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Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº (org).

(Re)conhecendo o sagrado
Reflexões teórico-metodológicas
dos estudos de religiões e religiosidades

Adone Agnolin

Carlos Alberto Steil e Rodrigo Toniol

Cristiana Tramonte

Edgard Leite

Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº e Talita Sene

Emerson José Sena da Silveira

Franco Delatorre

Frederico Santos dos Santos

Ítalo Domingos Santirocchi

Lyndon de Araújo Santos

Mundicarmo Ferretti

Nicola Gasbarro

Patrícia Carla de Melo Martins

Sergio Figueiredo Ferretti

Solange Ramos de Andrade

1
Maranhão Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (org.).
2013
(Re)conhecendo o sagrado. Reflexões teórico-
metodológicas dos estudos de religiões e religiosidades /
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº (org.).
São Paulo: Fonte Editorial, 2013, 289 p.

1. Teoria dos estudos de religiões e religiosidades.


2. Metodologia dos estudos de religiões e
religiosidades.
I. Maranhão Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque
(org.). II. Título.

ISBN: 9788566480672

2
Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . 05
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº

História das religiões e das religiosidades: uma breve introdução . . . 09


Solange Ramos de Andrade

História das Religiões: teoria e método . . . . . . . 29


Adone Agnolin

Religione e/o religioni? La sfida dell'antropologia e della comparazione


storico-religiosa . . . . . . . . . . 73
Nicola Gasbarro

Teoria(s) e método(s) em ciências da(s) religião(ões)? Notas antropológicas sobre


caminhos possíveis . . . . . . . . . . 93
Emerson José Sena da Silveira

Historiografia e Teoria da História da Igreja Católica no Brasil Império . . 115


Ítalo Domingos Santirocchi

Maquiavel, pluralismo, religião . . . . . . . . 141


Edgard Leite

A trajetória das Ciências Sociais da Religião no Brasil e as diferentes perspectivas sobre


o religioso . . . . . . . . . . . 155
Carlos Alberto Steil e Rodrigo Toniol

Religião e cultura: perspectiva das Ciências Sociais . . . . . 175


Patrícia Carla de Melo Martins
3
A religião no mundo do trabalho: notas teóricas de uma pesquisa histórica . . 189
Lyndon de Araújo Santos

Religiões afro-brasileiras e interdisciplinaridade: um desafio metodológico . . 207


Cristiana Tramonte

Conhecimento científico e conhecimento religioso nas tradições afro-brasileiras . 212


Sergio Figueiredo Ferretti

Relação sujeito/objeto na pesquisa de religião afro-brasileira . . . . 227


Mundicarmo Ferretti

Éticas em campo: breves reflexões sobre dilemas éticos entre os campos legislativo e
etnográfico . . . . . . . . . . . 239
Franco Delatorre

O exercício etnográfico no estudo das religiões: um olhar de dentro . . . 253


Frederico Santos dos Santos

Correndo prá Jesus à beira-mar: esporte, religiosidade e cura na Bola de Neve Church.
. . . . . . . . . . . . 261
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº e Talita Sene

4
Apresentação

Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº1

No primeiro capítulo deste livro Solange Ramos de Andrade pergunta: por que estudar
religiões? Certamente, há muitos motivos para tal, dentre estes o fato de estarmos imersos em
experiências religiosas – nossas e/ou dos/as outros/as. Muitos exemplos contemporâneos
podem ser elencados, como as “guerras santas” combatidas inclusive no âmbito do marketing,
as múltiplas formas de (in)tolerâncias religiosas e o crescimento das bancadas religiosas no
Congresso, especialmente a formada por políticos/as que se declaram evangélicos/as.

Temas como este fazem florescer a cada dia novos trabalhos que procuram dar conta de
atividades de instituições religiosas e de múltiplos agenciamentos subjetivos em busca de
respostas a inquietações e por sentidos de pertença. As religiões e religiosidades,
definitivamente, estão em pauta. Este livro nasceu da percepção da necessidade de (mais)
análises que apresentem perspectivas teórico-metodológicas que auxiliem novas pesquisas e
análises sobre as crenças e sacralidades.

Os textos selecionados foram escritos por pessoas autodenominadas historiadores,


antropólogos, cientistas sociais e da religião, mas transbordam de transdisciplinaridade. Ao
lado de autores/as considerados referências em tais estudos, foram agregados textos de
pesquisadores/as com um percurso biográfico menos conhecido, mas que apresentam análises
inovadoras e igualmente instigantes.

Os três primeiros textos contemplam a História das Religiões – com alguma ênfase na Escola
Italiana das Religiões. Solange Ramos de Andrade apresenta um histórico sobre estes estudos
e algumas de suas possibilidades de abordagem a partir de quatro autores: De Certeau,
Bourdieu, Chartier e Eliade. Adone Agnolin traceja a geneologia da História das Religiões e
contempla as relações entre religião, história e antropologia. Nicola Gasbarro, precursor desta
Escola, contribui com o texto Religione e/o religioni? La sfida dell'antropologia e della
comparazione storico-religiosa, em que diferencia religião de religiões através de uma
1
Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em História pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC), especialista em Marketing e Comunicação Social pela Fundação Cásper
Líbero, graduado em História pela USP. Contato: edumeinberg@gmail.com.

5
perspectiva teórico-humanista associada à prática antropológica e da comparação histórico-
religiosa.

Émerson José Sena da Silveira apresenta algumas das tensões entre a visão monista da
ciência da religião e a pluralista das ciências das religiões, em meio à riqueza da alteridade
metodológica e epistêmica e o descompasso entre olhares/lugares frente à dispersão da
autoridade para interpretar os fenômenos. Ítalo Domingos Santirocchi faz uma anatomia sobre
a historiografia e teoria da história do catolicismo no Império, apontando para a
interdisciplinaridade, enquanto Edgard Leite apresenta os humanistas italianos – notadamente
Maquiavel – como provedores de substratos para análises modernas sobre o fenômeno
religioso.

Carlos Alberto Steil e Rodrigo Toniol identificam parte da produção das ciências sociais da
religião no Brasil, demarcando traços comuns às pesquisas de distintos períodos e apontando
a horizontes interpretativos a partir de conceitos como tradição, modernidade, sincretismo,
campo religioso e rede. Patrícia Carla de Melo Martins desenvolve sua argumentação a partir
da análise de diferentes autores sobre o mito e o rito como imprescindíveis à prática religiosa,
entendendo seu papel aglutinador nas relações humanas como propiciadores da promoção de
significados e valores subjetivos.

Lyndon de Araújo Santos faz apontamentos teóricos e metodológicos sobre a religião no


mundo da produção, objetivando verificar a presença do protestantismo nas relações sociais e
étnicas, de trabalho e de gênero numa fábrica de chapéus no Rio de Janeiro (1868-1965).
Cristiana Tramonte mostra a interdisciplinaridade como experiência em elaboração,
fundamental às pesquisas de religiões e religiosidades.

Sergio Figueiredo Ferretti comenta acerca de procedimentos adotados na pesquisa de campo


sobre religiões afro-brasileiras, discutindo problemas como a necessidade ou não de iniciação
religiosa do/a pesquisador/a, os conceitos de observação participante e de participação
observante e a participação do/a pesquisador em segredos do culto. Mundicarmo Ferretti
identifica que ao relacionar-se com as pessoas no campo, o/a pesquisador/a provoca nelas
uma impressão e uma expectativa que podem decidir o que poderá ou não ser observado, e
que a observação participante prolongada, se consegue em parte resolver o problema, por
outro lado aumenta o risco de “envolvimento” do/a pesquisador/a com seu objeto de pesquisa.

6
Franco Delatorre problematiza as pesquisas de campo com espíritos, sujeitos de pesquisa não
descritos pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, enquanto Frederico Santos dos
Santos reflete sobre os modos como o/a etnógrafo/a constrói sua metodologia quando se é um
iniciado na religião. No último capítulo, Talita Sene e eu abordamos a relação esporte,
religiosidade e cura na Bola de Neve Church e ensaiamos algumas notas sobre os
procedimentos metodológicos de uma pesquisa entre autores, sinalizando as dificuldades de
pesquisar uma agência evangélica em dupla quando os pesquisadores tem diferentes relações
com esta.

Este é um livro introdutório, de caráter inconclusivo. Muito poderia ter sido abordado. Mas
esperamos que esta obra possa contribuir para novos diálogos acerca dos estudos de religiões
e religiosidades no Brasil. Os/as autores/as desta obra desejam a todas/os uma excelente
leitura.

São Paulo, outubro de 2013.

7
8
História das religiões e das religiosidades: uma breve
introdução

Solange Ramos de Andrade1

1. Introdução

Como todo objeto a ser analisado necessita de um recorte preciso, neste capítulo abordo
alguns aspectos concernentes ao estatuto dos estudos históricos em religiões e religiosidades.
Em primeiro lugar, situo a importância da abordagem que realizo, conceituo os termos
complexos e escorregadios de religião e religiosidade e traço um breve histórico da disciplina.
Para apresentar possibilidades de trabalho com a temática, apresento quatro autores que
considero essenciais na minha trajetória de pesquisas na área. Vale lembrar que esta é apenas
uma das inúmeras possibilidades de análise e não tem a pretensão de ser a mais importante.

1.1. Por que estudar religiões?

O mundo contemporâneo é moldado pelas religiões: a "guerra contra o terror”, o design


inteligente, as campanhas contra o aborto e as pesquisas com células tronco, os conflitos e as
guerras no Oriente Médio, enfim, a lista é significativa. Dificilmente passa um dia em que não
sejamos informados, pela TV, pelos jornais ou pela internet, acerca de alguma manifestação
de origem religiosa, ligada a práticas, conflitos ou identidade religiosos. Para entender o
mundo contemporâneo, bem como o passado, precisamos de uma compreensão mais
complexa da religião.2

Em todos os contextos histórico-culturais a religião é parte integrante de outros aspectos da


vida social. A religião é tanto um conjunto de ideias e crenças que as pessoas podem se
envolver como também a estrutura para suas vivências e práticas diárias. O estudo da religião
a partir da história cultural nos permite compreender como a religião pode ser um elemento

1
Solange Ramos de Andrade – Doutorado em História, Professora Associada do Curso de Graduação em
História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR).
Bolsista Produtividade em Pesquisa pela Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico/PR.
2
NYE, 2008
9
importante na análise de vários grupos sociais a partir de suas formas de sociabilidade, de
contato com a alteridade e de como esses grupos se apropriam de uma realidade que é social 3.

Em geral, a religião pode ser descrita como um sistema unificado de pensamento, sentimento
e ação que é compartilhado por um grupo e que dá a seus membros um objeto de devoção,
alguém ou alguma coisa sagrado em que acreditar, como um deus ou um conceito espiritual.

Na maioria das vezes, a religião também lida com o que poderia ser chamado de
transcendente, de sobrenatural ou de espiritual, sobre as forças e poder além do controle dos
seres humanos. Além disso, a religião trabalha de uma forma ou de outra, com a salvação.
Isso pode incluir salvar as almas dos seres humanos, quer de uma forma literal, com um céu
após a morte, como no cristianismo, ou de uma forma mais simbólica, como na obtenção de
um fim para o sofrimento como o nirvana, como em algumas religiões orientais, incluindo o
budismo.

A religião normalmente atua a partir de alguma forma de organização e de culto, bem como
por meio de ritos sagrados ou rituais, livros sagrados, um clero ou sacerdócio que administra a
religião e lugares, símbolos, e os dias que são sagrados para os crentes. Por serem
organizações instituídas, compartilham certas características comuns. Estas incluem, mas não
estão limitadas a: tradição e manutenção do sistema de crenças; utilização do mito e do
símbolo; um conceito de salvação; lugares e objetos sagrados; a ações sagradas ou rituais;
escrituras sagradas, locais de culto, experiências sagradas; códigos de comportamento ético;
um corpo de especialistas que atendem as necessidades de seus grupos.

As manifestações religiosas contribuem para a imposição dos princípios de organização da


percepção e do pensamento do mundo e, em particular, do mundo social, na medida em que
impõe um sistema de práticas e representações cuja estrutura objetivamente fundada em um
princípio de divisão política apresenta-se como a estrutura natural-sobrenatural do cosmos.4

3
CHARTIER, 2002.
4
BOURDIEU, 2007, p. 34.
10
2. Religião(ões) e religiosidade(s)

A religião se configura enquanto um conjunto de crenças e práticas que procuram dar


respostas a várias questões que o homem levanta. É a crença no sobrenatural e na estreita
relação que este tem com o mundo em que vivemos. A religiosidade, muitas vezes, é vista
como uma manifestação de crendice, supersticiosa ou distorcida da religião oficial. Aborda
desde os rituais do catolicismo popular, passando pelos cultos africanos e indígenas e a
mescla dessas manifestações.

A antropóloga Maria Jesús Buxó I Rey, descreve a religião numa perspectiva histórica como
sendo um sistema de crenças, rituais e hierarquias eclesiásticas como um conjunto de
estratégias cognitivas relativas à significação da vida e da morte 5. A religião representaria o
resultado da elaboração discursiva de uma elite institucional que estabelece as chaves
interpretativas do dogma, dominando a tecnologia da escritura, a qual outorga às suas
produções a qualidade de legado transcendental. Já a religiosidade faria referência à vitalidade
da imaginação popular, reinterpreta a leitura sacerdotal a partir de suas experiências
cotidianas, reelaborando crenças religiosas e expressões rituais próprias e espontâneas, que
mantêm vivas suas convicções e esperanças. Enquanto na religião os modos cognitivos se
manifestam principalmente em discurso escrito ou lido, na religiosidade esses se constituem,
fundamentalmente, em imagens e movimentos rituais, sem escrita e discursos institucionais.

De acordo com Rodríguez Becerra6, o fenômeno religioso é uma realidade viva que se
modifica relacionado com a economia, a política, as formas de organização da sociedade, as
mudanças ecológicas e todos os elementos que constituem a cultura. Não se pode negar a
extraordinária importância das crenças e práticas religiosas, tanto no que se refere à
manutenção como à transformação radical das estruturas humanas, psíquicas e sociais.

Para estudar a religião devemos partir do conhecimento do contexto social e cultural de onde
surge e se desenvolve; devemos dar conta dos fatos religiosos em termos da totalidade da
cultura e da sociedade em que se encontram, buscando compreendê-los como um fato total.

5
BUXÓ I REY, 2003, v II, p. 8. Maria Jeús Buxó I Rey, professora da Universidad de Barcelona, foi uma das
coordenadores de uma coleção sobre religiosidade popular, resultante do Primero Encuentro Sobre Religiosidad
Popular, promovido pela Fundación Machado del Sevilla no ano de 1989.
6
RODRIGUEZ BECERRA, 2003, v I, p. 7.
11
Para Mauro Batista7, a religiosidade é vista enquanto modo de viver a religião, de pensar a
religião, de praticar a religião. Consiste em atos, pensamentos, ações. É tudo aquilo que
expressa a religião. Já Mandianes Castro8 afirma ser a religiosidade plural e serve de elemento
identificador para os diferentes quadros sociais; de um povo, de uma nação, de uma classe
social e, de uma etnia.

Podemos, enfim, também pensar genericamente a religiosidade a partir de três aspectos: o


sacral, no qual o sagrado se manifesta no mundo e na história humana; o emocional, que é um
sedativo dos problemas diários do homem mais do que uma problematização de suas atitudes;
e o mítico, uma vez que a religiosidade se expressa por meio de mitos e por uma orientação
mítica, no sentido de que não lhe interessa tanto o real e histórico, mas o significativo em
relação ao seu próprio contexto sociocultural.

3. Breve histórico da disciplina

A História das Religiões iniciou como disciplina da mesma maneira que as demais
disciplinas: no século XIX com a organização das ciências no nível acadêmico. Foi Max
Müller que impôs a expressão “ciência das religiões” ou “ciência comparada das religiões” ao
utilizá-la no prefácio do primeiro volume de sua obra Chips from a German Worshop
(Londres, 1867).9

A primeira cátedra universitária de história das religiões foi criada em Genebra no ano de
1873; em 1876, fundaram-se quatro na Holanda. Em 1879, o Collége de France, em Paris,
criou também uma cátedra para a disciplina, seguido em 1885 pela École des Hautes Études
da Sorbonne, que organizou uma seção especial destinada às ciências religiosas. Na
Universidade Livre de Bruxelas, a cadeira,foi instituída em 1884. Em 1910, seguiu se a
Alemanha, com a primeira cátedra em Berlim, depois em Leipzig e em Bonn. Os outros
países europeus acompanharam o movimento.10

Em 1880, Vernes fundava em Paris a Révue de l’Histoire des Religions; em 1898, o dr.
Achelis publicava o Archiv für Religionswissenschaft, em Friburg Brisgau; em 1905, Wilhelm

7
BATISTA, 1984, p. 109-122.
8
MANDIANES CASTRO, 2003, p 44-54.
9
ELIADE, 1992, p. 5
10
ELIADE, 1992, p. 5.
12
Schmidt iniciava em St. Gabriel Módling, perto de Viena, a revista Anthropos, consagrada
sobretudo às religiões primitivas; em 1925 surge Studi e Materiali di Storia delle Religioni, de
R. Pettazzoni.11

Em 1900 teve lugar, em Paris, o Congresso de História das Religiões, assim denominado por
excluir dos seus trabalhos a filosofia da religião e a teologia. O oitavo congresso internacional
foi realizado em Roma, em 1955.12

Atualmente as revistas mais clássicas da disciplina são: Revue de l'Histoire des Religions
(París), History of Religions (Chicago, fundada por Mircea Eliade) e Numen (que tem como
subtitulo International Review for the History of Religions), e o foro internacional da
disciplina é a IAHR (International Association for the History of Religions).13

No século XIX, a disciplina de história das religiões representava as ideologias evolucionistas


e naturalistas que discutiram qual era o lugar de cada religião numa escala ascendente
composta por etapas a serem superadas. A nomenclatura das diversas correntes interpretativas
variava, mas envolvia o animismo, o naturalismo, o politeísmo e o monoteísmo. O embate
previa também o fim do monoteísmo e o triunfo da razão com a crescente secularização, o
predomínio do ateísmo militante e a vitória do anticlericalismo. 14

Esta perspectiva ia ao encontro de uma visão de história fundada em manuais, com uma visão
que antevia o fim da religião por estar vinculada a um processo primitivo do conhecimento
humano. O progresso científico não permitira a continuidade tanto da instituição religiosa
como da própria religião.15

Durante muito tempo, foi reservado ao historiador o trabalho com temas e documentos
voltados para o oficial. Esse oficial era vislumbrado dentro de um contexto de história
política, no sentido tradicional, ou seja, a história dos atos governamentais, tratados,
biografias de grandes nomes, dentre outros. Com o constante repensar dos objetivos da
história na sociedade, esses temas foram se alargando à medida que setores populares foram
ganhando voz e espaço para suas reivindicações. As pessoas comuns passaram a ser objeto de

11
ELIADE, 1992, p. 5.
12
ELIADE, 1992, p. 5.
13
DIEZ DE VELASCO, 2002, p. 2.
14
ALBUQUERQUE, 2007, p. 1.
15
Daí os constantes congressos, simpósios e livros escritos no final do século XX , tentando perscrutar o
“retorno do religioso”, como se o fim da religião ocorre por uma iniciativa intelectual.
13
estudo, não apenas por serem de algum lugar exótico ou por terem hábitos estranhos, mas por
serem vistas como membros de uma sociedade em constante transformação.

No Brasil, presenciamos nas últimas décadas, especialmente a partir da década de 1980, um


movimento entre os historiadores no Brasil, no sentido de efetivarem pesquisas sobre história
das religiões e das religiosidades. O que antes era objeto da sociologia, da teologia, da
filosofia e também da antropologia, passou a ser interesse da história. Notadamente aqui,
estamos nos referindo à História Nova e mais especificamente à História das Mentalidades.16

A história passou a se interessar pela maneira de viver e de se relacionar dessas pessoas


comuns, entendendo ser um campo de conhecimento dinâmico, que deveria englobar toda a
sociedade e não apenas uma parcela dela. Primeiramente, inúmeros estudos foram realizados
sobre as minorias e os marginalizados. A história das mentalidades procurava apreender
atitudes mentais e comportamentos coletivos que existissem na longa duração. Os aspectos
abordados abandonaram o caráter exclusivamente político, para compreenderem o econômico,
o social e o cultural.

Daí a importância dos estudos das religiosidades, como crenças e práticas que fogem do
caráter institucional, seja traduzindo os conteúdos institucionais para um universo no qual sua
crença faça sentido, seja negando completamente sua influencia como matriz religiosa. E este
processo também ocorreu com os historiadores das religiões, pois seus objetos foram
agregados à profusão de temas que passaram a ser objeto de estudo, tais como a história do
medo, a história da beleza, a história da feiura, dentre outros.

No caso do catolicismo, se antes, o interesse dos historiadores se detinha na história das


relações políticas e institucionais da Igreja, priorizando as relações entre Igreja e Estado, a
partir da década de 1980, surgem trabalhos que enfatizam os comportamentos e atitudes de
determinados grupos religiosos. A antropologia religiosa passa a ser o referencial para o
estudo dos rituais e das práticas religiosas. O interesse está em analisar como as pessoas se
comportam diante do fenômeno religioso.17

Diante desse quadro a história aproximou-se muito da antropologia, da sociologia, da


economia, da filosofia, da geografia, da literatura, dentre outras ciências, objetivando
encontrar instrumentos que a auxiliassem a dar conta de um objeto tão rico e variado. Nessa
16
LE GOFF & NORA, 1988; BURKE, 1992; HUNT, 1995.
17
DUPRONT, 1988
14
incursão, começou a adotar procedimentos metodológicos antes utilizados quase que
exclusivamente por algumas dessas áreas, como os relatos orais (no caso da antropologia e da
sociologia); a análise de obras literárias (no caso da linguística e da crítica literária); os dados
quantitativos (no caso da geografia e da estatística).

Na sequencia, a noção de documento histórico é alargada, pois tudo o que existe torna-se um
registro histórico, seja uma certidão de nascimento, seja um livro, seja um objeto material
(cadeira, mesa, casa), seja um depoimento, que são vistos e assumidos como documentos,
como meios de compreensão de uma determinada realidade.

Em fins dos anos 1980 e inícios da década de 1990, várias eram as possibilidades de pesquisa
sobre as religiões, tanto no que diz respeito ao próprio objeto de pesquisa, como nos tipos de
documentos utilizados. Em nossa dissertação de Mestrado, por exemplo, na pesquisa sobre a
história de um santo popular utilizamos como documentação os jornais da Região de Maracaí
e relatos orais, visando recuperar a história do santo e detectar qual o elo de identificação
entre Santo e fiel. Tanto os jornais como a história oral são de grande valia para quem
trabalha com a história religiosa recente.18

Outra maneira de se trabalhar é a análise de documentos oficiais da instituição, como


Estatutos, Relatórios Finais de Conferências, Encíclicas, entre outros. Aqui os
questionamentos também podem ser diversos; desde a postura da instituição sobre um
determinado assunto, até o caráter normativo imposto aos fiéis. 19

Michel Vovelle apresenta como possibilidade para se trabalhar a história religiosa, o estudo
das inscrições feitas nos túmulos, ou o estudo dos próprios túmulos para analisar
determinadas práticas religiosas na França.20

O estudo dos rituais também é outra forma de abordagem da história religiosa. As festas
religiosas, com toda a sua heterogeneidade e complexidade têm sido objeto de estudo não
somente de antropólogos, mas também de historiadores.21

18
DAVID, 1994.
19
MANOEL, 1988.
20
VOVELLE, 1987.
21
REIS, 1991; COUTO, 1998.
15
4. Referenciais para analisar as religiões e as religiosidades

Quais os autores que poderiam ser utilizados para trabalharmos com algumas categorias
vinculadas às religiões e as religiosidades? Minha proposta consiste em apresentar quatro
autores: Mircea Eliade, Pierre Bourdieu, Michel de Certeau e Roger Chartier. Os dois
primeiros não são historiadores, mas tornaram-se referências paradigmáticas para a análise
das manifestações religiosas.

Os autores abordados são apresentados a partir de como as categorias por eles trabalhadas
podem ser utilizadas nas pesquisas acerca da história das religiões e religiosidades. O fato de
estarem resumidos deve-se a uma necessidade didática e até mesmo uma necessidade de
limitar as páginas. Aconselho ao leitor, se tiver interesse, ler os textos que aparecem nas
referências bibliográficas no final do capítulo.

4.1. Mircea Eliade e a importância da análise fenomenológica

Mircea Eliade e seus estudos sobre o fenômeno religioso é referencia fundamental para a
análise das manifestações de religiosidade, a partir das categorias de sagrado e profano.

Em 1978, Mircea Eliade definia o sagrado como a pedra angular da experiência religiosa e
afirmava que toda consciência do mundo real e significativo para o homem está ligada à
descoberta que ele faz do sagrado. O sagrado é, pois um estado estrutural da consciência,
uma modalidade de ser no mundo.22

De acordo com Eliade em cada experiência religiosa veremos que a linha divisória entre
sagrado e profano é fundamental, mas é sempre fixada empiricamente pelo homem e pode ser
modificada. Assim o sagrado é antes de tudo um fato, observável e analisável, que nós
captamos num quadro de vida, de instituições, de rituais, porque ele estrutura uma ordo
rerum( a natureza das coisas, o cosmos).

O sagrado é real, eterno e eficaz. O homem conhece o sagrado porque ele se manifesta,
mostra-se diferente do profano. A hierofania é o ato de manifestação do sagrado. Desde o
principio a historia das religiões é constituída consideravelmente por hierofanias. Estas

22
ELIADE, 1978, p. 57.
16
possuem tipos variados, das mais simples (manifestada numa pedra) a suprema (Deus
encarnado em Jesus). Trata-se da manifestação de algo de ordem diferente em objetos do
mundo.23

Outros exemplos de hierofanias: as aparições da Virgem , ou até mesmo a descoberta de uma


estátua da Virgem perto de cavernas, mananciais, montanhas passam a conferir um estatuto
sagrado aos locais onde ocorreram as visões ou foram encontradas as imagens, vide Nossa
Sra. Aparecida, Nossa Senhora do Rocio, as aparições de Fátima (em Portugal) e as de
Lourdes (França). O que ocorreram foram hierofanias, ali o sagrado se manifestou e conferiu
um outro valor, qualitativamente superior, ao espaço.

Para Eliade (2001), os fatos sagrados são encontrados nos mitos, nos ritos, nas formas divinas,
nos objetos sagrados e venerados, nos símbolos, nas cosmologias, nos homens consagrados,
nos animais, nas plantas, nos lugares sagrados, toda forma de manifestação deve ser
considerada.

Eliade (2001) defende que, porque para o homem religioso, nem o espaço, nem o tempo, se
revelam como fenômenos homogêneos ou contínuos. Dessa forma, o culto piedoso, as festas
devocionais, as peregrinações, entre outras manifestações, propiciam a recriação de práticas
antigas, muitas vezes associadas com elementos novos e pessoais, sobretudo nas relações de
reciprocidade, detectadas especialmente, na religiosidade católica, no pagamento de
promessas, nas ofertas de flores, velas ou ex-votos.

Destacando a heterogeneidade dos documentos religiosos, em que medida estamos


autorizados a falar das modalidades do sagrado? O que nos assegura a existência real de tais
modalidades, é o fato de uma hierofania ser diferentemente vivida e interpretadas por elites
religiosas, em relação ao resto da comunidade. Não são apenas heterogêneos na origem, mas
também na estrutura. As hierofanias vegetais, por exemplo, encontram-se tanto nos símbolos
(a árvore cósmica), como nos mitos metafísicos (a árvore da vida).24

A diferença entre sagrado e profano não é nada tênue: o sagrado se opõe radicalmente ao
profano. Eliade, Campbell, Otto e Caillois 25 (só para citar alguns autores) conceituam o
sagrado como “aquilo que difere do profano”, isto é, o que está num tempo e num espaço

23
ELIADE, 2001.
24
ELIADE, 1998.
25
ELIADE 1992; CAMPBELL,1990; OTTO 1985; CALLOIS, 1979.
17
diferente porque diz respeito a realidades que transcendem o nosso cotidiano, que é mundano,
logo profano. Um exemplo: para entrar em contato com o sagrado o homem religioso deve
“abandonar o mundo”, sair das preocupações do dia a dia para estabelecer contato com aquilo
que o ultrapassa. Em termos de valoração, o importante é entrar em contato com o sagrado,
que é qualitativamente superior ao profano.

Para o homem religioso, os lugares e os tempos não são todos iguais e igualmente
significativos. Alguns desses lugares foram dotados de especial importância porque neles se
revelou a presença ou a ação de Deus, ou também porque têm a capacidade de despertar
sentimentos religiosos ou de dar lugar a experiências desse tipo.

4.2. Pierre Bourdieu e a abordagem institucional

O conceito de campo religioso de Pierre Bourdieu, é dinâmico e elástico, permitindo entender


como as estruturas religiosas se estabelecem e como se transformam. Em sua maior parte, os
estudos sobre religião desenvolvidos no Brasil, partem dessa categoria de campo religioso.

Em nosso estudo analisamos o campo religioso, observando como são construídas as relações
de poder em seu interior. Buscamos entender como a religião pode atuar como elemento de
manutenção do poder e fabricação do consenso.

Por campo, especificamente o religioso, devemos entender uma instituição historicamente


construída, dotada de um conjunto de leis de funcionamento e normas particulares de jogo,
que é, antes de tudo, um campo de forças, um conjunto sistemático de diferenças que, pelo
fato de oferecer, objetivadas, uma soma de desigualdades a um conjunto de agentes que estão
predispostos previamente a percebê-las de maneira discrepante, a interessar-se por elas de
modo distinto, e a usá-las de formas diferentes, parece poder gerar seu próprio interesse 26.

Em nosso estudo acerca da Igreja católica a partir de sua estrutura e lógica de funcionamento
interno27, nos valemos da ideia de campo religioso na análise do discurso católico.
Acreditamos que o conceito permite uma análise desse objeto a partir das relações travadas
em seu interior, levando em conta sua autonomia.

26
BOURDIEU, 2007.
27
ANDRADE, 2012.
18
No interior dos campos existem relações de forças que se configuram enquanto relações
simbólicas de poder. O poder simbólico seria o elemento que constitui e legitima as relações
das diferentes estruturas. Este seria imperceptível aos indivíduos que o exercem ou aos quais
estão sujeitos. Essa invisibilidade garantiria a sua força de ação. É a aceitação da posse do
poder simbólico pelos que estão a ele subjugados que o constitui e legitima. Em outras
palavras, o poder simbólico impõe significações e legitima relações sociais contribuindo na
construção e manutenção de uma ordem vigente.

Bourdieu denomina estes sistemas simbólicos de “estruturas estruturadas estruturantes”


(2007). Isso porque são estruturas fundadas, estruturadas e que, ao mesmo tempo, fornecem
os elementos necessários para sua estruturação, identificados com o funcionamento de um
“mercado dos bens simbólicos” no interior dos diferentes campos. A este bem ou capital
simbólico, corresponderia o poder simbólico que os principais agentes possuem em mãos. No
campo religioso o bem simbólico por excelência, a “mercadoria” que engendra as relações
seria o sagrado.28

Para Bourdieu, uma estrutura não pode ser pensada fora do mecanismo no qual é criada. Aí
já está um conceito dinâmico do campo religioso. Outro aspecto dessa dinâmica se encontra
na própria concepção de estrutura utilizado por Bourdieu que, apesar da aparência estática,
somente funciona a partir de confronto de interesses no interior dos campos. A teoria geral
dos campos aponta para o conflito incessante entre, de um lado, aspectos que estão
estruturados e que interessa aos grupos que detém o poder a sua manutenção e até a
aparência de imobilidade e, por outro lado, forças internas que se movem para a mudança .
Logo, as estruturas possuem um aspecto estruturado, isto é, imóvel como também um aspecto
estruturante, que oferece a possibilidade de mediações, elaboração de consensos e permite
que o campo ao mesmo tempo apresente algumas alterações e permaneça hegemônico. Por
isso minha afirmação de que o conceito de campo religioso permite entender como as
estruturas religiosas se estabelecem e como se transformam.

Para Bordieu,29 a oposição entre os detentores do monopólio da gestão do sagrado e os leigos


(profanos) no duplo sentido de ignorantes de religião e de estranhos ao sagrado e ao corpo de
administradores, constitui a base do princípio da oposição entre o sagrado e o profano e,
paralelamente, entre a manipulação legítima (religião) e a manipulação profana e profanadora

28
BOURDIEU 2007, pp. 27-29
29
BORDIEU, 2007.
19
(magia ou feitiçaria) do sagrado, quer se trate de uma profanação objetiva (a magia ou a
feitiçaria como religião dominada), quer se trate da profanação intencional (a magia como
anti-religião ou religião invertida).

Toda prática ou crença dominada está fadada a aparecer como profanadora na medida em que,
por sua própria existência e na ausência de qualquer intenção de profanação, constitui uma
contestação objetiva do monopólio da gestão do sagrado e, portanto, da legitimidade dos
detentores deste monopólio. A sobrevivência constitui uma resistência, isto é, a expressão da
recusa em deixar-se desapropriar dos instrumentos de produção religiosa.

4.3. Michel de Certeau e as categorias de lugar social, práticas, estratégias e táticas

Michel de Certeau afirma que toda análise do passado orienta-se por uma leitura do
presente30. Propõe uma reescrita da história religiosa, o que significa lidar não somente com
uma visão de religião diferenciada, como também lidar com disputas religiosas, eclesiásticas
e/ou populares sobre práticas e crenças religiosas.

Certeau conceitua lugar como o domínio dos produtores, o locus onde são desenvolvidas as
estratégias que visam a controlar os consumidores31. Lugar é assim definido como uma
configuração instantânea de posições, na qual cada elemento está situado em uma locação
própria e específica, uma locação que é definida pelo elemento em questão. Assim, lugar
implica em uma indicação de estabilidade. No entanto, quando o lugar é usado pelos
consumidores, ele torna-se espaço. Nessa concepção espaço é um lugar praticado, o qual
existe em termos de vetores de direção, velocidades e variáveis temporais, ou seja, pela
interseção dos elementos móveis 32. Enfim todo relato é uma prática de espaço.

O que caracteriza a religiosidade é o fato de ela exercer uma prática estratégica, que faz com
mantenha maneiras de sobrevivência dentro quadro social e faça das suas transformações
formas de contatos com outras interlocuções às quais esta inserida, uma vez que “postula um
lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e, portanto, capaz de servir de base a uma
gestão de suas relações com uma exterioridade distinta”33. A capacidade do homem de

30
CERTEAU, 1982, p. 34
31
CERTEAU, 1984, p. 19.
32
CERTEAU, 1998, p.117
33
CERTEAU, 1994, p. 46.
20
vivenciar o sagrado demonstra as maneiras pelas quais estes espaços se tornam pontos em que
a ritualização pode ser exercida e praticada. A visão de mundo seria o modo como um grupo
ou sujeito interpreta aquilo que vive: seus desejos, necessidades, insatisfações, reivindicações

Por exemplo, a formação de um ritual acontece através da maneira de se pensar e de agir,


assim reafirmam e reelaboram os significados e as ações pertencentes ao grupo. Essas
formulações contribuem para a elaboração de mecanismos que possibilitam encontrar e
analisar sua identidade. Além disso, são históricos porque estão ligados a operações e
definidos por funcionamentos.34

As práticas culturais representam o modo como, em uma determinada sociedade, os


indivíduos se comunicam, comem e bebem, sentam-se e andam, tratam seus parentes ou
recebem foliões em suas casas, ou seja, os modos de vida em que as atitudes ou normas de
convivência estão presentes.

Buscando a concepção de práticas de Certeau (1994), analisamos as maneiras de fazer das


práticas menores, ou seja, não fundadoras em relação aos produtos culturais difundidos e
impostos pelas práticas organizadoras das instituições normativas de uma sociedade. As
maneiras de fazer a oração e os comportamentos dos fiéis diante do seu santo de proteção
denotam novas formas de chegar ao objetivo sem precisar do intermédio de outro produto
cultural, em uma expressão religiosa articulada por componentes diferentes.

O que diferencia uma prática da outra são os procedimentos que empregam para, de um lado,
produzir cultura e, de outro, para consumi-la. As práticas culturais valem-se de procedimentos
estratégicos pelos quais circunscrevem um lugar como próprio, a partir do qual se relacionam
com a exterioridade. Os grupos sociais promovem mecanismos de resistência; mecanismos de
defesa prontos para agir naturalmente, por estarem presentes desde nossos primeiros
ancestrais. Esses mecanismos de defesa são conceituados como táticas. 35

Essas formulações de estratégias e táticas, vinculadas às práticas demonstram formas de


sobrevivência das manifestações sociais. Evidenciam pontos de preservação necessários para
estes rituais se manterem vivos e isso significa atuar conforme o espaço e o tempo nos quais
estão inseridos. São táticas de preservação de sua memória, como por exemplo, a adaptação a
outros espaços que não o original, conseguindo redefinir e agregar diversas expressões
34
CERTEAU, 1982, p.32.
35
CERTEAU, 1994, p.92; CERTEAU, 1998, p.99.
21
devocionais seja numa pequena cidade do interior do Brasil até como numa metrópole como
São Paulo.

Essas práticas são chamadas táticas. Diferentemente das estratégias, as táticas são
fragmentárias, não têm uma base a sua disposição e dependem do timing apropriado, estando
sempre em busca de oportunidades para serem executadas. Muitas das práticas de caráter
cotidiano, tais como ler, caminhar, cozinhar, descansar, etc. têm caráter tático.36

Enfim, Certeau (1996) defende que a cultura dominante seria a daquele que detém os meios
de controle, produção e disseminação cultural, enquanto que a cultura do dominado (popular)
seria a daqueles que não possuem meios de empregar sua cultura, de torná-la oficial. Para dar
conta da tal tensão, entre o dominante e o dominado, Certeau apresenta dois conceitos: o de
estratégia e o de tática. Ligadas à cultura dominante, as estratégias seriam as situações e os
valores cotidianos criados por instituições que produzem objetos, normas e modelos sociais
de comportamento. Ligadas à cultura do dominado, as táticas seriam os modos de fazer e
sobreviver daqueles que são desprovidos do lugar próprio e dos meios de emprego cultural.
Certeau apresenta as táticas como um jogo meio que sorrateiro, levado pelo que ele denomina
de “homem ordinário” que subverte as regras comuns para fugir ao conformismo e resignação
presentes nas relações de poder.

4.4 Roger Chartier – Apropriação, representações coletivas e práticas instituídas

Chartier é leitor de Certeau. Muito da discussão que Chartier realiza sobre as práticas culturais
é com base no livro A Cultura no Plural, de Certeau.37 A principal diferença são as categorias
com as quais os dois trabalham: Chartier com os conceitos de apropriação e representação
coletivas e seguiu suas pesquisas para as práticas de leitura, principalmente abordando as
formas como as realizamos; Certeau com os conceitos de estratégias e táticas estava mais
preocupado em analisar a maneira pela qual a alteridade podia ser analisada a partir dos
discursos proferidos pela Igreja católica no século XVII e a sua relação com os discursos
místicos. Também lhe interessava entender como ocorria os mecanismos de controle no
cotidiano e como os grupos dominados reagiam a eles

36
CERTEAU, 1998, pp. 13-14.
37
CERTEAU, 1995.
22
Segundo Chartier, para pensar historicamente as formas e as práticas culturais deve-se pensar
em duas definições, a primeira que designa as obras e os gestos que, em uma sociedade,
tangem ao julgamento estético ou intelectual. A segunda visa às práticas ordinárias tecidas nas
tramas das relações cotidianas e exprimem a maneira como uma comunidade vive e reflete
sua relação com o mundo e com o passado.38

É necessário primeiro ressaltar que por “representação” entendemos as práticas que visam
fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de estar no mundo, a
significar simbolicamente um estatuto e uma posição.39

Dessa maneira temos a possibilidade de analisar as representações realizadas pela


religiosidade católica a partir de duas frentes: em primeiro lugar, analisando as maneiras pelas
quais ocorrem as incorporações sob forma de categorias mentais das classificações da própria
organização social, como, por exemplo, a eleição de determinadas devoções num contexto
sociocultural específico. O segundo ponto fala que são constituídas as matrizes que
constituem o próprio mundo social, na medida em que comandam atos e definem
identidades40, tais como a escolha do santo padroeiro ou protetor.

Para o autor, o conceito de representação coletiva se divide em três modalidades. Primeira é a


ideia que a classificação produz as configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade
é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que compõem uma sociedade;
segundo, as práticas visam fazer reconhecer uma determinada identidade social, a qual exibe
de maneira própria, ou seja, única, de estar no mundo; terceiro, que as formas
institucionalizadas e objetivadas graças aos seus representantes, marcam visivelmente a
existência do grupo, da comunidade ou de uma classe. 41

Segundo Chartier, para pensar historicamente as formas e as práticas culturais deve-se pensar
em duas definições, a primeira que designa as obras e os gestos que, em uma sociedade,
tangem ao julgamento estético ou intelectual. A segunda visa às práticas ordinárias tecidas nas
tramas das relações cotidianas e exprimem a maneira como uma comunidade vive e reflete
sua relação com o mundo e com o passado.42

38
CHARTIER, 2002, p. 93
39
CHARTIER, 2002.
40
CHARTIER, 2002, p.72.
41
CHARTIER, 2002, p.73.
42
CHARTIER, 2002, p. 93.
23
Chartier defende que as representações sociais são alvo de disputa e revelam as tensões de
poder, interesses e contradições43. Essas representações dizem muito da dinâmica da vida
social. Defende que não devemos tomar a qualificação de inferior ou ilegítima para alguns
aspectos que envolvem as práticas culturais, pois ao denominarmos tais práticas desta
maneira, estaríamos reproduzindo os mecanismos de dominação simbólica que qualificam os
modos de consumo dos dominados como algo menor.44 Podemos apreender esse movimento
nos discursos das religiões dominantes com relação às manifestações não-institucionais: em
muitos casos são denominadas de seitas, de crendices, enfim, de algo menor, logo ilegítimo.
Chartier defende que os mecanismo de apropriação da realidade (que é sempre uma realidade
social) e sua posterior representação coletiva, informam ao historiador as visões de mundo
existentes num determinado momento. Cada grupo ou, num âmbito maior, cada sociedade se
percebe de acordo com uma complexa interação entre, de um lado, as normas vigentes e, de
outro, as formas como elabora essas normas no seu cotidiano.

5. Considerações

São múltiplas as possibilidades de abordagem das religiões e religiosidades a partir de uma


perspectiva histórica. Vale ressaltar que a apresentada aqui é apenas um ponto de vista acerca
da multiplicidade de discussões que o tema apresenta.

De fins do século XIX a inícios do século XXI religião garante sua especial significação
dentro do panorama cultural. De qualquer maneira que se interprete e valore sua mais recente
metamorfose, se trata de um fenômeno de grande interesse que se impõe a atenção de todos.

Como consequência disso, também tem crescido e a variado a demanda de conhecimento com
relação a uma faceta tão importante e distintiva da experiência humana que pertence “ao mais
profundo do homem”. Por esse motivo requer ser conhecida não somente por suas
manifestações históricas que acompanham desde suas origens à história da humanidade como
também por si mesma em sua lógica e sua dinâmica. Tratar de satisfazer este interesse é uma
característica fundamental de nossa sociedade, que tem se transformado em uma encruzilhada
de línguas e culturas, assim como também de crenças e tradições religiosas. Ao haver entrado

43
CHARTIER, 1990.
44
CHARTIER, 1995.
24
em crise o monopólio das igrejas tradicionais, o mercado dos bens religiosos se caracteriza
por um pluralismo e hibridismo que estão destinados a aumentar sua importância. 45

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26
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VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.

27
28
História das Religiões: teoria e método

Adone Agnolin1

O presente artigo pretende responder ao convite de oferecer alguma contribuição para o livro
“(Re)conhecendo o sagrado: reflexões teórico-metodológicas dos estudos de religiões e
religiosidades”, dedicado a problemáticas de teoria e metodologia da História das Religiões.
Para tanto, em vista da publicação recente de um nosso trabalho desenvolvido, com amplo
fôlego, exatamente sobre - e a partir de - esse aspecto geral, pensamos em costurar no
presente texto algumas das contribuições específicas que se encontram naquele outro espaço
textual. A seleção bastante restrita que realizamos para tal fim tentou manter, todavia, certa
unidade e coerência com relação aos dois objetivos discutidos tanto por este livro,
“(Re)conhecendo o sagrado”, quanto em algumas partes do nosso recente trabalho do qual
tiramos, de forma bastante sintética, essa nossa contribuição.2

1. Teoria: qual História das Religiões?

Genealogia: o Nascimento da História das Religiões

Uma breve nota se impõe, de início, para enquadrar o contexto do surgimento de uma
problemática histórico-religiosa. O único objetivo desta nota é aquele de traçar um brevíssimo
pano de fundo geral do contexto do nascimento e da colocação histórica da problemática em
questão: mesmo que a própria disciplina, assim como foi se delineando no contexto do século
XIX, tenha-se voltado para uma perspectiva des-historicizante com relação a seu objeto. Sem
aspas, este último termo, justamente enquanto a religião foi abordada, inicialmente, a partir de
uma dimensão autônoma, transcendente e holística: isto é, por além (ou aquém) de sua

1
Professor de História Moderna e História das Religiões do Departamento de História – FFLCH-USP.
2
AGNOLIN, 2013. Mesmo que em algum caso levemente modificadas, as partes selecionadas do livro e aqui
propostas dizem respeito à Iª Parte do livro em sua Introdução e no que diz respeito ao Capítulo III, com uma
seleção parcial do Capítulo VIII da IIª Parte. Finalmente, para poder oferecer um quadro bastante sintético da
Escola Italiana de História das Religiões (analisada em modo bem mais conspícuo e consistente neste nosso
livro), selecionamos apenas uma parte necessariamente reduzida de um nosso artigo mais antigo (“Breve
História da História das Religiões...”) que foi publicado na Revista “Projeto História”, nº 37 (“História e
Religiões”), Julho/Dezembro/08, Revista do Programa de Estudos em Pós-Graduação do Departamento de
História da PUC-SP, pp. 13-39.
29
dimensão propriamente histórica. Levar em consideração essa breve nota contextual servirá,
em primeiro lugar, para colocar o problema de qual História das Religiões estamos falando
(ainda hoje e, sobretudo, no Brasil, existe uma confusão bastante grande a esse respeito); em
segundo lugar, deve servir para entender a especificidade e as características inscritas na
vertente propriamente histórico-religiosa italiana.

Segundo sua denominação mais abrangente e onicompreensiva, a História das Religiões


nasceu na segunda metade do século XIX: século que viu impor-se, talvez pela primeira vez
na história europeia, as categorias raciais enquanto base de um novo estatuto epistemológico
da ciência historiográfica e que, ao mesmo tempo, assistiu ao novo fortalecimento do modelo
imperial (absolutamente novo com relação tanto ao modelo oferecido pelo mundo clássico,
quanto relativamente àquele da época moderna), junto aos estados europeus.

Trata-se, sinteticamente, do momento histórico no qual a Europa decidia, em Berlim, da


divisão da África (1878); da época na qual o Império Britânico tornava-se o maior império da
história; do momento no qual a civilização europeia manifestava sua mais completa convicção
de superioridade (em termos raciais, mesmo, vale a pena repetir). E é justamente nessa
conjuntura que alguns pensadores – ligados, de algum modo, à história de seu próprio País, à
sua cultura, a incentivos acadêmicos que permitem determinados percursos de pesquisa etc. –
começam a se interessar pelas culturas dos outros povos da terra sistematizando seus estudos
sobre suas religiões. Aliás, é de se observar, a esse respeito, como, muitas vezes, neste
contexto, o termo cultura coincidirá com aquele de religião, enquanto ambos serão propostos,
de fato, em termos solidamente objetivos, determinados e determinantes, assim como o
conceito de raça ao qual nos referimos mais acima. Um e outro, os conceitos de cultura e
religião, assim como as paralelas categorias raciais subjacentes, serão propostos, a priori, não
enquanto, pelo menos, categorias interpretativas ou relacionais, mas enquanto “objetos”
holisticamente determinados (e portanto – o que da no mesmo – transcendentes). Enfim,
contrariamente à perspectiva comparativa e histórica sintetizada nesse trabalho, esta
perspectiva holística (porque, no fundo, teológica) considerava as religiões não enquanto
sistemas históricos de valores, mas como realidades meta-temporais e não modificáveis: isto
é, transformava e confundia a necessidade da duração de um valor culturalmente (e
historicamente) definido em eternidade, transformando a sua eficácia cultural em paradigma.

30
Ora, segundo o que veremos a seguir, em contraposição a essas instâncias, aquilo que nós
ocidentais chamamos por longo tempo – e ainda continuamos a chamar – de “religião”, pelo
menos de um ponto de vista histórico-cultural, deve ser visto, substancialmente, enquanto
uma codificação humana de valores. Estes se devem prospectar em uma durabilidade que
sirva, justamente, a superar as contingências efêmeras, complexas e incompreensíveis da
história, para oferecer uma perspectiva ao operar humano. Somente na perspectiva de valores
dando sentido à contingência é que esta última adquire um sentido e que os primeiros
oferecem uma perspectiva à vida. Dito de outra maneira, as culturas representam estruturas
em e de contingência: enquanto tais podem construir modelos absolutos de valores que,
todavia, o historiador tem a função de considerar como relativos a um tempo, a um espaço e a
um contexto relacional de “aculturação”: trata-se, portanto e substancialmente, de descobrir a
contingência histórica da formação de um absoluto, cultural e historicamente construído
enquanto valor.

A consciência desta nova perspectiva histórica vai emergindo, progressiva e gradualmente,


enfim, somente ao longo da primeira metade do século XX, sobretudo no período entre os
dois conflitos mundiais (no entre-guerras).3 Isto porque o período e suas contingências
históricas, políticas e culturais vêm a Europa sujeitada a repensar e a redimensionar
criticamente seu conceito de civilização e, portanto, a revisitar, sempre de forma crítica, seus
estudos antropológicos e aqueles sobre as religiões dos povos extraeuropeus. Não é por acaso
que, neste segundo momento, se delineiam na Europa duas perspectivas historiográficas que,
apesar de suas peculiaridades bem específicas, vêm desenvolvendo uma metodologia que
compartilha quanto menos a característica de uma abordagem privilegiadamente histórica que
abre espaço para um inédito debate entre as várias Ciências Sociais: trata-se, na França, da
Nouvelle Histoire – representada, sobretudo, pela assim chamada escola da revista histórica
francesa “Annales”, fundada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre 4 – e, na Itália, do
amadurecimento da perspectiva histórico-religiosa: aquela propriamente dita, entenda-se.

O problema de propor uma perspectiva “objetivística” da religião (assim como daquela de


cultura), no contexto da segunda metade do século XIX, não é, portanto e finalmente, um
problema somente epistemológico, mas também, evidente e fortemente, político e cultural: e
3
Nas consequências históricas e políticas do primeiro conflito que preparam o projeto irrealizável do segundo.
4
Pense-se à profunda perspectiva histórico-religiosa dos dois extraordinários livros – os mais representativos,
segundo a nossa perspectiva, dos dois autores – Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio:
França e Inglaterra, de Marc Bloch; e O Problema da Incredulidade no Séc. XVI: a religião de Rabelais, de
Lucien Febvre.
31
com relação a isso, vale a pena destacar como toda a História das Religiões que permanece
refém das categorias do Cristianismo e de seu desenvolvimento no interior da história do
Ocidente corre o risco, não somente de não compreender a alteridade antropológica, mas,
sobretudo, de fazer uma história comparada interna às estruturas de sentido e ao sistema
político de um Império que não é, somente, coincidente com os vários impérios ocidentais das
várias épocas em questão, mas que se torna um “império simbólico” 5 interno ao sistema
interpretativo ocidental do outro.

No entanto, vale evidenciar que é neste momento histórico do segundo Oitocentos que surge a
manualística histórico-religiosa (os primeiros manuais, modelares e exemplares, de História
das Religiões) e isso, significativamente, a partir do conceito de religião no seu sentido mais
ocidental, objetivo, transcendente, impermeável (com relação à historicidade do próprio
Ocidente): não é por acaso que o berço privilegiado desta manualística tenha sido aquele
contexto teológico-protestante que, sem questionar-se sobre o próprio percurso histórico,
predispôs e afinou seus instrumentos para a abordagem ao problema.

O Berço Teológico-Protestante da Manualística Histórico-Religiosa

Os manuais de História das Religiões nascem, de fato, nesta época e neste contexto: o
primeiro – prototípico de uma importante tradição – é o Lehrbuch der Religionsgeschichte
(1887-1889), do teólogo holandês, professor da Universidade de Amsterdã e de Leida, Pierre-
Daniel Chantepie de la Saussaye. Em 1887 saiu a segunda edição da obra (traduzida em
francês em 1904), na qual Chantepie se utilizou da colaboração de especialistas de diferentes
competências e em 1925, em Tübingen saiu sua quarta edição completamente renovada sob a
direção de Alfred Bertholet (teólogo e biblista em Basiléia, e, sucessivamente, historiador das
religiões: comparativista e fenomenólogo) e Edward Lehmann (professor de
Religionsgeschichte und Religionsphilosophie na Faculdade de Teologia da Universidade de
Berlim, sucessivamente professor de História das Religiões junto à Universidade de Lund).

Ora, segundo uma importante observação, relativa a esta 4ª edição da obra (de 1925), proposta
por Sabbatucci:

5
Para um aprofundamento do conceito de Império Simbólico, cf. GASBARRO, 2011, pp. 17-47.
32
[É] na edição do Manual organizada por Bertholet e Lehmann são exclusas
as religiões de Israel (o primeiro campo de pesquisa de Bertholet!) – que, ao
contrário, figuravam nas edições anteriores – e aquela cristã. É este o sinal
indicativo de uma realidade não justificável cientificamente, mas sim
historicamente. Queremos dizer: mesmo se, teoricamente, a História das
Religiões teria que compreender tanto o Cristianismo quanto o Hebraísmo,
de fato a História do Cristianismo se caracteriza por uma problemática e
uma metodologia nitidamente distintas daquelas histórico-religiosas. Isto
depende da rejeição da problemática comparativa, própria da História das
Religiões, quando se trata de matéria considerada, evidentemente,
‘incomparável’, como o Cristianismo (e, por consequência, o Hebraísmo do
qual surge o Cristianismo). [...] Os estudiosos ocidentais reservam um
tratamento diferente à própria religião, como se o Cristianismo não fosse
uma religião, mas a religião.6

Finalmente, os sucessivos manuais de história das religiões se inspiraram, todos, a este


modelo, diversificando-se, eventual e somente, pelos endereços específicos dos seus autores,
mas não pela concepção geral da obra.

A partir dessa primeira manualística, portanto, pelo menos em seus pressupostos, o fato de
que o Cristianismo se torne a religião – modelo fundamental do conceito e do instrumento
operativo na base do qual medir e reduzir as outras “religiões” – não se deve tanto ao
compromisso fideístico (como ainda acontece na Idade Moderna), quanto à formação
histórica do conceito de religião: também nesse sentido, portanto, o século XIX representa
propriamente, segundo a definição de Benedetto Croce, o “século da História”: que, neste
caso, impõe um modelo sub-repticiamente orientado segundo pressupostos implícitos (o
Cristianismo enquanto a religião) que se querem e estabelecem uma perspectiva histórica cuja
análise dos próprios pressupostos lhe é interditada.

A Escola Italiana da História das Religiões

6
SABBATUCCI, 1985, pp. 7-8. Com relação à problemática da primeira manualística histórico-religiosa, à qual
estamos nos referindo aqui, veja-se até p. 11.
33
Em 1925, com a Revista “Studi e Materiali di Storia delle Religioni” (SMSR), nasce na Itália,
através da obra de Raffaelle Pettazzoni, o endereço de estudos histórico-religiosos. Através da
comparação que produziu os estudos antropo-etno-lógicos, este endereço de estudos se
propõe ressaltar a historicidade dos fatos religiosos, isto é, “des-ontologizá-los”, tanto a partir
do pressuposto fundamental de sua possível e necessária redução à razão histórica, quanto
pela necessidade de acolher e definir, nesta perspectiva, aqueles fatos que não resultassem
redutíveis aos modelos analógicos (isto é, constituídos ao redor de denominadores comuns)
sugeridos pela pesquisa comparada.

Assim, o próprio Pettazzoni formulou seu programa manifestando o fato de que “cada
phainomenon é um genomenon”: formulação que, em polêmica com a obra de Mircea Eliade,
queria destacar como em cada fenômeno – e para longe de sua mera objetivação – é possível
re-percorrer e recuperar o momento de sua formação histórica, isto é, “des-objetizá-lo”.
Tratava-se, finalmente, de opor às indagações fenomenológicas a necessidade da interpretação
histórica. Isto significa que, para compreender um fato cultural qualquer, dever-se-ia procurar,
antes de tudo, a reconstrução da sua gênese, da sua formação. De fato, se a operação
fenomenológica se configura como uma objetivação da religião, a crítica histórica se
contrapõe a ela enquanto – nas palavras de Dario Sabbatucci – uma “vanificação do objeto
religioso”. Trata-se, finalmente, de tornar inconsistentes as categorias religiosas que, no
fundo, resultam arbitrárias, até chegar a tornar vã a própria categoria do religioso que resulta
desviante e inútil para se aproximar às culturas diferentes da nossa e, nas quais, a diversidade
se manifesta também, ou sobretudo, pela falta de um “cívico” contraposto ao “religioso”. O
problema principal que se desprende dentro dessa perspectiva crítica consiste em que os fatos
culturais “outros” foram interpretados, arbitrária e acriticamente, sub specie religionis
incluindo-os numa função cultural que é aquela que a religião tem dentro de nossa específica
cultura, enfim, dentro de seu próprio e específico percurso histórico.

A perspectiva histórico-religiosa da vertente italiana desenvolveu, portanto, um próprio


específico percurso histórico que viu essa tradição de estudos afinar metodologias e
instrumentos de pesquisa, sobretudo através das relevantes contribuições que, além daquela
de Raffaele Pettazzoni e de Ernesto de Martino, foram trazidas por importantes autores quais
Angelo Brelich, Vittorio Lanternari, Dario Sabbatucci, Marcello Massenzio, Gilberto
Mazzoleni e Nicola Gasbarro, entre outros. Às vezes desprendendo-se, por interesses de
pesquisa, de sua peculiar relação com a assim chamada “Escola de Paris” (conhecida
34
principalmente pelos trabalhos de Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal-Naquet, Marcel Detienne,
etc.), a Escola Italiana de História das Religiões foi desenvolvendo um seu específico
itinerário de indagação. A fim de evidenciar esta especificidade, em 1973, na cidade de
Urbino (Itália), foi cunhado, portanto, inicialmente, o nome de “Escola Romana de História
das Religiões”.

Nesse momento de amadurecimento da gênese da escola italiana, foram finalmente afinadas


as coordenadas destinadas a orientar os estudos histórico-religiosos, partindo da necessidade
de ressaltar, antes de tudo, a historicidade dos fatos religiosos enquanto produtos culturais,
redutíveis em sua totalidade à razão histórica. Nesta perspectiva, essa escola começou a se
preocupar, em primeiro lugar, com a historicidade das próprias categorias de análise,
procurando relativizar também estas últimas: para fazer isso, encontrou-se na necessidade de
ter que recolocar (contextualizar historicamente) a própria ferramenta categorial da análise
nos contextos histórico-culturais em que essa foi sendo forjada. Neste sentido, desde seu
nascimento a “Escola Italiana de História das Religiões” encontrou-se instalada,
epistemológica e historicamente, no entrelaçamento entre as disciplinas da Antropologia e da
História, tendo que encarar, consequentemente, a polêmica aberta e crítica com a Filologia,
com a Fenomenologia e com todas as outras escolas de pensamento que, de fato,
privilegiavam abordagens não-históricas ou, quando pior, des-historicizantes.

