (e que abre o momento histórico
de outro importante e novo confronto com a alteridade) 21 que vem preparando e, finalmente,
afirmando, para os séculos XIX e XX, a oposição entre o civil ocidental e o religioso das
outras culturas, tornando-a, progressivamente, radical: a radicalidade da nova oposição vem
se fundamentando, então, em um modelo civil (ocidental) de compreensão das alteridades
(inclusive em termos “religiosos”) contraposto ao modelo religioso das outras culturas que
engloba em si (em modo totalizante) aquilo que nós distinguimos enquanto civil. É por isso –
por coerência interna de seu próprio sistema – que, por exemplo, ainda aos dias de hoje, o
19
Nesta direção, a perspectiva de Voltaire se opõe firmemente, portanto, à própria e característica hipótese da
religião civil delineada por Rousseau: uma religião secular que lhe aparece somente fonte de violência e
reproposição dos horrores das religiões positivas. Enfim, tanto Rousseau quanto Voltaire propõem a mesma
análise da relação entre religião e política e a mesma solução ao problema do conflito de religião entendida
enquanto “despoliticização” do conteúdo substancial do dogma, mas a diferente visão que eles têm da natureza e
do homem social os leva a afirmar uma diferente estratégia de neutralização, que é dogmática na perspectiva da
religião civil de Rousseau, e fundamentalmente a-dogmática na religião natural de Voltaire. Dessa forma, na
base da visão voltairiana de um universo dominado por leis naturais que estão a demonstrar a existência de uma
Vontade criadora e de uma Inteligência ordenadora, que interveio no mundo somente no momento da criação, é
coerente a interpretação de Labriola que defende o fato da religião de Voltaire ser, na realidade, uma forma de
“ateísmo prático”, na medida em que, enquanto representa apenas uma hipótese reguladora da vida social, o
Deus de Voltaire representa (apenas) uma ideia prática (mesmo que importante) para assegurar ao mundo um
mínimo de moralidade. Cf.: LABRIOLA, 1926, p. 126.
20
Com relação a esses aspectos do deísmo e do sistema religioso (político e civil: um “uso instrumental da
religião”) de Voltaire, veja-se, sobretudo, o terceiro capítulo (“La tolleranza di Voltaire: tra morale e politica”)
do trabalho de Lanzillo (2000).
21
Em termos de exemplificação, a esse respeito, nos permitimos reenviar para nosso artigo “Destino e Vontade,
Religião e Política: Companhia de Jesus e Ilustração na Disputa Póstuma dos Ritos do Malabar”. In: Revista
História Unisinos 13(3), Setembro/Dezembro 2009, pp. 211-232.
53
Ocidente rejeita e pretende delegitimar, decididamente, o Islã, apontando seu dedo indicador
contra seu “integralismo”.22
Este fato torna evidente como, por um lado, no interior do característico percurso do
Ocidente, nós nos tornamos, pressupostamente, cada vez mais tolerantes para com a
diversidade religiosa, justamente graças àquele civil que funda nossa civilização.23 Porém, ao
mesmo tempo e, por outro lado, com a mesma ferramenta construída na base deste civil, nós
não permitimos que essa prioridade estrutural (conquistada historicamente, também, enquanto
processo de libertação do teológico e do meta-histórico) possa ser colocada em discussão por
nenhuma fé religiosa: de outra maneira tachada, com um juízo de valor pejorativo,
obviamente, enquanto “fundamentalista”. 24
Ora, vale observar, todavia, um fato importante e, muitas vezes, levado pouco em
consideração: isto é, que a própria palavra “fundamentalista” – que hoje em dia, por exemplo,
nos remete tão dramaticamente ao conflito com o Islã (mesmo que se esqueça quanto o
conflito é, também, interno a ele) – tem uma origem teológico-protestante. De fato, como
vimos no começo deste trabalho, lá onde falamos em “berço teológico-protestante da
manualística histórico-religiosa”25, para o protestantismo o “fundamentalismo” caracteriza
todos aqueles que, em nome da autenticidade da revelação originária, se opuseram às
tentativas de historicização religiosa da teologia liberal, antes, e da história das religiões,
depois. A partir dessa perspectiva (fundamentalista) do protestantismo, tentar compreender a
religião em seu contexto histórico significa, de algum modo, relativizar o dogma teológico
com relação ao sistema cultural de referência, até descobrir e apontar nele indevidas (na
22
A partir daí, portanto, o choque cultural entre os sistemas torna-se cada vez mais áspero com a intensificação
das relações políticas, comerciais, científicas, tecnológicas e militares. Com relação à complexidade do exemplo
islâmico, de seu característico percurso histórico de formação, da sua dialética histórica (e religiosa) com o
Ocidente, analisados em perspectiva propriamente histórico-religiosa, cf. GASBARRO, 1992.
23
Este percurso se delineia, finalmente, como processo de aquisição ao longo de toda a Idade Moderna: a partir
dos fundamentos civis do “pacifismo” de Erasmo, sobretudo em sua dimensão “religiosa”, até chegar à
tratatística sobre a tolerância. Em relação a esta etapa específica, vejam-se, por exemplo, as obras de Locke
(1983); e de Voltaire (2000). Mesmo o “empirismo britânico” – do qual o primeiro é o principal representante,
e o segundo um de seus mais fervorosos tradutores no contexto continental europeu –, que produz suas mais
importantes reflexões partindo de uma nova perspectiva segundo a qual se coloca o “contrato social”, deve
pensar e encontrar, nele, um novo lugar e uma nova função para a “religião”, socialmente entendida. Não será
por acaso que, entre um e outro, se erga significativamente, também a obra de David Hume (The Natural History
of Religion), na qual se pretende construir uma história natural da própria religião.
24
É por isso, ainda, que o Ocidente não permite que essa prioridade estrutural seja colocada em discussão, nem
mesmo pelo Islã: consequentemente, enquanto o Ocidente afirma a originalidade e a arbitrariedade histórica da
sua cultura, de seu processo cultural, não pode não julgar “fundamentalistas”, por exemplo, os modernos
muçulmanos radicais. Cf., ainda, Nicola GASBARRO, 1992, obra citada.
25
Que apontamos no começo do presente artigo.
54
perspectiva protestante) incidências político-civis, caracterizações jurídicas, determinações
sócio-culturais. Os teólogos fundamentalistas, finalmente, são aqueles que vêm, nessas
pesquisas, uma ilegítima antropomorfização do divino, uma historicização errada do meta-
histórico, quase uma mundanização herética do espiritual.
O impor-se de uma necessária comparação histórica, com relação a tudo quanto apontamos
em relação à teoria e ao método histórico-religioso, nos impõe de levar em consideração,
finalmente, a decorrente constituição da nova perspectiva propriamente antropológica. Ela
surge, de fato, no final desse percurso, como herdeira de uma função (interpretativa) de
generalização e de universalização: ao seu limite, voltada (e/ou destinada) a desenhar e tornar
possível uma compatibilização das diferenças. E, veja-se bem, muitas vezes essas funções não
se caracterizam apenas e limitadamente em termos teóricos e interpretativos, mas recebem a
força operativa de uma lei que lhes confia a tarefa da elaboração de estudos que, por exemplo,
se configuram enquanto finalizados à construção de uma “etnicidade” impensável sem
26
Exemplo evidente, entre outros, deste importante aspecto fundamentalista protestante é, nesses tempos, aquela
atitude que surgiu em âmbito norte-americano – justa e paralelamente ao estabelecer-se do conflito, em forma de
pretexto e paradoxalmente, em nome da democracia (realmente integralista), com o fundamentalismo
integralista islâmico. É este contraditório fundamentalismo que, enfim, levou determinados setores da cultura
norte-americana a combater, inclusive, a teoria científica (ou se quisermos a proposta interpretativa) da evolução
das espécies de Charles Darwin.
55
referência à sua relação com um determinado ordenamento jurídico nacional. 27 Ao mesmo
tempo, esta nova perspectiva antropológica evidencia-se enquanto resultado do processo
histórico inaugurado, antes, com a nova extensão do conceito de civilitas (em termos de
processo civilizador), ao longo do Renascimento e da primeira Idade Moderna; resultado
solidificado, depois, com a perspectiva iluminista de uma “ciência do homem”, e efetivado,
progressiva e finalmente, enquanto nova perspectiva de universalização ocidental (mais uma
vez sobre a re-fundação de uma nova ratio que se torna, enfim, a “razão” própria das Luzes).
Neste percurso, inscreve-se, portanto, o novo estatuto da comparação que resultará ser,
também, o instrumento necessário e privilegiado para fundar a moderna ciência antropológica
no interior da qual a comparação entre elementos vai levar, inevitavelmente, a um confronto
entre sistemas culturais e a um aprofundamento histórico desses sistemas. Os indícios da
origem da disciplina antropológica em seu enraizamento, neste específico percurso que funda
a comparação, podem ser vistos, justamente, nas categorias prioritárias, historicamente
fundadas, do “civil” e do “religioso”: elas foram sendo lapidadas na “proto-antropologia”
missionária da modernidade, tornando-se a base da inicial “Antropologia religiosa” e
constituindo-se, enfim, enquanto herança sólida – mas sempre historicamente construída –
entregue à Antropologia (tanto social quanto cultural) que, ainda hoje, encontra nessas
categorias alguns de seus códigos referenciais fundamentais e privilegiados. Podemos dizer
que a transformação da perspectiva antropológica se verifica, no período de sua constituição
moderna, a partir de um conhecimento – realizado através da comparação – ainda normativo e
geral que progressivamente vai se configurando em uma abordagem histórico-generativa e
local, como a chama Clifford Geertz.28
É a partir desta perspectiva que se pode perceber e afirmar, finalmente, que não existem
valores absolutos abstraíveis de um determinado sistema cultural: motivo pelo qual é
impossível emitir um julgamento de valor objetivo sobre uma cultura qualquer. Nesta ótica,
27
Isto faz com que se estabeleça a necessidade de refletir mais detidamente, por exemplo, sobre o “contexto
intersocietário no qual se constituem os grupos étnicos”, abandonando a sua caracterização abstrata e genérica,
para situá-lo mais precisamente como parte de um “quadro político preciso”. Segundo os termos sugeridos por
Oliveira (1998).
28
GEERTZ, 1983. Tendo em vista esta problemática que pretendemos delinear neste item 4, a partir daqui
iremos acompanhar parte do percurso apontado nas conclusões de nosso trabalho anterior, O Apetite da
Antropologia, obra citada. Aqui desvincularemos aquele percurso do interesse relativo à especificidade daquela
investigação (em relação à Antropofagia americana), centralizando-o, sobretudo, nos fundamentos e na
perspectiva da abordagem da Antropologia e, com ela, daquela da História das Religiões.
56
portanto, a partir de uma perspectiva propriamente antropológica, mas também, internamente
a ela, histórico-religiosa, nos tornamos conscientes que:
O discurso sobre o “outro” se configura, então, de forma paralela, como um discurso sobre si:
e, do ponto de vista antropológico, não podemos esquecer que o processo vale tanto para o
29
SAHLINS, 1990, p. 07.
30
Idem, Ibidem, p. 11.
31
Nesta direção, portanto, a “cultura” vem sofrendo, na disciplina antropológica, o mesmo processo de
“relativização histórica” que vimos ocorrer com a “religião” em âmbito histórico-religioso; ou seja, depois que
certa inicial identificação (tradução) antropológica da religião em termos de cultura correu o risco de objetivar
também esta última, finalmente se impôs quase que uma sua “vanificação”, análoga àquela que ocorreu com a
objetivação do religioso. O resultado foi o surgimento de uma perspectiva segundo a qual, assim como aconteceu
com a religião, a cultura também se constituiu – ou melhor, no caso de muitos estudos, ainda teria que se
constituir – enquanto “código”. Exemplo significativo dessa nova perspectiva crítica da ideia (conceito) de
cultura é, entre outros, o trabalho de Terry Eagleton (2000). Mas, a esse respeito, resulta importante sublinhar,
ainda, quanto menos entre outros, o trabalho de Adam Kupper (2002). Ainda, no que diz respeito à crítica do
conceito de cultura (em sua contraposição àquele de “civilização”), às características descobertas e modalidades
de “invenção” do outro, assim como à problemática antropológica geral deste item, pode resultar interessante
confrontar o trabalho de Mondher Kilani, 1994; em seus capítulos primeiro e quarto.
Com relação à noção de “código” e de sua função analítica e interpretativa, veja-se enfim o trabalho, já citado,
Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural, de Paula Montero (Org.).
32
Ver: MAZZOLENI, 1986.
57
etnógrafo quanto para o nativo. Todavia, é importante observarmos como o fato de reconhecer
a contemporaneidade etnográfica e nativa deste discurso:
Ontem como hoje, portanto, enquanto não for levada em consideração a consciência histórica
de um etnocentrismo crítico, podemos verificar como, por exemplo:
O fato é que esta específica modalidade de relação com a alteridade diz respeito às
potencialidades e aos instrumentos que se encontram no patrimônio cultural europeu,
historicamente construído: e este patrimônio se identifica, sobretudo, com a estrutura aberta e
auto-referencial própria deste sistema cultural. Por força de governo (administração) das
coisas e dos homens, a primeira característica funda e alimenta a segunda, que permite
administrar a produção semântica e a organização social. O Humanismo, que impõe uma
subjetividade histórica e cultural, constitui o princípio da nova exegese filológica e da
transformação dos textos; a comparação das diferenças faz emergir semelhanças que se
inscrevem na ordem racional da natureza. Cria-se, portanto, uma “razão natural” que se torna
princípio fundante e essencial dessa nova semântica do sistema auto-referencial. 35
33
FABIETTI, 1993, p. 279.
34
KILANI, 1993.
35
GASBARRO, 1992, p. 33-35.
58
É esse importante fato histórico que configura a modernidade como complexo de comparação
entre sistemas de valores e modelos de comportamento, evidenciando compatibilidades ou
incompatibilidades estruturais que se traduzem em eventos de encontro e de choque. Mesmo
partindo da consciência das diferenças entre culturas, a Antropologia relativista, muitas vezes,
se esquece que a própria diferença é constituída, em sua especificidade, enquanto dado
histórico contingente que tem uma formação e um desenvolvimento próprios: e assim acaba
fazendo dele um valor necessário e meta-histórico. Contrariamente a esta postura, do ponto de
vista histórico-religioso, todavia, não podemos esquecer que a igualdade (e suas modalidades
de produzir as diferenças) não é uma característica congênita à humanidade, mas uma
conquista histórico-cultural. Nessa direção pode se falar de:
Esta conquista histórica e cultural renascentista – que resulta ser a Igualdade enquanto
exigência semântica da transformação social e do nascimento cultural do mundo moderno –
tende a desnaturalizar as diferenças para poder torná-las objeto de história. Essas diferenças,
subtraídas à natureza (à qual ficaram subordinadas desde a Antiguidade até o fim da Idade
Média), foram, de fato, entregues à cultura durante a Renascença, que se constitui, desse
modo, como o momento do nascimento de uma igualdade natural: esta última, depois de
encontrar sua resolução científica e definitiva com O pensamento selvagem, de Lévi-Strauss,
abre a perspectiva (e a possibilidade do entendimento) da diferença cultural ao método
comparativo e impõe, para si mesma, o problema da especificidade histórica e relacional (não
absoluta) do Ocidente. Nesta nova perspectiva, a Antropologia torna-se, por consequência e
inevitavelmente, Antropologia histórica.
36
Idem, Ibidem, p. 15-16.
59
sufocadas por esta grande construção analógica, o Humanismo fez explodir, também, a
emergência da nova consciência histórica do Ocidente que, finalmente, o obrigou a levar em
consideração uma realidade outra muito mais articulada e complexa, não redutível ao
tradicional dissenso teológico. Nesta perspectiva, dissemos, Montaigne torna-se o precursor
de uma posição, que será característica do racionalismo filosófico, mas que mantém uma sua
rica peculiaridade: aquela de uma “razão tênue”, funcional ao preanuncio da constituição de
um “pensamento selvagem”. Com esse instrumento crítico, central nos Ensaios, determina-se
uma nova dimensão na qual os valores não são mais enraizados em realidades intemporais,
como a palavra divina ou a razão natural: mesmo os valores ideais da consciência aparecem, a
ele, como valores que nascem, assim como todas as crenças, mesmo as mais bizarras, do
hábito, das formas de vida, das paixões. Consequentemente, a reflexão céptica de Montaigne
sobre a multiplicidade dos valores foi se alargando em direção à análise de sua gênese e à
reflexão sobre a sua consequência apontando para uma nova impossibilidade de reduzir as
culturas à unidade e à afirmação de uma universalidade. Trata-se, enfim, do reconhecimento
da complexidade de todo sistema social e das relações que existem entre mais culturas que,
inclusive, por esta via, abriu a perspectiva da tolerância na consciência europeia. Como
relevamos na Introdução aos Ensaios:
60
E isso se torna possível ao criar, inclusive, a possibilidade de renunciar à
unidade do gênero humano e ao propor, em consequência, uma diferença
cultural superior à própria identidade natural. Essa é a grande possibilidade
aberta pela herança renascentista, que, ao superar o risco de ruptura que a
diversidade poderia trazer à constituição de um paradigma de
“Humanidade”, que começa a ser construído justamente nos anos dos
Ensaios, permita pensar – como reflete o pensamento do próprio Montaigne
– que “deparamos em qualquer homem com o Homem” (III, II).37
Esta é a operação de desnaturalização das diferenças que pode e deve permitir torná-las objeto
de história. Como dissemos, a partir dessa operação, o próprio pensamento selvagem de Lévi-
Strauss abre a perspectiva de um entendimento da diferença cultural que, baseado no método
comparativo, impõe, consequente e inevitavelmente, o problema da especificidade histórica e
relacional (isto é, não absoluta) do Ocidente. Finalmente, é nesta nova perspectiva que se
inscreve, necessariamente, a necessidade – ainda apenas teórica em Lévi-Strauss – para a
Antropologia de torna-se Antropologia Histórica.
A Antropologia, portanto, não tem outro caminho a não ser o de partir desta historicidade –
além que de sua própria historicidade – para nela (e através dela) encontrar suas raízes e seus
37
AGNOLIN, 2000, pp. 28-29.
38
LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 192.
61
limites que, conscientes, tornam-se suas potencialidades. E se, nesse percurso, o discurso
antropológico acaba encontrando em si mesmo a expressão de uma relação eurocêntrica, hoje,
pelo menos, parecem ser duas as alternativas com que ele pode se deparar.
No âmbito dos estudos sociológicos, contrariamente a uma análise marxista – que apresentava
as religiões como instrumenta regni das classes dominantes e, portanto, as concebia
relacionadas, mais ou menos diretamente, a contextos econômico-sociais – Max Weber
apontou para a possibilidade de um processo oposto reivindicando para uma forma religiosa
(o calvinismo) a origem de um sistema econômico-social (o capitalismo) 41. Dessa maneira,
em contraposição ao marxismo, o sociólogo alemão negou a possibilidade de que a religião
representasse a ideologia, ou o reflexo, de uma determinada camada social, procurando,
assim, alcançar a dinâmica, e uma hermenêutica, específica de cada fenômeno analisado.
Dinâmica e hermenêutica específicas que, se encontram espaço na análise e na perspectiva
teórica mais abrangente propostas por Weber, alcançam seu objetivo de entendimento de cada
39
KILANI, 1993.
40
GEERTZ, 1973; 1988; 1989.
41
WEBER, 1974.
62
específico fenômeno justamente partindo da negação da possibilidade (pressuposta) de
princípios estruturantes universais: é contra estes que o autor afirma existirem, enfim,
somente determinações parciais referentes a casos empíricos concretos.
Por outro lado, Ernesto de Martino, relendo na linguagem de Husserl a distinção entre
naturalismo e historicismo, afirmava que a ciência natural assume como próprio horizonte de
conhecimento a constituição fenomenológica de um “mundo em si”, de uma natureza como
“dada”, antes e independentemente da presença humana. O método dessa ciência se funda
sobre “um ‘como se’ operativo postulante de um ‘em si’ sobre o qual se opera”, que
representa, todavia, ele próprio, um produto culturalmente condicionado. A História e a
Antropologia se ocupam exatamente desse tipo de escolha cultural: tendo como seu objeto de
análise a constituição fenomenológica de mundos, no entanto, elas não podem dar por
assentado (por adquirido como horizonte de estabilidade) este “como se”, e sim, devem
assumir um horizonte mais amplo no qual, o fato de o mundo ser dado (datità do mundo), por
assim dizer, não esteja ainda decidido 42.
Enfim, tanto para De Martino quanto para Weber, na base das respectivas bases problemáticas
colocadas enquanto precondições fundamentais por suas indagações, o mundo não pode se
oferecer, pressupostamente, como “dado”, mas deve ser levado em consideração enquanto
“construído”: aqui se inscreve, também, e ecoa a emblemática e portentosa definição
distintiva, à qual já fizemos referência, proposta por Raffaele Pettazzoni, segundo a qual
“cada phainómenon é um genómenon, cada aparição pressupõe uma formação, e cada evento
tem atrás de si um processo de desenvolvimento”43, cujas dimensões não podem ser
ignoradas. Partindo desse pressuposto, portanto, podemos dizer, de outra forma, que:
Enfim, se tomarmos a Antropologia como uma ciência, é claro que suas categorias/conceitos
devem ser postos em relação com a dimensão temporal. De outra forma, ela se delinearia
como um mito, através do qual o Ocidente, ao mesmo tempo, conta e constrói a e para si
mesmo através de um “outro”: que, neste caso, se configuraria apenas enquanto herói
fundador, “nós originário” (mito-lógico), de nossa identidade cultural.
No momento em que a nossa cultura (ocidental) alargou a definição de “humano” para além
dos limites/confins da aldeia, encaminhou-se em direção ao reconhecimento da “cultura” –
antes, da “civilização” – como patrimônio comum da humanidade. O fundamento desse
percurso – o caminho que levou até a invenção cultural da igualdade na Renascença – tornou
possível o reconhecimento, no interior de nossa cultura, de uma possibilidade de
entendimento da alteridade; por outro lado, ao reconhecer a universalidade da “humanidade” e
da “cultura”, este fundamento corre o risco de partir de uma tautologia e de um
desdobramento: é nesse momento, de fato, que o “humano” assume o valor de lei moral e, ao
mesmo tempo, de princípio de exclusão.
Ora, todavia, a partir desta perspectiva devemos procurar as condições – dentro de nossa
cultura e de nossa história – necessárias para entender como, nessas culturas outras, a
condição de homem representa, sempre, um desafio e uma condição precária. Pois, nessas
culturas, se pode (isto é, não se trata de um fato automático) ser homem, na medida em que se
constrói de forma correta a relação cultu(r)al de troca (e, em certas situações, de defesa) com
45
FABIAN, 1983, p.9.
64
as divindades, os antepassados, os estrangeiros, os animais, a natureza. Isto significa que, a
“humanidade” que nós nos garantimos enquanto categoria, as culturas tradicionais garantem
para si como relação. E, de nossa parte, não temos certeza de que esse processo seja
irreversível, nem que possa ser total, completo, adquirido uma vez por todas.
Dissemos e verificamos que a igualdade (natural) entre os homens é um processo que surgiu,
historicamente, na Renascença. Essa época histórica fundou a concepção relacional e
estrutural das culturas e tornou possível a exemplificação mais paradigmática e significativa
da moderna Antropologia: o pensamento selvagem.46 Partindo desses pressupostos, Lévi-
Strauss sentiu-se autorizado a conceber a Antropologia como uma grande forma de
comunicação do homem com o homem e, fechada a longa discussão sobre a igualdade, pôde
abrir as perspectivas da diversidade (cultural) à pesquisa futura. Uma vez adquirida, histórica
e culturalmente, essa igualdade (natural), abrem-se, enfim, novas perspectivas para a
Antropologia histórica: uma primeira que
as relações que se estabelecem entre Ocidente e culturas tradicionais (nos dois sentidos);
46
Não “o pensamento dos selvagens”, mas o comum substrato (estrutura) de um único e fundamental
pensamento selvagem.
47
GASBARRO, 1992, p. 26-27.
65
o paralelismo e as diferenças (em ambas as perspectivas culturais) de um garantir a
própria identidade, constituindo-a como uma relação; e, enfim
E se
48
Que encontra a fundação de sua possibilidade no percurso histórico humanista-renascentista.
49
GASBARRO, 1996. p. 191.
66
no entanto, não se justifica o desinteresse pela natureza e pelo valor contextualmente
relacional de significantes que, tomados como categorias (ou a fim de representar o implícito
religioso ou para transformá-lo em “universal” antropológico) acabam operando
semiologicamente como os ídolos.
Se, portanto, como demonstrou de forma exemplar a leitura humanista do Novo Mundo
operada pelo jesuíta José de Acosta, o libero arbitrio – que permite abrir um espaço
fundamental para a alteridade no contexto cultural ocidental – deve encontrar seu fundamento
em uma estrutura moral universal, que se constitui como natural na medida em que é
garantida pelo “sobrenatural”, parece finalmente evidenciar-se o fato de que a etnografia,
enquanto história das diferenças,
Nessa direção, enfim, para entender, de algum modo, as culturas outras na única dimensão
possível, aquela da mediação do contato, o Ocidente deve realizar o esforço crítico de
considerar essas suas próprias construções – privilegiadamente universais e, em princípio,
compatibilizadoras das diversidades culturais –, enquanto arbitrárias. Isto, tendo em vista que
o Estado – ou a civitas, à sua base –, não é a única organização sócio-política possível, assim
50
Idem, Ibidem, (nota de rodapé de) p. 202.
67
como o Cristianismo não é a única religião monoteística: o historiador, portanto, tem a função
de procurar as razões – históricas, não lógicas, porque a história diz respeito ao domínio do
arbitrário – do impor-se da síntese dos percursos formativos na história, seja do Estado ou do
Cristianismo, da civitas ou da religio, do Direito ou da Antropologia.
É a partir desses pressupostos e deste ofício do historiador – sobretudo, mas não só, do
historiador “das religiões”, todavia – que a comparação histórica tem que ser analisada como
estrutura de e em contingência: como nos ensinaram os autores renascentistas, mesmo com
nossos novos instrumentos historiográficos, a viagem no espaço, longe de limitar-se à
aventura exótica, deve ser também, necessariamente, viagem no tempo. 51 Por isso, partindo de
nossas codificações (universais e universalisadoras) de civitas e religio, a análise
propriamente histórico-religiosa deve procurar ver o que há no lugar delas, ou, dito de outra
forma, o que desenvolve sua função em culturas diferentes da nossa: naquelas sociedades que,
por essa diferença consideramos antropologicamente enquanto “alteridades culturais”.
51
Assim, por exemplo, em uma perspectiva já iluminista (por paradoxal que isto possa parecer) e sintetizando o
percurso renascentista, com sua obra Les Moeurs des Sauvages Américains Comparées aux Moeurs des
Premiers Temps (de 1724), o jesuíta Joseph-François Lafitau respondeu à dificuldade de reintegrar o selvagem
no curso geral da humanidade, dando sequência a uma perspectiva aberta por outros missionários jesuítas nos
dois séculos anteriores. Deslocando a questão inicial e abandonando a ideia de uma impossível história
cronológica dos Selvagens, a obra do jesuíta francês acabou influenciando profundamente o trabalho de
mediação cultural – dos missionários, antes, e da etnologia, depois –, tanto em relação ao Novo Mundo, quanto
em relação às culturas europeias: para fazer isto, na análise da figura do selvagem, introduziu, enfim, um novo
discurso que se fundamentava na comparação. Esta colocava lado a lado os Selvagens a ele contemporâneos e os
Bárbaros da Antiguidade, através de um quadro comparativo que lhe permitisse reconstruir os primeiros a partir
dos segundos e vice-versa, pretendendo reconstruir ambos pelos sinais (marcas) que teriam deixado, a fim de
remontar, assim, às suas origens. Todavia, para o jesuíta do século XVIII, não se tratava de um hipotético
desenvolvimento de uma história multimilenária, mas, pelo contrário, tratava-se de colher o próprio princípio, o
espírito, de usos e de costumes que teriam constituído a própria essência da humanidade. Isto significa que, em
termos missionários, evidentemente, na ausência da história (de seus vestígios) o quadro dos costumes se tornava
um recurso constituído por um sistema de sinais cuja codificação devia permitir revelar o “sentido oculto de uma
história cancelada”.
Ainda, nesta direção não podemos deixar de levar em conta a obra precursora de Acosta e seu fundamento na
tradição da “escola de Salamanca”, que se afirma por meio dos estudos do dominicano Francisco de Vitoria: cf.
PAGDEN, 1982; e GASBARRO, 1992; 1996. Em relação a Lafitau, veja-se, também, SABBATUCCI, 1987.
52
De algum modo e com diferente alcance de generalização, evidentemente, mas respondendo sempre às
exigências internas e fundamentais das sociedades “outras”.
68
analógica deve representar somente um ponto de partida para o conhecimento: isto porque,
finalmente, os frutos historiográficos maduros são alcançados antes no esforço e depois na
aquisição dos resultados metodológicos da História das Religiões. Esta institui uma
comparação propriamente histórica, sistemática e diferencial que, de fato, providencia a
dissolver a própria analogia, a fim de abrir espaço à história: e isto, partindo do âmbito da
cultura ocidental, que produziu os sistemas de universalização e, com eles, os encontros de
culturas como motores desta história que, somente de forma ingênua ou, eventualmente,
convencional podemos ainda identificar enquanto “religiosa”.
Referências
53
Termo que em português representa, sem dúvida, um neologismo, “vanificação” se refere à “ação de tornar
vã” e foi sugerido pelo autor in: La Storia delle Religioni, p. 95-98. Desse ponto de vista, a crítica histórica se
contrapõe, além que à etnologia missionária – da qual, todavia, parte –, à própria fenomenologia religiosa. Para
dizê-lo com os termos propostos por Sabbatucci: a história das religiões colocou, com efeito, e resolveu o
problema de uma definição da religião, dilatando o conceito até conseguir torná-lo funcional às culturas
particulares estudadas. Assim fazendo recalcou, inconscientemente, o processo histórico do qual nasceu e
desenvolveu-se o conceito de religião. Isso porque o nosso conceito de religião ampliou-se historicamente com o
aumento dos termos de comparação, a começar pelas origens cristãs, até os nossos dias.
54
PETTAZZONI, 1959.
69
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72
Religione e/o religioni? La sfida dell'antropologia e della
comparazione storico-religiosa
Nicola Gasbarro1
1.
Il rapporto tra religione e religioni è ancora oggi un grande problema sociale, perché di fatto
non risolto dalla e nella nostra storia culturale: si tratta di una relazione-opposizione che rimette
in gioco sia il sapere teorico sia l'ortopratica pubblica dell'antropologia e della storia comparata
delle civiltà. La religione e le religioni sono certamente l'oggetto intellettuale della storia delle
religioni, ma possono esserlo anche della teologia e/o della filosofia: la differenza sostanziale è
nella prospettiva teorico-umanistica e nella conseguente pratica metodologica. Le religioni
possono essere ad esempio analizzate come varianti di una religione sostanziale, che in qualche
modo le fonda -ad esempio in una religiosità naturale, e/o in una coscienza trascendentale (si
pensi alla “sacralità” della fenomenologia religiosa)- o le trascende in e con una rivelazione
divina, che si pone e si impone come ortodossia dell'essere e del divenire di ogni storia delle
civiltà. In quest'ultimo caso il monoteismo non è solo il punto di partenza dell'indagine
analogico-comparativa, ma sopratutto l'orizzonte di senso di ogni antropologia e di ogni storia:
le culture diventano una sorta di respiro spirituale della natura in quanto sostanzialmente
originate e governate da una teleologia soprannaturale.
La storia è invece una prospettiva totalmente umanistica: in questo caso tutte le religioni
possono essere ricondotte esclusivamente a ragioni umane, di ordine pratico e di ordine
simbolico, e far parte di una più generale “ideo-logica” che governa le civiltà. Occorre
sottolinearlo: tutte le religioni, anche quelle che rivendicano fondamenti soprannaturali e divini.
Si tratta infatti di un umanesimo che si esprime prima di tutto nella e con la ragione come unico
strumento di comprensione e di analisi -perciò l'antropologia e la storia delle religioni fanno
parte di diritto e di fatto delle scienze sociali- e che resta costantemente cosciente dei limiti
dell'umana contingenza -l'antropologia non può e non deve spiegare le ragioni divine delle
religioni, e la storia delle religioni non può e non deve occuparsi di tutto ciò che per sua natura
1
Professor na Universitá degli Studi di Udine.
73
rinvia alla metastoria. In questa prospettiva è possibile pensare le religioni come sistemi
simbolici complessi che nascono dalla contingenza dell'esistenza e dalle sue numerose “crisi
della presenza”, come le chiama De Martino, per riconvertire il sublime del senso nella pratica
sociale: le religioni (e tutto ciò che la nostra cultura ha codificato come tale) sono sempre una
mediazione simbolica e pratica tra le costrizioni contingenti della vita e le inevitabili pressioni
che esercitano sul pensiero. E' perciò veramente difficile ridurre la molteplicità dei linguaggi
religiosi, dalle strutture elementari dei miti della foresta alla complessità dei grandi rituali dei
monoteismi, alla retorica onnipresente e all'ortodossia di un Verbo che si incarna nella storia e
nelle culture.
La storia delle religioni è altra cosa, e soprattutto mette in moto altri saperi e altre prospettive di
senso. E' necesario chiarire subito che ogni approccio comparativo stabilisce relazioni con
l'alterità costruite a propria immagine e somiglianza, elaborando così un codice specifico e una
teoria soggiacente che ne legittima le pratiche di incontro e di scontro culturale. La teologia -
basti pensare alla nostra- conosce le altre religioni come varianti di una verità trascendente, di
cui occorre fare una storia intesa da un lato come fenomenologia dello spirito (in senso
hegeliano) e dall'altro come conoscenza indispensabile nel mondo attuale: dopo tutto le sorti
del mondo sono affidate al dialogo interreligioso capace di ridare un senso vero ai rapporti tra
le civiltà, ormai imposti dal processo di globalizzazione 2. Tutti gli altri sono semplicemente
“non credenti”, perché la fede non è solo una ortodossia religiosa, ma soprattutto un principio
distintivo (e inevitabilmente discriminante) di ogni ortopratica sociale. A questo proposito
occorre ricordare che la storia delle religioni non è una criptoteologia e meno ancora
un'antropologia religiosa ad uso e consumo dei “non credenti”, ma una prospettiva
radicalmente diversa, che si serve della ragione (e non della fede) per comprendere le ragioni
umane, sempre “buone” da pensare, che hanno messo in moto il costituirsi pragmatico ed
esistenziale di tutte le religioni, delle relazioni tra loro e soprattutto delle specifiche pretese di
legittimità, anche quando sono nascoste nel mistero di una divinità trascendente. Questo
umanesimo resta limitato nella e con la propria contingenza antropologica, ma non può essere
2
Non è un caso che un teologo come Hans Küng apra ogni volume della sua trilogia sui monoteismi (Ebraismo,
Cristianesimo, Islam) scivendo : “Non c'è pace tra le nazioni/senza pace tra le religioni./Non c'è pace tra le
religioni/senza dialogo tra le religioni./Non c'è dialogo tra le religioni/senza una ricerca sui fondamenti delle
religioni”. Si tratta, come precisa Küng, “di principi programmatici formulati in vista di un globale cambiamento
di consapevolezza, fondamentale per la soopravvivenza”. Si veda Küng 1991, 1994 e 2004. D'altra parte il
grande teologo svizzero si era già occupato dei rapporti tra Cristianesimo e religioni universali (1984)e aveva
lavorato per un progetto di un'etica mondiale (1990). Il caso del “progressita” Küng, che merita un
approfondimento antropologico (come ha cominciato a fare in Italia Tullio-Altan) è ancora più emblematico se
rapportato al più diffuso etnocentrismo culturale della teologia cristiana.
74
considerato “riduzionista”: se la sua pretesa continua ad essere quella di spiegare in termini
storico-sociali anche il sublime delle religioni, non si capisce di cosa dovrebbe essere riduzione
e/o semplificazione. Se poi si intende la storia della religioni come un sapere riduzionistico
rispetto alle diverse teologie, perché non tiene conto delle rivelazioni divine (spesso
antropologicamente incompatibili!), è epistemologicamente incomprensibile l'ostinazione con
la quale si chiede alla storia di dare risposte sulla metastoria, mentre si ritiene impossibile (e a
ragione!) pretendere dalla fisica di fare altrettanto sulla metafisica.
Proprio per evitare cortocircuiti ermenutici tipici della nostra cultura teologica, la comparazione
storico-culturale deve essere la priorità strutturale della storia delle religioni, sia come metodo
d'indagine sia come prospettiva teorica: da un lato “lo sguardo da lontano”, di cui parla Lévi-
Strauss (1983), ci aiuta ad evitare l’etnocentrismo di ogni ortodossia, di ogni metafisica, di ogni
filosofia della coscienza, dall'altro l'antropologia umanistica la obbliga a pensare i rapporti tra
gli uomini e la divinità come un fatto sociale totale. La globalizzazione attuale dei rapporti
sociali e simbolici tra le civiltà ci costringe a rianalizzare storie comparative totalmente “altre”
e conseguentemente a riflettere in modo critico sulle nostre: questa pratica antropologica non
aspira alla scoperta di nuovi “universali concreti” della storia e delle culture o ad una diversa
morfologia del sacro, nascosta nella soggettività trascendentale, ma a spiegare le differenze dei
sistemi “religiosi” per interrogarsi problematicamente sulla possibilità della loro compatibilità
nella società civile, senza pregiudizialmente mettere in campo strategie geopolitiche. Lo
“scontro delle civiltà” (Huntington 1996) non è una conseguenza pratica necessaria della
comparazione storica tra le “religioni”, ma spesso una traduzione politica e ideologica
dell’ortodossia universale della “religione”: la prospettiva storico-religiosa deve compiere lo
sforzo di tradurre storicamente e di mettere in contingenza culturale ogni nozione universale di
“religione”. Questo è possibile se e solo se l’analisi concerne i processi di generalizzazione
interculturale di tutto ciò che noi riteniamo essenziale ed in qualche modo “naturale”: se
l’universalità della religione è solo il punto di arrivo di un processo storico di generalizzazione
interculturale, la sua pretesa naturale e “soprannaturale” nasconde una formazione etnocentrica,
una forza di sviluppo storicamente contingente e culturalmente arbitraria, che permettono di
ripensare il suo potere-valore di senso ed il suo orizzonte ermeneutico nella pratica della vita.
Cercherò quindi prima di tutto di richiamare brevemente le strutture di continuità della storia
delle religioni italiana, soprattutto a partire dalla relazione-opposizione tra religione e religioni:
non a caso la rivoluzione monoteistica, che ha reso sostanziale la nozione di religione e
legittimato la sua pratica fino ad universalizzarne il senso, è al centro del mondo religioso
compreso nella e con la relazione-opposizione. La rivoluzione metodologica dell’antropologia
strutturale può poi aiutare ad analizzare le religioni in termini di relazioni e soprattutto di
allargare lo sguardo comparativo, salvaguardando i codici di comportamento storici, che
garantiscono la prospettiva pratica e l’impegno umanistico. Sarà quindi possibile alla fine
formulare qualche ipotesi diversa sulla relazione-opposizione religione-religioni in termini di
codici di comunicazione nella complessità contemporanea delle relazioni tra civiltà. Se la storia
delle religioni e l’antropologia sono il punto di partenza per un’analisi riflessiva sulle sfide
della globalizzazione dei rapporti sociali e delle strutture simboliche, la critica
dell’etnocentrismo religioso è nello stesso tempo una necessità scientifica ed un valore “civile”
aggiunto di una politica democratica che vuole affrontare le turbolenze crescenti del sistema
internazionale.