O fato é que, se a religião pode ser analisada segundo diferentes perspectivas (filosófica,
teológica, psicológica, etc.), sendo, todavia, a cultura o objeto específico e limitativo do
próprio historiador, a partir do momento em que a religião é objeto de pesquisa histórica não
pode ser posta de lado sua observação em função de uma determinada cultura. Finalmente, a
contraposição entre o endereço fenomenológico e aquele histórico consiste, justamente, no
fato que o primeiro descuida desta relação entre religião e cultura, enquanto para o segundo a
religião torna-se um dos fatores privilegiados para qualificar uma determinada unidade
cultural. Esta contraposição, todavia, não é rígida porque, de fato, a prática dos estudos
demonstra como tanto o fenomenólogo opera em cima do material histórico, assim como
quanto o historiador é condicionado pela referência a um conceito de religião que supera as
religiões consideradas por si mesmas. Contudo torna-se importante a análise da relação
religião-cultura dentro de algumas diferentes escolas histórico-religiosas para individualizar
as diferentes formas em que se constituiu o entrelaçamento desta problemática e como foi

35
temporariamente resolvida: tudo isso a fim de tentar esclarecer a justa colocação da
problemática propriamente histórica.

Isolar a religião de um determinado contexto cultural parece impossível, e de qualquer forma


difícil, se nós levarmos em consideração o fato de que o próprio conceito de religião
representa, ele mesmo, um produto histórico que, como tal, é ausente até nas línguas dos
povos “primitivos” e, como o conhecemos hoje, dentro da própria Antiguidade ocidental. E aí
o dado linguístico que individualiza a peculiaridade de um percurso histórico (ocidental): de
fato, a consideração linguística demonstra como a nossa cultura separa a religião, no próprio
sistema de valores, contrapondo a ela uma realidade que poderíamos definir – e em nossa
cultura muitas vezes definimos – de “cívica”, conferindo à religião a característica da
conservação, em oposição ao desenvolvimento cívico que determinaria a inovação e o
progresso: trata-se, no fundo, da contraposição implícita, por exemplos, nas investigações de
Max Müller e Edward B. Tylor.7

É este recente desenvolvimento (e sua consciência) ocidental da contraposição


religioso/cívico, a partir, sobretudo, do começo da Idade Moderna, que nos permite propor e
destacar algumas observações fundamentais sobre as quais se implementa, também, o aparato
metodológico da História das Religiões, como veremos na segunda parte do presente capítulo.

História (ou ciência) da Religião e História das Religiões

Propomos a seguir, em termos conscientemente esquemáticos e exemplificativos, uma


bipolarização por contraste, entre os dois extremos das perspectivas de abordagens das
respectivas disciplinas: uma que trata da religião no singular (em uma perspectiva
“objetivística”, logo “científica”); e outra que, partindo propriamente de pressupostos
históricos, leva em consideração uma pluralização (comparativa) das religiões para pensar
antes e implementar depois a especificidade de um método históriográfico enquanto
fundamento da específica disciplina. Pretendemos propor essa esquematização por contraste
tendo em vista a complexidade e o amplo debate relativo ao “objeto” dessas disciplinas e,
ainda, tendo em vista o flébil eco do que no Brasil se conhece por História das Religiões

7
Com relação a esses autores e à sua respectiva, paralela e, muitas vezes, contraposta fundação de uma “vertente
sistemática” da abordagem à problemática religiosa, cf. nosso trabalho, já anteriormente citado, História das
Religiões: perspectiva histórico-comparativa, às pp. 27-38.
36
(prática e exclusivamente Eliade), mas que é de fato e propriamente uma “fenomenologia”.
Finalmente, a esquematização se propõe agilizar a leitura por contrastes, a partir das
características comuns de uma abordagem que, em termos gerais, denominaremos de
“fenomenológica”, com relação àquela propriamente histórico-religiosa.

Para tanto, vale a pena destacar, inicialmente, que, segundo a primeira perspectiva
(fenomenológica), a objetivação da religião se define enquanto:

- uma única religião (identificável numa pressuposta e apriorística fé dos povos


etnologicamente mais antigos) que estaria na origem de todas as religiões históricas;

- a religião seria, portanto, um “fenômeno” consubstancial ao homem (o homo


religiosus);

- consequentemente, a “fenomenologia das religiões” (de Otto a Van der Leeuw e


Mircea Eliade) assume para si a função de procurar as estruturas comuns, mesmo na
variedade dos fenômenos religiosos.

Nesta primeira contraposição geral, como já vimos, destaca-se o fato de que a História das
Religiões parte, justamente, do pressuposto contrário, isto é, de uma:

- desobjetivação da religião, desde o momento, determinado por Pettazzoni, em que a


disciplina procura não o fainómenon, mas o genómenon: isto é, a constituição de
seu(s) processo(s) histórico(s);

- em primeiro lugar, portanto, segundo essa perspectiva, quando a religião é objeto de


pesquisa histórica deve ser abordada em função de uma cultura: e isso enquanto o
endereço fenomenológico nega ou desvaloriza a relação entre religião e cultura (a
primeira seria, substancialmente, independente da segunda).

A partir dessa contraposição geral – implícita nos pressupostos metodológicos das duas
abordagens – desprende-se, portanto, uma pontual contraposição dos percursos de
investigação propostos. Isto é:

- enquanto a primeira põe, lado a lado, em relação analógica e apenas formal,


fenômenos religiosos, a segunda compara processos históricos de formações
religiosas;
37
- se a fenomenologia descontextualiza, substancialmente, suas análises – isto é, opera
contra e apesar da história –, a História das Religiões pretende, justamente,
contextualizar suas investigações partindo da história enquanto base fundamental
para entender as formações culturais;

- a primeira, portanto, transcende a história, na medida em que a segunda propõe-se


enquanto imanente à história (e, não por último, à sua própria história: aquela
ocidental);

- consequência e exemplificação significativa dessa diversidade de perspectiva é o fato


de que a Fenomenologia objetiviza o religioso (des-historicizando-o), enquanto a
História das Religiões parte, antes de tudo e fundamentalmente, de uma
problematização (histórica) da própria categoria do “religioso”;

- mais uma consequência importante, exemplar com relação aos diferentes resultados
obtidos: enquanto a primeira perspectiva fala em religião (no singular) porque
descontextualizada, a segunda pluraliza as religiões (contextualizadas), assumindo
essa pluralidade inclusive na própria autodenominação segundo a qual se define;

- é por isso, inclusive, que a Fenomenologia se utiliza, muitas vezes – justa e


significativamente –, da denominação de Ciência da Religião. De fato, ela parte de
uma pressuposta objetivação do religioso (que, portanto, permitiria uma incursão
científica, como se se tratasse de uma ciência natural) que, pré-existindo à história
(quase à sua dispersão babélica), mantém o pressuposto de uma unidade do religioso
(no singular); enquanto isso, a disciplina histórico-religiosa é – portanto, justa e
propriamente – uma História das Religiões, na medida em que parte da
problemática histórica das diferenças religiosas, indicação de diferentes processos
de formação histórica;

- ainda, enquanto a Fenomenologia religiosa chega a uma espécie de objetivismo


“ontológico” da sacralidade que compreende o mundo em sua totalidade e é, por si,
historicamente não falsificável; a História das Religiões se identifica com uma
história das relações entre civilizações: e essa pode e deve ser, hoje, culturalmente
subjetiva, utilizando-se apropriadamente do etnocentrismo crítico (de Ernesto De
Martino), até chegar a dissolver suas próprias certezas iniciais.

38
Para esclarecer melhor esse último ponto, vale a pena ressaltar que, como temos visto, se a
abordagem fenomenológica concebe a religião enquanto um dado transcendente (um
fainómenon, de fato), em contraposição à abordagem histórico-religiosa que a concebe
enquanto um fato histórico (genómenon, nas palavras de Pettazzoni); se esse pressuposto
permite à segunda uma historicização do conceito (religião), impossível para a primeira
perspectiva; e se, por consequência, isso permite à História das Religiões de realizar uma
operação – absolutamente impossível à primeira perspectiva – de historicização dos próprios
instrumentos da análise (de fato, historiográfica); em decorrência de tudo isto, a diferença
substancial entre as duas perspectivas é que, enquanto a primeira, justamente a partir da
analogia universalista e totalizante, pretende alcançar uma essência religiosa que já era dada
como pressuposto inicial da análise; a segunda fundamenta-se, necessariamente, na
comparação histórica (histórico-religiosa) – não analógica –, de processos de formação.
Esses pressupostos metodológicos diferenciais explicam e esclarecem, acreditamos, o último
item acima delineado, isto é:

- na medida em que a perspectiva fenomenológica se fundamenta num objetivismo


“ontológico” da sacralidade, historicamente não falsificável, aquela histórico-
religiosa lhe se opõe exatamente por levar, necessariamente, à falsificabilidade de
seus pressupostos;

- a diferente atitude operacional redonda, também, em outra forma operativa


instrumental: enquanto para a Fenomenologia vem a representar uma operação
absolutamente dispensável, quando não perigosa, a História das Religiões se
encontra, sempre, na necessidade de historicizar suas próprias categorias e
instrumentos operativos de análise.

Tendo em vista tudo isso, portanto, na medida em que a Fenomenologia se constitui enquanto
uma teleologia, pressupostamente científica – que no final de seu percurso reencontra as
origens inscritas em seus pressupostos iniciais –, a História das Religiões se configura
enquanto, propriamente, uma ciência histórica (com todas as incertezas próprias das Ciências
Humanas). Daí o fato que, ao objetivismo ontológico da sacralidade (esta que pré-existe e
resiste à verificação historiográfica) da primeira perspectiva, a segunda lhe contrapõe,
efetivamente, o percurso obrigatório de uma história das relações entre civilizações: negando

39
a perspectiva objetiva e totalitária da Fenomenologia para (partindo do etnocentrismo crítico)
torna-se culturalmente subjetiva.

E isso vem a exemplificar, mais uma vez, quanto a primeira perspectiva se fundamenta numa
– constrói seu objeto, a religião, enquanto – essência não falsificável, na medida em que a
segunda se verifica, exatamente, numa constante falsificabilidade de seu objeto (a “religião”).
Enfim, fechando o círculo implícito em seus pressupostos, a Fenomenologia reduz os vários
fenômenos religiosos ao modelo (único) de religião pré-concebida, na medida em que,
respondendo à sua fundamental exigência historiográfica, a História das Religiões multiplica,
necessariamente, as religiões, até, como vimos verificar-se com Sabbatucci, poder fazer
explodir o próprio instrumento conceitual de “religião”.

Para sintetizar numa melhor visualização o sistema das pontuais contraposições propostas,
podemos até sintetizar essas no esquema a seguir:

40
Ciência (fenomenologia) da Religião História das Religiões

Uma única religião estaria na origem de “Des-objetivação” da “religião” enquanto


todas as religiões históricas categoria

A religião seria consubstancial ao homem Enquanto tal, não consubstancial ao


homem

Procura as estruturas comuns nas Procura a constituição histórica


variedades dos fenômenos religiosos (genómenon) das religiões em sua
diversidade, historicamente fundada

Negação ou desvalorização da relação A religião como objeto de pesquisa


entre religião e cultura. histórica deve ser abordada em função de
uma cultura

Relação analógica e apenas formal dos Comparação de processos históricos de


fenômenos religiosos formações religiosas

Descontextualiza, isto é, opera contra e Contextualiza, isto é, faz propriamente


apesar da história história

Transcende a história É imanente à história

Objetiviza o “religioso” des- Problematiza (i.é., historiciza) a categoria


historicizando-o do “religioso”

Fala em religião (descontextualizada) no Pluraliza as religiões (contextualizando-


singular as)

É uma Ciência da Religião enquanto É propriamente uma História das


pressupõe uma objetivação do religioso Religiões enquanto parte da problemática
(quase um objeto natural) = preexistindo à histórica das diferenças religiosas =
história mantém o pressuposto de uma indicação de diferentes processos de
unidade do religioso formação histórica

Chega a um “objetivismo ontológico” da Trata-se de uma história das relações entre


sacralidade: historicamente não civilizações: é, portanto, culturalmente
falsificável subjetiva e fundada em um etnocentrismo
crítico

Em termos de instrumentos operativos e de metodologias, portanto, a diferenciação que se


estabelece, basicamente, é entre:

41
Ciência (fenomenologia) da Religião História das Religiões

1. Concebe a “religião” com um dado 1. Parte da consideração da “religião”


transcendente enquanto fato histórico

2. Portanto lhe é impossível pensar a uma 2. O primeiro pressuposto lhe permite uma
historicização do conceito de “religião” historicização do conceito de “religião”

3. E, consequentemente, é impossível para 3. Consequentemente pode historicizar os


ela historicizar seus instrumentos de análise próprios instrumentos da análise
(historiográfica)

4. A comparação é, apenas, uma 4. Fundamenta-se em uma comparação


comparação analógica histórica sistemática

5. A partir da analogia universalista e 5. A comparação (de contextos histórico-


totalizante pretende alcançar uma essência religiosos e culturais) fundamenta uma
religiosa já pressuposta no início da análise análise dos processos de formação
(particularidade histórica)

6. Seu “objetivismo ontológico” da 6. Seu subjetivismo histórico leva à


sacralidade é historicamente não necessária falsificabilidade dos
falsificável pressupostos da análise

7. Perigo de confrontar-se com uma 7. Encontra-se na necessidade de


historicização de seus próprios historicizar suas próprias categorias e
instrumentos de análise instrumentos operativos de análise

8. Trata-se de uma teleologia, 8. Trata-se de uma ciência histórica (com


pressupostamente científica (no final as incertezas próprias das Ciências
reencontra seus pressupostos iniciais) Humanas)

9. É caracterizada por uma perspectiva 9. Torna-se culturalmente subjetiva (a partir


objetiva e totalitária do etnocentrismo crítico)

10. Reduz os vários fenômenos religiosos 10. Multiplica, necessariamente, as


ao modelo (único) de religião pré- religiões (na base da comparação histórica)
concebida

42
2. Método: a Escola Italiana das Religiões

Relação entre Religião e Cultura, Sacro e Profano

Em decorrência de quanto vimos até aqui, podemos inferir que, a religião pode, sem dúvidas,
ser analisada segundo diferentes perspectivas (filosófica, teológica, psicológica, etc.).
Todavia, sendo a cultura o objeto específico e limitativo do próprio historiador, quando a
religião é objeto de pesquisa histórica não pode ser posta de lado sua observação, seu estudo e
sua análise em função de uma determinada cultura. Finalmente, a contraposição entre o
endereço fenomenológico e aquele histórico consiste, justamente, no fato de que o primeiro
descuida desta relação entre religião e cultura, enquanto para o segundo a religião torna-se o
fator privilegiado – ou, quanto menos, um dos fatores privilegiados – para qualificar uma
determinada unidade cultural.

Esta contraposição, todavia, não é rígida porque, de fato, a prática dos estudos demonstra
como, tanto o fenomenólogo opera em cima do material histórico, quanto o historiador é
condicionado pela referência a um conceito de religião que supera as religiões consideradas
por si mesmas. Contudo torna-se importante a análise da relação religião-cultura dentro de
algumas, diferentes, escolas histórico-religiosas – como esboçamos até aqui –, para
individualizar as diferentes formas segundo as quais se colocou esta problemática, e como foi
temporariamente resolvida, e para tentar esclarecer, enfim, a justa colocação da problemática
histórica.

Isolar a religião de um determinado contexto cultural parece impossível, e de qualquer forma


difícil, se nós levarmos em consideração o fato de que o próprio conceito de religião
representa, ele mesmo, um produto histórico que, como tal, é ausente nas línguas dos povos
“primitivos” e, como o conhecemos hoje, dentro da própria Antiguidade ocidental. Enfim,
como já acenamos, o dado linguístico demonstra como a nossa cultura separa a religião, no
próprio sistema de valores, contrapondo a ela uma realidade que poderíamos definir – e em
nossa cultura muitas vezes definimos – de “cívica”, conferindo à religião a característica da
conservação, em oposição ao desenvolvimento cívico que determinaria a inovação e o
progresso.

43
A peculiaridade histórica do percurso ocidental – que de algum modo repercorre o impor-se
de uma diferente relação histórica entre religião e cultura dentro do próprio Ocidente – pode
ser constatada, também, em relação ao outro par relacional, exemplar a respeito da
complexidade desta problemática: aquele de “sagrado” e “profano”. Totalmente centrada na
assim chamada “ambivalência do sagrado”, a teoria fenomenológica mostra mais uma vez, a
esse respeito, o descuido com que (não) leva em conta a específica relação entre religião e
cultura, de sua transformação no âmbito de um determinado percurso e contexto histórico
ocidental. Tanto os “primitivistas”, de um lado, quanto Rudolf Otto, de outro, mostram-se
ligados ao, e fortalecem o, conceito desta “ambivalência do sagrado”. A herança deste
dúplice, mas convergente percurso é sintetizada, finalmente, na posição de Mircea Eliade que
encontramos, por exemplo, expressa de forma pontual no sexto parágrafo do primeiro capítulo
de seu Tratado de História das Religiões que leva, de fato, o título de “O Tabu e a
Ambivalência do Sagrado”.

Mas como demonstrou muito claramente Sabbatucci8, a esse respeito, a própria teoria romana,
captada e formulada pelo historiador italiano, no interior de um sistema de oposições “sacer /
profanus = publicus / privatus”, não corresponde aos – e não pode ser entendida partindo dos
– pressupostos da teoria fenomenológica. Segundo Sabbatucci,

é verdadeiro, de fato, que a dialética sagrado / profano designe o fenômeno religioso,


ou constitua a ‘essência de toda religião’ (R. Otto). Mas é verdadeiro enquanto
contrapõe dialeticamente o não-humano ao humano, o inacessível ao acessível, o não-
utilizável ao utilizável etc. movendo da contraposição de base entre homem/cultura e
extra-humano/natura. O problema de fundo é, ou pode ser (se se considera essencial a
dialética sagrado/profano): como humanizar (adquirir à cultura) o não-humano (a
natura)? A resposta é: deixar expressamente (culturalmente) uma parte à ‘alteridade’, e
liberar o resto ao uso humano. Lógico que a parte deixada à ‘alteridade’ seja
designada conceitualmente, axiologicamente; é, de fato, aquilo que chamamos
‘sagrado’.9

E é justamente verificando o conceito romano de sacer à luz da dialética geral entre sagrado e
profano que o autor obtém a emergência, no contexto histórico romano, do resultado segundo
o qual profanus, além de significar o contrário de sacer, podia significar, ao mesmo tempo,

8
SABBATUCCI, 1975. Cfr., sobretudo, o capítulo IX, “Sacro e Profano”.
9
Idem, Ibidem, p. 161.
44
algo de análogo a sacer, ou seja: “dedicado a um deus”. Finalmente, olhando para o
específico contexto histórico romano se evidencia o resultado mais significativo decorrente
desta relação. Isto é, torna-se claro que: profanus, quando não pode ser contraposto a sacer,
torna-se estranho ao sistema dominante da sapientia romana que destaca as oposições “sacer /
profanus = publicus / privatus”. Portanto, a estreita relação (mesmo na contraposição)
emergente entre o profano e o sagrado mostra como o fim último da profanatio é justamente
de tornar ‘livre do sagrado’, ou seja, tornar profanus significa liberar perante o sagrado a ação
do homem. 10

A Contraposição Religioso/Cívico: a redução arbitrária de uma cultura outra

A atenta análise do percurso histórico – e das decorrentes complexidades conceituais –,


traçado logo acima, pode ser posta em relação com o recente desenvolvimento (ocidental) da
contraposição religioso/cívico: tudo isto nos permite chamar a atenção para uma primeira
observação, isto é, quanto se torna impossível separar um “religioso” em culturas diferentes
da nossa (mas também em determinados momentos do nosso passado histórico), assim como
se torna evidente que cada tentativa nessa direção obtém simplesmente a redução arbitrária de
uma realidade alheia à nossa específica realidade histórica. Se cada cultura é
fundamentalmente tecida por um próprio sistema de valores, a sua análise histórica ou
cientificamente constituída não pode se propor através de um julgamento de valor(es), na
medida em que resulta impossível atribuir-lhe do exterior esse tipo julgamento. De fato, não
existem valores absolutos abstraíveis de um determinado sistema cultural: motivação pela
qual, do ponto de vista de uma perspectiva adequadamente histórico-religiosa, é impossível
valorar objetivamente uma cultura qualquer.

E se, por um lado, não se pode isolar a religião de um determinado contexto cultural, por
outro se impõe a necessidade de contextualizar (cultural e historicamente) o instrumento
“religião” em seu berço ocidental. Significativo, a esse respeito, o fato que a cultura ocidental,
nas palavras de Nicola Gasbarro, se constitui enquanto:

10
Como Sabbatucci demonstrará em seguida, no exercício de uma condição político e social peculiar que leva
Roma “do Fanum à Civitas”, título do sucessivo capítulo X do livro.
45
[...] única cultura no mundo a inventar-se em termos de civilização e de
religião, e a construir a própria história e depois aquela do mundo enquanto
uma contínua oscilação entre os dois termos,

e a partir desses pressupostos:

[...] depois da religião natural e do direito natural, o Ocidente inventa a


civilização e a religião como construções culturais, isto é a Antropologia e a
História das Religiões.11

A escola italiana de Histórias das Religiões manifesta-se, portanto, com essas características,
enquanto uma escola autenticamente histórica que, desde a sua fundação, deu-se como
objetivo de pesquisa histórica a religião ou aquilo que, nos termos classificatórios da nossa
cultura, é levado em consideração enquanto tal.

Dilatação do Conceito de Religião

Finalmente podemos afirmar que a História das Religiões colocou e resolveu o problema de
uma definição da religião, dilatando o próprio conceito até conseguir torná-lo funcional às
culturas particulares estudadas. Operando dessa maneira, a disciplina recalcou
inconscientemente o próprio processo histórico do qual nasceu e se desenvolveu o conceito
“religião”: de fato, esse nosso conceito ocidental ampliou-se, histórica e progressivamente,
com o aumento dos termos de comparação, a começar das origens cristãs de sua
resignificação (verdadeiramente revolucionária) até os nossos dias. Não é por acaso que,
efetivamente, a adoção do termo religio, por parte das línguas europeias, depende diretamente
do processo de “cristianização” do termo e não daquele de sua “latinização”. Portanto, a
historicização do conceito de religião relativiza (tem que relativizar, necessariamente) o
próprio conceito em relação à nossa própria cultura. Esta relativização, enfim, implica o
reconhecimento de que:

1) “religião” significa alguma coisa quando se refere a um denominador (religião


romana, religião chinesa...), ou seja, quando se fala de “religiões” – no plural
referencial às culturas – e não de “religião”;

11
GASBARRO, 1988.
46
2) “religião” no singular e sem denominações significa um espaço de ação que se
pode individualizar somente em contraposição a um espaço de ação “cívico”;

3) a contraposição religioso/cívico é peculiar à nossa cultura e, portanto, traiçoeira e


inútil quando utilizada para aproximar-se às culturas etnológicas.

Como ressaltamos acima, através da análise histórico-crítica, a dilatação do conceito de


religião é destinada, portanto, a individualizar um percurso que vai da objetivação
(fenomenológica) da religião à “vanificação” (histórico-religiosa) do objeto religioso:
finalmente, trata-se de passar, necessariamente, da Fenomenologia da Religião (ao singular e
no sentido feito próprio por Eliade) para a História das Religiões (no sentido esboçado até
aqui). Desta maneira, segundo quanto apontado no Sommario de Sabbatucci, à operação
fenomenológica que objetiva a religião se contrapõe (se deve contrapor) a crítica histórica
enquanto “vanificação” do objeto religioso: com isto, entende-se a operação de tornar vãs,
antes, as categorizações arbitrárias (as “formas elementares” da religião, a produção mítico-
ritual, a concepção de seres ou poderes extra-humanos etc.), até chegar a alcançar a própria
categoria do religioso, inútil ou, talvez pior, desviante, para se aproximar de culturas cuja
diversidade em relação à nossa se dá, sobretudo, pela falta de um “cívico” contraposto ao
“religioso”.12 Somente a partir desta operação será possível realizar, enfim, a investigação
específica de uma função cultural que é própria dessas realidades subtraídas ao mecanismo
interpretativo redutor – a pretensa autonomia do “religioso” –, através de uma revisão crítica
do material documentário fornecido pela Etnologia religiosa, pela Antropologia histórica e,
finalmente – em relação à construção conceitual propriamente ocidental – pela História e pela
prática historiográfica ocidental. Apesar do aparente paradoxo, com esse resultado, portanto,
longe de chegar a suprimir seu próprio objeto de investigação, a História das Religiões
continua sendo pesquisa histórico-religiosa: e isto, justamente por definir-se, ainda mais
pontualmente, enquanto análise histórica e comparativa, na qual os problemas que já foram
postos em termos classificatórios só podem encontrar uma solução a partir da exigência de
uma rigorosa comparação histórica e sistemática.

Problema e Método da Comparação Histórico-Religiosa

12
SABBATUCCI, 1987: p. 127.
47
É justamente nessa perspectiva que se coloca o problema da comparação que, na elaboração
da “Escola Italiana de História das Religiões”, encontrou uma nova colocação instrumental.
Esta preciosa ferramenta epistemológica constitui, de fato, a comparação histórica, não
enquanto uma comparação horizontal e estéril dos fenômenos culturais dados, mas enquanto
uma comparação de processos históricos (fenômenos culturais historicamente construídos):
isto significa que não se trata de uma comparação dedicada em nivelar e reduzir “fenômenos
religiosos”, mas, ao contrário, de um instrumento comparativo destinado a diferenciar e a
determinar as peculiaridades precípuas de cada processo histórico (que somente a comparação
pode destacar), para entender também, além das texturas fundamentais comuns, as não-
repetíveis soluções criativas concretas, historicamente realizadas.

A partir desses pressupostos, a perspectiva histórico-religiosa propriamente dita configura,


portanto, o “religioso” enquanto categoria própria e historicamente ocidental, não por sua
característica essencialmente predominante, mas por sua capacidade – historicamente
determinada – generalizante, em termos de capacidade de “absorção” (ou talvez seja melhor
dizer de “compatibilização”) das alteridades históricas e etnológicas. Um dos exemplos,
talvez mais significativos, dessa específica propriedade da categoria “religioso” pode ser visto
na sua utilização (reificação) missionária enquanto instrumento e condição fundamental para
desencovilar uma (pressuposta) “religiosidade indígena” que tornou possível tecer, de alguma
forma, uma fundamental estrutura interpretativa das alteridades etnológicas. Assim, por
exemplo, entre os séculos XVI e XVII, essa estrutura se configurou enquanto um
desenvolvimento hierárquico que, sobretudo no contexto americano, partia do “demoníaco
das sociedades selvagens”, passando por uma “idolatria incaica ou mexica”, para chegar ao
“ateísmo virtuoso chinês”. 13 Finalmente, nessa direção e nessas diferentes perspectivas
(sempre, todavia, historicamente determinadas) constituiu-se uma estrutura generalizante do
religioso ocidental que se tornou o fundamento de uma Etnologia propriamente religiosa, base
da moderna Antropologia.

Todavia, não podemos perder de vista uma consequência intrínseca à perspectiva e à estrutura
generalizante deste religioso: isto é, na medida em que tudo (ou seja, a diversidade que hoje

13
Que, dependendo dos vários momentos históricos e das diferentes ideologias modernas, pôde ser pensado
enquanto momento que preconizava, justamente, o último estágio (faltante e fundamental) de um processo
civilizacional ainda incompleto, aquele que esperava pela religião revelada; ou, de forma contraposta, enquanto
aviamento ou superação do modelo religioso referencial, até então, para o Ocidente cristão. A esse respeito, seja-
nos permitido remeter ao nosso: Jesuítas e Selvagens: a Negociação da Fé no encontro catequético-ritual
americano-tupi (séc. XVI-XVII). São Paulo, Humanitas/FAPESP, 2007.
48
definimos de cultural) se configura e se identifica com esta categoria, logo o religioso não
existe! Isto vem a significar que no ápice do processo de generalização antropológica das
sociedades etnográficas, o conceito explode tornando-se uma marca importante de sua própria
historicidade e da(s) historicidade(s) que, paralelamente, ele permitiu implementar. As
atormentadas aventuras históricas da categoria do religioso tornam manifesto, além do mais, o
possível e indispensável fundamento de uma (nova) historicidade das “sociedades sem
história”.

3. Religião, Antropologia e História

1. Religião

Na Idade Moderna, a reafirmação do Estado deu-se no interior de um “processo civilizador”


que recebeu um forte impulso de um processo de confissionalização do mesmo e que, na base
de uma progressiva e cada vez mais nítida separação da esfera religiosa daquela política,
fortaleceu-se na base de um seu cada vez mais evidente e característico pluralismo jurídico.
De qualquer maneira, todavia, antes de se reafirmar neste contexto histórico e com essas
características transformadoras, o instrumento conceitual e institucional do “Estado” se
constituiu, como já apontamos, na Antiguidade romana. É na base de sua herança e na esteira
das etapas de generalização ocidental (universalização) e de inclusão das diversidades
(compatibilização) – progressivamente emergentes e constitutivas do percurso histórico do
Ocidente – que encontramos, finalmente, o código “religião” enquanto herdeiro, durante a
Idade Média, desses pressupostos que já foram aqueles da concepção estatal antiga. 14

Não entramos aqui no mérito dos detalhes que caracterizam e acompanham a necessária
transformação, ao longo de todo o período, do sistema de universalização caracteristicamente
medieval, mas podemos apontá-lo em termos gerais tentando vislumbrar, pelo menos, sua
forte interferência no momento em que a primeira modernidade procura recuperar o antigo,
para fundamentar o processo histórico de uma ri-nascita civilizacional.

14
Trata-se da inscrição do pressuposto (e, depois, da consequente afirmação histórica de sua capacidade
operativa) de generalização que passa da civitas romana, para aquele da civitas Dei agostiniana. Com a
decorrente prioridade entregue ao direito divino (a lex aeterna) em relação à lei natural (lex naturalis) e à lei
positiva (lex positiva), que finalmente encontrar-se-ão subordinadas ao primeiro.
49
De fato, não é por acaso que, por um lado, a perspectiva do processo civilizador começa a
brotar e a se manifestar, em toda sua evidência, desde o confronto com a Antiguidade
realizado pelo Humanismo e pelo Renascimento; por outro lado, todavia, o influxo da
perspectiva religiosa incide particularmente sobre a diferente estrutura histórica emergente
deste confronto entre Antigo e Moderno. Isto é, na modernidade este influxo incide
emblematicamente sobre o modo de pensar a fé e a relação com a divindade. Com isso, a
modernidade vem se definindo a partir da colocação (e do consequente conflito) de duas
fundamentais e extremas alternativas: aquela que, por um lado, prospectava a salvação como
alcançável somente no interior da instituição eclesiástica e, por outro lado, aquela que via sua
possível realização somente por fora (além) dela. Seja para a interpretação das Escrituras, seja
para a salvação no Cristianismo católico (construído tanto na Antiguidade tardia, assim como
na e com a tradição pós-apostólica), não se pode dispensar a Igreja como instituição, na
medida em que naquela protestante moderna esta dependência torna-se, em princípio,
totalmente dispensável.

E com relação ao reconhecimento da função institucional, contrariamente ao pressuposto


protestante, naquele católico tratava-se da realização não tanto de uma revolução religiosa em
nome de uma maior autenticidade, mas do resultado de uma importante consequência
religiosa de uma revolução propriamente moderna de toda a cultura ocidental. Sua base
estrutural se define na obtenção de uma diferenciação essencial segundo a qual as escolhas
deixadas ao indivíduo tornam-se privadas (particulares) enquanto, por outro lado, aquilo que
diz respeito ao público não pode ser opinado individualmente: na modernidade ocidental,
enfim, a relação com Deus e a fé fazem parte da privacy. No Cristianismo católico (e antigo) a
religião, enquanto verdadeiro culto do verdadeiro Deus, é prioritária, sistematicamente, com
relação à política15 e Cristianismo ou Cristandade (e não a civitas) indica todo o sistema,
compreendida a civilização (fala-se em civitas christiana). As coisas mudam na modernidade:
aqueles que, como os protestantes, rejeitam a religião institucionalizada estabelecem como
código de prioridade sistemática e de valor a fé individual e a relação direta com Deus: a
pertença a uma fé é mais importante e organiza prioritariamente a comunidade dos crentes e
não mais a civitas Dei, porque a civitas (o Estado) pertence à política.

15
Ao ponto que se pode dizer Sacro Romano Império, mas não se pode chamar a Igreja em termos políticos, a
não ser juntando a expressão “de Deus”: por exemplo, civitas Dei em Agostinho.
50
Por outro lado não é menos evidente o fato de que, durante a primeira Idade Moderna, a
relação do Ocidente com as alteridades dos Novos Mundos continuou sendo construída,
sobretudo, em termos religiosos: e, de forma peculiar, esta se tornou uma característica que se
impôs ao longo de toda a história do Ocidente, até os nossos dias. Dito de outro modo: apesar
da perspectiva contratual (de Direito e civil) vigorar, na modernidade, internamente ao Estado
e ser estabelecida, progressivamente, enquanto código de relação entre os Estados europeus,
perante os povos extraocidentais continuava (e, muitas vezes, continua) prevalecendo a
perspectiva de uma universalização (de uma recuperação das alteridades externas ao
Ocidente) sub specie religionis.

Isto se deve ao fato que, depois do primeiro universalismo “civil”, construído pelo modelo do
Império romano, os sucessivos encontros (e choques) do Ocidente com as outras culturas
aconteceram quando ele identificava a si próprio com e na civitas Dei agostiniana. É assim
que, a partir desse momento, acabou se impondo a perspectiva de pensarmos (pudermos
pensar) o outro com o (e graças ao) conceito de religião: a equação que ia se estabelecendo,
então, correspondia à relação Nós : Civil = Outro : Religioso. Relação comparativa e
diferencial segundo a qual:

1) dava-se por pressuposto que o outro tivesse permanecido preso,


necessariamente, na dimensão de um estágio que nós (ocidentais) deixamos para trás no nosso
percurso histórico com a aquisição de uma dimensão civil (isto é, enfim, a alteridade vinha-se
configurando enquanto “fora da história” e era identificada como primitiva);

2) pressupunha-se, ainda, que o termo-realidade cultural com o qual se


identificava o outro, isto é o “religioso”, tivesse para os outros povos o mesmo significado
que havia (nas diferentes épocas e com relação aos diferentes encontros) para nós.

Tudo isso, enfim, comportou o fato de que o único critério de verdade sobre o qual o Ocidente
pôde fundar, de qualquer modo, uma comparação – ou no qual pôde procurar uma
compatibilidade comparativa –, era um critério teológico ou, no máximo, teológico-histórico.
Por outro lado, a comparação vinha se projetando segundo duas opostas dimensões: uma
diferencial (a relação: “religioso” versus “cívico”, correspondente, respectivamente, às
realidades: alteridade extraocidental versus identidade ocidental); outra analógica (o
“religioso” do outro enquanto correspondente ao significado da dimensão religiosa que o
Ocidente deixou por trás de si, de seu percurso histórico).
51
Significativo, ainda, que esses problemas comparativos se complicaram, final e justamente, a
partir do Humanismo. Este, de fato, veio a representar a nova centralidade cultural do civil:
aquilo que ainda hoje chamamos, impropriamente, de “laico”, “secular” ou “mundano”,
termos esses que, no fundo, podem ter um significado em nossa cultura somente se inseridos
no campo semântico do “civil”. E com a nova centralidade deste civil, o Humanismo vinha
acendendo, mesmo que lentamente, o progressivo processo de autonomia da política com
relação à religião. A partir, então, da comparação realizada segundo suas opostas dimensões
(diferencial e analógica), inevitavelmente entrelaçadas, é finalmente esta última complicação
que, mesmo abrindo um espaço de interlocução (todo ocidental) às outras culturas, tornou
quase impossível, para o Ocidente, realizar uma real compreensão sistemática dessas culturas
outras: que dão um valor diferente, mais ou menos sistemático, àquilo que nós chamamos de
religião.16

Como já apontamos, a oposição entre o civil ocidental e o religioso das outras culturas ganha
um novo impulso a partir da fratura essencial e dos consequentes e novos pressupostos
interpretativos que se estabelecem, no século XVII, no plano da representação da natureza e
de uma nova inserção do homem nela: trata-se daquela que denotamos como a emergência
histórica17 da específica “antropologia negativa” decorrente do fim do paradigma aristotélico:
de Hobbes, passando pelo empirismo inglês – e, consequentemente, por seu característico
deísmo –, de Locke a Hume, até Voltaire e Rousseau na França. Nesse momento
evidenciamos o surgimento de uma nova função social que a religião vinha assumindo, para
suprir, justamente, ao esvaziar-se da dimensão social (de aristotélica memória) própria do
homem de natureza: falamos então, a esse respeito, da aquisição de uma consciência civil da
religião e da consequente abertura teórica em direção à possibilidade de realizar uma sua
história natural (não mais sobrenatural). 18

Apenas para levar em consideração um exemplo, a esse respeito, podemos destacar como, no
berço dessa perspectiva, já a discussão entre Leibniz e Newton sobre a religião natural

16
Em plena época humanista podemos pensar, por exemplo, na própria civilização que mais perturbou o
ambiente cultural (e religioso) europeu e que representa, ao mesmo tempo, uma cultura que dá um valor
fortemente sistemático, mas diferente, àquilo que nós chamamos de religião: trata-se da cultura árabe clássica
que não conhece oposições como religioso/civil, eclesiástico/laico, espiritual/temporal ou outras dicotomias
ocidentais pensáveis somente no interior de uma cultura que é, ao mesmo tempo, civilização e cristã.
17
Nascida do forte impacto e da consequente transformação da cultura europeia que vêm se determinando com
as descobertas científicas do século XVII.
18
A primeira sancionada, por exemplo, pelo Contrato Social de Rousseau (1762), a segunda exemplificada,
entre outras, pela obra de David Hume, The Natural History of Religion (1757).
52
representa para Voltaire um motivo de atenção na medida em que, assumindo as defesas do
Deus de Newton, ele pode realizar a passagem necessária da metafísica à filosofia prática e,
particularmente, à filosofia política, tornando o Deus geômetra do universo newtoniano o
Deus garante do princípio da justiça comum a todos os homens cuja forma secularizada é, a
partir de Hobbes, o soberano. A salvação que o deísmo de Voltaire propõe, portanto, é uma
salvação terrena, baseada na fé de uma religião não dogmática, mas racional 19: em seus
preceitos pode-se encontrar o fundamento da existência social enquanto lei comum,
socialmente construída, não mais naturalmente dada. Nessa perspectiva, a relação céu-terra
não consiste mais em uma salvação que desce do céu para a terra, mas naquela de uma
racionalidade do homem – de uma sua construção artificial – que tem a função de elevá-lo da
terra ao céu.20

Esse representa o novo impulso do universalismo Iluminista (e que abre o momento histórico
de outro importante e novo confronto com a alteridade) 21 que vem preparando e, finalmente,
afirmando, para os séculos XIX e XX, a oposição entre o civil ocidental e o religioso das
outras culturas, tornando-a, progressivamente, radical: a radicalidade da nova oposição vem
se fundamentando, então, em um modelo civil (ocidental) de compreensão das alteridades
(inclusive em termos “religiosos”) contraposto ao modelo religioso das outras culturas que
engloba em si (em modo totalizante) aquilo que nós distinguimos enquanto civil. É por isso –
por coerência interna de seu próprio sistema – que, por exemplo, ainda aos dias de hoje, o

19
Nesta direção, a perspectiva de Voltaire se opõe firmemente, portanto, à própria e característica hipótese da
religião civil delineada por Rousseau: uma religião secular que lhe aparece somente fonte de violência e
reproposição dos horrores das religiões positivas. Enfim, tanto Rousseau quanto Voltaire propõem a mesma
análise da relação entre religião e política e a mesma solução ao problema do conflito de religião entendida
enquanto “despoliticização” do conteúdo substancial do dogma, mas a diferente visão que eles têm da natureza e
do homem social os leva a afirmar uma diferente estratégia de neutralização, que é dogmática na perspectiva da
religião civil de Rousseau, e fundamentalmente a-dogmática na religião natural de Voltaire. Dessa forma, na
base da visão voltairiana de um universo dominado por leis naturais que estão a demonstrar a existência de uma
Vontade criadora e de uma Inteligência ordenadora, que interveio no mundo somente no momento da criação, é
coerente a interpretação de Labriola que defende o fato da religião de Voltaire ser, na realidade, uma forma de
“ateísmo prático”, na medida em que, enquanto representa apenas uma hipótese reguladora da vida social, o
Deus de Voltaire representa (apenas) uma ideia prática (mesmo que importante) para assegurar ao mundo um
mínimo de moralidade. Cf.: LABRIOLA, 1926, p. 126.
20
Com relação a esses aspectos do deísmo e do sistema religioso (político e civil: um “uso instrumental da
religião”) de Voltaire, veja-se, sobretudo, o terceiro capítulo (“La tolleranza di Voltaire: tra morale e politica”)
do trabalho de Lanzillo (2000).
21
Em termos de exemplificação, a esse respeito, nos permitimos reenviar para nosso artigo “Destino e Vontade,
Religião e Política: Companhia de Jesus e Ilustração na Disputa Póstuma dos Ritos do Malabar”. In: Revista
História Unisinos 13(3), Setembro/Dezembro 2009, pp. 211-232.
53
Ocidente rejeita e pretende delegitimar, decididamente, o Islã, apontando seu dedo indicador
contra seu “integralismo”.22

Este fato torna evidente como, por um lado, no interior do característico percurso do
Ocidente, nós nos tornamos, pressupostamente, cada vez mais tolerantes para com a
diversidade religiosa, justamente graças àquele civil que funda nossa civilização.23 Porém, ao
mesmo tempo e, por outro lado, com a mesma ferramenta construída na base deste civil, nós
não permitimos que essa prioridade estrutural (conquistada historicamente, também, enquanto
processo de libertação do teológico e do meta-histórico) possa ser colocada em discussão por
nenhuma fé religiosa: de outra maneira tachada, com um juízo de valor pejorativo,
obviamente, enquanto “fundamentalista”. 24

Ora, vale observar, todavia, um fato importante e, muitas vezes, levado pouco em
consideração: isto é, que a própria palavra “fundamentalista” – que hoje em dia, por exemplo,
nos remete tão dramaticamente ao conflito com o Islã (mesmo que se esqueça quanto o
conflito é, também, interno a ele) – tem uma origem teológico-protestante. De fato, como
vimos no começo deste trabalho, lá onde falamos em “berço teológico-protestante da
manualística histórico-religiosa”25, para o protestantismo o “fundamentalismo” caracteriza
todos aqueles que, em nome da autenticidade da revelação originária, se opuseram às
tentativas de historicização religiosa da teologia liberal, antes, e da história das religiões,
depois. A partir dessa perspectiva (fundamentalista) do protestantismo, tentar compreender a
religião em seu contexto histórico significa, de algum modo, relativizar o dogma teológico
com relação ao sistema cultural de referência, até descobrir e apontar nele indevidas (na

22
A partir daí, portanto, o choque cultural entre os sistemas torna-se cada vez mais áspero com a intensificação
das relações políticas, comerciais, científicas, tecnológicas e militares. Com relação à complexidade do exemplo
islâmico, de seu característico percurso histórico de formação, da sua dialética histórica (e religiosa) com o
Ocidente, analisados em perspectiva propriamente histórico-religiosa, cf. GASBARRO, 1992.
23
Este percurso se delineia, finalmente, como processo de aquisição ao longo de toda a Idade Moderna: a partir
dos fundamentos civis do “pacifismo” de Erasmo, sobretudo em sua dimensão “religiosa”, até chegar à
tratatística sobre a tolerância. Em relação a esta etapa específica, vejam-se, por exemplo, as obras de Locke
(1983); e de Voltaire (2000). Mesmo o “empirismo britânico” – do qual o primeiro é o principal representante,
e o segundo um de seus mais fervorosos tradutores no contexto continental europeu –, que produz suas mais
importantes reflexões partindo de uma nova perspectiva segundo a qual se coloca o “contrato social”, deve
pensar e encontrar, nele, um novo lugar e uma nova função para a “religião”, socialmente entendida. Não será
por acaso que, entre um e outro, se erga significativamente, também a obra de David Hume (The Natural History
of Religion), na qual se pretende construir uma história natural da própria religião.
24
É por isso, ainda, que o Ocidente não permite que essa prioridade estrutural seja colocada em discussão, nem
mesmo pelo Islã: consequentemente, enquanto o Ocidente afirma a originalidade e a arbitrariedade histórica da
sua cultura, de seu processo cultural, não pode não julgar “fundamentalistas”, por exemplo, os modernos
muçulmanos radicais. Cf., ainda, Nicola GASBARRO, 1992, obra citada.
25
Que apontamos no começo do presente artigo.
54
perspectiva protestante) incidências político-civis, caracterizações jurídicas, determinações
sócio-culturais. Os teólogos fundamentalistas, finalmente, são aqueles que vêm, nessas
pesquisas, uma ilegítima antropomorfização do divino, uma historicização errada do meta-
histórico, quase uma mundanização herética do espiritual.

Se quisermos generalizar, finalmente, passando da perspectiva teológica (religiosa) para


aquela cultural (civil), é possível chamar de “fundamentalista” aquela atitude dogmática,
centrada na exegese literal das escrituras, que repropõe a religião originária enquanto
paradigma não modificável da inteira vida social e faz de tal fé a estrutura ordenadora de
todos os valores culturais. Longe de ser a prerrogativa de um Islã ameaçador das fronteiras
civis do Ocidente, como banalmente se insiste, muitas vezes, hoje, tratar-se-ia, enfim, de uma
sistemática radicalidade religiosa – da qual encontramos vários exemplos, ontem e hoje,
internos à própria história do Ocidente – que torna herético o civil moderno e, em nome da
nostalgia originária e fundante (como aquela de cunho eliadiano e fenomenologista, apontado
no começo deste trabalho), se opõe a qualquer inovação histórica e científica. 26

2. Antropologia e História: exigência de uma comparação sistemática

O impor-se de uma necessária comparação histórica, com relação a tudo quanto apontamos
em relação à teoria e ao método histórico-religioso, nos impõe de levar em consideração,
finalmente, a decorrente constituição da nova perspectiva propriamente antropológica. Ela
surge, de fato, no final desse percurso, como herdeira de uma função (interpretativa) de
generalização e de universalização: ao seu limite, voltada (e/ou destinada) a desenhar e tornar
possível uma compatibilização das diferenças. E, veja-se bem, muitas vezes essas funções não
se caracterizam apenas e limitadamente em termos teóricos e interpretativos, mas recebem a
força operativa de uma lei que lhes confia a tarefa da elaboração de estudos que, por exemplo,
se configuram enquanto finalizados à construção de uma “etnicidade” impensável sem

26
Exemplo evidente, entre outros, deste importante aspecto fundamentalista protestante é, nesses tempos, aquela
atitude que surgiu em âmbito norte-americano – justa e paralelamente ao estabelecer-se do conflito, em forma de
pretexto e paradoxalmente, em nome da democracia (realmente integralista), com o fundamentalismo
integralista islâmico. É este contraditório fundamentalismo que, enfim, levou determinados setores da cultura
norte-americana a combater, inclusive, a teoria científica (ou se quisermos a proposta interpretativa) da evolução
das espécies de Charles Darwin.
55
referência à sua relação com um determinado ordenamento jurídico nacional. 27 Ao mesmo
tempo, esta nova perspectiva antropológica evidencia-se enquanto resultado do processo
histórico inaugurado, antes, com a nova extensão do conceito de civilitas (em termos de
processo civilizador), ao longo do Renascimento e da primeira Idade Moderna; resultado
solidificado, depois, com a perspectiva iluminista de uma “ciência do homem”, e efetivado,
progressiva e finalmente, enquanto nova perspectiva de universalização ocidental (mais uma
vez sobre a re-fundação de uma nova ratio que se torna, enfim, a “razão” própria das Luzes).

Neste percurso, inscreve-se, portanto, o novo estatuto da comparação que resultará ser,
também, o instrumento necessário e privilegiado para fundar a moderna ciência antropológica
no interior da qual a comparação entre elementos vai levar, inevitavelmente, a um confronto
entre sistemas culturais e a um aprofundamento histórico desses sistemas. Os indícios da
origem da disciplina antropológica em seu enraizamento, neste específico percurso que funda
a comparação, podem ser vistos, justamente, nas categorias prioritárias, historicamente
fundadas, do “civil” e do “religioso”: elas foram sendo lapidadas na “proto-antropologia”
missionária da modernidade, tornando-se a base da inicial “Antropologia religiosa” e
constituindo-se, enfim, enquanto herança sólida – mas sempre historicamente construída –
entregue à Antropologia (tanto social quanto cultural) que, ainda hoje, encontra nessas
categorias alguns de seus códigos referenciais fundamentais e privilegiados. Podemos dizer
que a transformação da perspectiva antropológica se verifica, no período de sua constituição
moderna, a partir de um conhecimento – realizado através da comparação – ainda normativo e
geral que progressivamente vai se configurando em uma abordagem histórico-generativa e
local, como a chama Clifford Geertz.28

É a partir desta perspectiva que se pode perceber e afirmar, finalmente, que não existem
valores absolutos abstraíveis de um determinado sistema cultural: motivo pelo qual é
impossível emitir um julgamento de valor objetivo sobre uma cultura qualquer. Nesta ótica,

27
Isto faz com que se estabeleça a necessidade de refletir mais detidamente, por exemplo, sobre o “contexto
intersocietário no qual se constituem os grupos étnicos”, abandonando a sua caracterização abstrata e genérica,
para situá-lo mais precisamente como parte de um “quadro político preciso”. Segundo os termos sugeridos por
Oliveira (1998).
28
GEERTZ, 1983. Tendo em vista esta problemática que pretendemos delinear neste item 4, a partir daqui
iremos acompanhar parte do percurso apontado nas conclusões de nosso trabalho anterior, O Apetite da
Antropologia, obra citada. Aqui desvincularemos aquele percurso do interesse relativo à especificidade daquela
investigação (em relação à Antropofagia americana), centralizando-o, sobretudo, nos fundamentos e na
perspectiva da abordagem da Antropologia e, com ela, daquela da História das Religiões.
56
portanto, a partir de uma perspectiva propriamente antropológica, mas também, internamente
a ela, histórico-religiosa, nos tornamos conscientes que:

A história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de


acordo com os esquemas de significação das coisas. O contrário também é verdadeiro:
esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os
significados são reavaliados quando realizados na prática.29

Isto torna manifesto, então, como:

as diferentes ordens culturais têm seus modelos próprios de ação, consciência e


determinação histórica – suas próprias práticas históricas. 30

As ciências históricas e antropológicas demonstram, enfim, o quanto a percepção cultural está


longe de uma configuração objetiva da realidade: esta apenas se entrega a nós como
construção de significados.31 Ora, esta construção de significados corre o risco, todavia, de
refletir-se, muitas vezes, em uma dialética interpretativa do outro antropológico que é
elaborada em função de uma autodefinição do “si mesmo ocidental”, enquanto, por outro
lado, a própria cultura europeia naturalizou, para si, fenômenos de caráter histórico. Entre
outras, a imagem do “selvagem” tornou-se, por isso, funcional à nossa cultura ocidental, que
“funciona” através das contraditórias ficções em que, na sua estrutura complexa e articulada,
pesquisa histórica e mitopoese coexistem interagindo numa singular complementaridade. 32

O discurso sobre o “outro” se configura, então, de forma paralela, como um discurso sobre si:
e, do ponto de vista antropológico, não podemos esquecer que o processo vale tanto para o

29
SAHLINS, 1990, p. 07.
30
Idem, Ibidem, p. 11.
31
Nesta direção, portanto, a “cultura” vem sofrendo, na disciplina antropológica, o mesmo processo de
“relativização histórica” que vimos ocorrer com a “religião” em âmbito histórico-religioso; ou seja, depois que
certa inicial identificação (tradução) antropológica da religião em termos de cultura correu o risco de objetivar
também esta última, finalmente se impôs quase que uma sua “vanificação”, análoga àquela que ocorreu com a
objetivação do religioso. O resultado foi o surgimento de uma perspectiva segundo a qual, assim como aconteceu
com a religião, a cultura também se constituiu – ou melhor, no caso de muitos estudos, ainda teria que se
constituir – enquanto “código”. Exemplo significativo dessa nova perspectiva crítica da ideia (conceito) de
cultura é, entre outros, o trabalho de Terry Eagleton (2000). Mas, a esse respeito, resulta importante sublinhar,
ainda, quanto menos entre outros, o trabalho de Adam Kupper (2002). Ainda, no que diz respeito à crítica do
conceito de cultura (em sua contraposição àquele de “civilização”), às características descobertas e modalidades
de “invenção” do outro, assim como à problemática antropológica geral deste item, pode resultar interessante
confrontar o trabalho de Mondher Kilani, 1994; em seus capítulos primeiro e quarto.
Com relação à noção de “código” e de sua função analítica e interpretativa, veja-se enfim o trabalho, já citado,
Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural, de Paula Montero (Org.).
32
Ver: MAZZOLENI, 1986.
57
etnógrafo quanto para o nativo. Todavia, é importante observarmos como o fato de reconhecer
a contemporaneidade etnográfica e nativa deste discurso:

não elimina os problemas da diferença ontológica, isto é, aqueles que


derivam do fato de que o Nós percebe o Outro como tal. Problemas que nem
o relativismo extremo nem o objetivismo logocêntrico podem anular. O
primeiro enquanto conduz à anulação da diferença colocando tudo no
mesmo plano; o segundo porque reconduz essa diferença a uma variação da
maneira de ser do observador.33

Ontem como hoje, portanto, enquanto não for levada em consideração a consciência histórica
de um etnocentrismo crítico, podemos verificar como, por exemplo:

na ‘América vista e imaginada’ pela sua invasão, gerações de viajantes, de


alqueivadores, de colonos, de administradores, de missionários e cientistas
têm construído o índio ou, mais exatamente, o seu índio sem
verdadeiramente ouvi-lo. Os índios serviram de pretexto para a luta política,
serviram aos sonhos de evasão e de exotismo, à criação artística, à
evangelização, aos ímpetos de emancipação sexual, aos discursos
antropológicos. Houve o índio do missionário, o índio do filósofo, o índio
do revolucionário, o índio do político, o índio do utopista. 34

O fato é que esta específica modalidade de relação com a alteridade diz respeito às
potencialidades e aos instrumentos que se encontram no patrimônio cultural europeu,
historicamente construído: e este patrimônio se identifica, sobretudo, com a estrutura aberta e
auto-referencial própria deste sistema cultural. Por força de governo (administração) das
coisas e dos homens, a primeira característica funda e alimenta a segunda, que permite
administrar a produção semântica e a organização social. O Humanismo, que impõe uma
subjetividade histórica e cultural, constitui o princípio da nova exegese filológica e da
transformação dos textos; a comparação das diferenças faz emergir semelhanças que se
inscrevem na ordem racional da natureza. Cria-se, portanto, uma “razão natural” que se torna
princípio fundante e essencial dessa nova semântica do sistema auto-referencial. 35

33
FABIETTI, 1993, p. 279.
34
KILANI, 1993.
35
GASBARRO, 1992, p. 33-35.
58
É esse importante fato histórico que configura a modernidade como complexo de comparação
entre sistemas de valores e modelos de comportamento, evidenciando compatibilidades ou
incompatibilidades estruturais que se traduzem em eventos de encontro e de choque. Mesmo
partindo da consciência das diferenças entre culturas, a Antropologia relativista, muitas vezes,
se esquece que a própria diferença é constituída, em sua especificidade, enquanto dado
histórico contingente que tem uma formação e um desenvolvimento próprios: e assim acaba
fazendo dele um valor necessário e meta-histórico. Contrariamente a esta postura, do ponto de
vista histórico-religioso, todavia, não podemos esquecer que a igualdade (e suas modalidades
de produzir as diferenças) não é uma característica congênita à humanidade, mas uma
conquista histórico-cultural. Nessa direção pode se falar de:

[...] um êxito paradoxal da antropologia relativista. […] O julgamento meta-


histórico aplicado à história conduz, inevitavelmente, a uma nova
intolerância. […] Ainda mais grave é o completo esquecimento da
diversidade como descoberta, antes, e como problema cultural, depois, das
origens da Idade Moderna até os nossos dias.36

Esta conquista histórica e cultural renascentista – que resulta ser a Igualdade enquanto
exigência semântica da transformação social e do nascimento cultural do mundo moderno –
tende a desnaturalizar as diferenças para poder torná-las objeto de história. Essas diferenças,
subtraídas à natureza (à qual ficaram subordinadas desde a Antiguidade até o fim da Idade
Média), foram, de fato, entregues à cultura durante a Renascença, que se constitui, desse
modo, como o momento do nascimento de uma igualdade natural: esta última, depois de
encontrar sua resolução científica e definitiva com O pensamento selvagem, de Lévi-Strauss,
abre a perspectiva (e a possibilidade do entendimento) da diferença cultural ao método
comparativo e impõe, para si mesma, o problema da especificidade histórica e relacional (não
absoluta) do Ocidente. Nesta nova perspectiva, a Antropologia torna-se, por consequência e
inevitavelmente, Antropologia histórica.

O próprio Lévi-Strauss entreviu justamente o afirmar-se desse percurso no contexto


renascentista e a partir da obra que ele mesmo considera o fundamento da própria perspectiva
antropológica: aquela de Michel de Montaigne. E, de fato, colocando em crise o equilíbrio
analógico construído pela teologia medieval e fazendo explodir as diferenças sistemáticas

36
Idem, Ibidem, p. 15-16.
59
sufocadas por esta grande construção analógica, o Humanismo fez explodir, também, a
emergência da nova consciência histórica do Ocidente que, finalmente, o obrigou a levar em
consideração uma realidade outra muito mais articulada e complexa, não redutível ao
tradicional dissenso teológico. Nesta perspectiva, dissemos, Montaigne torna-se o precursor
de uma posição, que será característica do racionalismo filosófico, mas que mantém uma sua
rica peculiaridade: aquela de uma “razão tênue”, funcional ao preanuncio da constituição de
um “pensamento selvagem”. Com esse instrumento crítico, central nos Ensaios, determina-se
uma nova dimensão na qual os valores não são mais enraizados em realidades intemporais,
como a palavra divina ou a razão natural: mesmo os valores ideais da consciência aparecem, a
ele, como valores que nascem, assim como todas as crenças, mesmo as mais bizarras, do
hábito, das formas de vida, das paixões. Consequentemente, a reflexão céptica de Montaigne
sobre a multiplicidade dos valores foi se alargando em direção à análise de sua gênese e à
reflexão sobre a sua consequência apontando para uma nova impossibilidade de reduzir as
culturas à unidade e à afirmação de uma universalidade. Trata-se, enfim, do reconhecimento
da complexidade de todo sistema social e das relações que existem entre mais culturas que,
inclusive, por esta via, abriu a perspectiva da tolerância na consciência europeia. Como
relevamos na Introdução aos Ensaios:

[...] para Montaigne, a razão é desprovida de autonomia e se constitui da


mesma matéria da qual são feitos os hábitos. Poderíamos dizer que é posta
em dúvida uma razão independente do costume, que os costumes
representam a única possibilidade, para os homens, de organizar tanto suas
ações quanto suas próprias ideias.