La storia delle religioni italiana ha una continuità di prospettiva e di metodo, dal suo fondatore,
Raffaele Pettazzoni, primo professore a Roma nel 1924, fino al suo ultimo allievo diretto, Dario
Sabbatucci, che ha portato alle estreme conseguenze teoriche gli insegnamenti metodologici del
76
maestro. La prospettiva è storicamente operativa almeno a tre livelli: il primo è la contiguità
sostanziale tra religione e civiltà: la religione è pensabile solo all’interno della civiltà, anche
quando, come nelle religioni monoteistiche, la prima rinvia alle relazioni tra uomini e divinità
come valore fondamentalmente prioritario di un sistema di relazioni. Occorre anzi cercare le
ragioni umane di questa priorità -e la storia non può fare di più!- ma sempre all’interno del
sistema generale della civiltà. Pettazzoni (1924) utilizza infatti tutte le priorità implicite nella
nozione di civiltà per spiegare storicamente le religioni: struttura dei rapporti sociali, regole
elementari di comportamento, pratica della produzione economica sono alla base sia del
mistero simbolico delle cosiddette “religioni primitive”, sia della complessità teologica del
politeismo e più ancora della rivoluzione monoteistica. La religione specifica deve essere
compresa con le strutture pratiche della civiltà, anche perché il procedimento inverso rinvia ad
un qualcosa o qualcuno, la cui essenza continua ad essere meta-storica e meta-fisica. La ricerca
di Sabbatucci (1990) rende esplicito l’implicito pettazzoniano: la storia della religioni parte
dalla nozione analogica di religione ed elabora una comparazione sistematica e differenziale
delle civiltà. Di più: è una storia comparata delle civiltà che utilizza la religione come codice di
senso prioritario della vita sociale perché questa è la funzione che Il Cristianesimo ha avuto
nella civiltà occidentale. Conoscendo le altre civiltà, abbiamo riconosciuto come “religioso”
ogni codice prioritario di senso e come tale lo abbiamo trattato, fino all’universalizzazione di
un “oggetto religioso” che trascende la storia e le civiltà. Ma anche questa è una costruzione
storica dovuta alle relazioni tra civiltà e la sua coscienza critica rende più complesso il percorso
comparativo e dà nuovi strumenti di analisi delle diversità, fino a rompere le frontiere del
possibile e del pensabile della religione: se le religioni trovano le loro ragioni umane nelle
diverse civiltà, il vecchio universalismo della religione diventa un residuo teologico senza
possibilità di verifiche storico-culturali.
Prima di tutto occorre sottolineare due analogie dei punti di arrivo: da un lato la critica
comparativa de “Il totemismo oggi”, dall’altro il fatto che l’antropologia strutturale, operando
79
con il metodo relazionale, non può non proclamare la fine di ogni universalismo oggettivo e
l’inutilità di ogni filosofia della coscienza. Sulla dissoluzione della religione totemica,
l'antropologo strutturalista è esplicito: “Non si tratta di un testo negativo. Direi piuttosto critico
in senso kantiano. Era necessario liberare l’etnologia da un certo numero di illusioni che
offuscavano lo studio dei fatti religiosi nelle società senza scrittura. Era anche necessario
tentare di chiarire la problematica che sarebbe stata mia negli anni successivi”(Lévi-Strauss,
Eribon 1988, pg.104). Sulla prospettiva generale del metodo antropologico, i progressi della
ricerca comparativa hanno mostrato che lo “spirito umano” di Lévi-Strauss non è la coscienza
trascendentale della fenomenologia e che le “strutture” sono logiche e quindi “vuote” di valori
di senso a priori, cioè da riempire con la storia delle civiltà e delle loro relazioni. Per liberarsi
della tradizione intellettuale e filosofica dell’Occidente -è, a mio avviso, il vero messaggio di
“Tristi tropici”- è necessario ripensare la nozione di cultura e la struttura della relazione tra
natura e cultura. La sfida esige una rivoluzione metodologica, messa in atto dalla logica
relazionale: tutti i termini sono aggregati di relazioni e di relazioni tra relazioni, ed ogni
complessità nasconde un certo numero di relazioni arbitrarie, di cui si può fare la storia
comparativa, anche per costruire una seria antropologia della significazione. La nozione di
religione e quella di cultura sono legate tra loro: la religione è per Lévi-Strauss una sorta di
antropomorfizzazione della natura, e la magia è una sorta di naturalizzazione dell’uomo. Una
antropologia diversa può aiutare la storia delle religioni da un lato a ripensare il suo oggetto
intellettuale, il suo metodo e la sua prospettiva, dall’altro a criticare radicalmente il discorso
dominante dell’antropologia naturalista e/o della storia universalistica. D’altra parte se il valore
universale e ontologico del concetto di religione è l’effetto di una generalizzazione storica
segnata dalla prospettiva cristiana, bisogna ripensare in termini antropologici le nozioni di
soprannatura e di fondamento di senso. Il problema del senso resta centrale: ancora oggi la
religione infatti si pone e si impone come orizzonte paradigmatico della significazione
culturale.
81
pratica impossibile. A mio avviso, l’antropologia strutturale può indicare una diversa direzione
e delineare un nuovo immaginario della religione e del suo potere di senso.
La natura non è una nozione indipendente dalle culture, una sorta di loro fondamento
ontologico, ma una costruzione simbolica di uno specifico sistema storico che se ne serve per
codificare i suoi limiti: limiti dei codici arbitrari di senso e dei codici di comportamento sociale,
per la semplice e buona ragione che i grandi determinismi naturali si pongono e si impongono
alla fine delle possibilità delle relazioni culturali e delle loro ideologie simboliche. Se la logica
è il limite della pratica simbolica, l’antropo-logica deve essere il limite umano delle storie e
delle culture, e l’antropologia deve fare i conti con l’entropia, che è la logica dei limiti imposti
dalla natura. Di più: se la natura non è più il fondamento delle culture, ma il loro limite di
relazioni e di complessità, anche la nozione di “soprannatura” è sottoposta ad una
trasformazione senza precedenti nella storia delle relazioni tra civiltà.
La storia delle religioni può utilizzare questa prospettiva per sottoporre ad analisi più
complesse il soprannaturale e tutto ciò che abbiamo ritenuto e creduto tale, soprattutto perché
non ha più bisogno della soprannatura come fondamento della “religiosità” naturale e/o della
sacralità della natura. Da questo punto di vista ad esempio anche il concetto cristiano di
soprannatura, fondato sulla metafisica, perde nella vita quotidiana delle culture il proprio valore
universale di senso e la sua funzione di surplus del fondamento naturale. Si delinea un diverso
statuto antropologico: si tratta di un codice arbitrario che ordina sia il senso dei limiti sia i limiti
del senso della cultura specifica, di un codice che, proprio perché definisce le frontiere
operative della società, impone la sua centralità e il suo ordine rigoroso a livello simbolico. Si
può parlare storicamente di un codice dei codici, di un ordine degli ordini che è sempre in
azione, a volte in modo visibile, spesso in modo invisibile, ma che opera soprattutto ed in modo
a tutti evidente quando la pratica della vita sociale spinge il sistema dei valori al di là delle sue
possibilità, fino all’impraticabilità del reale e all’impossibilità del pensiero. E’ un dato
esistenziale delle società e delle culture: questo codice entra in azione soprattutto quando i
rapporti sociali e/o le relazioni tra gli uomini e la natura vivono, come direbbe De Martino
(1995), nella crisi della presenza, la cui angoscia esprime la volontà di essere nella cultura
come presenza storica di fronte al rischio di non esserci. Se esiste un codice operativo che
permette di scongiurare il rischio e di superare la crisi, si tratta certamente del codice prioritario
della cultura che ordina gerarchicamente tutti gli altri, e che richiama l’ordine degli ordini e la
relazione delle relazioni. E’ un codice che deve essere nello stesso tempo centrale e periferico,
82
che lavora nella vita quotidiana e che si manifesta come valore paradigmatico di verità e come
motore della storia sociale, quando gli altri codici non hanno nulla da comunicare perché
esposti all’implosione senza regole della natura. Lo si può anche chiamare codice
“surculturale” a partire dalla sua funzione: relais indispensabile tra gerarchia simbolica e
rapporti sociali, tra i desideri della pratica e la mobilitazione sociale, tra i valori del sistema e la
loro comunicazione interculturale, e perciò sempre visibile nella pratica rituale. Forse non a
caso De Martino ha fatto del rituale l’oggetto di ricerca di una vita: senza rito non c’è soluzione
della crisi della presenza, perché, come dice Lévi-Strauss, il rituale ha la funzione di preservare
la continuità del vissuto. Se è così -e il rituale ci riporta sulla buona strada di un diverso
immaginario religioso- il ritorno critico e comparativo a ciò che abbiamo pensato in termini di
religione e/o di sacro diventa inevitabile. Si tratta di riflettere comparativamente sulla nostra
storia religiosa all’interno del processo di relazioni tra civiltà e di ridare alla storia delle
religioni una prospettica critica e una pratica di impegno civile.
E’ necessario quindi tornare alla storia delle religioni prima di tutto passando per la storia della
nostra religione e della nostra conoscenza delle religioni degli altri, per poi studiare le
possibilità alternative della comparazione. Non posso qui ovviamente analizzare la storia del
Cristianesimo e delle sue missioni interculturali, ma devo brevemente accennare ad un
approccio contestuale e comparativo per liberare la nozione di religione dalla dicotomia
etnocentica natura-soprannatura. Questa nozione, uno dei doni più preziosi del Cristianesimo
alla civiltà occidentale, è prima di tutto un codice pratico di relazione e di comunicazione
rituale tra gli uomini e la divinità: seguendo Sant’Agostino, si può dire che “la vera religione è
il vero culto del vero Dio”. Due aspetti sono evidenti: la priorità della relazione, di cui la
religione è il codice di comunicazione, e la priorità del rituale che caratterizza questo codice più
come ortopratica che come ortodossia. Storicamente è più importante un altro aspetto: la
rivoluzione monoteistica cristiana è insieme teologica ed antropologica. Il principio e l’origine
della relazione esclusiva (il rituale) e della comunicazione gerarchica (la rivelazione) sono in
Dio: il Dio che si fa uomo è la personificazione del passaggio radicale dalla relazione pagana
tra uomini e dèi alla relazione cristiana tra l’unico Dio e gli uomini. I Cristiani, grazie a questa
inversione qualitativa e verticalmente gerarchica, fanno parte di questa relazione e perciò sono
l’incarnazione collettiva, storica e culturale della rivelazione nella storia: occorre quindi
ripensare la struttura dei valori e il sistema politico del mondo pagano ed inventare la Città di
Dio. Di qui la rivoluzione antropologica che dà alla storia dell’Occidente la prima civiltà di Dio
e le sue pretese teologiche di universalità. E’ una civiltà in cui la religione è il codice prioritario
83
che ordina tutti gli altri codici della vita sociale e culturale, grazie alla rivoluzione di priorità
delle relazioni e delle comunicazioni: se i rapporti “Dio-uomini” sono più importanti dei
rapporti “uomini-uomini” e “uomini-natura”, il codice regolativo dei primi (la religione)
impone le sue regole ai codici degli altri (diritto, politica, sapere, ecc..). La causa è teologica,
ma le conseguenze sono antropologiche: il Cristianesimo pensa tutte le relazioni nella e con la
relazione “Dio-uomini”, dunque nella e con la religione, per la semplice e buona ragione che il
suo Dio è all’origine ed alla fine della storia e della conoscenza. Teologia della cultura, ma
soprattutto la religione come codice “surculturale” della civiltà cristiana, in quanto codice del
limite del senso e del senso del limite naturale: non a caso il Cristianesimo ha tradotto in
termini di compatibilità culturale i grandi determinismi della natura, fino alla valorizzazione
della morte in funzione della vita eterna. E’ la prima religione al mondo che dà agli uomini una
prospettiva di compatibilità tra la vita e la morte, tra la fine della vita individuale e il fine della
storia collettiva, per preservare con il rituale, al di là della morte naturale, la continuità del
vissuto. Questo grande miracolo simbolico ha messo in azione l’inversione radicale dei codici
surculturali del paganesimo: gli dèi della città, dello Stato, della natura o dei rapporti sociali
non hanno più senso e sono espulsi dalla città e dalla civiltà di Dio.
Sabbatucci parla di questa grande trasformazione in termini di “fede nella fede”: qui preferisco
pensare la fede come fedeltà alla relazione “Dio-uomini”, che costituisce l’essenza rituale delle
religioni monoteistiche, e la fede nella fede come una fedeltà simbolica e ortopratica alla
“religione” come codice surculturale della società e del sapere, che di fatto segna la rivoluzione
antropologica di ogni monoteismo. Per comprenderne la forza e il potere, si dovrebbe da un
lato fare un’analisi storica e comparativa delle nozioni di “Patto”, “Alleanza”, “Testamento”, di
cui il Cristianesimo cambia ed impone il senso, dall’altro riflettere in termini di codici culturali
sulla filosofia cristiana, sul diritto canonico e sulle espressioni simboliche più complesse della
civiltà di Dio. Un viaggio antropologicamente critico nel proprio immaginario religioso può
dare all’Occidente strumenti critici d’analisi e arricchire, forse, il senso della sua identità
meticcia, anche a livello religioso. Se però la coscienza critica nasce dalla comparazione, come
rianalizzare il problema delle religioni delle società senza scrittura? E le religioni degli “altri”
in generale? La storia delle relazioni tra civiltà della modernità indica un percorso:
l’ontologizzazione e la naturalizzazione della religione sono solo la traduzione teologica e
filosofica della generalizzazione storica ed interculturale della fede cristiana. I missionari sono i
primi protagonisti di questa storia antropologica.
84
La prima occidentalizzazione del mondo della modernità è religiosa: i viaggiatori ed i
missionari hanno pensato le relazioni con gli “altri” prima di tutto in termini religiosi, dal
momento che la religione era il codice surculturale della vita e della morte in Occidente
(Gasbarro 2009). La colonizzazione dell’immaginario (Gruzinski 1988) è religiosa perché
l’ordine simbolico delle culture del mondo è stato interpretato e comunicato tramite l’ordine
degli ordini della modernità occidentale cristiana. La malattia del linguaggio dei popoli senza
scrittura ne è il sintomo evidente: essi non hanno le consonanti F, L, R perché non conoscono la
Fede, la Legge e il Re e vivono quindi senza i codici fondamentali della religione, del diritto e
della politica. E’ necessario quindi convertirli alla vita civile e “ridurli” all’iniziazione
cristiana: le “riduzioni” sono piccole “città di Dio” nella foresta che hanno messo in moto il
processo di evangelizzazione e di civilizzazione del Nuovo Mondo. I missionari sono i primi
“passeurs” culturali in quanto protagonisti della più vasta generalizzazione della religione come
codice dei codici della vita sociale: non a caso i codici della politica, del diritto, delle
istituzioni, ecc.. dipendono dal senso delle “credenze” delle società senza scrittura, anche se i
selvaggi non conoscono il Dio unico e trascendente della Fede cristiana.
Il punto di partenza è necessariamente la struttura analogica delle religioni, frutto della storia
delle relazioni tra civiltà, ma questa deve trovare una formulazione capace di esporla alla
comparazione ed alla falsificazione storica potenziale: l’esempio più importante sono le civiltà
monoteistiche, dove la religione è nello stesso tempo l’ordine della relazione “Dio-uomini” e
l’ordine degli ordini. Si tratta di una analogia sostanziale e formale, che però richiama sotto-
codici d’analisi: il popolo di Dio dell’Ebraismo non è la città di Dio del Cristianesimo, come
questa città non ha nulla a che fare con la Legge di Dio dell’Islam. I sottocodici culturali con
cui una civiltà pensa la propria religione non sono secondari: rinviano a categorie simboliche e
a pratiche di vita che ci permettono di comprendere strategie e gerarchie di codici di
comunicazione che si esprimono nella e con la religione. Questo metodo può dare una
coscienza storica e critica delle religioni e delle diverse fedi nella fede: la religione in quanto
codice dei codici deve esprimersi all’interno e con il codice più importante della vita sociale,
che necessariamente diventa il sottocodice del nuovo sistema generale. Così una città di Dio
deve avere come presupposto culturale l’importanza della città, e una Legge-Tradizione di Dio
deve inserire nella nuova gerarchia di senso della rivoluzione monoteistica il valore della
Legge-Tradizione. D’altra parte l’analisi delle relazioni e dei cambiamenti di gerarchia dei
codici culturali ci permette di capire la funzione supplementare del codice prioritario: il suo
maggiore potere di senso consiste nella capacità di rendere compatibili le inevitabili differenze
86
culturali e soprattutto di rendere accettabili i loro valori all’interno del sistema globale. Quando
questo accade, il messaggio religioso del monoteismo si pone e si impone come universale.
Le società dell’idolatria -e non sono solo quelle senza scrittura, come la lunga storia delle
relazioni tra Occidente e Cina può dimostrare- hanno costretto la comparazione storico-
religiosa a operare un’analogia formale, a partire da ciò che abbiamo conosciuto in termini di
religione. Questa coscienza critica quasi ci costringe a fare a meno della nozione di religione:
occorre “comparare l’incomparabile”, seguendo l’efficace provocazione intellettuale di M.
Detienne (2000)? Sì, se siamo ancora alla ricerca di un fondamento della comparazione in
termini di universale religioso e/o di una relazione universale “Dio-uomini” o “uomini-dèi” che
rinvia alla pretesa cripto-teologica della vecchia storia delle religioni. No, se più modestamente
ci limitiamo a comparare le civiltà e le loro relazioni a partire dall’analogia formale dei codici
surculturali. Non si tratta di comparare le diverse fedi nella Fede -questa suggestione appartiene
solo alla rivoluzione monoteistica-, ma le diverse gerarchie del senso dei sistemi empirici e
storici di relazione e di scambio. Tutto ciò che ha avuto la funzione di idolatria diventa
pertinente: i missionari ne hanno già sperimentato la priorità di senso, l’efficacia simbolica ed il
87
valore esistenziale. Non abbiamo d’altra parte la necessità di immaginare la vera morfologia del
pensiero dei selvaggi: tutti coloro che aspirano all’origine autentica di questo pensiero devono
fare una storia che vuole arrivare ad una terra promessa. Noi possiamo trovare solo i codici
surculturali nascosti dall’idolatria, mascherati dalla feticizzazione delle culture, incastonati nel
pensiero meticcio della storia delle relazioni tra civiltà e/o dell’antropologia moderna. La
comparazione sistematica e differenziale esige un lungo lavoro di scomposizione analitica di
ciò che la pratica meticcia ha messo in azione per preservare la continuità della difficile vita
delle civiltà. E lo può fare proprio a partire dalle analogie formali e generalizzanti: la pratica
meticcia indica sempre l’oggetto, la direzione, la prospettiva e il senso della ricerca. L’idolatria
così de-religionizzata diventa il presupposto di una comparazione fondata sui codici
surculturali delle civiltà. E’ evidente che solo una riflessione comparativa e critica sulle priorità
di senso delle diverse civiltà permette alla storia ed all’antropologia di comprendere le strategie
di complessità e di delineare una nuova economia politica delle ricchezze delle differenze.
E' un dato di fatto della nostra cultura: continuiamo a pensare le altre civiltà e le loro gerarchie
simboliche e sociali in termini religiosi, anche quando i presupposti di partenza sono “laici”! La
storia delle religioni, grazie alla comparazione sistematica e differenziale, è in grado di
vanificare questo pregiudizio ermeneutico della modernità, storicizzandone la formazione
occidentale e gli sviluppi interculturali. Di più: la storia delle religioni ha la capacità di
risolvere in buone ragioni di rapporti sociali e di strutture simboliche di civiltà diverse tutte le
invenzioni culturali del senso, che con etnocentrica certezza ci ostiniamo a rinchiudere nella
categoria universalistica di “religione”. Ripensandola e “traducendola” come codice di
comunicazione sociale storicamente contingente e culturalmente arbitrario, la storia delle
religioni spezza il suo potere esclusivo e gerarchico del senso, e la reinserisce nella civiltà
dell'inclusione sociale e dell'agire comunicativo. Questa disciplina di alto valore civile è oggi
sempre più necessaria: è impossibile evitare il fondamentalismo politico delle religioni senza
una demitizzazione storica e comparativa del loro radicalismo del pensiero. Forse un giorno
saremo in grado di costruire una storia delle civiltà all'interno di una società inclusiva, dove le
religioni avranno funzioni, proprietà e senso esclusivamente “civili”, e non ci sarà quindi più
bisogno di una storia delle religioni critica e riflessiva, ma possiamo immaginare un simile
futuro se e solo se oggi mettiamo in moto un sistema di conoscenze che comprende anche la
storia delle religioni. Ormai ne hanno bisogno tutti: noi per conoscere gli altri, gli altri per
conoscere noi, insieme per ri-conoscerci oltre le differenze teologiche che continuano a
dividerci tra civiltà e/o all'interno di una civiltà (Nussbaum 2007).
88
In conclusione, devo confessare tre certezze di ordine storico, e quindi discutibili e confutabili,
ed una esigenza intellettuale e civile. 1) La prospettiva comparativa messa in moto da
Pettazzoni può essere scientificamente più efficace se riesce a dissolvere la nozione universale
di religione con la storia e nella storia. 2) Se, grazie alla storia delle religioni del passato,
abbiamo compreso la nostra identità culturale e la complessità delle altre civiltà, possiamo
ripartire da questa ricchezza umana e storica delle religioni per arrivare ad una nuova economia
delle civiltà. 3) Questa nuova storia comparata delle civiltà non è più importante o più vera
della storia delle religioni tradizionale, ma solo più utile: il mondo attuale della globalizzazione
delle relazioni interculturali esige sistemi di conoscenza e processi di decisione più
generalizzabili. A mio avviso, la nozione di civiltà è più generalizzabile di quella di religione:
la prima lavora sempre con gli strumenti dell’inclusione sociale e della compatibilità simbolica
delle differenze, mentre la seconda non può non distinguere le fedi e le fedi nella fede, e tende
ad escludere teologicamente ogni diversità sostanziale. Non a caso la “civiltà” interculturale
della modernità ha incluso socialmente le differenze “religiose”, mentre l’inverso è socialmente
impossibile perché teologicamente impensabile.
89
Referências
GASBARRO, Nicola (a cura di). Le culture dei missionari. Bulzoni, Roma 2009.
HUNTINGTON, Samuel P. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order,
Simon & Schuster. New York 1996.
KÜNG, Hans, VAN ESS, Josef, VON STIETENCRON, Heinrich, BECHERT, Heinz.
Christentum und Weltreligionen. Piper Verlag. München 1984.
90
________________. Le regard éloigné. Plon, Paris 1983.
LEVI-STRAUSS, Claude, ERIBON, Didier. De près et de loin. Odile Jacob, Paris 1988.
NUSSBAUM, Martha C. The Clash Within. Democracy, Religious Violence, and India's
Future. The Belknap Press of Harvard University Press, London-Cambridge (Mass.) 2007.
PETTAZZONI, Raffaele. Svolgimento e carattere della storia delle religioni. Laterza, Bari
1924.
91
92
Teoria(s) e método(s) em ciências da(s) religião(ões)?
3
Antropólogo, doutor em Ciência da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR-UFJF). Atualmente coordena e leciona no PPCIR. Contato:
emerson.silveira@ufjf.edu.br ou emerson.pesquisa@gmail.com.
93
O debate sobre a autonomia epistemológica, e acadêmica, da(s) ciência(s) da religião tem
assumido diversas perspectivas nas quais se destacam a predominância de paradigmas
fenomenológicos essencialistas, construcionistas e relativistas. 4 Na esteira desse debate, a
questão da metodologia surge com ímpeto: qual método e qual concepção deveriam nortear os
estudos e pesquisas sobre a religião? É possível uma metodologia (trans)interdisciplinar? No
plural ou singular (método ou métodos) ou seja, politeísmo ou monoteísmo metodológico?
Há, ainda, outras indagações que demandarão debates e conversações: é possível a existência
de um metodólogo, alguém que se ocupe de estudar exclusivamente as metodologias? Qual a
relação entre o solo de origem das metodologias e sua expansão para além do território
epistemológico original? Ou seja, como se dá o uso das metodologias originadas de uma
ciência em outras áreas do saber? Quais as condições ótimas de sua utilização? Qual método e
qual teoria perfazem a identidade da ciência da religião? Uma pergunta que não tem uma
resposta unívoca e convergente.5
Muitas reflexões e textos têm sido escritos, mas pretende-se aqui, sem maiores pretensões,
traças algumas notas sobre as conexões possíveis entre as reflexões epistemológicas e
metodológicas oriundas das ciências humanas e o campo das ciências da religião. Por isso,
adotar-se-á uma perspectiva ensaística, a partir de pequenas incursões textuais e
bibliográficas.
Apontamentos e impasses
4
HUFF; PORTELLA, 2012.
5
USARSKI, 2006.
94
Apontando a reconfiguração do pensamento social, Geertz sugere que, face à ampla e
crescente mixagem de gêneros estilísticos e pluralismos metodológicos, está-se diante, não de
uma nova versão do mapa cultural, mas de uma mudança no próprio sistema de mapear. 6
Cada vez mais, algumas perspectivas não reducionistas recorrem a analogias advindas das
atividades culturais: jogo, teatro, pintura, gramática, direito, entre outras, das quais deriva, por
exemplo, o campo das ciências sociais da religião.
6
GEERTZ, 1998.
7
DOUGLAS, 1998.
95
linguagens.8 Se, por um lado, o perspectivismo pragmatista defende a concepção de que
temos melhores ideias dependendo do maior número, plausível e viável, de perspectivas,
eximindo a possibilidade de transformar o mundo num lugar sem pluralidade de visões, por
outro lado, seus adversários caminham por via oposta: elegendo bases monistas dos valores
religiosos e confundindo o relativismo moral, o histórico e o metodológico, atribuem a todos,
equivocadamente, a ideia de que a justificativa de uma decisão ou escolha pode ser tão boa
quanto qualquer outra do lado contrário.
Como ambas são descrições, propõe-se romper com a crença de que a constância da primeira
e a flexibilidade da segunda dão condições de sustentar a essência das coisas, da religião, do
sagrado, da espiritualidade além da linguagem. O jogo de linguagem da metafísica é
ultrapassado, na medida em que em cada caso, há de fato, e objetivamente, uma visão ou
interpretação.
Mas não se trata aqui de desconsiderar os ganhos epistemológicos e políticos (para o campo
das ciências da religião) oriundos, por exemplo, de uma reflexão kantiana (sujeito de direito e
democracia liberal) ou de exorcizar a “metafisica invertida” da pós-modernidade contida na
essencialização de imagens cultural e historicamente circunscritas de segmentos sociais
subalternizados.
Ergue-se um fluxo de ontologia naturalista que embasa os discursos sobre cultura e religião:
sujeitos atemporais na história das naturezas e das humanidades, o sagrado, o ritual, o
comportamento humano na sociedade são compreendidas como derivações, em última
8
RORTY, 1998.
96
instância, de estruturas biológicas, ou seja, uma neurobiologia das crenças religiosas. 9 E aqui,
ocorrem trânsitos paroxísticos. Por exemplo, tais essencialismos de variadas matizes
biológicas e fenomenológicas, são apropriados por alguns movimentos culturais de minorias,
como partes do movimento negro, feminista e homoafetivo e, ao mesmo tempo, movimentos
religiosos fundamentalistas e conservadores, cristãos, judesu, hindus e muçulmanos, entre
outros.
Porém, a cultura e a religião não estão mais onde sempre se pensou que estivessem. As atuais
reflexões apontam para o fato de que, numa época de fluxos migratórios e diaspóricos de
pessoas, mercadorias e ideias, nunca foi tão fácil confundir o lugar que ocupam as pessoas
com suas práticas religiosas e culturais, com o lugar onde se pensa ou se deseja que elas
estejam. Portanto, os intérpretes e as fórmulas epistemológicas tradicionais foram subvertidos,
invertidos e/ou desinvestidos de plausibilidade, relidos e ressemantizados, espraiando-se por
redes culturais de pesquisa, experiência e crença.
Com isso, institui-se uma tensão entre os incentivos para que as mentes individuais dispensem
tempo e energia na resolução de problemas e a tentação de recolher-se e deixar que as
analogias fundantes e hegemônicas da sociedade se sobreponham. Emoção, cognição e
estrutura social estão ligadas em sistema, porque uma “ordem social distinta gera os próprios
9
VALLE, 2011.
10
DOUGLAS, 1998, p. 63.
97
padrões de valores, engaja corações de seus membros e cria uma miopia que parece ser
inevitável”. 11
Inscrita no fenômeno geral da cultura, a religião pode ser interpretada desde a ótica das
ciências humanas até a das ciências da religião, devendo-se evitar a hierarquização
epistemológica e a construção de competências normativamente excludentes do diálogo
necessário entre as comunidades teóricas e científicas.
É preciso, então, uma antropologia focada nas sociedades complexas que traga outras formas
de perceber o religioso e seus processos de des-diferenciação face à modernidade, ao observar
a ação e a prática dos “cientistas nativos” ou dos “nativos-observadores”, termos entendidos
como construções provisórias e a posteriori.
Uma das chaves estaria na investigação dos processos de subjetivação quando os estudiosos
aproximam-se do fenômeno religioso. Daí a pergunta: como se principia a construção do
sujeito-religioso em sujeito-objeto? Para se perceber a dimensão dos dilemas do homem
contemporâneo, faz-se necessário desconstruir a própria modernidade que, com o decorrer das
décadas e dos sucessos da ciência, foi erigida como mito primordial.
Mesmo em áreas tão específicas dos estudos de religião, como a filologia de textos clássicos,
hebraico e sânscrito, a rede da modernidade lança suas teias, em pelo menos dois sentidos,
sobre os estudos, os pesquisadores e as instituições dedicadas a compreender e a interpretar a
religião: primeiramente, assim como não existe texto que fale por si mesmo sem mediações,
também não existem ideias sem intérpretes, sem comunidades de homens e mulheres que as
defendem, leem, transmitem, estudam e as consomem; em segundo lugar, as vivências de uma
época histórica só podem ser acessadas, entendidas, e de novo avivadas com sentido e
99
significado, a partir das leituras e vivências do presente, cuja velocidade e fluxo de mudanças
aceleram-se, cruzam-se em inesperadas combinações.
O horizonte que orienta o que apenas deseja reler, à sombra de uma mangueira, a tradição dos
sagrados textos, é o irremediável hoje com seus desejos e corporeidades, orientado por
paixões e condições históricas e sociais.
Por isso, é preciso desconfiar das “purezas” das ciências da religião e dos modos de ler e
interpretar inscritos no corpo científico dessas mesmas ciências, pois
Apesar disso, permanece a tensão entre um “estar aqui” e o “desejar outro lugar”, ambas
esgueirando-se entre análises de pensadores e agentes, como signos num emaranhado de
significantes e fluxos de significados.
Cabe criticar as rupturas entre dois campos metodológicos e epistêmicos que lastreiam muitos
estudos das ciências humanas e sociais, inclusive os estudos de religião: de um lado, os que
estudam textos específicos (historiadores, críticos, filósofos); de outro, os que estudam a
atividade de criar textos (linguistas, psicólogos, etnógrafos, antropólogos). 14 Instalou-se,
portanto, uma dissonância metodológica entre o estudo da inscrição e o do processo de
inscrever, entre o estudo do significado fixo e o dos processos sociais que o fixam, impondo
uma fragmentação e uma territorialização paroquial.
13
BOURDIEU, 2004, p. 23.
14
BECKER, 2001.
100
Por um constante repensar das ciências da religião
Um ponto importante, que deve ser levado em consideração no campo dos estudos de religião,
é a virada culturalista nas ciências sociais, expressada como um ceticismo pós-moderno, de
rejeição às macroteorias e aos discursos totalizantes, atingindo as análises tanto da religião
quanto dos estudos empíricos e etnográficos. Essas viradas estabelecem um horizonte
epistemológico legítimo e ao qual as ciências da religião não podem ignorar quando olham a
religião na cultura e a cultura na religião.
O sujeito autônimo, racional e livre como totalidade e abstração, é fruto, também, de uma
operação gramatical, um artifício gerado na vida social do homem, embora, como jogo de
linguagem, seja essencial para a plausibilidade dos direitos e das democracias.
Por outro lado, no âmbito das contra-viradas, sob o sabor do ressentimento, a retomada da
fenomenologia clássica em diversos setores de estudos, entre os quais os da religião,
repercutirá uma crítica de ressonâncias românticas, acionada contra a pretensão
excessivamente racional de determinados saberes naturais e sociais cientificistas,
interventores, dicotômicos e desagregadores, separados de um todo ou totalidade necessária,
cósmica ou orgânica.
101
Com efeito, paradoxal e paulatinamente, sob a forma de pós-modernismo, os princípios
românticos foram retomados no pensamento ocidental, através da crítica ao universalismo em
nome da singularidade, da diferença, da intensidade e da experiência. Dessa forma, as novas
manifestações pós-modernas seriam expressão de um neo-romantismo (DUARTE, 2004).
Nesse contexto, algumas teorias sociais contemporâneas consistem em ressonâncias do ideal
romântico de resgate da totalidade, de fluxo, da experiência, retraduzidas para seus
respectivos universos epistemológicos.
Nas diversas áreas das ciências humanas e sociais, da crítica literária à antropologia, se, por
um lado, não se pode deixar de dialogar com as teorias ditas de ponta sob pena de
enclausuramento ou posturas sectárias, por outro lado, não se podem olvidar as tradições
constitutivas das ciências, da religião e da cultura, mas sem emparedá-las e sem agir como
“guardiões da verdadeira e última interpretação”.
Daí ocorrerem ondas de perplexidade que varrem desde setores da esquerda tradicional aos
setores conservadores, tanto no campo das teorias sociais e filosóficas da sociedade e da
religião quanto no campo das militâncias políticas e religiosas.
15
RICOEUR, 2008.
102
Nesse sentido, não é possível opor ciência, ideologia e religião, já que nenhum cientista,
teólogo ou religioso fala de um lugar não-ideológico. Não existe imaculada concepção da
razão, da ciência, da religião, da cultura. Embora expressas no singular, sinalizando utopia do
abstrato, suas vivências são sempre plurais e lastreadas nas contemporâneas estruturas sociais,
econômicas e políticas, entremeadas pelo caráter irredutível dos conflitos nas sociedades
contemporâneas.16
Pode-se incorrer em duas ingenuidades: acreditar que mais racionalidade porá fim no conflito,
tido, equivocadamente, como traço arcaico da cultura e das religiões; ou que a racionalidade
técnica neutralizará o papel da política, elemento essencial nas atuais dinâmicas culturais que
passam pelas políticas de afirmação da diferença e identidade de minorias e grupos
segregados, social, cultural e religiosamente.
Como, então, aferir o grau dessa sonoridade discursiva plurivocal e as direções, sob a forma
de diálogos interreligiosos e científicos e intrarreligiosos e intracientíficos?
Nesse sentido, por um lado, transformar as vozes das ciências da religião de timbres e
tonalidades distintas a partir de suas guturais perspectivas sociológicas, filosóficas e
teológicas é um desafio. Por outro, diante dos contextos atuais da cultura e dos fluxos sociais,
é preciso abrir-se ao diálogo em quatro direções: outras comunidades de ciência e pesquisa,
desde as biogenéticas às literárias e pós-coloniais; as comunidades de sujeitos e movimentos
religiosos; as comunidades políticas como o Estado, governos e políticas públicas; e as
comunidades de consumo de informação, dos jornais aos blogs.
Mas isso potencializa riscos, como o de determinados pensadores que, emergindo do campo
das ciências da religião, postam alternativas de análise dos fenômenos das culturas, tendo sua
vocalização conservadora catapultada, ao se produzir uma “afinidade eletiva” entre o
conservadorismo de alguns meios de comunicação e o conservadorismo do pensamento.
O fenômeno é amplo, ultrapassa as ciências da religião e aproxima pelas pontas – embora não
as faça se tocar – a intelectualidade brasileira de extrema direita e a extrema esquerda, a ateia
16
RICOEUR, 2008.
103
e a crente. Estas são eleitoras de deuses e demônios, desprezando as lições weberianas, como
responsáveis absolutizados dos fenômenos: os Estados Unidos, o neoliberalismo, a
globalização, a tradição, as igrejas, o relativismo. Tal atitude constitui-se numa formidável
desajuda social, política e filosófica.
Emerge daí a seguinte questão: qual é a dificuldade, explícita e implícita, nesses arranjos
científicos e culturais, nessa rede em que as ciências da religião não podem escapar nem se
colocar como desengajadas?
Diversas são as dificuldades no campo das ciências da religião em sua oferta de diálogo para
entender as transformações da cultura, desde um acantonamento tribal de perspectivas,
passando pela ressurgência paradigmática de positivismos e romantismos, até ruídos
metodológico-epistemológicos.
104
Por isso, as categorias de pensamento podem ser vistas como vias de “entrada” e “saída” das
realidades culturais e religiosas, construtos teóricos marcados pelo modo de produzir,
atravessados pelos usos da linguagem e pelos movimentos de ressignificação. Nesse sentido, é
preciso avaliar: qual a força enunciativa das reflexões das ciências da religião para fora e para
dentro, a partir das retóricas discursivas oriundas das ciências sociais, da filosofia e da
teologia?
É preciso se pensar nas filosofias e teologias periféricas em sua relação ambígua e crítica com
as tradições continentais, dando origem a cruzamentos e ressemantizações, como a teologia da
libertação, as teologias negras e feministas, em cujas tramas, identificam-se os fios da
influência da cultura e da sociedade, indelevelmente marcados: as lutas pela emancipação da
mulher, dos negros, das minorias em seus mais amplos sentidos.
Porém, o fluxo contínuo de diásporas e migrações faz-se agir sobre o continente. Daí, antigas
correntes e autores continentais são relidos e ressignificados à luz de novas experiências
religiosas trazidas das periferias topo-econômicas e sociais cristãs, islâmicas e hinduístas,
muitas vezes por migrantes, dando origem a criativas combinações.
105
Assim, a autoevidência do religioso e do sagrado perdeu-se de todo, precisando ser
constantemente construída em meio aos eixos culturais, nos mais complexos enlaces: mídias
de massa e cibernéticas, biotecnologias, neuropsico-genéticas, ecologias e pobrezas
econômicas, gêneros e moralidades diversas.
O último elo liga culturas e padrões de avaliação moral, fronteiras e territórios nos quais as
religiões cristãs, islâmicas, hinduístas e budistas incursionam como batedores ou como
exércitos bem-disciplinados, invocando sobre si condições de minoridade em meio à
democracia ou à maioridade oligárquica das monarquias e ditaduras.
Das culturas surgem os padrões que opõem o “nós” ao “eles”: de um lado estão as ações
moralmente consentidas, legítimas, no limite “humanas” que “nós” praticamos; do lado
oposto, estão as ações espúrias e ilegítimas, no limite “não-humanas”, que “eles” praticam.