Mas, se o homem é inteiramente governado pelo hábito, se é prisioneiro de


sua condição, a razão consuetudinária torna-se um obstáculo para o
entendimento da própria particularidade e diferença. A força dos costumes
torna bárbaro o nosso juízo e, através do processo de naturalização do que
nos é usual, nega a existência da natureza em si. Dessa forma, Montaigne se
propõe renunciar aos julgamentos absolutos, ao construir uma “razão” (que
impõe o uso das aspas) completamente nova, que supera a velha razão
fechada no horizonte das práticas consuetudinárias.

60
E isso se torna possível ao criar, inclusive, a possibilidade de renunciar à
unidade do gênero humano e ao propor, em consequência, uma diferença
cultural superior à própria identidade natural. Essa é a grande possibilidade
aberta pela herança renascentista, que, ao superar o risco de ruptura que a
diversidade poderia trazer à constituição de um paradigma de
“Humanidade”, que começa a ser construído justamente nos anos dos
Ensaios, permita pensar – como reflete o pensamento do próprio Montaigne
– que “deparamos em qualquer homem com o Homem” (III, II).37

A unidade epistemológica do Homem, da Humanidade, adquirida com o percurso


renascentista, constitui-se como garantia que permite uma inédita imersão nas diferenças
culturais: estas diferenças, no fundo, se configuram como diferença de costumes e não mais
de uma essência (naturalmente entendida). Com tudo isto, o novo estatuto ambíguo da razão
proposta por Montaigne quebra a sua rigidez e aponta para uma sua nova plasticidade a
serviço de um novo olhar antropológico, da constituição dos fundamentos e da perspectiva da
moderna disciplina antropológica. Como bem destacado por Lévi-Strauss, para Montaigne:

toda sociedade parece selvagem ou bárbara quando se julgam seus costumes


pelo critério da razão; mas, julgada por esse mesmo critério, nenhuma
sociedade deveria parecer selvagem ou bárbara, pois que, para todo costume
recolocado em seu contexto, um discurso bem conduzido poderá achar
fundamento.38

Esta é a operação de desnaturalização das diferenças que pode e deve permitir torná-las objeto
de história. Como dissemos, a partir dessa operação, o próprio pensamento selvagem de Lévi-
Strauss abre a perspectiva de um entendimento da diferença cultural que, baseado no método
comparativo, impõe, consequente e inevitavelmente, o problema da especificidade histórica e
relacional (isto é, não absoluta) do Ocidente. Finalmente, é nesta nova perspectiva que se
inscreve, necessariamente, a necessidade – ainda apenas teórica em Lévi-Strauss – para a
Antropologia de torna-se Antropologia Histórica.

A Antropologia, portanto, não tem outro caminho a não ser o de partir desta historicidade –
além que de sua própria historicidade – para nela (e através dela) encontrar suas raízes e seus

37
AGNOLIN, 2000, pp. 28-29.
38
LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 192.
61
limites que, conscientes, tornam-se suas potencialidades. E se, nesse percurso, o discurso
antropológico acaba encontrando em si mesmo a expressão de uma relação eurocêntrica, hoje,
pelo menos, parecem ser duas as alternativas com que ele pode se deparar.

Uma é a da Antropologia pós-moderna que, estabelecendo a equivalência das culturas e de


suas vozes, querendo reconhecer (seria, talvez, melhor dizer “impondo”) uma igualdade na
diferença, acaba ocultando as relações de força que interligam as diferentes culturas. Além
disso, o fato de não reconhecer esta hierarquização faz com que a Antropologia pós-moderna
oculte, ao mesmo tempo, a hierarquia que fundamenta, constitui e institui seu próprio
discurso.

De fato, qualquer que seja a possibilidade do outro no discurso


antropológico, este é sempre reconhecido a partir da representação que está
em curso no seio da comunidade dos antropólogos num momento
determinado de sua história. 39

A segunda alternativa para a Antropologia é a de admitir a historicidade (e, portanto, partir


dela) que desvenda a verdadeira natureza do trabalho antropológico. Trata-se, no fundo, de
reconhecer a característica hermenêutica do campo de estudos da Antropologia (como de
outras ciências sociais) que ganhou espaço no debate antropológico com a obra de Geertz40,
mas que encontra bem antes suas raízes, tanto na obra de Weber, quanto na tradição própria e
peculiar das ciências humanas italianas e, especificamente, na obra de De Martino.

No âmbito dos estudos sociológicos, contrariamente a uma análise marxista – que apresentava
as religiões como instrumenta regni das classes dominantes e, portanto, as concebia
relacionadas, mais ou menos diretamente, a contextos econômico-sociais – Max Weber
apontou para a possibilidade de um processo oposto reivindicando para uma forma religiosa
(o calvinismo) a origem de um sistema econômico-social (o capitalismo) 41. Dessa maneira,
em contraposição ao marxismo, o sociólogo alemão negou a possibilidade de que a religião
representasse a ideologia, ou o reflexo, de uma determinada camada social, procurando,
assim, alcançar a dinâmica, e uma hermenêutica, específica de cada fenômeno analisado.
Dinâmica e hermenêutica específicas que, se encontram espaço na análise e na perspectiva
teórica mais abrangente propostas por Weber, alcançam seu objetivo de entendimento de cada
39
KILANI, 1993.
40
GEERTZ, 1973; 1988; 1989.
41
WEBER, 1974.
62
específico fenômeno justamente partindo da negação da possibilidade (pressuposta) de
princípios estruturantes universais: é contra estes que o autor afirma existirem, enfim,
somente determinações parciais referentes a casos empíricos concretos.

Por outro lado, Ernesto de Martino, relendo na linguagem de Husserl a distinção entre
naturalismo e historicismo, afirmava que a ciência natural assume como próprio horizonte de
conhecimento a constituição fenomenológica de um “mundo em si”, de uma natureza como
“dada”, antes e independentemente da presença humana. O método dessa ciência se funda
sobre “um ‘como se’ operativo postulante de um ‘em si’ sobre o qual se opera”, que
representa, todavia, ele próprio, um produto culturalmente condicionado. A História e a
Antropologia se ocupam exatamente desse tipo de escolha cultural: tendo como seu objeto de
análise a constituição fenomenológica de mundos, no entanto, elas não podem dar por
assentado (por adquirido como horizonte de estabilidade) este “como se”, e sim, devem
assumir um horizonte mais amplo no qual, o fato de o mundo ser dado (datità do mundo), por
assim dizer, não esteja ainda decidido 42.

Enfim, tanto para De Martino quanto para Weber, na base das respectivas bases problemáticas
colocadas enquanto precondições fundamentais por suas indagações, o mundo não pode se
oferecer, pressupostamente, como “dado”, mas deve ser levado em consideração enquanto
“construído”: aqui se inscreve, também, e ecoa a emblemática e portentosa definição
distintiva, à qual já fizemos referência, proposta por Raffaele Pettazzoni, segundo a qual
“cada phainómenon é um genómenon, cada aparição pressupõe uma formação, e cada evento
tem atrás de si um processo de desenvolvimento”43, cujas dimensões não podem ser
ignoradas. Partindo desse pressuposto, portanto, podemos dizer, de outra forma, que:

o objeto da antropologia e de outras ciências humanas não são fatos


constituídos no interior de um discurso compartilhado, mas a própria
diversidade dos discursos dentro dos quais os fatos se constituem. 44

Por isso, se a segunda alternativa para criar a possibilidade do “outro” no discurso


antropológico é a de admitir a (e partir da) historicidade que desvenda a verdadeira natureza
do trabalho antropológico, aqui se colocam alguns problemas característicos da ciência
antropológica. Antes de tudo, na maioria das vezes, essa ciência faz uso de modelos (de
42
DE MARTINO, 1977, p. 646.
43
PETTAZZONI, 1959, pp. 1-14.
44
DEI, CLEMENTE, 1993, p. 87.
63
conhecimento) que têm como característica principal uma atemporalidade, ou seja, modelos
de análise e enunciados de discursos que descuidam das relações com o elemento diacrônico.
Mas o tempo não se configura como uma categoria a priori kantiana da experiência
antropológica: ele assume a função de um conferidor de significado (tornando-se “uma forma
através da qual definimos o conteúdo das relações entre o eu e o outro”45).
Consequentemente, ele marca uma sua presença forte na política daquela disciplina e –
juntamente com o fato de ser um dispositivo político na construção do objeto antropológico –
faz com que a relação “nós” / “outros” revele todo seu caráter temporal, isto é, histórico e
político: e, portanto, nos impede de ocultar esses dois fatores, sobretudo quando a supressão
da dimensão temporal se dá, proposital e conscientemente, a fim de agilizar os modelos de
análise, mas, no fundo, alterando profundamente esta última.

Enfim, se tomarmos a Antropologia como uma ciência, é claro que suas categorias/conceitos
devem ser postos em relação com a dimensão temporal. De outra forma, ela se delinearia
como um mito, através do qual o Ocidente, ao mesmo tempo, conta e constrói a e para si
mesmo através de um “outro”: que, neste caso, se configuraria apenas enquanto herói
fundador, “nós originário” (mito-lógico), de nossa identidade cultural.

No momento em que a nossa cultura (ocidental) alargou a definição de “humano” para além
dos limites/confins da aldeia, encaminhou-se em direção ao reconhecimento da “cultura” –
antes, da “civilização” – como patrimônio comum da humanidade. O fundamento desse
percurso – o caminho que levou até a invenção cultural da igualdade na Renascença – tornou
possível o reconhecimento, no interior de nossa cultura, de uma possibilidade de
entendimento da alteridade; por outro lado, ao reconhecer a universalidade da “humanidade” e
da “cultura”, este fundamento corre o risco de partir de uma tautologia e de um
desdobramento: é nesse momento, de fato, que o “humano” assume o valor de lei moral e, ao
mesmo tempo, de princípio de exclusão.

Ora, todavia, a partir desta perspectiva devemos procurar as condições – dentro de nossa
cultura e de nossa história – necessárias para entender como, nessas culturas outras, a
condição de homem representa, sempre, um desafio e uma condição precária. Pois, nessas
culturas, se pode (isto é, não se trata de um fato automático) ser homem, na medida em que se
constrói de forma correta a relação cultu(r)al de troca (e, em certas situações, de defesa) com

45
FABIAN, 1983, p.9.
64
as divindades, os antepassados, os estrangeiros, os animais, a natureza. Isto significa que, a
“humanidade” que nós nos garantimos enquanto categoria, as culturas tradicionais garantem
para si como relação. E, de nossa parte, não temos certeza de que esse processo seja
irreversível, nem que possa ser total, completo, adquirido uma vez por todas.

Dissemos e verificamos que a igualdade (natural) entre os homens é um processo que surgiu,
historicamente, na Renascença. Essa época histórica fundou a concepção relacional e
estrutural das culturas e tornou possível a exemplificação mais paradigmática e significativa
da moderna Antropologia: o pensamento selvagem.46 Partindo desses pressupostos, Lévi-
Strauss sentiu-se autorizado a conceber a Antropologia como uma grande forma de
comunicação do homem com o homem e, fechada a longa discussão sobre a igualdade, pôde
abrir as perspectivas da diversidade (cultural) à pesquisa futura. Uma vez adquirida, histórica
e culturalmente, essa igualdade (natural), abrem-se, enfim, novas perspectivas para a
Antropologia histórica: uma primeira que

obriga a pensar a diversidade cultural como alteridade relacional ao


Ocidente: e uma [a alteridade] e outro [o Ocidente] como sistemas de
complexidade variável em comunicação entre eles;

e uma segunda perspectiva que diz respeito à

transformação radical da Antropologia […]. É preciso [enfim] torná-la um


problema [justamente] porque não existe mais o risco do desvio
naturalístico das diferenças. 47

E isto se tornará possível na medida em que a Antropologia conseguir distinguir, claramente,


categoria de relação. Não podemos perder de vista, enfim, que a categoria representa um
instrumento de análise que se torna, frequentemente, um “objeto” e, enquanto tal, este fato
oculta o “processo” que a constituiu. Um processo cujo entendimento é fundamental na
medida em que, ao ser levado em consideração, revela:

 as relações que se estabelecem entre Ocidente e culturas tradicionais (nos dois sentidos);

46
Não “o pensamento dos selvagens”, mas o comum substrato (estrutura) de um único e fundamental
pensamento selvagem.
47
GASBARRO, 1992, p. 26-27.
65
 o paralelismo e as diferenças (em ambas as perspectivas culturais) de um garantir a
própria identidade, constituindo-a como uma relação; e, enfim

 a necessidade de passar-se, no Ocidente, de uma filosofia do objeto (conceitual) para uma


filosofia da relação: e isto se dá, entre outras modalidades, através da análise da(s)
prática(s) e/ou do(s) discurso(s).

Tendo em vista isto, portanto, segundo o convite de Pettazzoni, a Antropologia também


(como a História das Religiões) deve transformar cada phainómenon em genómenon: isto é,
deve partir da historicidade dos fatos que estuda (além de sua própria historicidade), para nela
e através dela encontrar suas raízes e seus limites. De outro modo, corre o risco de perder de
vista um fato essencial: que foi a nossa cultura (ocidental) que alargou a definição de
“humano” para além dos limites, necessariamente restritos, das culturas particulares para
encaminhar-se verso o reconhecimento da “civilização”, antes, e da “cultura”, depois, como
patrimônio comum de uma “humanidade” que somente a tradição historiográfica ocidental
poderia produzir. E se, num primeiro momento, esse “Humano” assumiu o valor de lei moral
e, ao mesmo tempo, de princípio de exclusão (o “inumano”), hoje o debate entre História e
Antropologia desperta a consciência de que não é mais possível operar através de tais
julgamentos de valor: os limites e a possibilidade de “compreender”, de alguma forma, o
outro, são determinados por aquilo que se constitui como a herança cultural do percurso
histórico propriamente ocidental, ou seja, a possibilidade de constituir uma comparação de
processos históricos48 que permita evidenciar as concretas, irrepetíveis soluções criativas de
cada cultura.

E se

as ‘figuras’ categoriais da antropologia religiosa têm a mesma função que a


idolatria tinha para os missionários do século XVI: [isto é] classifica,
ordena, dá sentido, fixa hierarquias de valores, servindo-se da linguagem
potente e reificante da representação referencial e eliminando a
arbitrariedade cultural e histórico-aculturativa de sua construção,49

48
Que encontra a fundação de sua possibilidade no percurso histórico humanista-renascentista.
49
GASBARRO, 1996. p. 191.
66
no entanto, não se justifica o desinteresse pela natureza e pelo valor contextualmente
relacional de significantes que, tomados como categorias (ou a fim de representar o implícito
religioso ou para transformá-lo em “universal” antropológico) acabam operando
semiologicamente como os ídolos.

Se, portanto, como demonstrou de forma exemplar a leitura humanista do Novo Mundo
operada pelo jesuíta José de Acosta, o libero arbitrio – que permite abrir um espaço
fundamental para a alteridade no contexto cultural ocidental – deve encontrar seu fundamento
em uma estrutura moral universal, que se constitui como natural na medida em que é
garantida pelo “sobrenatural”, parece finalmente evidenciar-se o fato de que a etnografia,
enquanto história das diferenças,

é funcional a uma filosofia das igualdades antropológicas […]. O jogo


comparativo, em nível planetário, das igualdades e das diferenças começa
[…] em termos religiosos e “missionológicos”: os teóricos como Acosta são
os primeiros antropólogos, os missionários de campo são os primeiros
etnólogos.50

E, nesses termos “missionológicos”, a etnologia torna evidente, também, a genealogia da


razão histórica e cultural que nos leva a uma comparação entre civilização e religião: isto é,
como vimos neste trabalho, o modo segundo o qual construímos nossa identidade com os
valores fortes da civitas e da religio. Levar em consideração esses aspectos em nossa análise
comparativa não significa sair completamente deles (isto seria impossível, linguística e
epistemologicamente): aquilo que podemos e devemos fazer é não torná-los normativamente
universais, mas, a partir da perspectiva do etnocentrismo crítico, proposta e conceituada por
Ernesto De Martino, constatar, onde, como e quando, e a quais condições, isto aconteceu e
acontece. Trata-se, em suma, de indagar os processos históricos de sua ênfase e de seu
alargamento operativo enquanto categorias de universalização ocidental.

Nessa direção, enfim, para entender, de algum modo, as culturas outras na única dimensão
possível, aquela da mediação do contato, o Ocidente deve realizar o esforço crítico de
considerar essas suas próprias construções – privilegiadamente universais e, em princípio,
compatibilizadoras das diversidades culturais –, enquanto arbitrárias. Isto, tendo em vista que
o Estado – ou a civitas, à sua base –, não é a única organização sócio-política possível, assim

50
Idem, Ibidem, (nota de rodapé de) p. 202.
67
como o Cristianismo não é a única religião monoteística: o historiador, portanto, tem a função
de procurar as razões – históricas, não lógicas, porque a história diz respeito ao domínio do
arbitrário – do impor-se da síntese dos percursos formativos na história, seja do Estado ou do
Cristianismo, da civitas ou da religio, do Direito ou da Antropologia.

É a partir desses pressupostos e deste ofício do historiador – sobretudo, mas não só, do
historiador “das religiões”, todavia – que a comparação histórica tem que ser analisada como
estrutura de e em contingência: como nos ensinaram os autores renascentistas, mesmo com
nossos novos instrumentos historiográficos, a viagem no espaço, longe de limitar-se à
aventura exótica, deve ser também, necessariamente, viagem no tempo. 51 Por isso, partindo de
nossas codificações (universais e universalisadoras) de civitas e religio, a análise
propriamente histórico-religiosa deve procurar ver o que há no lugar delas, ou, dito de outra
forma, o que desenvolve sua função em culturas diferentes da nossa: naquelas sociedades que,
por essa diferença consideramos antropologicamente enquanto “alteridades culturais”.

A analogia – a comparação analógica inicialmente estabelecida pelo esforço missionário –


representa, sem dúvida, um importante ponto de partida para realizar, inicialmente, esta tarefa
fundamental: fundamental, é importante insistir, tanto para a História das Religiões como para
a Antropologia, a fim de verificar, das e nas outras culturas, a diferença de codificações que
respondem52 à função que a Civitas, o Direito, a Religio, a Civilização e (finalmente) a
própria Antropologia tiveram – e continuam tendo – em nossa cultura. Mas a perspectiva

51
Assim, por exemplo, em uma perspectiva já iluminista (por paradoxal que isto possa parecer) e sintetizando o
percurso renascentista, com sua obra Les Moeurs des Sauvages Américains Comparées aux Moeurs des
Premiers Temps (de 1724), o jesuíta Joseph-François Lafitau respondeu à dificuldade de reintegrar o selvagem
no curso geral da humanidade, dando sequência a uma perspectiva aberta por outros missionários jesuítas nos
dois séculos anteriores. Deslocando a questão inicial e abandonando a ideia de uma impossível história
cronológica dos Selvagens, a obra do jesuíta francês acabou influenciando profundamente o trabalho de
mediação cultural – dos missionários, antes, e da etnologia, depois –, tanto em relação ao Novo Mundo, quanto
em relação às culturas europeias: para fazer isto, na análise da figura do selvagem, introduziu, enfim, um novo
discurso que se fundamentava na comparação. Esta colocava lado a lado os Selvagens a ele contemporâneos e os
Bárbaros da Antiguidade, através de um quadro comparativo que lhe permitisse reconstruir os primeiros a partir
dos segundos e vice-versa, pretendendo reconstruir ambos pelos sinais (marcas) que teriam deixado, a fim de
remontar, assim, às suas origens. Todavia, para o jesuíta do século XVIII, não se tratava de um hipotético
desenvolvimento de uma história multimilenária, mas, pelo contrário, tratava-se de colher o próprio princípio, o
espírito, de usos e de costumes que teriam constituído a própria essência da humanidade. Isto significa que, em
termos missionários, evidentemente, na ausência da história (de seus vestígios) o quadro dos costumes se tornava
um recurso constituído por um sistema de sinais cuja codificação devia permitir revelar o “sentido oculto de uma
história cancelada”.
Ainda, nesta direção não podemos deixar de levar em conta a obra precursora de Acosta e seu fundamento na
tradição da “escola de Salamanca”, que se afirma por meio dos estudos do dominicano Francisco de Vitoria: cf.
PAGDEN, 1982; e GASBARRO, 1992; 1996. Em relação a Lafitau, veja-se, também, SABBATUCCI, 1987.
52
De algum modo e com diferente alcance de generalização, evidentemente, mas respondendo sempre às
exigências internas e fundamentais das sociedades “outras”.
68
analógica deve representar somente um ponto de partida para o conhecimento: isto porque,
finalmente, os frutos historiográficos maduros são alcançados antes no esforço e depois na
aquisição dos resultados metodológicos da História das Religiões. Esta institui uma
comparação propriamente histórica, sistemática e diferencial que, de fato, providencia a
dissolver a própria analogia, a fim de abrir espaço à história: e isto, partindo do âmbito da
cultura ocidental, que produziu os sistemas de universalização e, com eles, os encontros de
culturas como motores desta história que, somente de forma ingênua ou, eventualmente,
convencional podemos ainda identificar enquanto “religiosa”.

Com isto, segundo as palavras de Dario Sabbatucci, encontramo-nos perante o último


resultado da crítica histórico-religiosa enquanto necessidade de “vanificação do objeto
religioso”.53 Resultado desencadeado, teórica e metodologicamente, no final de um percurso
iniciado com os pressupostos delineados pelo fundador da disciplina, Raffaele Pettazzoni. Seu
convite e desafio em pensar, também para o âmbito “religioso”, o fato de que “cada
phainómenon é um genómenon”54, manifestava a necessidade de realizar o esforço de
reconstrução da formação e do processo de desenvolvimento de cada evento, de todos os fatos
religiosos: este esforço, enfim, é o único, mas importante e precioso, ofício – da construção de
uma verdade, toda histórica – do historiador das religiões.

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53
Termo que em português representa, sem dúvida, um neologismo, “vanificação” se refere à “ação de tornar
vã” e foi sugerido pelo autor in: La Storia delle Religioni, p. 95-98. Desse ponto de vista, a crítica histórica se
contrapõe, além que à etnologia missionária – da qual, todavia, parte –, à própria fenomenologia religiosa. Para
dizê-lo com os termos propostos por Sabbatucci: a história das religiões colocou, com efeito, e resolveu o
problema de uma definição da religião, dilatando o conceito até conseguir torná-lo funcional às culturas
particulares estudadas. Assim fazendo recalcou, inconscientemente, o processo histórico do qual nasceu e
desenvolveu-se o conceito de religião. Isso porque o nosso conceito de religião ampliou-se historicamente com o
aumento dos termos de comparação, a começar pelas origens cristãs, até os nossos dias.
54
PETTAZZONI, 1959.
69
Destino e Vontade, Religião e Política: Companhia de Jesus e Ilustração na Disputa Póstuma
dos Ritos do Malabar. In: Revista História Unisinos 13(3), Setembro/Dezembro 2009, pp.
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71
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72
Religione e/o religioni? La sfida dell'antropologia e della
comparazione storico-religiosa

Nicola Gasbarro1

1.

Il rapporto tra religione e religioni è ancora oggi un grande problema sociale, perché di fatto
non risolto dalla e nella nostra storia culturale: si tratta di una relazione-opposizione che rimette
in gioco sia il sapere teorico sia l'ortopratica pubblica dell'antropologia e della storia comparata
delle civiltà. La religione e le religioni sono certamente l'oggetto intellettuale della storia delle
religioni, ma possono esserlo anche della teologia e/o della filosofia: la differenza sostanziale è
nella prospettiva teorico-umanistica e nella conseguente pratica metodologica. Le religioni
possono essere ad esempio analizzate come varianti di una religione sostanziale, che in qualche
modo le fonda -ad esempio in una religiosità naturale, e/o in una coscienza trascendentale (si
pensi alla “sacralità” della fenomenologia religiosa)- o le trascende in e con una rivelazione
divina, che si pone e si impone come ortodossia dell'essere e del divenire di ogni storia delle
civiltà. In quest'ultimo caso il monoteismo non è solo il punto di partenza dell'indagine
analogico-comparativa, ma sopratutto l'orizzonte di senso di ogni antropologia e di ogni storia:
le culture diventano una sorta di respiro spirituale della natura in quanto sostanzialmente
originate e governate da una teleologia soprannaturale.

La storia è invece una prospettiva totalmente umanistica: in questo caso tutte le religioni
possono essere ricondotte esclusivamente a ragioni umane, di ordine pratico e di ordine
simbolico, e far parte di una più generale “ideo-logica” che governa le civiltà. Occorre
sottolinearlo: tutte le religioni, anche quelle che rivendicano fondamenti soprannaturali e divini.
Si tratta infatti di un umanesimo che si esprime prima di tutto nella e con la ragione come unico
strumento di comprensione e di analisi -perciò l'antropologia e la storia delle religioni fanno
parte di diritto e di fatto delle scienze sociali- e che resta costantemente cosciente dei limiti
dell'umana contingenza -l'antropologia non può e non deve spiegare le ragioni divine delle
religioni, e la storia delle religioni non può e non deve occuparsi di tutto ciò che per sua natura

1
Professor na Universitá degli Studi di Udine.
73
rinvia alla metastoria. In questa prospettiva è possibile pensare le religioni come sistemi
simbolici complessi che nascono dalla contingenza dell'esistenza e dalle sue numerose “crisi
della presenza”, come le chiama De Martino, per riconvertire il sublime del senso nella pratica
sociale: le religioni (e tutto ciò che la nostra cultura ha codificato come tale) sono sempre una
mediazione simbolica e pratica tra le costrizioni contingenti della vita e le inevitabili pressioni
che esercitano sul pensiero. E' perciò veramente difficile ridurre la molteplicità dei linguaggi
religiosi, dalle strutture elementari dei miti della foresta alla complessità dei grandi rituali dei
monoteismi, alla retorica onnipresente e all'ortodossia di un Verbo che si incarna nella storia e
nelle culture.

La storia delle religioni è altra cosa, e soprattutto mette in moto altri saperi e altre prospettive di
senso. E' necesario chiarire subito che ogni approccio comparativo stabilisce relazioni con
l'alterità costruite a propria immagine e somiglianza, elaborando così un codice specifico e una
teoria soggiacente che ne legittima le pratiche di incontro e di scontro culturale. La teologia -
basti pensare alla nostra- conosce le altre religioni come varianti di una verità trascendente, di
cui occorre fare una storia intesa da un lato come fenomenologia dello spirito (in senso
hegeliano) e dall'altro come conoscenza indispensabile nel mondo attuale: dopo tutto le sorti
del mondo sono affidate al dialogo interreligioso capace di ridare un senso vero ai rapporti tra
le civiltà, ormai imposti dal processo di globalizzazione 2. Tutti gli altri sono semplicemente
“non credenti”, perché la fede non è solo una ortodossia religiosa, ma soprattutto un principio
distintivo (e inevitabilmente discriminante) di ogni ortopratica sociale. A questo proposito
occorre ricordare che la storia delle religioni non è una criptoteologia e meno ancora
un'antropologia religiosa ad uso e consumo dei “non credenti”, ma una prospettiva
radicalmente diversa, che si serve della ragione (e non della fede) per comprendere le ragioni
umane, sempre “buone” da pensare, che hanno messo in moto il costituirsi pragmatico ed
esistenziale di tutte le religioni, delle relazioni tra loro e soprattutto delle specifiche pretese di
legittimità, anche quando sono nascoste nel mistero di una divinità trascendente. Questo
umanesimo resta limitato nella e con la propria contingenza antropologica, ma non può essere

2
Non è un caso che un teologo come Hans Küng apra ogni volume della sua trilogia sui monoteismi (Ebraismo,
Cristianesimo, Islam) scivendo : “Non c'è pace tra le nazioni/senza pace tra le religioni./Non c'è pace tra le
religioni/senza dialogo tra le religioni./Non c'è dialogo tra le religioni/senza una ricerca sui fondamenti delle
religioni”. Si tratta, come precisa Küng, “di principi programmatici formulati in vista di un globale cambiamento
di consapevolezza, fondamentale per la soopravvivenza”. Si veda Küng 1991, 1994 e 2004. D'altra parte il
grande teologo svizzero si era già occupato dei rapporti tra Cristianesimo e religioni universali (1984)e aveva
lavorato per un progetto di un'etica mondiale (1990). Il caso del “progressita” Küng, che merita un
approfondimento antropologico (come ha cominciato a fare in Italia Tullio-Altan) è ancora più emblematico se
rapportato al più diffuso etnocentrismo culturale della teologia cristiana.
74
considerato “riduzionista”: se la sua pretesa continua ad essere quella di spiegare in termini
storico-sociali anche il sublime delle religioni, non si capisce di cosa dovrebbe essere riduzione
e/o semplificazione. Se poi si intende la storia della religioni come un sapere riduzionistico
rispetto alle diverse teologie, perché non tiene conto delle rivelazioni divine (spesso
antropologicamente incompatibili!), è epistemologicamente incomprensibile l'ostinazione con
la quale si chiede alla storia di dare risposte sulla metastoria, mentre si ritiene impossibile (e a
ragione!) pretendere dalla fisica di fare altrettanto sulla metafisica.

Proprio per evitare cortocircuiti ermenutici tipici della nostra cultura teologica, la comparazione
storico-culturale deve essere la priorità strutturale della storia delle religioni, sia come metodo
d'indagine sia come prospettiva teorica: da un lato “lo sguardo da lontano”, di cui parla Lévi-
Strauss (1983), ci aiuta ad evitare l’etnocentrismo di ogni ortodossia, di ogni metafisica, di ogni
filosofia della coscienza, dall'altro l'antropologia umanistica la obbliga a pensare i rapporti tra
gli uomini e la divinità come un fatto sociale totale. La globalizzazione attuale dei rapporti
sociali e simbolici tra le civiltà ci costringe a rianalizzare storie comparative totalmente “altre”
e conseguentemente a riflettere in modo critico sulle nostre: questa pratica antropologica non
aspira alla scoperta di nuovi “universali concreti” della storia e delle culture o ad una diversa
morfologia del sacro, nascosta nella soggettività trascendentale, ma a spiegare le differenze dei
sistemi “religiosi” per interrogarsi problematicamente sulla possibilità della loro compatibilità
nella società civile, senza pregiudizialmente mettere in campo strategie geopolitiche. Lo
“scontro delle civiltà” (Huntington 1996) non è una conseguenza pratica necessaria della
comparazione storica tra le “religioni”, ma spesso una traduzione politica e ideologica
dell’ortodossia universale della “religione”: la prospettiva storico-religiosa deve compiere lo
sforzo di tradurre storicamente e di mettere in contingenza culturale ogni nozione universale di
“religione”. Questo è possibile se e solo se l’analisi concerne i processi di generalizzazione
interculturale di tutto ciò che noi riteniamo essenziale ed in qualche modo “naturale”: se
l’universalità della religione è solo il punto di arrivo di un processo storico di generalizzazione
interculturale, la sua pretesa naturale e “soprannaturale” nasconde una formazione etnocentrica,
una forza di sviluppo storicamente contingente e culturalmente arbitraria, che permettono di
ripensare il suo potere-valore di senso ed il suo orizzonte ermeneutico nella pratica della vita.

La comparazione è quindi un’esigenza scientifica della ricerca storica ed insieme un impegno


civile che possono dare alla prospettiva umanistica una direzione imprevedibile e soprattutto
arricchire il discorso sul futuro delle religioni e delle civiltà. Occorre allora fare a meno dei
75
feticci costruiti dall’universalismo, e cercare di scoprire ciò che essi nascondono in termini di
sistemi sociali in azione e di strutture simboliche in relazione che inventano e costituiscono
nuovi codici di comunicazione e diverse identità: lungi dal fondare un neorelativismo
metodologico o una storia “decostruttiva”, questa coscienza culturale dell’ “etnocentrismo
critico”, di cui De Martino (2002) ha mostrato la necessità epistemologica e la ricchezza
euristica, ci dà la possibilità di riflettere sulla storia delle religioni come “storia costruttiva”
degli uomini che, a partire dai rapporti sociali, pensano praticamente e regolano
simbolicamente le loro relazioni con la divinità. Da un lato la prospettiva errante della storia,
dall’altro la struttura antropologica “rapporti sociali-relazioni con gli dei”: se la prima rinvia
alla complessità delle differenze storico-culturali della seconda, è necessario qui mettere in
relazione alcune prospettive della storia delle religioni italiana, che per prima ha dato alla
comparazione un impulso sistematico e differenziale, con la socio-logica e l’antropo-logica
francese, per tradurre i rispettivi limiti in suggestioni di ricerca e/o in possibilità di
generalizzazione scientifica.

Cercherò quindi prima di tutto di richiamare brevemente le strutture di continuità della storia
delle religioni italiana, soprattutto a partire dalla relazione-opposizione tra religione e religioni:
non a caso la rivoluzione monoteistica, che ha reso sostanziale la nozione di religione e
legittimato la sua pratica fino ad universalizzarne il senso, è al centro del mondo religioso
compreso nella e con la relazione-opposizione. La rivoluzione metodologica dell’antropologia
strutturale può poi aiutare ad analizzare le religioni in termini di relazioni e soprattutto di
allargare lo sguardo comparativo, salvaguardando i codici di comportamento storici, che
garantiscono la prospettiva pratica e l’impegno umanistico. Sarà quindi possibile alla fine
formulare qualche ipotesi diversa sulla relazione-opposizione religione-religioni in termini di
codici di comunicazione nella complessità contemporanea delle relazioni tra civiltà. Se la storia
delle religioni e l’antropologia sono il punto di partenza per un’analisi riflessiva sulle sfide
della globalizzazione dei rapporti sociali e delle strutture simboliche, la critica
dell’etnocentrismo religioso è nello stesso tempo una necessità scientifica ed un valore “civile”
aggiunto di una politica democratica che vuole affrontare le turbolenze crescenti del sistema
internazionale.

La storia delle religioni italiana ha una continuità di prospettiva e di metodo, dal suo fondatore,
Raffaele Pettazzoni, primo professore a Roma nel 1924, fino al suo ultimo allievo diretto, Dario
Sabbatucci, che ha portato alle estreme conseguenze teoriche gli insegnamenti metodologici del
76
maestro. La prospettiva è storicamente operativa almeno a tre livelli: il primo è la contiguità
sostanziale tra religione e civiltà: la religione è pensabile solo all’interno della civiltà, anche
quando, come nelle religioni monoteistiche, la prima rinvia alle relazioni tra uomini e divinità
come valore fondamentalmente prioritario di un sistema di relazioni. Occorre anzi cercare le
ragioni umane di questa priorità -e la storia non può fare di più!- ma sempre all’interno del
sistema generale della civiltà. Pettazzoni (1924) utilizza infatti tutte le priorità implicite nella
nozione di civiltà per spiegare storicamente le religioni: struttura dei rapporti sociali, regole
elementari di comportamento, pratica della produzione economica sono alla base sia del
mistero simbolico delle cosiddette “religioni primitive”, sia della complessità teologica del
politeismo e più ancora della rivoluzione monoteistica. La religione specifica deve essere
compresa con le strutture pratiche della civiltà, anche perché il procedimento inverso rinvia ad
un qualcosa o qualcuno, la cui essenza continua ad essere meta-storica e meta-fisica. La ricerca
di Sabbatucci (1990) rende esplicito l’implicito pettazzoniano: la storia della religioni parte
dalla nozione analogica di religione ed elabora una comparazione sistematica e differenziale
delle civiltà. Di più: è una storia comparata delle civiltà che utilizza la religione come codice di
senso prioritario della vita sociale perché questa è la funzione che Il Cristianesimo ha avuto
nella civiltà occidentale. Conoscendo le altre civiltà, abbiamo riconosciuto come “religioso”
ogni codice prioritario di senso e come tale lo abbiamo trattato, fino all’universalizzazione di
un “oggetto religioso” che trascende la storia e le civiltà. Ma anche questa è una costruzione
storica dovuta alle relazioni tra civiltà e la sua coscienza critica rende più complesso il percorso
comparativo e dà nuovi strumenti di analisi delle diversità, fino a rompere le frontiere del
possibile e del pensabile della religione: se le religioni trovano le loro ragioni umane nelle
diverse civiltà, il vecchio universalismo della religione diventa un residuo teologico senza
possibilità di verifiche storico-culturali.

Il secondo livello è la coscienza esplicita che la comparazione antropologica è una conseguenza


della storia: la ricerca deve partire solo da ciò che conosciamo storicamente per arrivare a ciò
che non conosciamo, passando per la storia della nostra conoscenza dell’alterità.
Conseguentemente ogni comparazione è scientificamente rigorosa se e solo se la storia della
civiltà dell’Occidente e della nostra religione costituiscono la base della ricerca: non si può
ignorare che il Cristianesimo ha dato una nuova direzione culturale, una struttura sociale solida,
una profondità filosofica ed un senso forte al concetto di “religione”, proclamandosi
storicamente e comparativamente come la “vera religione”. La modalità scientifica e
sistematica della comparazione è quindi quella di una storia dell’Occidente religioso, che si fa
77
storia delle altre civiltà già conosciute e solo dopo antropologia storica delle culture
sconosciute. La prospettive è analoga a quella del Durkheim: occorre partire dalle strutture
collettive della nostra civiltà per arrivare a “Le forme elementari della vita religiosa” e,
all’interno del codice religioso, definire storicamente la religione a partire dalla Chiesa per
comprendere la sociologia comparativa del totemismo. Per questa ragione Pettazzoni (1957) ha
insistito sulla coscienza critica della rivoluzione monoteistica, anche per comprendere le
religioni primitive: solo così la storia delle religioni può uscire dal comparativismo analogico e
universalistico e scoprire il tesoro delle differenze. Secondo Sabbatucci questa prospettiva è
solo la conseguenza della storia moderna delle relazioni tra civiltà: la storia socio-culturale
della conoscenza degli altri, dai primi viaggi e dalle prime missioni, mostra il passaggio dal
conosciuto al meraviglioso a livello simbolico e religioso, e dall’esclusione all’inclusione a
livello sociale e civile. Questa pratica di generalizzazione di categorie ha dato l’illusione
dell’universalismo oggettivo e rafforzato le pretese di una teologia e/o di una filosofia della
coscienza, che trascendono le relazioni storiche tra civiltà. Proprio per questo la storia delle
religioni italiana ha criticato radicalmente da un lato ogni antropologia oggettivistica (religiosa,
politica, economica, ecc..), di cui dissolve con dati storico-comparativi ogni pretesa universale,
e dall’altro ogni filosofia della coscienza. La ferma e dura opposizione di Sabbatucci alla
fenomenologia religiosa deriva da una coerenza teorica e metodologica: il “sacro”, anche se si
nasconde in forme diverse di significazione simbolica, comporta sempre una determinazione
paradigmatica della storia delle civiltà. D’altra parte la fenomenologia, grazie all’appercezione
trascendentale, antepone sempre l’inconoscibile della comprensione sentimentale al conoscibile
della spiegazione storica e razionale.

Il terzo livello è metodologico: se è necessario comparare le civiltà o le religioni all’interno


delle civiltà, la storia delle religioni è per sua natura sistematica e differenziale. E’ lo stesso
percorso sistematico a far emergere le strutture delle differenze e a favorire una conoscenza
storica singolarizzante delle civiltà: l’analogia religiosa di partenza tra sistemi culturali si
dissolve per implosione relazionale. La storia delle religioni diventa così una sorta di
antropologia storica, una scienza comparativa delle civiltà, utilizzando metodologicamente la
ricchezza di senso che l’universalismo religioso dell’Occidente ha dato alla storia. Le
conseguenze sono almeno due. Si tratta prima di tutto di mettere in prospettiva comparativa le
più profonde strutture di senso del nostro abisso religioso: non a caso Pettazzoni ha avuto il
coraggio di esporre al rischio della storia differenziale le nozioni di Dio, di peccato, di sacra
scrittura, di mistero, ecc.., per sottolinearne le incompatibilità di sistema e soprattutto per
78
mostrare l’impossibilità di una storia delle religioni analogica ed universalistica. In secondo
luogo, questa comparazione analitica è strategicamente antropologica: essa si apre alle culture
primitive che hanno resistito e ancora tentano di resistere alla potenza assimilatrice
dell’analogia occidentalizzante. Lungi dall’essere l’oggetto strumentale di una nuova missione
di progresso e di sviluppo, queste società, che hanno vissuto ai margini dell’ontologia
occidentale, riguadagnano la loro soggettività culturale ed in qualche modo la loro presenza
attiva nella storia del mondo. Se esse non hanno avuto una religione di Dio, della trascendenza
o della salvezza, hanno tuttavia sistemi rituali di rapporti sociali che mettono in crisi
l’universalità del concetto di religione: nonostante gli enormi sforzi dell’assimilazione
missionaria, questi popoli entrano di diritto e di fatto nella storia comparata delle religioni.

Sabbatucci ha portato alle estreme conseguenze il metodo pettazzoniano: il punto di arrivo è la


dissoluzione della nozione universale di “religione” e dell’ “oggetto religioso” in quanto ultime
illusioni del comparativismo analogico, che ha proiettato sulla storia delle religioni gli
universali della teologia e della filosofia. La religione, di cui occorre avere una tranquilla
coscienza storico-culturale, è un codice prioritario di senso in Occidente e perciò è stata
imposta al mondo come struttura simbolica necessaria: non si tratta di decostruzione di un
assoluto del pensiero, che porta alla relativizzazione assoluta delle culture come “forme di vita”
-una sorta di deriva implosiva di ogni storicità-, ma della coscienza storico-culturale di una
costruzione acculturativa della modernità. Questa defeticizzazione della nozione di “religione”
non è un risultato esclusivo della storia delle religioni italiana: Sabbatucci, con un percorso
diverso, ha fatto della religione ciò che Lévi-Strauss ha fatto del totemismo (1962). D’altra
parte la conclusione comparativa di P. Veyne è radicale: “se le diverse religioni sono degli
aggregati di fenomeni…eterogenei, qualcosa come ‘la religione’ non esiste” (1996, pg.18). In
ogni caso si tratta di una conclusione di un percorso comparativo e di una provocazione
intellettuale, di un dato scientifico che pone non pochi problemi alla coscienza culturale
dell’Occidente in un momento storico in cui anche le religioni ed i sistemi simbolici entrano in
relazione tra loro grazie ai nuovi processi comunicativi messi in moto dalla globalizzazione.
Quale storia delle religioni? Quale comparazione? Se l’oggetto intellettuale non esiste, quale
storia? E soprattutto: con quali strumenti intellettuali ed in quale prospettiva? Può
l’antropologia strutturale aprire nuovi orizzonti?

Prima di tutto occorre sottolineare due analogie dei punti di arrivo: da un lato la critica
comparativa de “Il totemismo oggi”, dall’altro il fatto che l’antropologia strutturale, operando
79
con il metodo relazionale, non può non proclamare la fine di ogni universalismo oggettivo e
l’inutilità di ogni filosofia della coscienza. Sulla dissoluzione della religione totemica,
l'antropologo strutturalista è esplicito: “Non si tratta di un testo negativo. Direi piuttosto critico
in senso kantiano. Era necessario liberare l’etnologia da un certo numero di illusioni che
offuscavano lo studio dei fatti religiosi nelle società senza scrittura. Era anche necessario
tentare di chiarire la problematica che sarebbe stata mia negli anni successivi”(Lévi-Strauss,
Eribon 1988, pg.104). Sulla prospettiva generale del metodo antropologico, i progressi della
ricerca comparativa hanno mostrato che lo “spirito umano” di Lévi-Strauss non è la coscienza
trascendentale della fenomenologia e che le “strutture” sono logiche e quindi “vuote” di valori
di senso a priori, cioè da riempire con la storia delle civiltà e delle loro relazioni. Per liberarsi
della tradizione intellettuale e filosofica dell’Occidente -è, a mio avviso, il vero messaggio di
“Tristi tropici”- è necessario ripensare la nozione di cultura e la struttura della relazione tra
natura e cultura. La sfida esige una rivoluzione metodologica, messa in atto dalla logica
relazionale: tutti i termini sono aggregati di relazioni e di relazioni tra relazioni, ed ogni
complessità nasconde un certo numero di relazioni arbitrarie, di cui si può fare la storia
comparativa, anche per costruire una seria antropologia della significazione. La nozione di
religione e quella di cultura sono legate tra loro: la religione è per Lévi-Strauss una sorta di
antropomorfizzazione della natura, e la magia è una sorta di naturalizzazione dell’uomo. Una
antropologia diversa può aiutare la storia delle religioni da un lato a ripensare il suo oggetto
intellettuale, il suo metodo e la sua prospettiva, dall’altro a criticare radicalmente il discorso
dominante dell’antropologia naturalista e/o della storia universalistica. D’altra parte se il valore
universale e ontologico del concetto di religione è l’effetto di una generalizzazione storica
segnata dalla prospettiva cristiana, bisogna ripensare in termini antropologici le nozioni di
soprannatura e di fondamento di senso. Il problema del senso resta centrale: ancora oggi la
religione infatti si pone e si impone come orizzonte paradigmatico della significazione
culturale.

Lévi-Strauss (1958) definisce la cultura come un sistema di relazioni complesse di scambi


almeno a tre livelli: sociale, dalle strutture elementari della parentela alle regole dei rapporti tra
gli uomini; simbolico, dal linguaggio alla mitologia; economico, dalla produzione dei beni alle
forme diverse di economia politica. L’organizzazione sistematica favorisce la comunicazione e
l’integrazione tra i vari livelli: tutti i tratti culturali dell’antropologia tradizionale (la religione,
la politica, il diritto, la filosofia, l’economia, ecc..) sono dei “codici” di comunicazione che ci
aiutano a comprendere la pluralità arbitraria delle culture e il loro grado di complessità storica.
80
Ogni sistema ha al suo interno una gerarchia di codici che gli garantisce coerenza: una sorta di
ordine degli ordini arbitrario e strutturato a livello simbolico e nello stesso tempo efficace e
normativo a livello pratico dei rapporti sociali. Ogni cultura ha una propria ortodossia
simbolica e un’ortopratica sociale: la comparazione sistematica e differenziale può individuare
il codice prioritario e gerarchico che funge da “ordine degli ordini” e che ordina tutti gli altri
codici. Questo deve essere non solo il più importante simbolicamente, ma soprattutto porsi
come “relais” normativo della vita quotidiana: perciò il mito racconta la sua necessità ed il rito
mette in evidenza le sue regole pratiche. Si tratta dunque di un codice generale del senso in
quanto dà un senso alla vita ed alla morte, alla natura ed alla cultura, alla morfologia del
sistema ed ai suoi limiti di trasformazione, alle legittime aspirazioni degli individui ed alle
tradizioni collettive radicate nella società.

L’ontologia tradizionale della filosofia e l’oggettivismo ottimistico delle scienze umane,


antropologia compresa, hanno sempre pensato la natura come il fondamento indiscutibile ed
indiscusso delle differenze culturali e/o come il referente universale dei sistemi di significato,
come la causa prima delle cause seconde o la causa occulta delle cause occasionali. Non a caso
la religione in Occidente ha avuto ed ha ancora la funzione di soprannatura, e perciò si è
imposta come l’ordine degli ordini, come il codice privilegiato del senso, come la prospettiva
del senso della vita e della morte: grazie al suo porsi al di là della natura intesa come
fondamento, essa è diventata un codice dell’al di là del tempo e dello spazio della storia e
dell’al di là delle culture dell’antropologia. Le conseguenze sono evidenti a tutti i livelli della
vita sociale e dei processi di conoscenza: se la fisica è una analisi della natura, la religione
conosce i principi della metafisica; se la geografia è un ordine culturale della terra, la religione
delinea un ordine del cielo; se la storia è il racconto delle avventure delle donne e degli uomini
sulla terra, la religione garantisce la terra promessa della felicità eterna; se la storicità deve
sottolineare le differenze tra passato, presente e futuro, la religione si impone come racconto di
ciò che precede il passato e di ciò che avverrà dopo il futuro del futuro; se la storia sociale è il
cammino errante delle società, la religione indica la direzione obbligatoria e il senso
paradigmatico della verità e della vita; se la scienza politica studia le variazioni delle relazioni
umane e delle loro istituzioni, la religione è una pratica dei diritti e dei doveri della “Città di
Dio”; se l’antropologia è la scienza comparata delle civiltà, la religione impone la conoscenza
fedele della civiltà di Dio. La religione è soprannaturale e perciò meta-storica, meta-politica e
meta-culturale; conseguentemente la storia delle religioni è un’ideologia impensabile e una

81
pratica impossibile. A mio avviso, l’antropologia strutturale può indicare una diversa direzione
e delineare un nuovo immaginario della religione e del suo potere di senso.

La natura non è una nozione indipendente dalle culture, una sorta di loro fondamento
ontologico, ma una costruzione simbolica di uno specifico sistema storico che se ne serve per
codificare i suoi limiti: limiti dei codici arbitrari di senso e dei codici di comportamento sociale,
per la semplice e buona ragione che i grandi determinismi naturali si pongono e si impongono
alla fine delle possibilità delle relazioni culturali e delle loro ideologie simboliche. Se la logica
è il limite della pratica simbolica, l’antropo-logica deve essere il limite umano delle storie e
delle culture, e l’antropologia deve fare i conti con l’entropia, che è la logica dei limiti imposti
dalla natura. Di più: se la natura non è più il fondamento delle culture, ma il loro limite di
relazioni e di complessità, anche la nozione di “soprannatura” è sottoposta ad una
trasformazione senza precedenti nella storia delle relazioni tra civiltà.

La storia delle religioni può utilizzare questa prospettiva per sottoporre ad analisi più
complesse il soprannaturale e tutto ciò che abbiamo ritenuto e creduto tale, soprattutto perché
non ha più bisogno della soprannatura come fondamento della “religiosità” naturale e/o della
sacralità della natura. Da questo punto di vista ad esempio anche il concetto cristiano di
soprannatura, fondato sulla metafisica, perde nella vita quotidiana delle culture il proprio valore
universale di senso e la sua funzione di surplus del fondamento naturale. Si delinea un diverso
statuto antropologico: si tratta di un codice arbitrario che ordina sia il senso dei limiti sia i limiti
del senso della cultura specifica, di un codice che, proprio perché definisce le frontiere
operative della società, impone la sua centralità e il suo ordine rigoroso a livello simbolico. Si
può parlare storicamente di un codice dei codici, di un ordine degli ordini che è sempre in
azione, a volte in modo visibile, spesso in modo invisibile, ma che opera soprattutto ed in modo
a tutti evidente quando la pratica della vita sociale spinge il sistema dei valori al di là delle sue
possibilità, fino all’impraticabilità del reale e all’impossibilità del pensiero. E’ un dato
esistenziale delle società e delle culture: questo codice entra in azione soprattutto quando i
rapporti sociali e/o le relazioni tra gli uomini e la natura vivono, come direbbe De Martino
(1995), nella crisi della presenza, la cui angoscia esprime la volontà di essere nella cultura
come presenza storica di fronte al rischio di non esserci. Se esiste un codice operativo che
permette di scongiurare il rischio e di superare la crisi, si tratta certamente del codice prioritario
della cultura che ordina gerarchicamente tutti gli altri, e che richiama l’ordine degli ordini e la
relazione delle relazioni. E’ un codice che deve essere nello stesso tempo centrale e periferico,
82
che lavora nella vita quotidiana e che si manifesta come valore paradigmatico di verità e come
motore della storia sociale, quando gli altri codici non hanno nulla da comunicare perché
esposti all’implosione senza regole della natura. Lo si può anche chiamare codice
“surculturale” a partire dalla sua funzione: relais indispensabile tra gerarchia simbolica e
rapporti sociali, tra i desideri della pratica e la mobilitazione sociale, tra i valori del sistema e la
loro comunicazione interculturale, e perciò sempre visibile nella pratica rituale. Forse non a
caso De Martino ha fatto del rituale l’oggetto di ricerca di una vita: senza rito non c’è soluzione
della crisi della presenza, perché, come dice Lévi-Strauss, il rituale ha la funzione di preservare
la continuità del vissuto. Se è così -e il rituale ci riporta sulla buona strada di un diverso
immaginario religioso- il ritorno critico e comparativo a ciò che abbiamo pensato in termini di
religione e/o di sacro diventa inevitabile. Si tratta di riflettere comparativamente sulla nostra
storia religiosa all’interno del processo di relazioni tra civiltà e di ridare alla storia delle
religioni una prospettica critica e una pratica di impegno civile.

E’ necessario quindi tornare alla storia delle religioni prima di tutto passando per la storia della
nostra religione e della nostra conoscenza delle religioni degli altri, per poi studiare le
possibilità alternative della comparazione. Non posso qui ovviamente analizzare la storia del
Cristianesimo e delle sue missioni interculturali, ma devo brevemente accennare ad un
approccio contestuale e comparativo per liberare la nozione di religione dalla dicotomia
etnocentica natura-soprannatura. Questa nozione, uno dei doni più preziosi del Cristianesimo
alla civiltà occidentale, è prima di tutto un codice pratico di relazione e di comunicazione
rituale tra gli uomini e la divinità: seguendo Sant’Agostino, si può dire che “la vera religione è
il vero culto del vero Dio”. Due aspetti sono evidenti: la priorità della relazione, di cui la
religione è il codice di comunicazione, e la priorità del rituale che caratterizza questo codice più
come ortopratica che come ortodossia. Storicamente è più importante un altro aspetto: la
rivoluzione monoteistica cristiana è insieme teologica ed antropologica. Il principio e l’origine
della relazione esclusiva (il rituale) e della comunicazione gerarchica (la rivelazione) sono in
Dio: il Dio che si fa uomo è la personificazione del passaggio radicale dalla relazione pagana
tra uomini e dèi alla relazione cristiana tra l’unico Dio e gli uomini. I Cristiani, grazie a questa
inversione qualitativa e verticalmente gerarchica, fanno parte di questa relazione e perciò sono
l’incarnazione collettiva, storica e culturale della rivelazione nella storia: occorre quindi
ripensare la struttura dei valori e il sistema politico del mondo pagano ed inventare la Città di
Dio. Di qui la rivoluzione antropologica che dà alla storia dell’Occidente la prima civiltà di Dio
e le sue pretese teologiche di universalità. E’ una civiltà in cui la religione è il codice prioritario
83
che ordina tutti gli altri codici della vita sociale e culturale, grazie alla rivoluzione di priorità
delle relazioni e delle comunicazioni: se i rapporti “Dio-uomini” sono più importanti dei
rapporti “uomini-uomini” e “uomini-natura”, il codice regolativo dei primi (la religione)
impone le sue regole ai codici degli altri (diritto, politica, sapere, ecc..). La causa è teologica,
ma le conseguenze sono antropologiche: il Cristianesimo pensa tutte le relazioni nella e con la
relazione “Dio-uomini”, dunque nella e con la religione, per la semplice e buona ragione che il
suo Dio è all’origine ed alla fine della storia e della conoscenza. Teologia della cultura, ma
soprattutto la religione come codice “surculturale” della civiltà cristiana, in quanto codice del
limite del senso e del senso del limite naturale: non a caso il Cristianesimo ha tradotto in
termini di compatibilità culturale i grandi determinismi della natura, fino alla valorizzazione
della morte in funzione della vita eterna. E’ la prima religione al mondo che dà agli uomini una
prospettiva di compatibilità tra la vita e la morte, tra la fine della vita individuale e il fine della
storia collettiva, per preservare con il rituale, al di là della morte naturale, la continuità del
vissuto. Questo grande miracolo simbolico ha messo in azione l’inversione radicale dei codici
surculturali del paganesimo: gli dèi della città, dello Stato, della natura o dei rapporti sociali
non hanno più senso e sono espulsi dalla città e dalla civiltà di Dio.

Sabbatucci parla di questa grande trasformazione in termini di “fede nella fede”: qui preferisco
pensare la fede come fedeltà alla relazione “Dio-uomini”, che costituisce l’essenza rituale delle
religioni monoteistiche, e la fede nella fede come una fedeltà simbolica e ortopratica alla
“religione” come codice surculturale della società e del sapere, che di fatto segna la rivoluzione
antropologica di ogni monoteismo. Per comprenderne la forza e il potere, si dovrebbe da un
lato fare un’analisi storica e comparativa delle nozioni di “Patto”, “Alleanza”, “Testamento”, di
cui il Cristianesimo cambia ed impone il senso, dall’altro riflettere in termini di codici culturali
sulla filosofia cristiana, sul diritto canonico e sulle espressioni simboliche più complesse della
civiltà di Dio. Un viaggio antropologicamente critico nel proprio immaginario religioso può
dare all’Occidente strumenti critici d’analisi e arricchire, forse, il senso della sua identità
meticcia, anche a livello religioso. Se però la coscienza critica nasce dalla comparazione, come
rianalizzare il problema delle religioni delle società senza scrittura? E le religioni degli “altri”
in generale? La storia delle relazioni tra civiltà della modernità indica un percorso:
l’ontologizzazione e la naturalizzazione della religione sono solo la traduzione teologica e
filosofica della generalizzazione storica ed interculturale della fede cristiana. I missionari sono i
primi protagonisti di questa storia antropologica.

84
La prima occidentalizzazione del mondo della modernità è religiosa: i viaggiatori ed i
missionari hanno pensato le relazioni con gli “altri” prima di tutto in termini religiosi, dal
momento che la religione era il codice surculturale della vita e della morte in Occidente
(Gasbarro 2009). La colonizzazione dell’immaginario (Gruzinski 1988) è religiosa perché
l’ordine simbolico delle culture del mondo è stato interpretato e comunicato tramite l’ordine
degli ordini della modernità occidentale cristiana. La malattia del linguaggio dei popoli senza
scrittura ne è il sintomo evidente: essi non hanno le consonanti F, L, R perché non conoscono la
Fede, la Legge e il Re e vivono quindi senza i codici fondamentali della religione, del diritto e
della politica. E’ necessario quindi convertirli alla vita civile e “ridurli” all’iniziazione
cristiana: le “riduzioni” sono piccole “città di Dio” nella foresta che hanno messo in moto il
processo di evangelizzazione e di civilizzazione del Nuovo Mondo. I missionari sono i primi
“passeurs” culturali in quanto protagonisti della più vasta generalizzazione della religione come
codice dei codici della vita sociale: non a caso i codici della politica, del diritto, delle
istituzioni, ecc.. dipendono dal senso delle “credenze” delle società senza scrittura, anche se i
selvaggi non conoscono il Dio unico e trascendente della Fede cristiana.

La nozione di idolatria risolve teologicamente il paradosso antropologico delle differenze: basta


generalizzare la fede in credenza ed attribuire arbitrariamente a quest’ultima la funzione di
ordine degli ordini. I selvaggi non conoscono la relazione “Dio-uomini”, ma hanno comunque
bisogno di qualcuno o qualcosa che devono mettere al posto di Dio: il rituale non a caso indica
il valore paradigmatico del codice che trascende la natura della persona o della cosa messa al
posto che spetterebbe a Dio. Si tratta di un idolo che mette in azione l’efficacia simbolica e la
necessità pratica di una relazione prioritaria. Le culture possono inventare arbitrariamente i
propri idoli, ma devono avere una fede culturale nella fede idolatria, cioè utilizzare un codice
surculturale che implica un rituale di relazioni ortopratiche della comunità. I rituali della foresta
forniscono ai missionari la più grande differenza “selvaggia” dei codici culturali che hanno la
funzione di codice dei codici -è questa la vera “sauvagerie” degli idoli- e nello stesso tempo la
più grande omologia di senso dell’idolatria, che nasconde la generalizzazione della nozione di
religione e della sua funzione prioritaria di senso. Non a caso tutti i missionari sottolineano
l’importanza ortopratica di questa credenza: i diversi rituali della malattia e della morte
mettono in azione la funzione della fede nella fede, della fedeltà pratica al codice surculturale.
La conversione dei selvaggi è quindi solo un nuovo ordine degli ordini: l’unico e vero Dio della
civiltà cristiana al posto dei rituali idolatrici. L’idolatria diventa così la religione degli altri e il
linguaggio interculturale delle relazioni tra civiltà (Pompa 2003): rinvia all’archeologia non
85
solo delle scienze religiose (Bernand, Gruzinski 1988), ma soprattutto dell’antropologia e della
storia comparata delle religioni. L’uso interculturale della nozione di idolatria è il linguaggio
della religione dell’Occidente in azione: queste generalizzazioni della fede in credenze, di Dio
negli idoli, della religione in religioni dei selvaggi possono svelarci le categorie della nostra
conoscenza storica dell’alterità e dare valore critico e civile all’etnologia religiosa. Qui è
possibile solo indicare delle riflessioni comparative, che non hanno la pretesa di sciogliere i
nodi principali, ma solo di fornire alcuni strumenti di analisi ad una comparazione meno
ideologica. Il peccato originale del comparativismo storico-religioso è stato la confusione tra la
religione come oggetto intellettuale della ricerca e la religione come principio necessario del
senso in generale che, dall’alto di una teologia implicita e/o di una filosofia etnocentrica, ha
impedito di fatto una prospettiva radicalmente storica e antropologica. Questa confusione ha
generato una sorta di cortocircuito ermeneutico che ha fatto esplodere la nozione universale di
religione e il suo valore comparativo: ora siamo tutti alla ricerca di una comparazione capace di
limitarsi alle religioni come oggetto intellettuale solo culturale, con le sue funzioni specifiche
ed i suoi limiti storici. E’ quindi necessario ripensare il metodo a vantaggio della prospettiva.

Il punto di partenza è necessariamente la struttura analogica delle religioni, frutto della storia
delle relazioni tra civiltà, ma questa deve trovare una formulazione capace di esporla alla
comparazione ed alla falsificazione storica potenziale: l’esempio più importante sono le civiltà
monoteistiche, dove la religione è nello stesso tempo l’ordine della relazione “Dio-uomini” e
l’ordine degli ordini. Si tratta di una analogia sostanziale e formale, che però richiama sotto-
codici d’analisi: il popolo di Dio dell’Ebraismo non è la città di Dio del Cristianesimo, come
questa città non ha nulla a che fare con la Legge di Dio dell’Islam. I sottocodici culturali con
cui una civiltà pensa la propria religione non sono secondari: rinviano a categorie simboliche e
a pratiche di vita che ci permettono di comprendere strategie e gerarchie di codici di
comunicazione che si esprimono nella e con la religione. Questo metodo può dare una
coscienza storica e critica delle religioni e delle diverse fedi nella fede: la religione in quanto
codice dei codici deve esprimersi all’interno e con il codice più importante della vita sociale,
che necessariamente diventa il sottocodice del nuovo sistema generale. Così una città di Dio
deve avere come presupposto culturale l’importanza della città, e una Legge-Tradizione di Dio
deve inserire nella nuova gerarchia di senso della rivoluzione monoteistica il valore della
Legge-Tradizione. D’altra parte l’analisi delle relazioni e dei cambiamenti di gerarchia dei
codici culturali ci permette di capire la funzione supplementare del codice prioritario: il suo
maggiore potere di senso consiste nella capacità di rendere compatibili le inevitabili differenze
86
culturali e soprattutto di rendere accettabili i loro valori all’interno del sistema globale. Quando
questo accade, il messaggio religioso del monoteismo si pone e si impone come universale.

La comparazione tra la nostra nozione di religione e le civiltà politeistiche mette in azione


un’analogia più problematica sia a livello teologico sia a livello di ordine degli ordini: la
pluralità degli dèi immanenti comporta una struttura umana di relazioni “uomini-dèi”, che non
necessariamente è il codice prioritario della vita sociale. Non a caso gli dèi del politeismo sono
strutturati dalle forme del mondo e dei rapporti sociali, di cui occorre comprendere, sulla scia di
Dumézil, le funzioni e le loro gerarchie. C’è sicuramente un codice dei codici, ma esso emerge
solo nella relazione con un dio particolare, all’interno di rapporti sociali ben definiti e/o di
relazioni specifiche tra gli uomini e la natura; non c’è bisogno quindi della religione come
principio generale del senso, in quanto ogni comunicazione umana implica una sorta di
complicità immanente degli dèi. La comparazione sistematica e differenziale ha qui bisogno di
una prospettiva “religiosa” come punto di partenza, a condizione da un lato di analizzare il suo
valore nelle e con le relazioni arbitrarie all’interno della civiltà, dall’altro di evitare la
universalizzazione della funzione di ordine degli ordini: le società politeistiche, se non
conoscono la trascendenza divina, possono tranquillamente disinteressarsi di un ordine
religioso del mondo. Ciò che noi abbiamo pensato come religione è solo un codice tra gli altri
della vita del sistema, che ha più orizzonti di significato e numerosi rituali del senso e della
moralità culturale.

Le società dell’idolatria -e non sono solo quelle senza scrittura, come la lunga storia delle
relazioni tra Occidente e Cina può dimostrare- hanno costretto la comparazione storico-
religiosa a operare un’analogia formale, a partire da ciò che abbiamo conosciuto in termini di
religione. Questa coscienza critica quasi ci costringe a fare a meno della nozione di religione:
occorre “comparare l’incomparabile”, seguendo l’efficace provocazione intellettuale di M.
Detienne (2000)? Sì, se siamo ancora alla ricerca di un fondamento della comparazione in
termini di universale religioso e/o di una relazione universale “Dio-uomini” o “uomini-dèi” che
rinvia alla pretesa cripto-teologica della vecchia storia delle religioni. No, se più modestamente
ci limitiamo a comparare le civiltà e le loro relazioni a partire dall’analogia formale dei codici
surculturali. Non si tratta di comparare le diverse fedi nella Fede -questa suggestione appartiene
solo alla rivoluzione monoteistica-, ma le diverse gerarchie del senso dei sistemi empirici e
storici di relazione e di scambio. Tutto ciò che ha avuto la funzione di idolatria diventa
pertinente: i missionari ne hanno già sperimentato la priorità di senso, l’efficacia simbolica ed il
87
valore esistenziale. Non abbiamo d’altra parte la necessità di immaginare la vera morfologia del
pensiero dei selvaggi: tutti coloro che aspirano all’origine autentica di questo pensiero devono
fare una storia che vuole arrivare ad una terra promessa. Noi possiamo trovare solo i codici
surculturali nascosti dall’idolatria, mascherati dalla feticizzazione delle culture, incastonati nel
pensiero meticcio della storia delle relazioni tra civiltà e/o dell’antropologia moderna. La
comparazione sistematica e differenziale esige un lungo lavoro di scomposizione analitica di
ciò che la pratica meticcia ha messo in azione per preservare la continuità della difficile vita
delle civiltà. E lo può fare proprio a partire dalle analogie formali e generalizzanti: la pratica
meticcia indica sempre l’oggetto, la direzione, la prospettiva e il senso della ricerca. L’idolatria
così de-religionizzata diventa il presupposto di una comparazione fondata sui codici
surculturali delle civiltà. E’ evidente che solo una riflessione comparativa e critica sulle priorità
di senso delle diverse civiltà permette alla storia ed all’antropologia di comprendere le strategie
di complessità e di delineare una nuova economia politica delle ricchezze delle differenze.

E' un dato di fatto della nostra cultura: continuiamo a pensare le altre civiltà e le loro gerarchie
simboliche e sociali in termini religiosi, anche quando i presupposti di partenza sono “laici”! La
storia delle religioni, grazie alla comparazione sistematica e differenziale, è in grado di
vanificare questo pregiudizio ermeneutico della modernità, storicizzandone la formazione
occidentale e gli sviluppi interculturali. Di più: la storia delle religioni ha la capacità di
risolvere in buone ragioni di rapporti sociali e di strutture simboliche di civiltà diverse tutte le
invenzioni culturali del senso, che con etnocentrica certezza ci ostiniamo a rinchiudere nella
categoria universalistica di “religione”. Ripensandola e “traducendola” come codice di
comunicazione sociale storicamente contingente e culturalmente arbitrario, la storia delle
religioni spezza il suo potere esclusivo e gerarchico del senso, e la reinserisce nella civiltà
dell'inclusione sociale e dell'agire comunicativo. Questa disciplina di alto valore civile è oggi
sempre più necessaria: è impossibile evitare il fondamentalismo politico delle religioni senza
una demitizzazione storica e comparativa del loro radicalismo del pensiero. Forse un giorno
saremo in grado di costruire una storia delle civiltà all'interno di una società inclusiva, dove le
religioni avranno funzioni, proprietà e senso esclusivamente “civili”, e non ci sarà quindi più
bisogno di una storia delle religioni critica e riflessiva, ma possiamo immaginare un simile
futuro se e solo se oggi mettiamo in moto un sistema di conoscenze che comprende anche la
storia delle religioni. Ormai ne hanno bisogno tutti: noi per conoscere gli altri, gli altri per
conoscere noi, insieme per ri-conoscerci oltre le differenze teologiche che continuano a
dividerci tra civiltà e/o all'interno di una civiltà (Nussbaum 2007).
88
In conclusione, devo confessare tre certezze di ordine storico, e quindi discutibili e confutabili,
ed una esigenza intellettuale e civile. 1) La prospettiva comparativa messa in moto da
Pettazzoni può essere scientificamente più efficace se riesce a dissolvere la nozione universale
di religione con la storia e nella storia. 2) Se, grazie alla storia delle religioni del passato,
abbiamo compreso la nostra identità culturale e la complessità delle altre civiltà, possiamo
ripartire da questa ricchezza umana e storica delle religioni per arrivare ad una nuova economia
delle civiltà. 3) Questa nuova storia comparata delle civiltà non è più importante o più vera
della storia delle religioni tradizionale, ma solo più utile: il mondo attuale della globalizzazione
delle relazioni interculturali esige sistemi di conoscenza e processi di decisione più
generalizzabili. A mio avviso, la nozione di civiltà è più generalizzabile di quella di religione:
la prima lavora sempre con gli strumenti dell’inclusione sociale e della compatibilità simbolica
delle differenze, mentre la seconda non può non distinguere le fedi e le fedi nella fede, e tende
ad escludere teologicamente ogni diversità sostanziale. Non a caso la “civiltà” interculturale
della modernità ha incluso socialmente le differenze “religiose”, mentre l’inverso è socialmente
impossibile perché teologicamente impensabile.

L’esigenza intellettuale e civile è una conseguenza: comparando i codici surculturali delle


civiltà, occorre mettere in relazione anche i loro diversi gradi di una possibile generalizzazione,
per a) valorizzare storicamente le leggi di compatibilità e di trasformazione dell’antropo-logia
lévi-straussiana; b) comprendere meglio le grandi civiltà prodotte dall’incrocio tra culture, che
ancora lavorano per cercare vie di compatibilità di differenze; c) la semplice e buona ragione
“civile” che occorre sempre pensare le differenze a partire dall’uguaglianza. L’avventura nella
profondità delle differenze implica sempre un viaggio di ritorno più faticoso di quello di
andata: se ci limitiamo a raccontare solo il meraviglioso della diversità, rischiamo di
trasformare l’etnologia religiosa in esotismo e la storia comparata delle religioni in retorica del
nostro immaginario religioso, più o meno funzionale a nuovi tipi di colonizzazione
dell’immaginario. La prospettiva “civile” qui appena abbozzata è una tappa necessaria di un
cammino comparativo che ci allontana dalla terra promessa, che resta una costruzione della
religione, della Fede e della fede nella Fede. La storia può cercare solo prospettive storiche e
culturali, direzioni geografiche e scientifiche in cui scoprire orizzonti di significato e ordini
contingenti del mondo: in questo gli storici delle religioni non fanno eccezione, e, come tutti gli
altri storici, possono al massimo cercare una compatibilità tra gli interrogativi della loro ricerca
intellettuale e le istanze del proprio impegno civile.

89
Referências

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religieuses. Éditions du Seuil, Paris 1988.

DE MARTINO, Ernesto. Storia e metastoria. I fondamenti di una teoria del sacro,


introduzione e cura di M. Massenzio. Argo, Lecce 1995.

________________. La fine del mondo. Contributo all’analisi delle apocalissi culturali,


Introduzione di C. Gallini e M. Massenzio. Einaudi, Torino 2002.

DETIENNE, Marcel. Comparer l’incomparable. Seuil, Paris 2000.

GASBARRO, Nicola (a cura di). Le culture dei missionari. Bulzoni, Roma 2009.

GRUZINSKI, Serge. La colonisation de l'imaginaire. Sociétés indigènes et


occidentalisation dans le Mexique espagnol (XVI-XVIII siècle). Gallimard, Paris 1988.

HUNTINGTON, Samuel P. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order,
Simon & Schuster. New York 1996.

KÜNG, Hans, VAN ESS, Josef, VON STIETENCRON, Heinrich, BECHERT, Heinz.
Christentum und Weltreligionen. Piper Verlag. München 1984.

KÜNG, Hans. Project Weltethos, Piper Verlag, München 1990.

________________. Das Judentum. Piper Verlag. München 1991.

________________. Das Christentum. Piper Verlag. München 1994.

________________. Der Islam. Piper Verlag. München 2004.

LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes Tropique. Plon. Paris 1955.

________________. Anthropologie structural. Plon. Paris 1958.

________________. Le Totemisme aujourd'hui. PUF, Paris 1962.

90
________________. Le regard éloigné. Plon, Paris 1983.

LEVI-STRAUSS, Claude, ERIBON, Didier. De près et de loin. Odile Jacob, Paris 1988.

NUSSBAUM, Martha C. The Clash Within. Democracy, Religious Violence, and India's
Future. The Belknap Press of Harvard University Press, London-Cambridge (Mass.) 2007.

PETTAZZONI, Raffaele. Svolgimento e carattere della storia delle religioni. Laterza, Bari
1924.

________________.L’Essere supremo nelle religioni primitive. Einaudi, Torino 1957.

POMPA, Cristina. Religião como traducão. Missionários, Tupi e Tapuia no Brasil


colonial. Edusc-Anpocs, São Paulo 2003.

SABBATUCCI, Dario. La prospettiva storico-religiosa. Fede, religione e cultura, Il


Saggiatore. Milano 1990.

TULLIO-ALTAN, Carlo. Le grandi religioni a confronto. L'età della globalizzazione,


Feltrinelli. Milano 2002.

VEYNE, Paul. Comment on écrit l’histoire. Seuil, Paris 1996.

91
92
Teoria(s) e método(s) em ciências da(s) religião(ões)?

Notas antropológicas sobre caminhos possíveis

Emerson José Sena da Silveira3

As teorias e as escolas, como os micróbios e


os glóbulos se devoram reciprocamente e
asseguram, por sua luta, a continuidade da
vida.

Marcel Proust, romance Sodoma e Gomorra.

A compreensão do religioso numa sociedade em vertiginosas transformações exige reflexões


sobre a construção conceitual da discursividade epistemológica que embasa os estudos de
religião. Ainda que não seja possível mapear os territórios sociais e religiosos em contínua
emersão, submersão e interação levantam-se, neste texto, algumas observações relativas aos
atores e discursos envolvidos e, por fim, quanto aos modos de interpretação ou tradução do
discurso religioso entre as comunidades acadêmica, social e religiosa. No mundo de redes,
fluxos e refluxos, fundamentalismos seculares e religiosos, o religioso e o cultural estão
amalgamados, impondo a necessidade de canais multivocais de diálogo entre perspectivas e
tradições teóricas das diversas comunidades e instituições de pensadores, cientistas e
intelectuais.

Nos debates contemporâneos sobre a função e as transformações do sagrado e do religioso,


em tempos de aceleração de fluxos, as visões monistas (ciência e religião) e pluralistas
(ciências e religiões), em constante tensão, perfazem uma situação interpretada em duas
chaves, paradoxalmente, forte e fraca: forte porque a tensão revela as múltiplas possibilidades
de abordagem e a riqueza da alteridade epistêmica e metodológica interna ao campo das
ciências da religião; fraca porque ainda há um incerto descompasso entre olhares e lugares
face à dispersão da autoridade para interpretar os fenômenos.

3
Antropólogo, doutor em Ciência da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR-UFJF). Atualmente coordena e leciona no PPCIR. Contato:
emerson.silveira@ufjf.edu.br ou emerson.pesquisa@gmail.com.
93
O debate sobre a autonomia epistemológica, e acadêmica, da(s) ciência(s) da religião tem
assumido diversas perspectivas nas quais se destacam a predominância de paradigmas
fenomenológicos essencialistas, construcionistas e relativistas. 4 Na esteira desse debate, a
questão da metodologia surge com ímpeto: qual método e qual concepção deveriam nortear os
estudos e pesquisas sobre a religião? É possível uma metodologia (trans)interdisciplinar? No
plural ou singular (método ou métodos) ou seja, politeísmo ou monoteísmo metodológico?

Há, ainda, outras indagações que demandarão debates e conversações: é possível a existência
de um metodólogo, alguém que se ocupe de estudar exclusivamente as metodologias? Qual a
relação entre o solo de origem das metodologias e sua expansão para além do território
epistemológico original? Ou seja, como se dá o uso das metodologias originadas de uma
ciência em outras áreas do saber? Quais as condições ótimas de sua utilização? Qual método e
qual teoria perfazem a identidade da ciência da religião? Uma pergunta que não tem uma
resposta unívoca e convergente.5

Nesse sentido, tensionados entre essencialismos metafísicos-fenomenológicos e relativismos


sócio-históricos-antropológicos, os estudos sobre a religião situam-se diante de um desafio:
são capazes de oferecer hoje uma mirada epistêmica de alto rendimento diante da
multiplicação e dos entrecruzamentos de fenômenos religiosos e de outras dimensões, como
as das culturas? Em que medida é possível traçar uma fronteira unívoca de competências e
legitimidades de métodos, separando rigidamente as ciências da cultura das ciências da
religião?

Muitas reflexões e textos têm sido escritos, mas pretende-se aqui, sem maiores pretensões,
traças algumas notas sobre as conexões possíveis entre as reflexões epistemológicas e
metodológicas oriundas das ciências humanas e o campo das ciências da religião. Por isso,
adotar-se-á uma perspectiva ensaística, a partir de pequenas incursões textuais e
bibliográficas.

Apontamentos e impasses

4
HUFF; PORTELLA, 2012.
5
USARSKI, 2006.
94
Apontando a reconfiguração do pensamento social, Geertz sugere que, face à ampla e
crescente mixagem de gêneros estilísticos e pluralismos metodológicos, está-se diante, não de
uma nova versão do mapa cultural, mas de uma mudança no próprio sistema de mapear. 6
Cada vez mais, algumas perspectivas não reducionistas recorrem a analogias advindas das
atividades culturais: jogo, teatro, pintura, gramática, direito, entre outras, das quais deriva, por
exemplo, o campo das ciências sociais da religião.

Assim, é preciso criticar o utilitarismo voluntarista disseminado em muitas tradições de


pensamento na modernidade, 7 a partir de uma questão: qual é a afinidade eletiva entre
determinadas instituições, programas de pesquisa, tradições epistemológicas e preferências
autorais no campo das ciências da religião? Negar a afinidade eletiva é perder de vista que o
pensamento e a pesquisa se vertebram dentro de instituições e grupos humanos; é perder a
noção dos jogos políticos internos e externos aos campos, uma mirada bourdiana ainda tão
essencial. Em outras palavras, as instituições pensam, mas não como entidades substanciais,
numa espécie de sagrado imanente e último, mas como estruturas vertebradoras.

No contexto dos jogos de linguagem, de poder e de hegemonia, irremediáveis entre os grupos


sociais das modernas sociedades pós-industriais, essa postura abre caminhos para atitudes de
má fé, boas e más vontades com o campo religioso ou com os objetos religiosos. Ou ainda, e
em nome de um absoluto, moral, cultural ou religioso, procura-se um porto seguro de desejos,
crenças, ações, justificativas e construções discursivas.

Retomando a afirmação nietzschiana de que há apenas interpretações e não fatos, o


pragmatismo rortyano afirma que isso não significa que elas se equivalem e que suas
justificativas não possam obter plausibilidade. Ao se referirem a fatos e interpretações, os
exemplos são significativos: quando se quer descrever os fatos, e em nosso caso
especificamente religiosos, e sua relação com os homens e seus mundos políticos, estéticos,
econômicos e culturais, podem-se usar dois tipos de enunciados, e ambos envolvendo relações
causais, admitidas como válidas nas ciências ocidentais. Embora sejam descrições causais,
dividem-se em dois tipos: as que contêm uma factualidade mais inflexível; e as que envolvem
descrições mais flexíveis que conectam os factuais aos homens, já que o design dessas
mesmas descrições é sempre modificado no interior das relações entre homens e suas

6
GEERTZ, 1998.
7
DOUGLAS, 1998.
95
linguagens.8 Se, por um lado, o perspectivismo pragmatista defende a concepção de que
temos melhores ideias dependendo do maior número, plausível e viável, de perspectivas,
eximindo a possibilidade de transformar o mundo num lugar sem pluralidade de visões, por
outro lado, seus adversários caminham por via oposta: elegendo bases monistas dos valores
religiosos e confundindo o relativismo moral, o histórico e o metodológico, atribuem a todos,
equivocadamente, a ideia de que a justificativa de uma decisão ou escolha pode ser tão boa
quanto qualquer outra do lado contrário.

Como ambas são descrições, propõe-se romper com a crença de que a constância da primeira
e a flexibilidade da segunda dão condições de sustentar a essência das coisas, da religião, do
sagrado, da espiritualidade além da linguagem. O jogo de linguagem da metafísica é
ultrapassado, na medida em que em cada caso, há de fato, e objetivamente, uma visão ou
interpretação.

Mas não se trata aqui de desconsiderar os ganhos epistemológicos e políticos (para o campo
das ciências da religião) oriundos, por exemplo, de uma reflexão kantiana (sujeito de direito e
democracia liberal) ou de exorcizar a “metafisica invertida” da pós-modernidade contida na
essencialização de imagens cultural e historicamente circunscritas de segmentos sociais
subalternizados.

Porém, os essencialismos são revividos em diversos campos da cultura, da sociedade e das


instituições religiosas. Assim, apoiando-se no investimento de empresas e cientistas em
genômica, faz-se reviver a promessa da perfectibilidade a partir de uma suposta essência
biológica do comportamento humano, inclusive relativos aos rituais e experiências religiosas,
abrindo-se uma época de procura de essências na natureza humana e na cultura:
fundamentalismos religiosos e seculares, das mais variadas comunidades religiosas (budistas,
islâmicas, hinduístas e cristãs), cientistas, fenomenólogos, neuropsicólogos, geneticistas,
biólogos, procuram afinidades eletivas, jogos, alianças entre teorias e campos científicos,
políticos e empresariais, em diversas chaves de combinação.

Ergue-se um fluxo de ontologia naturalista que embasa os discursos sobre cultura e religião:
sujeitos atemporais na história das naturezas e das humanidades, o sagrado, o ritual, o
comportamento humano na sociedade são compreendidas como derivações, em última

8
RORTY, 1998.
96
instância, de estruturas biológicas, ou seja, uma neurobiologia das crenças religiosas. 9 E aqui,
ocorrem trânsitos paroxísticos. Por exemplo, tais essencialismos de variadas matizes
biológicas e fenomenológicas, são apropriados por alguns movimentos culturais de minorias,
como partes do movimento negro, feminista e homoafetivo e, ao mesmo tempo, movimentos
religiosos fundamentalistas e conservadores, cristãos, judesu, hindus e muçulmanos, entre
outros.

Ao lado dos processos de liquefação de identidades e fronteiras culturais, econômicas e


religiosas, os guardiões da verdade e a verdade oracular são reinventados, ressementizados e
recompostos, dando origem a combinações e hibridismos diversos e inesperados, catapultando
no palco social o dilema entre segurança e liberdade, certeza e incerteza ontológicas.

Porém, a cultura e a religião não estão mais onde sempre se pensou que estivessem. As atuais
reflexões apontam para o fato de que, numa época de fluxos migratórios e diaspóricos de
pessoas, mercadorias e ideias, nunca foi tão fácil confundir o lugar que ocupam as pessoas
com suas práticas religiosas e culturais, com o lugar onde se pensa ou se deseja que elas
estejam. Portanto, os intérpretes e as fórmulas epistemológicas tradicionais foram subvertidos,
invertidos e/ou desinvestidos de plausibilidade, relidos e ressemantizados, espraiando-se por
redes culturais de pesquisa, experiência e crença.

Por outro lado, é preciso considerar que a condição de possibilidade de um discurso é a


existência de um acordo sobre as categorias básicas, a uniformidade e a similaridade como
instituição, pois os elementos, na cultura ou na religião, são “designados para conjuntos nos
quais as instituições encontram suas próprias analogias [...]”.10 E isso se atrela à existência de
energia emocional dispendida para criar um grupo de analogias que emana de preocupações
sociais.

Com isso, institui-se uma tensão entre os incentivos para que as mentes individuais dispensem
tempo e energia na resolução de problemas e a tentação de recolher-se e deixar que as
analogias fundantes e hegemônicas da sociedade se sobreponham. Emoção, cognição e
estrutura social estão ligadas em sistema, porque uma “ordem social distinta gera os próprios

9
VALLE, 2011.
10
DOUGLAS, 1998, p. 63.
97
padrões de valores, engaja corações de seus membros e cria uma miopia que parece ser
inevitável”. 11

O sagrado atemporalizado é a “essência” de muitas abordagens em ciências da religião,


erigidas como resistências aos fluxos tidos como passageiros dos fenômenos empíricos
inscritos nas danças, nos êxtases, nas doutrinas e nos dogmas das continentais ou das insulares
experiências religiosas.

Face ao mistério do sagrado, no decorrer da história, os fenômenos produzidos por extensos


contingentes de grupamentos humanos encontram-se em franco processo de interfecundação
em virtude das mídias e da aceleração dos fluxos de transporte e comunicação. Mas são tidas
como um sintoma da cultura dos homens frente ao eterno, ao absoluto, em diversas
modulações, tanto conservadoras (o mistério tremendo) ou modernas (o tremendo símbolo).
Tal é a ambição das teologias, nem todas, e de determinadas vertentes de discursos
filosóficos.

De um lado, experiências de ultrapassagem, comunicação com o além (do corpo, da


sociedade, do tempo e de si mesmo); de outro, o desejo de tradição, de sentir-se inserido em
uma família venerável, num nobre passado. De outro lado, dissoluções pós-modernas
assumidas como incondicionalidades da cultura e dos fenômenos religiosos, deslocalizando
intérpretes e interpretações, subsumindo-as na utopia da igualdade absoluta, tanto em
vertentes progressistas (o pós-humano), quanto em vertentes romântico-arcaizantes (a tradição
restaurada).

Daí, seu caráter ambivalente: centralidade da experiência e da emoção, engajamento do corpo


e dos sentidos, em chave não institucional e individual na religião e nas relações desta com a
cultura e a natureza; racionalidades modernas, mecanismo de garantia da segurança
ontológica, em chave institucional e comunitária na religião e nos contatos desta com a
sociedade, a cultura e a religião.

A vida em uma sociedade pós-tradicional, a segurança ontológica passa a emanar dos


sistemas peritos, cujo acesso é dificultado aos que não partilham dos pressupostos e processos
cognitivos das novas comunidades científicas. 12 É nelas que o poder da “verdade oracular”
passa a habitar, e é nelas que os novos guardiões da verdade detêm o poder de legitimar
11
DOUGLAS, 1998, p. 81.
12
GIDDENS, 2001.
98
diferenças sociais, de gênero, étnicas. Os sistemas peritos, sistemas de ideias, linguagem e
investigação das modernas ciências, humanas e naturais, reestabelecem e recriam as distâncias
entre leigos e especialistas que a religião um dia estabeleceu, ou seja, virtuoses e massas,
lembrando a nomenclatura weberiana.

Inscrita no fenômeno geral da cultura, a religião pode ser interpretada desde a ótica das
ciências humanas até a das ciências da religião, devendo-se evitar a hierarquização
epistemológica e a construção de competências normativamente excludentes do diálogo
necessário entre as comunidades teóricas e científicas.

É preciso, então, uma antropologia focada nas sociedades complexas que traga outras formas
de perceber o religioso e seus processos de des-diferenciação face à modernidade, ao observar
a ação e a prática dos “cientistas nativos” ou dos “nativos-observadores”, termos entendidos
como construções provisórias e a posteriori.

Em relação às ciências da religião, os procedimentos tradicionais transformam seu


interlocutor de religioso-sujeito, ou fiel-sujeito, em religioso-objeto, fiel-objeto, quer seja esse
objeto essência, quer seja um fenômeno. Assim, a divisão antirrepresentacionistas e
representacionistas funciona mais como produtora de híbridos do que buscadora de
interpretações válidas. Por outro lado, alguns pensadores defendem a necessidade do rigor
epistemológico no campo dos estudos em ciências da religião.

Uma das chaves estaria na investigação dos processos de subjetivação quando os estudiosos
aproximam-se do fenômeno religioso. Daí a pergunta: como se principia a construção do
sujeito-religioso em sujeito-objeto? Para se perceber a dimensão dos dilemas do homem
contemporâneo, faz-se necessário desconstruir a própria modernidade que, com o decorrer das
décadas e dos sucessos da ciência, foi erigida como mito primordial.

Mesmo em áreas tão específicas dos estudos de religião, como a filologia de textos clássicos,
hebraico e sânscrito, a rede da modernidade lança suas teias, em pelo menos dois sentidos,
sobre os estudos, os pesquisadores e as instituições dedicadas a compreender e a interpretar a
religião: primeiramente, assim como não existe texto que fale por si mesmo sem mediações,
também não existem ideias sem intérpretes, sem comunidades de homens e mulheres que as
defendem, leem, transmitem, estudam e as consomem; em segundo lugar, as vivências de uma
época histórica só podem ser acessadas, entendidas, e de novo avivadas com sentido e

99
significado, a partir das leituras e vivências do presente, cuja velocidade e fluxo de mudanças
aceleram-se, cruzam-se em inesperadas combinações.

O horizonte que orienta o que apenas deseja reler, à sombra de uma mangueira, a tradição dos
sagrados textos, é o irremediável hoje com seus desejos e corporeidades, orientado por
paixões e condições históricas e sociais.

Por isso, é preciso desconfiar das “purezas” das ciências da religião e dos modos de ler e
interpretar inscritos no corpo científico dessas mesmas ciências, pois

o que comanda os pontos de vista, [...] as intervenções científicas, os lugares


de publicação, os temas que escolhemos, os objetos pelos quais nos
interessamos etc. é a estrutura das relações objetivas entre os diferentes
agentes que são que são [...] os princípios do campo.13

Apesar disso, permanece a tensão entre um “estar aqui” e o “desejar outro lugar”, ambas
esgueirando-se entre análises de pensadores e agentes, como signos num emaranhado de
significantes e fluxos de significados.

Cabe criticar as rupturas entre dois campos metodológicos e epistêmicos que lastreiam muitos
estudos das ciências humanas e sociais, inclusive os estudos de religião: de um lado, os que
estudam textos específicos (historiadores, críticos, filósofos); de outro, os que estudam a
atividade de criar textos (linguistas, psicólogos, etnógrafos, antropólogos). 14 Instalou-se,
portanto, uma dissonância metodológica entre o estudo da inscrição e o do processo de
inscrever, entre o estudo do significado fixo e o dos processos sociais que o fixam, impondo
uma fragmentação e uma territorialização paroquial.

Assim, num mundo irremediavelmente multicultural e de epistemologias múltiplas, a


contragosto de muitas comunidades religiosas e quiçá científicas, a tarefa interpretativa é
outra, distribuída em quatro ordens de conexão semiótica dos textos: relação das varias partes
entre si; do texto com outros cultural e historicamente similares; relação com aqueles textos
que o constroem; e relação com realidades consideradas externas a ele, ou coerência,
intertextualidade, intenção e referência. E aqui, podem-se ler as manifestações religioso-
culturais como construções textuais e discursivas.

13
BOURDIEU, 2004, p. 23.
14
BECKER, 2001.
100
Por um constante repensar das ciências da religião

Um ponto importante, que deve ser levado em consideração no campo dos estudos de religião,
é a virada culturalista nas ciências sociais, expressada como um ceticismo pós-moderno, de
rejeição às macroteorias e aos discursos totalizantes, atingindo as análises tanto da religião
quanto dos estudos empíricos e etnográficos. Essas viradas estabelecem um horizonte
epistemológico legítimo e ao qual as ciências da religião não podem ignorar quando olham a
religião na cultura e a cultura na religião.

O sujeito autônimo, racional e livre como totalidade e abstração, é fruto, também, de uma
operação gramatical, um artifício gerado na vida social do homem, embora, como jogo de
linguagem, seja essencial para a plausibilidade dos direitos e das democracias.

Fundido ao homem, o sujeito gramatical ganhou as condições de um eu com as prerrogativas


do sujeito transcendental, tornando-se um vasto contingente: desde os ultraconservadores da
Sociedade São Pio V aos militantes marxistas leninistas, espécie de religiosidade política
quiliástica; todos os estudos sociais e religiosos que creram no sujeito e o afirmaram dotado
de inquestionável existência ontológica, quer seja esse sujeito a família, a razão, a Igreja, o
Estado, o capital, o trabalho.

Assim, expressam-se a maior diversidade teórica e as chamadas viradas em diversas ciências,


como a virada pós-moderna na antropologia, de todo não assimilada, e a linguistic turn, no
campo da filosofia, cujos aspectos e importância ainda esperam ser debatidos no campo das
ciências da religião. De fato, a expansão de estudos culturais, construtivistas, feministas, pós-
modernistas e semióticos, nas academias dos centros e das periferias, afetou a teoria
sociológica, espraiando-se sobre os estudos da religião, contribuiu para a abordagem do
religioso em novas chaves interpretativas.

Por outro lado, no âmbito das contra-viradas, sob o sabor do ressentimento, a retomada da
fenomenologia clássica em diversos setores de estudos, entre os quais os da religião,
repercutirá uma crítica de ressonâncias românticas, acionada contra a pretensão
excessivamente racional de determinados saberes naturais e sociais cientificistas,
interventores, dicotômicos e desagregadores, separados de um todo ou totalidade necessária,
cósmica ou orgânica.
101
Com efeito, paradoxal e paulatinamente, sob a forma de pós-modernismo, os princípios
românticos foram retomados no pensamento ocidental, através da crítica ao universalismo em
nome da singularidade, da diferença, da intensidade e da experiência. Dessa forma, as novas
manifestações pós-modernas seriam expressão de um neo-romantismo (DUARTE, 2004).
Nesse contexto, algumas teorias sociais contemporâneas consistem em ressonâncias do ideal
romântico de resgate da totalidade, de fluxo, da experiência, retraduzidas para seus
respectivos universos epistemológicos.

Nas diversas áreas das ciências humanas e sociais, da crítica literária à antropologia, se, por
um lado, não se pode deixar de dialogar com as teorias ditas de ponta sob pena de
enclausuramento ou posturas sectárias, por outro lado, não se podem olvidar as tradições
constitutivas das ciências, da religião e da cultura, mas sem emparedá-las e sem agir como
“guardiões da verdadeira e última interpretação”.

Daí ocorrerem ondas de perplexidade que varrem desde setores da esquerda tradicional aos
setores conservadores, tanto no campo das teorias sociais e filosóficas da sociedade e da
religião quanto no campo das militâncias políticas e religiosas.

Embora o crescimento e a globalização econômico-financeira, em complexo compasso-


descompasso com a globalização cultural, e os consequentes fluxos derramados sobre a
religião, e desta para a economia e a cultura, gerarem e multiplicarem precariedades, geram
também novas dinâmicas e modelos.

A cultura digital, o midiativismo e as estratégias de apropriação de ferramentas tecnológicas


das redes, como o Facebook, Twitter e outras, para causas e objetivos próprios, fazem com
que sejam implodidas e explodidas dicotomias e distinções tradicionais entre fenômenos
culturais e religiosos. Se as fronteiras não existissem, seria necessário inventá-las, diriam os
neoconservadores.

Ricoeur,15 ao analisar os neoconflitos das sociedades industriais avançadas, que se


disseminam com força globalizatória, observou que as tentações da ordem e as ilusões da
dissidência são reforçadas por duas ideologias opostas, mas que se alimentam mutuamente: a
ideologia do conflito a qualquer preço e a ideologia da conciliação a qualquer preço, ambas
reforçadas por diversas militâncias político-religiosas.

15
RICOEUR, 2008.
102
Nesse sentido, não é possível opor ciência, ideologia e religião, já que nenhum cientista,
teólogo ou religioso fala de um lugar não-ideológico. Não existe imaculada concepção da
razão, da ciência, da religião, da cultura. Embora expressas no singular, sinalizando utopia do
abstrato, suas vivências são sempre plurais e lastreadas nas contemporâneas estruturas sociais,
econômicas e políticas, entremeadas pelo caráter irredutível dos conflitos nas sociedades
contemporâneas.16

Pode-se incorrer em duas ingenuidades: acreditar que mais racionalidade porá fim no conflito,
tido, equivocadamente, como traço arcaico da cultura e das religiões; ou que a racionalidade
técnica neutralizará o papel da política, elemento essencial nas atuais dinâmicas culturais que
passam pelas políticas de afirmação da diferença e identidade de minorias e grupos
segregados, social, cultural e religiosamente.

Na crítica da modernidade, da globalização e dos fenômenos culturais, a tradição religiosa e


suas vocalizações conceituais, teológicas ou filosóficas, podem ser portadoras de narrativas
críticas de desconvencionalização do pensamento, mas em nome de quem?

Como, então, aferir o grau dessa sonoridade discursiva plurivocal e as direções, sob a forma
de diálogos interreligiosos e científicos e intrarreligiosos e intracientíficos?

Nesse sentido, por um lado, transformar as vozes das ciências da religião de timbres e
tonalidades distintas a partir de suas guturais perspectivas sociológicas, filosóficas e
teológicas é um desafio. Por outro, diante dos contextos atuais da cultura e dos fluxos sociais,
é preciso abrir-se ao diálogo em quatro direções: outras comunidades de ciência e pesquisa,
desde as biogenéticas às literárias e pós-coloniais; as comunidades de sujeitos e movimentos
religiosos; as comunidades políticas como o Estado, governos e políticas públicas; e as
comunidades de consumo de informação, dos jornais aos blogs.

Mas isso potencializa riscos, como o de determinados pensadores que, emergindo do campo
das ciências da religião, postam alternativas de análise dos fenômenos das culturas, tendo sua
vocalização conservadora catapultada, ao se produzir uma “afinidade eletiva” entre o
conservadorismo de alguns meios de comunicação e o conservadorismo do pensamento.

O fenômeno é amplo, ultrapassa as ciências da religião e aproxima pelas pontas – embora não
as faça se tocar – a intelectualidade brasileira de extrema direita e a extrema esquerda, a ateia
16
RICOEUR, 2008.
103
e a crente. Estas são eleitoras de deuses e demônios, desprezando as lições weberianas, como
responsáveis absolutizados dos fenômenos: os Estados Unidos, o neoliberalismo, a
globalização, a tradição, as igrejas, o relativismo. Tal atitude constitui-se numa formidável
desajuda social, política e filosófica.

Emerge daí a seguinte questão: qual é a dificuldade, explícita e implícita, nesses arranjos
científicos e culturais, nessa rede em que as ciências da religião não podem escapar nem se
colocar como desengajadas?

Diversas são as dificuldades no campo das ciências da religião em sua oferta de diálogo para
entender as transformações da cultura, desde um acantonamento tribal de perspectivas,
passando pela ressurgência paradigmática de positivismos e romantismos, até ruídos
metodológico-epistemológicos.

Compreende-se, nesse ínterim, o movimento, institucional e epistemológico, a percorrer


algumas propostas e pautas das graduações e pós-graduações, de “volta para dentro”, para
adensar a autonomia das ciências da religião. Um movimento que deve ser sempre
contrabalançado pelo “voltar-se para fora”, caso contrário a posição das ciências da religião
no atual contexto das produções e circulações dos discursos científicos, em que se enfatiza a
interdisciplinaridade, pode deslizar para subalternidade paradoxal.

E aqui é preciso entender que, na verdade, se os conceitos tivessem se mantido em sua


“topoepistemologia” original, sem fluxos dialogais, sem a diáspora e a transnacionalização,
não haveria um campo das ciências da religião.

Portanto, as categorias do pensamento estão ligadas aos fluxos diaspóricos e migratórios de


pessoas, emoções, cognições, objetos e corpos. Estes se estendem sobre as sociedades,
fazendo com que, por exemplo, as religiões afro-brasileiras desembarquem em Portugal, onde
emergem terreiros e entidades espirituais portuguesas e ensejam às classes médias urbanas e
brancas novas vivências culturais. Outro exemplo seria a reemergência da feitiçaria em
contextos de sociedades pós-coloniais africanas, complexificando os campos e as vias de mão
dupla entre cultura e a religião. Tal é o caso das crianças acusadas de feitiçaria em Angola,
fenômeno complexo que articula padres, pastores e igrejas, laceradas entre visões pastorais
opostas (exorcismo e promoção humana), organizações não-governamentais, famílias
extensas recontextualizadas na transição do mundo rural ao urbano e atores estatais.

104
Por isso, as categorias de pensamento podem ser vistas como vias de “entrada” e “saída” das
realidades culturais e religiosas, construtos teóricos marcados pelo modo de produzir,
atravessados pelos usos da linguagem e pelos movimentos de ressignificação. Nesse sentido, é
preciso avaliar: qual a força enunciativa das reflexões das ciências da religião para fora e para
dentro, a partir das retóricas discursivas oriundas das ciências sociais, da filosofia e da
teologia?

As redes de influência, a topografia e os fluxos dialogais influenciam a produção das


filosofias e teologias, bem como sociologias e antropologias acionadas nas análises dos
estudos de religião, e das quais se extraem fios e tramas específicos, em distintas dimensões.

A primeira dimensão é a dos fios e tramas topo-epistemológicos: trata-se das filosofias e


teologias continentais e das periféricas e não-continentais, dentro das quais, por exemplo, as
tradições como a anglo-saxã e a alemã, esta com um peso interlocutório hegemônico nas
ciências da religião, em detrimento das tradições norte e latino-americanas.

É preciso se pensar nas filosofias e teologias periféricas em sua relação ambígua e crítica com
as tradições continentais, dando origem a cruzamentos e ressemantizações, como a teologia da
libertação, as teologias negras e feministas, em cujas tramas, identificam-se os fios da
influência da cultura e da sociedade, indelevelmente marcados: as lutas pela emancipação da
mulher, dos negros, das minorias em seus mais amplos sentidos.

Porém, o fluxo contínuo de diásporas e migrações faz-se agir sobre o continente. Daí, antigas
correntes e autores continentais são relidos e ressignificados à luz de novas experiências
religiosas trazidas das periferias topo-econômicas e sociais cristãs, islâmicas e hinduístas,
muitas vezes por migrantes, dando origem a criativas combinações.

A segunda dimensão é construída pelos transnacionalismos epistemológicos e diásporas


metodológicas que se traduzem no surgimento, desenvolvimento e deslocamento de
categorias teológicas, filosóficas e sócio-antropológicas que deixam sua “terra de origem” e
entram em interação, no fluxo das trocas entre comunidades de pesquisadores e instituições de
pesquisa e ensino. Essas categorias são lidas e empregadas para interpretar experiências, fatos
e fenômenos relativos aos religiosos imersos nas culturas, sociedades e estados. Nesse
sentido, a ciência da religião é um território de diásporas.

105
Assim, a autoevidência do religioso e do sagrado perdeu-se de todo, precisando ser
constantemente construída em meio aos eixos culturais, nos mais complexos enlaces: mídias
de massa e cibernéticas, biotecnologias, neuropsico-genéticas, ecologias e pobrezas
econômicas, gêneros e moralidades diversas.

O último elo liga culturas e padrões de avaliação moral, fronteiras e territórios nos quais as
religiões cristãs, islâmicas, hinduístas e budistas incursionam como batedores ou como
exércitos bem-disciplinados, invocando sobre si condições de minoridade em meio à
democracia ou à maioridade oligárquica das monarquias e ditaduras.

Das culturas surgem os padrões que opõem o “nós” ao “eles”: de um lado estão as ações
moralmente consentidas, legítimas, no limite “humanas” que “nós” praticamos; do lado
oposto, estão as ações espúrias e ilegítimas, no limite “não-humanas”, que “eles” praticam.
Eis o ponto nodal em que as religiões produzem os mais intensos embates, por vezes em
relação tensa e ambígua, com outras comunidades culturais e políticas: com o Estado, com as
laicidades, com as ciências.

Avizinha-se uma tensão aporética entre a postulada universalidade de demandas éticas e o


policentrismo e polivocalidade da autoridade ética; entre o sentido moral prevalente e a
evidência experimental de suas transgressões. Talvez esteja aí o campo mais delicado das
tramas tensas entre experiências religiosas e transformações culturais.

Pode-se falar, diante disso, de um baixo grau de autonomia do campo das ciências da religião
face às outras comunidades de cientistas? Outra questão: como as ciências da religião e seus
intérpretes conseguem falar para fora da comunidade dos intérpretes autorizados e como
conseguem manter essa interlocução? Num sentido próximo de uma má fé conservadora,
como a de certos teóricos das ciências da religião?

Partindo dessa reflexão, podemos identificar dois tipos de problemas na agenda de


investigação das ciências da religião: um problema que se estende às ciências das culturas, ou
seja, às ciências sociais e humanas; a tendência à multiplicação de estudos sobrecarregados de
empirismo, que perdem as nítidas linhas e esmaecem os rigores e de estudos renegadores da
empiria, tornando-a apenas um epifenômeno; e a busca de essências abstratas, desconectadas
dos corpos, das histórias e das políticas. Esses dois problemas são alimentados por outro: as

106
imagens idealizadas da tradição, da religião, da ciência e da razão moderna, que intervêm nas
falas, mas precisam ser desmontadas pelas práticas e linguagens discursivas críticas.

Num processo que se arrastou do Renascimento ao Iluminismo, das filosofias cientificistas do


século XIX às promessas tecnológicas do século XXI (a tecnorreligião), a imanentização
contrabandeou para as estruturas reflexivas e para as práticas sociais da modernidade
conceitos de origem religiosa.

Observe-se que:

o cientificismo permanece até hoje como um dos poderosos movimentos


gnósticos na sociedade ocidental; e o orgulho imanentista na ciência é tão
forte que até mesmo os ramos especiais da ciência deixaram sedimentos
tangíveis nas variantes da salvação através da física, da economia, da
sociologia, da biologia e da psicologia. 17

Por outro lado, a gnose como forma mentis é também uma imanentização do princípio divino,
ou seja, a transposição da ideia de divindade para o interior do sujeito e do horizonte das
experiências humanas.

Nesse sentido, é preciso trazer para o campo dos estudos de religião a crítica latouriana da
divisão de tarefas intelectuais hegemônicas na modernidade:

A palavra ‘moderno’ designa dois conjuntos de práticas totalmente


diferentes, mas que recentemente deixaram de sê-lo. O primeiro conjunto de
práticas cria, por ‘tradução’, misturas entre gêneros de seres completamente
novos, híbridos de natureza e cultura. O segundo cria, por “purificação”,
duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos [...] e os não-
humanos [...] O primeiro conjunto corresponde àquilo que chamei de redes,
o segundo ao que chamei de crítica [...] Em quanto considerarmos
separadamente essas práticas, seremos realmente modernos, ou seja,
estaremos aderindo ao projeto da purificação crítica, ainda que este se
desenvolva somente através da proliferação dos híbridos [...] quanto mais

17
VOEGELIN, 1982, p. 97.
107
nos proibimos de pensar os híbridos, mais seu cruzamento se torna possível;
este é o paradoxo dos modernos [...].18

Assim, em virtude das situações culturais e religiosas cada vez mais fluidas, plurais,
descentralizadas ou policentralizadas, é cada vez mais importante o diálogo intertextual
conectando um texto ao outro, dialogando-os ontologicamente no mesmo nível, ao contrário
das divisões e territorializações.

O problema é que algumas formas de se indagar pela religião, na modernidade, suas


permanências ou ressurgências, são ainda formas de separar, ontologicamente, fronteiras que
existem apenas em função de estratégias políticas da identidade moderna, ou, pelo menos, do
que se acredita ser moderno.

Frente ao transbordamento de fronteiras, evidenciam-se duas formas de realizar a tarefa


interpretativa: enfocar os fenômenos sob o cânone epistemológico clássico da modernidade,
identificando as “invasões” e ultrapassagens interpretadas como indevidas e ilegítimas,
exigindo, portanto, procedimentos de restauração e diferenciação de territórios; ou operar uma
nova leitura, deixando de ver, na ambiguidade, um “defeito” ou uma operação metodológica
incompleta e impura, construindo uma nova narrativa epistemológica.

Considerada fundamental para a compreensão moderno-científica, a tarefa de conceituar


torna-se extenuante e infrutífera porque os contornos nunca são suficientemente nítidos para
adquirirem consensos sólidos. A tarefa de conceituar pode se tornar uma maneira de
legitimar, política e epistemologicamente, exclusões de fenômenos, ideias, práticas, crenças e,
por extensão, minorias ou grupos sociais e religiosos.

Sempre provisórios, os consensos escapam das teorias com facilidade, desmanchando-se no


ar. Desde uma perspectiva foucaultiana, o ato de conceituar já é exercício de poder: um ato
exclusor demarcando territórios semânticos e suas fronteiras que, se transgredidas, promovem
a gestação dos pré-conceitos.19

18
Latour, 1994, p. 17.
19
FOUCAULT, 2010.
108
Se a conceituação chega a definir zonas claras e delimitadas, logo surgem fenômenos que
desestabilizam as fronteiras, iniciando-se uma nova tarefa de conceituação. Por entre os dedos
do conceito, o líquido (da religião, da modernidade, do religioso) escapa constantemente.
Talvez seja o caso de opor ao conceito, a noção de narrativa, mais aberta e porosa, mas com
não menos rigor intelectual compreensivo.

Quase concluindo...

Cabe, aqui, como alerta, um velho ditado mineiro: que não se deixe o uso e o hábito do
cachimbo colocar a boca torta. Hábito como repetição desesperada e compulsiva, quer seja em
ações metodológicas, quer seja em ações político-culturais, de erigir uma única continuidade,
uma memória autorizada em meio às diferenciações culturais e religiosas a que as sociedades,
classes sociais e instituições são arrastadas e reinventadas, no mundo atual. Assim, faz-se
necessário lembrar a importância da surpresa e da descoberta daquilo que não se está
procurando, da imprevisibilidade, da constante subversão do enclausuramento taxonômico e
da resistência à estandardização e ao uso não crítico da autoridade epistêmica.

Nesse sentido, o campo das ciências da religião pode revigorar-se a partir de releituras de
clássicos ou de “autores-minoria”, como Feyerabend. 20 Defende-se aqui, a utilização de
contrarregras para neutralizar a tendência dos pesquisadores a preservar tudo o que é antigo e
familiar, “vício acadêmico” denominado “condição de coerência”. 21 No momento em que
novas hipóteses são obrigadas a se ajustar a teorias já aceitas, cria-se ambiente propício para a
dogmatização. Enfim, de nada adianta buscar fatos novos sem mudança de olhar, pois virão à
tona somente aqueles que demonstram coerência com a teoria então vigente. 22

Por isso, será necessário operar distinções e articulações entre, pelo menos, três dimensões: as
perspectivas observacionais de onde se observam os fenômenos religiosos – do lugar social,
institucional e político; as perspectivas sujeito-objetais – quem observa e quem é observado,
em termos socioeconômicos, intersubjetivos, morais e éticos; por fim, as possibilidades de
perspectivação – produção de alternativas de compreensão a partir da necessária conjugação

20
Feyerabend,1989
21
Idem.
22
Ibidem.
109
de posturas de confiança e de desconfiança em relação aos sistemas interpretativos
hegemônicos e contra-hegemônicos.

Dessa forma, embora tanto o essencialismo metafísico quanto o relativismo cético possam
contribuir, há que se levarem em conta as análises inovadoras. Expressas no singular, cultura
e religião sinalizam utopia e anseio por uma totalidade abstrata passível de pleno
entendimento, embora suas vivências reais estejam lastreadas no plural, nos fluxos e refluxos
da vida e das estruturas políticas, econômicas e culturais da contemporaneidade.

À guisa de conclusão, recorre-se a duas propostas: historicizar os discursos produzidos nos


mais variados locais (igrejas, comunidades científicas e de luta política), 23 instrumentos e
veículos (mídias de massa e cibernéticas) e agentes (intelectuais, religiosos, leigos) sobre
cultura e religião; compreender dentro de que limites pensa e escreve uma sociedade que, nos
contextos dos movimentos globalizatórios, é atravessada por novas formas de textos e
intertextualidades, de contato e economia, de comunicação e relação.

Para que não se perca a dinâmica enriquecedora do fluxo das diferenças nem se congele o
diapasão em uma das polaridades no campo das ciências da religião, propõe-se, então, que as
ciências da religião sejam vistas como um entrelugar, um entreolhar.

Por isso, duas perguntas devem nortear tanto a prática, quanto a teoria: serão nossos
programas de pós-graduação em ciência(s) da religião capazes de estabelecer as condições
para que se implante, no espaço acadêmico das universidades e faculdades, o encontro plural
e dialogal das tradições metodológicas e não seu confronto puro e simples, o rolo compressor
de uma hegemonia de uma tradição sobre a outra? Será possível construir um ponto ou uma
“geometria euclideana”, capaz de sintetizar as metodologias nas ciências da religião? Ou será
possível criar uma “geometria não-euclideana”, em que as metodologias distintas estão, mas
em permanente estado de abertura e interpelação umas em relação às outras?

O desafio colocado pelo estudo do religioso nas atuais sociedades será a construção de uma
condição dialógica que produza uma nova função comunicativa e um novo desempenho
epistemológico no âmbito das ciências da religião. Assim, é possível empreender a difícil
tarefa da compreensão do religioso sem ser atropelado pelos “objetos-sujeitos” ou “sujeitos-
objetos” das experiências, das estruturas e dos processos a serem investigados.

23
ANGENOT, 2010.
110
Referências

ANGENOT, Marc. El discurso social: los límites históricos de lo pensable y lo decible.


Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2010.

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112
Historiografia e Teoria da História da Igreja Católica no Brasil
Império1

Ítalo Domingos Santirocchi2

Introdução

A História da Igreja no Brasil Império começou a ser escrita no decorrer do próprio século
XIX, muitas vezes, por personagens inseridos nos eventos dos quais tratavam. Sua produção
continuou farta durante as primeiras décadas do século XX. No entanto, dos anos 30 aos anos
60, poucos trabalhos significativos foram elaborados. Foi a partir dos anos 70 que este campo
historiográfico foi se revigorando.

As pesquisas desenvolvidas nesta área nunca foram prioridade de historiadores profissionais,


sendo marcadas, desde o século XIX, pela interdisciplinaridade. Somente nos anos 80 que a
História Eclesiástica e a História das Religiões, foi adentrando, não sem muitas dificuldades e
preconceitos, os ambientes acadêmicos. Hoje, ela pode ser considerada um campo fértil, com
produções multidisciplinares e também estritamente historiográficas, levando os seus
pesquisadores a se reunirem em associações cada vez mais representativas e em Congressos e
Simpósios cada vez mais concorridos. Como exemplos, basta citar a Associação Brasileira de
História das Religiões (ABHR) com seus simpósios nacionais e regionais e o GT da ANPUH,
História das Religiões e Religiosidades com seus Simpósios nacionais e regionais bianuais.
As duas associações também contam com revistas especializadas, a PLURA (ABHR) e a
Revista Brasileira de História das Religiões (ANPUH).

No caso específico da História da Igreja Católica no Império do Brasil, as pesquisas, mesmo


tendo aumentado, continuam escassas. Nos vários estudos sobre a construção do Estado
Imperial, por exemplo, um aspecto parece continuar sendo negligenciado: o fato de o Brasil
oitocentista ser um Estado Confessional, existindo a união entre os poderes secular e

1
Este texto se apóia em dois trabalhos precedentes, um artigo publicado na revista Temporalidades, onde faço
uma discussão teórico-conceitural: Uma questão de revisão de conceitos: Romanização – Ultramontanismo –
Reforma; e uma palestra realizada no III Encontro do GPCIR (Grupo de Pesquisa Culturas, Identidades e
Religiosidades), na Universidade Federal de Sergipe (UFS), intitulada: História e historiografia da Igreja
católica no Brasil Império. Aproveito a ocasião para agradecer as perguntas e críticas apresentadas pelos
ouvintes e pelos colegas de mesa: Prof. Dr. Antônio Lindvaldo Sousa e o Prof. Dr. Jérri Roberto Marin, que
muito contribuíram para a elaboração final deste texto.
2
Bolsista do Programa Nacional de Pós Doutorado – PNPD – CAPES. Inserido no projeto de pesquisa: Testamentos e
hierarquias em sociedades escravistas ibero-americanas (Séculos XVI-XVIII), na UFRRJ.
113
espiritual. O que deveria fazer surgir, quase espontaneamente, a pergunta: qual o papel da
Igreja Católica na construção do Estado no Brasil imperial? Ainda são poucos os trabalhos
que tentaram responder esta questão, ou parte dela.3

Algumas vezes esta lacuna chamou a atenção de eminentes historiadores, como foi o caso de
Sérgio Buarque de Holanda que, em 1963, alertava para o fato de ser impossível negar a
importância que as instituições religiosas representavam na história brasileira. Para ele, seria
impossível compreender vários aspectos da sociedade brasileira “sem a exploração prévia e
isenta de nossa história eclesiástica”. 4 Já outros historiadores, além de reconhecerem estas
lacunas, demonstrariam desconfiança em relação às produções realizadas fora do ambiente
acadêmico, como foi o caso de Augustin Wernet e Guilherme Pereira das Neves. 5

Não é uma tarefa fácil elaborar um texto sobre a historiografia e teoria da Igreja Católica
durante o Brasil Império. Isso devido a vários motivos: 1º. Um recorte cronológico extenso;
2º. Ainda não existe qualquer trabalho sobre a historiografia da Igreja católica nesse período,
sendo este, provavelmente, senão a primeira, uma das primeiras tentativas; 3º. A
limitadíssima produção de Teoria da História para a História Eclesiástica no Brasil deste
período.

Tais dificuldades me impeliram a elaborar, mais do que um trabalho exaustivo, um convite


aos pesquisadores da área para que voltem sua atenção também para a Teoria da História e
Historiografia da Igreja Católica no Brasil.