Eis o ponto nodal em que as religiões produzem os mais intensos embates, por vezes em
relação tensa e ambígua, com outras comunidades culturais e políticas: com o Estado, com as
laicidades, com as ciências.
Pode-se falar, diante disso, de um baixo grau de autonomia do campo das ciências da religião
face às outras comunidades de cientistas? Outra questão: como as ciências da religião e seus
intérpretes conseguem falar para fora da comunidade dos intérpretes autorizados e como
conseguem manter essa interlocução? Num sentido próximo de uma má fé conservadora,
como a de certos teóricos das ciências da religião?
106
imagens idealizadas da tradição, da religião, da ciência e da razão moderna, que intervêm nas
falas, mas precisam ser desmontadas pelas práticas e linguagens discursivas críticas.
Observe-se que:
Por outro lado, a gnose como forma mentis é também uma imanentização do princípio divino,
ou seja, a transposição da ideia de divindade para o interior do sujeito e do horizonte das
experiências humanas.
Nesse sentido, é preciso trazer para o campo dos estudos de religião a crítica latouriana da
divisão de tarefas intelectuais hegemônicas na modernidade:
17
VOEGELIN, 1982, p. 97.
107
nos proibimos de pensar os híbridos, mais seu cruzamento se torna possível;
este é o paradoxo dos modernos [...].18
Assim, em virtude das situações culturais e religiosas cada vez mais fluidas, plurais,
descentralizadas ou policentralizadas, é cada vez mais importante o diálogo intertextual
conectando um texto ao outro, dialogando-os ontologicamente no mesmo nível, ao contrário
das divisões e territorializações.
18
Latour, 1994, p. 17.
19
FOUCAULT, 2010.
108
Se a conceituação chega a definir zonas claras e delimitadas, logo surgem fenômenos que
desestabilizam as fronteiras, iniciando-se uma nova tarefa de conceituação. Por entre os dedos
do conceito, o líquido (da religião, da modernidade, do religioso) escapa constantemente.
Talvez seja o caso de opor ao conceito, a noção de narrativa, mais aberta e porosa, mas com
não menos rigor intelectual compreensivo.
Quase concluindo...
Cabe, aqui, como alerta, um velho ditado mineiro: que não se deixe o uso e o hábito do
cachimbo colocar a boca torta. Hábito como repetição desesperada e compulsiva, quer seja em
ações metodológicas, quer seja em ações político-culturais, de erigir uma única continuidade,
uma memória autorizada em meio às diferenciações culturais e religiosas a que as sociedades,
classes sociais e instituições são arrastadas e reinventadas, no mundo atual. Assim, faz-se
necessário lembrar a importância da surpresa e da descoberta daquilo que não se está
procurando, da imprevisibilidade, da constante subversão do enclausuramento taxonômico e
da resistência à estandardização e ao uso não crítico da autoridade epistêmica.
Nesse sentido, o campo das ciências da religião pode revigorar-se a partir de releituras de
clássicos ou de “autores-minoria”, como Feyerabend. 20 Defende-se aqui, a utilização de
contrarregras para neutralizar a tendência dos pesquisadores a preservar tudo o que é antigo e
familiar, “vício acadêmico” denominado “condição de coerência”. 21 No momento em que
novas hipóteses são obrigadas a se ajustar a teorias já aceitas, cria-se ambiente propício para a
dogmatização. Enfim, de nada adianta buscar fatos novos sem mudança de olhar, pois virão à
tona somente aqueles que demonstram coerência com a teoria então vigente. 22
Por isso, será necessário operar distinções e articulações entre, pelo menos, três dimensões: as
perspectivas observacionais de onde se observam os fenômenos religiosos – do lugar social,
institucional e político; as perspectivas sujeito-objetais – quem observa e quem é observado,
em termos socioeconômicos, intersubjetivos, morais e éticos; por fim, as possibilidades de
perspectivação – produção de alternativas de compreensão a partir da necessária conjugação
20
Feyerabend,1989
21
Idem.
22
Ibidem.
109
de posturas de confiança e de desconfiança em relação aos sistemas interpretativos
hegemônicos e contra-hegemônicos.
Dessa forma, embora tanto o essencialismo metafísico quanto o relativismo cético possam
contribuir, há que se levarem em conta as análises inovadoras. Expressas no singular, cultura
e religião sinalizam utopia e anseio por uma totalidade abstrata passível de pleno
entendimento, embora suas vivências reais estejam lastreadas no plural, nos fluxos e refluxos
da vida e das estruturas políticas, econômicas e culturais da contemporaneidade.
Para que não se perca a dinâmica enriquecedora do fluxo das diferenças nem se congele o
diapasão em uma das polaridades no campo das ciências da religião, propõe-se, então, que as
ciências da religião sejam vistas como um entrelugar, um entreolhar.
Por isso, duas perguntas devem nortear tanto a prática, quanto a teoria: serão nossos
programas de pós-graduação em ciência(s) da religião capazes de estabelecer as condições
para que se implante, no espaço acadêmico das universidades e faculdades, o encontro plural
e dialogal das tradições metodológicas e não seu confronto puro e simples, o rolo compressor
de uma hegemonia de uma tradição sobre a outra? Será possível construir um ponto ou uma
“geometria euclideana”, capaz de sintetizar as metodologias nas ciências da religião? Ou será
possível criar uma “geometria não-euclideana”, em que as metodologias distintas estão, mas
em permanente estado de abertura e interpelação umas em relação às outras?
O desafio colocado pelo estudo do religioso nas atuais sociedades será a construção de uma
condição dialógica que produza uma nova função comunicativa e um novo desempenho
epistemológico no âmbito das ciências da religião. Assim, é possível empreender a difícil
tarefa da compreensão do religioso sem ser atropelado pelos “objetos-sujeitos” ou “sujeitos-
objetos” das experiências, das estruturas e dos processos a serem investigados.
23
ANGENOT, 2010.
110
Referências
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência. Por uma sociologia clínica do campo
cientifico. São Paulo: UNESP, 2004.
FEYERABEND, Paul. Contra o Método. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
HUFF, Arnaldo E. Jr; PORTELLA, Rodrigo. Ciência da Religião: uma proposta a caminho
para consensos mínimos. NUMEM. Revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora,
v. 15, n. 2, p. 433-456, 2012.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
RORTY, Richard. Truth and progress. Philosophical papers III. Cambridge: Cambridgre
University Press, 1998.
112
Historiografia e Teoria da História da Igreja Católica no Brasil
Império1
Introdução
A História da Igreja no Brasil Império começou a ser escrita no decorrer do próprio século
XIX, muitas vezes, por personagens inseridos nos eventos dos quais tratavam. Sua produção
continuou farta durante as primeiras décadas do século XX. No entanto, dos anos 30 aos anos
60, poucos trabalhos significativos foram elaborados. Foi a partir dos anos 70 que este campo
historiográfico foi se revigorando.
1
Este texto se apóia em dois trabalhos precedentes, um artigo publicado na revista Temporalidades, onde faço
uma discussão teórico-conceitural: Uma questão de revisão de conceitos: Romanização – Ultramontanismo –
Reforma; e uma palestra realizada no III Encontro do GPCIR (Grupo de Pesquisa Culturas, Identidades e
Religiosidades), na Universidade Federal de Sergipe (UFS), intitulada: História e historiografia da Igreja
católica no Brasil Império. Aproveito a ocasião para agradecer as perguntas e críticas apresentadas pelos
ouvintes e pelos colegas de mesa: Prof. Dr. Antônio Lindvaldo Sousa e o Prof. Dr. Jérri Roberto Marin, que
muito contribuíram para a elaboração final deste texto.
2
Bolsista do Programa Nacional de Pós Doutorado – PNPD – CAPES. Inserido no projeto de pesquisa: Testamentos e
hierarquias em sociedades escravistas ibero-americanas (Séculos XVI-XVIII), na UFRRJ.
113
espiritual. O que deveria fazer surgir, quase espontaneamente, a pergunta: qual o papel da
Igreja Católica na construção do Estado no Brasil imperial? Ainda são poucos os trabalhos
que tentaram responder esta questão, ou parte dela.3
Algumas vezes esta lacuna chamou a atenção de eminentes historiadores, como foi o caso de
Sérgio Buarque de Holanda que, em 1963, alertava para o fato de ser impossível negar a
importância que as instituições religiosas representavam na história brasileira. Para ele, seria
impossível compreender vários aspectos da sociedade brasileira “sem a exploração prévia e
isenta de nossa história eclesiástica”. 4 Já outros historiadores, além de reconhecerem estas
lacunas, demonstrariam desconfiança em relação às produções realizadas fora do ambiente
acadêmico, como foi o caso de Augustin Wernet e Guilherme Pereira das Neves. 5
Não é uma tarefa fácil elaborar um texto sobre a historiografia e teoria da Igreja Católica
durante o Brasil Império. Isso devido a vários motivos: 1º. Um recorte cronológico extenso;
2º. Ainda não existe qualquer trabalho sobre a historiografia da Igreja católica nesse período,
sendo este, provavelmente, senão a primeira, uma das primeiras tentativas; 3º. A
limitadíssima produção de Teoria da História para a História Eclesiástica no Brasil deste
período.
Neste texto, o meu objetivo é traçar, de forma inicial e exploratória, as linhas bases do
desenvolvimento historiográfico sobre a reforma levada a cabo pelos bispos ultramontanos 6
3
SILVA, 1972; FRAGOSO, 1840-1875. Em BEOZZO,1992. NEVES, 1997; BASTOS, 1997; SANTIROCCHI,
2010; SOUZA, 2010; NEVES, 2009; SILVA, 2012.
4
HOLANDA, 1963, p. 13.
5
WERNET, 1987, p.52;NEVES, 2011, p.381.
6
O ultramontanismo é um termo de origem francesa, derivado da associação de duas palavras latinas (ultra + montes),
significando “para além dos montes”, isto é, dos Alpes. O apelativo começou a ser usado no século XIII, para designar papas
escolhidos ao norte dos Alpes. Seis séculos depois, olhando da França, “para além dos Alpes”, correspondia estar voltado
para as ideias emanadas de Roma, ou seja, concordando com os posicionamentos da Santa Sé. O ultramontanismo, no século
XIX, se caracterizou por uma série de ideias e atitudes da Igreja católica num movimento de reação às novas tendências
políticas desenvolvidas após a Revolução Francesa e à secularização da sociedade moderna. As suas principais características
podem ser assim resumidas: esforço pelo fortalecimento da autoridade pontifícia sobre as igrejas locais e dos bispos sobre
suas dioceses; reafirmação da escolástica; restabelecimento da Companhia de Jesus (1814); e definição dos “perigos” que
assolavam a Igreja (galicanismo, jansenismo, regalismo, todos os tipos de liberalismo, protestantismo, maçonaria, deísmo,
racionalismo, socialismo, casamento civil, liberdade de imprensa e outras mais), culminando na condenação destes por meio
da Encíclica Quanta Cura e o Silabo dos Erros, anexo à mesma, publicados em 1864. O fortalecimento da autoridade
114
durante o Império e, consequentemente, sobre alguns aspectos das relações entre a Igreja e o
Estado. Antes de começar é necessário estabelecer os recortes e o método que será aqui
utilizado. Devido ao limite deste tipo de produção, foi necessário utilizar um recorte que se
concentrasse nas obras que fossem realmente importantes, ou reconhecidas como tais. As
teses e dissertações não publicadas serão citadas somente quando se tratar de indicar novas
perspectivas e tendências. Os artigos serão citados somente quando forem representativos
para a obra de algum autor ou caso tenha tido um significado especial para a historiografia
analisada.
A natureza deste texto não permite um tratamento aprofundado das questões e obras, por isso,
o objetivo é traçar linhas programáticas que possibilitem iniciar a discussão e auxiliar as
pesquisas sobre a historiografia e a teoria da Igreja Católica no Império do Brasil. Limitado
pela minha especialidade, ou seja, história política da Igreja no Império, privilegiarei as
produções que se inserem neste âmbito. Porém, cabe alertar que ainda são amplas as
possibilidades temáticas que podem ser abordadas por um trabalho historiográfico neste
campo e neste período.
A primeira obra para a qual quero chamar atenção foi escrita no século XIX e analisa, pelo
viés jurídico, político e eclesiástico, a relação entre a Igreja e o Estado e seu desenvolvimento
histórico em Portugal e no Brasil Imperial. Trata-se do Direito Civil Eclesiástico Brasileiro,
publicado por Cândido Mendes de Almeida, em dois volumes de 1863 e 1873. Jurista por
formação, porém, com trabalhos significativos também em outras áreas, como é o caso da
história, Cândido Mendes foi um dos grandes nomes da historiografia do século XIX. No
entanto, foi esquecido pelos historiadores dos séculos XX e XXI. Sua importância é
testemunhada por Capistrano de Abreu, que na primeira série dos Ensaios e Estudos,
demonstrou sua admiração por ele e o comparou a Varnhagen. 7
Apesar de ser ultramontano e deixar isso claro logo no início do primeiro volume de seu livro,
Cândido Mendes construiu uma acurada e bem documentada obra de história sobre a instituição
pontifícia, resultando na definição da infalibilidade papal nos pronunciamentos ex-cathedra durante o Vaticano I (1869-
1870), foi um dos momentos culminantes do movimento ultramontano (SANTIROCCHI, 2010, p. 195-199).
7
ABREU, 1931:197.
115
do padroado e sobre o desenvolvimento do regalismo 8 em Portugal e no Brasil. Traçando em
paralelo uma história jurídica civil e canônica que percorre as relações entre Igreja e Estado desde
o início da Era Moderna até os anos sessenta do século XIX. Esta obra, creio eu, inaugurou o
gênero da moderna História Eclesiástica no Brasil, utilizando-se das metodologias em voga
durante o século XIX. Ela apresenta também a maior coleção de fontes publicadas sobre a
temática, reunindo documentos que estavam espalhados por vários livros e arquivos de Portugal e
do Brasil. Este livro é fonte básica para qualquer trabalho que trate da história da Igreja Católica
no Império.
Alguns desses trabalhos merecem ser citados, de D. Macedo Costa temos: Direito contra
Direito (1874) e A questão religiosa perante a Santa Sé (1866); de D. Vital de Oliveira temos:
Abrégé historique de la question religieuse du Brésil (1875); de Nabuco de Araújo: O partido
Ultramontano (1873) e A invasão ultramontana (1873); de Saldanha Marinho: A Igreja e o
Estado (1874) e o Julgamento do bispo de Olinda (1874). Todos são trabalhos apologéticos
defendendo as posições dos envolvidos.
Um dos trabalhos publicados naqueles anos se tornou uma espécie de história oficial da
Questão Religiosa, como afirmou David Gueiros, 10 trata-se da obra do capuchinho Antonio
Manuel dos Reis, O bispo de Olinda Perante a História (1878). Ela é a obra mais conhecida
sobre o assunto e já teve diversas edições. Nos anos de 1930 ela foi reeditada em três volumes
e aumentada por fr. Félix de Olívola. O primeiro tomo é uma biografia do bispo; o segundo é
8
Segundo Zília Osório de Castro (2002), entende-se por regalismo, “a supremacia do poder civil sobre o poder eclesiástico,
decorrente da alteração de uma prática jurisdicional comumente seguida ou de princípios geralmente aceitos, sem que haja
uma uniformidade na argumentação com que se pretende legitimá-lo”. Ou seja, o regalismo se caracteriza por uma
modificação unilateral, por parte do Estado, das leis ou dos costumes que definem os limites e respectivas funções dos
poderes civis e espirituais. As justificativas para tais atos se modificaram nas diferentes sociedades e épocas. O padroado não
é regalismo, pois é um direito reconhecido por ambos os poderes. O mesmo não pode ser dito do beneplácito (placet) e do
recurso à coroa, que nunca foram aceitos pela Santa Sé, sendo eles exemplos típicos de regalismo.
9
GUERRA, 1972, p.10.
10
GUEIROS, 1980, pp. 15-16.
116
uma coleção de documentos do seu julgamento; o terceiro, uma coleção das cartas pastorais,
discursos e outros escritos de Dom Vital.
Nas décadas posteriores o tema continuou sendo explorado, mas ainda exaltava os ânimos, e
os pesquisadores acabavam por tomar posições de partes. Algumas obras que merecem
atenção são: Eugênio Vilhena de Morais: O Gabinete Caxias e a anistia aos bispos na
“questão religiosa” (1930); Flávio Guerra, A questão religiosa do Segundo Império (1952);
Ramos de Oliveira: O conflito maçônico-religioso (1952); e Antônio Carlos Vilhaça: História
da Questão Religiosa (1974). A tomada de posição continua mesmo em trabalhos recentes
como o de José Castellani: Os maçons e a questão religiosa (1996).
Alguns trabalhos sobre essa temática merecem atenção especial. Do lado católico temos a
biografia de Dom Antônio de Macedo Costa (Bispo do Pará), escrita por D. Antônio de
Almeida Lustosa em 1939, que apresenta uma farta documentação e riqueza de detalhes sobre
a Questão Religiosa no Pará, e os trabalhos de Nilo Pereira: Dom Vital e a questão religiosa
no Brasil (1966); Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil (1970); Igreja e Estado:
relações difíceis (1982). Partindo de um estudo sobre a Questão Religiosa o autor vai tentar
ampliar o quadro de análise, no entanto, não obtém sucesso. Sua obra acaba centrando-se no
acontecimento em si, não consegue explorar com profundidade a temática do padroado e do
regalismo, não percebe a complexidade do movimento reformador ultramontano em ato e
acaba contribuindo para a construção de uma imagem heróica de D. Vital. A principal riqueza
de sua obra é apresentar os aspectos culturais, político e sociais de Pernambuco nos anos da
Questão Religiosa, com abundante documentação.
Do lado acatólico duas obras fundamentais merecem ser citadas. O Padroado e a Igreja
brasileira de João Dornas Filho, de 1930. Com pesquisas sobre a história do direito e das
relações entre Igreja e Estado no Brasil, ele resgata a temática estudada por Cândido Mendes
de Almeida, porém, pelo viés secular, inserindo a Questão Religiosa num processo de
acirramento entre as relações entre Igreja e Estado em Portugal e no Brasil. Outra obra
importantíssima é a de David Gueiros Vieira, O Protestantismo a Maçonaria e a Questão
Religiosa no Brasil (1980). Trabalho que utiliza muitas e diversificadas fontes e apresenta
uma interpretação feita a partir dos protestantes e suas alianças com a maçonaria e os jornais
liberais, ela traz novas documentações e amplia o campo de discussões, colocando na análise
117
as várias linhas de pensamentos envolvidas: galicanismo, jansenismo, ultramontanismo,
protestantismo, liberalismo, positivismo entre outros.
Nos anos setenta e oitenta, Fernando Câmara publicou uma série de artigos sobre os bispos do
nordeste e do norte, na Revista do Instituto do Ceará. Alguns títulos foram: Para a história
eclesiástica do Ceará: os bispos de Fortaleza (1974); A diocese do Maranhão e seu
tricentenário (1977); Dom Vital e a Questão Religiosa (1978); Dom Luís Antônio dos Santos
– O apóstolo do Ceará, entre outros.
Recentemente, os bispos ultramontanos também estão sendo objetos de novos estudos, como,
por exemplo, na linha da história intelectual. Karla Martins, na sua tese de doutorado
defendida em 2005, intitulada Cristóforo e a Romanização do Inferno Verde: as propostas de
D. Macedo Costa para a civilização da Amazônia (1860-1890), aproveitando-se do acervo
literário deixado pelo bispo D. Macedo Costa, faz uma análise de sua produção intelectual,
relacionado-a com suas relações familiares, políticas e religiosas. Procura entender os
significados construídos sobre a Amazônia pela sociedade católica e situá-los no debate entre
liberais e ultramontanos. Outro trabalho recente que merece ser citado é a dissertação de
118
Joelma Santos da Silva, defendida em 2012 e intitulada: Por mercê de Deus: Igreja e Política
na trajetória de Dom Marcos Antônio de Sousa (1820-1842). Primeiro trabalho sobre D.
Marcos, busca analisar a biografia e a trajetória religiosa e política do bispo, procurando
compreender as mudanças na relação entre Igreja e Estado no processo de construção do
Império do Brasil nas suas duas primeiras décadas e a importância do clero na construção do
Estado monárquico.
O sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974) expõe sua idéia de romanização no artigo
Religion and the Church in Brasil (1951). A sua idéia era analisar o movimento de reforma de
modo geral e não mais se centrando em um ponto específico, como se fazia até aquele
momento, ou seja: padroado, Questão Religiosa, biografias de bispos. Tentando compreender
a institucionalização da Igreja Católica no Brasil, Roger Bastide usa a expressão “igreja
romanizada”, que seria a afirmação da autoridade de uma igreja institucional e hierárquica
estendendo-se sobre todas as variações populares do catolicismo, para controlar a doutrina, a
fé, as instituições e a educação do clero e do laicato. Esse processo levaria a uma dependência
cada vez maior, por parte da Igreja brasileira, de padres estrangeiros e principalmente das
Congregações e Ordens missionárias, para realizar “a transição do catolicismo colonial ao
catolicismo universalista, com absoluta rigidez doutrinária e moral”. Segundo ele, “Ao se
tornar romanizada, a Igreja (brasileira) desnacionalizou-se”,11 porém, conseqüentemente,
“universalizou-se”.
Esse processo originou-se com o movimento ultramontano do século XIX, que iniciou a
centralização da Igreja Católica em torno do pontífice, o reaparelhamento da sua burocracia
administrativa e a clara definição da sua doutrina e disciplina. O objetivo era eliminar
11
BASTIDE, 1951, p. 343.
119
interpretações heterodoxas que nasciam das ingerências estatais e políticas, definindo, assim,
os traços de sua identidade perante o mundo moderno. Traços estes que deveriam ser comuns
em qualquer lugar do mundo, ou seja, universal. Na busca destes objetivos, o episcopado
ultramontano brasileiro agiu independentemente e mesmo contra os interesses políticos locais,
que se baseavam no regalismo de tradição lusitana. 12
George Boehrer também vai trabalhar com o movimento reformador de cunho ultramontano
no seu ensaio: A Igreja no Segundo Reinado, publicação póstuma no livro de Henry H. Keith,
Conflito e continuidade na sociedade brasileira, publicado nos Estados Unidos em 1969, e no
Brasil em 1970. Boehrer não utiliza o conceito de romanização e percorre um caminho
diferente daquele traçado por Roger Bastide.
O texto de Roger Bastide não foi traduzido e seu efeito no Brasil ficou limitado. A
publicação em português, em 1876, da obra Milagre do Juazeiro do historiador estadunidense
12
DELLA CAVA, Ralfh. Milagre em Juazeiro. 1976, p. 43, citando BASTIDE, Roger. “Religion and the
Church in Brazil”. 1951, p. 334/355
13
NEVES, 2009.
14
BOEHRER, 1970, p. 135.
120
Ralph Della Cava que divulgou as ideias centrais do texto do referido autor. A partir dos
aportes de Roger Bastide, Della Cava apresentou e desenvolveu o conceito de romanização.
No seu célebre livro Milagre do Joazeiro, reforça e amplia o sentido acenado por Roger
Bastide. Para ele, D. Luís Antônio dos Santos (1817-1891), primeiro bispo do Ceará, foi a
encarnação dos ideais da romanização. Segundo o autor, o objetivo era: “Restaurar o prestígio
da Igreja e a ortodoxia de sua fé e remodelar o clero, tornando-o exemplar e virtuoso, de
modo que as práticas e crenças religiosas do Brasil pudessem ficar de acordo com a fé
católica, apostólica e romana de que a Europa se fazia então estandarte”.15
15
DELLA CAVA, 1976, p. 33.
16
DUTRA NETO, 2006, p. 31.
121
Libertação estava em tensão com a Santa Sé e o Brasil entrava no regime de exceção com a
Ditadura Militar. Um dos primeiros a reutilizar o conceito em questão foi o sacerdote belga
radicado no Brasil, e teólogo da libertação, José Comblin, no seu texto Situação histórica do
catolicismo no Brasil, de 1966.
Este autor defende que existiu uma progressiva europeização das elites brasileiras a partir de
1822 até meados do século XX, e que um processo similar aconteceu com o Catolicismo, ou
seja, uma europeização cultural e religiosa. Na sua abordagem, ele distingue um Catolicismo
urbano, afinado com a europeização da religião e da cultura laica, e um catolicismo rural, no
qual resiste o “Catolicismo tradicional”. 17
17
COMBILN, 1966, p. 595.
18
AZZI, 1974, p. 649.
19
AZZI, 1977ª, pp. 111-112.
122
A partir de 1977, Azzi passou a dar maior peso nos seus estudos ao contraste entre
“catolicismo popular”20 e “autoridade eclesiástica”, 21 influenciado pelas pesquisas de outros
membros do CEHILA. Azzi, como Boherer, chama a atenção que tanto o Estado, quanto a
Igreja buscavam essa reforma, porém, Azzi tenta ressaltar a ideia do “Altar Unido ao Trono”
num “projeto conservador”, que é, inclusive, título de um livro seu (1992). Outros trabalhos
de Riolando Azzi merecessem citação, tais como: Dom Manuel Joaquim da Silveira, primaz
da Bahia, a luta pela liberdade da Igreja (1974); Os Capuchinhos e o movimento brasileiro
de reforma Católica do Século XIX (1975); O episcopado do Brasil frente ao catolicismo
popular (1977a); Catolicismo popular e autoridade eclesiástica na evolução histórica do
Brasil (1977b); e “O catolicismo popular no Brasil” (1978).
Este autor avança ainda mais na conceituação de romanização levando-o “ao quase paroxismo
de uma luta dentro do Catolicismo”, entre o “abrasileiramento do catolicismo pela sua
convivência com a senzala e o índio” e o catolicismo mais “puro”, mais “branco”, mais
ortodoxo, mais próximo de Roma. Segundo ele, antes existia um equilíbrio entre os dois, que
passou a ser rompido no final do Período Imperial, quando o catolicismo ortodoxo passou a
ser considerado legítimo e o “catolicismo popular” ilegítimo, supersticioso e um mal a ser
extirpado.23
20
A noção de “catolicismo popular”, apesar de ter um desenvolvimento próprio, constrói-se quase paralelamente
ao conceito de romanização, apresentado às vezes como o seu oposto, ou o aposto de catolicismo ortodoxo. A ele
são ligados traços do catolicismo pré-tridentino, de magia, de superstição de sincretismo, de crendices,
humanização do divino, entre outras características. Para tratar dessa noção e de sua historiografia aqui,
precisaríamos de mais um capítulo no mínimo, por isso, não será tratado. Para um aprofundamento sobre essa
noção: SOUZA, 2009, ela tem um capítulo inteiro sobre o tema nesse livro; e de AZZI, 1977a, pp. 125-149;
1977b; 1978; 1992.
21
AZZI, 1977b.
22
BEOZZO, 1977, p. 745.
23
DUTRA NETO, 2006, p. 31.
123
Pedro Ribeiro de Oliveira no seu livro Religião e dominação de classe: Gênese estrutura e
função do catolicismo romanizado no Brasil, publicado em 1985, procurou desenvolver uma
hipótese sociológica que explicasse a romanização como um processo condicionado pelas
transformações econômicas, políticas e sociais. Na sua análise, ele afirma que estes bispos
pautavam sua atividade pastoral na adaptação do catolicismo brasileiro ao “modelo romano”,
“travando acirrado combate contra o catolicismo popular tradicional”, com marcante
influência da Santa Sé, que enviava “agentes” religiosos (entre elas as congregações
religiosas) para o Brasil e dava “o modelo religioso” que deveria ser implantado. 24 Pedro
Ribeiro de Oliveira passou a colocar a romanização como um movimento que pretendeu
sufocar o catolicismo popular.25
Em 1971, foi publicado o volume Declínio e Queda do Império, da clássica obra coordenada
por Sérgio Buarque de Holanda, História Geral da civilização brasileira. No início deste
texto vimos como Holanda se lamentava da falta de estudos sobre a Igreja no Brasil. No
entanto, nos volumes dessa obra dedicados ao Império pouco se falou sobre a Igreja e a
religiosidade. Neste volume encontramos o maior número de páginas voltadas ao tema,
divididos em dois capítulos escritos por Roque Spencer M. de Barros, Vida Religiosa e A
questão religiosa. No final os dois capítulos tratam do mesmo tema clássico da Igreja no
Império, ou seja, a questão religiosa. O primeiro é uma espécie de introdução, onde ele se
justifica dizendo que a documentação e os fatos sobre o tema já foram fartamente
apresentados e se propõe a fazer uma análise isenta de posicionamento de parte, buscando
apresentar ambos os pontos de vista, regalista e ultramontano, pois, segundo ele, cada uma na
sua lógica tinha razão. No entanto, seu êxito é parcial. A novidade do seu texto é a inserção
do ultramontanismo internacional no debate sobre o tema, mas em relação à situação
específica do Brasil, os dois capítulos não trazem grandes novidades e não dão a devida
atenção às ações da maçonaria e do ministério Rio Branco na Questão Religiosa.
24
OLIVEIRA, 1985, p. 12.
25
OLIVEIRA, 1985, pp. 326-327.
124
Em 1987, Augustín Wernet avançou nas questões conceituais no seu livro A Igreja Paulista
no século XIX. A reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (1851-1861). A Wernet coube o
mérito de trazer a discussão sobre a história da Igreja Católica no Brasil para dentro da
Universidade, já que até o momento ela vinha sendo realizada praticamente a margem das
discussões acadêmicas. Wernet optou por uma abordagem que entendesse a história
eclesiástica como a história de sucessivas “autocompreensões”, noção da “nova história da
Igreja” de Poulat, Alberigo, Aubert e outros. A noção de autocompreensão da Igreja tornou-se
o princípio organizador das várias faces do catolicismo no Brasil, desde o tradicional até o
ultramontano ou renovado.
A noção de autocompreensão foi inspirada nos “tipos ideais” de Weber, e servia como um
instrumento teórico para a análise da realidade concreta. Segundo o autor, as
autocompreensões “são ‘tipos ideais’, ou seja, ‘construções mentais’ ou ‘imagens mentais
cuja elaboração se faz necessária, exagerando elementos específicos da realidade,
selecionando características dela mesma, ligando-as entre si num quadro mental relativamente
homogêneo”.26
26
WERNET, 1987, p. 12.
27
WERNET, 1897, p. 52.
125
Percebe-se claramente uma crítica às análises históricas não “científicas”, ou seja, não de
acordo com as normas e rigor disciplinar da História, que se desenvolvia nos meios
acadêmicos. Mas a quem eram dirigidas? Provavelmente às produções ligadas a instituições e
sociedades católicas, onde se desenvolvia o conceito de romanização. No entanto, esta crítica
não o impede de adotar esse conceito e buscar a autocompreensão da Igreja dentro dessa
ótica. 28
É sob a influência da noção de autocompreensão que Maurílio César de Lima defende que
romanização é “uma expressão não propriamente feliz, a substituir-se, talvez, por auto-
conscientização”, que para ele nada mais é que um “sutil movimento verificado na Igreja do
Brasil, liderado por figuras destacadas do clero, que se afastava das normas e mentalidade da
Igreja lusitana (ainda mantidas) e assumia uma postura mais aproximativa de Roma”. 29
A partir dos finais dos anos 80 começaram a ser produzidas novas abordagens sobre a história
da Igreja, a partir do uso da micro-análise de caráter antropológico. Os estudos de caso e a
preocupação com os símbolos, paulatinamente foram ganhando densidade em contato com as
chamadas Nova História Cultural e Nova História Política. Os temas da feitiçaria, da
hibridização cultural, das negociações simbólicas ganhavam lugar na escrita da história da
Igreja Católica no Brasil. O eixo das relações entre Estado e Igreja perdeu espaço e deu vazão
28
Os orientados de Augustin Wernet utilizam o conceito de romanização em suas teses e dissertações. O próprio
Wernet também o adota como no caso artigo Crise e definhamento das tradicionais ordens monásticas
brasileiras durante o século XIX, publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiro em 1997.
29
LIMA, 2001, p. 123.
126
a outras possibilidades interpretativas. No entanto, essas novas tendências têm se concentrado
principalmente no Período Colonial, bastando citar como exemplos autores como Laura de
Mello e Souza e Ronaldo Vainfas, e mais recentemente, no Período Republicano, deixando de
fora o Período Imperial.
Nos anos noventa, a tônica das principais publicações sobre a Igreja no Império foram sociais
e políticas. Temos em 1997 a publicação da importantíssima obra de Guilherme Pereira das
Neves, E receberá mercê: a Mesa da Consciência e Ordens e o clero secular no Brasil 1808-
1828. A grande inovação será a utilização da documentação produzida por essa instituição de
Antigo Regime para realizar uma história social do clero no Brasil. Trabalhos de história
social do clero durante o Período Imperial ainda são muito raros, faltando trabalhos de fôlego
que utilizem métodos quantitativos e seriais para estudar este seguimento da sociedade
brasileira30. Neves apresenta a história da Mesa de Consciência e Ordens, seus mecanismos de
funcionamento, e o clero que passou pela sua documentação, até o seu processo de extinção.
Não deixando de estar atento às questões políticas pela qual passava o Brasil naqueles anos.
Por estudar a Igreja pela ótica do Antigo Regime nos trópicos, se preocupa muito mais em
apresentar as continuidades, mas sem deixar de chamar atenção para algumas importantes
descontinuidades, como por exemplo, a instituição de um padroado civil, instaurado pela
Constituição de 1824, a negativa do placet a bula pontifícia Praeclara Portugalliae, que
concedia o direito de padroado ao monarca do Brasil, e a extinção da Mesa de Consciência e
Ordens em 1828.31
Ana Marta Rodrigues Bastos, seguindo os passos de José Murilo de Carvalho, que também
tratou da classe clerical ao analisar as elites nos seus clássicos livros, A construção da Ordem
e Teatro de Sombras, a autora faz um levantamento específico sobre o clero e sua
representatividade na Câmara dos Deputados e no Senado imperial. Em seu trabalho,
Católicos e Cidadãos: a Igreja e a Legislação Eleitoral no Império, Ana Marta faz uma
análise minuciosa das legislações eleitorais com intuito de entender a variação da participação
do clero na política eletiva, demonstrando como o governo imperial modificou as leis
eleitorais buscando diminuir a influência clerical, secularizar a burocracia envolvida no
processo eleitoral e também diminuir a participação do clero em revoltas sociais e políticas.
30
Não posso deixar de citar aqui a dissertação de Wheriston Silva Neris. Um excelente trabalho de história social
do clero no Maranhão da segunda metade do século XIX. NERIS, 2009.
31
NEVES, 1997, pp.120 -132.
127
Em artigo publicado no final de 2001, o historiador Roberto Jerri Marin propôs, em seu artigo
História e historiografia da romanização: reflexões provisórias, uma sistematização da
história e da historiografia da romanização. Marin discorre sobre a existência de duas amplas
vertentes historiográficas da romanização: de um lado, aqueles que a concebem de um modo
linear e homogêneo e, de outro, aqueles que a entendem como um processo descontínuo e
heterogêneo, principalmente influenciados pela História Cultural. O primeiro prevaleceu nos
primeiros anos e o segundo vem ganhando força nas últimas décadas. Nesta última vertente
podemos citar o trabalho de Antônio Lindvaldo Sousa, O eclipse de um farol, mas que, no
entanto, trabalha o período republicano. 32
Mesmo assim, seu trabalho traz importantes reflexões teóricas que também servem para
pensar o Período Imperial. Num trabalho que circula entre história eclesiástica, micro-história,
história cultura e história política, o autor procura analisar o processo de romanização
partindo de conflitos locais entre um pároco e parte dos cidadãos da pequena cidade sergipana
de Itabaiana. A partir daí, analisa a hierarquia eclesiástica e as relações entre Igreja e Estado
na segunda década do século XX.
Apesar de fazer várias críticas ao conceito de romanização, por dar uma ideia muito
homogênea do processo de reforma em ato, ele ainda o adota, mesmo expressando, por vezes,
as dificuldades encontradas em adequá-lo às situações históricas que a documentação
pesquisada lhe apresentava. Pesquisando documentos presentes em vários arquivos, desde o
Arquivo Secreto Vaticano a arquivos locais e particulares, ele exprime as seguintes
dificuldades em relação não só ao conceito de romanização, mas também à noção de
autocompreensão: “Todavia, os documentos nos arquivos do vaticano não revelaram uma
administração do primeiro bispo sergipano como um tipo ideal de reformador do catolicismo
em Sergipe, em consonância com o projeto romanizador, empreendido desde o século XIX,
no Brasil” ou ainda, “Nos cinco primeiros anos da administração de D. José, ocorreram vários
confrontos e conflitos, ilustrando a exata dimensão da difícil uniformização da compreensão
32
SOUSA, 2008. Quero aproveitar esta ocasião para retratar um equívoco num artigo que publiquei em 2009 na
revista Temporalidades, intitulado: Uma questão de revisão de conceitos: Romanização – Ultramontanismo –
Reforma, onde realizo uma história do conceito de romanização, refletindo também sobre outros conceitos que
considero menos limitadores que este. Naquela ocasião estava nos últimos anos do meu doutorado no exterior,
realizando leituras e sem acesso a muitas obras. Tive contato, então, somente com um pequeno texto de Antônio
Lindvaldo Sousa e a poucos trabalhos de Augustin Wernet. Nesta ocasião fiz algumas críticas à como Antônio
Lindvaldo utilizava o conceito de romanização, no entanto, ao ter contanto com o restante de sua obra sobre o
tema, percebi que havia cometido alguns equívocos que serão corrigidos nesse texto.
128
do processo de romanização da Igreja Católica em Sergipe”. 33 Apesar desta sua reflexão ser
sobre Sergipe, poderá ser facilmente estendida para outras localidades do Brasil.
Nos últimos anos, uma crítica mais forte a este conceito vem sendo elaborada, principalmente
na sua utilização para o Período Imperial, quando o padroado e o regalismo impediam uma
livre comunicação entre a Santa Sé e a Igreja no Brasil. Podemos perceber essa tendência na
obra de Dilermando Ramos Vieira, O processo de Reforma e reorganização da Igreja no
Brasil (1844-1926), publicada em 2007; na tese de Luciano Dutra Neto, Das terras baixas da
Holanda às montanhas de Minas, defendida pela Universidade Federal de Juiz de Fora em
2006, e na minha tese, Os Ultramontanos no Brasil e o Regalismo do Segundo Império,
defendida na Pontifícia Universidade Gregoriana em 2010.
Em 2007, Sérgio da Mata traz novos elementos para a discussão, criticando os conceitos
tradicionais utilizados para definir o processo de reforma ultramontano no século XIX. No seu
texto: Entre Syllabus e Kulturkampf: revisitando o “reformismo” católico na Minas Gerais
do Segundo Reinado, Da Mata faz uma crítica à historiografia das últimas décadas sobre o
assunto, contestando tanto a utilização do conceito de romanização, quanto o de reforma. Ele
tece, então, uma crítica a atuação da Igreja no século XIX definindo-a como fundamentalista.
Segundo esse autor: “De fato é no mínimo um eufemismo infeliz designar, como continua
33
SOUSA, 2008, p. 114.
34
VIEIRA, 2007.
35
DUTRA, 2006, pp. 29, 39, 258.