Neste texto, o meu objetivo é traçar, de forma inicial e exploratória, as linhas bases do
desenvolvimento historiográfico sobre a reforma levada a cabo pelos bispos ultramontanos 6

3
SILVA, 1972; FRAGOSO, 1840-1875. Em BEOZZO,1992. NEVES, 1997; BASTOS, 1997; SANTIROCCHI,
2010; SOUZA, 2010; NEVES, 2009; SILVA, 2012.
4
HOLANDA, 1963, p. 13.
5
WERNET, 1987, p.52;NEVES, 2011, p.381.
6
O ultramontanismo é um termo de origem francesa, derivado da associação de duas palavras latinas (ultra + montes),
significando “para além dos montes”, isto é, dos Alpes. O apelativo começou a ser usado no século XIII, para designar papas
escolhidos ao norte dos Alpes. Seis séculos depois, olhando da França, “para além dos Alpes”, correspondia estar voltado
para as ideias emanadas de Roma, ou seja, concordando com os posicionamentos da Santa Sé. O ultramontanismo, no século
XIX, se caracterizou por uma série de ideias e atitudes da Igreja católica num movimento de reação às novas tendências
políticas desenvolvidas após a Revolução Francesa e à secularização da sociedade moderna. As suas principais características
podem ser assim resumidas: esforço pelo fortalecimento da autoridade pontifícia sobre as igrejas locais e dos bispos sobre
suas dioceses; reafirmação da escolástica; restabelecimento da Companhia de Jesus (1814); e definição dos “perigos” que
assolavam a Igreja (galicanismo, jansenismo, regalismo, todos os tipos de liberalismo, protestantismo, maçonaria, deísmo,
racionalismo, socialismo, casamento civil, liberdade de imprensa e outras mais), culminando na condenação destes por meio
da Encíclica Quanta Cura e o Silabo dos Erros, anexo à mesma, publicados em 1864. O fortalecimento da autoridade
114
durante o Império e, consequentemente, sobre alguns aspectos das relações entre a Igreja e o
Estado. Antes de começar é necessário estabelecer os recortes e o método que será aqui
utilizado. Devido ao limite deste tipo de produção, foi necessário utilizar um recorte que se
concentrasse nas obras que fossem realmente importantes, ou reconhecidas como tais. As
teses e dissertações não publicadas serão citadas somente quando se tratar de indicar novas
perspectivas e tendências. Os artigos serão citados somente quando forem representativos
para a obra de algum autor ou caso tenha tido um significado especial para a historiografia
analisada.

A natureza deste texto não permite um tratamento aprofundado das questões e obras, por isso,
o objetivo é traçar linhas programáticas que possibilitem iniciar a discussão e auxiliar as
pesquisas sobre a historiografia e a teoria da Igreja Católica no Império do Brasil. Limitado
pela minha especialidade, ou seja, história política da Igreja no Império, privilegiarei as
produções que se inserem neste âmbito. Porém, cabe alertar que ainda são amplas as
possibilidades temáticas que podem ser abordadas por um trabalho historiográfico neste
campo e neste período.

Entre historiografia e teoria da História da Igreja católica no Brasil Império

A primeira obra para a qual quero chamar atenção foi escrita no século XIX e analisa, pelo
viés jurídico, político e eclesiástico, a relação entre a Igreja e o Estado e seu desenvolvimento
histórico em Portugal e no Brasil Imperial. Trata-se do Direito Civil Eclesiástico Brasileiro,
publicado por Cândido Mendes de Almeida, em dois volumes de 1863 e 1873. Jurista por
formação, porém, com trabalhos significativos também em outras áreas, como é o caso da
história, Cândido Mendes foi um dos grandes nomes da historiografia do século XIX. No
entanto, foi esquecido pelos historiadores dos séculos XX e XXI. Sua importância é
testemunhada por Capistrano de Abreu, que na primeira série dos Ensaios e Estudos,
demonstrou sua admiração por ele e o comparou a Varnhagen. 7

Apesar de ser ultramontano e deixar isso claro logo no início do primeiro volume de seu livro,
Cândido Mendes construiu uma acurada e bem documentada obra de história sobre a instituição

pontifícia, resultando na definição da infalibilidade papal nos pronunciamentos ex-cathedra durante o Vaticano I (1869-
1870), foi um dos momentos culminantes do movimento ultramontano (SANTIROCCHI, 2010, p. 195-199).
7
ABREU, 1931:197.
115
do padroado e sobre o desenvolvimento do regalismo 8 em Portugal e no Brasil. Traçando em
paralelo uma história jurídica civil e canônica que percorre as relações entre Igreja e Estado desde
o início da Era Moderna até os anos sessenta do século XIX. Esta obra, creio eu, inaugurou o
gênero da moderna História Eclesiástica no Brasil, utilizando-se das metodologias em voga
durante o século XIX. Ela apresenta também a maior coleção de fontes publicadas sobre a
temática, reunindo documentos que estavam espalhados por vários livros e arquivos de Portugal e
do Brasil. Este livro é fonte básica para qualquer trabalho que trate da história da Igreja Católica
no Império.

A “Questão Religiosa” ocupou grande parte da produção historiográfica sobre a Igreja no


Império, desde o século XIX até recentemente. Segundo Flávio Guerra, até 1950 já tinham
sido publicados aproximadamente 500 trabalhos sobre o tema. 9 Temos várias publicações dos
próprios envolvidos, tanto do lado eclesiástico quanto do lado do Estado ou da maçonaria.
Inicialmente, os personagens de tal acontecimento, e suas testemunhas, contaram a sua versão
da história, defendendo os próprios posicionamentos na querela, produzindo uma história
imediata ou do tempo presente, que nos serve hoje como fontes históricas.

Alguns desses trabalhos merecem ser citados, de D. Macedo Costa temos: Direito contra
Direito (1874) e A questão religiosa perante a Santa Sé (1866); de D. Vital de Oliveira temos:
Abrégé historique de la question religieuse du Brésil (1875); de Nabuco de Araújo: O partido
Ultramontano (1873) e A invasão ultramontana (1873); de Saldanha Marinho: A Igreja e o
Estado (1874) e o Julgamento do bispo de Olinda (1874). Todos são trabalhos apologéticos
defendendo as posições dos envolvidos.

Um dos trabalhos publicados naqueles anos se tornou uma espécie de história oficial da
Questão Religiosa, como afirmou David Gueiros, 10 trata-se da obra do capuchinho Antonio
Manuel dos Reis, O bispo de Olinda Perante a História (1878). Ela é a obra mais conhecida
sobre o assunto e já teve diversas edições. Nos anos de 1930 ela foi reeditada em três volumes
e aumentada por fr. Félix de Olívola. O primeiro tomo é uma biografia do bispo; o segundo é

8
Segundo Zília Osório de Castro (2002), entende-se por regalismo, “a supremacia do poder civil sobre o poder eclesiástico,
decorrente da alteração de uma prática jurisdicional comumente seguida ou de princípios geralmente aceitos, sem que haja
uma uniformidade na argumentação com que se pretende legitimá-lo”. Ou seja, o regalismo se caracteriza por uma
modificação unilateral, por parte do Estado, das leis ou dos costumes que definem os limites e respectivas funções dos
poderes civis e espirituais. As justificativas para tais atos se modificaram nas diferentes sociedades e épocas. O padroado não
é regalismo, pois é um direito reconhecido por ambos os poderes. O mesmo não pode ser dito do beneplácito (placet) e do
recurso à coroa, que nunca foram aceitos pela Santa Sé, sendo eles exemplos típicos de regalismo.
9
GUERRA, 1972, p.10.
10
GUEIROS, 1980, pp. 15-16.
116
uma coleção de documentos do seu julgamento; o terceiro, uma coleção das cartas pastorais,
discursos e outros escritos de Dom Vital.

Nas décadas posteriores o tema continuou sendo explorado, mas ainda exaltava os ânimos, e
os pesquisadores acabavam por tomar posições de partes. Algumas obras que merecem
atenção são: Eugênio Vilhena de Morais: O Gabinete Caxias e a anistia aos bispos na
“questão religiosa” (1930); Flávio Guerra, A questão religiosa do Segundo Império (1952);
Ramos de Oliveira: O conflito maçônico-religioso (1952); e Antônio Carlos Vilhaça: História
da Questão Religiosa (1974). A tomada de posição continua mesmo em trabalhos recentes
como o de José Castellani: Os maçons e a questão religiosa (1996).

Alguns trabalhos sobre essa temática merecem atenção especial. Do lado católico temos a
biografia de Dom Antônio de Macedo Costa (Bispo do Pará), escrita por D. Antônio de
Almeida Lustosa em 1939, que apresenta uma farta documentação e riqueza de detalhes sobre
a Questão Religiosa no Pará, e os trabalhos de Nilo Pereira: Dom Vital e a questão religiosa
no Brasil (1966); Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil (1970); Igreja e Estado:
relações difíceis (1982). Partindo de um estudo sobre a Questão Religiosa o autor vai tentar
ampliar o quadro de análise, no entanto, não obtém sucesso. Sua obra acaba centrando-se no
acontecimento em si, não consegue explorar com profundidade a temática do padroado e do
regalismo, não percebe a complexidade do movimento reformador ultramontano em ato e
acaba contribuindo para a construção de uma imagem heróica de D. Vital. A principal riqueza
de sua obra é apresentar os aspectos culturais, político e sociais de Pernambuco nos anos da
Questão Religiosa, com abundante documentação.

Do lado acatólico duas obras fundamentais merecem ser citadas. O Padroado e a Igreja
brasileira de João Dornas Filho, de 1930. Com pesquisas sobre a história do direito e das
relações entre Igreja e Estado no Brasil, ele resgata a temática estudada por Cândido Mendes
de Almeida, porém, pelo viés secular, inserindo a Questão Religiosa num processo de
acirramento entre as relações entre Igreja e Estado em Portugal e no Brasil. Outra obra
importantíssima é a de David Gueiros Vieira, O Protestantismo a Maçonaria e a Questão
Religiosa no Brasil (1980). Trabalho que utiliza muitas e diversificadas fontes e apresenta
uma interpretação feita a partir dos protestantes e suas alianças com a maçonaria e os jornais
liberais, ela traz novas documentações e amplia o campo de discussões, colocando na análise

117
as várias linhas de pensamentos envolvidas: galicanismo, jansenismo, ultramontanismo,
protestantismo, liberalismo, positivismo entre outros.

Na segunda década do século XX, o episcopado passou a ser objeto de pesquisa,


principalmente em biografias apologéticas ou laudatórias. A maioria delas são trabalhos
extremamente empíricos, trazendo ao público uma quantidade impressionante de
documentação eclesiástica. Nessa linha, os bispos ultramontanos foram os principais
biografados. Além das obras já citadas sobre os bispos envolvidos na Questão Religiosa,
podemos citar a obra de Manuel Alvarenga, O episcopado brasileiro: subsídio para a história
da Igreja Católica (1915), onde ele faz um apanhado do episcopado nacional. Em 1920, D.
Silvério Gomes Pimenta publica Vida de D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo de Mariana, com
uma série de documentos sobre um dos iniciadores da reforma ultramontana. Em 1960,
Moreira de Souza publicou Dom Lino Deodato: Prelado do Nordeste. D. Vital é novamente
objeto de estudo por Félix Olívola em 1967: Um grande brasileiro, o servo de Deus D. fr.
Vital. Em 1970, Theodoro Huckelman publicou Dom Francisco Cardoso Aires, biografia do
bispo reformador que precedeu D. Vital. Em 1987 saem outras três biografias importantes:
D. Antônio Ferreira Viçoso, Bispo de Mariana de Mariano Calado; Dom Feliciano na Igreja
do Rio Grande do Sul de Zeno Hastenteufel; e D. Pedro Maria de Lacerda de D. Jerônimo de
Lemos.

Nos anos setenta e oitenta, Fernando Câmara publicou uma série de artigos sobre os bispos do
nordeste e do norte, na Revista do Instituto do Ceará. Alguns títulos foram: Para a história
eclesiástica do Ceará: os bispos de Fortaleza (1974); A diocese do Maranhão e seu
tricentenário (1977); Dom Vital e a Questão Religiosa (1978); Dom Luís Antônio dos Santos
– O apóstolo do Ceará, entre outros.

Recentemente, os bispos ultramontanos também estão sendo objetos de novos estudos, como,
por exemplo, na linha da história intelectual. Karla Martins, na sua tese de doutorado
defendida em 2005, intitulada Cristóforo e a Romanização do Inferno Verde: as propostas de
D. Macedo Costa para a civilização da Amazônia (1860-1890), aproveitando-se do acervo
literário deixado pelo bispo D. Macedo Costa, faz uma análise de sua produção intelectual,
relacionado-a com suas relações familiares, políticas e religiosas. Procura entender os
significados construídos sobre a Amazônia pela sociedade católica e situá-los no debate entre
liberais e ultramontanos. Outro trabalho recente que merece ser citado é a dissertação de

118
Joelma Santos da Silva, defendida em 2012 e intitulada: Por mercê de Deus: Igreja e Política
na trajetória de Dom Marcos Antônio de Sousa (1820-1842). Primeiro trabalho sobre D.
Marcos, busca analisar a biografia e a trajetória religiosa e política do bispo, procurando
compreender as mudanças na relação entre Igreja e Estado no processo de construção do
Império do Brasil nas suas duas primeiras décadas e a importância do clero na construção do
Estado monárquico.

As grandes transformações teóricas sobre a história da Igreja no Império, especificamente em


relação a reforma implementada pelos bispos ultramontanos, aconteceram a partir da década
de 1950, por meio dos trabalhos de três brasilianistas: Roger Bastide, George Boehrer e Ralfh
della Cava. Roger Bastide, em 1950, ressuscitou o termo romanização, com a intenção de
fazer uma análise sociológica da Igreja Católica no Brasil. Este conceito já havia sido usado
no século XIX, por Rui Barbosa, que traduziu, em 1875, o O Papa e o Concílio de Johann
Joseph Ignaz von Döllinger (1799-1890). Ele se serviu do termo romanização para legitimar o
regalismo liberal vigente no Império do Brasil.

O sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974) expõe sua idéia de romanização no artigo
Religion and the Church in Brasil (1951). A sua idéia era analisar o movimento de reforma de
modo geral e não mais se centrando em um ponto específico, como se fazia até aquele
momento, ou seja: padroado, Questão Religiosa, biografias de bispos. Tentando compreender
a institucionalização da Igreja Católica no Brasil, Roger Bastide usa a expressão “igreja
romanizada”, que seria a afirmação da autoridade de uma igreja institucional e hierárquica
estendendo-se sobre todas as variações populares do catolicismo, para controlar a doutrina, a
fé, as instituições e a educação do clero e do laicato. Esse processo levaria a uma dependência
cada vez maior, por parte da Igreja brasileira, de padres estrangeiros e principalmente das
Congregações e Ordens missionárias, para realizar “a transição do catolicismo colonial ao
catolicismo universalista, com absoluta rigidez doutrinária e moral”. Segundo ele, “Ao se
tornar romanizada, a Igreja (brasileira) desnacionalizou-se”,11 porém, conseqüentemente,
“universalizou-se”.

Esse processo originou-se com o movimento ultramontano do século XIX, que iniciou a
centralização da Igreja Católica em torno do pontífice, o reaparelhamento da sua burocracia
administrativa e a clara definição da sua doutrina e disciplina. O objetivo era eliminar

11
BASTIDE, 1951, p. 343.
119
interpretações heterodoxas que nasciam das ingerências estatais e políticas, definindo, assim,
os traços de sua identidade perante o mundo moderno. Traços estes que deveriam ser comuns
em qualquer lugar do mundo, ou seja, universal. Na busca destes objetivos, o episcopado
ultramontano brasileiro agiu independentemente e mesmo contra os interesses políticos locais,
que se baseavam no regalismo de tradição lusitana. 12

George Boehrer também vai trabalhar com o movimento reformador de cunho ultramontano
no seu ensaio: A Igreja no Segundo Reinado, publicação póstuma no livro de Henry H. Keith,
Conflito e continuidade na sociedade brasileira, publicado nos Estados Unidos em 1969, e no
Brasil em 1970. Boehrer não utiliza o conceito de romanização e percorre um caminho
diferente daquele traçado por Roger Bastide.

Analisando conjuntamente os aspectos internacionais e nacionais, Boehrer vai traçar o


desenvolvimento do padroado, do regalismo e do ultramontanismo, para depois se centrar no
desenvolvimento interno da reforma no Brasil. Apresenta tanto as questões políticas quanto
eclesiásticas que levaram o Estado e o episcopado a iniciarem um movimento de reforma da
Igreja brasileira, numa tentativa de disciplinar o clero. Nesse processo, a instituição de
seminários para a formação e treinamento dos padres e a ampliação da autoridade episcopal
foram fundamentais. O ensaio de Boehrer inicialmente não terá a mesma influência que o
artigo de Bastide, sendo que algumas de suas ideias serão regatadas somente nos últimos
anos, principalmente por Guilherme Pereira das Neves. 13

No entanto, um aspecto deve ser ressaltado, Boehrer dá ênfase à continuidade da política


eclesiástica imperial, ou seja, o regalismo e o padroado, em relação ao século XVIII,
principalmente em relação às reformas pombalinas. Segundo ele: “enquanto o governo
brasileiro prosseguia na tradição setecentista do regalismo, a Igreja no Brasil, representada
pela hierarquia e pelo clero mais novo, abraçava o ultramontanismo de Pio IX e do Primeiro
Concílio do Vaticano”. E reafirma: “Religiosa e intelectualmente, o Brasil do século XIX foi
um país pombalino”. 14

O texto de Roger Bastide não foi traduzido e seu efeito no Brasil ficou limitado. A
publicação em português, em 1876, da obra Milagre do Juazeiro do historiador estadunidense

12
DELLA CAVA, Ralfh. Milagre em Juazeiro. 1976, p. 43, citando BASTIDE, Roger. “Religion and the
Church in Brazil”. 1951, p. 334/355
13
NEVES, 2009.
14
BOEHRER, 1970, p. 135.
120
Ralph Della Cava que divulgou as ideias centrais do texto do referido autor. A partir dos
aportes de Roger Bastide, Della Cava apresentou e desenvolveu o conceito de romanização.
No seu célebre livro Milagre do Joazeiro, reforça e amplia o sentido acenado por Roger
Bastide. Para ele, D. Luís Antônio dos Santos (1817-1891), primeiro bispo do Ceará, foi a
encarnação dos ideais da romanização. Segundo o autor, o objetivo era: “Restaurar o prestígio
da Igreja e a ortodoxia de sua fé e remodelar o clero, tornando-o exemplar e virtuoso, de
modo que as práticas e crenças religiosas do Brasil pudessem ficar de acordo com a fé
católica, apostólica e romana de que a Europa se fazia então estandarte”.15

Como observa muito bem Luciano Dutra Neto:

Aqui já se pode notar que o autor deixa de destacar a identidade e


universalidade da Igreja como primeiro objetivo da “romanização” [grifo
do original] para enfatizar a restauração do prestígio da Igreja e a adequação
das práticas e crenças religiosas com a fé católica. Evidencia-se com isto,
que o autor prepara-se para colocar o movimento reformista como algo que
há de se opor ao “milagre em Joazeiro”, no qual privilegiará o
devocionismo, as crenças populares e, até mesmo a indisciplina
hierárquica.16

Della Cava, ao dar menor atenção às relações entre identidade e universalidade do


catolicismo, ressaltou os mecanismo utilizados para adequar as práticas e crenças religiosas
locais à ortodoxia católica, enfatizando os aspectos disciplinares do clero, como, por exemplo,
o combate ao seu envolvimento em política partidária, com os potentados locais, com o
comércio e o concubinato. Na sua análise, Della Cava coloca o movimento de reforma
ultramontana como a europeização da cultura religiosa brasileira, que buscava eliminar os
traços nacionais e populares do catolicismo, fazendo parte destes, também, a indisciplina
clerical. Nessa linha de oposição entre o catolicismo romanizado e o catolicismo nacional,
popular ou tradicional, seguirá o desenvolvimento do conceito de romanização.

Enquanto os brasilianistas desenvolviam suas teorias, no Brasil o cenário intelectual que


refletia sobre a Igreja no Brasil também se movimentava, e acabou absorvendo o conceito de
romanização. A sua difusão aconteceu a partir da década de 1960, quando a Teologia da

15
DELLA CAVA, 1976, p. 33.
16
DUTRA NETO, 2006, p. 31.
121
Libertação estava em tensão com a Santa Sé e o Brasil entrava no regime de exceção com a
Ditadura Militar. Um dos primeiros a reutilizar o conceito em questão foi o sacerdote belga
radicado no Brasil, e teólogo da libertação, José Comblin, no seu texto Situação histórica do
catolicismo no Brasil, de 1966.

Este autor defende que existiu uma progressiva europeização das elites brasileiras a partir de
1822 até meados do século XX, e que um processo similar aconteceu com o Catolicismo, ou
seja, uma europeização cultural e religiosa. Na sua abordagem, ele distingue um Catolicismo
urbano, afinado com a europeização da religião e da cultura laica, e um catolicismo rural, no
qual resiste o “Catolicismo tradicional”. 17

A partir daí, o conceito de romanização, de uma característica da reforma eclesial, foi-se


transformando praticamente em sinônimo do mesmo processo, ou até mesmo, em sinônimo de
ultramontanismo. Isso aconteceu por meio dos filiados ao CEHILA (Comissão de Estudiosos
de História da Igreja na América Latina); dos membros do CERIS (Centro de Estatística
Religiosa e Investigação Social); e em publicações da REB (Revista Eclesiástica Brasileira).
Partindo da análise sociológica de Roger Bastide, continuada por Ralph Della Cava e José
Comblin, autores como Riolando Azzi, José Oscar Beozzo, Pedro A. Ribeiro de Oliveira,
Hugo Fragoso entre outros, implementaram a “hegemonia” do conceito de romanização.

Riolando Azzi publicou na REB, em 1974, um artigo intitulado O movimento brasileiro de


reforma católica durante o século XIX, no qual aponta que uma das características da reforma
realizada pelos bispos ultramontanos era a de ser um movimento “romanista”. 18 No entanto,
na grande maioria das vezes, Riolando Azzi se refere a este movimento utilizando o conceito
de reforma. Isso porque ele tinha plena consciência que durante quase toda a história religiosa
do Brasil, desde a implantação do primeiro bispado em 1551, até o primeiro concílio plenário
brasileiro em 1939, o episcopado teve como ação pastoral prioritária a implantação de
importantes aspectos da reforma tridentina. Os bispos reformadores, colocando ênfase na
organização hierárquica, burocrática e na praxe sacramental, levaram a reforma avante nas
diversas classes de membros que compunham a estrutura da Igreja: clero, ordens religiosas e
leigos.19

17
COMBILN, 1966, p. 595.
18
AZZI, 1974, p. 649.
19
AZZI, 1977ª, pp. 111-112.
122
A partir de 1977, Azzi passou a dar maior peso nos seus estudos ao contraste entre
“catolicismo popular”20 e “autoridade eclesiástica”, 21 influenciado pelas pesquisas de outros
membros do CEHILA. Azzi, como Boherer, chama a atenção que tanto o Estado, quanto a
Igreja buscavam essa reforma, porém, Azzi tenta ressaltar a ideia do “Altar Unido ao Trono”
num “projeto conservador”, que é, inclusive, título de um livro seu (1992). Outros trabalhos
de Riolando Azzi merecessem citação, tais como: Dom Manuel Joaquim da Silveira, primaz
da Bahia, a luta pela liberdade da Igreja (1974); Os Capuchinhos e o movimento brasileiro
de reforma Católica do Século XIX (1975); O episcopado do Brasil frente ao catolicismo
popular (1977a); Catolicismo popular e autoridade eclesiástica na evolução histórica do
Brasil (1977b); e “O catolicismo popular no Brasil” (1978).

O conceito de romanização foi, a partir daí, se transformando de uma característica da


reforma eclesial ultramontana a, praticamente, sinônimo do mesmo processo. Isso aconteceu
por meio dos filiados a CEHILA, que se utilizaram desse conceito para desenvolver toda uma
produção historiográfica da história da Igreja na América Latina “a partir dos pobres”, ou
“vista de baixo”. José Oscar Beozzo, em seu artigo Irmandades, Santuários, Capelinhas de
beira de estrada, foi quem decretou o domínio do conceito romanização quando, em 1977,
afirmou que este conceito já tinha se tornado “clássico” no estudo do processo de reforma da
Igreja iniciado no século XIX.22

Este autor avança ainda mais na conceituação de romanização levando-o “ao quase paroxismo
de uma luta dentro do Catolicismo”, entre o “abrasileiramento do catolicismo pela sua
convivência com a senzala e o índio” e o catolicismo mais “puro”, mais “branco”, mais
ortodoxo, mais próximo de Roma. Segundo ele, antes existia um equilíbrio entre os dois, que
passou a ser rompido no final do Período Imperial, quando o catolicismo ortodoxo passou a
ser considerado legítimo e o “catolicismo popular” ilegítimo, supersticioso e um mal a ser
extirpado.23

20
A noção de “catolicismo popular”, apesar de ter um desenvolvimento próprio, constrói-se quase paralelamente
ao conceito de romanização, apresentado às vezes como o seu oposto, ou o aposto de catolicismo ortodoxo. A ele
são ligados traços do catolicismo pré-tridentino, de magia, de superstição de sincretismo, de crendices,
humanização do divino, entre outras características. Para tratar dessa noção e de sua historiografia aqui,
precisaríamos de mais um capítulo no mínimo, por isso, não será tratado. Para um aprofundamento sobre essa
noção: SOUZA, 2009, ela tem um capítulo inteiro sobre o tema nesse livro; e de AZZI, 1977a, pp. 125-149;
1977b; 1978; 1992.
21
AZZI, 1977b.
22
BEOZZO, 1977, p. 745.
23
DUTRA NETO, 2006, p. 31.
123
Pedro Ribeiro de Oliveira no seu livro Religião e dominação de classe: Gênese estrutura e
função do catolicismo romanizado no Brasil, publicado em 1985, procurou desenvolver uma
hipótese sociológica que explicasse a romanização como um processo condicionado pelas
transformações econômicas, políticas e sociais. Na sua análise, ele afirma que estes bispos
pautavam sua atividade pastoral na adaptação do catolicismo brasileiro ao “modelo romano”,
“travando acirrado combate contra o catolicismo popular tradicional”, com marcante
influência da Santa Sé, que enviava “agentes” religiosos (entre elas as congregações
religiosas) para o Brasil e dava “o modelo religioso” que deveria ser implantado. 24 Pedro
Ribeiro de Oliveira passou a colocar a romanização como um movimento que pretendeu
sufocar o catolicismo popular.25

O conceito de romanização apareceu já formulado no tomo II/2 da clássica obra História da


Igreja no Brasil, publicado em 1980, trabalho fundamental da perspectiva da história da
Igreja a partir do povo. Este conceito ainda influencia a produção historiográfica sobre a
Igreja no Brasil, sendo hegemônico, mas não isento de críticas.

Em 1971, foi publicado o volume Declínio e Queda do Império, da clássica obra coordenada
por Sérgio Buarque de Holanda, História Geral da civilização brasileira. No início deste
texto vimos como Holanda se lamentava da falta de estudos sobre a Igreja no Brasil. No
entanto, nos volumes dessa obra dedicados ao Império pouco se falou sobre a Igreja e a
religiosidade. Neste volume encontramos o maior número de páginas voltadas ao tema,
divididos em dois capítulos escritos por Roque Spencer M. de Barros, Vida Religiosa e A
questão religiosa. No final os dois capítulos tratam do mesmo tema clássico da Igreja no
Império, ou seja, a questão religiosa. O primeiro é uma espécie de introdução, onde ele se
justifica dizendo que a documentação e os fatos sobre o tema já foram fartamente
apresentados e se propõe a fazer uma análise isenta de posicionamento de parte, buscando
apresentar ambos os pontos de vista, regalista e ultramontano, pois, segundo ele, cada uma na
sua lógica tinha razão. No entanto, seu êxito é parcial. A novidade do seu texto é a inserção
do ultramontanismo internacional no debate sobre o tema, mas em relação à situação
específica do Brasil, os dois capítulos não trazem grandes novidades e não dão a devida
atenção às ações da maçonaria e do ministério Rio Branco na Questão Religiosa.

24
OLIVEIRA, 1985, p. 12.
25
OLIVEIRA, 1985, pp. 326-327.
124
Em 1987, Augustín Wernet avançou nas questões conceituais no seu livro A Igreja Paulista
no século XIX. A reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (1851-1861). A Wernet coube o
mérito de trazer a discussão sobre a história da Igreja Católica no Brasil para dentro da
Universidade, já que até o momento ela vinha sendo realizada praticamente a margem das
discussões acadêmicas. Wernet optou por uma abordagem que entendesse a história
eclesiástica como a história de sucessivas “autocompreensões”, noção da “nova história da
Igreja” de Poulat, Alberigo, Aubert e outros. A noção de autocompreensão da Igreja tornou-se
o princípio organizador das várias faces do catolicismo no Brasil, desde o tradicional até o
ultramontano ou renovado.

A noção de autocompreensão foi inspirada nos “tipos ideais” de Weber, e servia como um
instrumento teórico para a análise da realidade concreta. Segundo o autor, as
autocompreensões “são ‘tipos ideais’, ou seja, ‘construções mentais’ ou ‘imagens mentais
cuja elaboração se faz necessária, exagerando elementos específicos da realidade,
selecionando características dela mesma, ligando-as entre si num quadro mental relativamente
homogêneo”.26

Segundo Antônio Lindvaldo, assim como Weber:

[...] Wernet se mostrava, também, preocupado com as ações racionais


eclesiásticas no estudo da história da Igreja enquanto ciência. Essa
preocupação remete à crítica que ele faz aos trabalhos sem a devida atenção
ao aspecto teórico-metodológico e à análise crítica das fontes. Em Linhas de
Pesquisa em História Eclesiástica (1987), por exemplo, expôs a existência
de estudos no campo da história da Igreja onde há o abandono, com certa
facilidade, da “história-ciência”, em proveito de um “militantismo”
organizado, de uma “causa” ou de uma ideologia. “Em alguma dessas
leituras” – acrescenta Wernet: “percebe-se, sobretudo, a prática de escrever
a história eclesiástica a partir de novas abordagens teóricas, às vezes pouco
consistentes, mas sem a necessária fundamentação documental ou sem uma
leitura crítica dos documentos” (Sousa, 2008: 110-111).27

26
WERNET, 1987, p. 12.
27
WERNET, 1897, p. 52.
125
Percebe-se claramente uma crítica às análises históricas não “científicas”, ou seja, não de
acordo com as normas e rigor disciplinar da História, que se desenvolvia nos meios
acadêmicos. Mas a quem eram dirigidas? Provavelmente às produções ligadas a instituições e
sociedades católicas, onde se desenvolvia o conceito de romanização. No entanto, esta crítica
não o impede de adotar esse conceito e buscar a autocompreensão da Igreja dentro dessa
ótica. 28

Wernet orientou vários trabalhos sobre a implantação do catolicismo ultramontano em


diferentes estados brasileiros ao longo das décadas em que atuou na Universidade de São
Paulo, contribuindo decisivamente para a consolidação acadêmica da história eclesiástica.
Apenas para citar alguns dos trabalhos mais importantes: Maurílio José de Oliveira Camello,
D. Antônio Ferreira Viçoso e a reforma do clero em Minas Gerais no século XIX (1986);
Euclides Marchi, A Igreja e a questão social. O discurso e a práxis do catolicismo no Brasil
(1850-1916) (1989); SERPA, Élio Cantalício Serpa, Igreja e poder em Santa Catarina
(1997); Maria Aparecida Junqueira Vieira Gaeta, Os percursos do ultramontanismo me São
Paulo no episcopado de D. Lino Deodato de Carvalho (1873-1894) (1991); Marcus Levy
Albino Bencosta, Igreja e Poder em São Paulo: D. João Batista Corrêa Nery e a
Romanização do Catolicismo Brasileiro (1909-1920) (1999).

É sob a influência da noção de autocompreensão que Maurílio César de Lima defende que
romanização é “uma expressão não propriamente feliz, a substituir-se, talvez, por auto-
conscientização”, que para ele nada mais é que um “sutil movimento verificado na Igreja do
Brasil, liderado por figuras destacadas do clero, que se afastava das normas e mentalidade da
Igreja lusitana (ainda mantidas) e assumia uma postura mais aproximativa de Roma”. 29

A partir dos finais dos anos 80 começaram a ser produzidas novas abordagens sobre a história
da Igreja, a partir do uso da micro-análise de caráter antropológico. Os estudos de caso e a
preocupação com os símbolos, paulatinamente foram ganhando densidade em contato com as
chamadas Nova História Cultural e Nova História Política. Os temas da feitiçaria, da
hibridização cultural, das negociações simbólicas ganhavam lugar na escrita da história da
Igreja Católica no Brasil. O eixo das relações entre Estado e Igreja perdeu espaço e deu vazão

28
Os orientados de Augustin Wernet utilizam o conceito de romanização em suas teses e dissertações. O próprio
Wernet também o adota como no caso artigo Crise e definhamento das tradicionais ordens monásticas
brasileiras durante o século XIX, publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiro em 1997.
29
LIMA, 2001, p. 123.

126
a outras possibilidades interpretativas. No entanto, essas novas tendências têm se concentrado
principalmente no Período Colonial, bastando citar como exemplos autores como Laura de
Mello e Souza e Ronaldo Vainfas, e mais recentemente, no Período Republicano, deixando de
fora o Período Imperial.

Nos anos noventa, a tônica das principais publicações sobre a Igreja no Império foram sociais
e políticas. Temos em 1997 a publicação da importantíssima obra de Guilherme Pereira das
Neves, E receberá mercê: a Mesa da Consciência e Ordens e o clero secular no Brasil 1808-
1828. A grande inovação será a utilização da documentação produzida por essa instituição de
Antigo Regime para realizar uma história social do clero no Brasil. Trabalhos de história
social do clero durante o Período Imperial ainda são muito raros, faltando trabalhos de fôlego
que utilizem métodos quantitativos e seriais para estudar este seguimento da sociedade
brasileira30. Neves apresenta a história da Mesa de Consciência e Ordens, seus mecanismos de
funcionamento, e o clero que passou pela sua documentação, até o seu processo de extinção.
Não deixando de estar atento às questões políticas pela qual passava o Brasil naqueles anos.
Por estudar a Igreja pela ótica do Antigo Regime nos trópicos, se preocupa muito mais em
apresentar as continuidades, mas sem deixar de chamar atenção para algumas importantes
descontinuidades, como por exemplo, a instituição de um padroado civil, instaurado pela
Constituição de 1824, a negativa do placet a bula pontifícia Praeclara Portugalliae, que
concedia o direito de padroado ao monarca do Brasil, e a extinção da Mesa de Consciência e
Ordens em 1828.31

Ana Marta Rodrigues Bastos, seguindo os passos de José Murilo de Carvalho, que também
tratou da classe clerical ao analisar as elites nos seus clássicos livros, A construção da Ordem
e Teatro de Sombras, a autora faz um levantamento específico sobre o clero e sua
representatividade na Câmara dos Deputados e no Senado imperial. Em seu trabalho,
Católicos e Cidadãos: a Igreja e a Legislação Eleitoral no Império, Ana Marta faz uma
análise minuciosa das legislações eleitorais com intuito de entender a variação da participação
do clero na política eletiva, demonstrando como o governo imperial modificou as leis
eleitorais buscando diminuir a influência clerical, secularizar a burocracia envolvida no
processo eleitoral e também diminuir a participação do clero em revoltas sociais e políticas.

30
Não posso deixar de citar aqui a dissertação de Wheriston Silva Neris. Um excelente trabalho de história social
do clero no Maranhão da segunda metade do século XIX. NERIS, 2009.
31
NEVES, 1997, pp.120 -132.
127
Em artigo publicado no final de 2001, o historiador Roberto Jerri Marin propôs, em seu artigo
História e historiografia da romanização: reflexões provisórias, uma sistematização da
história e da historiografia da romanização. Marin discorre sobre a existência de duas amplas
vertentes historiográficas da romanização: de um lado, aqueles que a concebem de um modo
linear e homogêneo e, de outro, aqueles que a entendem como um processo descontínuo e
heterogêneo, principalmente influenciados pela História Cultural. O primeiro prevaleceu nos
primeiros anos e o segundo vem ganhando força nas últimas décadas. Nesta última vertente
podemos citar o trabalho de Antônio Lindvaldo Sousa, O eclipse de um farol, mas que, no
entanto, trabalha o período republicano. 32

Mesmo assim, seu trabalho traz importantes reflexões teóricas que também servem para
pensar o Período Imperial. Num trabalho que circula entre história eclesiástica, micro-história,
história cultura e história política, o autor procura analisar o processo de romanização
partindo de conflitos locais entre um pároco e parte dos cidadãos da pequena cidade sergipana
de Itabaiana. A partir daí, analisa a hierarquia eclesiástica e as relações entre Igreja e Estado
na segunda década do século XX.

Apesar de fazer várias críticas ao conceito de romanização, por dar uma ideia muito
homogênea do processo de reforma em ato, ele ainda o adota, mesmo expressando, por vezes,
as dificuldades encontradas em adequá-lo às situações históricas que a documentação
pesquisada lhe apresentava. Pesquisando documentos presentes em vários arquivos, desde o
Arquivo Secreto Vaticano a arquivos locais e particulares, ele exprime as seguintes
dificuldades em relação não só ao conceito de romanização, mas também à noção de
autocompreensão: “Todavia, os documentos nos arquivos do vaticano não revelaram uma
administração do primeiro bispo sergipano como um tipo ideal de reformador do catolicismo
em Sergipe, em consonância com o projeto romanizador, empreendido desde o século XIX,
no Brasil” ou ainda, “Nos cinco primeiros anos da administração de D. José, ocorreram vários
confrontos e conflitos, ilustrando a exata dimensão da difícil uniformização da compreensão

32
SOUSA, 2008. Quero aproveitar esta ocasião para retratar um equívoco num artigo que publiquei em 2009 na
revista Temporalidades, intitulado: Uma questão de revisão de conceitos: Romanização – Ultramontanismo –
Reforma, onde realizo uma história do conceito de romanização, refletindo também sobre outros conceitos que
considero menos limitadores que este. Naquela ocasião estava nos últimos anos do meu doutorado no exterior,
realizando leituras e sem acesso a muitas obras. Tive contato, então, somente com um pequeno texto de Antônio
Lindvaldo Sousa e a poucos trabalhos de Augustin Wernet. Nesta ocasião fiz algumas críticas à como Antônio
Lindvaldo utilizava o conceito de romanização, no entanto, ao ter contanto com o restante de sua obra sobre o
tema, percebi que havia cometido alguns equívocos que serão corrigidos nesse texto.
128
do processo de romanização da Igreja Católica em Sergipe”. 33 Apesar desta sua reflexão ser
sobre Sergipe, poderá ser facilmente estendida para outras localidades do Brasil.

Nos últimos anos, uma crítica mais forte a este conceito vem sendo elaborada, principalmente
na sua utilização para o Período Imperial, quando o padroado e o regalismo impediam uma
livre comunicação entre a Santa Sé e a Igreja no Brasil. Podemos perceber essa tendência na
obra de Dilermando Ramos Vieira, O processo de Reforma e reorganização da Igreja no
Brasil (1844-1926), publicada em 2007; na tese de Luciano Dutra Neto, Das terras baixas da
Holanda às montanhas de Minas, defendida pela Universidade Federal de Juiz de Fora em
2006, e na minha tese, Os Ultramontanos no Brasil e o Regalismo do Segundo Império,
defendida na Pontifícia Universidade Gregoriana em 2010.

Dilermando Ramos Vieira, suspeitoso do conceito de romanização, foi resgatar as suas


origens no Brasil, partindo do início da utilização do referido termo a partir da obra o Papa e
o Concílio traduzido por Rui Babosa. Abandonando a utilização do conceito de romanização e
o substituindo pelo conceito de reforma, o autor apresenta esse processo a partir de meados do
século XIX até 1926, trazendo a público uma série de novos documentos presentes nos
Arquivos Vaticanos e romanos.34

Luciano Dutra, atento aos aspectos culturais, percebeu a estreiteza do conceito de


romanização no seu estudo sobre os redentoristas em Minas Gerais. Ele não os percebeu
como “enviados romanos” com ordens pré-estabelecidas, mas missionários que, tendo como
ponto de referência seu local de origem, criaram soluções derivadas do contato com o
ambiente social, cultural, religioso e político que encontraram no Brasil.35

Em 2007, Sérgio da Mata traz novos elementos para a discussão, criticando os conceitos
tradicionais utilizados para definir o processo de reforma ultramontano no século XIX. No seu
texto: Entre Syllabus e Kulturkampf: revisitando o “reformismo” católico na Minas Gerais
do Segundo Reinado, Da Mata faz uma crítica à historiografia das últimas décadas sobre o
assunto, contestando tanto a utilização do conceito de romanização, quanto o de reforma. Ele
tece, então, uma crítica a atuação da Igreja no século XIX definindo-a como fundamentalista.
Segundo esse autor: “De fato é no mínimo um eufemismo infeliz designar, como continua

33
SOUSA, 2008, p. 114.
34
VIEIRA, 2007.
35
DUTRA, 2006, pp. 29, 39, 258.

129
ainda a ser comum, o fundamentalismo ultramontano como ‘reformismo’. Faríamos melhor,
na ausência de melhor expressão, em defini-lo como uma espécie de xiitismo papista”. 36 Não
considero o conceito de fundamentalismo adequado para definir a reforma ultramontana e,
sinceramente, considero este conceito menos adequado do que o de romanização. Discordo
ainda mais da definição de “xitismo papista”. Talvez teria sido mais interessante definir o
referido processo como integrismo.37

Apesar de todas as críticas e limitações apresentadas ao conceito de romanização nos últimos


anos, convidando os pesquisadores a refletirem sobre o processo de reforma da Igreja católica
que se inicia no século XIX e continua pelas primeiras décadas do XX 38. Até mesmo
questionando se o referido processo deveria ser visto de forma unitária antes e depois do fim
do padroado em 1890. O conceito de romanização ainda se mantém hegemônico e, em muitos
trabalhos, aparece em sua versão tradicional. Nos seus primórdios, nos anos 70, o referido
conceito era um aspecto do ultramontanismo, no entanto, foi se tornando praticamente o seu
sinônimo, mesmo que sejam dois conceitos diferentes e com histórias diferentes 39. Esta
hegemonia do conceito de romanização pode ser constatada no Dicionário do Brasil Imperial,
organizado por Ronaldo Vainfas e publicado em 2009. Dos poucos verbetes referentes
história da Igreja, encontra-se um para romanização, mas não consta para ultramontanismo e
nem mesmo para padroado, regalismo, liberalismo eclesiástico, entre outros. Neste verbete,
romanização é apresentada como sinônimo de ultramontanismo. 40

Em 2009, publiquei, na revista Temporalidades, um artigo intitulado Uma questão de revisão


de conceitos: Romanização – Ultramontanismo – Reforma, onde procuro demonstrar a
diferente história, e conseqüentemente diferentes significados, dos referidos conceitos. Neste
texto, explico por que preferi adotar a noção de reforma ultramontana para o período por mim
tratado na minha tese de doutorado, ou seja, o Segundo Reinado, por achar romanização um
conceito limitador da complexidade da realidade história daquele período, além de carregado

36
MATA, 2007, p. 226.
37
Sobre o significado desses conceitos e seus desenvolvimentos históricos convido os leitores a consultarem o
artigo de Antônio Flávio Pierucci (1992) e ORO, 1996.
38
Um outro importante trabalho que trata do tema é volumosa tese de doutorado em três volumes de GOMES,
1991.
39
Consultar o artigo: SANTIROCCHI, Ítalo D. “Uma questão de revisão de conceitos: Romanização –
Ultramontanismo – Reforma”. Em: Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-graduação em
História da UFMG, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 24-33, 2010.
40
VAINFAS, 2008, p. 660.
130
de significados militantes, tanto para o século XIX, quando foi cunhado, quanto para o século
XX, quando foi reutilizado.41

Na minha tese, Os Ultramontanos no Brasil e o Regalismo do Segundo Império, defendida em


2010, partindo do estudo do processo de institucionalização do Estado e da Igreja no Brasil,
me concentro nas relações dos bispos ultramontanos com o governo brasileiro e com a Santa
Sé. No decorrer desta pesquisa percebi que não existiam “ordens” pré-estabelecidas vindas de
Roma ou “agentes da romanização” enviados pela Santa Sé, mas uma constante troca de
informações e discussões entre bispos, Governo e a Cúria sobre cada um dos aspectos da
religiosidade no Brasil, exatamente com intuito de tomar decisões que fossem adequadas às
exigências e especificidades locais de cada diocese brasileira e, também, do Brasil como um
todo. Este processo de mão dupla foi descontínuo, permeado de resistências, divisões, trocas
de direção e mudanças de postura por parte dos envolvidos, até mesmo por parte de Roma 42.

Infelizmente, muitos trabalhos e linhas de pesquisas sobre a História da Igreja no Brasil


Império ficaram de fora destas reflexões como, por exemplo, os trabalhos sobre história das
ideias católicas no Brasil, os trabalhos sobre as ordens religiosas, trabalhos específicos para
estados ou regiões43 sobre o liberalismo eclesiástico de Feijó e seu grupo e os trabalhos sobre
a participação política do clero na formação do estado brasileiro nas décadas de 1820 e 1830,
que vem crescendo em pesquisas nos últimos anos. Sobre este último tema, alguns trabalhos
já foram citados no texto, mas não posso deixar de mencionar uma recente tese de doutorado
sobre o assunto: Do Altar a Tribuna. Os padres políticos na formação do Estado Nacional
brasileiro (1823 – 1841), de Françoise Jean de Oliveira Souza, defendida em 2010.

Considerações finais

Não era minha pretensão apresentar todos os trabalhos e nem mesmo perpassar todas as
discussões teóricas sobre a Igreja Católica no Brasil Imperial, mas, sim, incentivar a discussão
e, dentro das possibilidades de um trabalho dessa natureza, também fornecer uma exposição

41
SANTIROCCHI, 2009.
42
Consultar também o artigo: SANTIROCCHI, Ítalo D. “Uma questão de revisão de conceitos: Romanização –
Ultramontanismo – Reforma”. Em: Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-graduação em
História da UFMG, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 24-33, 2010.
43
Não tem como não mencionar dois clássicos sobre a Igreja em Minas Gerais:TRINDADE,1928; TRINDADE.
1953; TRINDADE, 1953; e CARRATO, 1963.
131
historiográfica que permita aos novos pesquisadores sobre essa temática tomar conhecimento
dos debates em curso.

No decorrer desta breve e limitada exposição ficou patente que nas últimas décadas têm
crescido o interesse e as pesquisas sobre a Igreja católica no Brasil, principalmente entre os
historiadores ditos profissionais e nos programas de pós-graduação das universidades
brasileiras. Esboçou-se no decorrer do texto uma possível divisão, proposta por alguns
acadêmicos, entre as pesquisas e produções universitárias e aquelas realizadas em outras
instituições, como, por exemplo, as associações religiosas ou maçônicas. Eu não acredito que
seja esse o caminho, pois a História Eclesiástica, ou História da Igreja Católica ou ainda a
mais ampla História das Religiões, não pode negar o seu caráter interdisciplinar e a
necessidade de diálogo com outras áreas de conhecimento, dentro e fora do universo
acadêmico.

Fazer uma exclusão de obras poderia deixar fora das discussões importantíssimas produções e
conceituações, o que levaria ao empobrecimento dos debates. Os trabalhos realizados por
militantes católicos de diferentes matizes, por liberais ou por maçons, mesmo se muitas vezes
mais preocupados em defender suas posições do que em realizar um trabalho historiográfico,
foram os responsáveis por trazer à tona e conservar uma grande quantidade de documentação,
de manter viva as discussões e as pesquisas num período no qual a Disciplina da História no
Brasil marginalizava as pesquisas sobre História das Religiões. Quando os investimentos
nessa área eram quase nulos, quem incentivou as pesquisas sobre a Igreja católica no Brasil
foram associações como, por exemplo, o CEHILA.

Apesar de ser um crítico do conceito de romanização, não nego a sua importância histórica e
sua enorme contribuição para os estudos sobre a Igreja Católica no Brasil. E aproveito a
ocasião para expressar o meu respeito e admiração por todos os pesquisadores que se
debruçaram sobre essa temática nos anos em que era marginalizada pelas pesquisas
acadêmicas.

Termino alertando sobre a necessidade de dar mais um importantíssimo passo para o


estabelecimento definitivo desse campo historiográfico: a realização de trabalhos sobre
historiografia e sobre teoria da história da Igreja católica no Brasil. Tal discussão é urgente e
todos nós, professores e jovens pesquisadores, devemos voltar a nossa atenção a esta área

132
ainda carente de pesquisas e debates. Espero que outros trabalhos surjam para cobrir as
lacunas deste, criticá-lo quando necessário e ampliar as discussões.

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140
Maquiavel, pluralismo, religião

Edgard Leite1

Nicolau Maquiavel (1469-1527) produziu sua obra num período de turbulência política no
norte da Itália e de crise profunda na Europa Ocidental. Ele o fez numa Itália em guerra,
situada entre os Descobrimentos e as Reformas, na ante-sala das guerras religiosas europeias,
e diante de um horizonte que, hoje sabemos, apontava para as revoluções do século XVIII e a
instalação de uma sociedade global.

Maquiavel traduziu a percepção de realidades políticas, existenciais e filosóficas que não


eram apenas suas, mas que também emergiam, embrionárias, nos sentimentos e na razão das
pessoas com as quais convivia, ou aprendera a pensar. Estava inserido na tradição do
pensamento humanista italiano, muito voltado para o problema da história, ou para o da
natureza e sentido da experiência humana no tempo. Como anotou Eric Cochrane, Maquiavel
foi, como outros de sua época, dependente de previas investigações de cunho histórico,
notadamente as de Leonardo Bruni (1370-1444), cujo maior objetivo era obter dos estudos
históricos verdades capazes de melhor situar os seres humanos diante de suas instituições e de
seu tempo.

Bruni foi o primeiro a identificar, por exemplo, a existência de uma descontinuidade


administrativa e histórica entre o Império Romano do Ocidente e o Império Carolíngio - e
depois o Sacro Império-, realidade que não era, então, evidente. 2 Carlos Magno foi coroado
Imperador, em 800, e reclamou para si essa relação com o antigo Império Romano, o
translatio imperii, que foi estabelecida como realidade de identidade política por gerações
posteriores.3 A perspectiva de Bruni introduziu um material importante para realizar, por
exemplo, a critica dessa legitimidade histórica, e na verdade mítica, do Sacro Império, então
existente, que derivava sua autoridade de uma imaginária ligação institucional que remetia ao

1
Membro Titular da Academia Brasileira de Filosofia, Coordenador do Programa de Estudos Indianos da UERJ,
Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro.
2
COCHRANE, 1981, p.28.
3
LEGOFF, 1988, pp.171-172.
141
antigo Império Romano do Ocidente. Tal relação pretendia-se análoga à de Bizâncio, ligada
por uma linha sucessória direta à Roma Imperial, mas certamente, como Bruni induzia a
pensar, não se tratavam de fenômenos da mesma dimensão.

Tal crítica, demolidora de certezas estabelecidas no campo da memória, ou no das ideias e das
crenças que gravitavam em torno das instituições, demonstrava a capacidade da concepção
histórica humanista em voltar-se contra as falsas perspectivas de destino de natureza religiosa,
introduzindo novas variáveis na vivência da realidade do mundo e da visão do passado e do
presente. No contexto mais amplo dessa discussão, Bruni apontou, portanto, a existência de
elementos teóricos inovadores, principalmente quando considerou que tais verdades históricas
eram, acima de tudo, úteis para que os seres humanos “pudessem perceber o que evitar e o
que deveriam buscar”.4

Tal processo exteriorizava perspectivas secularizadoras e autonomistas de grande significado


numa era de transformações e, no caso da Itália, especificamente, de confronto com o poder
da Igreja. A noção de que a história podia ser entendida, em seu estudo, como uma
experiência pedagógica e de implicações políticas era milenar, e tinha suas raízes na literatura
profética bíblica. Mas a assertiva de que as lições da história diziam respeito principal e
basicamente aos seres humanos, e não aos projetos divinos, ou ao destino, e era marcada por
rupturas e transformações, inaugurou uma nova fase do entendimento das ações humanas no
tempo e repercutiu no exercício da ação política, reforçando os alicerces das primeiras
percepções do sentido da autonomia. O problema maior era entender o que a história ensinava
precisamente e que tipo de lição dela poderia ser extraída. Esse era um dos temas de
Maquiavel.

II

Os humanistas, e notavelmente Maquiavel, não acreditavam nas teorias então existentes,


basicamente de natureza religiosa, para entender a relação entre o homem e o tempo - em
geral elas tendiam a desconsiderar o humano como agente e realçavam a participação
prioritária de Deus, seus valores e projetos absolutos.

4
Apud Cochrane, 24.
142
A certeza de que o tema precisava de uma nova abordagem, advinha, em grande parte, do
ponto de vista teórico, da neutralização que a história divina realizava do papel das intenções
e ações humanas, ou da sua criatividade e independência. Isso mantinha na escuridão qualquer
abordagem objetiva das razões dos homens e colocava como sentido do tempo a Redenção,
cuja verificação nunca estava na história em si, mas fora dela.

A possibilidade de que a história pudesse ter outra lógica que não essa, sagrada e pré-
determinada, era importante, naquele momento, não apenas porque servia a interesses
concretos dos opositores da Igreja, que além de controlar o espaço controlava o tempo, mas
também porque permitia realizar um primeiro entendimento secular das motivações humanas
em sociedade e sobre o alcance da sua potência. Maquiavel possuía, assim, a preocupação de
tentar entender as flutuações humanas ao longo das gerações e do tempo e extrair disso
alguma teoria capaz de propiciar, ou legitimar, uma atuação efetiva no presente.

Uma observação interessante para compreender suas bases teóricas mais íntimas foi feita por
James Atkinson, que alertou para a influência que o filósofo romano Lucrécio (99 a.C.- 55
a.C.) desempenhou na obra de Maquiavel.

É necessário recordar que o livro de Lucrécio, De Rerum Natura, tinha sido salvo do
desaparecimento pelo humanista Poggio Bracciolini (1380-1459), que, ao descobri-lo,
empenhou-se em sua cópia. E embora sua leitura e discussão fossem sujeitas, na época, a
inúmeras dificuldades, pelo conteúdo de suas proposições, algumas vezes consideradas
contrárias à religião, foi gerada uma literatura humanista influente ao seu redor, 5 Maquiavel,
pessoalmente, copiou todo o De Rerum Natura de uma edição manuscrita humanista. 6 Nela é
possível observar quais pontos da obra de Lucrécio lhe chamaram mais a atenção.

Maquiavel estudou Lucrécio no âmbito de uma tradição, e, assim apontam suas notas, deteu-
se particularmente na teoria atomista do filósofo. Lucrécio acreditava no espontâneo
movimento e na regular mútua colisão entre os átomos, que introduziriam, em sua opinião,
um elemento de imprevisibilidade na realidade: “em consequência dos frequentes encontros e
colisões que ocorrem por conta do movimento dos átomos”. 7 Tal fenômeno, aleatório,
tenderia a anular a dinâmica do destino.

5
PROSPERI, 2007, pp. 214-215.
6
ATKINSON, 2010, p. 38.
7
LUCRETIUS, 2001, p. 37.
143
Maquiavel acompanhou essa narrativa com especial atenção e, numa nota de próprio punho,
na margem do texto, refletiu sobre os efeitos dessa imprevisibilidade na natureza, sustentando
que dela era derivada a existência da “mente livre” (libera habere mentem). 8 Sugere-se aqui a
liberdade humana era fruto de uma dinâmica aleatória da natureza.

A possibilidade de um pensamento humano, essencialmente livre, e que surgia do aleatório,


independente de fontes e fins, dava um novo sentido à experiência individual, que passava a
ser, em consequência, compreendida como emergindo de um mundo de realidades concretas,
não atada a uma hierarquia de qualidades ou prisioneira de um sentido maior do mundo. O
“livre arbítrio” adquiria um novo significado e uma nova qualidade, pois encontrava-se em
isolamento diante de destinos. Não é demais dizer que estávamos aqui diante dos primeiros
sinais do conceito de autonomia moral.

Numa carta, hoje perdida, escrita ao astrólogo Bartolomeo Vespucci, Maquiavel parece ter
expressado a opinião de que “apesar do homem sábio não poder mudar o curso das estrelas e
o universo... ele pode mudar suas próprias ações e, assim agindo, a si mesmo”. 9 De onde
vinha essa capacidade de mudança das próprias ações? De forma paradoxal, ela parecia advir
de um movimento paralelo ao “curso das estrelas”, que não era, como o delas, imutável (como
então se acreditava), mas sim imprevisto.

Se a “mente livre” emergia do fortuito, era aceitável que o próprio movimento de mudança do
ser estivesse fundado em algum tipo de realidade centrada no imprevisto. A dinâmica de
qualquer existência e mudança, possuía muito de aleatório, donde, portanto, Maquiavel
voltar-se para pensar um necessário conceito central que exprimisse essa realidade: no caso o
complexo tema da Fortuna.

III

Muito se escreveu sobre o conceito de Fortuna, em Maquiavel. Para Joseph Femia era algo
como “uma força elemental, um rio furioso”, ou talvez, “uma deusa incontrolável”. 10 De
qualquer forma uma força imprevisível, e imensamente poderosa, como assinalou M.

8
Apud BROWN, 2010, p. 184.
9
Apud BROWN, 2010, p. 181.
10
FEMIA, 2004, p. 41.
144
Lemon.11 O conceito se transformou ao longo de sua obra, tanto nos Tercetos, quanto no O
12
Príncipe, e nos Discursos e é difícil, na verdade, precisá-lo, como, de resto, outros tantos
conceitos de Maquiavel. 13 De fato, em Maquiavel a própria definição dos conceitos parece
flutuar de acordo com os movimentos da realidade, adquirindo ora um, ora outro aspecto mais
relevante, e não é diferente com o conceito de Fortuna.

Mas não há como deixar de concordar com Benedetto Croce, no entanto, quando este
entendeu que embora a Fortuna parecesse um tipo de divindade pagã, ela, acima de tudo,
sintetizava em si, ao olhar de Maquiavel, uma crítica à ideia de “racionalidade, finalidade,
desenvolvimento”.14 Ou seja, uma crítica a todo princípio que estabelecesse uma base
transcendental ao sentido da história.

A Fortuna assumia o perfil de uma força aleatória que tudo transformava, destruindo e
recriando qualquer sentido, modelada, provavelmente, no movimento desordenado dos
átomos de Lucrécio. Por isso, em Maquiavel, a história deixava de ser o cenário através do
qual desfilava a revelação divina, como a expressão de uma vontade maior. Ao contrário, em
grande medida era o palco de ação do aleatório. A ideia secular análoga que será desenvolvida
a posteriori, a de progresso, seria, em princípio, impensável, para Maquiavel. Qualquer coisa
pode ocorrer, de forma aleatória, se deixássemos a história, a do mundo, ou a nossa, ao sabor
da Fortuna. “A estrutura da realidade”, assegura Femia, em Maquiavel “é basicamente um
sistema sem sentido de movimentos físicos”.15 Pelo menos no âmbito da condição humana.

No entanto, Maquiavel só entendia o conceito de Fortuna em conjugação com o de Virtude.


Num momento de O Príncipe, Maquiavel entendeu, metaforicamente, que a Fortuna “é
mulher. E é necessário, quando queremos te-la submetida, espancá-la e feri-la”. 16

Essa potência pelo qual se ataca, ou se busca o controle, do acaso, é a Virtude. De certo que a
Virtude está repousada ou emergindo de uma mente livre. Trata-se, portanto, de uma potência
de ação, que surge do ser humano ativo, pelo qual se busca o controle do imprevisto, oriunda
não da aceitação de princípios transcendentais, mas sim da manipulação de mecanismos
depreendidos a partir de um entendimento do funcionamento do mundo. No caso específico

11
LEMON, 2003, p.101.
12
BROWN, 2010, p.246.
13
RAMSAY, 2002, p. 33.
14
CROCE, 1920, p.286.
15
FEMIA, 2004, p. 35.
16
MAQUIAVEL, 1983, P. 147.
145
dessa metáfora, da Fortuna como uma mulher, de um entendimento do assunto que se tinha à
época, evidentemente, a de que as mulheres deveriam ser controladas à força.

Um olhar moral contemporâneo de entendimento da relação entre a Virtude e a Fortuna, no


entanto, tomando-a ao modo de Maquiavel, como uma relação masculino - feminino, teria
provavelmente o mesmo efeito por ele preconizado. Respeitando e considerando a
individualidade e igualdade da mulher, como é próprio do nosso tempo, e assim agindo em
direção à Fortuna, da mesma maneira a manteríamos associada, de forma eficiente ou
possível, à Virtude. A questão diz respeito a essa tentativa de administrar em algum grau ou
de alguma forma o aleatório. Mais precisamente, trata-se aqui, como observou John Najemy,
da relação entre agência e contingência. 17 O conceito de Virtude implica, portanto, como
Femia sugeriu, numa secularização do conceito de Graça “indicando uma forma sábia de
comportamento, prudente e humana”. 18

O essencial, aqui, na relação entre os dois conceitos, é que Maquiavel reconhecia o


extraordinário, mas postulava a possibilidade de uma administração do fortuito, a partir de
conhecimentos específicos retirados do entendimento do mundo, principalmente, no seu caso,
da história. O ser humano tem, assim, possibilidade de manipulação do acaso. Joseph Femia,
com propriedade, portanto, entendeu que, para Maquiavel, o ser era “um átomo isolado”,
colocado diante de forças maiores, por exemplo a Fortuna. 19 No entanto, a ação virtuosa
potencializava, no indivíduo ou no coletivo, alguma real capacidade de intervenção e
transformação.

IV

Podemos depreender o poder que eventualmente emergiria da Virtude, quando analisamos,


nas Décadas, a análise de Maquiavel sobre os mecanismos de destruição da memória, no caso,
da memória social, isto é, a memória que os homens têm, coletivamente, do que aconteceu no
passado. Maquiavel menciona duas causas para esse desaparecimento de lembranças.

17
NAJEMY, 2010, p. 33.
18
FEMIA, 2004, p. 32.
19
Idem, p. 92.
146
Começaremos pela segunda, que é aquela que vem “do céu”, provavelmente a ação da
Fortuna, “que reduz os habitantes... através de pragas ou inundações de águas”. Maquiavel
fala aqui de catástrofes naturais imprevisíveis que diminuem a população e que vitimam,
principalmente, os habitantes das cidades. Segundo ele os outros, os “das montanhas” podem
até sobreviver, mas perdem a conexão com o espaço urbano, e consequentemente com seu
ambiente cultural, tradição e memória. Ficam, assim, desprovidos do conhecimento da
antiguidade “e não podem transmiti-las à posteridade”. Nesse caso teríamos a ação da Fortuna
interrompendo um processo humano e comprometendo a transmissão do conhecimento.

A primeira causa, a principal, no entanto, seria aquela que “vem dos homens”. A eclosão
destemperada da desfaçatez humana interrompe os elos de transmissão de memória. Por
exemplo, quando uma nova religião “emerge, sua primeira providência é extinguir a antiga,
para dar a si mesma melhor reputação”.20 Se aplicarmos esse tema à história do cristianismo,
como Maquiavel o faz, veremos que uma dada ação humana interessada pode diluir o sentido
de eventos passados, permitindo não apenas o desaparecimento da lembrança mas também,
por exemplo, acompanhando o problema do Sacro Império, propiciando uma nebulosa ligação
ou continuidade entre o Império Carolíngio e o Império Romano do Ocidente.

Isso quer dizer, considerando que a destruição da memória pela Fortuna é, quando se
apresenta, incontrolável, e que a destruição do passado pelos homens ao longo da história
também, porque o mesmo acaso que na natureza existe, também entre os homens se manifesta
permanentemente, que só a ação da Virtude é pode propiciar o alcance dos objetivos
estratégicos da História, enquanto disciplina capaz de permitir um maior controle sobre as
vissicitudes do tempo. O fato de ser perfeitamente possível conhecer as razões torna apto ao
homem evitar esses mecanismos, seja diante da imprevisibilidade humana ou da natureza. E,
de fato, a tradição humanista comprovava que o salvamento, por exemplo, do De Rerum
Natura permitia a superação de qualquer esquecimento, seja aquele determinado pela Fortuna,
seja aquele estabelecido pela ausência de Virtude.

20
MAQUIAVEL, 1996, p. 139.
147
V

Assim, como afirmou Femia, se para Maquiavel “o absolutismo moral era geralmente
perigoso... e que o objetivo da vida política deveria ser o equilíbrio social, e não alguma
forma pré-concebida de justiça ou excelência humana”, 21 o sentido da Virtude não poderia
estar na expressão de uma lei natural determinista, nem no alcance teleológico de um
horizonte de fins, por exemplo. O sentido maior da Virtude emanava da potência humana e de
sua capacidade em exercitar o conhecimento do mundo, notavelmente da história, em solidão,
ou em conjunto, e diante de circunstâncias sempre extraordinárias. Esse aspecto da questão
colocou o especial tema dos diversos fins humanos, que como nos átomos de Lucrécio,
chocavam-se permanentemente.

Isaiah Berlin, com efeito, refletiu sobre esse aspecto da questão em Maquiavel, e concluiu que
“Maquiavel é o primeiro pensador que entendeu a existência de mais de um sistema de
valores”.22 Ao contrário do pensamento medieval - e de alguns pensadores de seu tempo-, que
sustentavam que a paz e a harmonia eram fundamentais ao bom ordenamento do Estado,
Maquiavel sustentará, a partir do estudo de caso de Roma, que era precisamente de sua
discórdia interna e do confronto de seus diferentes interesses que emergia a liberdade.23

Podemos entender, portanto, que nos seus estudos, Maquiavel concebeu ideias que tiveram
importância no desenvolvimento ulterior do individualismo. Ele postulou a pluralidade de
individualidades e causas como um dos elementos centrais da organização das sociedades.
Admitiu, portanto, uma perspectiva pluralista ruptora. Se o marxismo do século XX,
especialmente Gramsci, viu, em Maquiavel, um pensador capaz de pensar as entidades
coletivas e o papel motor dos conflitos sociais na história, 24 por outro lado parece claro que o
florentino é também o autor de um pluralismo social no qual a liberdade individual e a
ausência de sentidos maiores (ou no qual o grande sentido é o controle da Fortuna) resume a
essência sempre cambiante das estruturas sociais. Nessa perspectiva Maquiavel contribuiu
decisivamente para as bases do liberalismo, ao defender e sustentar o papel transformador da
pluralidade política.

21
FEMIA, 2004, p. 15.
22
Apud LOUKOLA, 2011, p. 99.
23
Idem, p. 100.
24
FONTANA, 1997, p. 11.
148
Tal perspectiva, em Maquiavel, aponta o terror de uma história sem sentidos, modulada
apenas pelo encadeamento casual de eventos. Para o universo intelectual iluminista, a
necessidade de recuperação de um universo medieval de sentidos, repleto de destinos, mas
numa perspectiva laica, deu início a uma série de sistemas teóricos direcionados para um
futuro mais ou menos determinável. A própria justificativa da História, como disciplina,
encontra no apontar do fim uma de suas maiores contribuições à tranquilidade dos homens no
tempo presente.

VI

Para Maquiavel, no entanto, parece haver sempre uma única constante: a Virtude. Ela
proporciona, sem dúvida, um domínio, mas esse domínio, sobre o sentido, é frágil, ou
efêmero, pois equilibra-se sobre o acaso. Mesmo que Virtude pudesse ser cada vez mais
ampla, sempre existiria o imprevisível. Qualquer estudo histórico encontraria assim, em sua
própria dinâmica, o permanente mistério do surpreendente. Seria ele próprio um fragmento de
sentido isolado num universo de impermanências.

Parece claro, aqui, que a religião para Maquiavel é uma tentativa de encontrar sentidos
absolutos onde estes não existem. O estudo da religião é o estudo das impossibilidades de
alcançar algo mais que o seu papel circunstancial na organização das sociedades. Grande
parte das análises modernas sobre o fenômeno religioso parecem provir de ilações decorrentes
das obras dos humanistas italianos, e notavelmente de Maquiavel. Mesmo quando se acredita
que a história possui um sentido, supõe-se que certamente não é um sentido sobrenatural, mas
natural. O sobrenatural aparece entendido à luz da sua inserção fantasiosa nos fragmentos
temporais.

Assim, a fragmentação do mundo é também a fragmentação do próprio ser. É difícil


encontrar, por exemplo, na obra de Maquiavel, conceitos claramente definidos. Os momentos
alteram a percepção conceitual, as experiências do mundo, virtuosas, são elas mesmas
experiências eventuais. A crítica à religião, em Maquiavel, passa assim pela crítica do destino
e da eternidade. E provavelmente, como fará depois Espinoza, pela crítica à imaginação. Uma
crítica de tal modo visceral da experiência religiosa justifica, provavelmente, que seus textos
tenham sido proibidos pela Igreja por séculos.

149
Na qualidade de pensamento originário, a abordagem de Maquiavel é, sem dúvida, seminal.
Mesmo que o desenvolvimento posterior da filosofia e das ciências sociais e humanas tenha
apontado a complexidade infinita das experiências humanas e dos mecanismos de suas
percepções, o papel central do acaso foi por ele pioneiramente identificado como um dado de
inconsistência a ser considerado em todas as teorias que buscam, como é natural para seres
que se sentem desguarnecidos diante do mistério do mundo, modelos acabados de
pensamento. O estudo dos sistemas religiosos, principalmente, não pode deixar de considerar
que grande parte do esforço imaginativo teológico está voltado para eliminar, fazer
desaparecer ou explicar, como previsível, a radical e absolutamente transformadora
experiência do inusitado. Maquiavel nos aponta, precisamente nessa insegurança essencial,
um dos eixos em torno do qual gravitam as idéias e concepções religiosas.

Referências

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151
152
Ciências Sociais da Religião em Perspectivas no Brasil

Carlos Alberto Steil, Rodrigo Toniol1

A religião, enquanto categoria analítica, está presente na produção das Ciências Sociais desde
seu início, constituindo-se como um de seus temas clássicos capazes de atravessar toda a sua
história2. Na antropologia, especificamente, parece ter sido uma das poucas temáticas de
pesquisa que seguiu ocupando um lugar central mesmo após sensíveis deslocamentos em
relação ao tipo de sociedade privilegiada por essa ciência 3. Reconhecer sua longa duração
enquanto tema de pesquisa diante de mudanças de orientação teórico-metodológicas, contudo,
não é o mesmo que sugerir que a categoria religião tenha permanecido inabalável na história
da disciplina. Isto é, se, por um lado, a religião não deixou de ser tematizada nas pesquisas,
por outro, aquilo que pode estar compreendido nesse campo - como instituições, práticas,
enunciados, rituais e performances – é tão diverso quanto as tradições e perspectivas
antropológicas. Esse tipo de explicitação contribuiu para problematizar o conceito de religião
enquanto um mediador universal, hipoteticamente autônomo das próprias dimensões espaço-
temporais que o forjaram. Assim, apresentar um panorama do campo de estudos das ciências
sociais da religião no Brasil não é o mesmo que reconstituir as diferentes abordagens sobre “a
religião”, mas é, antes disso, ocupar-se das variações daquilo que foi concebido como
religioso.

Em um texto do início deste século, Pierre Sanchis afirmou: “o campo dos estudos da religião
está cada vez menos sob o domínio das religiões”.4 Esse tipo de constatação sugere tanto a
ocorrência de transformações da experiência religiosa na sociedade brasileira, como também
de deslocamentos analíticos que os cientistas sociais da religião têm empreendido para tratar
esse contexto. Nesse sentido, uma revisão mais geral dos trabalhos publicados nos últimos
anos pode nos dar pistas de algumas características gerais desses deslocamentos empíricos e

1
Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Email: rodrigo.toniol@gmail.com
2
Autores considerados fundadores da disciplina como Karl Marx (2009), Émile Durkheim (1996) e Max Weber
(2004a; 2004b) reconheceram, a partir de perspectivas distintas, o estudo da religião como chave para a
compreensão e análise das sociedades.
3
Em seu livro Teorias da Religião Primitiva, de 1965, Evans-Pritchard já afirmava a longa duração dos estudos
sobre religião a partir de sua centralidade desde os textos dos primeiros antropólogos (Evans-Pritchard, 1991).
4
SANCHIS, 2001, p.17.
153
epistemológicos. Ao longo das duas últimas décadas, por exemplo, pôde-se perceber a
produção de uma série de pesquisas que se dedicaram ao estudo do religioso a partir de sua
articulação com aquilo que, até então, pouco fora com ele relacionado. A isso está associado o
surgimento de diversas pesquisas cuja problematização proposta procurou estabelecer
interfaces entre, por exemplo, religião e etnicidade, 5 religião e cultura,6 religião e estado,7
religião e ecologia, 8 religião e turismo.9

De certo modo, como sugeriu recentemente Ronaldo Almeida, 10 essa característica implica
tanto em um novo vigor ao campo de estudos da religião, quanto evidencia a dissolução de
fenômenos religiosos em outras lógicas. Poderíamos mesmo afirmar que, se essas articulações
pouco apareciam nas análises dos pesquisadores até a década de 1990, não era
necessariamente porque elas não estavam presentes nos contextos etnográficos em que os
antropólogos faziam suas investigações, mas sim, porque, ao privilegiar a institucionalidade
das religiões, essas relações, que extrapolam os limites prescritivos dos grupos religiosos,
escapavam das análises empreendidas.

Foi com a emergência de modelos analíticos que não circunscreviam o campo de práticas e
experiências às instituições religiosas, que cientistas sociais puderam não apenas ampliar o
campo de estudos da religião, como também problematizar, a partir de novos contextos
investigados, os próprios conceitos orientadores de suas pesquisas. Diante deste quadro,
pesquisadores vêm sendo convocados a um esforço reflexivo que dê conta do desencaixe
entre a realidade empírica, descrita nas etnografias de práticas, instituições, grupos e
experiências religiosas e os conceitos e modelos analíticos que foram elaborados e definidos a
partir de um outro contexto social e histórico.

Posto isso, a proposta desse texto é apresentar parte da produção das ciências sociais da
religião no Brasil procurando demarcar alguns traços comuns às pesquisas de distintos
períodos. Não se trata, portanto, de apresentar um balanço sobre os estudos na área com o
intuito de reproduzir debates, apontando para as clivagens, divergências e disputas internas
entre correntes de pensamento, mas de perceber horizontes interpretativos que transcendem as

5
GONÇALVES E CONTINS, 2008; CAPIBERIBE, 2007; VILAÇA, 2008; MONTERO, 2006.
6
LOPES, 2011; FIGUEIRO, 2005.
7
GIUMBELLI, 2002; BIRMAN, 2003; ORO, 2003.
8
CARVALHO E STEIL, 2008; STEIL E TONIOL, 2011; SOARES, 2004.
9
STEIL E CARNEIRO, 2008; ABUMANSSUR,2003; TONIOL, 2011.
10
ALMEIDA, 2010.
154
próprias pesquisas aqui descritas e se constituem como característicos de esquemas mais
gerais de compreensão do fenômeno religioso no Brasil.

Dualismo, tradição e modernidade e seus desdobramentos na análise de fenômenos


religiosos no Brasil

Os estudos da religião no Brasil como um campo de investigação legítimo nas Ciências


Sociais esteve marcado, durante as primeiras décadas do século XX, por certa marginalidade.
A expressão desse desprestígio temático pode ser considerada a partir de, pelo menos, duas
características no trajeto de constituição desse campo no país. Por um lado, por sua
dificuldade em institucionalizar-se nos coletivos de pesquisa e ensino brasileiro. Por outro, na
produção das próprias pesquisas sobre fenômenos religiosos que, de maneiras diversas,
compreenderam-no como algo fora do lugar numa sociedade que vinha procurando se situar,
por meio de enunciados políticos, intelectuais e midiáticos, como moderna.

Na tentativa de apresentar características gerais da produção de pesquisas sobre religião em


períodos iniciais de consolidação desse campo de estudos, privilegiaremos neste texto a
segunda11 característica dessa marginalidade, a saber: a produção de teorias que, como parte
da própria narrativa da modernidade brasileira, conceberam a religião como um anacronismo,
um fenômeno mais próximo do tradicional que do moderno.12

A perspectiva dual que opera classificações a partir da relação entre tradição e modernidade
constitui-se como um esquema analítico comum a uma série de pesquisas produzidas no
Brasil em determinados períodos. Na tentativa de apresentar a constituição do campo de
estudos das ciências sociais da religião a partir da caracterização desse modelo analítico, nos
deteremos a seguir em três expressões desta perspectiva: o dualismo espacial, o dualismo
temporal e o sincretismo.

11
Essa divisão entre a primeira e a segunda característica desse desprestígio não se refere a uma ordem de
emergência, mas a elementos distintos, embora relacionados.
12
Noutros textos (Steil, 2001; Steil e Herrera, 2010) tratamos da primeira característica dessa marginalização
destacando o papel desempenhado por instituições religiosas e grupos autônomos na produção de pesquisas
sobre o tema da religião.

155
Dualismo Espacial

O dualismo entre tradição e modernidade encontrou, na dimensão espacial, seus pares


análogos nas relações entre campo e cidade, centro e periferia. Na passagem da primeira para
a segunda metade do século XX, os pesquisadores das ciências humanas concentraram uma
significativa parte de seus esforços de pesquisa na reflexão acerca dos processos de
industrialização, migração, proletarização e urbanização do estado nacional brasileiro.

Naquele contexto, as narrativas sobre a modernidade tratavam as práticas religiosas como


associadas às tradições do mundo rural e, por isso, concebiam-nas como em progressivo
desaparecimento diante do acelerado processo de urbanização do país. Em certo sentido,
havia uma espécie de sobreposição da ideia de progresso à localização espacial das práticas.
Esse tipo de posicionamento foi resultante das inúmeras descrições da formação da identidade
nacional13 que imaginava práticas religiosas como sobrevivências de um passado mítico-
religioso rural cada vez mais distante do presente urbano, industrializado e secular que a
nação brasileira parecia se inserir. Assim, a religião em contextos urbanos, não apenas era
concebida como um fenômeno extemporâneo, como também era indesejada no devir do
Estado-Nação brasileiro.

No entanto, em que pese essas narrativas que tomavam a religião como fora de lugar na
modernidade, em, pelo menos, dois tipos de estudo ela pôde ser tematizada como lócus de
interesse: os estudos de comunidade e as pesquisas sobre messianismo.

A partir da década de 1950 a presença religiosa no campo foi estudada sob o título de estudos
de comunidade. O trabalho de Thales de Azevedo, Catolicismo no Brasil (1955), marcou essa
agenda de pesquisa nascente com a proposta de evitar caracterizar as práticas religiosas nesses
espaços como exóticas. Assim como as áreas rurais foram privilegiadas nesses estudos, o
tema dos rituais no catolicismo popular também foi bastante recorrente.14

Além de comunidades rurais, pesquisas sobre movimentos religiosos contestatórios,


messiânicos ou milenaristas adquiriram significativa relevância.15 Tais pesquisas reforçaram a
imagem de um catolicismo incompatível com o processo de modernização na medida em que

13
QUEIROZ, 1988; Da MATTA, 1983; ORTIZ, 1985.
14
BRANDÃO, 1981; SOUZA, 1977.
15
GALVÃO, 1976. Para uma apresentação dos estudos sobre peregrinação no Brasil ver: GIUMBELLI, 1997;
STEIL, 2003.
156
assinalavam a relação entre o surgimento desses movimentos e o levante contra aquilo estava
associado à modernidade, como a burocracia e o estado laico.

Dois pesquisadores merecem destaque na caracterização dessas pesquisas, são eles Maria
Isaura Pereira de Queiroz (1965) e Duglas Teixeira Monteiro (1974). Muito embora ambos
tenham negado a chave analítica tradicional-moderno para descrever práticas religiosas, suas
pesquisas estiveram preocupadas em compreender a tentativa da Igreja Católica em romanizar
práticas associadas ao catolicismo popular, difundidas em diferentes regiões do país. Duglas
Monteiro foi um dos primeiros a retomar a temática do milenarismo, explorada inicialmente
por Maria Isaura Pereira de Queiroz (1965), propondo, contudo, uma leitura que focava
menos os aspectos gerais do evento e mais as ações religiosas e práticas rituais dos sujeitos
envolvidos com os movimentos.

A prescritividade da perspectiva dualista espacial teve que lidar com a emergência de uma
manifestação religiosa cada vez mais presente na sociedade brasileira e caracterizada,
sobretudo, por seu aspecto metropolitano, as Igrejas Pentecostais. Diante desse contexto, a
dualidade campo versus cidade manteve seu princípio lógico, mas passou a operar a partir da
chave centro e periferia. Assim, a presença da religião na periferia das cidades foi concebida
como uma expressão do desenvolvimento de uma espécie de espaço anômico, que não teria
sido capaz de completar o processo de modernização. Dessa maneira, nas cidades que,
supostamente, rumavam para uma secularização incontornável passou a ser possível
reconhecer “bolsões de tradição religiosa”.

Dualismo temporal

Com a ideia de uma apropriação temporal da dualidade tradição e modernidade procuramos


sublinhar uma série de pesquisas que tiveram como locus de investigação privilegiado as
transformações históricas na dinâmica das próprias instituições religiosas. Nesse contexto, o
trabalho de Ralph Della Cava (1975), sobre o processo de romanização do catolicismo
brasileiro é exemplar. Esse historiador norte-americano pesquisou, durante a década de 1960,
o movimento das romarias de Juazeiro do Norte e a vida de seu fundador. Della Cava,
procurou compreender o movimento de Juazeiro do Norte em sua articulação tanto com
questões nacionais que estavam em jogo nas esferas políticas quanto com as mudanças que

157
vinham acontecendo no catolicismo romano internacional. Assim, o autor deslocou o foco de
interesse das pesquisas sobre religião, comumente voltado para o catolicismo rural, para a
busca por compreender a relação entre modificações estruturais da sociedade brasileira e as
ações da Igreja diante delas.

Outro autor que merece destaque por ter realizado alguns empreendimentos analíticos
conforme essa perspectiva é Pedro Ribeiro de Oliveira. Em sua tese, Oliveira (1985) procurou
compreender o processo de aproximação da Igreja Católica local da ortodoxia vaticana, após
um período de relativa autonomia durante o século XIX16.

Tanto Ralph Della Cava (1975) como Pedro Ribeiro de Oliveira (1985) produziram suas
pesquisas informados por essa perspectiva que primava pela análise diacrônica das práticas
religiosas em determinadas instituições, como o catolicismo. O dualismo tradição e
modernidade nessa leitura temporal teve entre suas principais influências o funcionalismo
durkheimiano. Esse bias funcionalista estava expresso, por exemplo, na atribuição de um
sentido universal e unificador das instituições religiosas em relação às práticas. Assim, a
romanização do catolicismo era tomada como parte de um processo inevitável de adequação
das práticas populares às determinações institucionais da Igreja. Noutras palavras, essa
perspectiva implicou a impossibilidade de conceber e, por conseguinte, pesquisar, devoções
religiosas autônomas, não atreladas a instituições 17.

Sincretismo

Outra modalidade do dualismo tradição e modernidade presente nas pesquisas sobre


fenômenos religiosos foi o conceito de sincretismo que, de alguma maneira, foi uma ideia
estruturante para o próprio campo das ciências sociais da religião no Brasil. Se tomarmos
como referência os estudos da primeira metade do século XX que se propunham a descrever a

16
Segundo Oliveira (1985) alguns dos artifícios eclesiásticos para a romanização do catolicismo brasileiro
foram: o deslocamento na centralidade da devoção dos santos para um cristocentrismo, maior controle na
formação sacerdotal, nomeação de bispos alinhados com as diretrizes de Roma e concessão da administração de
santuários às ordens religiosas européias.
17
Não é sem razão que os rituais foram, nesse contexto, momentos privilegiados para a observação do sagrado
que, como afirmou Steil (2003:39), existe, nessa perspectiva, “não como uma realidade espiritual autônoma
perante o social ou o indivíduo, mas como o próprio “social” que se expressa por meio de símbolos e rituais
religiosos”.
158
paisagem religiosa brasileira18 e compararmos com avaliações mais recentes do contexto
religioso no país,19 perceberemos certa permanência na centralidade da ideia de diversidade,
bem como o constante acionamento do conceito de sincretismo, e seus congêneres, para
caracterizar as práticas religiosas realizadas no país. Assim, para diversos sociólogos e
antropólogos da religião,20 se há, no Brasil, alguma característica matricial das crenças e
práticas religiosas, ela pode ser caracterizada como uma constante “combinação das crenças
das religiões tradicionais: a dominante, católica, com as subalternas, indígenas e africanas”. 21

A dualidade entre tradicional e moderno apropriada no conceito de sincretismo opera,


portanto, a partir da ideia de que a hibridização do catolicismo com outras manifestações
religiosas, especialmente as de origens afro e indígenas, constituíram uma espécie de matriz
capaz de reordenar qualquer prática religiosa que surgisse no país. Isto é, a matriz sincrético-
católica não seria apenas uma manifestação empírica, mas uma característica estruturante das
práticas religiosas e da dinâmica estrutural brasileira. Segundo Sanchis (2002), a força dessa
matriz religiosa pode ser observada desde a sociogênese da nação brasileira que, mesmo
sendo resultante de múltiplos processos de hibridização religiosa, manteve uma espécie de
referência generalizada ao cristianismo, mais especificamente ao catolicismo.

Se, conforme afirmamos, nas duas outras versões descritas do dualismo tradição e
modernidade - a espacial e a temporal - , o catolicismo foi, de modo geral, a prática religiosa
privilegiada como objeto de investigação, as pesquisas informadas pela ideia de sincretismo
religioso privilegiaram as religiões afro-brasileiras. Como afirma Sanchis:

Candomblé e umbanda são duas modalidades de fidelidade criativa – e


“brasileira”, quer dizer, também “católica” – a tradições radicadas em outro
mundo que souberam, arrancadas de sua matriz geográfica e sociopolítica,
reelaborar no Brasil primeiramente seu universo simbólico, mais tarde suas
organizações comunitárias e, hoje, uma proposta religiosa universal,
independente de nação, etnia, raça ou cor.22

18
QUEIROZ, 1989.
19
MONTERO, 1999; ALMEIDA, 2010.
20
CARVALHO, 1992; MACHADO E MARIZ,1998; SANCHIS, 2001; SANCHIS, 2002.
21
CAMURÇA, 2009, p.175.
22
SANCHIS, 2002, p.15.
159
Já nas pesquisas sobre o Candomblé da Bahia (2001) de Roger Bastide, um dos intelectuais
chave para a constituição de um campo de investigação sobre fenômenos religiosos no Brasil,
o sincretismo constituiu-se como conceito essencial para descrever a trajetória histórica
daquilo que o autor reconheceu como um desprendimento de uma superestrutura – as
religiões africanas – do contexto social que o forjou e, posterior, acomodação noutros marcos
religiosos – a matriz sincrético católica brasileira.23

O conceito campo religioso e seu pluralismo interno

A partir da década de 1970 pesquisadores passaram a identificar a perda da hegemonia


católica e o progressivo aumento da visibilidade de outros grupos religiosos, sobretudo, os
pentecostais. Se, de maneira geral, os desdobramentos teóricos da dualidade tradição e
modernidade operaram diacronicamente, isto é, dispondo práticas religiosas como mais ou
menos próximas de certa tradição com referências a um tempo pretérito, nesse novo contexto
surgiu conceitos como o de campo religioso que primava por um recorte sincrônico da
realidade social. A emergência dessa perspectiva nos estudos das Ciências Sociais da Religião
no Brasil está relacionada, sobretudo, ao corpus teórico relativo à produção de Pierre
Bourdieu.

A apropriação do conceito de campo social de Bourdieu (2007) permitiu que cientistas sociais
pudessem reconhecer a diversificação do fenômeno religioso sem que isso implicasse afirmar
a produção de um universo religioso fragmentado, sem características comuns capazes de
tornar cada uma de suas manifestações relacionadas entre si. Descrever a gênese de um campo
diante do aparecimento de novos matizes religiosos permitiria, nos termos de Bourdieu,
compreender “aquilo que faz a necessidade especifica da crença que o sustenta, do jogo de
linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram”
(Bourdieu, 2007:69). Desde essa perspectiva, portanto, as práticas e rituais religiosos são
tanto a expressão de uma estrutura social que abrange cada uma dessas manifestações, como

23
A produção antropológica sobre a dinâmica do campo religioso afro no Brasil ulterior as pesquisas de Bastide
é imensa, parte dessas investigações, como as de Diana Brown (1985), Renato Ortiz (1978) e Yvonne Maggie
(1977), embora tenham procurado colocar sob outros termos a ideia de sincretismo, seguiram operando a partir
do dualismo tradição e modernidade.

160
essas próprias práticas são capazes de encompassar essa estrutura produzindo uma
diversificação cada vez mais ampla do campo religioso.

Com isso, a religião, seja como categoria analítica ou como fenômeno empírico, passou a
estar associada à ideia de um pluralismo que caracterizaria tanto a significativa circulação de
pessoas entre diferentes tradições religiosas, como também a multiplicação de igrejas e
fenômenos religiosos no país. Se com o conceito de sincretismo, pesquisadores procuraram
sublinhar a composição de práticas religiosas a partir de elementos de diferentes tradições,
com a ideia de pluralismo religioso o foco estava voltado menos para a incorporação de
práticas diversas nas instituições e mais para o trânsito dos sujeitos religiosos entre diferentes
religiões. Como afirmou Almeida (2010), na medida em que a paisagem religiosa do país
passou a ser descrita em termos de pluralismo religioso, uma série de noções congêneres tais
como diversidade, concorrência e conflitos adquiriram significativa importância na
caracterização do campo religioso brasileiro.

Nesse contexto de diversificação das dinâmicas de funcionamento das instituições e práticas


religiosas, cientistas sociais elaboraram recortes distintos na produção de objetos de pesquisa.
Ora recorrendo às denominações religiosas e suas especificidades, ora refletindo de maneira
transversal sobre o modo como cada instituição se relaciona com determinada problemática.

Os desdobramentos do conceito de “campo” a partir das noções de Igreja, Seita, Mística


e Rede

Na tentativa de apresentar parte das pesquisas produzidas em diálogo com a idéia de campo
religioso, recorremos à tipologia de Ernst Troeltsch (1987) que buscou compreender, a partir
de três tipos, as tradições religiosas ocidentais, são elas: Igreja, Seita e Mística. Não nos
deteremos, aqui, nas implicações teóricas dessa tipologização para a própria obra de
Troeltsch, mas recorremos a ela reconhecendo, assim como fizeram diversos outros cientistas
sociais, 24 sua atualidade. Ao final da descrição das pesquisas produzidas no âmbito dessas
tradições, proporemos um quarto conjunto de práticas religiosas que têm sido tematizada em
investigações recentes não prevista por Troeltsch a qual chamamos de rede.

24
MATA, 2008; STEIL, 1999; SANCHIS, 1995.
161
A primeira classe de manifestações religiosas, denominada de Igreja, compreende os estudos
realizados acercas das instituições, sobretudo, católicas e evangélicas, em um contexto plural
de concorrência por fiéis. Tais investigações estiveram fortemente influenciadas pela
perspectiva weberiana. Embora o próprio conceito de campo pareça garantir um lugar para a
religião em um contexto de modernização, a ideia de racionalidade, característica da obra de
de Max Weber, 25 impulsionou a realização de pesquisas acerca de fenômenos religiosos
menos em direção à analise das diferentes manifestações religiosas que emergiam nos
contextos urbanos e mais à temas relacionados ao desencantamento do mundo e
secularização. Com isso, as práticas religiosas analisadas desde uma perspectiva weberiana
privilegiaram a reflexão acerca de processos de racionalização da sociedade brasileira –
especialmente das religiões. Outra conseqüência analítica da incorporação da perspectiva
weberiana no campo de estudos da religião no Brasil foi o deslocamento da ideia de um fiel
completamente encerrado pelas instituições religiosas para um fiel autônomo, reflexivo e
capaz de compor seu próprio sistema de crenças. Assim, do mesmo modo que o pluralismo
religioso remete à ruptura do monopólio de uma religião como igreja oficial e, por
conseguinte, à diversificação das práticas contribuindo para a constituição da noção de um
campo religioso múltiplo, também remete à emergência do indivíduo na dinâmica de
funcionamento das próprias igrejas.

Outro conjunto de pesquisas concentrou-se naquilo que poderíamos situar na manifestação


religiosa ideal-típica chamada de seita. Em certo sentido, algumas das caracteretísticas
atribuídas por Troeltsch (1987) à ideia de seita, como a marginalidade e a renúncia aos
interesses e instituições seculares, operaram como chaves de análise em pesquisas que
tomaram como universo de investigação religiões neopentecostais. As comunidades eclesiais
de base (CEBs), mesmo sendo parte da estrutura da Igreja Católica, também foram analisadas,
por cientistas sociais,26 a partir dessa chave analítica.27

As pesquisas produzidas próximas a essa tradição nas ciências sociais provocaram uma
mudança na ideia de uma incompatibilidade entre religião e modernidade apontando, pelo
contrário, para a constituição de uma modernidade bastante profícua para a proliferação de

25
WEBER, 2004a; 2004b.
26
LESBAUPIN, 2009.
27
Para Ivo Lesbaupin, por exemplo, as comunidades de base funcionavam numa estrutura de seita tendo em vista
“o lugar ocupado pelo leigo,a pregação feita pelos leigos, a importancia atribuída à Biblia, a vida comunitária, as
relações igualitárias, a participação das mulheres, a fraternidade, o auxílio mútuo” (LESBAUPIN, 2009, p.69).

162
crenças religiosas. Essas pesquisas demonstraram de que maneira aquele contexto, descrito
por algumas perspectivas, como se aproximando progressivamente de uma modernidade
secular governada pela razão científica e técnica não trouxe para o mundo uma marca a-
religiosa, mas ao contrário, carregou consigo uma verdadeira nuvem de novas crenças.

De modo geral, as pesquisas relacionadas com a ideia de seita apontaram para duas
características dessas manifestações religiosas. Primeiro, para a possibilidade, nesse contexto,
da experiência religiosa ocorrer no plano da intimidade do sujeito. Segundo, para o fato da
certificação da verdade dessa experiência poder ser atestada pelo próprio indivíduo,
independente de normalizações institucionalizadas. Assim, as crenças se construiriam de um
modo altamente fluido e, ainda que não estivessem submetidas às suas instituições, tomariam
“emprestados e reutilizariam” elementos originários das grandes tradições religiosas. Essa
nova configuração do mundo religioso, como defende Hervieu-Léger (2008), produziu o
enfraquecimento das instituições reguladoras do crer, tendo como conseqüência o retorno da
fórmula que era aplicada a sociedades não-modernas: a religiosidade está em toda parte.

O desafio das pesquisas produzidas em diálogo com essa tradição é o de pensar religião a
partir do movimento e da fluidez. A estabilidade das identidades religiosas, cristalizada na
figura do fiel praticante, mudou de sentido – deixou de obedecer a imperativos institucionais e
passou a se organizar a partir das necessidades e escolhas pessoais. Esse tipo de prática,
contudo, não esteve restrita aos sujeitos e grupos identificados com certa espiritualidade Nova
Era, mas foi capaz de dar vazão a rituais e práticas tradicionais antes invisibilizadas pela
hegemonia dos sistemas oficiais. Assim, podemos observar a incorporação dessas formas de
crer nas próprias tradições religiosas estabelecidas, tais como catolicismo 28 e espiritismo, por
exemplo. 29

O que está em jogo nas inúmeras pesquisas produzidas no âmbito daquilo que Troeltsch
chamou de Igreja, Seita ou Mística, é a percepção bastante difundida do enfraquecimento das
instituições frente a um panorama bastante fluido das crenças individuais que não se
manifesta apenas por meio do esvaziamento de fiéis das grandes tradições religiosas, como
também pela pane da laicidade que, tornou-se durante a década de 1990, um tema de
pesquisa bastante explorado pela antropologia brasileira. 30 A transformação do cenário

28
STEIL E CARNEIRO, 2008; TONIOL E STEIL, 2010; OLIVEIRA, 2004.
29
STOLL, 2002; LEWGOY, 2008.
30
GIUMBELLI, 2004; BIRMAN, 2003, RANQUETAT JUNIOR, 2010.
163
religioso coloca novas questões ao Estado laico, que entra em choque, por exemplo, quando a
administração da crença deixa de estar sob o comando de determinadas instituições religiosas
passando a ser reinvidicada por grupos que não se estruturam dentro dos modelos religiosos
clássicos.

Embora as pesquisas produzidas em diálogo com a ideia de campo religioso tenham sido
bastante diversas no que se refere ao tipo de problematização, diferentes pesquisadores
interessados em investigar a produção da dinâmica religiosa global reconheceram no conceito
de campo um limite analítico. Para estes pesquisadores, a descrição dos campos religiosos
nacionais terminaram se pautando pelas próprias fronteiras nacionais, o que terminou
invisibilizando relações translocais na constituição de determinadas práticas e instituições
religiosas.

Nesse contexto de investigação, diferentes pesquisadores31 passaram conceber a circulação de


ministros e fiéis em redes internacionais articuladas pelas instituições religiosas como um
elemento estruturante das dinâmicas locais e globais da crença. Com isso não estamos
afirmando que houve um aumento nas pesquisas sobre religião que adotaram procedimentos
teóricos e metodológicos afins à idéia de rede, mas que diferentes investigações passaram a
privilegiar e seguir os sujeitos e objetos em seus trânsitos transnacionais. Em certo sentido,
esse tipo de empreendimento está relacionado como uma transformação mais ampla do
cenário religioso em que os sujeitos adquirem mais autonomia empírica e teórica,
centralizando a experiência religiosa na sua subjetividade. Diante desta forma de
desinstitucionalização das religiões cujo efeito pode ser observado no enfraquecimento das
pertenças, as pesquisas também passaram a privilegiar mais a reflexão acerca do crer que ao
de pertencer. A consolidação de uma agenda de pesquisa em torno dessa configuração do
contexto religioso empírico – e, vale dizer, teórico que com ele se articula – materializou-se a
partir de conceitos como globalização, fluxo, trânsito.

Pesquisas de religião e globalização

Ao refletir sobre o efeito do fenômeno da globalização para a antropologia da religião, Otávio


Velho (1997) assinalou, justamente, o desenraizamento dos sujeitos como uma característica
31
Para algumas pesquisas sobre transnacionalização religiosa, ver: Oro, 1999; Oro, 2004; De Bem, 2009;
Meirelles, 2009; Alves, 2009
164
resultante dessa de fluidez do pertencimento dos sujeitos às instituições. A própria definição
do que seja globalização que Otávio Velho elabora está relacionada a essa característica: “a
globalização é um processo de decomposição e recomposição da identidade individual e
coletiva que fragiliza os limites simbólicos dos sistemas de crença e pertencimento”. 32 Para
além das controvérsias em torno do conceito de globalização, o que queremos assinalar é a
produção de uma nova mirada sobre fenômenos religiosos em que noções como de
globalização e seus análogos informam parte da produção das ciências sociais da religião no
Brasil. Em parte, esse tipo de perspectiva desdobrou-se em dois tipos de pesquisas que Velho
convocara em seu texto de 1997.

Um primeiro tipo de pesquisas relacionadas a esse contexto deslocou a

(...) atenção da função de cada religião para o modo como constituem


sistemas de comunicação que permitem aos indivíduos reduzir a
complexidade em que vivem aqui e agora ao mesmo tempo imaginar “o
mundo” unificado por problemas comuns que interessam a toda espécie
humana, em suma, sistemas simbólicos capazes de pôr em relação a
realidade local com a perspectiva global. 33

Pode-se observar, desde o final da década de 1990, um significativo conjunto de pesquisas


sobre a temática religiosa a partir da articulação global e local que privilegiaram a análise da
transnacionalização de igrejas pentecostais e práticas de religiões afro-brasileiras no Cone
Sul. Parte dessas pesquisas tem descrito a circulação de práticas que tomam como referência
as instituições religiosas, denominações e igrejas caracterizando-se, segundo Oro (2009),
como fechadas, isto é, centralizadas, sem intercâmbio com redes locais e com um fluxo que
apenas vai do Brasil para outros países, ou então, podem ser abertas, isto é, descentralizadas e
multidirecionais. Na tentativa de dar conta desse contexto em que a religião é pensada
transversalmente as pesquisas que tem tematizado a transnacionalização também têm
oferecidos importantes contribuições metodológicas relacionadas à realização de etnografias
multissituadas.

32
VELHO, 1997, p. 32.
33
VELHO, 1997, p. 33.
165
Conclusão

O reconhecimento da implicação mútua entre um processo mais amplo de globalização e as


transformações nos regimes do crer já assinaladas impõe aos cientistas sociais da religião a
necessidade de acompanhar e analisar os “efeitos do desaparecimento de fronteiras simbólicas
rígidas entre diferentes campos religiosos, entre campo religioso e campo mágico e esotérico,
entre religião e novas crenças seculares ou para-religiosas”. 34 Trata-se de situar o horizonte
das ciências sociais da religião além daquilo que supostamente é o “propriamente religioso”.
O que está em jogo, portanto, é derivar do reconhecimento da articulação entre práticas
religiosas com outras dimensões da vida social a possibilidade de elaboração de pesquisas que
escapem da reificação do conceito de religião.

As críticas produzidas desde o pós-colonialismo e da Antropologia do Cristianismo têm


contribuído para viabilizar descrições e análises que, sem deixar de reconhecer o valor
heurístico do conceito de religião, são capazes de ultrapassar os limites relacionados a seu
contexto de produção político e epistemológico. A ideia de rede igualmente nos parece central
para a formulação de abordagens mais adequadas à atual configuração do fenômeno religioso
em que a fluidez do pertencimento e as articulações transnacionais das instituições religiosas
têm levado pesquisadores a problematizarem os localismos implicados em conceitos como o
de campo religioso.

O que está em jogo não é deixar de reconhecer a importância dos processos locais na análise
dos fenômenos religiosos, mas sim de evitar a circunscrição de práticas e signos locais à
localidade. Nesse sentido, autores como Arjun Appadurai (2004) e Jean e John Comaroff
(2003) têm problematizado as consequências analíticas da invisibilização de fenômenos
globais na produção – real e epistemológica – do local. Trata-se de questionar a máxima
geertziana de que os “antropólogos pesquisam nas aldeias”, para sugerir reflexões sobre os
inúmeros fluxos globais que atravessam esses contextos. A invisibilização das forças globais
é uma espécie de conseqüência metodológica de uma perspectiva teórica funcionalista que
privilegiou os espaços de intimidade como lócus, por excelência, da observação
antropológica. Diante de fenômenos como o da globalização, como afirmam Jean e John
Comaroff (2003), parte dos antropólogos foi tomado por um receio de perda de “objeto”,

34
VELHO, 1997, p.57.
166
dando pouca visibilidade aos fenômenos globais de modo que, em algum sentido, pudessem
preservar seus universos de pesquisa.

A crise do conceito de religião passa tanto pelo questionamento de sua suposta capacidade
explicativa universal, como pelo caráter local que pode imprimir nos contextos a que se
refere. A religião, seja como fenômeno empírico seja como unidade de análise, não é algo que
existe em si, como uma substância permanente, mas, antes, se apresenta como uma
configuração histórica que resulta da negociação contínua entre formas diversas de expressar
a experiência religiosa. E, o que podemos observar é que o conceito de religião muda
juntamente com os contextos sociais. Isso implica, conforme procuramos mostrar nesse
artigo, tanto a impossibilidade de projeção das fronteiras geográficas dos países na análise da
dinâmica das práticas e instituições religiosas, como também a necessidade de produção de
pesquisas que tratem a religião não como um fenômeno autônomo da vida dos sujeitos, mas
articulado conforme as disposições criativas e multidimensionais que a modernidade,
supostamente a-religiosa, tem produzido.

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173
174
Religião e cultura: perspectiva das Ciências Sociais

Patrícia Carla de Melo Martins1

Cada sociedade constrói, para seu uso, certo tipo ideal de homem. E
este ideal é o eixo educativo. Para cada sociedade, a educação é o
“meio pelo qual ela prepara, na formação das crianças, as condições
essenciais da sua própria existência”. Assim, “cada povo tem a
educação que lhe é própria e que pode servir para defini-lo, da
mesma forma que a organização política, religiosa ou moral

DURKHEIM2

Introdução

Sob a perspectiva das Ciências Sociais, religião e cultura são termos comumente associados à
compreensão das práticas e representações culturais dos diferentes grupos sociais do passado
e do presente. Autores como Durkheim (1996), Bourdieu (1999), Eliade (1992), Filorano e
Prandi (1999), Chartier (1990), Elias (1989) dentre outros, identificaram no seio de suas
análises, o mito e o rito como elementos imprescindíveis à prática religiosa vigente nas bases
culturais de diferentes organizações sociais. O mito e o rito, são fatores fundantes do
pensamento e da prática religiosa, apresentam-se em seu papel aglutinador das relações
sociais, promovendo valores e significados comuns aos indivíduos de um mesmo grupo
social. A relação entre a cultura e a religião, emerge no processo de apreensão e construção da
realidade tanto nas sociedades complexas, junto à cultura erudita como nas sociedades
simples, junto as estruturas míticas. O propósito dessa discussão é apresentar, sob a

1
Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-SP, mestrado em História pela UNESP/Franca-SP. Doutoranda
em História na UNESP/Franca-SP, com tema sobre Filosofia da História no Império. A discussão que se
apresenta neste texto é parte da tese de doutorado concluída em 2006 no programa de Pós-graduação em
Ciências da Religião, sob a orientação do Prof. Dr. Fernando Londoño, com o auxílio da CAPES.
2
1965, pp. 9-10

175
perspectiva de Durkheim e dos autores citados, parte do processo histórico que definiu o
caminho da relação entre a religião e cultural.

Antropologia

A antropologia do final do século XIX e primeira metade do século XX, identificou na


estrutura mítica a linguagem simbólica que remete as cosmogonias e teogonias dos povos
ágrafos e da cultura popular, perpassando as explicações acerca das relações que o indivíduo
estabelece com o seu meio existencial.

A Antropologia foi em princípio a área das Ciências Sociais que mais se voltou para a
religião, fazendo dela um campo de análise capaz de evidenciar determinados sentidos e
significados das relações sociais. Foi por intermédio da Antropologia que a religião passou a
ser pensada como algo inerente às sociedades humanas simples ou complexas. Em especial, o
pensamento antropológico de Durkheim, produziu um referencial teórico indispensável às
categorias de análise da religião, que em última instância tornou comum a inserção dos
estudos religiosos nos aspectos da cultura humana. 3

Os estudos antropológicos dos aborígenes identificaram na religião um traço do


comportamento humano, manifestado junto às práticas individuais e, sobretudo, coletivas. No
contexto da sistematização dos novos referenciais da pesquisa social, Durkheim publicou, em
1898, a revista Année Sociologique. A revista de Durkheim apresentava monografias com
temas considerados essenciais para a abordagem sociológica e antropológica que deveria levar
ao reconhecimento de um quadro de características gerais sobre a organização dos grupos
humanos. A História, o Direito, a Economia, a Política, a Religião e a Educação compunham
esses temas essenciais ao conhecimento sociológico e antropológico do ser humano . 4

A consagração de Durkheim no campo dos estudos da religião e da cultura veio com a


publicação da obra As formas elementares da vida religiosa (1996). Essa obra se tornou um
referencial, consagrando seus estudos sobre a religião nas demais abordagens sobre o tema ao
longo do século XX. Utilizando-se do método comparativo e de uma teoria sociológica

3
Cf. DURKHEIM, 1996.
4
BOTTOMORE, 1983, pp. 20-21.
176
calcada no apriorismo e empirismo kantiano,5 analisou o comportamento dos aborígines
australianos, chegando à conclusão de que:

as religiões primitivas não permitem apenas destacar os elementos


constitutivos da religião; têm também a grande vantagem de facilitar sua
explicação. Posto que nelas os fatos são mais simples, as relações entre os
fatos são também mais evidentes. As razões pelas quais os homens explicam
seus atos não foram ainda elaboradas e desnaturadas por uma reflexão
erudita; estão mais próximas, mais chegadas às modificações que realmente
determinam estes atos.6

Além de realizar um estudo comparado sobre as manifestações religiosas dos povos ágrafos,
Durkheim comparou as mesmas com as religiões históricas, chegando à conclusão de que a
religião seria um sistema complexo de mitos, dogmas, ritos e cerimoniais, o qual supõe uma
classificação das coisas, reais ou ideais, que os homens concebem em duas classes, em dois
gêneros opostos, que as palavras profano e sagrado traduzem muito bem.

Posteriormente nas décadas de 1960 e 1970, Eliade (1996) verificou no pensamento religioso
a percepção de um mundo dicotômico, que pode ser entendido nas categorias conceituais
sagrado e profano, as quais integram o universo simbólico elaborado pelo grupo analisado.
Observou-se que o sagrado e o profano constam de sentidos específicos entre um grupo e
outro, ou seja, se diferencia no contexto cultural de cada sociedade observada. O indivíduo,
junto ao grupo, estaria sujeito a percorrer as duas categorias que compõem esta dicotomia,
tendo como ideal as práticas delimitadas no sagrado.7 Para Mircea Eliade, as categorias
sagrado e profano apresentam-se como premissa para a identificação da religião em meio à
atividade humana.

Outro autor que se associou aos avanços teórico-metodológicos da antropologia durkheimiana


do final do século XIX, foi o linguista Ferdinand Saussure. O modelo interpretativo de
Durkheim para entender a linguagem produzida no totemismo dos clãs, foi utilizado nos

5
BOURDIEU, 1999, p. 29.
6
DURKHEIM, 1996, p.18.
7
Cf. ELIADE, 1996.
177
estudos de Saussure como um caso específico de um fenômeno mais geral, relevante para o
processo de criação da teoria geral da comunicação por intermédio dos signos. 8

A linguagem emergiu, no século XX, como forma de compreensão do funcionamento das


sociedades humanas distintas entre si pela construção de um pensamento coletivo que se dá
pelas relações sociais. Tipo que estudo que deu origem a vertente estruturalista. Um dos
primeiros autores a se destacar nessa abordagem, visando a eficácia dos sistemas
educacionais, foi Piaget. na sua obra Estruturalismo.9 Piaget defende a necessidade de
aplicação do estruturalismo como abordagem dos diferentes campos do saber que
caracterizam a ciência contemporânea.

Entregando-se a esta dissociação, deve-se então reconhecer que existe um


referencial comum de inteligibilidade que alcançam ou investigam todos os
‘estruturalistas’, ao passo que todas as suas intenções críticas são infinitamente
variáveis: para uns, como nas matemáticas, o estruturalismo se opõe à
compartimentagem dos capítulos heterogêneos reencontrando a unidade graças
a isomorfismos; para outros, como nas sucessivas gerações de linguistas, o
estruturalismo se distanciou sobretudo das pesquisas diacrônicas, que se
estribam em fenômenos isolados, para encontrar sistemas de conjunto em
função da sincronia; em psicologia, o estruturalismo combateu por mais tempo
as tendências ‘atomísticas’, que procuravam reduzir as totalidades as
associações entre elementos prévios; nas discussões correntes vê-se o
estruturalismo queixar-se do historicismo, do funcionalismo e, às vezes
mesmo, de todas as formas de recurso ao sujeito humano em geral. 10

Nessa passagem de Piaget o estruturalismo identifica-se como um recurso imprescindível à


compreensão da construção das ideias e dos saberes que atuam sobre a definição do real no
campo da ciência. Trata-se de um método capaz de construir o objeto de análise a partir das
suas particularidades. Particularidade essa reconhecida, em última instância, no contexto em
que se definiu, colaborando com a hipótese de que o todo deve ser reconhecido pelas partes
que o compõe.

8
LAYTON, 1997, p.94.
9
Cf. PIAGET, 1979.
10
PIAGET, 1979, p. 8.
178
Tratando-se a religião de um sistema linguístico integrado ao objeto ritual, ela participa
diretamente da construção da realidade, seja por intermédio de uma ação educacional formal,
transmitida nas escolas, ou da educação informal dada nas relações sociais do cotidiano.

Do funcionalismo ao estruturalismo da década de 1970

A influência de Durkheim recaiu sobre o Funcionalismo Estrutural de Radcliffe Brown. Para


os integrantes da escola britânica representada por Radcliffe Brown, a “religião de um
determinado povo reflete a estrutura do seu sistema social ao mesmo tempo em que opera no
sentido de manter este mesmo sistema no seu estado atual.” 11 A religião, para Radcliffe, é um
fator de manutenção às permanências e tradições de um grupo ou sociedade.

Na década de 1950, Levi-Strauss se uniu às idéias de Durkheim, para quem a gênese da


linguagem gera a origem do pensamento lógico vigente na consciência coletiva das
sociedades humanas. Perspectiva que reafirma a necessidade do estudo dos conceitos e dos
juízos, que tornam possíveis um raciocínio metodológico constitutivo da teoria do
conhecimento. A partir de Levi-Strauss os estruturalistas verificam na religião a participação
direta na construção da realidade, na determinação de processos intelectuais que constituem
condição para a estrutura do pensamento. Claude Levi-Strauss, ao voltar-se à compreensão da
organização sociocultural dos aborígines do Novo Mundo, que chegaram até ao século XX, se
tornou um ícone do estruturalismo pós-moderno, da segunda metade do século XX. Ao
analisar o mito vigente nas tribos indígenas da América Central, Levi-Strauss percebeu a
lógica estruturante das relações sociais; com isso, desenvolveu estudos que reforçam as
teorias que atribuem ao mito, e, por conseguinte à religião, aspecto elementar aos significados
que o grupo destina à realidade mensurada. A Teoria da Linguagem de Saussure 12 foi
retomada como um dos suportes utilizados por Levi-Strauss na construção da sua abordagem
estruturalista.

Ao analisar o mito recorrente nas cantigas e canções entoadas nos rituais de passagem dos
aborígines da América Central, Levi-Strauss identificou os elementos essenciais para a
organização do grupo, como a definição de significados comuns, que tornam possíveis as
relações entre os sujeitos que formam o grupo. O Estruturalismo permitiu uma análise da
11
LAYTON, 1997, p.95.
12
1971, pp. 7-12.
179
totalidade das pequenas sociedades tribais, levantando para as Ciências Sociais aspectos do
comportamento da atividade econômica e política, da atividade sexual e das relações de
parentesco, dispostos no grupo. A decodificação da linguagem mitológica garantiu
concomitantemente a decodificação das crenças, entendidas como um sistema de valores que
permeiam a atividade cultural, conduziu às conclusões sobre a lógica interna e o sentido das
ações implícitas na organização do grupo-social. Nas análises sobre o totemismo, Levi-
Strauss concluiu que a forma como a natureza era catalogada teria como origem a
classificação das pessoas na sociedade.

O estruturalismo de Levi-Strauss continuou influenciando os antropólogos das gerações


seguintes dedicados a cultura dos povos ágrafos, colaborando com os pressupostos e os
anseios das abordagens acadêmicas.

Das sociedades simples às sociedades complexas

Ao se mostrar eficaz à compreensão da totalidade das pequenas sociedades tribais, o


Estruturalismo começa também a ser utilizado por pesquisadores voltados ao comportamento
das sociedades concentradas nos grandes centros urbanos, as chamadas sociedades
complexas.13 Na segunda metade do século XX, a linguagem religiosa entra como ponto
determinante à formação de grupos que caracterizam sociedades simples ou complexas,
inserida na categoria de estudos empenhada na decodificação dos sistemas de dominação e
nas formas de resistir a esses mesmos sistemas.

Nas sociedades complexas verifica-se, historicamente, que a religião foi mantida pelas
relações sociais submetidas à organização política do Estado. Da antiguidade às sociedades
modernas o Estado fora responsável pela definição de linguagens comuns para a formação de
consensos. A religião esteve presente na ação política, nas técnicas da economia, nos valores
da construção moral, na sexualidade e nas relações de parentescos, as relações sociais
cotidianas e os hábitos praticados, idealizados num referencial teórico, fazem parte das
implicações culturais, entendida como processo de transmissão e construção de saberes.

Nas sociedades contemporâneas do século XX, mesmo diante da secularização do Estado, a


religião continua legitimando significados atribuídos a ação coletiva transmitida de uma
13
Cf. VERON, 1983; BOTTOMORE, 1983, p.28.
180
geração à outra ou mesmo no processo de definição de novos padrões capazes de
proporcionar novas tradições a partir das rupturas ou cisões socioculturais. 14

Nas décadas de 50 e 60, os pesquisadores, ao verificar as características básicas das


sociedades industriais, suas mudanças, implicações sociais do rápido progresso da ciência e
da tecnologia, do impulso econômico e dos movimentos sociais, também almejavam atingir a
compreensão da participação da religião na complexidade das sociedades urbanas. Este
contexto levou à utilização de novas categorias de conceitos relacionado a ideia da construção
das estruturas sociais relacionadas as estruturas de pensamento.

As estruturas sociais nas sociedades contemporâneas foram identificadas como elementos que
se caracterizam por somatórias conjunturais. Tais conjunturas são compostas pelas
instituições e pelos grupos de uma localidade, responsáveis pela definição de paradigmas aos
grupos que se destinam. A religião se despontou, nessa abordagem, como um elemento
estruturante das sociedades contemporâneas, persistindo no contexto cultural dos diferentes
segmentos da sociedade urbana industrial. Diante da ausência da difusão de uma religião de
Estado, pequenos e grandes grupos religiosos se formam atendendo às múltiplas
contingências materiais e culturais da sociedade ao qual pertence.

Quanto à metodologia de pesquisa, o Estruturalismo utiliza vários métodos, sem o


compromisso de limitar-se a um único, valorizando o objeto de análise na construção das suas
fontes que se tornam também responsáveis pela delimitação da abordagem teórica.
Comumente os métodos histórico, comparativo, funcionalista e formalista, são aplicados em
uma abordagem crítica para entender a religião na sociedade. O termo estruturas sociais
tornou-se comum nas abordagens sociológicas, para entender os papéis sociais das
instituições.15 A estrutura social deve ser pensada e distinguida como um sistema de relações
“ideais” e “reais” entre pessoas, o que envolve a análise do discurso em contraste com as
práticas efetuadas nas relações empíricas da sociedade. A estrutura social pode ser
compreendida como as instituições e os grupos que ajudam a definir uma sociedade
complexa. Parte-se do pressuposto de que a existência das relações sociais exigem
disposições e processos, tais como: um sistema de comunicação; um sistema econômico; um
sistema de autoridade e/ou distribuição do poder; organizações e dispositivos que acolhem
novas gerações; perpetuação das características pré-estabelecidas pelas gerações anteriores,

14
Cf; BERGER, 1985, pp.77-95.
15
Cf. BERGER, 1985; ELIAS, 1989.
181
por meio dos conhecimentos adquiridos, que envolvem, mormente a escola e a família; e um
sistema ritualístico, dentre outros sentidos perpetrados pelo sentimento religioso que servem
para manter ou aumentar a coesão social e dar sentido de valor aos acontecimentos
significativos àquele grupo.