129
ainda a ser comum, o fundamentalismo ultramontano como ‘reformismo’. Faríamos melhor,
na ausência de melhor expressão, em defini-lo como uma espécie de xiitismo papista”. 36 Não
considero o conceito de fundamentalismo adequado para definir a reforma ultramontana e,
sinceramente, considero este conceito menos adequado do que o de romanização. Discordo
ainda mais da definição de “xitismo papista”. Talvez teria sido mais interessante definir o
referido processo como integrismo.37
36
MATA, 2007, p. 226.
37
Sobre o significado desses conceitos e seus desenvolvimentos históricos convido os leitores a consultarem o
artigo de Antônio Flávio Pierucci (1992) e ORO, 1996.
38
Um outro importante trabalho que trata do tema é volumosa tese de doutorado em três volumes de GOMES,
1991.
39
Consultar o artigo: SANTIROCCHI, Ítalo D. “Uma questão de revisão de conceitos: Romanização –
Ultramontanismo – Reforma”. Em: Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-graduação em
História da UFMG, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 24-33, 2010.
40
VAINFAS, 2008, p. 660.
130
de significados militantes, tanto para o século XIX, quando foi cunhado, quanto para o século
XX, quando foi reutilizado.41
Considerações finais
Não era minha pretensão apresentar todos os trabalhos e nem mesmo perpassar todas as
discussões teóricas sobre a Igreja Católica no Brasil Imperial, mas, sim, incentivar a discussão
e, dentro das possibilidades de um trabalho dessa natureza, também fornecer uma exposição
41
SANTIROCCHI, 2009.
42
Consultar também o artigo: SANTIROCCHI, Ítalo D. “Uma questão de revisão de conceitos: Romanização –
Ultramontanismo – Reforma”. Em: Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-graduação em
História da UFMG, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 24-33, 2010.
43
Não tem como não mencionar dois clássicos sobre a Igreja em Minas Gerais:TRINDADE,1928; TRINDADE.
1953; TRINDADE, 1953; e CARRATO, 1963.
131
historiográfica que permita aos novos pesquisadores sobre essa temática tomar conhecimento
dos debates em curso.
No decorrer desta breve e limitada exposição ficou patente que nas últimas décadas têm
crescido o interesse e as pesquisas sobre a Igreja católica no Brasil, principalmente entre os
historiadores ditos profissionais e nos programas de pós-graduação das universidades
brasileiras. Esboçou-se no decorrer do texto uma possível divisão, proposta por alguns
acadêmicos, entre as pesquisas e produções universitárias e aquelas realizadas em outras
instituições, como, por exemplo, as associações religiosas ou maçônicas. Eu não acredito que
seja esse o caminho, pois a História Eclesiástica, ou História da Igreja Católica ou ainda a
mais ampla História das Religiões, não pode negar o seu caráter interdisciplinar e a
necessidade de diálogo com outras áreas de conhecimento, dentro e fora do universo
acadêmico.
Fazer uma exclusão de obras poderia deixar fora das discussões importantíssimas produções e
conceituações, o que levaria ao empobrecimento dos debates. Os trabalhos realizados por
militantes católicos de diferentes matizes, por liberais ou por maçons, mesmo se muitas vezes
mais preocupados em defender suas posições do que em realizar um trabalho historiográfico,
foram os responsáveis por trazer à tona e conservar uma grande quantidade de documentação,
de manter viva as discussões e as pesquisas num período no qual a Disciplina da História no
Brasil marginalizava as pesquisas sobre História das Religiões. Quando os investimentos
nessa área eram quase nulos, quem incentivou as pesquisas sobre a Igreja católica no Brasil
foram associações como, por exemplo, o CEHILA.
Apesar de ser um crítico do conceito de romanização, não nego a sua importância histórica e
sua enorme contribuição para os estudos sobre a Igreja Católica no Brasil. E aproveito a
ocasião para expressar o meu respeito e admiração por todos os pesquisadores que se
debruçaram sobre essa temática nos anos em que era marginalizada pelas pesquisas
acadêmicas.
132
ainda carente de pesquisas e debates. Espero que outros trabalhos surjam para cobrir as
lacunas deste, criticá-lo quando necessário e ampliar as discussões.
Referências
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140
Maquiavel, pluralismo, religião
Edgard Leite1
Nicolau Maquiavel (1469-1527) produziu sua obra num período de turbulência política no
norte da Itália e de crise profunda na Europa Ocidental. Ele o fez numa Itália em guerra,
situada entre os Descobrimentos e as Reformas, na ante-sala das guerras religiosas europeias,
e diante de um horizonte que, hoje sabemos, apontava para as revoluções do século XVIII e a
instalação de uma sociedade global.
1
Membro Titular da Academia Brasileira de Filosofia, Coordenador do Programa de Estudos Indianos da UERJ,
Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro.
2
COCHRANE, 1981, p.28.
3
LEGOFF, 1988, pp.171-172.
141
antigo Império Romano do Ocidente. Tal relação pretendia-se análoga à de Bizâncio, ligada
por uma linha sucessória direta à Roma Imperial, mas certamente, como Bruni induzia a
pensar, não se tratavam de fenômenos da mesma dimensão.
Tal crítica, demolidora de certezas estabelecidas no campo da memória, ou no das ideias e das
crenças que gravitavam em torno das instituições, demonstrava a capacidade da concepção
histórica humanista em voltar-se contra as falsas perspectivas de destino de natureza religiosa,
introduzindo novas variáveis na vivência da realidade do mundo e da visão do passado e do
presente. No contexto mais amplo dessa discussão, Bruni apontou, portanto, a existência de
elementos teóricos inovadores, principalmente quando considerou que tais verdades históricas
eram, acima de tudo, úteis para que os seres humanos “pudessem perceber o que evitar e o
que deveriam buscar”.4
II
4
Apud Cochrane, 24.
142
A certeza de que o tema precisava de uma nova abordagem, advinha, em grande parte, do
ponto de vista teórico, da neutralização que a história divina realizava do papel das intenções
e ações humanas, ou da sua criatividade e independência. Isso mantinha na escuridão qualquer
abordagem objetiva das razões dos homens e colocava como sentido do tempo a Redenção,
cuja verificação nunca estava na história em si, mas fora dela.
A possibilidade de que a história pudesse ter outra lógica que não essa, sagrada e pré-
determinada, era importante, naquele momento, não apenas porque servia a interesses
concretos dos opositores da Igreja, que além de controlar o espaço controlava o tempo, mas
também porque permitia realizar um primeiro entendimento secular das motivações humanas
em sociedade e sobre o alcance da sua potência. Maquiavel possuía, assim, a preocupação de
tentar entender as flutuações humanas ao longo das gerações e do tempo e extrair disso
alguma teoria capaz de propiciar, ou legitimar, uma atuação efetiva no presente.
Uma observação interessante para compreender suas bases teóricas mais íntimas foi feita por
James Atkinson, que alertou para a influência que o filósofo romano Lucrécio (99 a.C.- 55
a.C.) desempenhou na obra de Maquiavel.
É necessário recordar que o livro de Lucrécio, De Rerum Natura, tinha sido salvo do
desaparecimento pelo humanista Poggio Bracciolini (1380-1459), que, ao descobri-lo,
empenhou-se em sua cópia. E embora sua leitura e discussão fossem sujeitas, na época, a
inúmeras dificuldades, pelo conteúdo de suas proposições, algumas vezes consideradas
contrárias à religião, foi gerada uma literatura humanista influente ao seu redor, 5 Maquiavel,
pessoalmente, copiou todo o De Rerum Natura de uma edição manuscrita humanista. 6 Nela é
possível observar quais pontos da obra de Lucrécio lhe chamaram mais a atenção.
Maquiavel estudou Lucrécio no âmbito de uma tradição, e, assim apontam suas notas, deteu-
se particularmente na teoria atomista do filósofo. Lucrécio acreditava no espontâneo
movimento e na regular mútua colisão entre os átomos, que introduziriam, em sua opinião,
um elemento de imprevisibilidade na realidade: “em consequência dos frequentes encontros e
colisões que ocorrem por conta do movimento dos átomos”. 7 Tal fenômeno, aleatório,
tenderia a anular a dinâmica do destino.
5
PROSPERI, 2007, pp. 214-215.
6
ATKINSON, 2010, p. 38.
7
LUCRETIUS, 2001, p. 37.
143
Maquiavel acompanhou essa narrativa com especial atenção e, numa nota de próprio punho,
na margem do texto, refletiu sobre os efeitos dessa imprevisibilidade na natureza, sustentando
que dela era derivada a existência da “mente livre” (libera habere mentem). 8 Sugere-se aqui a
liberdade humana era fruto de uma dinâmica aleatória da natureza.
Numa carta, hoje perdida, escrita ao astrólogo Bartolomeo Vespucci, Maquiavel parece ter
expressado a opinião de que “apesar do homem sábio não poder mudar o curso das estrelas e
o universo... ele pode mudar suas próprias ações e, assim agindo, a si mesmo”. 9 De onde
vinha essa capacidade de mudança das próprias ações? De forma paradoxal, ela parecia advir
de um movimento paralelo ao “curso das estrelas”, que não era, como o delas, imutável (como
então se acreditava), mas sim imprevisto.
Se a “mente livre” emergia do fortuito, era aceitável que o próprio movimento de mudança do
ser estivesse fundado em algum tipo de realidade centrada no imprevisto. A dinâmica de
qualquer existência e mudança, possuía muito de aleatório, donde, portanto, Maquiavel
voltar-se para pensar um necessário conceito central que exprimisse essa realidade: no caso o
complexo tema da Fortuna.
III
Muito se escreveu sobre o conceito de Fortuna, em Maquiavel. Para Joseph Femia era algo
como “uma força elemental, um rio furioso”, ou talvez, “uma deusa incontrolável”. 10 De
qualquer forma uma força imprevisível, e imensamente poderosa, como assinalou M.
8
Apud BROWN, 2010, p. 184.
9
Apud BROWN, 2010, p. 181.
10
FEMIA, 2004, p. 41.
144
Lemon.11 O conceito se transformou ao longo de sua obra, tanto nos Tercetos, quanto no O
12
Príncipe, e nos Discursos e é difícil, na verdade, precisá-lo, como, de resto, outros tantos
conceitos de Maquiavel. 13 De fato, em Maquiavel a própria definição dos conceitos parece
flutuar de acordo com os movimentos da realidade, adquirindo ora um, ora outro aspecto mais
relevante, e não é diferente com o conceito de Fortuna.
Mas não há como deixar de concordar com Benedetto Croce, no entanto, quando este
entendeu que embora a Fortuna parecesse um tipo de divindade pagã, ela, acima de tudo,
sintetizava em si, ao olhar de Maquiavel, uma crítica à ideia de “racionalidade, finalidade,
desenvolvimento”.14 Ou seja, uma crítica a todo princípio que estabelecesse uma base
transcendental ao sentido da história.
A Fortuna assumia o perfil de uma força aleatória que tudo transformava, destruindo e
recriando qualquer sentido, modelada, provavelmente, no movimento desordenado dos
átomos de Lucrécio. Por isso, em Maquiavel, a história deixava de ser o cenário através do
qual desfilava a revelação divina, como a expressão de uma vontade maior. Ao contrário, em
grande medida era o palco de ação do aleatório. A ideia secular análoga que será desenvolvida
a posteriori, a de progresso, seria, em princípio, impensável, para Maquiavel. Qualquer coisa
pode ocorrer, de forma aleatória, se deixássemos a história, a do mundo, ou a nossa, ao sabor
da Fortuna. “A estrutura da realidade”, assegura Femia, em Maquiavel “é basicamente um
sistema sem sentido de movimentos físicos”.15 Pelo menos no âmbito da condição humana.
Essa potência pelo qual se ataca, ou se busca o controle, do acaso, é a Virtude. De certo que a
Virtude está repousada ou emergindo de uma mente livre. Trata-se, portanto, de uma potência
de ação, que surge do ser humano ativo, pelo qual se busca o controle do imprevisto, oriunda
não da aceitação de princípios transcendentais, mas sim da manipulação de mecanismos
depreendidos a partir de um entendimento do funcionamento do mundo. No caso específico
11
LEMON, 2003, p.101.
12
BROWN, 2010, p.246.
13
RAMSAY, 2002, p. 33.
14
CROCE, 1920, p.286.
15
FEMIA, 2004, p. 35.
16
MAQUIAVEL, 1983, P. 147.
145
dessa metáfora, da Fortuna como uma mulher, de um entendimento do assunto que se tinha à
época, evidentemente, a de que as mulheres deveriam ser controladas à força.
IV
17
NAJEMY, 2010, p. 33.
18
FEMIA, 2004, p. 32.
19
Idem, p. 92.
146
Começaremos pela segunda, que é aquela que vem “do céu”, provavelmente a ação da
Fortuna, “que reduz os habitantes... através de pragas ou inundações de águas”. Maquiavel
fala aqui de catástrofes naturais imprevisíveis que diminuem a população e que vitimam,
principalmente, os habitantes das cidades. Segundo ele os outros, os “das montanhas” podem
até sobreviver, mas perdem a conexão com o espaço urbano, e consequentemente com seu
ambiente cultural, tradição e memória. Ficam, assim, desprovidos do conhecimento da
antiguidade “e não podem transmiti-las à posteridade”. Nesse caso teríamos a ação da Fortuna
interrompendo um processo humano e comprometendo a transmissão do conhecimento.
A primeira causa, a principal, no entanto, seria aquela que “vem dos homens”. A eclosão
destemperada da desfaçatez humana interrompe os elos de transmissão de memória. Por
exemplo, quando uma nova religião “emerge, sua primeira providência é extinguir a antiga,
para dar a si mesma melhor reputação”.20 Se aplicarmos esse tema à história do cristianismo,
como Maquiavel o faz, veremos que uma dada ação humana interessada pode diluir o sentido
de eventos passados, permitindo não apenas o desaparecimento da lembrança mas também,
por exemplo, acompanhando o problema do Sacro Império, propiciando uma nebulosa ligação
ou continuidade entre o Império Carolíngio e o Império Romano do Ocidente.
Isso quer dizer, considerando que a destruição da memória pela Fortuna é, quando se
apresenta, incontrolável, e que a destruição do passado pelos homens ao longo da história
também, porque o mesmo acaso que na natureza existe, também entre os homens se manifesta
permanentemente, que só a ação da Virtude é pode propiciar o alcance dos objetivos
estratégicos da História, enquanto disciplina capaz de permitir um maior controle sobre as
vissicitudes do tempo. O fato de ser perfeitamente possível conhecer as razões torna apto ao
homem evitar esses mecanismos, seja diante da imprevisibilidade humana ou da natureza. E,
de fato, a tradição humanista comprovava que o salvamento, por exemplo, do De Rerum
Natura permitia a superação de qualquer esquecimento, seja aquele determinado pela Fortuna,
seja aquele estabelecido pela ausência de Virtude.
20
MAQUIAVEL, 1996, p. 139.
147
V
Assim, como afirmou Femia, se para Maquiavel “o absolutismo moral era geralmente
perigoso... e que o objetivo da vida política deveria ser o equilíbrio social, e não alguma
forma pré-concebida de justiça ou excelência humana”, 21 o sentido da Virtude não poderia
estar na expressão de uma lei natural determinista, nem no alcance teleológico de um
horizonte de fins, por exemplo. O sentido maior da Virtude emanava da potência humana e de
sua capacidade em exercitar o conhecimento do mundo, notavelmente da história, em solidão,
ou em conjunto, e diante de circunstâncias sempre extraordinárias. Esse aspecto da questão
colocou o especial tema dos diversos fins humanos, que como nos átomos de Lucrécio,
chocavam-se permanentemente.
Isaiah Berlin, com efeito, refletiu sobre esse aspecto da questão em Maquiavel, e concluiu que
“Maquiavel é o primeiro pensador que entendeu a existência de mais de um sistema de
valores”.22 Ao contrário do pensamento medieval - e de alguns pensadores de seu tempo-, que
sustentavam que a paz e a harmonia eram fundamentais ao bom ordenamento do Estado,
Maquiavel sustentará, a partir do estudo de caso de Roma, que era precisamente de sua
discórdia interna e do confronto de seus diferentes interesses que emergia a liberdade.23
Podemos entender, portanto, que nos seus estudos, Maquiavel concebeu ideias que tiveram
importância no desenvolvimento ulterior do individualismo. Ele postulou a pluralidade de
individualidades e causas como um dos elementos centrais da organização das sociedades.
Admitiu, portanto, uma perspectiva pluralista ruptora. Se o marxismo do século XX,
especialmente Gramsci, viu, em Maquiavel, um pensador capaz de pensar as entidades
coletivas e o papel motor dos conflitos sociais na história, 24 por outro lado parece claro que o
florentino é também o autor de um pluralismo social no qual a liberdade individual e a
ausência de sentidos maiores (ou no qual o grande sentido é o controle da Fortuna) resume a
essência sempre cambiante das estruturas sociais. Nessa perspectiva Maquiavel contribuiu
decisivamente para as bases do liberalismo, ao defender e sustentar o papel transformador da
pluralidade política.
21
FEMIA, 2004, p. 15.
22
Apud LOUKOLA, 2011, p. 99.
23
Idem, p. 100.
24
FONTANA, 1997, p. 11.
148
Tal perspectiva, em Maquiavel, aponta o terror de uma história sem sentidos, modulada
apenas pelo encadeamento casual de eventos. Para o universo intelectual iluminista, a
necessidade de recuperação de um universo medieval de sentidos, repleto de destinos, mas
numa perspectiva laica, deu início a uma série de sistemas teóricos direcionados para um
futuro mais ou menos determinável. A própria justificativa da História, como disciplina,
encontra no apontar do fim uma de suas maiores contribuições à tranquilidade dos homens no
tempo presente.
VI
Para Maquiavel, no entanto, parece haver sempre uma única constante: a Virtude. Ela
proporciona, sem dúvida, um domínio, mas esse domínio, sobre o sentido, é frágil, ou
efêmero, pois equilibra-se sobre o acaso. Mesmo que Virtude pudesse ser cada vez mais
ampla, sempre existiria o imprevisível. Qualquer estudo histórico encontraria assim, em sua
própria dinâmica, o permanente mistério do surpreendente. Seria ele próprio um fragmento de
sentido isolado num universo de impermanências.
Parece claro, aqui, que a religião para Maquiavel é uma tentativa de encontrar sentidos
absolutos onde estes não existem. O estudo da religião é o estudo das impossibilidades de
alcançar algo mais que o seu papel circunstancial na organização das sociedades. Grande
parte das análises modernas sobre o fenômeno religioso parecem provir de ilações decorrentes
das obras dos humanistas italianos, e notavelmente de Maquiavel. Mesmo quando se acredita
que a história possui um sentido, supõe-se que certamente não é um sentido sobrenatural, mas
natural. O sobrenatural aparece entendido à luz da sua inserção fantasiosa nos fragmentos
temporais.
149
Na qualidade de pensamento originário, a abordagem de Maquiavel é, sem dúvida, seminal.
Mesmo que o desenvolvimento posterior da filosofia e das ciências sociais e humanas tenha
apontado a complexidade infinita das experiências humanas e dos mecanismos de suas
percepções, o papel central do acaso foi por ele pioneiramente identificado como um dado de
inconsistência a ser considerado em todas as teorias que buscam, como é natural para seres
que se sentem desguarnecidos diante do mistério do mundo, modelos acabados de
pensamento. O estudo dos sistemas religiosos, principalmente, não pode deixar de considerar
que grande parte do esforço imaginativo teológico está voltado para eliminar, fazer
desaparecer ou explicar, como previsível, a radical e absolutamente transformadora
experiência do inusitado. Maquiavel nos aponta, precisamente nessa insegurança essencial,
um dos eixos em torno do qual gravitam as idéias e concepções religiosas.
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FONTANA, Benedetto. Hegemony and Power: On The Relation Between Gramsci and
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150
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PROSPERI, Valentina: “Lucretius in the italian Renaissance” in GILLESPIE, Stuart and alii.
The Cambridge Companion to Lucretius. Cambridge, 2007.
151
152
Ciências Sociais da Religião em Perspectivas no Brasil
A religião, enquanto categoria analítica, está presente na produção das Ciências Sociais desde
seu início, constituindo-se como um de seus temas clássicos capazes de atravessar toda a sua
história2. Na antropologia, especificamente, parece ter sido uma das poucas temáticas de
pesquisa que seguiu ocupando um lugar central mesmo após sensíveis deslocamentos em
relação ao tipo de sociedade privilegiada por essa ciência 3. Reconhecer sua longa duração
enquanto tema de pesquisa diante de mudanças de orientação teórico-metodológicas, contudo,
não é o mesmo que sugerir que a categoria religião tenha permanecido inabalável na história
da disciplina. Isto é, se, por um lado, a religião não deixou de ser tematizada nas pesquisas,
por outro, aquilo que pode estar compreendido nesse campo - como instituições, práticas,
enunciados, rituais e performances – é tão diverso quanto as tradições e perspectivas
antropológicas. Esse tipo de explicitação contribuiu para problematizar o conceito de religião
enquanto um mediador universal, hipoteticamente autônomo das próprias dimensões espaço-
temporais que o forjaram. Assim, apresentar um panorama do campo de estudos das ciências
sociais da religião no Brasil não é o mesmo que reconstituir as diferentes abordagens sobre “a
religião”, mas é, antes disso, ocupar-se das variações daquilo que foi concebido como
religioso.
Em um texto do início deste século, Pierre Sanchis afirmou: “o campo dos estudos da religião
está cada vez menos sob o domínio das religiões”.4 Esse tipo de constatação sugere tanto a
ocorrência de transformações da experiência religiosa na sociedade brasileira, como também
de deslocamentos analíticos que os cientistas sociais da religião têm empreendido para tratar
esse contexto. Nesse sentido, uma revisão mais geral dos trabalhos publicados nos últimos
anos pode nos dar pistas de algumas características gerais desses deslocamentos empíricos e
1
Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Email: rodrigo.toniol@gmail.com
2
Autores considerados fundadores da disciplina como Karl Marx (2009), Émile Durkheim (1996) e Max Weber
(2004a; 2004b) reconheceram, a partir de perspectivas distintas, o estudo da religião como chave para a
compreensão e análise das sociedades.
3
Em seu livro Teorias da Religião Primitiva, de 1965, Evans-Pritchard já afirmava a longa duração dos estudos
sobre religião a partir de sua centralidade desde os textos dos primeiros antropólogos (Evans-Pritchard, 1991).
4
SANCHIS, 2001, p.17.
153
epistemológicos. Ao longo das duas últimas décadas, por exemplo, pôde-se perceber a
produção de uma série de pesquisas que se dedicaram ao estudo do religioso a partir de sua
articulação com aquilo que, até então, pouco fora com ele relacionado. A isso está associado o
surgimento de diversas pesquisas cuja problematização proposta procurou estabelecer
interfaces entre, por exemplo, religião e etnicidade, 5 religião e cultura,6 religião e estado,7
religião e ecologia, 8 religião e turismo.9
De certo modo, como sugeriu recentemente Ronaldo Almeida, 10 essa característica implica
tanto em um novo vigor ao campo de estudos da religião, quanto evidencia a dissolução de
fenômenos religiosos em outras lógicas. Poderíamos mesmo afirmar que, se essas articulações
pouco apareciam nas análises dos pesquisadores até a década de 1990, não era
necessariamente porque elas não estavam presentes nos contextos etnográficos em que os
antropólogos faziam suas investigações, mas sim, porque, ao privilegiar a institucionalidade
das religiões, essas relações, que extrapolam os limites prescritivos dos grupos religiosos,
escapavam das análises empreendidas.
Foi com a emergência de modelos analíticos que não circunscreviam o campo de práticas e
experiências às instituições religiosas, que cientistas sociais puderam não apenas ampliar o
campo de estudos da religião, como também problematizar, a partir de novos contextos
investigados, os próprios conceitos orientadores de suas pesquisas. Diante deste quadro,
pesquisadores vêm sendo convocados a um esforço reflexivo que dê conta do desencaixe
entre a realidade empírica, descrita nas etnografias de práticas, instituições, grupos e
experiências religiosas e os conceitos e modelos analíticos que foram elaborados e definidos a
partir de um outro contexto social e histórico.
Posto isso, a proposta desse texto é apresentar parte da produção das ciências sociais da
religião no Brasil procurando demarcar alguns traços comuns às pesquisas de distintos
períodos. Não se trata, portanto, de apresentar um balanço sobre os estudos na área com o
intuito de reproduzir debates, apontando para as clivagens, divergências e disputas internas
entre correntes de pensamento, mas de perceber horizontes interpretativos que transcendem as
5
GONÇALVES E CONTINS, 2008; CAPIBERIBE, 2007; VILAÇA, 2008; MONTERO, 2006.
6
LOPES, 2011; FIGUEIRO, 2005.
7
GIUMBELLI, 2002; BIRMAN, 2003; ORO, 2003.
8
CARVALHO E STEIL, 2008; STEIL E TONIOL, 2011; SOARES, 2004.
9
STEIL E CARNEIRO, 2008; ABUMANSSUR,2003; TONIOL, 2011.
10
ALMEIDA, 2010.
154
próprias pesquisas aqui descritas e se constituem como característicos de esquemas mais
gerais de compreensão do fenômeno religioso no Brasil.
A perspectiva dual que opera classificações a partir da relação entre tradição e modernidade
constitui-se como um esquema analítico comum a uma série de pesquisas produzidas no
Brasil em determinados períodos. Na tentativa de apresentar a constituição do campo de
estudos das ciências sociais da religião a partir da caracterização desse modelo analítico, nos
deteremos a seguir em três expressões desta perspectiva: o dualismo espacial, o dualismo
temporal e o sincretismo.
11
Essa divisão entre a primeira e a segunda característica desse desprestígio não se refere a uma ordem de
emergência, mas a elementos distintos, embora relacionados.
12
Noutros textos (Steil, 2001; Steil e Herrera, 2010) tratamos da primeira característica dessa marginalização
destacando o papel desempenhado por instituições religiosas e grupos autônomos na produção de pesquisas
sobre o tema da religião.
155
Dualismo Espacial
No entanto, em que pese essas narrativas que tomavam a religião como fora de lugar na
modernidade, em, pelo menos, dois tipos de estudo ela pôde ser tematizada como lócus de
interesse: os estudos de comunidade e as pesquisas sobre messianismo.
A partir da década de 1950 a presença religiosa no campo foi estudada sob o título de estudos
de comunidade. O trabalho de Thales de Azevedo, Catolicismo no Brasil (1955), marcou essa
agenda de pesquisa nascente com a proposta de evitar caracterizar as práticas religiosas nesses
espaços como exóticas. Assim como as áreas rurais foram privilegiadas nesses estudos, o
tema dos rituais no catolicismo popular também foi bastante recorrente.14
13
QUEIROZ, 1988; Da MATTA, 1983; ORTIZ, 1985.
14
BRANDÃO, 1981; SOUZA, 1977.
15
GALVÃO, 1976. Para uma apresentação dos estudos sobre peregrinação no Brasil ver: GIUMBELLI, 1997;
STEIL, 2003.
156
assinalavam a relação entre o surgimento desses movimentos e o levante contra aquilo estava
associado à modernidade, como a burocracia e o estado laico.
Dois pesquisadores merecem destaque na caracterização dessas pesquisas, são eles Maria
Isaura Pereira de Queiroz (1965) e Duglas Teixeira Monteiro (1974). Muito embora ambos
tenham negado a chave analítica tradicional-moderno para descrever práticas religiosas, suas
pesquisas estiveram preocupadas em compreender a tentativa da Igreja Católica em romanizar
práticas associadas ao catolicismo popular, difundidas em diferentes regiões do país. Duglas
Monteiro foi um dos primeiros a retomar a temática do milenarismo, explorada inicialmente
por Maria Isaura Pereira de Queiroz (1965), propondo, contudo, uma leitura que focava
menos os aspectos gerais do evento e mais as ações religiosas e práticas rituais dos sujeitos
envolvidos com os movimentos.
A prescritividade da perspectiva dualista espacial teve que lidar com a emergência de uma
manifestação religiosa cada vez mais presente na sociedade brasileira e caracterizada,
sobretudo, por seu aspecto metropolitano, as Igrejas Pentecostais. Diante desse contexto, a
dualidade campo versus cidade manteve seu princípio lógico, mas passou a operar a partir da
chave centro e periferia. Assim, a presença da religião na periferia das cidades foi concebida
como uma expressão do desenvolvimento de uma espécie de espaço anômico, que não teria
sido capaz de completar o processo de modernização. Dessa maneira, nas cidades que,
supostamente, rumavam para uma secularização incontornável passou a ser possível
reconhecer “bolsões de tradição religiosa”.
Dualismo temporal
157
vinham acontecendo no catolicismo romano internacional. Assim, o autor deslocou o foco de
interesse das pesquisas sobre religião, comumente voltado para o catolicismo rural, para a
busca por compreender a relação entre modificações estruturais da sociedade brasileira e as
ações da Igreja diante delas.
Outro autor que merece destaque por ter realizado alguns empreendimentos analíticos
conforme essa perspectiva é Pedro Ribeiro de Oliveira. Em sua tese, Oliveira (1985) procurou
compreender o processo de aproximação da Igreja Católica local da ortodoxia vaticana, após
um período de relativa autonomia durante o século XIX16.
Tanto Ralph Della Cava (1975) como Pedro Ribeiro de Oliveira (1985) produziram suas
pesquisas informados por essa perspectiva que primava pela análise diacrônica das práticas
religiosas em determinadas instituições, como o catolicismo. O dualismo tradição e
modernidade nessa leitura temporal teve entre suas principais influências o funcionalismo
durkheimiano. Esse bias funcionalista estava expresso, por exemplo, na atribuição de um
sentido universal e unificador das instituições religiosas em relação às práticas. Assim, a
romanização do catolicismo era tomada como parte de um processo inevitável de adequação
das práticas populares às determinações institucionais da Igreja. Noutras palavras, essa
perspectiva implicou a impossibilidade de conceber e, por conseguinte, pesquisar, devoções
religiosas autônomas, não atreladas a instituições 17.
Sincretismo
16
Segundo Oliveira (1985) alguns dos artifícios eclesiásticos para a romanização do catolicismo brasileiro
foram: o deslocamento na centralidade da devoção dos santos para um cristocentrismo, maior controle na
formação sacerdotal, nomeação de bispos alinhados com as diretrizes de Roma e concessão da administração de
santuários às ordens religiosas européias.
17
Não é sem razão que os rituais foram, nesse contexto, momentos privilegiados para a observação do sagrado
que, como afirmou Steil (2003:39), existe, nessa perspectiva, “não como uma realidade espiritual autônoma
perante o social ou o indivíduo, mas como o próprio “social” que se expressa por meio de símbolos e rituais
religiosos”.
158
paisagem religiosa brasileira18 e compararmos com avaliações mais recentes do contexto
religioso no país,19 perceberemos certa permanência na centralidade da ideia de diversidade,
bem como o constante acionamento do conceito de sincretismo, e seus congêneres, para
caracterizar as práticas religiosas realizadas no país. Assim, para diversos sociólogos e
antropólogos da religião,20 se há, no Brasil, alguma característica matricial das crenças e
práticas religiosas, ela pode ser caracterizada como uma constante “combinação das crenças
das religiões tradicionais: a dominante, católica, com as subalternas, indígenas e africanas”. 21
Se, conforme afirmamos, nas duas outras versões descritas do dualismo tradição e
modernidade - a espacial e a temporal - , o catolicismo foi, de modo geral, a prática religiosa
privilegiada como objeto de investigação, as pesquisas informadas pela ideia de sincretismo
religioso privilegiaram as religiões afro-brasileiras. Como afirma Sanchis:
18
QUEIROZ, 1989.
19
MONTERO, 1999; ALMEIDA, 2010.
20
CARVALHO, 1992; MACHADO E MARIZ,1998; SANCHIS, 2001; SANCHIS, 2002.
21
CAMURÇA, 2009, p.175.
22
SANCHIS, 2002, p.15.
159
Já nas pesquisas sobre o Candomblé da Bahia (2001) de Roger Bastide, um dos intelectuais
chave para a constituição de um campo de investigação sobre fenômenos religiosos no Brasil,
o sincretismo constituiu-se como conceito essencial para descrever a trajetória histórica
daquilo que o autor reconheceu como um desprendimento de uma superestrutura – as
religiões africanas – do contexto social que o forjou e, posterior, acomodação noutros marcos
religiosos – a matriz sincrético católica brasileira.23
A apropriação do conceito de campo social de Bourdieu (2007) permitiu que cientistas sociais
pudessem reconhecer a diversificação do fenômeno religioso sem que isso implicasse afirmar
a produção de um universo religioso fragmentado, sem características comuns capazes de
tornar cada uma de suas manifestações relacionadas entre si. Descrever a gênese de um campo
diante do aparecimento de novos matizes religiosos permitiria, nos termos de Bourdieu,
compreender “aquilo que faz a necessidade especifica da crença que o sustenta, do jogo de
linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram”
(Bourdieu, 2007:69). Desde essa perspectiva, portanto, as práticas e rituais religiosos são
tanto a expressão de uma estrutura social que abrange cada uma dessas manifestações, como
23
A produção antropológica sobre a dinâmica do campo religioso afro no Brasil ulterior as pesquisas de Bastide
é imensa, parte dessas investigações, como as de Diana Brown (1985), Renato Ortiz (1978) e Yvonne Maggie
(1977), embora tenham procurado colocar sob outros termos a ideia de sincretismo, seguiram operando a partir
do dualismo tradição e modernidade.
160
essas próprias práticas são capazes de encompassar essa estrutura produzindo uma
diversificação cada vez mais ampla do campo religioso.
Com isso, a religião, seja como categoria analítica ou como fenômeno empírico, passou a
estar associada à ideia de um pluralismo que caracterizaria tanto a significativa circulação de
pessoas entre diferentes tradições religiosas, como também a multiplicação de igrejas e
fenômenos religiosos no país. Se com o conceito de sincretismo, pesquisadores procuraram
sublinhar a composição de práticas religiosas a partir de elementos de diferentes tradições,
com a ideia de pluralismo religioso o foco estava voltado menos para a incorporação de
práticas diversas nas instituições e mais para o trânsito dos sujeitos religiosos entre diferentes
religiões. Como afirmou Almeida (2010), na medida em que a paisagem religiosa do país
passou a ser descrita em termos de pluralismo religioso, uma série de noções congêneres tais
como diversidade, concorrência e conflitos adquiriram significativa importância na
caracterização do campo religioso brasileiro.
Na tentativa de apresentar parte das pesquisas produzidas em diálogo com a idéia de campo
religioso, recorremos à tipologia de Ernst Troeltsch (1987) que buscou compreender, a partir
de três tipos, as tradições religiosas ocidentais, são elas: Igreja, Seita e Mística. Não nos
deteremos, aqui, nas implicações teóricas dessa tipologização para a própria obra de
Troeltsch, mas recorremos a ela reconhecendo, assim como fizeram diversos outros cientistas
sociais, 24 sua atualidade. Ao final da descrição das pesquisas produzidas no âmbito dessas
tradições, proporemos um quarto conjunto de práticas religiosas que têm sido tematizada em
investigações recentes não prevista por Troeltsch a qual chamamos de rede.
24
MATA, 2008; STEIL, 1999; SANCHIS, 1995.
161
A primeira classe de manifestações religiosas, denominada de Igreja, compreende os estudos
realizados acercas das instituições, sobretudo, católicas e evangélicas, em um contexto plural
de concorrência por fiéis. Tais investigações estiveram fortemente influenciadas pela
perspectiva weberiana. Embora o próprio conceito de campo pareça garantir um lugar para a
religião em um contexto de modernização, a ideia de racionalidade, característica da obra de
de Max Weber, 25 impulsionou a realização de pesquisas acerca de fenômenos religiosos
menos em direção à analise das diferentes manifestações religiosas que emergiam nos
contextos urbanos e mais à temas relacionados ao desencantamento do mundo e
secularização. Com isso, as práticas religiosas analisadas desde uma perspectiva weberiana
privilegiaram a reflexão acerca de processos de racionalização da sociedade brasileira –
especialmente das religiões. Outra conseqüência analítica da incorporação da perspectiva
weberiana no campo de estudos da religião no Brasil foi o deslocamento da ideia de um fiel
completamente encerrado pelas instituições religiosas para um fiel autônomo, reflexivo e
capaz de compor seu próprio sistema de crenças. Assim, do mesmo modo que o pluralismo
religioso remete à ruptura do monopólio de uma religião como igreja oficial e, por
conseguinte, à diversificação das práticas contribuindo para a constituição da noção de um
campo religioso múltiplo, também remete à emergência do indivíduo na dinâmica de
funcionamento das próprias igrejas.
As pesquisas produzidas próximas a essa tradição nas ciências sociais provocaram uma
mudança na ideia de uma incompatibilidade entre religião e modernidade apontando, pelo
contrário, para a constituição de uma modernidade bastante profícua para a proliferação de
25
WEBER, 2004a; 2004b.
26
LESBAUPIN, 2009.
27
Para Ivo Lesbaupin, por exemplo, as comunidades de base funcionavam numa estrutura de seita tendo em vista
“o lugar ocupado pelo leigo,a pregação feita pelos leigos, a importancia atribuída à Biblia, a vida comunitária, as
relações igualitárias, a participação das mulheres, a fraternidade, o auxílio mútuo” (LESBAUPIN, 2009, p.69).
162
crenças religiosas. Essas pesquisas demonstraram de que maneira aquele contexto, descrito
por algumas perspectivas, como se aproximando progressivamente de uma modernidade
secular governada pela razão científica e técnica não trouxe para o mundo uma marca a-
religiosa, mas ao contrário, carregou consigo uma verdadeira nuvem de novas crenças.
De modo geral, as pesquisas relacionadas com a ideia de seita apontaram para duas
características dessas manifestações religiosas. Primeiro, para a possibilidade, nesse contexto,
da experiência religiosa ocorrer no plano da intimidade do sujeito. Segundo, para o fato da
certificação da verdade dessa experiência poder ser atestada pelo próprio indivíduo,
independente de normalizações institucionalizadas. Assim, as crenças se construiriam de um
modo altamente fluido e, ainda que não estivessem submetidas às suas instituições, tomariam
“emprestados e reutilizariam” elementos originários das grandes tradições religiosas. Essa
nova configuração do mundo religioso, como defende Hervieu-Léger (2008), produziu o
enfraquecimento das instituições reguladoras do crer, tendo como conseqüência o retorno da
fórmula que era aplicada a sociedades não-modernas: a religiosidade está em toda parte.
O desafio das pesquisas produzidas em diálogo com essa tradição é o de pensar religião a
partir do movimento e da fluidez. A estabilidade das identidades religiosas, cristalizada na
figura do fiel praticante, mudou de sentido – deixou de obedecer a imperativos institucionais e
passou a se organizar a partir das necessidades e escolhas pessoais. Esse tipo de prática,
contudo, não esteve restrita aos sujeitos e grupos identificados com certa espiritualidade Nova
Era, mas foi capaz de dar vazão a rituais e práticas tradicionais antes invisibilizadas pela
hegemonia dos sistemas oficiais. Assim, podemos observar a incorporação dessas formas de
crer nas próprias tradições religiosas estabelecidas, tais como catolicismo 28 e espiritismo, por
exemplo. 29
O que está em jogo nas inúmeras pesquisas produzidas no âmbito daquilo que Troeltsch
chamou de Igreja, Seita ou Mística, é a percepção bastante difundida do enfraquecimento das
instituições frente a um panorama bastante fluido das crenças individuais que não se
manifesta apenas por meio do esvaziamento de fiéis das grandes tradições religiosas, como
também pela pane da laicidade que, tornou-se durante a década de 1990, um tema de
pesquisa bastante explorado pela antropologia brasileira. 30 A transformação do cenário
28
STEIL E CARNEIRO, 2008; TONIOL E STEIL, 2010; OLIVEIRA, 2004.