Dentre as análises sobre a participação da religião nas sociedades complexas industriais, se


desenvolve a obra de Pierre Bourdieu, nas décadas de 1960 e 1970. Bourdieu procurou
entender e demonstrar a participação da educação letrada na transição da sociedade feudal
para a capitalista.16 Ao estudar os processos de transmissão e a herança do capital escolar, um
bem cultural produzido pelos setores favorecidos pelo sistema de ensino francês, Bourdieu
desenvolveu um referencial teórico-metodológico que observa na educação sistematizada
pelos clérigos católicos um grande legado à cultura francesa. As obras de Bourdieu, em
princípio, fazem parte daquelas voltadas ao estudo da ideologia e da cultura. Sérgio Miceli,
tradutor de Bourdieu no Brasil, apresenta, na Introdução das obras Economia das trocas
simbólicas (1999) e Economia da trocas linguísticas (1998) o percurso historiográfico e uma
síntese das linhas de pensamento concatenadas por Bourdieu no contexto ideológico em que
produziu as suas obras na França. Na visão de Miceli os sistemas de práticas (fatos) e
representações (ideias), implícitos no abrangente conceito de cultura, têm acompanhado duas
tradições ideológicas: a kantiana, com os herdeiros de Cassirer, Sapir, inclusive Durkheim e
Levi-Strauss; e, a marxista e weberiana. A primeira considera a cultura uma extensão dos
sistemas simbólicos, ou seja, do mito, da linguagem etc; sistema simbólico que ocupa a
“qualidade de instrumento de comunicação e conhecimento responsável pela forma nodal de
consenso, qual seja, o acordo quanto ao significado do mundo” .17 A segunda vertente verifica
a cultura e os sistemas simbólicos como um instrumento de poder e legitimação da ordem
vigente.

Na verdade, o que Bourdieu pretende é retificar a teoria do consenso por uma


concepção teórica capaz de revelar as condições materiais e institucionais que
presidem a criação e transformação de aparelhos de produção simbólica cujos
bens deixam de ser vistos como meros instrumentos de comunicação e/ou
conhecimento”.18

16
Cf. BOURDIEU, 1999.
17
BOURDIEU, 1999, p. 12.
18
BOURDIEU, 1999, p. 12.
182
Nas abordagens preliminares de Bourdieu, destacam-se os estudos de Durkheim, tanto sobre a
religião como sobre a educação.19 Em seu estudo da ideologia e da cultura Bourdieu avança a
discussão sobre a relevância da educação sistematizada para a compreensão de uma estrutura
culturalmente desenvolvida no seio da sociedade de classes. Para tanto, Bourdieu utiliza como
objeto de análise a estrutura simbólica de que é capaz o campo religioso, atrelada aos sistemas
de ensino modernos, ou seja, ao modelo lingüístico e semiológico criado pela educação
formal religiosa em meio aos grupos urbanos.

Pela utilização do paradigma durkheimiano, Bourdieu chega à integração lógica e social das
representações coletivas engendradas pelos sistemas simbólicos capazes de estabelecer
funções políticas, uma vez que atribuem lógica de ordenação ao mundo. Ele se posiciona
contra os estudos da sociologia que verificam os fenômenos simbólicos como um mero
sistema de conhecimento sem relação com o sistema de ordenação do poder. Bourdieu aborda
o conhecimento que abrange o princípio de sustentação da eficácia dos símbolos em seus
aspectos internos, que lhes conferem poder político. Assim, antes de se aprofundar na cultura,
ele perpassa o campo simbólico em que operam os bens aí produzidos. A cultura, neste caso,
é sistêmica e simbólica, é um conjunto de significante/significado eficaz, que proporciona
uma percepção da realidade indissociável da função política. Ao relevar o aspecto da eficácia
política do símbolo, Bourdieu relega a classificação proposta por Durkheim, que elimina a
problemática da dominação.

“Para Bourdieu, a organização do mundo e a fixação de um consenso a seu respeito constitui


uma função lógica necessária que permite à cultura dominante numa dada formação social
cumprir sua função política-ideológica de legitimar e sancionar um determinado regime de
dominação”.20 A religião continua se posicionando como um fator eficaz na elaboração de
consensos. Sem o consenso, não haveria regras de dominação capazes de ordenar os materiais
significantes de um sistema simbólico, ao ponto de fazer com que os diversos sistemas de
regras que identificam estruturas não fossem capazes de desarticular o todo unificado. O
consenso unifica as representações individuais que remetem às relações estabelecidas,
desencadeando um sistema de classificação dado pela observação e noção da realidade
adquirida.

19
Cf.DURKHEIM, 1965.
20
BOURDIEU, 1999, p..16.
183
Os sistemas simbólicos da religião, tendo sido organizados internamente por uma
classificação atribuída pela sociedade educativa, possuem autonomia e independência,
possuem linguagens dotadas de lógica própria. Particularmente sobre a sociedade capitalista,
a complexidade da divisão do trabalho desencadeia a contradição da sociedade de classes,
cuja desigualdade é resultado das modalidades de capital econômico e cultural. Com
Bourdieu a educação serve como um pressuposto vigente no objeto de análise do pesquisador
da cultura, que visa os mecanismos e processos de formação dos valores coletivos. Ela torna-
se um suporte do agente social, objetando as leis segundo as quais este suporte tende a
reproduzir sujeitos dotados de disposição, capazes de criar práticas estruturantes. Os recintos
educacionais e as instituições religiosas criam estruturas que, entendidas num princípio
teórico-metodológico próprio ao objeto de análise, atingem o sujeito histórico. Em seu
método Bourdieu capta as variáveis funcionais que permitem definir cada modalidade
enquanto configuração específica e concreta do mecanismo estudado, separando os fatos
sociais, os traços contingentes e os traços funcionais estritamente determinados por sua
posição no sistema ou estrutura de que fazem parte.

História Cultural

A História Cultura francesa a partir da década de 1980, sob as influências da antropologia e


sociologia estruturalista, forneceu um novo impulso aos estudos da religião colocando-a no
horizonte dos seus objetos de análise.

Sob a perspectiva das Ciências Sociais, a História Cultural verificou que as práticas e
representações21 vigentes na estrutura de uma dada religião não podiam ser tomadas
conforme um sistema de relações objetivas; cumpre antes integrá-las no âmbito da
significação do fenômeno a ser explicado. A História Cultural forneceu nova abertura a
abordagem das práticas e representações de uma cultura religiosa, pela revisão dos conceitos
que revelam os significados da religião no ordenamento de um grupo social

Para Chartier (1990) os conceitos de práticas e representações remetem ao sentido dos


hábitos, das condutas, do comportamento inerente ao cotidiano e aos acontecimentos
extraordinários dos ritos de passagem comuns em qualquer sociedade, associados, por

21
Cf.CHARTIER, 1999.
184
exemplo, às atividades que caracterizam o nascimento, a emancipação social do grupo, a
maturidade, a morte, os festejos comemorativos, entre outros. As representações podem ser
consideradas a partir de duas noções distintas: aquela que substitui um objeto por uma
imagem que não está presente, mas que é idêntica ou muito próxima do real, sendo capaz de
ser reconstruída em memória e figurar tal como ela é; e aquela que é utilizada como
apresentação pública de algo ou de alguém.

A abrangência da religião, como objeto de análise que emerge no contexto da organização


sociocultural, política e econômica perpassa a tentativa de defini-la como um campo
autônomo do saber. A autonomia do objeto de pesquisa religião vem se definindo com
metodologia e conceitos próprios, quando circunscrita a História das Religiões 22 e a Ciência
da Religião.23 A delimitação dos estudos da religião a partir da História das Religiões e das
Ciências da Religião se deu pela abrangência qualitativa e quantitativa do próprio objeto de
análise, definido pela sua presença na realidade empírica e pelos referenciais teóricos criados
em torno do conceito religião. Sob a perspectiva da História e das Ciências da Religião busca-
se a autonomia metodológica do estudo da religião, no levantamento e análise das fontes, e
nas definições conceituais.

A História das Religiões, em princípio, propôs um estudo comparado das tradições religiosas,
que emergiram junto às civilizações de cada continente. Foi reconhecido que o
desenvolvimento das Religiões Históricas se deu junto com a tradição escrita. As abordagens
efetivadas neste campo de estudo proporcionaram definições mais complexas da religião.
Valendo-se dos referenciais da Antropologia e da Sociologia, foi possível à História das
Religiões identificar a religião como aspecto recorrente da organização dos grupos humanos
do passado.

Considerações finais

A trajetória da pesquisa dedicada à compreensão da cultura apresenta consigo a trajetória dos


estudos sobre o comportamento religioso. Comumente a religião aparece na abordagem da
Nova História Cultural, da Antropologia, da Sociologia, da Linguística, da Literatura e de
outras áreas das Ciências Sociais, como objeto de pesquisa que pode ser entendido de forma
22
Cf. HERMANN, 1997; JULIA, 1995, HOORNAERT.
23
Cf. FILORANO; PRANDI, 1999.
185
isolada ou mesmo implícita a outros objetos de análise da realidade social. Assim a religião se
define como uma característica da sociedade associada aos aspectos político, econômico e
sociocultural.

Assim considera-se nesta abordagem que a religião, onde quer que esteja presente, é um local
de produção de linguagem, que, como instrumento de comunicação, produz uma estrutura de
conhecimento e, consequentemente, um sistema moral, ético e cultural ao grupo envolvido. A
ascensão da sociedade liberal capitalista na Europa e, por conseguinte na América, forçou os
sistemas religiosos organizados no regime colonial à reorganização interna. Assim, a
configuração dos sistemas religiosos também passa por um processo de complexidade, na
busca por ampliar seus esquemas linguísticos e de pensamento intermediados por uma
instituição de apropriada. A organização e reorganização dos sistemas religiosos atende às
exigências da cultura moderna contemporânea, capazes de dar forma explícita e implícita ao
pensamento vigente nas representações e na ação cultural de um grupo, que integra ou
dissocia o grupo da sociedade complexa ao qual pertence. A compreensão do pensamento
religioso da sociedade moderna contemporânea exige a verificação das instituições sociais
que atuam como detentoras do discurso religioso, frente às relações de concorrência dos bens
culturais que despontam na contingência histórica.

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VERON, Elis eo. Ideologia, estrutura e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1977.

188
A religião no mundo do trabalho: notas teóricas de uma pesquisa
histórica

Lyndon de Araújo Santos24

Introdução

Os historiadores da religião vêem e trabalham a religião como dimensão fundamental do devir


histórico e social das sociedades. A religião em suas formas institucionais e populares está
numa relação direta com as ações das pessoas, dentro de situações históricas, mas cujo
referente é o sagrado, o além, a vida pós morte, a eternidade, o valhala ou o paraíso, a relação
com o que é considerado transcendental. O lugar da religião no mundo das coisas ultrapassa
os próprios limites que a religião institucional cria para si, determinando o cotidiano das
pessoas.

Nem reflexo e nem comportamento infantil primitivo a religião proporcionou e ainda


proporciona sentidos às ações e determinam decisões e práticas de indivíduos, grupos e até
mesmo nações e civilizações. Nas relações entre ocidente e oriente perpassam os legados
milenares das grandes religiões e suas variantes regionais e nacionais, e os impasses
diplomáticos, políticos, econômicos e raciais não podem ser tratados sem o elemento
religioso.

Enfim, as perspectivas sobre a religião se enumeram e o pesquisador opera escolhas


escolhidas em seus itinerários de pesquisa, dialogando com os teóricos à luz de sua própria
prática de investigação. O que propomos aqui é discutir a relação e a presença da religião ou
do religioso nas esferas da vida social onde ela não está constituída como tal, ou seja, nos
templos, nos papel dos sacerdotes, nos códigos doutrinários, nos ritos e na dimensão
eclesiástica.

Como extensão, queremos pensar como ela atuou por meio das posturas e das mentalidades
de indivíduos situados em contextos onde o sagrado intervém como referente e fundamento

24
Professor do Departamento de História da UFMA, vinculado aos Programas de Pós-Graduação em História e
em Ciências Sociais. Coordenador do GPHR – Grupo de Pesquisa História e Religião. Pós-doutorando junto ao
Programa de Pós-Graduação em História da UFF/RJ. Bolsista FAPERJ.
189
de escolhas, discursos e atitudes, nos ambientes e nos mundos onde ela não está representada
oficialmente.

Dominique Julia (1976) e Pierre Sanchis (1997) nos ajudam pensar numa história religiosa
sem ter como ponto de partida as instituições religiosas e os seus sacerdotes oficiais, mas a
religião como força cultural que constitui sentidos para as ações dos sujeitos. George Simmel
sugere ver a religião onde ela não está, seja em comportamentos secularizados ou em gestos
cotidianos do processo de socialização.25

O propósito de Simmel sobre a religião consiste, então, em analisar a


religião ao mesmo tempo como forma e como conteúdo: de um lado, como
formalização particular da existência humana que se focaliza sobre certos
conteúdos e, do outro, como um conteúdo particular que entra nas formas
gerais da socialização (p. 132). (...) Para Simmel, tudo é suscetível de se
tornar religioso, e nada é religioso em si mesmo (p. 137).

Este capítulo apresenta sinteticamente o itinerário de pesquisa inacabado, trabalhando


algumas notas teóricas à luz das fontes até aqui analisadas. Trata-se de um ensaio do que está
a caminho até aqui em termos de pesquisa e se propõe reflexivo no processo de sua
construção narrativa. O objeto de estudo, porém, deve ser compreendido dentro de outras
dimensões que se abrem e que exigem deslocamentos metodológicos diante das fontes. Por
fim, vamos analisar a presença da religião no mundo do trabalho analisando situações
concretas que se mostraram no cotidiano fabril. Não há, nas limitações deste espaço, abranger
todo o período de duração da fábrica, por isso, demarcamos sua temporalidade nos fins do
século XIX e início do seculo XX, quando iniciou suas atividades na Mangueira.

Itinerário de Pesquisa

Esta discussão introduz a pesquisa sobre uma fábrica de chapéus no Rio de Janeiro cujos
proprietarios foram protestantes. Trata-se da Fábrica de Chapéus Mangueira que teve um
tempo longo de existência, desde os seus primórdios no ano de 1857-1868 até o seu
fechamento na década de 1960. Até a primeira decada do século XX era conhecida como
Fernandes Braga & Cia. (VER ANEXO 1) mas, por conta de sua localização, passou a ser
25
HERVIEU-LÉGER e WILLAIME, 2009.
190
identificada como Fábrica de Chapéus Mangueira. Seu proprietário foi um imigrante portguês
protestante e membro da Igreja Evangélica Fluminense no centro do Rio de Janeiro. Esta foi
uma igreja de regime eclesiástico congregacionalista organizada em 1858, a primeira a ter em
sua membresia brasileiros adeptos e participantes.

Inicialmente tivemos contato com esta temática no período do mestrado, quando, ao estudar
os primórdios do protestantismo no Rio de Janeiro (século XIX), nos deparamos com fontes e
informações históricas sobre a existência e as atividades de uma fábrica de chapéus. 26 Já no
exame de qualificação, o saudoso Prof. Dr. Antonio Gouvea Mendonça nos chamou a atenção
para esta relação entre a religião e o mundo da economia, e apontando a fábrica como um
caso singular de estudo e análise no contexto brasileiro.

De fato, vislumbramos como estavam imbricados os processos entre a construção dos


sentidos de uma crença religiosa com os contextos do trabalho, da produção e da economia. A
fé reformada construiu seus próprios sentidos na sociedade em meio a um conjunto de
mudanças sociais engendradas pela urbanização. O doutorado reforçou a necessidade de
retomada de sua análise, quando verificamos a posição orgânica desta fábrica no
financiamento de muitos projetos ligados ao mundo protestante nascente, na passagem do
império para a república. 27

Percebemos, contudo, o quanto o papel da fábrica foi além do campo religioso, pois esteve
imbricada em outros processos históricos vinculados à própria história social do Rio de
Janeiro. Dai a necessidade de se ter uma compreensão histórica mais abrangente desta
unidade de produção, retomando a pesquisa agora num pós doutoramento.

Entretanto, dada a necessidade de delimitação, tomamos a crença religiosa protestante como


elemento estruturador e organizador de um conjunto de práticas e de valores inseridos no
mundo do trabalho fabril.

O mundo do trabalho é o conjunto de fatores que engloba e


coloca em relação a atividade humana de trabalho, o meio ambiente em que
se dá a atividade, as prescrições e as normas que regulam tais relações, os
produtos delas advindos, os discursos que são intercambiados nesse
processo, as técnicas e as tecnologias que facilitam e dão base para que a
26
SANTOS, 1995.
27
SANTOS, 2006.
191
atividade humana de trabalho se desenvolva, as culturas, as identidades, as
subjetividades e as relações de comunicação constituídas nesse processo
dialético e dinâmico de atividade. Ou seja, é um mundo que passa a existir a
partir das relações que nascem motivadas pela atividade humana de
trabalho, e simultaneamente conformam e regulam tais atividades. É um
microcosmo da sociedde, que embora tenha especificidade é capaz de
revelá-la.28

Neste microcosmo da sociedade que foi a fábrica se por um lado esta crença incidiu nas
relações do mundo do trabalho, por outro, a atividade econômica transferiu recursos para o
sustento de missionários, a construção de patrimônios físicos como templos, o investimentos
em publicações da imprensa evangélica e formas de assistencialismos como a construção do
Hospital Evangélico do Rio de Janeiro. Foram estas transferências de recursos que serviram
como instrumento de afirmação de uma minoria religiosa nascente numa sociedade
hegemonicamente católica.

A escolha escolhida do objeto, diante das tantas possibilidades deste estudo histórico, se
justifica, por um lado, pela continuidade e aprofundamento das pesquisas na área da história
das religiões e do protestantismo no Brasil em particular. Por outro lado, significa estudar a
religião fora dos espaços oficiais sagrados que ela mesma institui como os templos, por
exemplo, diversificando os olhares sobre o protestantismo para além do eclesiástico e
compreendendo como a religiosidade estabeleceu padrões ajustados a outros campos ou
esferas sociais.

Sendo assim, a fé religiosa protestante foi elemento fundamental que singularizou uma
experiência dentro do mundo da produção e de sua ética determinando ações, decisões e
posturas, afinadas com o advento da modernidade em diferentes esferas.29 A pesquisa em seus
desdobramentos inevitáveis confronta esta hipótese, na medida em que as fontes, os dados, as
informações colocam outras perspectivas outrora não pensadas.

Trata-se de uma mudança no modo de se fazer - ou fabricar - uma historiografia do


protestantismo analisando-o nos espaços do cotidiano das relações sociais e culturais,
visualizando as práticas e o vivido dos sujeitos históricos. Em outras palavras, um

28
FIGARO, 2008, p. 92.
29
SANTOS, 2008.
192
protestantismo não eclesiástico se constituiu no mundo das relações sociais, especificamente
no mundo da produção.

Outras Dimensões

A singularidade e a relevância do nosso objeto situam-se para além da sua longevidade,


praticamente um século de funcionamento da fábrica, voltado para o segmento do vestuário e
da moda, dentro das condições do capitalismo brasileiro. Antes, por ela perpassaram
mudanças e relações (sociais, religiosas e raciais, de poder e de gênero), indicadoras das
transformações mais amplas em curso na modernidade inserida na história social do Rio de
Janeiro.

A pesquisa enfoca a religiosidade como seu objeto, mas outras dimensões também centrais
são necessárias para a compreensão da sua historicidade. E para se compreender o religioso
neste processo o itinerário da pesquisa requer a investigação em outras dimensões
relacionadas. Pois,

... o historiador não precisa se fixar necessariamente em apenas uma destas


dimensões. (...) ele pode atuar na interconexão de uma História Política com
uma História Social, de uma História Demográfica comuma História das
Mentalidades, de uma Geo-História com uma História Econômica, apenas
para dar alguns exemplos. As combinações possíveis, a dois ou a três, são
intermináveis, e dependem da natureza do objeto historiográfico que está
sendo constituído.30

Apontaremos aqui algumas destas dimensões que o nosso objeto historioráfico em sua
natureza constitui.

Imigração. A primeira diz respeito à imigração de portugueses para o Brasil a partir de


meados do século XIX. Os proprietários da fábrica de chapéus foram migrantes jovens para o
Rio de Janeiro em busca de oportunidades de trabalho e emprego, situados no contexto luso-

30
BARROS, 2010, p. 132.
193
brasileiro de remessa de mão de obra, transferência de tecnologias e instrumentos
rudimentares.31 Como nos afirma José D’Assunção Barros,

se queremos ultrapassar o questionamento meramente quantitativo (quantos


migram?), deveremos começar a fazer a pergunta certa: “quem migra?”
Enquanto a pergunta sobre quantos migram pode não ser uma pergunta
necessariamente interessante para o historiador [...], já as perguntas “quem
migra?” e quem “não migra?” tornam-se necessárias em todos os casos. É
preciso ir, por exemplo, ao âmbito da família, aos ciclos da vida familiar, às
redes de solidariedade locais. 32

Família. A partir desta questão, a história familiar dos proprietários por meio das gerações e
dos ciclos familiares se torna um importante eixo de compreensão. Ao mesmo tempo, a
longevidade da fábrica correspondeu à duração de quatro a cinco gerações que perpetuaram
valores, patrimônios, práticas e mentalidades, responsáveis, por decisões, ações,
subjetividades, visões de mundo, onde a crença protestante foi central.

Mundo do Trabalho. Por sua vez, a fábrica integrou-se ao mundo do trabalho e da produção,
a partir das condições próprias da indústria capitalista, empregando estrangeiros, negros,
brancos, mulheres e adolescentes como aprendizes artífices. 33 As tecnologias empregadas, as
lógicas da produção, a utilização de matérias primas, os maquinários, a divisão do trabalho, as
distribuições de funções e de tarefas, a mão de obra e as normatizações disciplinares,
constituem um conjunto fundamental de análise, relacionado a outras práticas do mundo da
produção.34

Mercado da Moda. Outra dimensão foi o mercado da moda e, nela, o uso do chapéu como
utensílio ou peça fundamental do vestuário cumprindo um papel social. O chapéu fazia parte
do vestuário de qualquer cidadão que fizesse parte da civilização e, conforme a visão da
31
MATOS & HECKER, 2008; MENDES, 2007; MENEZES & CYPRIANO, 2008; PEREIRA, 2002;
FLORENTINO e MACHADO.
32
BARROS, 2010, p.189.
33
ARAÚJO, 2009; AZEVEDO, 2011; CARONE, 1978; DE LUCCA, 2001; LOBO, 1978.
34
FRANZINA, CARNEIRO e CROCCI, 2011; HARDMAN e LEONADI, 1982; PETTA, 2004.As relações de
gênero e raciais se deram no cotidiano da fábrica, constituindo conflitos e contradições inerentes ao mundo da
produção, da utilização da mão de obra feminina e das formas de controle sobre os corpos no território fabril. Tal
foi a experiência de Ruphina Matos que, desde a juventude trabalhou na fábrica na função de arremate e
acabamento manual do chapéu. Ruphina trabalhou nesta tarefa tanto no espaço fabril como no doméstico,
caracterizando uma forma de exploração da mão de obra feminina numa fase de indefinição das fronteiras entre
o espaço fabril e a casa (SANTOS, 1995).

194
época, consequência da situação moral de um indivíduo ou de um povo.35 Além de inserir o
indivíduo na civilização e na moral, o chapéu obedecia a normas de comportamento,
indicando a escala social do usuário e até mesmo como símbolo da identidade de um
verdadeiro republicano.

O jornal O Paiz, no sábado, 8 de fevereiro de 1890 noticiou:

“Viva a República!!!!! Deodoro, R. Barbosa, Q. Bocayuva, B. Constant,


Wandenkolk, A. Lobo, S. Ferraz, D. Ribeiro, C. Sales, L. Godofredo, L.
Trovão, J. Manuel, S. Jardim, J. Pinheiro, são estes os chapéos
modernissimos. Qual o republicano que deixará de usar um chapéo destes?
Só se encontram na rua do Ouvidor n. 103, nova Chapelaria Universal, de
Jacintho Lopes. É quem está na ponta! Sabem por que está na ponta? Por
ser a melhor chapelaria da rua do Ouvidor. Não se enganem! Não tenho
filiaes. É 103 Ouvidor – Chapelaria Universal 103!!”.

Miécio Tati reconstituiu a visão social do uso do chapéu a partir dos textos de Machado de
Assis que, como poucos, falou sobre a vida carioca no séc. XIX, de seus costumes, valores e
instituições. Era uma peça indispensável ao vestuário masculino e o não habitual era andar
sem chapéu pelas ruas. Era uma cobertura obrigatória para as cabeças masculinas que
poderiam ser reconhecidas pelo modelo que usavam. Comprados na Corte ou fabricados em
Paris, "o importante era cobrir-se", de acordo com as situações e os contextos. O ato de
escolher um modelo de chapéu foi assim descrito por um dos seus personagens: “A escolha
do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é regida por um princípio
metafísico”.36

Cultura, violência e espaço. Da mesma forma, as dimensões da cultura e do espaço também


se mostraram nos cenários vividos no seu percurso histórico. A Fábrica de Chapéus
Mangueira (FCM) funcionou como agente redefinidor do modo como se deu a ocupação dos
subúrbios da cidade do Rio de Janeiro e no surgimento de populações habitantes das periferias
e dos morros da Mangueira e do Telégrafo, sobretudo na região de São Cristóvão, São
Francisco Xavier e adjacências.

35
NEEDELL, 1993, p. 200.
36
TÁTI, 1991, p. 120.
195
A construção de casas próximas à fábrica para os operários fez surgir um bairro de
trabalhadores, instituindo práticas culturais e modos de vida a serem analisados
historicamente. Neste sentido, a FCM pode ser tomada com um sujeito e um território
responsáveis por processos sociais condicionados pelas forças sociais mais amplas.

A cultura negra dos cultos africanos como a macumba, do maxixe, do batuque, do samba e de
outras formas engendrou-se no processo desordenado de ocupação desta região, marcada pela
aguda violência sofrida e reproduzida por sua população sumetida à favelização em curso nas
primeiras décadas da república. Ora, a fábrica estava, a partir de 1898 em diante, ao pé de
uma grande mangueira onde o trem vindo da Central do Brasil fazia a sua primeira parada, a
“estação primeira da mangueira”.

Estas outras dimensões reforçam a necessidade de vermos como processos históricos


aparentemente distintos e separados atuam de alguma forma relacionados. Não se trata de
tomarmos uma totalidade que abrange uma realidade em sua pretensão questionável, mas de
se ver múltiplas esferas de um real referente que se apresenta de forma fragmentada em
vestígios de memórias pelas fontes, pela documentação.

A Religião no Mundo do Trabalho

À luz de Max Weber (2001) em sua compreensão da afinidade eletiva entre o protestantismo,
o sistema capitalista e a ordem moderna, a experiência da FCM demonstra historicamente
como o calvinismo puritano foi adotado, assimilado e aplicado no mundo da produção, dentro
das suas condições no Brasil. O protestantismo na sua forma calvinista, representou um passo
na secularização do ocidente em direção de uma sociedade onde o sagrado não mais impõe o
sentido de totalidade à existência humana.

No entanto, onde esta lógica e esta racionalidade moderna se colocavam com mais força, o
mundo do trabalho e da produção, a religião estava presente de alguma forma, o que relativiza
a secularização como processo que exclui ou extingue o religioso.

Na festa da inauguração das novas instalações na Mangueira, em 1898, a relação entre a


religião e o mundo do trabalho aparece explícita na ênfase dada ao trabalho presente no

196
discurso do ministro evangélico, na transformação do espaço fabril em espaço sagrado e nos
cânticos religiosos cantados pelos operários.

A festa da inauguração começou por uma predica do ministro evangelico


Gonçalves dos Santos, que dirigiu a palavra aos operarios concitando-os ao
trabalho e terminou saudando o Sr. Fernandes Braga. Depois de, por seu
turno, falar o professor de inglez Leonidas da Silva, foram entoados
diversos córos religiosos pelos operários presentes, e, acto continuo, a um
gesto do Sr. Fernandes Braga, começaram a funccionar todos os
machinismos, por entre os aplausos do grande numero de cavalheiros,
senhoras e representantes da imprensa, convidados para essa festa.37

Contudo, outras relações apareceram no uso paralelo da estrutura da fábrica como lugar da
produção de chapéus e como lugar sagrado visando ações proselitistas e religiosas.

Em primeiro lugar, isto de dava na contratação de operários que eram prioritaramente


evangélicos ou que reproduzissem uma ética de trabalho e de comportamento semelhante à
evangélica protestante: não jogar, não fumar, não beber, etc. Mas o número de trabalhadores
evangélicos era muito reduzido, porquanto este segmento era numericamente pequeno. Daí
que os operários teriam que se amoldar à postura padrão.

Os códigos internos de disciplina e de comportamento no ambiente de trabalho seguiam de


perto a moral religiosa, sobretudo sobre as mulheres, as quais representavam grande parte da
mão-de-obra empregada. Eram as mulheres que faziam a parte do acabamento do chapéu, na
forração e na colocação das fitas, na sequência de uma linha de produção que dependia de um
maquinário sofisticado, mas que dependia também do trabalho e do arremate manuais em
cada etapa da produção. O asseio e a higiene pessoal, as conversas sadias, o cuidado com o
ambiente, os horários observados rigorosamente, as idas ao banheiro reguladas, todas estas
posturas eram esperadas no ambiente de trabalho.

Em segundo lugar, deu-se a abertura de uma congregação protestante junto ao bairro de casas
operárias construído pela fábrica, com serviços regulares de cultos, com o propósito de
converter os operários. Juntamente com a inauguração da fábrica foi aberta a igreja pelos idos
de 1898-1903, mas que não teve continuidade em suas atividades. Este fato chama-nos a

37
Jornal O Paiz – 21 de setembro de 1898.
197
atenção para a possibilidade de vermos como a própria fábrica reproduziria em si mesma um
papel como sendo uma igreja, onde os operários seriam a congregação, o pastor seria o
patrão e o espaço fabril o templo.

Em terceiro, a fábrica contratava vendedores viajantes que eram também missionários ou


evangelistas, que distribuíam os chapéus nos postos de revenda no território nacional, mas
que também distribuíam literatura evangélica e Bíblias. Este dados carecem de mais
informações das fontes, mas o início do protestantismo no Brasil se deu por meio da ação
efetiva dos colportores, vendedores ambulantes de literatura religiosa e de Bíblias nas ruas das
cidades e nos interiores das fazendas. A atuação dos mascates era intensa neste período de
ampliação do mercado interno consumidor de vários produtos. Ainda no nivel da suspeita, a
fábrica empregou estes mascates da fé ou missionários que cumpriam uma dupla tarefa de
vender chapéus e divulgar a mensagem religiosa.

Por fim, os recursos da fábrica eram disponibilizados para suprir várias frentes da expansão
religiosa como a construção de templos, o sustento de pastores e missionários, a prática da
filantropia, o financiamento de obras assistenciais e de periódicos protestantes. A Associação
Cristã de Moços/ACM, movimento para eclesiástico voltado para a juventude com propósitos
éticos, morais e espirituais, foi financiada e sustentada pela FCM. Da mesma forma, as
sociedades bíblicas estrangeiras foram diretamente ajudadas pela fábrica, responsaveis pela
distribuição de Bíblias em todo o território nacional.

A FCM seria uma espécie de fábrica missionária, um suporte para o protestantismo


minoritário em suas ações proselitistas no contexto de sua afirmação social. Como já referido
antes, seria até mesmo um espaço equivalente a uma igreja, uma congregação cujo papel era o
de divulgar a mensagem religiosa. Diante do presidente Campos Salles em visita à fábrica em
1903, Braga afirmara que “Christo era o cabeça desta casa”, frase que seria alvo de críticas
mais tarde.

Mas esta condição não a isentou de enfrentar os conflitos próprios do mundo da produção e
do trabalho, como foram as greves nos anos 1903, 1906 e 1917. Este ciclo de greves colocou
à prova as práticas reais e concretas na relação entre o capital e o trabalho, próprias de
qualquer unidade fabril. Em 1903 e em 1917, as greves foram gerais envolvendo outras
modalidades de fábricas no Rio de Janeiro e em São Paulo, mobilizando a classe oprária em
sua incipiente organização classista por meio das associações operárias.
198
Em 1906, entretanto, a greve foi específica na FCM, quando a Associação de Classe Protetora
dos Chapeleiros reagiu à diminuição salarial na produção de chapéus, uma medida tomada
pela fábrica diante da maior concorrência aos seus produtos.

Estranhamos muito que quem tão humanitário se quer mostrar, trazendo este
facto ao conhecimento publico, não se recorde de que com as suas arcas
cheias de ouro, ajudando a ganhar pelos operários de 20 e mais anos de
serviços, viesse sem motivo retirar a miseravel parcella de 100 réis em obra,
o que não é a primeira vez, visto que com ardil e astucia de hábil pratico tem
o sr. Braga, já feito por diversas outras vezes reducções em geral ao seus
operários, durante a permanencia de sua fabrica na estação da Mangueira.
Ora argumentamos que a diminuição de 100 réis em mão de obra, é sério
motivo para gréve, porque? o operario consome o mesmo tempo fazendo um
chapéu de inferior qualidade como fazendo um chapéu fino. 38

Outras fábricas de chapéus de São Paulo e do Rio de Janeiro uiniram-se para lançarem
chapéus de qualidade inferior e de preços mais acessíveis no mercado. A Mangueira
especializara-se em chapéus finos e a entrada destes produtos mais baratos a levou refazer
suas próprias estratégias de mercado, alterando parte da sua produção para chapéus de custos
mais baixos.

Junto ao questionamento e não aceitação da redução salarial, o alvo da crítica da Associação


de Classe Protetora dos Chapeleiros foi a própria pessoa de José Luiz Fernandes Braga,
proprietário, em sua postura religiosa que encobria as suas estratégias como capitalista. Os
ataques da associação traziam uma ácida ironia à sua condição de ministro do evangelho ou
de pastor protestante, o que revela a imagem que era projetada sobre a sua pessoa. Faltava
aos chapeleiros o suporte político e ideológico no discurso de crítica, apelando ao fator
religioso, quando a questão de fundo era o conflito entre capital e trabalho.

Na fabrica do sr. Braga são explorados e sacrificados, tirando-se-lhes até o


tempo das refeições, para obrigal-os á limpeza de sua fabrica, admitindo-os
a titulo de aprendizes, torna-os criados de vassoura pela fortuna de 400 e
500 réis diários. Esta é uma das causas que deixamos consignadas,
38
Jornal Correio da Manhã – Sexta-feira, 27 de abril de 1906.

199
aguardando qualquer contestação para então pormos os pontos nos ii [sic],
lembrando desde já que talvez o sr. Braga tenha se esquecido de suas
multiplicadas leituras da Biblia sagrada, são as considerações expendidas
por S. Thiago, capitulo V. 1º.“Eia, vós agora, ó ricos, chorae, dando urros na
consideração de vossas miserias que virão sobre vós. 2º. – As vossas
riquezas apodreceram e os vossos vestidos têm sido comidos pela traça. 3º.
– O vosso ouro e vossa prata se enferrujaram, e a ferrugem deles dará
testemunho contra vós, e devorará a vossa carne como um fogo. Juntastes
para vós um tesouro que irá lá para os dias ultimos. 4º. – Sabei que o jornal
que retivestes (ou rebaixastes) aos trabalhadores, que ceifaram os vossos
campos, clama, e que os seus gritos subirão até aos ouvidos do Senhor dos
exercitos. Conclusão: - O sr. Braga fará o favor de ler o capitulo citado e
tirar o que de melhor encontrar para a salvação de sua alma. A directoria.39

A citação de trechos do Novo Testamento, a acusação de riqueza opulenta e da injustiça


praticada contra os trabalhadores levou à reação por parte de Braga e dos operários sensatos
que volveram uma veemente defesa pública contra as acusações da Associação. Estes
operários sensatos publicaram artigos nos jornais defendendo a honra e a integridade de
Braga, questionando a ação da associação dos chapeleiros.

A defesa de Braga se caracterizou como um ataque às práticas violentas da associação contra


operários que não aderiram à greve, justificando a diminuição salarial como legítima ante a
concorrência e a garantia do emprego sem o aumento da demanda de trabalho diário. Por sua
vez, a associação carecia de legitimidade de representação por conta da sua diretoria gozar de
privilégios e ter sido conduzida por meios questionáveis.

Ante à inexistência de legislação trabalhista, de sindicatos formais, da regulação das relações


entre patrões e empregados, de mesas de negociações, os conflitos eram resolvidos na
delegacia de polícia, sempre acionada pelos patrões ante as investidas violentas por parte dos
grevistas.

39
Jornal Correio da Manhã – Sexta-feira, 27 de abril de 1906.
200
Considerações finais

Vimos, portanto, que a fé reformada protestante teve neste espaço fabril uma vivência repleta
de possibilidades de análises históricas e sociais. Pela fábrica perpassaram relações sociais e
de trabalho, sociabilidades e subjetividades, tensões e conflitos, que reproduziram as
mudanças do período. Outras dimensões ainda a serem aprofundadas tiveram relação direta ou
indireta com a fé protestante.

Entretanto, procuramos dialogar com questões teóricas e metodológicas voltadas para a


abordagem da religião no mundo do trabalho, a partir da experiência concreta e singular de
uma fábrica. E, a partir das fontes já trabalhadas, exemplificamos situações em que a religião
apareceu diretamente relacionada ao mundo do trabalho, ou seja, onde ela não se manifesta
institucionalmente.

Nesta interseção histórica entre religião, economia e sociedade algumas questões de fundo
devem ser aprofundadas ainda, como as relações da fábrica com o processo de ocupação da
região suburbana do Rio de Janeiro e a favelização da população mais empobrecida, a
emergência da cultura negra representada pelos cultos africanos e pelo samba, o universo dos
trabalhadores no cotidiano fabril, a trajetória biográfica do seu proprietário, repleta também
de possibilidades de análises.

Enfim, o processo que denomina-se de modernidade teve nesta realidade singular suas
próprias dinâmicas de representações, discursos e práticas. Mas, para ver e narrar de maneira
mais precisa e co mais acuidade este processo, resta-nos adentrar as portas da fábrica num dia
comum de trabalho e senti-la como um trabalhador a sentiu e a vivenciou.

201
ANEXO 1

Fontes

Jornal O Paiz - 8 de fevereiro de 1890.

Jornal O Paiz - 21 de setembro de 1898.

Jornal Correio da Manhã - 27 de abril de 1906.

202
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205
206
Percursos e desafios metodológicos da pesquisa em
religiões afro-brasileiras: relato de um caso

Cristiana Tramonte1

Muitos desafios e impasses têm colocado a perspectiva interdisciplinar na pesquisa no centro


dos debates acadêmicos atuais e têm motivado grupos a articularem-se em torno de projetos
comuns envolvendo profissionais de diferentes áreas do conhecimento, buscando a
integralidade dos processos de produção do saber.

A pesquisa “Com a bandeira de Oxalá! Trajetória, práticas e concepções das religiões afro-
brasileiras na Grande Florianópolis” desenvolveu-se no estado de Santa Catarina durante
quatro anos e objetivou tratar da temática interdisciplinarmente entrecruzando os campos de
conhecimento da sociologia, antropologia, história, medicina, biologia, além das interfaces
com a educação e filosofia. A ausência de pesquisas sobre o tema em âmbito local, bem
como sua natureza mítica, exigiu a superação de um único recorte disciplinar, com a
consciência de que a perspectiva interdisciplinar é ainda uma experiência em elaboração, que
demanda aprofundamento de práticas e metodologias de pesquisa adequadas.

Surge, então, o primeiro desafio: a perspectiva interdisciplinar necessita de projetos coletivos,


estes sim, interdisciplinares. Entretanto, a tradição acadêmica hegemônica ainda é marcada
pelas fronteiras disciplinares e a investigação na pós-graduação pela individualização.
Portanto, a interdisciplinaridade é ainda uma construção epistemológica em elaboração
mesmo quando articulada a um grupo de pesquisa. Neste trabalho buscou-se fazer algumas
incursões, senão totalmente interdisciplinares, ao menos multidisciplinares, dentro das
limitações da estrutura institucional e do tempo e recursos disponíveis.

Na primeira parte do trabalho, intitulada “Trajetória histórica das religiões afro-brasileiras: de


Desterro2 à Grande Florianópolis”, foram os elementos da trajetória histórica que constituíram
o principal “fio da meada” em torno do qual foram sendo articuladas as abordagens de

1
Cristiana Tramonte é professora no Centro de Ciências da Educação da
Universidade Federal de Santa Catarina e realiza pesquisas no campo da
Educação Intercultural.
2
Nome anterior de Florianópolis até finais do século XIX.
207
variadas áreas do conhecimento: nos primeiros capítulos, uma discussão da área das Ciências
da Saúde, confrontando diferentes concepções de saúde e doença, mas sem perder a
perspectiva sociológica e antropológica do tema. As áreas da Medicina e da Biologia foram
revisitadas, objetivando compreender os fundamentos das teorias racistas-biologistas e as
motivações da medicina oficial para a perseguição sistemática aos praticantes das religiões
afro-brasileiras. A partir dos elementos da história, emergiram, nos capítulos subseqüentes,
discussões sobre o papel dos meios de comunicação e da imprensa alternativa junto ao grupo
de religiosos e sobre as implicações políticas dos fatos que envolvem os sujeitos e as variadas
forças sociais. Fazenda aponta que as possibilidades da interdisciplinaridade dizem respeito à
conjugação de diversos olhares, numa compreensão multifacetada de aspectos, “um
conhecimento que se situa na encruzilhada de vários saberes”.3 Assim, os ciclos históricos
foram abordados em seis capítulos, nos quais buscou-se este entendimento complexo da
trajetória do grupo.

A lógica do estabelecimento dos ciclos históricos seguiu também uma perspectiva


interdisciplinar: os períodos foram estabelecidos pela lógica intrínseca à dinâmica da
religiosidade - pelo movimento que causava no contexto em que se inseria, pelas
transformações que provocava e que, de forma complexa, também as remodelava no sentido
de abrir espaços de possibilidades no contexto regional.

Pela escassa documentação já mencionada, oriunda inclusive da natureza sensível da temática


e sua trajetória de perseguição e silenciamento, foi a perspectiva interdisciplinar que
possibilitou a remontagem do “quebra-cabeça” da lógica histórica, sociológica e
especificamente religiosa.

Um exemplo desta dinâmica é a Festa dos Pretos Velhos 4 ocorrida em 1971, em plena
ditadura militar. A análise plural de diversos elementos da mesma, recompõe as
possibilidades das religiões afro-brasileiras à época no contexto regional- o cenário (uma
senzala), os convidados entre eles autoridades do alto escalão político), e a decoração nas
paredes fotos de políticos tradicionais ao lado de imagens de orixás), abrem o leque de
possibilidades de interpretação interdisciplinar de compreensão do fenômeno.

3
FAZENDA, 2001, p. 114.
4
Entidade da Umbanda
208
Para a segunda parte da pesquisa, “As religiões afro-brasileiras na Grande Florianópolis na
atualidade: práticas, concepções e desafios”, um novo problema colocou-se: quais as
metodologias adequadas em uma pesquisa que busca a interdisciplinaridade, ou ao menos,
algumas incursões rápidas nesta?

Fazenda (2001) afirma que a interdisciplinaridade necessita ser trabalhada numa dimensão
diferenciada de conhecimento – aquele que não é explicitado apenas no nível da reflexão, mas
sobretudo na ação. Ou seja, as ações de investigação deveriam ser coerentes, desde o processo
de pesquisa até o produto (texto final). Aponta ainda que devem ser pressupostos
interdisciplinares o comprometimento, envolvimento e engajamento com o “objeto de
pesquisa”5. Assim, o “conhecimento vivenciado” é uma das chaves desta perspectiva.

Ressalta-se assim a essência mesma da investigação na área das Ciências da Religião.


Frequentemente, a espiritualidade do pesquisador permanece em evidência durante todo o
percurso da pesquisa. Mesmo quando este se concebe agnóstico, é freqüente que as
convicções e elaborações sensíveis e intelectuais do pesquisador se vejam constantemente em
xeque quando do desenvolvimento da pesquisa de campo frente aos dogmas, rituais e
preceitos de uma determinada religiosidade. Neste caso, há um distanciamento entre
pesquisador e seus sujeitos de pesquisa – o primeiro se debate entre os diferentes fenômenos e
crenças que observa, enquanto seus sujeitos de pesquisa simplesmente adotam os dogmas, por
crença religiosa e se isentam de explicá-los, criando aí o “vácuo” que o conhecimento
científico não valida.

Estava colocado, portanto, o desafio metodológico de abordagem investigativa junto ao grupo


pesquisado, de forma a garantir o envolvimento mencionado e emerge, neste contexto, a
intenção de “criar uma teoria nascida de uma prática intensamente vivida... o rompimento
dos estereótipos adquiridos no passado... às descrições padronizadas”. 6

Este foi o segundo momento da investigação, o mais difícil, desafiador e intenso, quando
buscou-se traçar um perfil do grupo praticante das religiões afro-brasileiras, tanto nos
aspectos físicos e especificamente territoriais, quanto simbólicos e religiosos.

5
Adoto a expressão “sujeito de pesquisa”, justamente para inserir a noção de interação entre pesquisador e
pesquisados.
6
FAZENDA, 2001, p.116.
209
A composição do grupo de religiosos a serem pesquisados foi uma complexa trama, que
revelou a escala de valorativa da hierarquia religiosa. A indicação da “lista” foi construída em
estreita colaboração com dois líderes religiosos bem como a prioridade dos critérios.
Antiguidade, tradição, respeitabilidade, confiabilidade foram os principais elementos
arrolados na escolha dos participantes. Assim, preciosos elementos de ética e comportamento
religiosos estiveram em questão durante a definição do grupo que integraria a pesquisa. E, na
sequência procedeu-se à discussão metodológica dos formatos possíveis do contato
pesquisador/pesquisado- métodos, técnicas e instrumentos também foram pontuados de
acordo com sua adequação aos resultados esperados.

A natureza dinâmica da investigação interdisciplinar exigiu o espírito aberto da pesquisadora


aos temas que emergiam do grupo, que se tornavam centrais e urgentes pela vivência intensa
de seus praticantes. Desta forma, o roteiro inicial da pesquisadora, via-se sucumbido
beneficamente em prol de uma “estrada” interdisciplinar aberta pelos religiosos que
apontavam suas dúvidas, angústias, expectativas, embates e divergências e queriam ver a
pesquisa auxiliando-os no desvelamento das “encruzilhadas” vividas pelos diversos
movimentos da religiosidade : tradição e modernidade, ostentação e humildade, a questão
ecológica frente a tradições de sofrimento animal, etc.

Após a realização da extensa série de entrevistas abertas com líderes e participantes dos
terreiros, foram tematizados os principais eixos de problemáticas recorrentes. A perspectiva
interdisciplinar foi traçada em torno de um eixo central, essencialmente antropológico, no
qual buscou-se identificar as práticas culturais e concepções do grupo religioso. Em torno
deste eixo, articularam-se elementos de psicologia social, sociologia, geografia e ecologia

A perspectiva interdisciplinar ou transdisciplinar é ainda um desafio para os pesquisadores.


Requer abertura ao diálogo, curiosidade epistemológica, metodologias de cunho participante,
trabalho coletivo. Porém, qualquer tentativa de defini-la a priori, isolada do contexto
específico da pesquisa em questão, ou somente no plano teórico, corre o risco de reduzi-la a
uma declaração de princípios que não garante sua sustentação e que reduz a modelos
preestabelecidos seus fundamentos de integralidade, participação e complexidade.

210
Referências

FAZENDA, Ivani C. Arantes. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. Campinas,


SP: Papirus, 1994.

GIRARDOT, Rafael Gutiérrez. Obstáculos à Institucionalização da Pesquisa Interdisciplinar.


Tempo Brasileiro, n.113. Rio de Janeiro, abril-junho de 1993.

TRAMONTE, Cristiana. Com a bandeira de Oxalá! Trajetória , práticas e concepções das


religiões afro-brasileiras na Grande Florianópolis. Itajaí:Editora da UNIVALI;
Florianópolis: Lunardelli, 2002.

211
Conhecimento científico e conhecimento religioso nas tradições
afro-brasileiras

Sergio Figueiredo Ferretti 1

Os estudiosos clássicos e mais antigos das religiões afro-brasileiras, de modo geral, não
utilizavam a tradição de refletir e discutir sobre os procedimentos que adotam em suas
pesquisas, ao contrário do que tem ocorrido com os autores mais recentes. Atualmente, em
virtude da ampliação dos programas de pós-graduação, todas as dissertações, teses e livros
publicados geralmente apresentam um tópico sobre a metodologia da pesquisa. A nosso ver
esta discussão pode enriquecer tanto o estudo da religião como das Ciências Sociais. Uma das
constatações iniciais é que o resultado do trabalho de pesquisa não irá trazer benefícios diretos
ao grupo estudado, não irá trazer mais devotos ao terreiro, embora possa contribuir para torna-
lo mais conhecido em alguns meios e para diminuir os preconceitos etnocêntricos que
continuam atuando em nossa sociedade.

Nas entrelinhas dos escritos de Nina Rodrigues – o pai fundador deste campo de estudos entre
nós, como em outros autores, podemos perceber aspectos do método de trabalho utilizado.
Arthur Ramos, 2 diz que "para fins de pesquisa" se submeteu às cerimônias de iniciação como
ogã no terreiro do Gantois. Roger Bastide disse, 3 em latim, que se considerava africano por ter
sido aceito em uma das numerosas seitas afro-religiosas da Bahia e submeteu-se a um ritual
de iniciação no candomblé, sobre o que fala muito pouco.

Entre os clássicos destes estudos, o saudoso professor René Ribeiro (1952), aconselha com
sábia prudência, que o investigador não se submeta à hierarquia do culto para poder ficar mais
livre de tabus e compromissos rituais, não se envolva na competição entre as casas e conserve
sua liberdade de opinião. Diz também que, sem se desligar dos atributos de sua classe social,
que reconhece como limite à sua aceitação pelo grupo, enquanto pesquisador, modestamente
se inclui na categoria de "confidente simpatizante". Na década de setenta, pesquisadores

1
Professor Emérito na UFMA. Doutor em Antropologia Social pela USP. Mestre em Ciências Sociais pela
UFRN.
2
RAMOS, 1951, p. 69.
3
BASTIDE, 1971,p. 44.
212
como Yvonne Maggie e Marco Aurélio Luz afirmam que chegaram a tomar partido ao lado de
facções dentro dos grupos que estudavam4.

Juana Elbein dos Santos informa que foi iniciada no Axé Opô Afonjá e que, 5 inspirada em
estudos de Meyer Fortes, "devido a que a religião Nagô constitui uma experiência iniciática
... a perspectiva que convencionamos chamar `desde dentro' se impõe quase
inevitavelmente".6 Segundo Juana Elbein, a observação "desde dentro para fora", baseada em
contatos prolongados com a cultura em estudo, parece o procedimento mais adequado ao tipo
de trabalho que se propõe realizar. Juana leva assim à comunidade acadêmica reflexões
baseadas em suas vivências nas comunidades de terreiro.

A francesa Giselle Binon-Cossard (1970), que apresentou na Sorbonne tese sob orientação de
Bastide, foi feita no santo por Joãozinho da Goméia e há anos é mãe-de-santo no Rio de
Janeiro, lembra em sua monografia que a filha de santo, após a iniciação, "não adquiriu saber
particular, não teve a revelação de segredos esotéricos". O conhecimento religioso, como
todo conhecimento, é conseguido aos poucos, por longa convivência, por doação ou troca a
alguém em quem se tem confiança e esta é uma das virtudes que também podemos aprender
nos terreiros.

Nas religiões afro-brasileiras existem tipos e níveis diversificados de iniciação que


correspondem a vocações diferentes. A iniciação religiosa é uma experiência demasiado
íntima e profunda e não se relaciona com as injunções transitórias de uma pesquisa. O
pesquisador, entretanto necessita vivência e familiaridade, que se adquirem aos poucos. Se
não se envolver suficientemente com o grupo deixará de perceber muita coisa. Mas na medida
em que se envolver demasiadamente, corre o risco de "virar nativo" e de perder a capacidade
de perceber e analisar o outro.

Evans-Pritchard indagou

se os antropólogos têm consciência de que, ao longo de seu trabalho de


campo podem ser – e às vezes – são transformados pelo povo que estão
estudando, que de uma forma sutil e inconsciente eles ‘viram nativos’, como

4
Luz e Lapassade (1972) afirmam ter tomado partido ao lado da Quimbanda, contra a Umbanda por considerar
seus seguidores como os mais oprimidos. Yvonne Velho (1973: 9) diz que "também passei a ser peça do
drama", tomando partido em disputas entre os membros do terreiro que estudava.
5
SANTOS, 1976, p. 15.
6
Idem, p. 17.
213
se costuma dizer. Se o antropólogo é uma pessoa sensível, não pode ser de
outro jeito. Mas é uma questão pessoal, e direi apenas que aprendi com os
“primitivos” africanos muito mais do que eles comigo ... Para dar somente
um exemplo: eu diria que aprendi muito mais sobre a natureza de Deus e
nossa condição humana, com os Nuer do que com tudo que me ensinaram
em casa.7

Toda pesquisa possui um tempo limitado, enquanto a religião é uma atividade constante no
homem. Mas o pesquisador que foi "mordido" pelo interesse em um determinado campo,
acaba se tornando especialista naquela área, que ele frequentemente está reestudando, com
devotamento. Assim o pesquisador que estuda religiões é envolvido e preocupado com a
experiência religiosa, sendo facilmente identificado como devoto de uma delas, o que nem
sempre é exato.

Em Antropologia Social, a pesquisa é uma observação participante, método consagrado de


trabalho de campo. Esta participação não implica que o pesquisador das religiões afro-
brasileiras participe plenamente da vida de um terreiro, assumindo encargos. Alguns pais-de-
santo confundem o interesse na pesquisa com a vocação religiosa, não acreditam que o
pesquisador deseje conhecer objetivamente seu terreiro e procuram encorajá-lo a desenvolver
a sua mediunidade. Mais de uma vez um pai-de-santo amigo perguntou, se sinceramente eu
não tinha planos de abrir meu próprio terreiro.

Para evitar confusões alguns, como Reginaldo Prandi (em comunicação que nos fez
pessoalmente), propõe que se utilize na pesquisa em terreiros a expressão observação
sistemática no lugar de observação participante. Eunice Durham (1986) propõe o termo
participação observante, para militantes que pesquisam movimentos em que militam. A
expressão participação observante pode ser aplicada ao caso de pesquisadores militantes nos
movimentos religiosos que também pesquisam. A nosso ver esta situação corresponde a um
determinado tipo de pesquisa, que não se impõe a todos. Tanto o "pesquisador que virou
nativo" como o "nativo" que se pretende pesquisador, constituem categorias que podemos
discernir, mas não englobam todos os tipos de pesquisadores da cultura afro-brasileira e das
religiões em geral.

7
EVANS-PRITCHARD, 1978, pp. 204-205.

214
Temos constatado que no caso das religiões chamadas ayuasqueiras, que utilizam o chá do
Santo Daime, os pesquisadores fazem uso da bebida, como não poderia deixar de ser em
algumas delas. Muitos se tornam ou já eram adeptos do culto, mas conhecemos caso de um
pastor protestante que realizou pesquisa de campo num centro da União do Vegetal em São
Luís, e não mudou de religião.

II

Uma das dificuldades apontadas na dissertação de Waldenir Araújo (1977) em pesquisas no


Xangô do Recife relaciona-se com a participação do pesquisador em cerimônias secretas, ou
rituais que, em determinadas casas, só podem ser assistidos por elementos de um dos sexos.
Em grupos onde a função da mulher é predominante como muitas casas de Tambor de Mina,
talvez a pesquisadora mulher tenha maiores oportunidades de analisar determinados aspectos
da liderança feminina, como sua importância na transmissão da cultura, detalhes da
comunicação por gestos, etc.

É comum a realização nos terreiros de rituais que não são propriamente secretos, mas para os
quais são avisadas apenas, poucas pessoas, especialmente convidadas. Mesmo pesquisadores
mais obcessivamente curiosos devem respeitar o direito à privacidade de cada grupo, como
recomenda a boa ética da pesquisa, que nem sempre é observada. Em certos aspectos o
pesquisador se assemelha ao jornalista, ao fotógrafo ou ao detetive, com quem é confundido
muitas vezes8. Em função de seu projeto de pesquisa, tem o interesse em conhecer o máximo
sobre o tema que está estudando, para fazer uma análise mais ampla. Por outro lado, todo
grupo tem determinadas fragilidades que prefere não discutir e espera que não sejam
revelados na pesquisa. No passado este problema podia ser parcialmente contornado pelo
pesquisador, que publicava trabalhos no exterior, em idioma não acessível à sociedade onde
se localizam os grupos estudados. Hoje, com o avanço das comunicações, este caminho não é
mais viável.

O escritor e etnógrafo alemão Hubert Fichte, prematuramente falecido em 1986, deixou


trabalhos muito interessantes sobre religiões afro-americanas. Era arguto e profundo

8
Carlo Ginsburg (1989) em interessante artigo compara o inquisidor com o antropólogo, afirmando que: “o que
os juízes da Inquisição tentavam extorquir às suas vítimas não é, afinal, tão diferente daquilo que nós
procuramos – diferentes eram sim os meios que usavam e os fins que tinham em vista.” (1989, p. 206).
215
observador da pessoa humana. Desenvolveu a habilidade de deixar o outro falar, revelando
detalhes muito íntimos e passagens que lhe foram ditas sem a consciência que poderiam vir a
ser tornadas públicas. Trabalhando mais como escritor do que como cientista social, não
estava atento à ética de pesquisa antropológica, embora declarasse que "gostaria de resgatar
a cultura afro-americana de um isolamento exótico".9 Fichte publicou muitos livros
admiravelmente bem escritos, alguns tratando das religiões afro-americanas, mas ganhou em
alguns meios, a fama de escritor maldito e sensacionalista.

Em alguns artigos, José Jorge de Carvalho discute a posição do antropólogo face ao segredo –
que parcela publicar dos dados obtidos na pesquisa?10 É perigoso divulgar segredos sobre
pessoas vivas ou sobre ancestrais. Na Casa das Minas afirma-se que o uso de determinados
cânticos ou de palavras rituais em circunstâncias inadequadas, provoca a morte.

Jorge Carvalho (1987), discutindo o problema da perda da memória coletiva nas religiões
afro-brasileiras, constata que, numa espécie de suicídio cultural, muitas práticas destes cultos
tendem a diminuir cada vez que morre um especialista. Em outro artigo afirma, que "o
segredo existe para ser contado, do contrário desaparece".11 Um velho pai-de-santo em
Cuba, nos contou que quando jovem, para fixar certas palavras e ensinamentos que ouvia dos
mais velhos e era proibido de anotar, pedia licença para ir ao banheiro e tomava notas
escondido. Na Casa Grande das Minas do Maranhão as vodunsis lembram que as mais velhas,
conversavam em língua jeje, quando não queriam ser entendidas pelas novatas. Tanto o
devoto quanto o pesquisador tem que enfrentar dificuldades e reticências dos mais velhos em
transmitir o que sabem.