29
STOLL, 2002; LEWGOY, 2008.
30
GIUMBELLI, 2004; BIRMAN, 2003, RANQUETAT JUNIOR, 2010.
163
religioso coloca novas questões ao Estado laico, que entra em choque, por exemplo, quando a
administração da crença deixa de estar sob o comando de determinadas instituições religiosas
passando a ser reinvidicada por grupos que não se estruturam dentro dos modelos religiosos
clássicos.
Embora as pesquisas produzidas em diálogo com a ideia de campo religioso tenham sido
bastante diversas no que se refere ao tipo de problematização, diferentes pesquisadores
interessados em investigar a produção da dinâmica religiosa global reconheceram no conceito
de campo um limite analítico. Para estes pesquisadores, a descrição dos campos religiosos
nacionais terminaram se pautando pelas próprias fronteiras nacionais, o que terminou
invisibilizando relações translocais na constituição de determinadas práticas e instituições
religiosas.
32
VELHO, 1997, p. 32.
33
VELHO, 1997, p. 33.
165
Conclusão
O que está em jogo não é deixar de reconhecer a importância dos processos locais na análise
dos fenômenos religiosos, mas sim de evitar a circunscrição de práticas e signos locais à
localidade. Nesse sentido, autores como Arjun Appadurai (2004) e Jean e John Comaroff
(2003) têm problematizado as consequências analíticas da invisibilização de fenômenos
globais na produção – real e epistemológica – do local. Trata-se de questionar a máxima
geertziana de que os “antropólogos pesquisam nas aldeias”, para sugerir reflexões sobre os
inúmeros fluxos globais que atravessam esses contextos. A invisibilização das forças globais
é uma espécie de conseqüência metodológica de uma perspectiva teórica funcionalista que
privilegiou os espaços de intimidade como lócus, por excelência, da observação
antropológica. Diante de fenômenos como o da globalização, como afirmam Jean e John
Comaroff (2003), parte dos antropólogos foi tomado por um receio de perda de “objeto”,
34
VELHO, 1997, p.57.
166
dando pouca visibilidade aos fenômenos globais de modo que, em algum sentido, pudessem
preservar seus universos de pesquisa.
A crise do conceito de religião passa tanto pelo questionamento de sua suposta capacidade
explicativa universal, como pelo caráter local que pode imprimir nos contextos a que se
refere. A religião, seja como fenômeno empírico seja como unidade de análise, não é algo que
existe em si, como uma substância permanente, mas, antes, se apresenta como uma
configuração histórica que resulta da negociação contínua entre formas diversas de expressar
a experiência religiosa. E, o que podemos observar é que o conceito de religião muda
juntamente com os contextos sociais. Isso implica, conforme procuramos mostrar nesse
artigo, tanto a impossibilidade de projeção das fronteiras geográficas dos países na análise da
dinâmica das práticas e instituições religiosas, como também a necessidade de produção de
pesquisas que tratem a religião não como um fenômeno autônomo da vida dos sujeitos, mas
articulado conforme as disposições criativas e multidimensionais que a modernidade,
supostamente a-religiosa, tem produzido.
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173
174
Religião e cultura: perspectiva das Ciências Sociais
Cada sociedade constrói, para seu uso, certo tipo ideal de homem. E
este ideal é o eixo educativo. Para cada sociedade, a educação é o
“meio pelo qual ela prepara, na formação das crianças, as condições
essenciais da sua própria existência”. Assim, “cada povo tem a
educação que lhe é própria e que pode servir para defini-lo, da
mesma forma que a organização política, religiosa ou moral
DURKHEIM2
Introdução
Sob a perspectiva das Ciências Sociais, religião e cultura são termos comumente associados à
compreensão das práticas e representações culturais dos diferentes grupos sociais do passado
e do presente. Autores como Durkheim (1996), Bourdieu (1999), Eliade (1992), Filorano e
Prandi (1999), Chartier (1990), Elias (1989) dentre outros, identificaram no seio de suas
análises, o mito e o rito como elementos imprescindíveis à prática religiosa vigente nas bases
culturais de diferentes organizações sociais. O mito e o rito, são fatores fundantes do
pensamento e da prática religiosa, apresentam-se em seu papel aglutinador das relações
sociais, promovendo valores e significados comuns aos indivíduos de um mesmo grupo
social. A relação entre a cultura e a religião, emerge no processo de apreensão e construção da
realidade tanto nas sociedades complexas, junto à cultura erudita como nas sociedades
simples, junto as estruturas míticas. O propósito dessa discussão é apresentar, sob a
1
Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-SP, mestrado em História pela UNESP/Franca-SP. Doutoranda
em História na UNESP/Franca-SP, com tema sobre Filosofia da História no Império. A discussão que se
apresenta neste texto é parte da tese de doutorado concluída em 2006 no programa de Pós-graduação em
Ciências da Religião, sob a orientação do Prof. Dr. Fernando Londoño, com o auxílio da CAPES.
2
1965, pp. 9-10
175
perspectiva de Durkheim e dos autores citados, parte do processo histórico que definiu o
caminho da relação entre a religião e cultural.
Antropologia
A Antropologia foi em princípio a área das Ciências Sociais que mais se voltou para a
religião, fazendo dela um campo de análise capaz de evidenciar determinados sentidos e
significados das relações sociais. Foi por intermédio da Antropologia que a religião passou a
ser pensada como algo inerente às sociedades humanas simples ou complexas. Em especial, o
pensamento antropológico de Durkheim, produziu um referencial teórico indispensável às
categorias de análise da religião, que em última instância tornou comum a inserção dos
estudos religiosos nos aspectos da cultura humana. 3
3
Cf. DURKHEIM, 1996.
4
BOTTOMORE, 1983, pp. 20-21.
176
calcada no apriorismo e empirismo kantiano,5 analisou o comportamento dos aborígines
australianos, chegando à conclusão de que:
Além de realizar um estudo comparado sobre as manifestações religiosas dos povos ágrafos,
Durkheim comparou as mesmas com as religiões históricas, chegando à conclusão de que a
religião seria um sistema complexo de mitos, dogmas, ritos e cerimoniais, o qual supõe uma
classificação das coisas, reais ou ideais, que os homens concebem em duas classes, em dois
gêneros opostos, que as palavras profano e sagrado traduzem muito bem.
Posteriormente nas décadas de 1960 e 1970, Eliade (1996) verificou no pensamento religioso
a percepção de um mundo dicotômico, que pode ser entendido nas categorias conceituais
sagrado e profano, as quais integram o universo simbólico elaborado pelo grupo analisado.
Observou-se que o sagrado e o profano constam de sentidos específicos entre um grupo e
outro, ou seja, se diferencia no contexto cultural de cada sociedade observada. O indivíduo,
junto ao grupo, estaria sujeito a percorrer as duas categorias que compõem esta dicotomia,
tendo como ideal as práticas delimitadas no sagrado.7 Para Mircea Eliade, as categorias
sagrado e profano apresentam-se como premissa para a identificação da religião em meio à
atividade humana.
5
BOURDIEU, 1999, p. 29.
6
DURKHEIM, 1996, p.18.
7
Cf. ELIADE, 1996.
177
estudos de Saussure como um caso específico de um fenômeno mais geral, relevante para o
processo de criação da teoria geral da comunicação por intermédio dos signos. 8
8
LAYTON, 1997, p.94.
9
Cf. PIAGET, 1979.
10
PIAGET, 1979, p. 8.
178
Tratando-se a religião de um sistema linguístico integrado ao objeto ritual, ela participa
diretamente da construção da realidade, seja por intermédio de uma ação educacional formal,
transmitida nas escolas, ou da educação informal dada nas relações sociais do cotidiano.
Ao analisar o mito recorrente nas cantigas e canções entoadas nos rituais de passagem dos
aborígines da América Central, Levi-Strauss identificou os elementos essenciais para a
organização do grupo, como a definição de significados comuns, que tornam possíveis as
relações entre os sujeitos que formam o grupo. O Estruturalismo permitiu uma análise da
11
LAYTON, 1997, p.95.
12
1971, pp. 7-12.
179
totalidade das pequenas sociedades tribais, levantando para as Ciências Sociais aspectos do
comportamento da atividade econômica e política, da atividade sexual e das relações de
parentesco, dispostos no grupo. A decodificação da linguagem mitológica garantiu
concomitantemente a decodificação das crenças, entendidas como um sistema de valores que
permeiam a atividade cultural, conduziu às conclusões sobre a lógica interna e o sentido das
ações implícitas na organização do grupo-social. Nas análises sobre o totemismo, Levi-
Strauss concluiu que a forma como a natureza era catalogada teria como origem a
classificação das pessoas na sociedade.
Nas sociedades complexas verifica-se, historicamente, que a religião foi mantida pelas
relações sociais submetidas à organização política do Estado. Da antiguidade às sociedades
modernas o Estado fora responsável pela definição de linguagens comuns para a formação de
consensos. A religião esteve presente na ação política, nas técnicas da economia, nos valores
da construção moral, na sexualidade e nas relações de parentescos, as relações sociais
cotidianas e os hábitos praticados, idealizados num referencial teórico, fazem parte das
implicações culturais, entendida como processo de transmissão e construção de saberes.
As estruturas sociais nas sociedades contemporâneas foram identificadas como elementos que
se caracterizam por somatórias conjunturais. Tais conjunturas são compostas pelas
instituições e pelos grupos de uma localidade, responsáveis pela definição de paradigmas aos
grupos que se destinam. A religião se despontou, nessa abordagem, como um elemento
estruturante das sociedades contemporâneas, persistindo no contexto cultural dos diferentes
segmentos da sociedade urbana industrial. Diante da ausência da difusão de uma religião de
Estado, pequenos e grandes grupos religiosos se formam atendendo às múltiplas
contingências materiais e culturais da sociedade ao qual pertence.
14
Cf; BERGER, 1985, pp.77-95.
15
Cf. BERGER, 1985; ELIAS, 1989.
181
por meio dos conhecimentos adquiridos, que envolvem, mormente a escola e a família; e um
sistema ritualístico, dentre outros sentidos perpetrados pelo sentimento religioso que servem
para manter ou aumentar a coesão social e dar sentido de valor aos acontecimentos
significativos àquele grupo.
16
Cf. BOURDIEU, 1999.
17
BOURDIEU, 1999, p. 12.
18
BOURDIEU, 1999, p. 12.
182
Nas abordagens preliminares de Bourdieu, destacam-se os estudos de Durkheim, tanto sobre a
religião como sobre a educação.19 Em seu estudo da ideologia e da cultura Bourdieu avança a
discussão sobre a relevância da educação sistematizada para a compreensão de uma estrutura
culturalmente desenvolvida no seio da sociedade de classes. Para tanto, Bourdieu utiliza como
objeto de análise a estrutura simbólica de que é capaz o campo religioso, atrelada aos sistemas
de ensino modernos, ou seja, ao modelo lingüístico e semiológico criado pela educação
formal religiosa em meio aos grupos urbanos.
Pela utilização do paradigma durkheimiano, Bourdieu chega à integração lógica e social das
representações coletivas engendradas pelos sistemas simbólicos capazes de estabelecer
funções políticas, uma vez que atribuem lógica de ordenação ao mundo. Ele se posiciona
contra os estudos da sociologia que verificam os fenômenos simbólicos como um mero
sistema de conhecimento sem relação com o sistema de ordenação do poder. Bourdieu aborda
o conhecimento que abrange o princípio de sustentação da eficácia dos símbolos em seus
aspectos internos, que lhes conferem poder político. Assim, antes de se aprofundar na cultura,
ele perpassa o campo simbólico em que operam os bens aí produzidos. A cultura, neste caso,
é sistêmica e simbólica, é um conjunto de significante/significado eficaz, que proporciona
uma percepção da realidade indissociável da função política. Ao relevar o aspecto da eficácia
política do símbolo, Bourdieu relega a classificação proposta por Durkheim, que elimina a
problemática da dominação.
19
Cf.DURKHEIM, 1965.
20
BOURDIEU, 1999, p..16.
183
Os sistemas simbólicos da religião, tendo sido organizados internamente por uma
classificação atribuída pela sociedade educativa, possuem autonomia e independência,
possuem linguagens dotadas de lógica própria. Particularmente sobre a sociedade capitalista,
a complexidade da divisão do trabalho desencadeia a contradição da sociedade de classes,
cuja desigualdade é resultado das modalidades de capital econômico e cultural. Com
Bourdieu a educação serve como um pressuposto vigente no objeto de análise do pesquisador
da cultura, que visa os mecanismos e processos de formação dos valores coletivos. Ela torna-
se um suporte do agente social, objetando as leis segundo as quais este suporte tende a
reproduzir sujeitos dotados de disposição, capazes de criar práticas estruturantes. Os recintos
educacionais e as instituições religiosas criam estruturas que, entendidas num princípio
teórico-metodológico próprio ao objeto de análise, atingem o sujeito histórico. Em seu
método Bourdieu capta as variáveis funcionais que permitem definir cada modalidade
enquanto configuração específica e concreta do mecanismo estudado, separando os fatos
sociais, os traços contingentes e os traços funcionais estritamente determinados por sua
posição no sistema ou estrutura de que fazem parte.
História Cultural
Sob a perspectiva das Ciências Sociais, a História Cultural verificou que as práticas e
representações21 vigentes na estrutura de uma dada religião não podiam ser tomadas
conforme um sistema de relações objetivas; cumpre antes integrá-las no âmbito da
significação do fenômeno a ser explicado. A História Cultural forneceu nova abertura a
abordagem das práticas e representações de uma cultura religiosa, pela revisão dos conceitos
que revelam os significados da religião no ordenamento de um grupo social
21
Cf.CHARTIER, 1999.
184
exemplo, às atividades que caracterizam o nascimento, a emancipação social do grupo, a
maturidade, a morte, os festejos comemorativos, entre outros. As representações podem ser
consideradas a partir de duas noções distintas: aquela que substitui um objeto por uma
imagem que não está presente, mas que é idêntica ou muito próxima do real, sendo capaz de
ser reconstruída em memória e figurar tal como ela é; e aquela que é utilizada como
apresentação pública de algo ou de alguém.
A História das Religiões, em princípio, propôs um estudo comparado das tradições religiosas,
que emergiram junto às civilizações de cada continente. Foi reconhecido que o
desenvolvimento das Religiões Históricas se deu junto com a tradição escrita. As abordagens
efetivadas neste campo de estudo proporcionaram definições mais complexas da religião.
Valendo-se dos referenciais da Antropologia e da Sociologia, foi possível à História das
Religiões identificar a religião como aspecto recorrente da organização dos grupos humanos
do passado.
Considerações finais
Assim considera-se nesta abordagem que a religião, onde quer que esteja presente, é um local
de produção de linguagem, que, como instrumento de comunicação, produz uma estrutura de
conhecimento e, consequentemente, um sistema moral, ético e cultural ao grupo envolvido. A
ascensão da sociedade liberal capitalista na Europa e, por conseguinte na América, forçou os
sistemas religiosos organizados no regime colonial à reorganização interna. Assim, a
configuração dos sistemas religiosos também passa por um processo de complexidade, na
busca por ampliar seus esquemas linguísticos e de pensamento intermediados por uma
instituição de apropriada. A organização e reorganização dos sistemas religiosos atende às
exigências da cultura moderna contemporânea, capazes de dar forma explícita e implícita ao
pensamento vigente nas representações e na ação cultural de um grupo, que integra ou
dissocia o grupo da sociedade complexa ao qual pertence. A compreensão do pensamento
religioso da sociedade moderna contemporânea exige a verificação das instituições sociais
que atuam como detentoras do discurso religioso, frente às relações de concorrência dos bens
culturais que despontam na contingência histórica.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: EDUSP, 1998.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1995.; LARAIA,
Roque. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
186
BRITO, Enio José da Costa; GORGULHO, Gilberto da Silva (Org.). Religião ano 2000. São
Paulo: Edições Loyola, CRE-PUC, 1998.
CURY, Carlos Jamil. Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais. São Paulo:
Cortez, 1988.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
ELIADE, Mircea. Sagrado e Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
FILORANO, Giovani; PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus, 1999.
187
HERMANN, Jaqueline. História das religiões e religiosidades. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAIFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio
de Janeiro: Campus, 1997.
JULIA, Dominique. A religião: história religiosa. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre.
História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1995.
NEVILLE, Robert C. A condição humana: um tema para religiões comparadas. São Paulo:
Paulus, 2005.
TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
VERON, Elis eo. Ideologia, estrutura e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1977.
188
A religião no mundo do trabalho: notas teóricas de uma pesquisa
histórica
Introdução
Como extensão, queremos pensar como ela atuou por meio das posturas e das mentalidades
de indivíduos situados em contextos onde o sagrado intervém como referente e fundamento
24
Professor do Departamento de História da UFMA, vinculado aos Programas de Pós-Graduação em História e
em Ciências Sociais. Coordenador do GPHR – Grupo de Pesquisa História e Religião. Pós-doutorando junto ao
Programa de Pós-Graduação em História da UFF/RJ. Bolsista FAPERJ.
189
de escolhas, discursos e atitudes, nos ambientes e nos mundos onde ela não está representada
oficialmente.
Dominique Julia (1976) e Pierre Sanchis (1997) nos ajudam pensar numa história religiosa
sem ter como ponto de partida as instituições religiosas e os seus sacerdotes oficiais, mas a
religião como força cultural que constitui sentidos para as ações dos sujeitos. George Simmel
sugere ver a religião onde ela não está, seja em comportamentos secularizados ou em gestos
cotidianos do processo de socialização.25
Itinerário de Pesquisa
Esta discussão introduz a pesquisa sobre uma fábrica de chapéus no Rio de Janeiro cujos
proprietarios foram protestantes. Trata-se da Fábrica de Chapéus Mangueira que teve um
tempo longo de existência, desde os seus primórdios no ano de 1857-1868 até o seu
fechamento na década de 1960. Até a primeira decada do século XX era conhecida como
Fernandes Braga & Cia. (VER ANEXO 1) mas, por conta de sua localização, passou a ser
25
HERVIEU-LÉGER e WILLAIME, 2009.
190
identificada como Fábrica de Chapéus Mangueira. Seu proprietário foi um imigrante portguês
protestante e membro da Igreja Evangélica Fluminense no centro do Rio de Janeiro. Esta foi
uma igreja de regime eclesiástico congregacionalista organizada em 1858, a primeira a ter em
sua membresia brasileiros adeptos e participantes.
Inicialmente tivemos contato com esta temática no período do mestrado, quando, ao estudar
os primórdios do protestantismo no Rio de Janeiro (século XIX), nos deparamos com fontes e
informações históricas sobre a existência e as atividades de uma fábrica de chapéus. 26 Já no
exame de qualificação, o saudoso Prof. Dr. Antonio Gouvea Mendonça nos chamou a atenção
para esta relação entre a religião e o mundo da economia, e apontando a fábrica como um
caso singular de estudo e análise no contexto brasileiro.
Percebemos, contudo, o quanto o papel da fábrica foi além do campo religioso, pois esteve
imbricada em outros processos históricos vinculados à própria história social do Rio de
Janeiro. Dai a necessidade de se ter uma compreensão histórica mais abrangente desta
unidade de produção, retomando a pesquisa agora num pós doutoramento.
Neste microcosmo da sociedade que foi a fábrica se por um lado esta crença incidiu nas
relações do mundo do trabalho, por outro, a atividade econômica transferiu recursos para o
sustento de missionários, a construção de patrimônios físicos como templos, o investimentos
em publicações da imprensa evangélica e formas de assistencialismos como a construção do
Hospital Evangélico do Rio de Janeiro. Foram estas transferências de recursos que serviram
como instrumento de afirmação de uma minoria religiosa nascente numa sociedade
hegemonicamente católica.
A escolha escolhida do objeto, diante das tantas possibilidades deste estudo histórico, se
justifica, por um lado, pela continuidade e aprofundamento das pesquisas na área da história
das religiões e do protestantismo no Brasil em particular. Por outro lado, significa estudar a
religião fora dos espaços oficiais sagrados que ela mesma institui como os templos, por
exemplo, diversificando os olhares sobre o protestantismo para além do eclesiástico e
compreendendo como a religiosidade estabeleceu padrões ajustados a outros campos ou
esferas sociais.
Sendo assim, a fé religiosa protestante foi elemento fundamental que singularizou uma
experiência dentro do mundo da produção e de sua ética determinando ações, decisões e
posturas, afinadas com o advento da modernidade em diferentes esferas.29 A pesquisa em seus
desdobramentos inevitáveis confronta esta hipótese, na medida em que as fontes, os dados, as
informações colocam outras perspectivas outrora não pensadas.
28
FIGARO, 2008, p. 92.
29
SANTOS, 2008.
192
protestantismo não eclesiástico se constituiu no mundo das relações sociais, especificamente
no mundo da produção.
Outras Dimensões
A pesquisa enfoca a religiosidade como seu objeto, mas outras dimensões também centrais
são necessárias para a compreensão da sua historicidade. E para se compreender o religioso
neste processo o itinerário da pesquisa requer a investigação em outras dimensões
relacionadas. Pois,
Apontaremos aqui algumas destas dimensões que o nosso objeto historioráfico em sua
natureza constitui.
30
BARROS, 2010, p. 132.
193
brasileiro de remessa de mão de obra, transferência de tecnologias e instrumentos
rudimentares.31 Como nos afirma José D’Assunção Barros,
Família. A partir desta questão, a história familiar dos proprietários por meio das gerações e
dos ciclos familiares se torna um importante eixo de compreensão. Ao mesmo tempo, a
longevidade da fábrica correspondeu à duração de quatro a cinco gerações que perpetuaram
valores, patrimônios, práticas e mentalidades, responsáveis, por decisões, ações,
subjetividades, visões de mundo, onde a crença protestante foi central.
Mundo do Trabalho. Por sua vez, a fábrica integrou-se ao mundo do trabalho e da produção,
a partir das condições próprias da indústria capitalista, empregando estrangeiros, negros,
brancos, mulheres e adolescentes como aprendizes artífices. 33 As tecnologias empregadas, as
lógicas da produção, a utilização de matérias primas, os maquinários, a divisão do trabalho, as
distribuições de funções e de tarefas, a mão de obra e as normatizações disciplinares,
constituem um conjunto fundamental de análise, relacionado a outras práticas do mundo da
produção.34
Mercado da Moda. Outra dimensão foi o mercado da moda e, nela, o uso do chapéu como
utensílio ou peça fundamental do vestuário cumprindo um papel social. O chapéu fazia parte
do vestuário de qualquer cidadão que fizesse parte da civilização e, conforme a visão da
31
MATOS & HECKER, 2008; MENDES, 2007; MENEZES & CYPRIANO, 2008; PEREIRA, 2002;
FLORENTINO e MACHADO.
32
BARROS, 2010, p.189.
33
ARAÚJO, 2009; AZEVEDO, 2011; CARONE, 1978; DE LUCCA, 2001; LOBO, 1978.
34
FRANZINA, CARNEIRO e CROCCI, 2011; HARDMAN e LEONADI, 1982; PETTA, 2004.As relações de
gênero e raciais se deram no cotidiano da fábrica, constituindo conflitos e contradições inerentes ao mundo da
produção, da utilização da mão de obra feminina e das formas de controle sobre os corpos no território fabril. Tal
foi a experiência de Ruphina Matos que, desde a juventude trabalhou na fábrica na função de arremate e
acabamento manual do chapéu. Ruphina trabalhou nesta tarefa tanto no espaço fabril como no doméstico,
caracterizando uma forma de exploração da mão de obra feminina numa fase de indefinição das fronteiras entre
o espaço fabril e a casa (SANTOS, 1995).
194
época, consequência da situação moral de um indivíduo ou de um povo.35 Além de inserir o
indivíduo na civilização e na moral, o chapéu obedecia a normas de comportamento,
indicando a escala social do usuário e até mesmo como símbolo da identidade de um
verdadeiro republicano.
Miécio Tati reconstituiu a visão social do uso do chapéu a partir dos textos de Machado de
Assis que, como poucos, falou sobre a vida carioca no séc. XIX, de seus costumes, valores e
instituições. Era uma peça indispensável ao vestuário masculino e o não habitual era andar
sem chapéu pelas ruas. Era uma cobertura obrigatória para as cabeças masculinas que
poderiam ser reconhecidas pelo modelo que usavam. Comprados na Corte ou fabricados em
Paris, "o importante era cobrir-se", de acordo com as situações e os contextos. O ato de
escolher um modelo de chapéu foi assim descrito por um dos seus personagens: “A escolha
do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é regida por um princípio
metafísico”.36
35
NEEDELL, 1993, p. 200.
36
TÁTI, 1991, p. 120.
195
A construção de casas próximas à fábrica para os operários fez surgir um bairro de
trabalhadores, instituindo práticas culturais e modos de vida a serem analisados
historicamente. Neste sentido, a FCM pode ser tomada com um sujeito e um território
responsáveis por processos sociais condicionados pelas forças sociais mais amplas.
A cultura negra dos cultos africanos como a macumba, do maxixe, do batuque, do samba e de
outras formas engendrou-se no processo desordenado de ocupação desta região, marcada pela
aguda violência sofrida e reproduzida por sua população sumetida à favelização em curso nas
primeiras décadas da república. Ora, a fábrica estava, a partir de 1898 em diante, ao pé de
uma grande mangueira onde o trem vindo da Central do Brasil fazia a sua primeira parada, a
“estação primeira da mangueira”.
À luz de Max Weber (2001) em sua compreensão da afinidade eletiva entre o protestantismo,
o sistema capitalista e a ordem moderna, a experiência da FCM demonstra historicamente
como o calvinismo puritano foi adotado, assimilado e aplicado no mundo da produção, dentro
das suas condições no Brasil. O protestantismo na sua forma calvinista, representou um passo
na secularização do ocidente em direção de uma sociedade onde o sagrado não mais impõe o
sentido de totalidade à existência humana.
No entanto, onde esta lógica e esta racionalidade moderna se colocavam com mais força, o
mundo do trabalho e da produção, a religião estava presente de alguma forma, o que relativiza
a secularização como processo que exclui ou extingue o religioso.
196
discurso do ministro evangélico, na transformação do espaço fabril em espaço sagrado e nos
cânticos religiosos cantados pelos operários.
Contudo, outras relações apareceram no uso paralelo da estrutura da fábrica como lugar da
produção de chapéus e como lugar sagrado visando ações proselitistas e religiosas.
Em segundo lugar, deu-se a abertura de uma congregação protestante junto ao bairro de casas
operárias construído pela fábrica, com serviços regulares de cultos, com o propósito de
converter os operários. Juntamente com a inauguração da fábrica foi aberta a igreja pelos idos
de 1898-1903, mas que não teve continuidade em suas atividades. Este fato chama-nos a
37
Jornal O Paiz – 21 de setembro de 1898.
197
atenção para a possibilidade de vermos como a própria fábrica reproduziria em si mesma um
papel como sendo uma igreja, onde os operários seriam a congregação, o pastor seria o
patrão e o espaço fabril o templo.
Por fim, os recursos da fábrica eram disponibilizados para suprir várias frentes da expansão
religiosa como a construção de templos, o sustento de pastores e missionários, a prática da
filantropia, o financiamento de obras assistenciais e de periódicos protestantes. A Associação
Cristã de Moços/ACM, movimento para eclesiástico voltado para a juventude com propósitos
éticos, morais e espirituais, foi financiada e sustentada pela FCM. Da mesma forma, as
sociedades bíblicas estrangeiras foram diretamente ajudadas pela fábrica, responsaveis pela
distribuição de Bíblias em todo o território nacional.
Mas esta condição não a isentou de enfrentar os conflitos próprios do mundo da produção e
do trabalho, como foram as greves nos anos 1903, 1906 e 1917. Este ciclo de greves colocou
à prova as práticas reais e concretas na relação entre o capital e o trabalho, próprias de
qualquer unidade fabril. Em 1903 e em 1917, as greves foram gerais envolvendo outras
modalidades de fábricas no Rio de Janeiro e em São Paulo, mobilizando a classe oprária em
sua incipiente organização classista por meio das associações operárias.
198
Em 1906, entretanto, a greve foi específica na FCM, quando a Associação de Classe Protetora
dos Chapeleiros reagiu à diminuição salarial na produção de chapéus, uma medida tomada
pela fábrica diante da maior concorrência aos seus produtos.
Estranhamos muito que quem tão humanitário se quer mostrar, trazendo este
facto ao conhecimento publico, não se recorde de que com as suas arcas
cheias de ouro, ajudando a ganhar pelos operários de 20 e mais anos de
serviços, viesse sem motivo retirar a miseravel parcella de 100 réis em obra,
o que não é a primeira vez, visto que com ardil e astucia de hábil pratico tem
o sr. Braga, já feito por diversas outras vezes reducções em geral ao seus
operários, durante a permanencia de sua fabrica na estação da Mangueira.
Ora argumentamos que a diminuição de 100 réis em mão de obra, é sério
motivo para gréve, porque? o operario consome o mesmo tempo fazendo um
chapéu de inferior qualidade como fazendo um chapéu fino. 38
Outras fábricas de chapéus de São Paulo e do Rio de Janeiro uiniram-se para lançarem
chapéus de qualidade inferior e de preços mais acessíveis no mercado. A Mangueira
especializara-se em chapéus finos e a entrada destes produtos mais baratos a levou refazer
suas próprias estratégias de mercado, alterando parte da sua produção para chapéus de custos
mais baixos.
199
aguardando qualquer contestação para então pormos os pontos nos ii [sic],
lembrando desde já que talvez o sr. Braga tenha se esquecido de suas
multiplicadas leituras da Biblia sagrada, são as considerações expendidas
por S. Thiago, capitulo V. 1º.“Eia, vós agora, ó ricos, chorae, dando urros na
consideração de vossas miserias que virão sobre vós. 2º. – As vossas
riquezas apodreceram e os vossos vestidos têm sido comidos pela traça. 3º.
– O vosso ouro e vossa prata se enferrujaram, e a ferrugem deles dará
testemunho contra vós, e devorará a vossa carne como um fogo. Juntastes
para vós um tesouro que irá lá para os dias ultimos. 4º. – Sabei que o jornal
que retivestes (ou rebaixastes) aos trabalhadores, que ceifaram os vossos
campos, clama, e que os seus gritos subirão até aos ouvidos do Senhor dos
exercitos. Conclusão: - O sr. Braga fará o favor de ler o capitulo citado e
tirar o que de melhor encontrar para a salvação de sua alma. A directoria.39
39
Jornal Correio da Manhã – Sexta-feira, 27 de abril de 1906.
200
Considerações finais
Vimos, portanto, que a fé reformada protestante teve neste espaço fabril uma vivência repleta
de possibilidades de análises históricas e sociais. Pela fábrica perpassaram relações sociais e
de trabalho, sociabilidades e subjetividades, tensões e conflitos, que reproduziram as
mudanças do período. Outras dimensões ainda a serem aprofundadas tiveram relação direta ou
indireta com a fé protestante.
Nesta interseção histórica entre religião, economia e sociedade algumas questões de fundo
devem ser aprofundadas ainda, como as relações da fábrica com o processo de ocupação da
região suburbana do Rio de Janeiro e a favelização da população mais empobrecida, a
emergência da cultura negra representada pelos cultos africanos e pelo samba, o universo dos
trabalhadores no cotidiano fabril, a trajetória biográfica do seu proprietário, repleta também
de possibilidades de análises.
Enfim, o processo que denomina-se de modernidade teve nesta realidade singular suas
próprias dinâmicas de representações, discursos e práticas. Mas, para ver e narrar de maneira
mais precisa e co mais acuidade este processo, resta-nos adentrar as portas da fábrica num dia
comum de trabalho e senti-la como um trabalhador a sentiu e a vivenciou.
201
ANEXO 1
Fontes
202
Referências
ARAÚJO, Marco César de. Industrialização brasileira no século XX. São Paulo:
EDIFIEO, 2009.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1982.
NEEDEL, Jeffrey D. Belle Époque tropical - Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro
na virada do século. Trad. Celso Nogueira. São Paulo, Cia. das Letras, 1993.
PETTA, Nicolina Luiza de. A fábrica e a cidade: a disciplina do trabalho. São Paulo: Ed.
Atual, 2004.
SANCHIS, Pierre. “O campo religioso contemporâneo no Brasil”. In: ORO, Ari Pedro e
STEIL, Carlos Alberto (Orgs.). Globalização e religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
204
________________________. “Protestantismo e modernidade: usos e sentidos da experiência
histórica no Brasil e na América Latina”. In: Revista Projeto História, São Paulo, n.37, p.
179-194, dez. 2008.
205
206
Percursos e desafios metodológicos da pesquisa em
religiões afro-brasileiras: relato de um caso
Cristiana Tramonte1
A pesquisa “Com a bandeira de Oxalá! Trajetória, práticas e concepções das religiões afro-
brasileiras na Grande Florianópolis” desenvolveu-se no estado de Santa Catarina durante
quatro anos e objetivou tratar da temática interdisciplinarmente entrecruzando os campos de
conhecimento da sociologia, antropologia, história, medicina, biologia, além das interfaces
com a educação e filosofia. A ausência de pesquisas sobre o tema em âmbito local, bem
como sua natureza mítica, exigiu a superação de um único recorte disciplinar, com a
consciência de que a perspectiva interdisciplinar é ainda uma experiência em elaboração, que
demanda aprofundamento de práticas e metodologias de pesquisa adequadas.
1
Cristiana Tramonte é professora no Centro de Ciências da Educação da
Universidade Federal de Santa Catarina e realiza pesquisas no campo da
Educação Intercultural.
2
Nome anterior de Florianópolis até finais do século XIX.
207
variadas áreas do conhecimento: nos primeiros capítulos, uma discussão da área das Ciências
da Saúde, confrontando diferentes concepções de saúde e doença, mas sem perder a
perspectiva sociológica e antropológica do tema. As áreas da Medicina e da Biologia foram
revisitadas, objetivando compreender os fundamentos das teorias racistas-biologistas e as
motivações da medicina oficial para a perseguição sistemática aos praticantes das religiões
afro-brasileiras. A partir dos elementos da história, emergiram, nos capítulos subseqüentes,
discussões sobre o papel dos meios de comunicação e da imprensa alternativa junto ao grupo
de religiosos e sobre as implicações políticas dos fatos que envolvem os sujeitos e as variadas
forças sociais. Fazenda aponta que as possibilidades da interdisciplinaridade dizem respeito à
conjugação de diversos olhares, numa compreensão multifacetada de aspectos, “um
conhecimento que se situa na encruzilhada de vários saberes”.3 Assim, os ciclos históricos
foram abordados em seis capítulos, nos quais buscou-se este entendimento complexo da
trajetória do grupo.
Um exemplo desta dinâmica é a Festa dos Pretos Velhos 4 ocorrida em 1971, em plena
ditadura militar. A análise plural de diversos elementos da mesma, recompõe as
possibilidades das religiões afro-brasileiras à época no contexto regional- o cenário (uma
senzala), os convidados entre eles autoridades do alto escalão político), e a decoração nas
paredes fotos de políticos tradicionais ao lado de imagens de orixás), abrem o leque de
possibilidades de interpretação interdisciplinar de compreensão do fenômeno.
3
FAZENDA, 2001, p. 114.
4
Entidade da Umbanda
208
Para a segunda parte da pesquisa, “As religiões afro-brasileiras na Grande Florianópolis na
atualidade: práticas, concepções e desafios”, um novo problema colocou-se: quais as
metodologias adequadas em uma pesquisa que busca a interdisciplinaridade, ou ao menos,
algumas incursões rápidas nesta?
Fazenda (2001) afirma que a interdisciplinaridade necessita ser trabalhada numa dimensão
diferenciada de conhecimento – aquele que não é explicitado apenas no nível da reflexão, mas
sobretudo na ação. Ou seja, as ações de investigação deveriam ser coerentes, desde o processo
de pesquisa até o produto (texto final). Aponta ainda que devem ser pressupostos
interdisciplinares o comprometimento, envolvimento e engajamento com o “objeto de
pesquisa”5. Assim, o “conhecimento vivenciado” é uma das chaves desta perspectiva.
Este foi o segundo momento da investigação, o mais difícil, desafiador e intenso, quando
buscou-se traçar um perfil do grupo praticante das religiões afro-brasileiras, tanto nos
aspectos físicos e especificamente territoriais, quanto simbólicos e religiosos.
5
Adoto a expressão “sujeito de pesquisa”, justamente para inserir a noção de interação entre pesquisador e
pesquisados.
6
FAZENDA, 2001, p.116.
209
A composição do grupo de religiosos a serem pesquisados foi uma complexa trama, que
revelou a escala de valorativa da hierarquia religiosa. A indicação da “lista” foi construída em
estreita colaboração com dois líderes religiosos bem como a prioridade dos critérios.
Antiguidade, tradição, respeitabilidade, confiabilidade foram os principais elementos
arrolados na escolha dos participantes. Assim, preciosos elementos de ética e comportamento
religiosos estiveram em questão durante a definição do grupo que integraria a pesquisa. E, na
sequência procedeu-se à discussão metodológica dos formatos possíveis do contato
pesquisador/pesquisado- métodos, técnicas e instrumentos também foram pontuados de
acordo com sua adequação aos resultados esperados.
Após a realização da extensa série de entrevistas abertas com líderes e participantes dos
terreiros, foram tematizados os principais eixos de problemáticas recorrentes. A perspectiva
interdisciplinar foi traçada em torno de um eixo central, essencialmente antropológico, no
qual buscou-se identificar as práticas culturais e concepções do grupo religioso. Em torno
deste eixo, articularam-se elementos de psicologia social, sociologia, geografia e ecologia
210
Referências
211
Conhecimento científico e conhecimento religioso nas tradições
afro-brasileiras
Os estudiosos clássicos e mais antigos das religiões afro-brasileiras, de modo geral, não
utilizavam a tradição de refletir e discutir sobre os procedimentos que adotam em suas
pesquisas, ao contrário do que tem ocorrido com os autores mais recentes. Atualmente, em
virtude da ampliação dos programas de pós-graduação, todas as dissertações, teses e livros
publicados geralmente apresentam um tópico sobre a metodologia da pesquisa. A nosso ver
esta discussão pode enriquecer tanto o estudo da religião como das Ciências Sociais. Uma das
constatações iniciais é que o resultado do trabalho de pesquisa não irá trazer benefícios diretos
ao grupo estudado, não irá trazer mais devotos ao terreiro, embora possa contribuir para torna-
lo mais conhecido em alguns meios e para diminuir os preconceitos etnocêntricos que
continuam atuando em nossa sociedade.
Nas entrelinhas dos escritos de Nina Rodrigues – o pai fundador deste campo de estudos entre
nós, como em outros autores, podemos perceber aspectos do método de trabalho utilizado.
Arthur Ramos, 2 diz que "para fins de pesquisa" se submeteu às cerimônias de iniciação como
ogã no terreiro do Gantois. Roger Bastide disse, 3 em latim, que se considerava africano por ter
sido aceito em uma das numerosas seitas afro-religiosas da Bahia e submeteu-se a um ritual
de iniciação no candomblé, sobre o que fala muito pouco.
Entre os clássicos destes estudos, o saudoso professor René Ribeiro (1952), aconselha com
sábia prudência, que o investigador não se submeta à hierarquia do culto para poder ficar mais
livre de tabus e compromissos rituais, não se envolva na competição entre as casas e conserve
sua liberdade de opinião. Diz também que, sem se desligar dos atributos de sua classe social,
que reconhece como limite à sua aceitação pelo grupo, enquanto pesquisador, modestamente
se inclui na categoria de "confidente simpatizante". Na década de setenta, pesquisadores
1
Professor Emérito na UFMA. Doutor em Antropologia Social pela USP. Mestre em Ciências Sociais pela
UFRN.
2
RAMOS, 1951, p. 69.
3
BASTIDE, 1971,p. 44.
212
como Yvonne Maggie e Marco Aurélio Luz afirmam que chegaram a tomar partido ao lado de
facções dentro dos grupos que estudavam4.
Juana Elbein dos Santos informa que foi iniciada no Axé Opô Afonjá e que, 5 inspirada em
estudos de Meyer Fortes, "devido a que a religião Nagô constitui uma experiência iniciática
... a perspectiva que convencionamos chamar `desde dentro' se impõe quase
inevitavelmente".6 Segundo Juana Elbein, a observação "desde dentro para fora", baseada em
contatos prolongados com a cultura em estudo, parece o procedimento mais adequado ao tipo
de trabalho que se propõe realizar. Juana leva assim à comunidade acadêmica reflexões
baseadas em suas vivências nas comunidades de terreiro.
A francesa Giselle Binon-Cossard (1970), que apresentou na Sorbonne tese sob orientação de
Bastide, foi feita no santo por Joãozinho da Goméia e há anos é mãe-de-santo no Rio de
Janeiro, lembra em sua monografia que a filha de santo, após a iniciação, "não adquiriu saber
particular, não teve a revelação de segredos esotéricos". O conhecimento religioso, como
todo conhecimento, é conseguido aos poucos, por longa convivência, por doação ou troca a
alguém em quem se tem confiança e esta é uma das virtudes que também podemos aprender
nos terreiros.
Evans-Pritchard indagou
4
Luz e Lapassade (1972) afirmam ter tomado partido ao lado da Quimbanda, contra a Umbanda por considerar
seus seguidores como os mais oprimidos. Yvonne Velho (1973: 9) diz que "também passei a ser peça do
drama", tomando partido em disputas entre os membros do terreiro que estudava.
5
SANTOS, 1976, p. 15.
6
Idem, p. 17.
213
se costuma dizer. Se o antropólogo é uma pessoa sensível, não pode ser de
outro jeito. Mas é uma questão pessoal, e direi apenas que aprendi com os
“primitivos” africanos muito mais do que eles comigo ... Para dar somente
um exemplo: eu diria que aprendi muito mais sobre a natureza de Deus e
nossa condição humana, com os Nuer do que com tudo que me ensinaram
em casa.7
Toda pesquisa possui um tempo limitado, enquanto a religião é uma atividade constante no
homem. Mas o pesquisador que foi "mordido" pelo interesse em um determinado campo,
acaba se tornando especialista naquela área, que ele frequentemente está reestudando, com
devotamento. Assim o pesquisador que estuda religiões é envolvido e preocupado com a
experiência religiosa, sendo facilmente identificado como devoto de uma delas, o que nem
sempre é exato.
Para evitar confusões alguns, como Reginaldo Prandi (em comunicação que nos fez
pessoalmente), propõe que se utilize na pesquisa em terreiros a expressão observação
sistemática no lugar de observação participante. Eunice Durham (1986) propõe o termo
participação observante, para militantes que pesquisam movimentos em que militam. A
expressão participação observante pode ser aplicada ao caso de pesquisadores militantes nos
movimentos religiosos que também pesquisam. A nosso ver esta situação corresponde a um
determinado tipo de pesquisa, que não se impõe a todos. Tanto o "pesquisador que virou
nativo" como o "nativo" que se pretende pesquisador, constituem categorias que podemos
discernir, mas não englobam todos os tipos de pesquisadores da cultura afro-brasileira e das
religiões em geral.
7
EVANS-PRITCHARD, 1978, pp. 204-205.
214
Temos constatado que no caso das religiões chamadas ayuasqueiras, que utilizam o chá do
Santo Daime, os pesquisadores fazem uso da bebida, como não poderia deixar de ser em
algumas delas. Muitos se tornam ou já eram adeptos do culto, mas conhecemos caso de um
pastor protestante que realizou pesquisa de campo num centro da União do Vegetal em São
Luís, e não mudou de religião.
II
É comum a realização nos terreiros de rituais que não são propriamente secretos, mas para os
quais são avisadas apenas, poucas pessoas, especialmente convidadas. Mesmo pesquisadores
mais obcessivamente curiosos devem respeitar o direito à privacidade de cada grupo, como
recomenda a boa ética da pesquisa, que nem sempre é observada. Em certos aspectos o
pesquisador se assemelha ao jornalista, ao fotógrafo ou ao detetive, com quem é confundido
muitas vezes8. Em função de seu projeto de pesquisa, tem o interesse em conhecer o máximo
sobre o tema que está estudando, para fazer uma análise mais ampla. Por outro lado, todo
grupo tem determinadas fragilidades que prefere não discutir e espera que não sejam
revelados na pesquisa. No passado este problema podia ser parcialmente contornado pelo
pesquisador, que publicava trabalhos no exterior, em idioma não acessível à sociedade onde
se localizam os grupos estudados. Hoje, com o avanço das comunicações, este caminho não é
mais viável.
8
Carlo Ginsburg (1989) em interessante artigo compara o inquisidor com o antropólogo, afirmando que: “o que
os juízes da Inquisição tentavam extorquir às suas vítimas não é, afinal, tão diferente daquilo que nós
procuramos – diferentes eram sim os meios que usavam e os fins que tinham em vista.” (1989, p. 206).
215
observador da pessoa humana. Desenvolveu a habilidade de deixar o outro falar, revelando
detalhes muito íntimos e passagens que lhe foram ditas sem a consciência que poderiam vir a
ser tornadas públicas. Trabalhando mais como escritor do que como cientista social, não
estava atento à ética de pesquisa antropológica, embora declarasse que "gostaria de resgatar
a cultura afro-americana de um isolamento exótico".9 Fichte publicou muitos livros
admiravelmente bem escritos, alguns tratando das religiões afro-americanas, mas ganhou em
alguns meios, a fama de escritor maldito e sensacionalista.
Em alguns artigos, José Jorge de Carvalho discute a posição do antropólogo face ao segredo –
que parcela publicar dos dados obtidos na pesquisa?10 É perigoso divulgar segredos sobre
pessoas vivas ou sobre ancestrais. Na Casa das Minas afirma-se que o uso de determinados
cânticos ou de palavras rituais em circunstâncias inadequadas, provoca a morte.
Jorge Carvalho (1987), discutindo o problema da perda da memória coletiva nas religiões
afro-brasileiras, constata que, numa espécie de suicídio cultural, muitas práticas destes cultos
tendem a diminuir cada vez que morre um especialista. Em outro artigo afirma, que "o
segredo existe para ser contado, do contrário desaparece".11 Um velho pai-de-santo em
Cuba, nos contou que quando jovem, para fixar certas palavras e ensinamentos que ouvia dos
mais velhos e era proibido de anotar, pedia licença para ir ao banheiro e tomava notas
escondido. Na Casa Grande das Minas do Maranhão as vodunsis lembram que as mais velhas,
conversavam em língua jeje, quando não queriam ser entendidas pelas novatas. Tanto o
devoto quanto o pesquisador tem que enfrentar dificuldades e reticências dos mais velhos em
transmitir o que sabem.
9
FICHTE, 1987, p. 318.
10
CARVALHO, 1985; 1987; 1989.
11
CARVALHO, 1989, p. 132.
216
Os limites entre o conhecimento erudito e o conhecimento oral são cada vez mais ambíguos.
Concordamos plenamente com a importância da oralidade na religião, onde a palavra tem o
poder de realização, como demonstrou Elbein dos Santos (1976). Mas o aprendizado da
tradição por via oral é cada vez mais difícil, sobretudo quando nos encontramos na era da
informática, em que o computador armazena odus e oriquis, de forma mais acessível do que a
tradição oral. Não podemos esquecer, entretanto que, diferentemente do protestantismo e do
cristianismo, a tradição africana se adquire muito mais pela convivência do que pelos livros.
Velhas vodunsis do tambor de mina, manifestam com justa superioridade, uma reprovação
total ao conhecimento livresco das verdadeiras tradições religiosas. Aprender a tradição é
como saber fazer uma comida gostosa e os livros nunca ensinam a "dar o ponto" exato.
Em importante pesquisa sobre terreiros de Sergipe, que foi muito bem recebida no meio
acadêmico e que continua sendo muito debatida, a antropóloga Beatriz Góis Dantas discute a
questão da denominada pureza nagô no candomblé, afirmando:
Em outro artigo Beatriz retoma o problema da pureza africana. 13 Considera que a dicotomia
puro/misturado é uma forma de marcar um lugar para si e para os outros no esquema de
forças da sociedade. No caso dos cultos afro-brasileiros, é um elemento na busca da
legitimidade e na luta pela hegemonia. Segundo Beatriz, os intelectuais desempenham papel
significativo na construção dessa hegemonia. Os antropólogos tornam-se avalistas e
12
DANTAS, 1982, p.19.
13
DANTAS, 1987.
217
personagens na construção da hegemonia nagô. A herança africana mais autêntica,
representada pelos nagôs “puros” da Bahia, é apresentada como verdadeira religião,
contrastando com a magia/feitiçaria dos bantos. Os antropólogos fortalecem os terreiros mais
puros, às custas dos mais “misturados”. A repressão policial passou a incidir então sobre os
que fazem feitiçaria, os “impuros”.
As afirmações de Beatriz Dantas foram criticadas por diversos estudiosos, como entre outros,
Ari Araújo, Renato Silveira, Muniz Sodré, Ordep Serra, constatando que os terreiros que
foram considerados mais tradicionais existem há muito tempo e foram muitas vezes quase os
únicos procurados pelos antropólogos, pelo menos até a década de 1970. Mas estes terreiros
são realidades empíricas que existem e foram pesquisados. O intelectual atua como reflexo do
que encontra que ele pode reforçar, mas sua função legitimadora tem limites. O êxito ou o
fracasso de um terreiro depende principalmente da atuação de sua liderança, como da
autenticidade de suas tradições.
Um caso interessante pode ser destacado em relação ao tambor de mina do Maranhão. Desde
fins da década de 1930 a Casa das Minas foi investigada por dois estudiosos estrangeiros que
passaram por São Luís, o jornalista espanhol Álvaro de las Casas e o linguista português
Edmundo Correia Lopes. Na década de 1940 a Casa foi estudada por dois pesquisadores que
publicaram pouco depois trabalhos importantes sobre a mesma, que foram Manuel Nunes
Pereira e Octávio da Costa Eduardo. Nunes Pereira teve seu trabalho publicado por Arthur
Ramos em 1947 e Costa Eduardo teve sua tese de doutorado orientada por Herskovits,
publicada em Nova York em 1948.
Mas, antes disto, em junho de 1938, a Missão de Pesquisas Folclóricas organizada por Mário
de Andrade no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, em viagem de pesquisa
218
pelo Nordeste, passou uma semana em São Luís. Os membros da Missão procuraram a
autoridade policial e foram autorizados a documentar uma festa de tambor de mina no terreiro
de dona Maximiliana no bairro do João Paulo. Os resultados desta pesquisa só começaram a
ser divulgados por Oneyda Alvarenga em 1947 e continuam sendo divulgados até hoje. Dona
Maximiliana continuou com seu terreiro funcionando até fins da década de 1960 embora em
outro local, e faleceu em inícios dos anos 70. Seu terreiro não voltou a ser documentado,
talvez em função da divulgação tardia e reduzida do material coletado. Fala-se que na época
da pesquisa da Missão Folclórica, as autoridades haviam proibido o funcionamento de
terreiros mais próximos ao centro da cidade, que deveriam ser transferidos para a periferia.
Afirma-se que a Casa das Minas passou certo tempo sem festas, depois voltou a ser autorizada
a funcionar. Pode ser que a Missão de Pesquisas dirigida por Luís Saia tenha passado pelo
Maranhão justamente neste período.
Lisa Earl Castilho (2008), pesquisadora americana radicada na Bahia, em trabalho muito
interessante, analisa a interação entre a oralidade e a escrita nos processos de transmissão do
saber nas comunidades religiosas afro-brasileiras. Desafia a velha ideia de que os terreiros
sejam concebidos como espaço exclusivo da oralidade, constatando sua convivência
inescapável com a escrita.
Castillo informa que, entre 1998 e 2005, visitou mais de vinte terreiros e entrevistou dezenas
de pessoas. Aprendeu que dentro do candomblé é preciso observar e não fazer perguntas, pois
quem pergunta não é bem visto, sobretudo se faz a pergunta errada. Confirma que o saber no
candomblé é esotérico, de difícil acesso e divulgação restrita, constituindo um mistério pouco
compreensível à modernidade ocidental. Que a posse do conhecimento religioso produz
status, portanto saber e poder e estão relacionados.
14
A partir da década de 1980, diversos livros sobre terreiros foram publicados por pais-de-santo em São Luís do
Maranhão.
219
congeladas no tempo, não teriam história. Em contrapartida, constata e analisa a existência na
prática privada de “cadernos de fundamento”, usados como auxílio à memória, os quais se
assemelham a um diário pessoal, embora sem que se observe seu uso sistemático como na
santeria cubana, onde muitos eram comercializados, enquanto na Bahia tinham circulação
algo clandestina.
Ela lembra que Ruth Landes, já na década de 1930, teve conhecimento de um desses cadernos
e Castillo analisa detidamente o caso de legendário manuscrito, conhecido no Axé Opô
Afonjá do Rio de Janeiro a partir de 1920, que circulou entre sacerdotes mais elevados.
Informa que ele contém setenta contos da versão afro-brasileira dos versos de Ifá e começou a
ser publicado em diferentes edições a partir dos anos 1960. Teve edição integral, em inglês,
na Nigéria na década de 1980, sendo divulgado definitivamente no Brasil na década seguinte.
Argumenta que as diversas contestações sobre a originalidade desse texto mostram que a
polêmica quanto a suas origens é tão interessante quanto sua existência e valorização. E
indaga como tantas pessoas chegaram a ter cópia de um texto guardado com tanto sigilo por
ser tido como portador de segredos rituais.
Mas Castillo também analisa textos escritos e publicados na atualidade por um número
crescente de sacerdotes e praticantes de diversos ramos das religiões afro-brasileiras, alguns
vendidos até em bancas de jornal. Segundo Castillo, classificar os textos, em geral, que
surgem dentro dos terreiros implica problemas semânticos e ideológicos. Seus autores
ocupam posições subalternas em relação à academia, mas pertencem à elite dos terreiros. Na
falta de termo melhor, a autora denomina essa produção textual de para-etnografia.
220
estudo de três casas de tradição ketu que se tornaram famosas e acabaram se constituindo
numa espécie de Vaticano da “Roma Negra” que seria Salvador.
III
No tambor de mina e em outras tradições, não existe formalmente o cargo de ogã, como no
candomblé da Bahia, assumido por intelectuais e pesquisadores que atuam como protetores e
colaboradores dos terreiros. Frequentadores e pesquisadores que se tornam mais íntimos,
colaboram em algumas festas maiores e aos poucos passam a participar mais intensamente no
culto, como amigo ou companheiro da casa e da religião. Contribuem com trocas de favores e
ajudam nas inúmeras despesas das cerimônias. É importante que o pesquisador não crie laços
de dependência, que não poderá manter sempre e que evite o sistema de "compra de
informações", que cria situações falsas e artificiais. O pesquisador iniciante, com o tempo
ganha a experiência que lhe irá ensinar a contornar estes problemas.
Por mais semelhantes que sejam entre si, cada casa religiosa é muito diferente de outras,
sobretudo nas religiões afro-brasileiras, que não constituem uma igreja, com um corpo único
de doutrina e onde os líderes são muito ciosos da sua autonomia. Generalizações nesta área
são, portanto muito arriscadas e devem ser feitas com cautela, pois estão sempre limitadas ao
tipo de religião afro-brasileira que cada pesquisador conhece mais e, em cada tipo, a uma rede
de terreiros que ele investiga. Afirmações que no passado foram feitas por Arthur Ramos,
Edson Carneiro, Roger Bastide e outros, em que pese a importância destes autores, hoje são
221
consideradas erradas ou superadas tendo em vista o melhor conhecimento da realidade,
sobretudo, por exemplo, em relação à situação destas religiões no Norte do país, que estes
autores conheciam menos. Induzem ainda, entretanto, muitos leitores a conclusões erradas,
justamente em função do prestígio de seus autores.
Segundo Clifford Geertz,15 a habilidade do antropólogo em fazer tomar a sério o que ele diz,
não reside na força da argumentação teórica que utiliza, pois esta é rapidamente ultrapassada,
nem na elegância com que escreve, "mas na capacidade para convencer, do que o que ele diz
é o resultado de ter podido penetrar (ou, se preferirmos, de ter sido penetrado) por outra
forma de vida, de haver, de um ou outro modo, realmente estado lá".16
Durante muito tempo a pesquisa nos terreiros estava demasiadamente preocupada com a
procura de uma "pureza africana", tentando identificar casas antigas, que permanecessem
mais fiéis às tradições originais. Como reflexo desta atitude, os próprios líderes religiosos se
preocupam até hoje em reencontrar ou descobrir uma ortodoxia perdida, uma pureza clássica
original. Constata-se, entretanto que as religiões afro-brasileiras são tanto brasileiras quanto
africanas e que a pureza perdida é mais um mito.
Tem sido também discutido e criticado o trabalho do cientista social como autor. Assistimos a
debates em que se questionava a pretensa "neutralidade" do pesquisador que demonstra
grande "frieza" na abordagem acadêmica de certos fatos, como garantia da cientificidade de
sua postura. Critica-se aqui o distanciamento, a ausência de ênfase no emocional e na
sacralidade. A percepção e o respeito pelo sagrado, pelo mistério e a preservação do segredo é
uma dimensão fundamental nas religiões afro-brasileiras. O pesquisador tem que levar em
conta na sua análise e na divulgação de seu trabalho, esta dimensão, do contrário estará
criando problemas para si e para os outros.
15
GEERTZ, 1989, p.14.
16
Idem.
222
maiores informações que possam divulgar, por todas as contribuições que possam trazer à luta
contra os preconceitos, parece-nos, entretanto, que os trabalhos eruditos sobre as religiões
afro-brasileiras, não conseguirão satisfazer nem dar respostas à maioria das indagações que
interessam aos praticantes destas religiões. As respostas a indagações existenciais são
encontradas na prática e não nos livros ou nas teorias.
Referências
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religiões afro-brasileiras tradicionais. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro: ISER, 1987, v.
14, n, 23, p. 36-61.
223
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______. Repensando o sincretismo: estudo sobre a Casa das Minas. Såo Paulo:EDUSP,1995
(Orig. 1991) .
224
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viagem. Comunicações do ISER, Rio de Janeiro, v. 9, n. 37, p. 26-35, 1990.
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GINSBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e suas implicações. In:
GINSBURG, C e Outros. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1989, p 203-
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PRANDI, José Reginaldo. Os candomblés de Såo Paulo: a velha magia na metrópole nova.
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RAMOS, Arthur. O negro brasileiro: Etnografia Religiosa. São Paulo: Nacional, 1951.
225
SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: ásésé e o culto Égun na Bahia. Petrópolis,
Vozes, 1976.
226
Relação sujeito/objeto na pesquisa de religião afro-brasileira(*)
Mundicarmo Ferretti17
227
avisados dos toques de Candomblé e saída de iaô, e logo fomos escolhidas para madrinha de
uma filha-de-santo de Oxum que ia ser preparada no Candomblé. Por outro lado, sempre que
tentávamos obter alguma informação dos filhos-de-santo, recebíamos a mesma desculpa:
"não sei, papai é quem sabe", o que nos fez compreender a necessidade de centrar as
entrevistas no chefe da casa e aguardar o momento em que os outros membros do terreiro se
sentissem encorajados ou autorizados a falar...
Atualmente tem sido muito apregoado nos "meios antropológicos" que não se pode fazer
pesquisa de campo sobre religião afro-brasileira sem tornar-se filho-de-santo, uma vez que o
saber naquela religião é iniciático e o "segredo" permeia todas as relações interpessoais. Tal
exigência não poderia, contudo, ser satisfeita por todo pesquisador uma vez que nem todos
são médiuns ("rodantes" ou "dançantes") e podem entrar em transe durante a realização de
rituais religiosos. Por essa razão, muitos pesquisadores vêm assumindo nos terreiros de
Candomblé cargos de ogã e de ekedi (exercidos por pessoas que não "recebem santo", embora
tenham de passar por um processo de iniciação e de cumprir obrigações no terreiro). Mas
assumir cargo no terreiro pode não ser também uma exigência para todos os pesquisadores e
para todas as pessoas que se aproximam da religião afro-brasileira. Por mais que os terreiros
precisem de colaboradores, não haveria cargos para todos. A maioria das pessoas é chamada
apenas para colaborar numa festa ou na preparação de um filho-de-santo, o que não implica
assumir obrigações com a casa e com as suas entidades espirituais para o resto da vida. Há
uma doutrina (música) cantada nos terreiros do Maranhão que diz: "Mina não é para quem
quer, nem é cartilha de aprender a ler", o que parece esclarecer que o Tambor de Mina (tipo
de religião afro-brasileira predominante no Norte) não é uma obrigação para todos e sim para
os que foram escolhidos. E sobre essa escolha o povo de Mina costuma dizer: "quem está fora
não queira entrar, e quem está dentro, não queira sair.", lembrando os sacrifícios e
obrigações que aguardam os escolhidos.
Estudos etnográficos sobre Tambor de Mina realizados no Maranhão têm mostrado que nem
todos os membros da família biológica dos filhos-de-santo assumem obrigações no terreiro,18
embora a mediunidade nunca seja encontrada em apenas um membro da família e muitos
auxiliares do culto sejam aparentados. Nem todos os descendentes do povo de Mina têm
obrigações no terreiro, embora desde crianças participem de atividades ali realizadas e
prestem alguma colaboração. E, se nem todos eles têm obrigação na casa, por que todo
18
FERRETTI, S,1985; FERRETTI, M.R, 1985.
228
pesquisador teria que ser filho-de-santo ou assumir no terreiro cargo de ogã, ekedi e outros
similares?. Será que, sendo iniciado na religião afro-brasileira, o pesquisador teria
automaticamente maior acesso às informações, maior facilidade para desenvolver seu projeto
de pesquisa e maiores elementos para escrever os seus trabalhos?. Não haveria também outras
formas de participação e de estratégia de pesquisa na religião afro-brasileira?.
Por mais participante que seja o pesquisador, há sempre no campo experiências a que ele não
pode ter acesso, como as atividades não permitidas às pessoas do seu sexo - em São Luís, nas
casas mais antigas e tradicionais como a Casa das Minas, Casa de Nagô, Turquia e Justino,
homem não entra na guma (barracão) para dançar e mulher não toca tambor. Nem mesmo os
pais e mães-de-santo podem passar por todas as experiências do terreiro. Por maior que seja a
participação do pesquisador, ele terá sempre que se apoiar na experiência de outros para
entender muitos aspectos da religião afro-brasileira.
229
Ligando-se mais intimamente a um terreiro (como filho-de-santo, ogã ou ekedi), o
pesquisador enriquecerá sua experiência, mas perderá muito da liberdade que gozava antes
para fazer perguntas ao pai-de-santo e falar aos "de fora" sobre o que foi por ele observado,
pois logo ouviria da parte deles: "Você ainda não passou por nada, como é que já quer saber
tudo?"... ou, ao ser visto dando entrevista, "tu já és pai-de-santo?!"... Assim, ao ligar-se mais
ao terreiro, o pesquisador poderá enfrentar outro tipo de dificuldade e o seu conhecimento
sobre a religião poderá crescer numa direção diferente da pretendida, pois, passará a obedecer
às necessidades de sua "iniciação" e não do seu projeto de pesquisa. Em muitos casos, o
pesquisador recebe do pai ou mãe-de-santo mais informação sobre o terreiro e a religião ali
professada do que os filhos da casa, que o precederam no campo, e muito do que o
pesquisador-devoto aprende sobre a religião afro-brasileira terá que ser guardado consigo até
o momento em que receber a missão de comunicar a outros, que estão normalmente na
comunidade religiosa e não na comunidade científica.
O terreiro de que o pesquisador é membro poderá também fechar a ele algumas "portas" ao
saber que realiza pesquisa em outra casa, temendo que seus "segredos" sejam ali revelados. E,
neste caso, dificilmente aceita que a participação do pesquisador no campo vá além de uma
assistência esporádica a rituais e da realização de algumas entrevistas. Em São Luís, um
pesquisador ligado à Casa das Minas, ao ser apontado ogã em outra casa, foi censurado pelas
vodunsis, com a seguinte expressão: "não se pode servir a dois senhores".
231
Outro problema que merece também ser lembrado, quando se fala do envolvimento
sujeito/objeto nas pesquisas sobre religião afro-brasileira, é o da influência exercida pelo
terreiro sobre o pesquisador. Todo cientista social tem consciência de que ninguém consegue
estabelecer relação com outra pessoa sem exercer influência sobre ela e sem ser, de alguma
forma, por ela influenciada, mesmo quando procura evitar que tal influência ocorra.
Não se pode acusar o povo de Mina de querer "botar santo" em quem não tem, pois, além de
fazerem "remédio" para evitar que seus descendentes "bolem no santo", diante de pessoas
com "aproximação de santo" (sintomas de mediunidade) procuram, muitas vezes, substituir a
obrigação de dançar por outra (como custear as despesas de pessoa anteriormente escolhida
pela mesma entidade e que dispõe de poucos recursos, etc.). O pessoal de Mina não costuma
também falar em seus protetores (voduns ou caboclos) fora do terreiro e nem procura
identificar o protetor espiritual de outras pessoas, a não ser quando essas pessoas têm uma
relação estreita com a casa e apresentam sinais "visíveis" de "cobrança de santo" ou de
232
mediunidade. E, nos terreiros tradicionais, dificilmente se faz uso (pelo menos em público) de
manobras para propiciar a "incorporação" ou induzir o estado de transe.
Mas, mesmo que a religião afro-brasileira não seja proselitista, o pesquisador, cedo ou tarde,
acaba sendo atingido de alguma forma por ela. Ao procurar penetrar nos sistemas de crenças e
de valores e ao observar o comportamento do terreiro, o pesquisador, pouco a pouco, vai
passando a duvidar das interpretações dadas por cientistas e vai sendo "atingido" pelas
explicações dadas no terreiro. Muitos tornam-se também clientes dos terreiros, passando a
buscar ajuda de pais-de-santo na solução de problemas físicos, psíquicos, sociais, financeiros,
etc.
Nos "meios antropológicos" tal envolvimento não causa "espanto" e nem leva,
necessariamente, o pesquisador a descrédito, uma vez que um dos objetivos da etnografia é
tornar conhecidas outras visões de mundo e para atingí-lo o pesquisador tem que "tornar-se
nativo" (como tão bem demostrou Malinowski).19 Mas os cientistas de outras áreas nem
sempre ficam bem impressionados quando vêm a saber que um certo pesquisador "bolou no
santo" e está dançando em um terreiro, que está consultando búzios, ou que afirma que o
materialismo não é capaz de explicar, suficientemente, o fenômeno religioso e mediúnico.
19
MALINOWSKI:1976.
20
FERRETTI, S. 1978.
233
Pensando no processo acelerado de "nagorização" da religião afro-brasileira (hegemonia da
cultura iorubana - estudada no Pará por Furuya)21 que vem acontecendo nos últimos anos,
levantamos uma pergunta: será que esse processo teria acontecido se os pesquisadores não
tivessem descoberto, no passado, terreiros nagô que apresentaram grande índice de
preservação da cultura africana e os tivessem apresentado como "modelos de autenticidade"?
Às vezes também indagamos sobre quem "batizou" a religião de origem africana do
Maranhão de "Tambor de Mina" e a do Pará de "Batuque"? Os fundadores dos primeiros
terreiros ou os intelectuais que delas se ocuparam no passado?
Visitando, em abril de 1987, o terreiro de pai Kilombo, em Taboão da Serra (São Paulo),
encontramos escrito na parede algo que merece reflexão:
"você que está chegando agora criticando o que está feito deveria estar aqui na hora
de fazer. Assinado: aquele que fez quando ninguém sabia fazer"...
21
FURUYA:1986.
22
DANTAS:1982.
23
SANTOS, M.R. e SANTOS NETO, M, 1989.
234
Canjerê era muito dispendioso, exigia acampamento na "mata" e se tornara inviável para o
terreiro, devido ao crescimento urbano de São Luís e empobrecimento da população. Apesar
de reconhecermos as dificuldades apontadas por ele, nos posicionávamos contra a quebra da
tradição e a extinção daquele ritual. Diante dos nossos argumentos ele acrescentou em tom de
desafio: "para quem está "de fora" é fácil dizer que a festa tem que continuar, vocês
assumiriam essa obrigação ?!" Nem é preciso dizer que baixamos a cabeça e que ficamos
sem argumentos... Soubemos no outro dia que, após o encerramento do ritual, o pai-de-santo
ainda em transe com o caboclo Tabajara reunira "seu povo" para comunicar que aquele seria
o último Canjerê que se fazia na casa 24...
24
Em 1988, nas comemorações do seu 30º aniversario, foi realizado um tambor de Canjerê, e a partir daí o ritual
foi reintroduzindo no calendário do terreiro. Como não estávamos em São Luis e, não participamos daquela
festa, o caboclo Tabajara, incorporado no pai-de-santo, solicitou a um fotografo amigo que fotografasse o ritual e
nos enviasse o filme. Algumas dessas fotos estão disponíveis em www.museuafro.ufma.br (ver:
religiões/exposições/imagens).
25
FERREIRA, E. 1984 e FERRETTI,M. 1991.
26
FERREIRA, E. 1984 e 1987.
235
relação pesquisador/pesquisado na pesquisa antropológica apresenta diferenças significativas
em relação a pesquisas realizadas em outras Ciências Sociais, tendo em vista a opção
preferencial do antropólogo pela observação participante e o seu deliberado esforço para
tornar-se "nativo". O envolvimento pesquisador/pesquisado no trabalho antropológico deve
ser controlado para não ameaçar sua objetividade, mas constitui-se uma condição necessária à
compreensão da realidade pesquisada. Sem desenvolvimento de sensibilidade e de empatia, o
pesquisador de religião afro-brasileira não consegue avançar na compreensão de seu objeto de
estudo, no entanto, algumas formas de participação do antropólogo nos terreiros pode
dificultar ou retardar sua pesquisa.
Referências
DANTAS, Beatriz Góis. Vovô Nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio
de Janeiro: Graal, 1988 (Apresentada, originalmente, como monografia de Mestrado em
Antropologia, em Campinas: UNICAMP, 1982).
-----. Casa de Fanti-Ashanti e seu alaxé. São Luís, Ed. Alcântara, 1987.
FERRETTI, Sergio e outros. Dança do Lelê. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978. (Cadernos de
Folclore n. 22).
FICHTE, Hubert. Etnopoesia: Antropologia poéticas das religiões. São Paulo: Brasiliense,
1987.
236
FURUYA, Yoshiaki. Entre nagoização e umbandização: uma síntese do culto Mina-nagô de
Belém-Brasil. Annals. Tokio, Japan Association for Latin America Studies, n.6, p.13-53,
1986.
237
238
Éticas em campo: breves reflexões sobre dilemas éticos entre os
campos legislativo e etnográfico
Franco Delatorre1
Em seu artigo, Langdon relata algumas das dificuldades enfrentadas por antropólogos frente a
legislação, que está claramente orientada às “pesquisas biomédicas que têm pouco a ver com
as de antropologia” 3– naquelas, de caráter mais quantitativo, “ao sujeito de pesquisa é
delegado o papel de passivo ou cobaia”. 4 Prosseguirei5 de forma semelhante ao referido
artigo, isto é, analisando a Resolução nº 196 do Ministério da Saúde, e localizando as
passagens problemáticas de serem seguidas/aplicadas ao menos num campo como o que
estudo. Ora, é sobre o envolvimento de “seres humanos” em toda e qualquer pesquisa a razão
1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social – UFSC. Contato:
francogoodenough@hotmail.com.
2
Ministério da Saúde, 1996, p. 186.
3
LANGDON, 2008, p. 128.
4
Idem, p. 130.
5
Uma versão prévia deste artigo foi escrita como trabalho final para a disciplina de Métodos e Técnicas de
Pesquisa em Antropologia 1 (2012/1), ministrada pela Profª Drª Antonella Tassinari, no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Agradeço à professora
Antonella, e também a Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão (USP) pelas sugestões e críticas. Obs.:
utilizarei aspas simples para as expressões “locais”, isto é, que são usadas pelos sujeitos etnográficos do meu
“campo”.
239
destas diretrizes. 6 Como, então, ler, interpretar e aplicar as regulamentações da CONEP,
quando os sujeitos de pesquisa são espíritos? Rever a pertinência desta categoria central
implica uma revisão à quase totalidade do conteúdo destes documentos.
Almas e Angola é uma 'religião de matriz africana' – denominação dada pelos seus praticantes
– bastante difundida em Santa Catarina. Segundo literaturas afins, Almas e Angola é praticada
há cerca de meio século em Santa Catarina – de acordo com pesquisas, é hoje encontrada
exclusivamente neste Estado. Seu início é atribuído a Guilhermina Barcelos (‘Mãe Ida’), uma
mãe-de-santo que a teria trazido do Estado do Rio de Janeiro. Em seus rituais são invocados
espíritos (‘pessoas desencarnadas’) de pretos-velhos, de caboclos, de crianças, exus e
pombagiras, que são genericamente chamados de entidades, e os orixás 7. Há anos pesquiso
Almas e Angola, ora mais diretamente – indo às 'giras' (sessões espirituais) em vários dos
Terreiros espalhados pela Grande Florianópolis –, ora menos diretamente – conversando com
simpatizantes e médiuns8 que frequentam, já frequentaram ou que esporadicamente vão a
algum destes Centros.
Em minha última pesquisa9 tive como interlocutoras duas mulheres já 'feitas' mães-de-santo
em Almas e Angola mas, apesar de abordarem esta religião através de seus discursos sobre
suas práticas, detive-me nos rituais que envolvem a manifestação corpórea (ou a
'incorporação') de espíritos, por elas realizadas fora dos espaços dos Terreiros. Para tais
práticas, Solange e Rita utilizam-se de cômodos de suas próprias residências, os quais
temporariamente são configurados como espaços rituais onde os espíritos vêm dar conselhos,
receitas, 'passes' e demais 'trabalhos'10 àqueles que estão à procura de seus poderes. Destas
duas mães-de-santo, apenas Rita continuava, à época das pesquisas, frequentando um
Terreiro.
6
Resolução nº 196 do Ministério da Saúde .1996, pp. 186-7, 192, 195, 202.
7 Para mais detalhes sobre a história, o panteão e a liturgia de Almas e Angola, ver: Tramonte 2001; Martins
2006; Nóbrega 2004; Alves 2007; Farias 2009.
8 O mesmo que 'filho/filha-de-santo', 'médium' é um termo que umbandistas compartilham com kardecistas.
9 Refiro-me à minha pesquisa na graduação, realizada para o Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado Santo
de Casa Não Faz Milagre? Uma etnografia sobre rituais espirituais “caseiros” e espíritos (2012, no prelo).
10 Chama-se de 'trabalho' a “interferência mágica” (Cardoso, 2007, p. 340) feita por um espírito ou por alguém
'do santo', na vida de terceiros. Pode ser ainda sinônimo de ritual ou 'sessão espiritual', aludindo à incorporação
de espíritos que vêm 'trabalhar' (no corpo das médiuns).
240
A religiosidade dessas mulheres é articulada entre múltiplos espaços, entre práticas diversas e
com variados sujeitos (incluindo sujeitos ontologicamente distintos) – o que certamente é
recorrente nas inúmeras religiosidades afro-brasileiras. Nesse sentido, apesar das reflexões no
presente texto estarem baseadas em minha convivência com praticantes de Almas e Angola e
em minha última pesquisa, penso que podem ser estendidas para outras destas práticas
religiosas.
11 “Macumbas cariocas” designa as práticas religiosas, assim denominadas pelos próprios sujeitos, que são
parte dos estudos desta antropóloga. (Para uma discussão aprofundada sobre a polissemia deste termo,
etnográfica e analiticamente, ver Cardoso 2004, 2007).
12
CARDOSO, 2009, p. 198.
13
CARDOSO, 2007, p. 345.
14
Idem, p. 319. Itálicos no original.
15
DELATORRE, 2012, no prelo.
241
dos outros sujeitos sociais – vivos ou já mortos – afinal são conhecidos
como "espíritos", "santos", "entidades", e não como "pessoas". 16
De alguma forma, então, os espíritos acabarão por estar envolvidos na pesquisa como sujeitos
– os procedimentos formais serão a eles estendidos (seja a pedido do acadêmico e/ou do
povo-de-santo), e estarão a eles subordinados, vez que sem seu consentimento, nada se faz.
Trabalhar em campo com o povo-de-santo é lidar com pelo menos dois povos: o 'povo-da-
terra' e o 'povo-de-Aruanda'.17
16
CARDOSO, 2009, p. 206.
17 Os espíritos chamam os humanos de 'povo-da-terra', e 'povo-de-Aruanda' é uma das maneiras com que os
médiuns chamam a coletividade espiritual. Aruanda é sinônimo de “além”, “céu”, “orum” - o espaço onde
habitam espíritos (maus e bons) e os orixás.
18
LÉVI-STRAUSS apud GOLDMAN, 2003, p. 463.
242
Levar adiante uma pesquisa baseada nesta socialidade do povo-de-santo não implica
quaisquer impedimentos, exceto nos casos em que o pesquisador/a não tenha interesse efetivo
em buscar compreender/conhecer seus objetos(/sujeitos) de estudo; e/ou por motivos de
impedimentos “técnicos”, por assim dizer, que destoem de propostas verdadeiramente
antropológicas – e este me parece ser o caso dos entraves de nossas pesquisas em relação à
CONEP.
Obviamente, não se trata de “crer” com os nativos – até porque isto implicaria na suposição
de que eles crêem;24 além disso – e independentemente de se compartilhar ou não os saberes
deste ou daquele grupo com o qual se pesquisa (e que por ventura pode ser o mesmo em que
ocorrem outras práticas), não entendo que a pesquisa antropológica deva revelar, explicar ou
19
GOLDMAN, 2009, p. 130.
20 Refiro-me às quatro disciplinas disponíveis na grade do curso de graduação em Ciências Sociais desta
Universidade. Duas delas para a elaboração do Projeto de Pesquisa do TCC e as demais para as discussões sobre
o andamento deste, respectivamente: Métodos e Técnicas de Pesquisa 1 e 2, e Seminários de Pesquisa 1 e 2.
21 Em seu Trabalho de Conclusão de Curso, Ferreira escreve: “Recentemente, nas aulas de Seminário de
Pesquisa, tive o prazer de ler e discutir, entre outros, o projeto de pesquisa de meu colega Franco Delatorre
(2010), que ao estudar Almas e Angola, uma religião de matriz africana, circunscreve como sujeit@s de sua
pesquisa também os próprios espíritos que tomam os corpos dos s@s interlocutor@s human@s. Certamente, sua
opção metodológica não ecoou do mesmo modo que as incursões etnográficas de Favret-Saada [...]: tanto porque
50 anos depois, questões como a suscitada por ele são relativamente pacíficas [...]”. (2011, p. 20-1. Itálicos e
arrobas no original).
22
FERREIRA, 2011, p. 20.
23 Também aconteceu de serem feitas alusões à minha suposta “natividade” religiosa (isto é, pelo fato de eu
pertencer a uma religião afro-brasileira – o candomblé – e por 'trabalhar' com espíritos manifestados em meu
corpo), o que explicaria, para os/as autores/as destas falas, a minha “séria crença”, por assim dizer, e a minha
suposta confusão do eu-nativo com o eu-pesquisador.
24 LATOUR, 2002. Bruno Latour escreve que a noção moderna de crença não é um “estado mental”, mas “um
efeito de relação” (2002, p. 15) em que uma das partes diz conhecer, julgando a outra iludida; uma das partes diz
saber, enquanto a outra ainda não. É usada invariavelmente em oposição a ideias como fatualidade, evidência,
descoberta, etc – estas pressupondo um saber que seria mais qualificado, correto, objetivo e desejável em
detrimento às “meras crenças” – nesse sentido, o discurso sobre crença versus realidade tem efeito vexatório.
243
sequer alcançar o “ponto de vista” ou o “pensamento nativo” (se é que tal conteúdo
homogêneo e objetivamente apreensível exista). A antropologia que anteriormente qualifiquei
como verdadeira seria aquela em que se permite “contaminar” ou ser afetado 25 por “modos
[diversos] de experienciar e de [se] estar no mundo”. 26Uma tal relativização do nosso aparato
conceitual é também uma postura de abertura à diversidade, ao por em diálogo as teorias da
disciplina e as “colhidas” em campo não apenas para que as diferenças entre elas sejam
“respeitadas, ignoradas ou subsumidas”, mas assumindo a positividade dessas diferenças,
reconhecendo a consequência de que possam “desestabilizar o nosso pensamento”,
conduzindo “a reflexão antropológica até ao seu limite”. 27 Estes seriam “os únicos critérios de
qualidade disponíveis na nossa disciplina – qualidade, é evidente, infinita e
28
interminavelmente aperfeiçoável”.
Antropologias cujo empreendimento visa “levar a sério” e respeitar31 os mundos que adentra
podem encontrar obstáculos em instâncias nas quais este posicionamento não é
compartilhado. Por mais que certas dificuldades de se adequar pesquisas com sujeitos outros
às citadas diretrizes da CONEP sejam previsíveis, analisarei brevemente algumas que
considero mais importantes, e que certamente encontram correspondência em outros estudos
que têm como tema alguma(s) das várias religiões afro-brasileiras.
25
FAVRET-SAADA, 2005.
26
CARDOSO, 2009, p. 207. Itálicos no original.
27
GOLDMAN, 2009, pp. 130-2.
28
Idem, p. 130.
29
CASTRO, 2002; 2004.
30
FAVRET-SAADA, 2005, p. 156.
31 “Respeitar” é uma palavra que às vezes pode soar algo ingênua. Entretanto – e pelo contrário – ela torna-se
aqui uma expressão importante por estar inserida neste contexto de discussão de embates éticos.
244
Éticas em jogo: ética para quem?
32
LANGDON, 2008, p. 128.
33
MALUF, 2008, p. 142.
34
LANGDON, p. 128.
35
Idem.
36
Ministério da Saúde, 1996, p. 192.
245
dos seus próprios líderes, não se dispensando, porém, esforços no sentido de
obtenção do consentimento individual. 37
Como critica Maluf, as concepções de indivíduo e de sujeito implicadas nestas normas nada
têm de universal e evidente: são tão locais e específicas quanto aquelas que possam ser
encontradas. Entretanto, através desta legislação, acabam se impondo de jure e, de acordo
com elas, os únicos sujeitos da pesquisa seriam, de fato, os médiuns, as pessoas "concretas",
os cidadãos. Especificamente em meu campo, no qual participam da pesquisa médiuns e
“seus” 'guias' (entidades espirituais), não apenas esta noção de indivíduo apresenta-se como
problema, como se faz necessário discernir que para ambos os sujeitos etnográficos, médiuns
e espíritos são, necessária e irremediavelmente, dois sujeitos diferentes – e não um, ou o
mesmo sujeito.
Particularmente, nunca soube que uma entidade, dentre as que são cultuadas em Almas e
Angola, escrevesse ou assinasse seu “nome” 39 – e, mesmo que haja entidades que porventura
o façam, não me parece haver muito o que fazer com o “nome” da entidade (a entidade não é,
ao menos do ponto de vista burocrático-legal, uma cidadã); e a impressão dactiloscópica não
resolve a questão de “assinar” o termo, visto que o polegar em questão (a princípio) não é
precisamente o seu, mas o de seu médium.
37
Ministério da Saúde, 1996, p. 191-2. Grifos adicionados.
38
MALUF, 2008, p. 142.
39 Se as entidades e divindades de Almas e Angola possuem um 'nome', estes são bastante diferentes daquilo
que entendemos como sendo um 'nome' em nossa sociedade. Abarcando outras composições, o 'nome' de uma
entidade de Almas e Angola pode ser revelado por sua vontade própria, ou em rituais específicos em que sabê-lo
é necessário; entretanto, estes nomes são recorrentemente omitidos, por razões diversas. As entidades podem,
também, 'escrever' seus nomes através dos chamados 'pontos riscados': geralmente feitos com um giz ('pemba')
em uma tábua redonda, os 'pontos riscados' são compostos de símbolos místicos que revelam informações
diversas sobre o espírito que o 'desenha', a serem decifrados pelos médiuns capacitados/as. Seria esta uma grafia,
uma assinatura aceita nos TCLEs?
246
Pergunto-me “que indivíduos seriam estes?”, perante as definições da CONEP. As questões a
serem feitas, que se desdobram a partir desta, são, basicamente: até onde, considerando todas
as etapas institucionais de uma pesquisa, os espíritos poderiam ser efetivamente considerados
seus sujeitos, e não apenas os médiuns, sem que isso seja um entrave ao pesquisador?; de que
vale uma pesquisa comprometida eticamente com os sujeitos etnográficos quando os
procedimentos que visam efetivá-la são desde já um desrespeito e/ou um impasse em relação
às concepções locais?
Para os médiuns, os espíritos possuem “autonomia plena” – maneira pela qual a Resolução
designa os sujeitos com os quais a pesquisa deve ser “preferencialmente desenvolvida”.40
Assim sendo, os espíritos não são localmente considerados incapacitados que necessitariam
de responsáveis os quais por eles responderiam. Pedir que médiuns respondam por “seus”
espíritos (e vice-versa) seria, no mínimo, uma incongruência: espíritos trabalham no corpo
dos médiuns, mas de forma alguma são os médiuns eles mesmos, tampouco pertencem aos
médiuns, ou são a estes obedientes ou subordinados (em geral, apenas o contrário é que pode
ser verdadeiro)41.
No meu caso, o documento que visa garantir práticas éticas é, ele mesmo, antiético. Mas, se
espíritos não assinam o TCLE – já que seria antiético pedir aos médiuns que o façam
(desconfio que, para estes, a situação seja mesmo ridícula) – como prosseguir com a pesquisa,
visto que os CEPs (Conselhos de Ética em Pesquisa) de cada instituição, por onde devem
passar todas as pesquisas envolvendo seres humanos, exigem os TCLEs?
Se o consentimento não resolve tudo, também é preciso lembrar que nosso “método
etnográfico” não pode servir como um “cheque em branco” para o antropólogo. 42 Maluf
escreve que é ao longo do trabalho de campo que as diversas questões, como a questão ética,
vão sendo negociadas no processo de pesquisa (ibid.) com os sujeitos – ela não pode,
portanto, ser pensada somente a priori. Então, todos estes processos – de pesquisa,
metodológicos e de busca de comportamento ético, que se iniciam antes do trabalho de campo
e que não se esgotam no fim desse período –, mutuamente imbricados, precisarão ser
40
Ministério da Saúde, 1996, p. 189.
41 Espíritos não são “dos médiuns”: esta é a razão de ter utilizado aspas nos pronomes possessivos, ao escrever
“seus” 'guias' ou “suas” 'entidades' ao longo do texto. Por mais que os médiuns chamem de seus os espíritos que
recebem em seus corpos, os espíritos insistem em quebrar o sentido de “posse”, de pertencimento e mesmo de
“apreensão” implicados nestes pronomes: o termo é usado pelos médiuns de forma indicativa (para apontar de
que espíritos fala, já que muitos deles têm os mesmos nomes), apontando ainda alguma intimidade e afetividade.
42
MALUF, 2008, p. 144.
247
problematizados constantemente a cada pesquisa, de forma crítica e reflexiva. Ou seja, não há
uma fórmula que dê conta de todos e quaisquer problemas éticos 43.
Considerações finais
Os tipos de contato com o campo, de convivência no campo e de relações com aqueles com
quem a pesquisa vai sendo feita condicionam (ou mesmo determinam) os rumos da pesquisa,
até mesmo sua factibilidade. Refletir sobre estes temas e expô-los no texto são tarefas
indispensáveis no trabalho antropológico atual. Questões em torno de métodos de, e de ética
nas pesquisas antropológicas, lidas, discutidas, e aquelas experimentadas em campo, têm
evidenciado que “as próprias características epistemológicas da disciplina [...] exigem o
trabalho de campo”44, levando a pensar que aquilo que será produzido pelo antropólogo/a está
sujeito ao campo.45
43 Exemplo disto é a escolha pelo uso de nomes fictícios. Goldman argumenta, contra um parecerista que
reclamara acerca dos nomes não-fictícios usados em seu artigo, que este procedimento em nada garante o
anonimato (2003, p. 470, nota 3). Em minha etnografia (2012, no prelo), utilizei nomes fictícios, mas isso não
foi suficiente: detalhes sobre as trajetórias das mães-de-santo, e características peculiares de espíritos, as quais
precisei descrever, retraçavam redes e revelavam os sujeitos caso fosse lida por certas pessoas do povo-de-santo
– o que não é improvável, o povo-de-santo possui uma história de consumo de materiais antropológicos (v.
Delatorre, id.; Silva, 2000; Cardoso, 2007); além disso, na defesa de TCC de Farias (2009), vários médiuns de
seu Terreiro compareceram, e a notícia sobre um “trabalho científico” sobre Almas e Angola rapidamente se
espalhou para além dos limites daquela 'família de santo'. Em minha pesquisa, enfim, escolhi conversar com as
duas mães-de-santo e pedir-lhes permissões para publicar ou não aquele conteúdo, com aquela forma.
44
GOLDMAN, 2003, p. 462.
45 “Sujeito ao campo” num amplo sentido, mas destaco aqui a sujeição aos acordos éticos, durante a estada em
campo, chegando ao conteúdo e às convenções do texto final da pesquisa.
248
No mais, me pergunto como conciliar o que me dizem os sujeitos etnográficos com o que
exige a Resolução nº 196? Como (se possível for), compatibilizar as categorias nativas com
aquelas “legalmente definidas”?46 Seria possível, então, realizar pesquisa com sujeitos que
não são humanos, mesmo não havendo legislação para tanto? Se não, tal pesquisa deveria ser
arquivada? Se sim, deveria ser ajustada unilateralmente a uma das “éticas” 47, a apenas uma
destas “visões de mundo” em questão? Seria a saída uma desobediência (que só poderia ser
coletiva) à CONEP?48 O dilema e o desafio deste “lugar” do antropólogo está em conseguir
ser duplamente ético, ou em sustentar duas éticas que em algum momento se encontram no
fazer antropológico – as quais podem ser destoantes, como no caso que apresento.
Como argumenta Maluf (2008), as dimensões ética e metodológica constroem “o tripé de uma
antropologia crítica e comprometida [por remeterem à] questão política”. 49 Assim, se “[o]
caráter contextual das considerações [no Anexo 3] desenvolvidas implica em revisões
periódicas desta Resolução, conforme necessidades nas áreas tecnocientífica e ética”, 50 cabe
perguntar-se, ainda, acerca da real disposição às mencionadas revisões e às suas subsequente
alterações – necessárias, porque geram não somente entraves no processo de pesquisa, mas
porque refletem-se politicamente ao longo do processo de pesquisa.
Referências
46
Ministério da Saúde, 1996, p. 189.
47 Com aspas porque não são questões éticas que a Resolução propõe, mas, segundo a designação encontrada
no próprio documento, são Normas. E normas sobre éticas – como o termo sugere, elas visam normatizar
éticas.
48 Questões como a que exponho foram debatidas pelas antropólogas Antonella Tassinari (NEPI-UFSC), Ilka
Boaventura Leite (NUER-UFSC), Miriam P. Grossi (NIGS-UFSC) e João Pacheco de Oliveira (MN/UFRJ)
no Colóquio João Pacheco de Oliveira: “Índios misturados”, ética e a atuação do antropólogo, realizado
em julho/2012 na Universidade Federal de Santa Catarina.
49
MALUF, 2008, p. 146.
50
Ministério da Saúde, 1996, p. 187.
249
AUSTIN, J. L. Conferência. Performativos e Constatativos. Quando Dizer é Fazer.
Palavras e Ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. Trad.: Danilo M. de S. Filho.
CARDOSO, Vânia Zikán. Working With Spirits: Enigmatic Signs of Black Society. 2004.
255 f. Dissertação (Doutorado) - The University Of Texas at Austin, 2004.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. O nativo relativo. Mana 8 (1), 2002, pp. 113-148.
DELATORRE, Franco. Santo de Casa Não Faz Milagre? Uma etnografia sobre rituais
espirituais caseiros e espíritos. 2012. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em
Ciências Sociais) - Universidade Federal de Santa Catarina. Orientadora: Vânia Z. Cardoso.
[no prelo].
250
FARIAS, André Luiz. Fazer um Tata de Almas e Angola. 2009. Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação em Ciências Sociais) – Universidade Federal de Santa Catarina.
Orientador: Márnio Teixeira-Pinto.
GOLDMAN, Marcio. Os Tambores dos Mortos e os Tambores dos Vivos. Etnografia, Antro-
pologia e Política em Ilhéus, Bahia. Revista de Antropologia, 2003, 46 (2), pp. 445-476.
LANGDON, Esther Jean. “Dilemas da pesquisa qualitativa frente à Legislação sobre ética: o
Relatório do Encontro Ética em Pesquisa Qualitativa em Saúde”. In: CARDOSO, Vânia
Zikán (org.). Diálogos Transversais em Antropologia. Florianópolis: PPGAS/UFSC, 2008,
pp. 127-136.
LATOUR, Bruno. Reflexão Sobre o Culto Moderno aos Deuses Fe(i)tiches. Edusc, 2002.
MALUF, Sônia W. “Do organism à cultura: onde estão os sujeitos?” In: CARDOSO, Vânia
Zikán (org.). Diálogos Transversais em Antropologia. Florianópolis: PPGAS/UFSC, 2008,
pp. 137- 147.
251
NÓBREGA, Priscila Brandão Martins da. Cortar para o Santo: o lugar do sacrifício animal
em Almas e Angola. 2004. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Ciências
Sociais) - Universidade Federal de Santa Catarina. Orientador: Márnio Teixeira-Pinto.
PIAULT, Marc. “Crer e Saber: de caminho para uma antropologia pragmática.” In: Religião
e Espaço Público. São Paulo: Attar Editorial, 2003.
SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia. São Paulo: EdUSP, 2000.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. São
Paulo: Corrupio, 1981. 295 p.
252
O exercício etnográfico no estudo das religiões: um olhar de
dentro1
A etnografia proporciona ao pesquisador uma imersão na cultura local. Passa ele a vivenciar
costumes, rituais, comportamentos a fim de apreender a ambiência daquela cultura. Desta
forma, os antropólogos não tem a pretensão de demarcar limites da neutralidade axiológica,
considerando-se um observador de Marte.5 O antropólogo não observa a cultura do outro de
forma mais objetiva que eles mesmos. O trabalho de campo está recheado de subjetividades e
conflitos, mas fornece um ponto de vista diferente.
1
Gostaria de agradecer aos médiuns da Sociedade Espírita Ramiro d’ Ávila Alexandre da Luz, Cláudio Bonfim
da Luz, Luci Coimbra Ferreira, Lucilia Coimbra Ferreira, Luiza d’Ávila, Marilda Coimbra Ferreira e Walter
Bonfim da Luz pelo apoio dispensado. Estes agradecimentos também são estendidos a Doly Oliveira Rocha, Eva
d’Ávila Beth, João Carlos Lopes, Marisa Bonfim Lopes, Rosalinda Prestes Nardin, e Walter Bonfim da Luz
médiuns da Sociedade Espírita Circulo da Luz que sempre me recebem de forma muito atenciosa.
2
Mestre em Ciências Sociais pela PUCRS. Professor da Universidade de Passo Fundo. Contato:
santosquadrado@hotmail.com.
3
MALINOWSKI, 1984.
4
LAPLANTINE, 1996, p. 75.
5
POPPER, 1978.
253
Desenvolver trabalho de campo, especialmente com uso da técnica de observação
participante, envolve a revelação de segredos e mistérios dos rituais. Não são raros os
trabalhos acadêmicos que revelam a conversão do pesquisador,6 a fim de “vivenciar” a
religião. Contrariamente aos autores citados, este trabalho é realizado por um médium que
desenvolve pesquisas acadêmicas sobre sua religião. Não tenho intenção de defender minha
posição de religioso, nem tampouco a do antropólogo, mas de levantar algumas interrogações
(subjetivas e objetivas) pelas quais o exercício profissional exige no trabalho de campo. O
objetivo deste trabalho é traçar algumas pistas da construção da metodologia de pesquisa
sobre religiões. A investigação tem uma problemática central: como definir a nova função do
pesquisador no ritual?
Este capítulo está baseada no trabalho de campo que venho realizando em duas sociedades
espíritas, em Porto Alegre: a Ramiro d’Ávila e o Círculo da Luz, ainda em fase exploratória.
Nestas sociedades espíritas, me dedico à compreensão dos rituais de desobsessão realizados
pela família Bonfim. Na Ramiro d’Ávila todos os médiuns da desobsessão possuem relações
de parentesco entre si, ao passo que no Círculo da Luz, somente quatro dos oito médiuns são
Bonfim.
6
BASTIDE, 1983; VERGER, 1991.
7
No trabalho de conclusão de curso tratei especificamente da sessão de desobsessão realizada por esta família, a
partir da relação entre os diversos espíritos superiores (SANTOS, 2000).
8
Na dissertação procurei analisar como os médiuns Sociedade Espírita Ramiro d’Ávila constroem sua identidade
religiosa mediante a submissão das entidades da umbanda às do espiritismo (SANTOS, 2005).
254
Em janeiro, quando iniciaram as sessões na Sociedade Espírita Ramiro d’ Ávila logo reiterei
meu pedido de licença “este ano eu não vou participar como médium, vou somente fazer as
observações para minha pesquisa”. Permaneci sentado numa cadeira, distante da mesa,
fazendo anotações no diário de campo, com vistas a exotizar o familiar. 9 Queria observar a
sessão de um outro ponto de vista e queria que os médiuns compreendessem isto. Julguei que
o recesso de final de ano, durante o mês de dezembro, fosse suficiente. No entanto, definir o
meu novo papel no ritual não se faz num período pré-ritual.
A sessão de desobsessão da Ramiro conta com oito médiuns compreendidos nas seguintes
funções: uma secretária, um diretor titular, quatro médiuns de comunicação e dois médiuns de
sustentação. Nos meses de janeiro e fevereiro, quando funciona o atendimento de férias,
somente três médiuns estavam disponíveis, por razões profissionais e familiares.
As funções de um diretor, como a doutrinação dos espíritos, não era novidade seja pelas
observações que já fiz, seja pelas leituras. 11 De qualquer forma, assumi o cargo com
9
VELHOR, 1978.
10
SILVA, 2000, p. 37.
11
LEWGOY, 2000; CAVALCANTI, 1983.
255
relutância. Não queria estar naquela posição. Já havia construído de forma teórica e
metodológica outra função para mim. Durante algum tempo me questionei, “o antropólogo
tem o direito de negar-se à participação religiosa, feita pelos religiosos?”. Na verdade, não são
os religiosos a lhe solicitar participação, mas os deuses, os espíritos. Segundo Julio Braga
Você não diz não ao objeto sagrado. Se você disser não nesse momento,
você nem sequer deveria ser antropólogo dessa religião porque você não
está compreendendo os símbolos todos, os rituais de delicadeza inicial [...]
um ritual de delicadeza que inicialmente pode ser até uma espécie de
reconhecimento da sua presença naquele ambiente religioso.12
Ciente dos chamados do sagrado, procurei responder sem relutar. Passei a ser chamado com
mais freqüência neste período do que quando exercia teoricamente as funções de médium.
Várias vezes em que estava sentado numa cadeira para observação fui convidado a compor a
mesa. Uma convocação bastante sutil, sem palavras, um olhar para mim e outro para a
cadeira. Como se olhar do sagrado me retirasse da condição de pesquisador e me colocasse na
de médium. Não tenho a intenção de contrariar o sagrado, mas também não desejo ter uma
experiência social com os nativos como se fosse minha. Nas palavras de Roger Bastide “é
preciso apelando para um ato de amor, transcender nossa personalidade para aderir à alma que
está ligada ao fato a ser estudado”.13
12
SILVA, 2000, p. 95 apud BRAGA.
13
BASTIDE, 1983, p.84.
256
termos, apontando para o diretor “se tu te responsabilizar espiritualmente e psicologicamente
por ele, tudo bem. É tudo contigo”.
olha guri, eu não gosta de pesquisas. Daqui a pouco tu vais vir com o
microfone e gravador, colocando na boca da gente. Eu não gosto disto.
No hospital espírita, quando eu participava da hipnometria (atualmente
apometria), um jornalista vinham querendo que a gente falasse tudo que
acontecia. Mas, se a direção autorizou eu só tenho que acatar.
Antes de começar a sessão escolhi uma cadeira, abri o diário e coloquei caneta no meio.
Enquanto os médiuns conversavam observei. Não anotei nada. Achei indelicado no primeiro
dia, sair anotando. Mas, também não haveria tempo. Fui chamado a integrar a equipe
mediúnica. O diretor explicou-me dizendo que eu estava “envolvido espiritualmente” e não
deveria deixar a corrente mediúnica. Em outras palavras, eu estava mediunizado, ou seja,
daria comunicação espiritual. Permaneci dois encontros “mediunizado” sem esboçar nenhuma
manifestação. No final de uma sessão ele informou “eu vou fazer uns testes contigo”.
Determinada vez estava sentado entre dois médiuns. A médium do lado informou “se tu não
der passagem ele virá para mim”. O diretor pediu aos médiuns que se concentrassem em mim
a fim de facilitar a comunicação. O médium do outro lado se levantou e ministrou um passe
sobre minha cabeça. O diretor perguntou o que sentia e lhe descrevi os sintomas: “sinto fortes
dores na cabeça, como pauladas, e o corpo dormente” Pediu que me desconcentrasse e os
sintomas passaram.
Deste dia em diante, não passei mais a ser considerado como um “de fora” do grupo. As
informações passaram a ser dadas com menos desconfiança. Como se os espíritos
autorizassem os médiuns a me fornecerem informações. Este caso específico do espiritismo
aproxima-se da situação pela qual passam alguns antropólogos em pesquisas sobre o
candomblé.
257
Por meio do jogo de búzios, o pai-de-santo também procura descobrir o
“santo protetor” do antropólogo, enquadrando-o no sistema de compreensão
de religião, em que os modelos de relacionamento entre as pessoas são
pautados pelos atributos míticos de suas divindades protetores.14
A experiência do trabalho de campo em religiões, tanto para os “de dentro” quando para os
“de fora”, é um exercício metodológico construído na relação com os fiéis e o sagrado. O
trabalho de campo implica na possibilidade de buscar “novas formas de relacionamento
social, por meio de uma socialização controlada. 15 A socialização controlada, a que se refere o
autor acima, pode se compreendida como os rituais de passagem que prevêem, através de um
processo de transição, um novo papel social para o pesquisador.16 Que papel social assumirá o
pesquisador? Como os pesquisados o classificarão frente à pesquisa que pretende
desenvolver?
Para o antropólogo da religião, que a pratica, o ritual assume uma função existencial, assim
como um chamado para participação. Sua pesquisa abre espaço para revelar o bem mais
precioso da religião: os segredos do sagrado. Mas, ele tem o direito de revelar os segredos em
nome da ciência? O singular, o novo é a ele revelado porque é um crente e não um
pesquisador. Qual o comprometimento ético-religioso do pesquisador que observa sua própria
religião?
Claro que muitas destas questões não estão concluídas aqui e tampouco ficam solucionadas
no ato da escrita etnográfica. Mas, cabe ao estudioso das religiões se questionar sobre elas
durante o trabalho de campo.
14
SILVA, 2000, p.90.
15
DA MATTA, 1984, p.152.
16
VAN GENNEP, 1978.
258
Referências
SANTOS, Frederico Santos dos. A mesa branca e outros espíritos: espiritismo e cultura
brasileira. Trabalho de Conclusão de Curso. Graduação em Ciências Sociais, PUCRS, Porto
Alegre, 2000.
SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia. São Paulo: Edusp, 2000.
260
Correndo prá Jesus à Beira-Mar:
Esporte, religiosidade e cura na Bola de Neve Church
Introdução
Este ensaio visa refletir sobre as articulações entre religião, doença, saúde e cura feitas por
alguns corredores do Bola Running – BR – , ministério da Bola de Neve Church de
Florianópolis – BDNF –, adicionando a esta reflexão um assunto correlato, o esporte. Mas
como o esporte se inseriria nesta relação? E mais especificamente, a corrida? O que seria
considerado doença em um contexto esportivo-religioso? Estas são algumas das questões as
quais pretendemos sinalizar ao longo deste texto, feito a partir de entrevistas, bem como de
conversas informais inspiradas no método da observação participante.
1. Start
Embora seja comum que nas ciências humanas sejam feitas pesquisas em grupo, são poucas
as reflexões que tematizam o assunto, principalmente quando a pesquisa em questão é de
17
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão F0 é doutorando em História pela USP, mestre em História pela
UDESC e especialista em Marketing e Comunicação pela Cásper Líbero. Contato: edumeinberg@gmail.com.
Talita Sene é mestranda em Antropologia Social pela UFSC. Contato: talitasene@gmail.com.
261
inspiração etnográfica e feita em uma igreja evangélica. Se o material etnográfico é quase
sempre resultado da “atividade singular do pesquisador no campo, em um momento
específico de sua trajetória pessoal e teórica”,18 como proceder quando duas (ou mais)
singularidades estão juntas em campo? Como fazer quando os mesmos têm relações
diferentes, e por vezes divergentes com a instituição religiosa? Como traduzi-las para a forma
textual sem que as diferentes perspectivas dos autores se perca? Estas questões resumem
nossas principais dificuldades ao pesquisar juntos o ministério BR, da BDNF.
Um dos recursos que encontramos para nos colocar no texto com o fim de procurar
demonstrar algumas das diversas negociações metodológicas entre nós foi a utilização de um
narrador em terceira pessoa nas partes do texto que diz respeito as singularidades de cada
um. Outras negociações foram sendo agenciadas conforme surgiam diferentes questões,
como as que envolviam a ética da pesquisa. Como utilizaríamos as entrevistas? Nomearíamos
as pessoas, como é costumeiro na história oral – da qual Maranhão Fo é partidário e reivindica
radicalização de alguns conceitos? Ou optariam pelo “anonimato”, como é mais corrente entre
alguns antropólogos?19 Outras questões envolviam as entrevistas – ou melhor dizendo, as
entre-vistas – visto que trata-se de trabalho compartilhado entre pesquisador e pesquisado,
que por vezes acaba subvertendo tais papéis. Utilizariam-se de narrativas advindas de
conversas informais na composição de um texto que representaria a entrevista? E postagens
de Facebook, discursos de emails – caberia utilizá-los como parte de discursos “nativos”,
incorporando algumas destas narrativas escritas como componentes de entrevistas? Se
optassem por tal uso, como fariam para referi-las? Advogariam uma intensificação da ideia de
“traição” do texto – admitindo a subversão até consequências inesperadas? E por fim: caso
optassem por radicalizar o texto transcrito e transcriado, quais os desdobramentos éticos?
Uma “conclusão” foi concordada por Sene e Maranhão Fo: quaisquer que fossem os
procedimentos em relação à utilização dos discursos dos colaboradores, deveria atrelar-se
este uso ao conhecimento e aprovação dos mesmos. E mais: não era suficiente repassar uma
entrevista por email aos mesmos para obter uma assinatura eletrônica autorizando a
publicação da mesma. Era preciso mostrar ao entrevistado de que maneira sua entrevista
18
SEEGER, 1980.
19
É importante ressaltar que no caso de alguns antropólogos não ocorre necessariamente o anonimato, mas sim,
a negociação com o sujeito com o qual se realiza a entrevista. Caso a pessoa prefira que seu nome seja colocado,
é feito, porém se a pessoa prefere manter sua privacidade, cria-se um nome fictício. Neste texto, os nomes das
pessoas entrevistadas são fictícios para preservar o anonimato.
262
estava sendo utilizada no processo de bricolagem narrativa – como ela estava sendo (des)
contextualizada.
Tais diálogos deram vista a perspectivas que sinalizavam, antes de tudo, para uma condição
de entre-disciplinas. Ambos os pesquisadores sentiam que – ainda que tivessem tido
formação específica em áreas distintas –, Sene como cientista social/antropóloga e Maranhão
Fo como historiador –, tais fronteiras apresentavam-se cada vez mais borradas. Especialmente
para este segundo, visto que o mesmo não costuma declarar-se um historiador stricto sensu.
Este entendimento de que os limites pareciam cada vez mais móveis, entretanto, trazia em seu
bojo uma dúvida: ambos os pesquisadores já vinham de perspectivas entre-disciplinas? Ou
com o convívio estas foram sendo negociadas e intensificadas? Provavelmente tenha ocorrido
um pouco das duas coisas. O fruto das negociações que fizemos bem como da maneira que
optamos em manter nossas subjetividades podem ser vistos na parte seguinte deste texto.
Sene conhecia a BDN somente através dos artigos de Maranhão Fo, que mantinha relações
com a BDN desde 2005. Até então, a relação do último com tal agência evangélica havia sido
marcada por momentos distintos: o primeiro, por sua entrada em campo, o segundo pela
mescla entre participação observante e afeto, e o terceiro, por um distanciamento e desafeto.
O primeiro momento se deu em 2005, quando Maranhão Fo conheceu a BDN e iniciou sua
observação participante na igreja. Já o segundo, entre 2005 e 2006, quando “a grande onda o
263
pegou”. Durante este período, o mesmo frequentou reuniões na sede – que até então era
localizada no bairro do Rio Tavares – e em células, sendo inclusive convidado a participar do
curso de líderes da última e instituído como tal, embora tenha recusado o convite para assumir
o cargo por discordar de diretrizes da agência. Ocupou a liderança do ministério de futebol
society e passou por ministérios como o de Boas Vindas, Assistência Social, Dança e Infantil.
Além disso, promoveu festas gospel da BDN em sua casa, e ajudou em diversas atividades da
igreja, como a construção do half pipe (pista de skate). Quando Maranhão Fo realizou essas
atividades, não havia ingressado no mestrado, porém fazia especialização em Ecumenismo e
Diálogo Inter-Religioso no ITESC (Instituto Teológico de Santa Catarina). Embora no
ambiente da BDN Maranhão Fo fosse visto pelos nativos como fiel, o mesmo sempre se viu e
identificou como pesquisador.
20
GOLDMAN, 2005.
21
GOLDMAN, 2005.
22
FAVRET- SAADA, 1990a: 7-9.
264
culto. Decepcionado, Maranhão Fo abriu mão do cargo de liderança, e passou aos poucos a se
distanciar da BDN, criando de certa forma, um (des) afeto. Suas atividades já não eram tão
intensas quanto no primeiro momento, e nesta época, que durou de 2006 a 2010, o mesmo
passou a visitar e frequentar outros ministérios de Florianópolis, como: Assembleia de Deus,
Sara Nossa Terra, Renascer, Metodista, Batista, IURD, Nazareno, Maranata, Banca do Rap
Cristão, Surfistas de Cristo e Calvary Chapel. Em 2008, ingressou no programa de pós-
graduação em História do Tempo Presente na UDESC, com um projeto sobre a trajetória
gospel de Elvis Presley, porém, com a inviabilidade da pesquisa, resolveu ter como campo a
BDN. Sua participação observante de 2005 a 2006 o possibilitou um olhar de perto e de
dentro,23 porém o distanciamento fez com que ele tornasse aquilo que lhe era familiar,
exótico.24
Com a defesa de sua dissertação em 2010, 25 Maranhão Fo retorna para São Paulo e ingressa no
doutorado em História Social na USP, com projeto sobre o trânsito poético das canções de
Rodolfo Abrantes, ex-cantor dos Raimundos e atual missionário da BDN Balneário
Camboriú, o qual foi abandonado logo depois de sua entrada no doutorado. 26
Como se pode perceber ao longo do texto, Maranhão F o e Sene tiveram relações – ou não
relações - distintas com a BDN. Essas (não) relações – ambivalentes – são de suma
importância para que se compreenda a forma que ocorreu a entrada de ambos em campo, bem
como a forma que os fiéis os viam ao longo desse curto período de tempo.
23
MAGNANI, 2002; VELHO, 2003,
24
VELHO, 1987.
25
Sua dissertação foi intitulada “A grande onda vai te pegar: Mercado, mídia e espetáculo da fé na Bola de Neve
Church”, defendida em fevereiro de 2010 e orientada pelos professores Márcia Ramos de Oliveira (UDESC) e
Artur Cesar Isaia (UFSC).
26
O projeto foi deixado de lado e substituído por outro, julgado mais relevante para o autor, relativo aos trânsitos
identitários religiosos de pessoas que se classificam em trânsitos de identidades de gênero.
27
Maranhão Fo 2009, 2010a, 2010b, 2011, 2012a, 2012b, 2012c.
265
1.3 A grande onda vai os pegar? Chegando em campo entre (des)afetos
Maranhão Fo e Sene ainda não tinham claramente o objetivo de pesquisar juntos a BDN,
porém a mudança de sede da igreja do Rio Tavares para a Trindade os deixava inquietos.
Como naquele culto ficaram sabendo que na quinta-feira seguinte, dia 06 de setembro de
2012, iniciaria uma célula29 dentro da UFSC, criaram a hipótese de que poderia haver uma
relação entre a mudança de local da sede da igreja e a conquista de um novo público alvo, os
estudantes da UFSC. A partir de então, passaram a acompanhar as reuniões da célula UFSC.
28
Os presbíteros são pessoas, que segundo o discurso nativo, são levantados por Deus, através de unção e
direção do Senhor ao Pastor. Os mesmos têm diversas funções na Igreja, entre elas preparar e oferecer a ceia,
colocar os copos de água no púlpito para o Pastor, aconselhamento e oração, recolher e cuidar da oferta na casa
de Deus, batismo, visita e unção nos lares, controlarem a saída e entrada no intervalo dos cultos e ajudar nos
eventos. Os presbíteros e suas respectivas esposas se encontram no caso da BDN, na terceira escala de
hierarquia, ficando abaixo do apóstolo e pastor, e das esposas dos mesmos.
29
As células, na BDN, são encontros entre fiéis, mediados por líderes formados a partir de cursos próprios da
agência. Tem o papel de atrair e organizar novos integrantes da mesma, reforçando a mensagem transmitida no
culto de domingo, sanando dúvidas e propiciando um espaço de interação e sensação de pertencimento. Em geral
são realizadas em casas, tendo um líder e um anfitrião, mas podem ocorrer em espaços alternativos, como no
caso da Célula UFSC. Células e ministérios funcionam como agenciadores da midiatização e consolidação da
BDN, já que estimulam a inserção sócio-religiosa do fiel, atuam na instauração de sensação de pertencimento a
uma comunidade de sentido e na adequação aos discursos da agência.
266
Na célula, desde o primeiro dia se identificaram como pesquisadores. 30 As pessoas não
manifestaram nenhuma recusa à pesquisa, porém, os líderes que não conheciam Maranhão Fo,
já que eram novos na BDN, pareciam incomodados com a presença dos pesquisadores –
embora fosse de se esperar que aparecessem pesquisadores na célula, pois estavam no
ambiente da UFSC. Pelo fato da BDN ter como característica principal um discurso bélico,
que enfatiza a luta do bem contra o mal, onde do lado do bem figuram os convertidos que
abriram mão de uma relação com a Babilônia, e do mal aqueles que vivem no mundo,31
Maranhão Fo e Sene pensaram na possibilidade de estarem sendo, ali, vistos como o mal.
Fator este, que ao mesmo tempo em que possibilitava que as portas fossem fechadas para a
pesquisa, as abria, pois como indivíduos perdidos no e do mundo, deveriam ser
evangelizados. Mas como e porque pensaram na possibilidade de estarem sendo vistos como
perdidos?
Como atestou Matheus em uma reunião de célula, há três formas de se estar perdido:
Estar perdido pode ser você nunca ter ouvido falar de Jesus, nunca ter ouvido falar de Deus.
Você não conhece a Deus, você não conhece a Jesus Cristo, se nós não reconhecemos, nós
estamos perdidos. Essa é uma forma de estar perdido. Outra forma são as pessoas que já
ouviram falar de Jesus Cristo, conhecem, aceitam que Jesus Cristo morreu pra salvar nossas
vidas, mas por algum motivo elas estão distantes. Estão distantes do amor, estão distantes de
ver a palavra, estão distantes da comunhão com Cristo. Então essa é outra forma de estar
perdido. Existe ainda uma terceira forma que é aquela pessoa que sabe que Deus existe e que
ele enviou o seu filho para morrer pelos nossos pecados, mas ele toma posse do livre arbítrio e
decide que ele não aceita isso para a vida dele. Então essa pessoa também está perdida, e num
nível diferente que é um nível de que ele se posicionou que não quer aceitar o amor de Cristo.
Maranhão Fo e Sene, devido a suas trajetórias e relações com a BDN, pareciam se enquadrar
em diferentes formas de perdido. O primeiro, como conhecedor da palavra de Deus, porém
distante. Já a segunda, por não conhecer a palavra.32 Um evento de evangelismo feito pela
banda IDE na praça Santos Dumont – conhecida popularmente como praça do Pida -, os
pareceu tornar essa hipótese mais viável. Na praça, enquanto a banda fazia louvor ao ritmo de
30
Já nesta primeira ocasião, Maranhão Fo entrevistou os dois líderes da Célula UFSC da BDN.
31
Maranhão Fo 2009, 2012b, 2012c.
32
Com o curto tempo de pesquisa, Sene ainda não sabe até que ponto pode sustentar tal afirmação, pois
certamente cada pessoa os vê de uma forma. Sendo assim, ela acredita que esta seja uma hipótese inicial, que
pode ser relativizada e descontruída até o final da pesquisa. Já Maranhão F o acredita que alguns membros da
BDN, sobretudo os líderes o vê com desconfiança.
267
gospel reggae, havia um grupo de estudantes da UFSC festejando. O momento ápice do
evangelismo, bem como da festa, se deu quando pediram para que a banda IDE cantasse
parabéns para a aniversariante do grupo de festejantes. A banda não só cantou como, em
seguida, grande parte dos membros da BDN que estavam ali presente - cerca de 50 – se
reuniram ao redor da festa, e oraram por eles. Enquanto Sene fotografava o evento, Maranhão
Fo ficou próximo de uma das fiéis da BDN, e exclamou: “Evangelismo de fogo este, não
irmã?”, que para sua “surpresa”, respondeu: “É a luta do bem contra o mal”, e após alguns
segundos de reflexão: “mas pode também ser a luta do bem contra o desconhecido, o
ignorante, já que eles não conhecem a Palavra”.
O lugar dos pesquisadores pareceu receber outro estatuto quando os mesmos passaram a
frequentar os treinos do BR e os cultos dominicais. Sene e Maranhão F o deram inicio à
pesquisa no BR após terem escutado, durante o 2º dia de reunião da Célula UFSC, breve
testemunho de Maurício. Tal testemunho foi ampliado na 3ª reunião, acompanhada por Sene,
quando o mesmo narrou a respeito de duas curas divinas: A primeira dizia respeito a cura de
um problema no coração que, antes do mesmo conhecer Jesus, o impossibilitava de fazer
esportes físicos, principalmente esportes de explosão como a corrida, e a segunda, de uma
breve paralisação nos músculos de seu filho, curado após sua esposa e ele orarem para Jesus,
e passarem óleo de unção na criança.
33
Na peça de teatro realizada pelo ministério Em Chamas, no dia 01/12/2012 a figura do intelecto também foi
enfatizada como pertencente ao lado do mal.
34
VIVEIROS DE CASTRO, 2002.
268
discurso dos outros corredores. Afinal, o que seria considerado doença e cura para os
membros da BDN, em especial, para os do BR? Como a corrida entraria nas relações entre
religião, doença e cura?
A pesquisa só seria possível se Maranhão Fo e Sene participassem dos treinos do BR, e foi o
que os mesmos fizeram. A inserção no ambiente do BR foi rápida e sem empecilhos.
Maranhão Fo e Sene participaram pela primeira vez dos treinos do grupo na manhã do sábado
de 10 de novembro de 2012. Ao chegarem lá, havia apenas quatro pessoas: a personal trainer
Andrea (líder informal do grupo), Juliana, Pedro e Breno. Como os mesmos estavam se
alongando, Sene perguntou se podia correr com eles, que prontamente responderam que sim.
Porém, perguntaram se esta estava acostumada a correr. Sene respondeu que não, e Andrea
passou a ensiná-la os passos iniciais da corrida, dizendo que pela sua falta de costume na
prática esportiva, devia correr durante dois minutos e caminhar cinco, revezando o processo
no percurso que se inicia no trapiche da Beira-Mar Norte, vai até o shopping Beira Mar, e
retorna ao ponto de partida. Enquanto Sene literalmente corria atrás dos nativos, e bem atrás
- como pode ser visto na figura abaixo (fig.1) -, Maranhão Fo fotografava, pois uma lesão no
tornozelo o impedia de correr.
Durante o primeiro treino, Sene correu sozinha, porém, em todos os outros que participou,
inclusive na corrida das mulheres da BDN – que ocorreu no dia 23/11/2012 -, sempre havia
outra mulher correndo com ela. Era nos momentos de corrida que Sene socializava com
algumas das garotas do BR – quase sempre, com aquelas que tinham um ritmo menor de
corrida -, e onde muito mais que aprender as normas da corrida, aprendia as normas da
BDN.35 Neste sentido, Sene era tratada não só como uma criança no mundo36, mas também
uma criança do mundo.37 Sua ignorância frente aos ensinamentos tanto da corrida, quanto da
religião evangélica era o que a possibilitava ser vista de tal forma. Porém, ser uma criança no
e do mundo parecia ser viável tanto para Sene, quanto para as fiéis da BDN que corriam com
ela. Se algumas das atletas da BDN queriam ensinar, Sene queria aprender. Mas porque as
35
Uma das normas aprendidas por Sene durante as corridas foi a das condutas entre gêneros – o que pode ser
expressa no fato de Sene só correr com mulheres. A única vez que Sene viu homens e mulheres correndo
conjuntamente foi durante o primeiro dia que participou dos treinos, sendo que neste dia, o único homem
presente era Breno.
36
SEEGER, 1980.
37
Estar no mundo, e ser do mundo são expressões corriqueiras entre os fiéis da BDN. Ambas são utilizadas para
mencionar pessoas não convertidas.
269
mulheres do BR pareciam tão interessadas em ensinar Sene a correr, por vezes enfatizando
que a mesma cada vez teria mais gosto pela corrida?
(fig 1)
Treino BR do dia 10/11/2012.
Uma possível resposta pode ser dada quando colocado em ênfase o slogan do ministério BR:
Evangelizar com os pés38. Ao correr com algumas garotas do BR, Sene além de aprender a
correr, aos poucos tinha a possiblidade de (se deixar) ser evangelizada, e consequentemente
poderia deixar de ser uma criança no e do mundo.39 O processo de possível evangelização foi
o que neste caso gerou a comunicação (in) voluntária entre Sene e as corredoras do BR, ou
seja, deu espaço a uma das características do afeto.40
Como já dito, enquanto Sene corria, Maranhão Fo geralmente ficava fotografando. Porém,
devido a sua frequência nos treinos do BR, bem como em eventos onde os fiéis da BDN se
reuniam,41 e ainda suas aparições públicas em conversas com lideranças – especialmente
quando Maranhão Fo foi visto pelos membros da BR conversando com Digão depois da
corrida Pague Menos,42 - ele parecia se enquadrar em categorias diversas de classificação
38
Embora ali, elas também evangelizassem Sene com palavras, já que dialogavam ao longo do treino.
39
Neste sentido, a experiência de Sene pode ser comparada a de Geertz (1989), onde o mesmo ao correr com os
nativos de Bali, passa a ser reconhecidos por eles. A diferença aqui é que no caso de Sene a corrida com os
nativos foi algo proposital, enquanto na experiência de Geertz soa como involuntária, já que se estava correndo
da polícia, e não como uma pratica esportivo-religiosa.
40
FAVRET-SAADA, 1990 a, p. 9.
41
Como na peça de teatro do ministério Em Chamas, evangelismos em praça pública e Beira-Mar Norte, corrida
Pague Menos, célula UFSC e nos próprios cultos.
42
Ganhar outro status ao ser visto conversando com lideranças da BDN aponta para mais uma de suas
características, a obediência aos líderes.
270
presente na BDN, e dentre estas a de resgatado, como afirmou uma runner no evangelismo da
praça Santos Dumont.
2.Route
43
Como aponta Maranhão Fo 2012a, 2012b e em A Bola de Neve avança, o Diabo retrocede: preparando davis
para a batalha e o domínio através de um Marketing de Guerra Santa – no prelo – a batalha espiritual é uma das
principais características da BDN. A alusão a expressões relacionada aos domínios da guerra é uma constante
entre os fiéis de tal agência religiosa. Como exemplo, podemos citar um dos ministérios que compõe a BDN, o
ATACAR. As músicas figuram como um dos principais meios de guerrear. A expressão Senhor dos Exércitos
usada no texto faz alusão ao título de uma das músicas cantadas com mais frequência nos cultos que Maranhão
Fo e Sene assistiram.
44
Palavra proferida por Léo durante a 2a célula da UFSC.
45
Rina é formado em propaganda e marketing, pós-graduado em administração e também surfista.
46
Em relação à inferência de que o público da BDN é formado em sua maioria por pessoas de classe econômica
alta e média, isto é muito bem identificado em unidades praianas como Florianópolis e Balneário Camboriú (SC).
Observando a BDN Floripa em 2012, Maranhão F0 e Sene perceberam que o público continua formado por
“jovens” de classe média e média alta, o que pode ser entendido através de marcadores como vestimentas,
adornos e carros estacionados. Outro indicador está em alguns dos serviços oferecidos antes, durante e depois dos
cultos: além das tradicionais Cantina e Lojinha da Bola, a nova unidade conta com o Filadélfia Sushi Bar. Na
igreja-sede em São Paulo (e em outras unidades), por sua maior heterogeneidade, fluxo de visitantes e efeitos da
exposição midiática secular, é possível que a informação relativa à classe econômica da maioria dos fiéis possa
vir a ser mais relativizada. Novos estudos poderão suprir o entendimento sobre mudanças no perfil da BDN,
agência em processo de resignificação de sua expressão identitária religiosa. Para mais detalhes, ver Maranhão Fo
2010a.
271
O contexto de geração no qual se insere a BDN aponta para uma “juvenilização da fé”, já que
47
seu público é formado principalmente por sujeitos de 12 a 35 anos. Com a midiatização
sofrida pela agência, seu público ampliou e tornou-se mais heterogêneo, ainda que houvesse
um esforço da mesma em reverberar uma identidade religiosa de “igreja de surfistas”. 48 As
diferentes unidades da BDN podem ter públicos-alvo distintos. A sede da BDN Floripa, por
exemplo, tem intensificado os esforços para conquistar os estudantes da UFSC (Universidade
Federal de Santa Catarina). Este é seu nicho principal, seguido de surfistas/skatistas,
corredores e outros tipos de atletas.
Para o entendimento de como a BDN vê seu surgimento, como propaga sua identidade e
discursos, Sene e Maranhão Fo enfatizam na importância da maior ferramenta midiática da
agência, o sítio www.boladenevechurch.com.br. Segundo a seção Quem somos, a gestação da
BDN Church se deu em 1993, com reuniões organizadas por Seixas após problemas de saúde
e “experiência pessoal com Deus”:
A história da Igreja Bola de Neve em São Paulo confunde-se um pouco com a própria
história do Apóstolo Rina. Depois de uma hepatite, dores muito fortes e uma experiência
pessoal com Deus, nascia uma reunião descompromissada, mas que precisava de um
nome. Não demorou para aparecer um que expressasse a realização do sonho, uma Bola de
Neve, que começando pequenininha, vira uma avalanche. Isso foi em Dezembro de 1993. A
Bola de Neve, na direção de Deus, ia rolando e cumprindo seu papel.49
Alguns autores, entretanto, discordam desta narrativa. Segundo Aline Durães e Eduardo
Refkalefsky, a conversão se deu “em 1992, depois de um conturbado carnaval, que culmina
em uma overdose” onde o “surfista paulista Rinaldo Pereira fica internado em um hospital”.
Para eles, “a experiência traumática levou Rinaldo a associar a cura à ajuda divina e a utilizar
o tempo de repouso para ler a Bíblia e se converter ao cristianismo.”50
Para Claiton Cesar e Marcos Stefano, “Rinaldo Seixas teria contado que, em 1992, após uma
overdose de cocaína, agravada por uma crise de hepatite C, ficou cego e paralisado por alguns
47
Segundo Maranhão Fo 2012 a, o conceito de juventude ultrapassa a idade cronológica e as pessoas podem
simplesmente sentir-se jovens.
48
MARANHÃO Fº, 2009, 2010 a, 2012a.
49
Quem Somos. Bola de Neve Church. Disponível em < www.boladene.com.br/index2.php?secao=quem>
Acesso em: 10 ago. 2012.
50
REFKALEFSKY; DURÃES, 2007.
272
instantes.” De acordo com eles, Rinaldo “pensou que fosse morrer, mas, após uma oração em
que entregou sua vida ao Senhor, recuperou-se milagrosamente,” passando a frequentar a
Renascer e montando “um ministério para alcançar jovens praticantes de esportes radicais.” 51
Tendo ou não havido overdose, o que faz o sítio é apontar para a história conjunta da igreja e
de seu fundador. Um momento original é assim construído, configurando um mito fundador a
este respeito, e a partir da construção deste momento de fundação, a BDN cria uma
representação identitária sobre si mesma, associada à superação e experiências pessoais com
Deus.52
Talvez tenha sido a partir deste momento fundante que a BDN tenha constituído algumas das
características mais relevantes de sua identidade religiosa: a cura e a batalha espiritual. Para
esta agência, considerada pelos próprios nativos como “cheia de fogo”, “avivada”,
“neopentecostal” e “onde o poder de Deus se manifesta através de libertações”, a cura é
associada diretamente à batalha e a fé, e sinal de que o curado está em conexão com o
sagrado, é obediente à Palavra e aos líderes da agência e tem a revelação de Deus.
Teologias da batalha espiritual, domínio, cura, saúde perfeita e prosperidade são referentes
discursivos importantes da BDN, sofrendo processos contínuos de (re) significação e (re)
apropriação por seu marketing de guerra santa em trânsito. 53 Este, também é observado em
relação aos eventos esportivos da agência. Se em 2010 Maranhão Fº escreveu que os eventos
organizados pelo ministério Sports enfatizavam nome, logotipo e slogan54 da BDN, em 2012,
Sene e Maranhão Fº observaram ora uma discrição em eventos, outras uma ênfase na
“marca”. Como exemplo do primeiro, podemos citar a competição de skate – realizada no dia
1o de Setembro – nos half pipe localizados na Avenida Beira Mar, quase em frente ao
Shopping Iguatemi, próxima da UFSC e de sua nova sede, na Trindade. No evento, não havia
faixas, cartazes ou propagandas da BDN, ainda que líderes tenham orado pelo mesmo e feito
51
CESAR; STEFANO, 2009. A nova cara do Evangelho. Revista Eclésia. Edição 114. Disponível em:
<www.eclesia.com.br/revista.asp?edicao_num=114>. Acesso em: 10 jan. 2009.
52
A expressão mito fundador percorre a obra de Marilena Chauí Mito fundador e sociedade autoritária, 2000. De
maneira semelhante ao que faz a BDN, conforme explica Chauí a respeito do suposto achamento ou descoberta
do Brasil e da América, o que existiu foi a criação de um país e de um continente pelos europeus, ou seja, no
caso do Brasil, houve uma invenção marcada pela ideia de “terra abençoada por Deus”. Para Marilena Chauí, o
mito fundador é constituído de “invenções históricas e construções culturais”. CHAUÍ, 2000, p. 35. A obra
referida é Mito fundador e sociedade autoritária.
53
MARANHÃO Fº, no prelo.
54
O logotipo, de forma arredondada como convém a uma bola de neve, traz o nome da agência, com o
anglicismo Church (igreja) destacado abaixo e seguido do slogan In Jesus we trust (em Jesus nós cremos),
remetendo ao slogan dos dólares: In God we trust (em Deus nós cremos).
273
breve exposição doutrinária. Tal evento segue o modo como os acontecimentos esportivos são
realizados pela BDN São Paulo (Sede). O In Time Skate Conquest, que em sua edição de
2012 ofereceu premiação de R$ 20 mil ao melhor skatista, mostra o esforço identitário da
BDN em afirmar-se como “igreja de jovens esportistas”. Entrando no site da InTime, não há
referências diretas à agência. Contudo, o InTime é um novo ministério da BDN,
configurando-se como novo serviço de organização e divulgação de eventos do marketing
esportivo-religioso da BDN.55 Já como exemplo do segundo, como mostraremos mais adiante,
podemos citar o BR.56
De início, o BR não era um ministério, porém, com o grupo de adeptos correndo para Jesus
aumentando, o apóstolo Rina percebeu o potencial de crescimento do mesmo e anunciou que
este seria um ministério que iria evangelizar com os pés, que iria pregar sem palavras. Como
atesta Janaína, “a gente não precisa falar, a gente corre”. Mas, “devemos pregar sempre, se
preciso, usando palavras.”
A partir de então o BR tal qual uma bola de neve se espalhou por outras cidades onde há
BDN, como: Balneário Camboriú, Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, São Cetano do Sul, São
Bernardo, Santo André, Ribeirão Preto, Campinas, Atibaia, São José do Rio Preto, Brasília,
55
InTime. Disponível em: <www.intimeculture.com/gallery.asp>. Acesso em: 12 ago. 2012. Já conversamos
com os líderes destes ministérios, com o intuito de pensarmos futuro artigo relacionando os mesmos.
56
Sene e Maranhão Fo perceberam, em 2012, diversos novos produtos (serviços) da BDN Floripa. Dentre eles –
além do BR e da Célula UFSC, destacam-se o ministério Bola Remo, Em Chamas (de teatro), e Moto-Clube da
Bola. Futuramente, Maranhão Fo e Sene passarão a frequentar os mesmos com o intuito de perceber a inter-
relação entre os mesmos.
274
Belo Horizonte, João Pessoa, Rio de Janeiro, Niterói e Vila Velha. Sobre o crescimento do
ministério, Janaína argumentou que “se metade das Bola de Neve do país tiver um Bola
Running com 10 corredores, em breve teremos o maior contingente de corredores por grupo
do Brasil”.57 Mas, como é possível evangelizar com os pés? Se atentarmos para a forma como
o grupo se estrutura, bem como articula seus treinos e participa de competições, a resposta à
essa pergunta se torna mais clara.
O grupo se divide hierarquicamente em: líder espiritual, líder, e demais membros, sendo que
todos são corredores. O líder espiritual é o presbítero Boka, que tem como função
supervisionar o andamento do ministério, assim como gerenciar a fan page do grupo.58 Nos
cargos de lideranças subordinados ao líder espiritual, estão Kaue e Fernanda, que são
responsáveis pela organização material das coisas, como, fazer inscrição dos grupos em
corridas.
O treino acontece duas vezes por semana, aos sábados e quartas-feiras, sendo aos sábados
matutino, e as quartas-feira, noturno. O último é também conhecido como Bola Night Run.
Ambos têm como locus a pista de corrida da avenida Beira-Mar Norte, e como ponto de
encontro o Trapiche, local da avenida que aparentemente tem a maior concentração de
esportistas, já que é um dos únicos pontos onde estacionamento, lanchonete -
consequentemente banheiros – e aparelhos de ginástica se encontram em proximidade, além
de ser um ponto nobre da avenida, próximo ao Shopping Beira Mar. Os treinos duram entre
61
uma e duas horas. O matutino se inicia 08h30, enquanto o noturno, 19h30. É importante
57
Conversa informal após a prova da Corrida Pague Menos.
58
Não podemos afirmar com toda convicção que é somente Boka quem administra a fun page. As lideranças do
BR são subordinadas a outras – a do Pr. Digão, bem como do apóstolo Rina.
59
No ano de 2013, o grupo masculino do BR competiu no Volta à Ilha, e ainda, Pr. Digão e Boka participaram
de uma corrida no deserto do Atacama.
60
Nas competições, os grupos costumam ser divididos por gênero, idade e percurso, por exemplo. O que é uma
prerrogativa das mesmas. Em relação ao BR existe uma dicotomia de gênero que não tem necessariamente a ver
com o preparo físico. São questões de gênero. A dicotomia de gênero é reiterada, visto que homens e mulheres
treinam em separado. Embora nem todos sempre corram em grupos, há os que correm em grupo e os que correm
separados. Já no tocante a idade não ocorre divisão semelhante a feita nas competições..
61
Durante o mês que Maranhão Fo e Sene participaram dos treinos, perceberam que as quartas-feiras tem mais
corredores que os sábados.
275
destacar que a maior parte dos corredores correm com a camiseta-uniforme do BR, e aqueles
que não a têm, geralmente correm com camisetas referenciando a BDN 62.
Após a oração os alongamentos são iniciados, durando um curto período de tempo, no qual
são alongados braços, cabeça e perna. Até então todos estão juntos. Em seguida, as pessoas
que vão correr ficam próximas uma das outras, assim como as pessoas que vão só andar, ou
que vão fazer revezamentos entre caminhar e trotear. No momento do breve aquecimento
62
No último treino do BR, Maurício explicou que tem intenção de mandar confeccionar uniformes em amarelo e
preto para os membros que participarem de corridas, como forma de maior divulgação do BRF.
63
Corrida Pague Menos63 – 25/11/2012. Créditos: Talita Sene.
64
Durante praticamente todos os treinos frequentados por Sene e Maranhão Fo, foi Andrea quem deu as
coordenadas para o grupo e fez as orações. E quando alguém tinha dúvidas, era a ela que recorriam. Porém,
quando perguntaram para Maurício a função de Andrea no grupo, o mesmo respondeu que ela não ocupava
nenhum cargo de liderança, e que era só professora de educação física.
65
Narrativa criada por Maranhão Fº, fundamentado em sua experiência como ex-líder do ministério de futebol
society entre 2005 e 2006 e em escuta compartilhada com Sene de treinamentos da BRF em novembro de 2012.
276
todos vão troteando para o lado esquerdo da Beira Mar – sentido ponte Hercílio Luz –, por
cerca de 100 metros. Em seguida, cada pequeno grupo dispara em seu próprio ritmo para o
lado oposto, se distanciando um do outro. O grupo de maior preparo físico corre geralmente 8
km, e o de menor, caminha, ou revesa caminhada e corrida por 1 km. As pessoas são livres
para escolher a quilometragem, bem como a velocidade que querem correr. Se os grupos e as
pessoas pertencentes aos mesmos saem juntas, elas chegam em separado, principalmente os
homens, que fazem percursos mais longos. As pessoas que chegam antes ao ponto de chegada
ficam esperando as outras, socializando durante este tempo. As conversas sempre giram em
torno de assuntos da BDN. Ninguém vai embora até todos chegarem para fazer a oração final.
Quando todos chegam, a oração é feita em conjunto, e tem os mesmos moldes da oração
66
inicial, adicionando a ela o agradecimento por todos terem chegado bem. Depois disso, as
pessoas vão para casa.
Toda – ou quase toda – última quarta-feira do mês eles colocam uma tenda próxima ao
Trapiche, na qual o grupo de gospel reggae IDE se apresenta. Quando participam de
competições, a tenda também é armada – porém sem os músicos –, e todos vão devidamente
uniformizados com a camiseta do BR.67 Antes e depois da corrida, também oram. Além disso,
as mesmas contam com um fotográfo oficial da BDN.
O que os difere de um grupo de corrida que não faz parte de uma agência evangélica, a não
ser pelo momento da oração? Porque eles evangelizariam com os pés, se para os cristãos a
palavra é prerrogativa básica para ganhar fiéis para Jesus?
Eu acho que a gente evangeliza calado por ter o In Jesus we trust em nossa camiseta. Assim
já está sendo conhecido né. No Mountain Do, por exemplo, teve também os fotógrafos do
Bola Running que tiraram fotos. As pessoas de outras equipes às vezes entram no Facebook,
vêem as fotos e se interessam em conhecer a igreja. Isso gera a interação também, né? Então
a gente evangeliza calado, mas os outros corredores sabem que é uma equipe cristã de uma
igreja evangélica.68
66
Sene e Maranhão Fo nunca viram ninguém se machucar ao longo dos treinos, então não sabem como seria feita
a oração caso isso acontecesse.
67
A tenda foi armada em ambas as competições/corridas que fomos observar – Pague Menos e Corrida das
mulheres, esta direcionada às mulheres da igreja. Vimos a tenda também nas fotos de outras corridas, porém não
sabemos se ela é armada de fato em todas as corridas.
68
Entrevista com Mônica, no dia 25/11/2012.
277
Correr com a camiseta-uniforme do BR é então a principal forma de evangelizar com os pés,
calado. Ao estar com o slogan in Jesus we trust em destaque no peito e nas costas, eles já
estão atestando a presença de Jesus para aqueles que desconhecem a Palavra. Pois, como
afirma Janaína,
Além do uso da camiseta, alguns corredores da BDN, usam táticas gestuais para mostrarem
para quem estão correndo. Na corrida observada por Sene e Maranhão F o, uma das
corredoras, ao perceber que seria fotografada enquanto corria, apontou para o slogan da
BDN.70 Outra, ao chegar no ponto final da corrida, fez gestos apontando para o céu.
Se o propósito dos atletas do BR é evangelizar com os pés, que lugar ocupa para estes a noção
de competição, de vitória?
Para os corredores do BR parece ser mais importante vencer a si mesmo, ou seja, se superar,
do que vencer outros competidores, embora a vitória de certa forma importe sim, afinal,
colocaria em evidência a agencia religiosa, assim como Jesus. Como destaca Janaína:
“Competição? Tem os profissionais e tem os amadores. Muitas vezes os amadores querem
uma posição boa, mas tem aquilo de querer melhorar o seu tempo.”
69
Idem nota 62.
70
Após a corrida, Sene e um grupo de garotas da BR foram tirar fotos no estande da Medley, onde as fotografias
eram gratuitas e saiam instantaneamente. Como a foto saia tal qual aparecia em uma tela voltada para o publico,
duas corredoras tentavam se posicionar de modo que aparecessem sutilmente em fotos alheias apontando para o
slogan da BDN.
71
Atletas de Cristo é um ministério que reúne atletas profissionais de diversas modalidades esportivas
provenientes de diferentes igrejas evangélicas. O grupo surgiu em 1982 e tem como objetivo pregar o evangelho
para atletas profissionais não cristãos.
72
AGUIAR, 2011.
278
A noção de autosuperação presente entre alguns corredores do BR, quando associada com a
história da igreja, bem como com os seminários de cura e libertação parece ser um dos bons
caminhos para pensar a relação entre a cura, religião e esporte no BR, embora, não seja o
único.
***
Quando Sene e Maranhão Fo resolveram estudar a relação entre doença, esporte e cura no BR,
inspirados pelo testemunho de Maurício – onde a cura aparecia relacionada à doença física –,
imaginaram que escutariam testemunhos semelhantes, falando de lesões que foram curadas
pela fé e da eficácia da cura divina perante a biomedicina. Porém, além de escutar
testemunhos semelhantes ao do mesmo, quase sempre que questionavam os corredores sobre
a relação do ministério com a cura, os mesmos respondiam fazendo uma oposição entre
drogas e corrida cristã, enfatizando que a última tiraria as pessoas das drogas. O que eles
estavam falando sobre doença e cura quando faziam tal relação? O que eles queriam dizer
sobre droga?
Tudo ficou um pouco mais claro quando Janaína, ao falar dos propósitos do BR disse que a
corrida era um “meio não só de liberação, de promoção de cuidados saudáveis, mas também
uma forma de evangelizar e levar Jesus Cristo num ambiente onde as pessoas aparentemente
são saudáveis”. Janaína, com “aparentemente saudáveis” quis dizer de forma sutil que
“muitos atletas são consumidores e dependentes de drogas que aumentam e melhoram a
performance, o que geraria nas mesmas uma prisão”, pois “a pessoa só consegue, ou acha que
consegue chegar a determinados pontos se consumir drogas”. 73 Janaína faz uma oposição
clara entre saúde e drogas, sendo que a última aparentemente representaria o mal a ser
combatido.
Tem um pessoal - os dependentes químicos - que se voltam para o esporte. Que fazem essa
junção entre o Bola Running e o Nova Vida. No último Mountain Do já tiveram três
dependentes químicos. O que liga a saúde e um pouco também a comunhão.74
73
Entrevista com Janaína, 25/11/2012.
74
Entrevista com Mônica, 25/11/2012.
279
Uma análise sobre o conteúdo de tais falas deixa claro que tanto Janaína quanto Mônica
colocam droga em oposição à saúde, porém o que cada um percebe como droga não parece
ser exatamente a mesma coisa. Mônica a concebe como substâncias tais quais cocaína e crack,
ao passo que para Janaína drogas também são certos estimulantes hormonais. Esta
ambivalência de sentido corresponde à reflexão que aparece em Os Corpos intensivos, de
Eduardo Viana Vargas, em torno do que se entende como drogas ilegais e legais. 75
Para este, é necessário se precaver contra uma distinção natural entre drogas lícitas e ilícitas, e
reconhecer que as drogas não são somente
substâncias químicas, naturais ou sintetizadas que produzem algum tipo de alteração psíquica e
corporal, e cujo uso em nossa sociedade, é objeto de controle (caso do álcool ou tabaco) ou repressão
(caso das drogas ilícitas) por parte do Estado. Mesmo que trivial, é preciso não esquecer que drogas
76
são ainda todos os fármacos.
Nesse sentido, entra para a categoria de drogas outras substâncias tidas como lícitas, como: as
prescritas pela ordem médica “que visam produzir corpos saudáveis” – remédios - e “drogas
autoprescritas em virtude dos ideais de beleza – anoréticos -, de habilidade – esteroides e
anabolizantes -, e de estado de espírito – ansiolíticos e antidepressivos”. 77
O que Mônica concebe como droga, corresponde ao que a sociedade coloca como ilícito, ao
passo que Janaína junta à categoria de droga também algumas das substâncias tidas como
lícitas, substâncias hormonais, por exemplo. Como já dito, ambas se opõem à noção de saúde,
e neste caso, tanto física quanto espiritual. Sendo assim, quando relacionada ao consumo de
drogas – lícitas e ilícitas -, a corrida aparece como restauração e incentivo à produção de
corpos saudáveis física e espiritualmente. No primeiro caso, ela ajudaria, segundo Janaína,
“na parte de liberação da serotonina e endorfina, hormônios que suprem a necessidade da
droga, ou daquilo o qual a pessoa tinha uma dificuldade”, enquanto no segundo, “do princípio
da restauração espiritual” que livra de prisões e cadeias “que impedem que as pessoas atinjam
75
VARGAS, 1998. Vargas propõe analisar o problema do consume de drogas – lícitas ou ilícitas – sob uma ótica
epistemologicamente positiva, não recriminando-as, nem fazendo sua apologia, sim fazendo um deslocamento de
perspectivas, onde fosse possível “tanto avaliar a ‘doença’ ou a droga sob o ponto de vista da ‘saúde’, quanto
avaliar a ‘saúde’ do ponto de vista da ‘doença’ ou da droga”. Segundo o autor, essa mobilidade é essencial para
que se permita fazer a crítica da ‘doença’ ou da droga através da ‘saúde’ e a crítica da ‘saúde’ através da
‘doença’ e da droga, em nome, diríamos [...] nem da ‘doença’ e das drogas paramedicamentosas ou não, nem da
saúde e das drogas medicamentosas, mas de uma ‘grande saúde’ sem todas essas ‘drogas’”.
76
VARGAS, 1998, p.122.
77
VARGAS, 1998, p. 123.
280
seus objetivos e que as pessoas cumpram aquilo que Deus a chamou para cumprir”. A relação
entre cura e corrida mostra que “tem coisas que precisa lidar não somente no campo físico,
mas também no campo espiritual”.
Na relação estabelecida entre corrida, doença, cura e saúde exposta acima, a corrida aparece
como um meio de cura, embora o processo de curar muitas vezes não se inicie
necessariamente na corrida, mas sim, no ministério Nova Vida. Mas, a relação do BR com a
cura pode também ser entendida como forma de contra-dádiva do sujeito curado. O
testemunho de Maurício, apresentado abaixo, exemplifica tal relação:
Dou Glórias a Deus todos os dias, pois hoje corro, mas nem sempre foi assim.
Em 2002 fui diagnosticado com um problema cardíaco irreversível, que me impediria para
o resto da vida de praticar esportes de explosão, como corridas. Em 2008 conheci Jesus,
que veio a se tornar meu Único e suficiente Senhor e Salvador. Um dia, pela misericórdia
d’Ele, recebi uma palavra de cura liberada, em que foi profetizado que meu coração estaria
curado. Duas semanas depois, sem perceber, comecei a praticar esportes normalmente... até
que resolvi ir ao médico, crendo que estava curado, mas queria a confirmação de um
profissional da área medica. Fiz todos os exames e o médico me informou que meu coração
era como um coração de um menino e que eu nunca poderia ter tido um problema desses e
ter me curado. Ele não acreditou quando eu disse que tinha essa doença, mas eu lhe falei
que sozinho não poderia ter sido curado, mas que Jesus Cristo estava na minha vida e havia
me curado! Hoje, para honra e gloria de Deus, corro com meus irmãos do Bola Running,
louvando a esse Deus porque Ele é bom, misericordioso e me devolveu a saúde e minha
qualidade de vida!!! Acredite, Deus quer te ver sorrir! Deus te abençoe! 78
No caso de Maurício, a corrida opera como contra-dádiva à cura divina, podendo assim ser
entendida pela teoria da reciprocidade de Marcel Mauss: 79 Deus deu a cura a Maurício –
dádiva –, que hoje corre no BR para honrar e glorificar o nome do Senhor – contra-dádiva.
Assim a dádiva – cura – instaura a aliança de Maurício com Deus.
Uma reflexão sobre os propósitos do BR aponta para o fato de que o ciclo da reciprocidade
não para por aí. Maurício, como corredor evangélico, tem o propósito de agradecer ao Senhor
evangelizando com os pés. Neste momento, ele pode agraciar outras pessoas convidando-as
para conhecer Jesus, dando a possibilidade das mesmas serem curadas – seja física ou
78
Testemunho de Maurício recebido por e-mail no dia 27/11/2012.
79
MAUSS, 2004.
281
espiritualmente –, estendendo a rede de alianças para outras pessoas. Aqueles que receberem
essas novas dádivas, consequentemente, poderão manifestar a vontade de agradecê-las,
porém, não necessariamente sob a forma de corrida. 80 Como Mariana afirmou para Sene,
“quando se recebe a graça, você quer passá-la para frente imediatamente”.81 Tudo parece
operar como a última corrida vista por Sene e Maranhão F o, ou seja, uma corrida de
revezamento.82
As relações apontadas por Sene e Maranhão F o entre doença, cura, esporte e saúde no BR,
remetem a própria história de origem da BDN – que está interligada à história de Rina. Como
destacado na primeira parte de route, a BDN é uma igreja evangélica que tem como principais
características a cura e a batalha espiritual, sendo a cura, vitória desta batalha contra forças
malignas. Apóstolo Rina, vence o mal – doença - após experiência de contato com Deus,
superando-a e recebendo a cura. Quando curado, dá inicio às reuniões da Bola de Neve, que a
princípio era um ministério destinado a jovens esportistas – sendo boa parte destes adictos ou
ex-adictos. Aparecem na história do BR todos os elementos presentes na origem da BDN:
drogas, esporte, doença, saúde, cura e superação e batalha, e todos, mais uma vez interligados,
como na economia do dom. 83 Para usar a metáfora da própria agência evangélica, tudo evoca
uma bola de neve.84
Ao longo do texto, Sene e Maranhão Fo tiveram como intuito apontar para a relação entre
esporte, doença, saúde e cura no BR, e mostrar como a corrida opera a partir de dois circuitos
dentro da lógica de cura da BDN.
80
Mariana, por exemplo, agradece a Deus cantando por ter ganhado uma nova voz após uma cirurgia.
81
Mariana em conversa informal com Sene no dia 07/12/2012, durante o reveza UFSC.
82
A última corrida assistida por Sene e Maranhão Fo foi o reveza UFSC, no dia 07/12/2012. Os corredores do
BR não participaram da prova, porém treinaram ao redor da UFSC. Neste dia, o BDN se fez presenta na UFSC
não só pelo BR, mas também, e principalmente, pela banda IDE, que fez um show a convite dos organizadores
do reveza UFSC, em uma das partes do percurso da corrida durante todo o evento. A banda tem acompanhado os
corredores em grande parte dos eventos que os mesmos participam, assim como tem acompanhado os eventos da
célula UFSC. Futuramente, Maranhão Fo e Sene como intuito observar a relação que um grupo tem com o outro.
83
MAUSS, 2004.
84
Entre as experiências de Rina e Maurício, outras se configuram como mediadoras, midiatizadoras e
agenciadoras da consolidação da agência, como os processos de cura de Denise Seixas – esposa de Rina, líder do
ministério das Mulheres do Bola, do ministério de Louvor e Adoração, líder dos conjuntos Tribo de Louvor e
Ruth`s – , e Rodolfo Abrantes – ex-cantor dos Raimundos, convertido após episódio de cura, e atualmente líder e
missionário da BDN.
282
O primeiro, como meio da cura, onde através da corrida contra a droga – bem contra o mal –
a cura representa a superação, a busca por corpos saudáveis física e espiritualmente. Já no
segundo, a corrida aparece como contra-dádiva da cura recebida, gerando um sistema de
prestações totais85 que vai criando novas alianças, não precisando necessariamente voltar sob
forma de corrida. Neste sentido, todos parecem ser partes das sementes plantas há tempos
atrás por irmãos, possibilitando que a geração de Samuel se levante em todo lugar.86
Maranhão Fo e Sene apontam que a economia do dom que figura no BR parece remontar à
própria história de origem da BDN, tornando o BR como parte do sistema de prestações totais
gerados pela cura de Rina. Desta forma, falar de cura em contextos religiosos é falar da mesma
como “uma realidade construída social e culturalmente”, o que significa, “explorar a
perspectiva dos atores na análise do processo terapêutico” não só através da “compreensão da
dinâmica interna do ritual”, mas também “a partir de um contexto mais amplo de onde se
desenvolve a experiência da doença e cura”.87
A cura proporcionada pela biomedicina, no caso da BR, não parece estar em oposição à cura
através da religiosidade. O que ocorre é a visão de um meio de cura completando o outro,
onde as fronteiras entre natureza e cultura – biológico e cultural -, são derretidas, quase
líquidas. Como afirma Janaína:
A gente não pode se desfazer também das leis físicas. A medicina está ai para isso. Eu acho
que é tudo muito simples: Até onde a mão do homem chega, Deus não intervém, a partir de
onde a mão do homem não consegue mais agir, é o momento onde o sobrenatural, aquilo
que excede o natural intervém. Os médicos existem, assim como existem os antropólogos,
os historiadores, os professores de educação física, senão viveríamos todos como querubins
na terra, mas não é o papel, senão a gente não estaria aqui, estaria lá.
85
MAUSS, 2004.
86
Geração de Samuel http://letras.mus.br/fernandinho/565530/#selecoes/565530/
87
RABELO, 1994, p. 54-55.
283
Novos percursos, com outras saídas e chegadas em campo, se farão necessários – neste texto,
os pesquisadores tiveram sua entrada em campo representada através de treinamentos
distintos: Maranhão Fº foi participante-observante e observador-participante, e escreveu
sobre a agência concomitante e posteriormente. Sene recebeu seu treinamento inicial através
de alguns dos artigos deste. Um treino posterior apresentou-se a partir das “sementes plantadas
há tempos atrás” – aproximadamente três meses – pelos runners que acolheram os
pesquisadores, também no intuito de evangelizar um e reconduzir a fé do outro. A ideia de
uma geração de Samuel que se levanta em todo lugar foi demonstrada nesta última etapa do
campo de Sene e Maranhão Fº: a UFSC foi o território ocupado por uma agência que tem
como características consideráveis não só a cura e libertação, como a batalha e o domínio
espirituais. A entrada do ministério de evangelismo IDE na UFSC articulou os dois campos de
pesquisa de Maranhão Fº e Sene, aqui relatados: a Célula UFSC e o Bola Running. E
representou o fim de uma etapa, a conclusão deste trabalho de campo. Ao menos, até que a
próxima corrida se inicie.
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