Os antropólogos acabam se transformando em teólogos destas religiões, como constata


Roberto Motta (1986), pois eles são os cientistas que as pesquisam e documentam. A religião
trazida da África foi transmitida pela tradição oral. O conhecimento erudito destas tradições é
encontrado em livros e teses, muitas vezes em línguas estrangeiras. Como mostram Reginaldo
Prandi e Vagner Gonçalves (1989), o aprendizado do oráculo de Orumilá em São Paulo, tem
sido realizado por intermédio de estudantes nigerianos na USP, que traduzem do inglês e do
ioruba, pesquisas de Bascom e outros, em cursos de língua e cultura iorubana, frequentados
sobretudo por gente de candomblé.

9
FICHTE, 1987, p. 318.
10
CARVALHO, 1985; 1987; 1989.
11
CARVALHO, 1989, p. 132.
216
Os limites entre o conhecimento erudito e o conhecimento oral são cada vez mais ambíguos.
Concordamos plenamente com a importância da oralidade na religião, onde a palavra tem o
poder de realização, como demonstrou Elbein dos Santos (1976). Mas o aprendizado da
tradição por via oral é cada vez mais difícil, sobretudo quando nos encontramos na era da
informática, em que o computador armazena odus e oriquis, de forma mais acessível do que a
tradição oral. Não podemos esquecer, entretanto que, diferentemente do protestantismo e do
cristianismo, a tradição africana se adquire muito mais pela convivência do que pelos livros.
Velhas vodunsis do tambor de mina, manifestam com justa superioridade, uma reprovação
total ao conhecimento livresco das verdadeiras tradições religiosas. Aprender a tradição é
como saber fazer uma comida gostosa e os livros nunca ensinam a "dar o ponto" exato.

Em importante pesquisa sobre terreiros de Sergipe, que foi muito bem recebida no meio
acadêmico e que continua sendo muito debatida, a antropóloga Beatriz Góis Dantas discute a
questão da denominada pureza nagô no candomblé, afirmando:

A decantadas “pureza nagô” tem contornos diferentes na Bahia e em


Sergipe. [...] Como a etnicidade, a pureza é uma retórica que tem muito a
ver com a estrutura de poder da sociedade. [...] A atuação dos intelectuais
na medida em que discriminava os cultos segundo os graus de “pureza” e
fidelidade à África, poderá ser vista como acirradora de rivalidades
dentro do segmento popular e como tentativa de controle desses cultos
[...] Nessa perspectiva pode-se pensar que a valorização da África, que
em outros contextos tem sido usada pelos negros para questionar a
dominação, também tem sido uma forma de domesticação dos cultos,
mais sutil que a exercida pelos aparelhos repressivos, na medida em que
não altera as relações entre as classes e os grupos, constituindo assim
uma ideologização da pureza africana para encobrir a dominação.12

Em outro artigo Beatriz retoma o problema da pureza africana. 13 Considera que a dicotomia
puro/misturado é uma forma de marcar um lugar para si e para os outros no esquema de
forças da sociedade. No caso dos cultos afro-brasileiros, é um elemento na busca da
legitimidade e na luta pela hegemonia. Segundo Beatriz, os intelectuais desempenham papel
significativo na construção dessa hegemonia. Os antropólogos tornam-se avalistas e

12
DANTAS, 1982, p.19.
13
DANTAS, 1987.
217
personagens na construção da hegemonia nagô. A herança africana mais autêntica,
representada pelos nagôs “puros” da Bahia, é apresentada como verdadeira religião,
contrastando com a magia/feitiçaria dos bantos. Os antropólogos fortalecem os terreiros mais
puros, às custas dos mais “misturados”. A repressão policial passou a incidir então sobre os
que fazem feitiçaria, os “impuros”.

As afirmações de Beatriz Dantas foram criticadas por diversos estudiosos, como entre outros,
Ari Araújo, Renato Silveira, Muniz Sodré, Ordep Serra, constatando que os terreiros que
foram considerados mais tradicionais existem há muito tempo e foram muitas vezes quase os
únicos procurados pelos antropólogos, pelo menos até a década de 1970. Mas estes terreiros
são realidades empíricas que existem e foram pesquisados. O intelectual atua como reflexo do
que encontra que ele pode reforçar, mas sua função legitimadora tem limites. O êxito ou o
fracasso de um terreiro depende principalmente da atuação de sua liderança, como da
autenticidade de suas tradições.

Entre as décadas de 1930 e 1950, as religiões afro-brasileiras começaram a se tornar mais


conhecidas. Havia, porém, muitos preconceitos como ainda hoje, havia acusações de
charlatanismo e perseguições policiais. Os antropólogos procuraram justamente os terreiros
de mais prestígio no meio, cujos líderes eram mais estimados e contribuíram com seu trabalho
para o conhecimento desse campo, combatendo o etnocentrismo. A nosso ver não foram os
pesquisadores que criaram esta tradição. O pesquisador pode contribuir para ampliar este
prestígio, mas não é quem o forja. A tradição afro-brasileira não é, portanto uma invenção de
intelectuais, como querem alguns. Os intelectuais contribuem, entretanto para o seu reforço.

Um caso interessante pode ser destacado em relação ao tambor de mina do Maranhão. Desde
fins da década de 1930 a Casa das Minas foi investigada por dois estudiosos estrangeiros que
passaram por São Luís, o jornalista espanhol Álvaro de las Casas e o linguista português
Edmundo Correia Lopes. Na década de 1940 a Casa foi estudada por dois pesquisadores que
publicaram pouco depois trabalhos importantes sobre a mesma, que foram Manuel Nunes
Pereira e Octávio da Costa Eduardo. Nunes Pereira teve seu trabalho publicado por Arthur
Ramos em 1947 e Costa Eduardo teve sua tese de doutorado orientada por Herskovits,
publicada em Nova York em 1948.

Mas, antes disto, em junho de 1938, a Missão de Pesquisas Folclóricas organizada por Mário
de Andrade no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, em viagem de pesquisa
218
pelo Nordeste, passou uma semana em São Luís. Os membros da Missão procuraram a
autoridade policial e foram autorizados a documentar uma festa de tambor de mina no terreiro
de dona Maximiliana no bairro do João Paulo. Os resultados desta pesquisa só começaram a
ser divulgados por Oneyda Alvarenga em 1947 e continuam sendo divulgados até hoje. Dona
Maximiliana continuou com seu terreiro funcionando até fins da década de 1960 embora em
outro local, e faleceu em inícios dos anos 70. Seu terreiro não voltou a ser documentado,
talvez em função da divulgação tardia e reduzida do material coletado. Fala-se que na época
da pesquisa da Missão Folclórica, as autoridades haviam proibido o funcionamento de
terreiros mais próximos ao centro da cidade, que deveriam ser transferidos para a periferia.
Afirma-se que a Casa das Minas passou certo tempo sem festas, depois voltou a ser autorizada
a funcionar. Pode ser que a Missão de Pesquisas dirigida por Luís Saia tenha passado pelo
Maranhão justamente neste período.

Além de religiões da oralidade, as religiões afro-americanas são também há muito tempo


religiões da escrita. Em Cuba são famosos os "patakin", ou cadernos de anotações dos pais-
de-santo. No Brasil muitos destes cadernos também têm sido publicados14

Lisa Earl Castilho (2008), pesquisadora americana radicada na Bahia, em trabalho muito
interessante, analisa a interação entre a oralidade e a escrita nos processos de transmissão do
saber nas comunidades religiosas afro-brasileiras. Desafia a velha ideia de que os terreiros
sejam concebidos como espaço exclusivo da oralidade, constatando sua convivência
inescapável com a escrita.

Castillo informa que, entre 1998 e 2005, visitou mais de vinte terreiros e entrevistou dezenas
de pessoas. Aprendeu que dentro do candomblé é preciso observar e não fazer perguntas, pois
quem pergunta não é bem visto, sobretudo se faz a pergunta errada. Confirma que o saber no
candomblé é esotérico, de difícil acesso e divulgação restrita, constituindo um mistério pouco
compreensível à modernidade ocidental. Que a posse do conhecimento religioso produz
status, portanto saber e poder e estão relacionados.

Constata a tendência da etnografia, em geral, a desconhecer a escrita nos terreiros como


aspecto relevante, o que relaciona à ideia enraizada de que esse meio de transmissão e registro
de saber seria uma deturpação da pureza original e de que as culturas ágrafas estariam

14
A partir da década de 1980, diversos livros sobre terreiros foram publicados por pais-de-santo em São Luís do
Maranhão.
219
congeladas no tempo, não teriam história. Em contrapartida, constata e analisa a existência na
prática privada de “cadernos de fundamento”, usados como auxílio à memória, os quais se
assemelham a um diário pessoal, embora sem que se observe seu uso sistemático como na
santeria cubana, onde muitos eram comercializados, enquanto na Bahia tinham circulação
algo clandestina.

Ela lembra que Ruth Landes, já na década de 1930, teve conhecimento de um desses cadernos
e Castillo analisa detidamente o caso de legendário manuscrito, conhecido no Axé Opô
Afonjá do Rio de Janeiro a partir de 1920, que circulou entre sacerdotes mais elevados.
Informa que ele contém setenta contos da versão afro-brasileira dos versos de Ifá e começou a
ser publicado em diferentes edições a partir dos anos 1960. Teve edição integral, em inglês,
na Nigéria na década de 1980, sendo divulgado definitivamente no Brasil na década seguinte.
Argumenta que as diversas contestações sobre a originalidade desse texto mostram que a
polêmica quanto a suas origens é tão interessante quanto sua existência e valorização. E
indaga como tantas pessoas chegaram a ter cópia de um texto guardado com tanto sigilo por
ser tido como portador de segredos rituais.

Mas Castillo também analisa textos escritos e publicados na atualidade por um número
crescente de sacerdotes e praticantes de diversos ramos das religiões afro-brasileiras, alguns
vendidos até em bancas de jornal. Segundo Castillo, classificar os textos, em geral, que
surgem dentro dos terreiros implica problemas semânticos e ideológicos. Seus autores
ocupam posições subalternas em relação à academia, mas pertencem à elite dos terreiros. Na
falta de termo melhor, a autora denomina essa produção textual de para-etnografia.

O livro de Castillo é muito rico em subsídios teóricos e metodológicos. Ela discute os


conflitos epistemológicos decorrentes da metodologia de pesquisa antropológica e constata,
por exemplo, que na entrevista etnográfica, como na física nuclear, os dados acabam sendo
modificados pelo próprio processo da coleta, fazendo com que a “verdadeira realidade”
permaneça fora do alcance do pesquisador. Discutindo, por outro lado, as influências da
etnografia nos terreiros baianos especificamente e o efeito supostamente poluidor do
antropólogo sobre seu objeto, Castillo mostra que tal problema se relaciona com a conhecida
oposição entre pureza e deturpação rituais em um número pequeno de casas de culto. Apesar
da existência de numerosos terreiros na Bahia, ela constata que a bibliografia se concentra no

220
estudo de três casas de tradição ketu que se tornaram famosas e acabaram se constituindo
numa espécie de Vaticano da “Roma Negra” que seria Salvador.

III

No tambor de mina e em outras tradições, não existe formalmente o cargo de ogã, como no
candomblé da Bahia, assumido por intelectuais e pesquisadores que atuam como protetores e
colaboradores dos terreiros. Frequentadores e pesquisadores que se tornam mais íntimos,
colaboram em algumas festas maiores e aos poucos passam a participar mais intensamente no
culto, como amigo ou companheiro da casa e da religião. Contribuem com trocas de favores e
ajudam nas inúmeras despesas das cerimônias. É importante que o pesquisador não crie laços
de dependência, que não poderá manter sempre e que evite o sistema de "compra de
informações", que cria situações falsas e artificiais. O pesquisador iniciante, com o tempo
ganha a experiência que lhe irá ensinar a contornar estes problemas.

A exclusividade na participação é característica que faz parte do etnocentrismo inerente a


quase todos os grupos religiosos. Mesmo em grandes metrópoles, sempre circulam
informações no ambiente do povo-de-santo que dificultam a participação do pesquisador em
vários terreiros. Existem líderes que exigem grande fidelidade dos pesquisadores, como se
fossem devotos do grupo. Outros fazem "vista grossa". Há porem dificuldades que impedem a
participação mais intensa do pesquisador em diferentes grupos. Assim as generalizações sobre
o universo pesquisado são sempre limitadas a um campo de trabalho específico. A pesquisa
antropológica é meticulosa e demorada, diferindo da pesquisa sociológica, mais preocupada
com uma visão de conjunto do universo estudado. É importante, porém a colaboração entre
ambas estas perspectivas.

Por mais semelhantes que sejam entre si, cada casa religiosa é muito diferente de outras,
sobretudo nas religiões afro-brasileiras, que não constituem uma igreja, com um corpo único
de doutrina e onde os líderes são muito ciosos da sua autonomia. Generalizações nesta área
são, portanto muito arriscadas e devem ser feitas com cautela, pois estão sempre limitadas ao
tipo de religião afro-brasileira que cada pesquisador conhece mais e, em cada tipo, a uma rede
de terreiros que ele investiga. Afirmações que no passado foram feitas por Arthur Ramos,
Edson Carneiro, Roger Bastide e outros, em que pese a importância destes autores, hoje são

221
consideradas erradas ou superadas tendo em vista o melhor conhecimento da realidade,
sobretudo, por exemplo, em relação à situação destas religiões no Norte do país, que estes
autores conheciam menos. Induzem ainda, entretanto, muitos leitores a conclusões erradas,
justamente em função do prestígio de seus autores.

Segundo Clifford Geertz,15 a habilidade do antropólogo em fazer tomar a sério o que ele diz,
não reside na força da argumentação teórica que utiliza, pois esta é rapidamente ultrapassada,
nem na elegância com que escreve, "mas na capacidade para convencer, do que o que ele diz
é o resultado de ter podido penetrar (ou, se preferirmos, de ter sido penetrado) por outra
forma de vida, de haver, de um ou outro modo, realmente estado lá".16

Durante muito tempo a pesquisa nos terreiros estava demasiadamente preocupada com a
procura de uma "pureza africana", tentando identificar casas antigas, que permanecessem
mais fiéis às tradições originais. Como reflexo desta atitude, os próprios líderes religiosos se
preocupam até hoje em reencontrar ou descobrir uma ortodoxia perdida, uma pureza clássica
original. Constata-se, entretanto que as religiões afro-brasileiras são tanto brasileiras quanto
africanas e que a pureza perdida é mais um mito.

Tem sido também discutido e criticado o trabalho do cientista social como autor. Assistimos a
debates em que se questionava a pretensa "neutralidade" do pesquisador que demonstra
grande "frieza" na abordagem acadêmica de certos fatos, como garantia da cientificidade de
sua postura. Critica-se aqui o distanciamento, a ausência de ênfase no emocional e na
sacralidade. A percepção e o respeito pelo sagrado, pelo mistério e a preservação do segredo é
uma dimensão fundamental nas religiões afro-brasileiras. O pesquisador tem que levar em
conta na sua análise e na divulgação de seu trabalho, esta dimensão, do contrário estará
criando problemas para si e para os outros.

Os cientistas sociais pesquisam, escrevem teses e publicam trabalhos que se destinam


inicialmente ao público acadêmico – a seus colegas e alunos. Procuram numa linguagem
científica, explicar especialmente no ambiente universitário, o que constataram em realidades
distintas. As religiões afro-brasileiras constituem tema que desperta sempre grande interesse.
Seu estudo interessa também aos que foram pesquisados e aos membros das comunidades de
culto em geral. Por mais bem feitas que sejam as pesquisas dos sociólogos e antropólogos, por

15
GEERTZ, 1989, p.14.
16
Idem.
222
maiores informações que possam divulgar, por todas as contribuições que possam trazer à luta
contra os preconceitos, parece-nos, entretanto, que os trabalhos eruditos sobre as religiões
afro-brasileiras, não conseguirão satisfazer nem dar respostas à maioria das indagações que
interessam aos praticantes destas religiões. As respostas a indagações existenciais são
encontradas na prática e não nos livros ou nas teorias.

O conhecimento religioso e o conhecimento científico, por diferentes que sejam, possuem,


entre outros, o ponto comum de serem ambos iniciáticos, exigindo longa convivência que
possibilite a lenta e gradual assimilação de procedimentos adequados. Ambas as formas de
conhecimento respondem a determinado tipo de vocação, relacionada uma com o mundo
concreto e a outra com as coisas do mundo sobrenatural. O conhecimento científico sobre o
conhecimento religioso deve se caracterizar pelo desejo de conhecer e pelo respeito ao outro,
que constituem as principais ambições da antropologia e das ciências sociais em geral.

Referências

ALVARENGA, Oneyda. Tambor de Mina e Tambor de Crioulo. São Paulo: Discoteca


Pública Municipal. (Registros sonoros do Folclore Musical Brasileiro). 1948

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226
Relação sujeito/objeto na pesquisa de religião afro-brasileira(*)

Mundicarmo Ferretti17

Em Ciências Sociais, a relação pesquisador/pesquisado é uma variável importante da


pesquisa. Ao relacionar-se com as pessoas no campo, o pesquisador provoca nelas uma
impressão e uma expectativa que decidirão, em grande parte, o que poderá ou não ser por ele
observado. Por mais experiente que seja, o pesquisador deixará de observar inúmeros
aspectos da realidade pesquisada, se as pessoas envolvidas estiverem empenhadas em ocultá-
los. A observação participante prolongada consegue, em parte, resolver esse problema mas
aumenta o risco de "envolvimento" do pesquisador com o seu objeto de pesquisa.

Relação sujeito/objeto e observação participante em religião afro-brasileira

Na pesquisa de religião afro-brasileira, o tipo e o grau de participação do investigador no


campo - terreiro de Mina, Candomblé, Umbanda ou de outra denominação - não depende
unicamente do pesquisador. Quando ele não é bem recebido ali, pode ser privado de muitas
experiências e excluído de muitos domínios de que gostaria de participar.

Quando iniciamos nossa pesquisa na Casa Fanti-Ashanti, terreiro de Mina e de Candomblé de


São Luís, pretendíamos observar especialmente os rituais onde havia "descida" de caboclos e
realizar entrevistas principalmente com os filhos-de-santo - trabalho complementar ao
iniciado ali pelo antropólogo Sergio Ferretti, que nos introduziu naquele terreiro e estava
interessado nos aspectos africanos do Tambor de Mina e que já realizara muitas entrevistas
com o pai-de-santo daquela casa. Bem cedo tivemos que modificar nossa estratégia de coleta
de dados pois, apesar de deixarmos bem claro o nosso interesse pelo caboclo, só éramos
( )
* Publicado originalmente em FERRETTI, M., Terra de Caboclo. São Luís: SECMA, 1994; retoma trabalho
apresentado em mesa-redonda realizada no 14o Encontro Nacional de Estudos Rurais e Urbanos - CERU, São
Paulo, 12-15/05/1987.
17
Professora emérita e titular aposentada na UEMA. Professora adjunta IV aposentada na UFMA. Doutora em
Antropologia Social pela USP. Mestre em Ciências Sociais pela UFRN e em Administração Pública (Pessoal)
pela FGV – RJ. Sub-coordenadora do GP Religião e Cultura Popular (GPMINA - DESOC/UFMA).

227
avisados dos toques de Candomblé e saída de iaô, e logo fomos escolhidas para madrinha de
uma filha-de-santo de Oxum que ia ser preparada no Candomblé. Por outro lado, sempre que
tentávamos obter alguma informação dos filhos-de-santo, recebíamos a mesma desculpa:
"não sei, papai é quem sabe", o que nos fez compreender a necessidade de centrar as
entrevistas no chefe da casa e aguardar o momento em que os outros membros do terreiro se
sentissem encorajados ou autorizados a falar...

Atualmente tem sido muito apregoado nos "meios antropológicos" que não se pode fazer
pesquisa de campo sobre religião afro-brasileira sem tornar-se filho-de-santo, uma vez que o
saber naquela religião é iniciático e o "segredo" permeia todas as relações interpessoais. Tal
exigência não poderia, contudo, ser satisfeita por todo pesquisador uma vez que nem todos
são médiuns ("rodantes" ou "dançantes") e podem entrar em transe durante a realização de
rituais religiosos. Por essa razão, muitos pesquisadores vêm assumindo nos terreiros de
Candomblé cargos de ogã e de ekedi (exercidos por pessoas que não "recebem santo", embora
tenham de passar por um processo de iniciação e de cumprir obrigações no terreiro). Mas
assumir cargo no terreiro pode não ser também uma exigência para todos os pesquisadores e
para todas as pessoas que se aproximam da religião afro-brasileira. Por mais que os terreiros
precisem de colaboradores, não haveria cargos para todos. A maioria das pessoas é chamada
apenas para colaborar numa festa ou na preparação de um filho-de-santo, o que não implica
assumir obrigações com a casa e com as suas entidades espirituais para o resto da vida. Há
uma doutrina (música) cantada nos terreiros do Maranhão que diz: "Mina não é para quem
quer, nem é cartilha de aprender a ler", o que parece esclarecer que o Tambor de Mina (tipo
de religião afro-brasileira predominante no Norte) não é uma obrigação para todos e sim para
os que foram escolhidos. E sobre essa escolha o povo de Mina costuma dizer: "quem está fora
não queira entrar, e quem está dentro, não queira sair.", lembrando os sacrifícios e
obrigações que aguardam os escolhidos.

Estudos etnográficos sobre Tambor de Mina realizados no Maranhão têm mostrado que nem
todos os membros da família biológica dos filhos-de-santo assumem obrigações no terreiro,18
embora a mediunidade nunca seja encontrada em apenas um membro da família e muitos
auxiliares do culto sejam aparentados. Nem todos os descendentes do povo de Mina têm
obrigações no terreiro, embora desde crianças participem de atividades ali realizadas e
prestem alguma colaboração. E, se nem todos eles têm obrigação na casa, por que todo

18
FERRETTI, S,1985; FERRETTI, M.R, 1985.
228
pesquisador teria que ser filho-de-santo ou assumir no terreiro cargo de ogã, ekedi e outros
similares?. Será que, sendo iniciado na religião afro-brasileira, o pesquisador teria
automaticamente maior acesso às informações, maior facilidade para desenvolver seu projeto
de pesquisa e maiores elementos para escrever os seus trabalhos?. Não haveria também outras
formas de participação e de estratégia de pesquisa na religião afro-brasileira?.

Por mais participante que seja o pesquisador, há sempre no campo experiências a que ele não
pode ter acesso, como as atividades não permitidas às pessoas do seu sexo - em São Luís, nas
casas mais antigas e tradicionais como a Casa das Minas, Casa de Nagô, Turquia e Justino,
homem não entra na guma (barracão) para dançar e mulher não toca tambor. Nem mesmo os
pais e mães-de-santo podem passar por todas as experiências do terreiro. Por maior que seja a
participação do pesquisador, ele terá sempre que se apoiar na experiência de outros para
entender muitos aspectos da religião afro-brasileira.

Não é difícil perceber que a experiência de um pesquisador que é filho-de-santo é diferente da


vivida por um pesquisador que tornou-se ogã, ekedi, pai ou mãe-de-santo, da experiência dos
pesquisadores que não entram em transe ou que não têm cargo no terreiro. Por isso mesmo,
cada pesquisador de religião afro-brasileira deveria esclarecer, nos relatórios científicos, a sua
ligação com aquela religião, o seu nível de participação no terreiro estudado e o tipo de
informante a que teve acesso. Embora as visões de pessoas com diferentes ligações com a
religião afro-brasileira nem sempre sejam contraditórias, costumam ser tão diferentes como as
de pessoas de níveis sociais diferentes e, para serem complementares, precisam ser bem
caracterizadas.

É preciso lembrar que, ao ser iniciado na religião afro-brasileira ou ao assumir um cargo no


terreiro, o pesquisador só terá maior acesso ao saber religioso e maior participação nas
atividades da casa a que está vinculado, se conseguir despertar a confiança do pai ou mãe-de-
santo e cumprir com suas obrigações de devoto. Como essa confiança dependerá, em grande
parte, de sua discrição, humildade e de sua capacidade de guardar segredo e de deixar que
apenas aqueles falem a respeito da religião a que está se dedicando, muitas vezes aquela
participação poderá acarretar dificuldades para o seu trabalho de pesquisador - em São Luís,
uma pesquisadora de Tambor de Mina teve que deixar de falar e de escrever a respeito de
uma casa, ao assumir obrigações na cozinha dos voduns daquele terreiro.

229
Ligando-se mais intimamente a um terreiro (como filho-de-santo, ogã ou ekedi), o
pesquisador enriquecerá sua experiência, mas perderá muito da liberdade que gozava antes
para fazer perguntas ao pai-de-santo e falar aos "de fora" sobre o que foi por ele observado,
pois logo ouviria da parte deles: "Você ainda não passou por nada, como é que já quer saber
tudo?"... ou, ao ser visto dando entrevista, "tu já és pai-de-santo?!"... Assim, ao ligar-se mais
ao terreiro, o pesquisador poderá enfrentar outro tipo de dificuldade e o seu conhecimento
sobre a religião poderá crescer numa direção diferente da pretendida, pois, passará a obedecer
às necessidades de sua "iniciação" e não do seu projeto de pesquisa. Em muitos casos, o
pesquisador recebe do pai ou mãe-de-santo mais informação sobre o terreiro e a religião ali
professada do que os filhos da casa, que o precederam no campo, e muito do que o
pesquisador-devoto aprende sobre a religião afro-brasileira terá que ser guardado consigo até
o momento em que receber a missão de comunicar a outros, que estão normalmente na
comunidade religiosa e não na comunidade científica.

A "invasão" de pesquisadores e intelectuais de origem burguesa nos terreiros pode trazer


muitos problemas para a religião afro-brasileira. Quem não recebe "cobrança" do santo pode
se afastar da casa com maior facilidade. E como muitas vezes não está presente no momento
em que se precisa dele, nem dá a colaboração que se está necessitando, nem sempre pode-se
contar com a sua força. Gostaríamos de esclarecer que, ao levantarmos essas questões, não
estamos nos posicionando contra o pesquisador ser iniciado na religião afro-brasileira ou
assumir cargo no terreiro e que pretendemos apenas refletir sobre os conflitos existentes,
freqüentemente, na relação do pesquisador com o campo de pesquisa, particularmente com os
centros de religião afro-brasileira, e questionar a obrigatoriedade da adoção daquele tipo de
participação pelos pesquisadores da área.

A forma de relacionamento e de participação do pesquisador no terreiro obedece a uma série


de fatores e muitas vezes foge ao seu controle. Quando começamos a freqüentar a Casa Fanti-
Ashanti (dez. 1981), acompanhávamos Sérgio Ferretti em seu trabalho de campo e só depois
que começamos a executar nosso projeto sobre o caboclo no Tambor de Mina (jan. 1984) é
que começamos a ser vista como pesquisadora. No início da pesquisa, apenas assistíamos a
rituais públicos realizados no terreiro. Depois que passamos a fazer entrevistas com o pai-de-
santo, começamos a receber pedidos de colaboração para a festa do Espírito Santo (quando os
terreiros de São Luís são visitados por grande número de pessoas "de fora" e têm maior
despesa). Com mais de dois anos de contato com a casa, como pesquisadora, apesar de não
230
mostrarmos grande interesse pelo Candomblé (uma vez que a nossa pesquisa era sobre
caboclo), fomos convidada para madrinha de uma filha de Oxum que ia ser iniciada. Em
janeiro de 1987, com três anos de pesquisa sistemática na Casa Fanti-Ashanti, fomos
apontada ali para a função de ekedi pelo orixá Oxossi, "na cabeça" de um pai-de-santo de
Belém, que estava participando da obrigação de sete anos da primeira ebame (filha-de-santo
com iniciação completa) daquele orixá naquele terreiro. Como se pode ver, o nosso
relacionamento com aquele terreiro passou por várias fases e tem às vezes caminhado numa
direção diferente daquela que pretendíamos adotar.

Nenhum pesquisador de religião afro-brasileira consegue permanecer por muito tempo na


cômoda posição de "mero pesquisador" e de "colaborador" do terreiro em sua festa mais
dispendiosa. Mesmo que não "bole no santo" (entre em transe), dificilmente consegue
terminar sua pesquisa sem assumir alguma obrigação na casa... Mas, como já salientamos, se
não é fácil ser pesquisador e membro do terreiro, é ainda mais difícil ser membro de um
terreiro e pesquisador de outro, pois, sendo de um determinado terreiro, o pesquisador corre o
risco de ser visto nas outras casas como "espião" e de ser recebido friamente por elas. Mesmo
sem sermos uma pessoa "de dentro" da Casa Fanti-Ashanti, já enfrentamos esse problema em
São Luís. Certa vez, ao nos aproximarmos de outra casa para assistir a uma festa e para
conversar com a mãe-de-santo, tivemos que esclarecer a uma de suas filhas que não éramos
auxiliar de pesquisa do chefe daquele terreiro. (Como o pai-de-santo da Casa Fanti-Ashanti
lançara dois livros sobre religião afro-brasileira, depois que estávamos freqüentando a sua
casa, pareceu a ela que os livros dele foram escritos com a nossa colaboração como
pesquisadora). Ciente desses problemas é que o escritor alemão Hubert Fichte (1987), quando
esteve no Maranhão pesquisando sobre Tambor de Mina (entre 1981 e 1982), fez questão de
se ligar apenas à Casa das Minas, evitando qualquer aproximação maior com os outros
terreiros de São Luís.

O terreiro de que o pesquisador é membro poderá também fechar a ele algumas "portas" ao
saber que realiza pesquisa em outra casa, temendo que seus "segredos" sejam ali revelados. E,
neste caso, dificilmente aceita que a participação do pesquisador no campo vá além de uma
assistência esporádica a rituais e da realização de algumas entrevistas. Em São Luís, um
pesquisador ligado à Casa das Minas, ao ser apontado ogã em outra casa, foi censurado pelas
vodunsis, com a seguinte expressão: "não se pode servir a dois senhores".

231
Outro problema que merece também ser lembrado, quando se fala do envolvimento
sujeito/objeto nas pesquisas sobre religião afro-brasileira, é o da influência exercida pelo
terreiro sobre o pesquisador. Todo cientista social tem consciência de que ninguém consegue
estabelecer relação com outra pessoa sem exercer influência sobre ela e sem ser, de alguma
forma, por ela influenciada, mesmo quando procura evitar que tal influência ocorra.

A julgar pela nossa experiência no Tambor de Mina, a religião afro-brasileira não é


exclusivista nem proselitista. Ninguém procura, pelo menos claramente, "converter" o
pesquisador e, normalmente, não se exige que os filhos-de-santo abandonem o catolicismo e o
espiritismo. É possível que esse não proselitismo do "povo de Mina" resulte da crença
difundida entre eles de que, nesta religião, a fé é uma consequência da manifestação de
entidades espirituais através de eventos extraordinários e inexplicáveis pelas leis da natureza.

Apesar do não proselitismo da religião afro-brasileira, o "povo da Mina" sempre procura


saber se o pesquisador acredita ou não no sobrenatural e nas experiências mediúnicas, e é
possível que muitas informações e explicações só sejam comunicadas a quem já tem alguma
experiência da mesma ordem. Logo que começamos a nossa pesquisa na Casa Fanti-Ashanti,
o pai-de-santo nos contou uma série de experiências suas com "seres invisíveis", querendo
saber se acreditávamos ou não nelas. Depois, conversando com dois outros pesquisadores que
também o haviam entrevistado, constatamos que o mesmo "teste" havia sido feito com eles...
É possível que o pai-de-santo, ao narrar aqueles casos, estivesse mais interessado em discutir
um tipo de experiência "não acessível" a todas as pessoas, ou em avaliar o motivo da
aproximação do pesquisador com a sua casa, do que preocupado em detectar neles uma
possível falta de fé ou a necessidade de traçar uma estratégia apostólica, visando a sua
conversão.

Não se pode acusar o povo de Mina de querer "botar santo" em quem não tem, pois, além de
fazerem "remédio" para evitar que seus descendentes "bolem no santo", diante de pessoas
com "aproximação de santo" (sintomas de mediunidade) procuram, muitas vezes, substituir a
obrigação de dançar por outra (como custear as despesas de pessoa anteriormente escolhida
pela mesma entidade e que dispõe de poucos recursos, etc.). O pessoal de Mina não costuma
também falar em seus protetores (voduns ou caboclos) fora do terreiro e nem procura
identificar o protetor espiritual de outras pessoas, a não ser quando essas pessoas têm uma
relação estreita com a casa e apresentam sinais "visíveis" de "cobrança de santo" ou de

232
mediunidade. E, nos terreiros tradicionais, dificilmente se faz uso (pelo menos em público) de
manobras para propiciar a "incorporação" ou induzir o estado de transe.

Mas, mesmo que a religião afro-brasileira não seja proselitista, o pesquisador, cedo ou tarde,
acaba sendo atingido de alguma forma por ela. Ao procurar penetrar nos sistemas de crenças e
de valores e ao observar o comportamento do terreiro, o pesquisador, pouco a pouco, vai
passando a duvidar das interpretações dadas por cientistas e vai sendo "atingido" pelas
explicações dadas no terreiro. Muitos tornam-se também clientes dos terreiros, passando a
buscar ajuda de pais-de-santo na solução de problemas físicos, psíquicos, sociais, financeiros,
etc.

Nos "meios antropológicos" tal envolvimento não causa "espanto" e nem leva,
necessariamente, o pesquisador a descrédito, uma vez que um dos objetivos da etnografia é
tornar conhecidas outras visões de mundo e para atingí-lo o pesquisador tem que "tornar-se
nativo" (como tão bem demostrou Malinowski).19 Mas os cientistas de outras áreas nem
sempre ficam bem impressionados quando vêm a saber que um certo pesquisador "bolou no
santo" e está dançando em um terreiro, que está consultando búzios, ou que afirma que o
materialismo não é capaz de explicar, suficientemente, o fenômeno religioso e mediúnico.

E os terreiros? Conseguem ficar imunes à influência do pesquisador? É ilusório pensar que o


pesquisador possa fazer entrevistas, observar rituais e participar na vida do terreiro sem
influenciar o seu objeto de pesquisa. Mesmo que não pretenda ensinar nada a ninguém e que
se apresente como quem "só sabe que nada sabe", termina por exercer alguma influência no
seu sistema de valores e em sua forma de interpretação da realidade. O simples fato do
pesquisador se interessar em particular por algum aspecto do terreiro ou da religião afro-
brasileira pode contribuir para que ele assuma ali, posteriormente, novo valor ou apresente
desdobramentos e mudanças. Em 1976 Sergio Ferretti coordenou uma pesquisa sobre a Dança
do Lelê,20 tradicional na cidade de Rosário/MA, dança esta preservada ali pelos velhos e que
estava em desaparecimento. Alguns anos depois de concluída a pesquisa, foi informado de
que a população da região, contagiada pelo entusiasmo dos pesquisadores, voltara a se
interessar por ela, que ela passara a ser ali também executada pelos jovens, ensinada nas
escolas e a ser motivo de orgulho para toda a população.

19
MALINOWSKI:1976.
20
FERRETTI, S. 1978.
233
Pensando no processo acelerado de "nagorização" da religião afro-brasileira (hegemonia da
cultura iorubana - estudada no Pará por Furuya)21 que vem acontecendo nos últimos anos,
levantamos uma pergunta: será que esse processo teria acontecido se os pesquisadores não
tivessem descoberto, no passado, terreiros nagô que apresentaram grande índice de
preservação da cultura africana e os tivessem apresentado como "modelos de autenticidade"?
Às vezes também indagamos sobre quem "batizou" a religião de origem africana do
Maranhão de "Tambor de Mina" e a do Pará de "Batuque"? Os fundadores dos primeiros
terreiros ou os intelectuais que delas se ocuparam no passado?

Os elementos introduzidos na religião afro-brasileira por influência de pesquisadores vão


sendo, de tal forma, integrados à tradição dos terreiros que, às vezes, torna-se difícil separá-
los dela. E, se os primeiros pesquisadores exerceram grande influência na religião afro-
brasileira, o que acontecerá no futuro se grande número de cientistas sociais passarem a
"orientar" os pais-de-santo e, no esforço de reafricanização da religião afro-brasileira,
levarem os terreiros à eliminação de tudo o que se afaste do modelo de "pureza nagô" que,
apesar de amplamente aceito, foi tão questionado pela antropóloga sergipana Beatriz
Dantas?22

Visitando, em abril de 1987, o terreiro de pai Kilombo, em Taboão da Serra (São Paulo),
encontramos escrito na parede algo que merece reflexão:

"você que está chegando agora criticando o que está feito deveria estar aqui na hora
de fazer. Assinado: aquele que fez quando ninguém sabia fazer"...

Botando aquela crítica "na carapuça" do pesquisador de religião afro-brasileira, poderíamos


indagar se quem chegou agora (quando o terreiro já batalhou, às vezes por mais de um século,
para manter viva uma religião trazida da África por escravos e implantada no Brasil em
condições adversas), tem autoridade para corrigir o que foi feito?

Em 1983 assistindo a um tambor de Canjerê na Casa Fanti-Ashanti com a pesquisadora Maria


do Rosário Carvalho fomos chamadas pelo pai-de-santo,23 em transe com o caboclo Tabajara
(chefe espiritual da casa) para discutir a continuidade daquela festa, que já se repetia na casa
há 28 anos e que era a festa mais antiga do terreiro. Ouvimos dele, naquela ocasião, que o

21
FURUYA:1986.
22
DANTAS:1982.
23
SANTOS, M.R. e SANTOS NETO, M, 1989.
234
Canjerê era muito dispendioso, exigia acampamento na "mata" e se tornara inviável para o
terreiro, devido ao crescimento urbano de São Luís e empobrecimento da população. Apesar
de reconhecermos as dificuldades apontadas por ele, nos posicionávamos contra a quebra da
tradição e a extinção daquele ritual. Diante dos nossos argumentos ele acrescentou em tom de
desafio: "para quem está "de fora" é fácil dizer que a festa tem que continuar, vocês
assumiriam essa obrigação ?!" Nem é preciso dizer que baixamos a cabeça e que ficamos
sem argumentos... Soubemos no outro dia que, após o encerramento do ritual, o pai-de-santo
ainda em transe com o caboclo Tabajara reunira "seu povo" para comunicar que aquele seria
o último Canjerê que se fazia na casa 24...

Analisando o caso da extinção ou interrupção do Canjerê na Casa Fanti-Ashanti em conjunto


com outras mudanças ocorridas na casa naquele período, relatadas em trabalhos anteriores, 25
constata-se que a interrupção ou extinção daquele ritual aconteceu dois anos depois que a casa
"mudou de nação" (tornou-se nagô), fato que levou seus membros a assumir novas obrigações
e a grandes sacrifícios financeiros (despesas com iniciação, roupa, oferendas, etc). A ligação
entre aqueles dois eventos foi feita também pelo próprio pai-de-santo, quando comentou em
um de seus livros a extinção do Canjerê e afirmou que aquele ritual foi substituído na casa
pelo Samba Angola (Candomblé de Caboclo), embora as entidades espirituais recebidas no
primeiro não participassem do segundo e o Samba Angola não estivesse ligado nem à
tradição do terreiro nem à da região...26 Como a "mudança de nação" é uma decorrência da
hegemonia nagô que os antropólogos ajudaram a construir, diante da extinção de Canjerê na
Casa Fanti-Ashanti, poderíamos perguntar: será que sem ela aquele ritual teria sido
interrompido? E será que sem a "nagoizaçåo" da religião afro-brasileira aquela casa teria
"mudado de nação...

Voltando à questão básica, envolvimento sujeito/objeto na pesquisa sobre religião afro-


brasileira, gostaríamos de indagar se um envolvimento, sem perda de autonomia e inversão de
papéis, não seria uma forma desejável de relação pesquisador-pesquisado tanto para a Ciência
Social, quanto para a religião afro-brasileira... E, para concluir, gostaríamos de lembrar que a

24
Em 1988, nas comemorações do seu 30º aniversario, foi realizado um tambor de Canjerê, e a partir daí o ritual
foi reintroduzindo no calendário do terreiro. Como não estávamos em São Luis e, não participamos daquela
festa, o caboclo Tabajara, incorporado no pai-de-santo, solicitou a um fotografo amigo que fotografasse o ritual e
nos enviasse o filme. Algumas dessas fotos estão disponíveis em www.museuafro.ufma.br (ver:
religiões/exposições/imagens).
25
FERREIRA, E. 1984 e FERRETTI,M. 1991.
26
FERREIRA, E. 1984 e 1987.
235
relação pesquisador/pesquisado na pesquisa antropológica apresenta diferenças significativas
em relação a pesquisas realizadas em outras Ciências Sociais, tendo em vista a opção
preferencial do antropólogo pela observação participante e o seu deliberado esforço para
tornar-se "nativo". O envolvimento pesquisador/pesquisado no trabalho antropológico deve
ser controlado para não ameaçar sua objetividade, mas constitui-se uma condição necessária à
compreensão da realidade pesquisada. Sem desenvolvimento de sensibilidade e de empatia, o
pesquisador de religião afro-brasileira não consegue avançar na compreensão de seu objeto de
estudo, no entanto, algumas formas de participação do antropólogo nos terreiros pode
dificultar ou retardar sua pesquisa.

Referências

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de Janeiro: Graal, 1988 (Apresentada, originalmente, como monografia de Mestrado em
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-----. Desceu na guma: o caboclo do Tambor de Mina no processo de mudança de um terreiro


de São Luís - a Casa Fanti-Ashanti. São Luís: SIOGE, 1993. (Aprsentada, originalmente,
como Tese de doutorado em Antropologia, em São Paulo: USP/FFCL, 1991).

FERRETTI, Sérgio F. Querembentan de Zomadonu, etnografia da Casa das Minas. São


Luís: EDUFMA, 1985.

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FICHTE, Hubert. Etnopoesia: Antropologia poéticas das religiões. São Paulo: Brasiliense,
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São Luís, uma interpretação sócio-cultural. São Luís: SECMA/SIOGE, 1989.

237
238
Éticas em campo: breves reflexões sobre dilemas éticos entre os
campos legislativo e etnográfico

Franco Delatorre1

Introdução: pesquisas com seres humanos?

Ao pensar minha experiência enquanto pesquisador de religiões afro-brasileiras, e as


características dos campos em que pesquiso (especificidades desde um plano ontológico
apresentadas pelos sujeitos, que consequentemente são refletidas em suas práticas), em
relação às resoluções da CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), deparo-me com
certos entraves à pesquisa – a exemplo de tantos outros casos apontados por Langdon (2008).
Definições, termos e procedimentos arrolados na lista de “diretrizes e normas
regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos” 2 pelo Conselho Nacional de
Saúde são, no mínimo, problematizáveis quando confrontados a situações em campo e a
conceituações dos sujeitos com os quais lido – sobretudo ao se adotar uma postura de levar a
sério a palavra dos “nativos”.

Em seu artigo, Langdon relata algumas das dificuldades enfrentadas por antropólogos frente a
legislação, que está claramente orientada às “pesquisas biomédicas que têm pouco a ver com
as de antropologia” 3– naquelas, de caráter mais quantitativo, “ao sujeito de pesquisa é
delegado o papel de passivo ou cobaia”. 4 Prosseguirei5 de forma semelhante ao referido
artigo, isto é, analisando a Resolução nº 196 do Ministério da Saúde, e localizando as
passagens problemáticas de serem seguidas/aplicadas ao menos num campo como o que
estudo. Ora, é sobre o envolvimento de “seres humanos” em toda e qualquer pesquisa a razão

1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social – UFSC. Contato:
francogoodenough@hotmail.com.
2
Ministério da Saúde, 1996, p. 186.
3
LANGDON, 2008, p. 128.
4
Idem, p. 130.
5
Uma versão prévia deste artigo foi escrita como trabalho final para a disciplina de Métodos e Técnicas de
Pesquisa em Antropologia 1 (2012/1), ministrada pela Profª Drª Antonella Tassinari, no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Agradeço à professora
Antonella, e também a Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão (USP) pelas sugestões e críticas. Obs.:
utilizarei aspas simples para as expressões “locais”, isto é, que são usadas pelos sujeitos etnográficos do meu
“campo”.
239
destas diretrizes. 6 Como, então, ler, interpretar e aplicar as regulamentações da CONEP,
quando os sujeitos de pesquisa são espíritos? Rever a pertinência desta categoria central
implica uma revisão à quase totalidade do conteúdo destes documentos.

Sobre outros sujeitos

Almas e Angola é uma 'religião de matriz africana' – denominação dada pelos seus praticantes
– bastante difundida em Santa Catarina. Segundo literaturas afins, Almas e Angola é praticada
há cerca de meio século em Santa Catarina – de acordo com pesquisas, é hoje encontrada
exclusivamente neste Estado. Seu início é atribuído a Guilhermina Barcelos (‘Mãe Ida’), uma
mãe-de-santo que a teria trazido do Estado do Rio de Janeiro. Em seus rituais são invocados
espíritos (‘pessoas desencarnadas’) de pretos-velhos, de caboclos, de crianças, exus e
pombagiras, que são genericamente chamados de entidades, e os orixás 7. Há anos pesquiso
Almas e Angola, ora mais diretamente – indo às 'giras' (sessões espirituais) em vários dos
Terreiros espalhados pela Grande Florianópolis –, ora menos diretamente – conversando com
simpatizantes e médiuns8 que frequentam, já frequentaram ou que esporadicamente vão a
algum destes Centros.

Em minha última pesquisa9 tive como interlocutoras duas mulheres já 'feitas' mães-de-santo
em Almas e Angola mas, apesar de abordarem esta religião através de seus discursos sobre
suas práticas, detive-me nos rituais que envolvem a manifestação corpórea (ou a
'incorporação') de espíritos, por elas realizadas fora dos espaços dos Terreiros. Para tais
práticas, Solange e Rita utilizam-se de cômodos de suas próprias residências, os quais
temporariamente são configurados como espaços rituais onde os espíritos vêm dar conselhos,
receitas, 'passes' e demais 'trabalhos'10 àqueles que estão à procura de seus poderes. Destas
duas mães-de-santo, apenas Rita continuava, à época das pesquisas, frequentando um
Terreiro.

6
Resolução nº 196 do Ministério da Saúde .1996, pp. 186-7, 192, 195, 202.
7 Para mais detalhes sobre a história, o panteão e a liturgia de Almas e Angola, ver: Tramonte 2001; Martins
2006; Nóbrega 2004; Alves 2007; Farias 2009.
8 O mesmo que 'filho/filha-de-santo', 'médium' é um termo que umbandistas compartilham com kardecistas.
9 Refiro-me à minha pesquisa na graduação, realizada para o Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado Santo
de Casa Não Faz Milagre? Uma etnografia sobre rituais espirituais “caseiros” e espíritos (2012, no prelo).
10 Chama-se de 'trabalho' a “interferência mágica” (Cardoso, 2007, p. 340) feita por um espírito ou por alguém
'do santo', na vida de terceiros. Pode ser ainda sinônimo de ritual ou 'sessão espiritual', aludindo à incorporação
de espíritos que vêm 'trabalhar' (no corpo das médiuns).
240
A religiosidade dessas mulheres é articulada entre múltiplos espaços, entre práticas diversas e
com variados sujeitos (incluindo sujeitos ontologicamente distintos) – o que certamente é
recorrente nas inúmeras religiosidades afro-brasileiras. Nesse sentido, apesar das reflexões no
presente texto estarem baseadas em minha convivência com praticantes de Almas e Angola e
em minha última pesquisa, penso que podem ser estendidas para outras destas práticas
religiosas.

Solange e Rita, contando-me suas “trajetórias espirituais”, a todo momento explicitavam as


constantes agências dos espíritos nos mais variados aspectos de suas vidas. Tais narrativas são
análogas às ouvidas por Cardoso (2004, 2007, 2009) nas “macumbas cariocas”11: tanto lá
quanto aqui, o 'povo-de-santo' aborda situações cômicas, trágicas, vergonhosas, assustadoras e
milagrosas sobre os feitos e os poderes destas entidades. “[C]ontadas não só por clientes e
filhos-de-santo, mas também pelos próprios espíritos”12, “tais narrativas não são meramente
simbólicas ou representativas, mas também constitutivas do próprio “poder sobrenatural” tido
como inerente aos espíritos”.13 Cardoso então argumenta que “a narrativização das múltiplas
presenças do[s] [espíritos] e de sua relação com os macumbeiros constitui um imaginário em
que a percepção do mundo torna-se saturada pela presença dos espíritos além do limite das
próprias narrativas”.14

Rita e Solange, bem como os demais 'filhos', 'filhas', 'mães' e 'pais-de-santo',


mencionam não apenas os rituais religiosos, mas também o cotidiano, como
saturados pelas ações das entidades.15 Em outras palavras, elas contavam
como os espíritos estavam presentes e atuantes em suas vidas como um
todo, muitas vezes independentemente de suas vontades e invocações.

Nesse imaginário os espíritos são culturalmente reconhecidos enquanto


sujeitos – no sentido de terem desejos, serem geradores de ação, e terem
uma subjetividade culturalmente reconhecida – intimamente relacionados
com seus médiuns, mas de forma alguma pertencentes a estes ou de natureza
similar a estes. Seu estatuto de sujeito é necessariamente distinto daquele

11 “Macumbas cariocas” designa as práticas religiosas, assim denominadas pelos próprios sujeitos, que são
parte dos estudos desta antropóloga. (Para uma discussão aprofundada sobre a polissemia deste termo,
etnográfica e analiticamente, ver Cardoso 2004, 2007).
12
CARDOSO, 2009, p. 198.
13
CARDOSO, 2007, p. 345.
14
Idem, p. 319. Itálicos no original.
15
DELATORRE, 2012, no prelo.
241
dos outros sujeitos sociais – vivos ou já mortos – afinal são conhecidos
como "espíritos", "santos", "entidades", e não como "pessoas". 16

O que pretendo ressaltar destas passagens é o reconhecimento indubitável de que, para o


povo-de-santo, espíritos são sujeitos. As implicações disto permeiam a pesquisa como um
todo. No início, não basta que as intenções de estudar um determinado coletivo sejam
negociadas com os/as filhos/as-de-santo: os espíritos podem contrariar seus médiuns a
qualquer momento, mostrando-se favoráveis ou não às pretensões do pesquisador. Antes de
começar a escrever meu TCC, havia conversado com Rita sobre a pesquisa. Dias mais tarde
recebi de outra pessoa o recado da pomba-gira de Rita para mim, deixado no Terreiro em que
ambas então trabalhavam: 'Diz praquele um começar logo os estudos dele, que eu quero que
ele fale de mim'. Ao longo do trabalho de campo certamente ocorrerá uma série de
negociações com os espíritos: há certos assuntos que não podem ser livremente conversados,
certos objetos e locais que somente pessoas com permissão prévia podem ter acesso, e há,
ainda, aquilo que somente os espíritos estão autorizados falar, mostrar, manipular, etc.

De alguma forma, então, os espíritos acabarão por estar envolvidos na pesquisa como sujeitos
– os procedimentos formais serão a eles estendidos (seja a pedido do acadêmico e/ou do
povo-de-santo), e estarão a eles subordinados, vez que sem seu consentimento, nada se faz.
Trabalhar em campo com o povo-de-santo é lidar com pelo menos dois povos: o 'povo-da-
terra' e o 'povo-de-Aruanda'.17

Pesquisas com sujeitos outros?

Não é jamais ele mesmo nem o outro


que ele [o etnógrafo] encontra ao final de sua pesquisa.
Lévi-Strauss 18

16
CARDOSO, 2009, p. 206.
17 Os espíritos chamam os humanos de 'povo-da-terra', e 'povo-de-Aruanda' é uma das maneiras com que os
médiuns chamam a coletividade espiritual. Aruanda é sinônimo de “além”, “céu”, “orum” - o espaço onde
habitam espíritos (maus e bons) e os orixás.
18
LÉVI-STRAUSS apud GOLDMAN, 2003, p. 463.

242
Levar adiante uma pesquisa baseada nesta socialidade do povo-de-santo não implica
quaisquer impedimentos, exceto nos casos em que o pesquisador/a não tenha interesse efetivo
em buscar compreender/conhecer seus objetos(/sujeitos) de estudo; e/ou por motivos de
impedimentos “técnicos”, por assim dizer, que destoem de propostas verdadeiramente
antropológicas – e este me parece ser o caso dos entraves de nossas pesquisas em relação à
CONEP.

A dificuldade inicial em ambos os casos, segundo percebo, parece advir da incapacidade de


alguns (grupos de) pesquisadores em “suportar a palavra nativa”,19 e tive experiências
acadêmicas em que me deparei com tais posicionamentos. Ao expor meu pré-projeto nas
disciplinas destinadas à elaboração do projeto de TCC e de seu desenvolvimento,20 ficou claro
que a desestabilização de certas noções tende a ser encarada com alguma resistência. Ferreira
(2011), especificamente sobre estas exposições e debates 21, escreve que questões como estas
“[s]ão relativamente pacíficas” 22 – destaco o relativamente de seu texto. Com efeito, ouvi de
colegas e professores colocações do tipo: “Você está assumindo que espíritos são como
pessoas!”; “Como afirmar isso? Isso é uma crença nativa!”; “Você está usando uma categoria
nativa enquanto categoria analítica!”, etc.23

Obviamente, não se trata de “crer” com os nativos – até porque isto implicaria na suposição
de que eles crêem;24 além disso – e independentemente de se compartilhar ou não os saberes
deste ou daquele grupo com o qual se pesquisa (e que por ventura pode ser o mesmo em que
ocorrem outras práticas), não entendo que a pesquisa antropológica deva revelar, explicar ou

19
GOLDMAN, 2009, p. 130.
20 Refiro-me às quatro disciplinas disponíveis na grade do curso de graduação em Ciências Sociais desta
Universidade. Duas delas para a elaboração do Projeto de Pesquisa do TCC e as demais para as discussões sobre
o andamento deste, respectivamente: Métodos e Técnicas de Pesquisa 1 e 2, e Seminários de Pesquisa 1 e 2.
21 Em seu Trabalho de Conclusão de Curso, Ferreira escreve: “Recentemente, nas aulas de Seminário de
Pesquisa, tive o prazer de ler e discutir, entre outros, o projeto de pesquisa de meu colega Franco Delatorre
(2010), que ao estudar Almas e Angola, uma religião de matriz africana, circunscreve como sujeit@s de sua
pesquisa também os próprios espíritos que tomam os corpos dos s@s interlocutor@s human@s. Certamente, sua
opção metodológica não ecoou do mesmo modo que as incursões etnográficas de Favret-Saada [...]: tanto porque
50 anos depois, questões como a suscitada por ele são relativamente pacíficas [...]”. (2011, p. 20-1. Itálicos e
arrobas no original).
22
FERREIRA, 2011, p. 20.
23 Também aconteceu de serem feitas alusões à minha suposta “natividade” religiosa (isto é, pelo fato de eu
pertencer a uma religião afro-brasileira – o candomblé – e por 'trabalhar' com espíritos manifestados em meu
corpo), o que explicaria, para os/as autores/as destas falas, a minha “séria crença”, por assim dizer, e a minha
suposta confusão do eu-nativo com o eu-pesquisador.
24 LATOUR, 2002. Bruno Latour escreve que a noção moderna de crença não é um “estado mental”, mas “um
efeito de relação” (2002, p. 15) em que uma das partes diz conhecer, julgando a outra iludida; uma das partes diz
saber, enquanto a outra ainda não. É usada invariavelmente em oposição a ideias como fatualidade, evidência,
descoberta, etc – estas pressupondo um saber que seria mais qualificado, correto, objetivo e desejável em
detrimento às “meras crenças” – nesse sentido, o discurso sobre crença versus realidade tem efeito vexatório.
243
sequer alcançar o “ponto de vista” ou o “pensamento nativo” (se é que tal conteúdo
homogêneo e objetivamente apreensível exista). A antropologia que anteriormente qualifiquei
como verdadeira seria aquela em que se permite “contaminar” ou ser afetado 25 por “modos
[diversos] de experienciar e de [se] estar no mundo”. 26Uma tal relativização do nosso aparato
conceitual é também uma postura de abertura à diversidade, ao por em diálogo as teorias da
disciplina e as “colhidas” em campo não apenas para que as diferenças entre elas sejam
“respeitadas, ignoradas ou subsumidas”, mas assumindo a positividade dessas diferenças,
reconhecendo a consequência de que possam “desestabilizar o nosso pensamento”,
conduzindo “a reflexão antropológica até ao seu limite”. 27 Estes seriam “os únicos critérios de
qualidade disponíveis na nossa disciplina – qualidade, é evidente, infinita e
28
interminavelmente aperfeiçoável”.

Caso contrário, a antropologia resumir-se-ia a uma aplicação de nossas próprias ideias, de


nossos conceitos, meramente encaixando outros saberes, outras teorias – outros mundos de
visão,29 enfim – em nossas formas estabelecidas de entender as coisas, estendidas aos
“outros” sob o nome de (um certo tipo de) relativismo cultural. Isto – “a desqualificação da
palavra nativa, [para] a promoção daquela do etnógrafo” 30 –, que foi e seguramente é feita por
muitos pesquisadores também da nossa disciplina equivale, segundo desconfio, à proposta
oposta a da própria antropologia.

Antropologias cujo empreendimento visa “levar a sério” e respeitar31 os mundos que adentra
podem encontrar obstáculos em instâncias nas quais este posicionamento não é
compartilhado. Por mais que certas dificuldades de se adequar pesquisas com sujeitos outros
às citadas diretrizes da CONEP sejam previsíveis, analisarei brevemente algumas que
considero mais importantes, e que certamente encontram correspondência em outros estudos
que têm como tema alguma(s) das várias religiões afro-brasileiras.

25
FAVRET-SAADA, 2005.
26
CARDOSO, 2009, p. 207. Itálicos no original.
27
GOLDMAN, 2009, pp. 130-2.
28
Idem, p. 130.
29
CASTRO, 2002; 2004.
30
FAVRET-SAADA, 2005, p. 156.
31 “Respeitar” é uma palavra que às vezes pode soar algo ingênua. Entretanto – e pelo contrário – ela torna-se
aqui uma expressão importante por estar inserida neste contexto de discussão de embates éticos.
244
Éticas em jogo: ética para quem?

Langdon e Maluf (2008) discutem pontos cruciais acerca da pertinência e da aplicabilidade


das normas da Resolução nº 196 do Ministério da Saúde a pesquisas como as de antropologia.
Dentre eles, cito de passagem a burocracia que atrasa e mesmo impede projetos;32 as supostas
garantias que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) dão às partes
envolvidas mas que, sem ser uma solução às questões éticas, pode servir com um (perigoso)
“cheque em branco” ao pesquisador,33 e há ainda outros pontos igualmente relevantes.
Entretanto, aqui reunirei as questões imbricadas ao TCLE, por entender que ele concentra boa
parte das questões que possivelmente se chocariam de forma mais direta, em um Comitê de
Ética em Pesquisa que seguisse rigidamente as resoluções aqui discutidas, com minhas
pesquisas.

O TCLE intenta garantir que “todos os sujeitos da pesquisa [estejam] esclarecidos


adequadamente sobre os objetivos, procedimentos e responsáveis da pesquisa, para decidir se
vão participar ou não”.34 O Termo lhes garantiria privacidade e anonimato, além de fornecer
instruções sobre como o participante poderia declarar-se desligado da pesquisa. 35 Deve ainda
ser elaborado em linguagem clara e acessível, impresso e assinado por todos os participantes
da pesquisa, ou por seus responsáveis caso se trate de crianças, pessoas com “doença mental”
ou de “sujeitos de substancial diminuição em suas capacidades de consentimento”.36

Consta, na Resolução, que:

c) [O TCLE deve] ser assinado ou identificado por impressão


dactiloscópica, por todos e cada um dos sujeitos de pesquisa ou por seus
representantes legais; e, […]

e) em casos de comunidades culturalmente diferenciadas, inclusive


indígenas, deve-se contar com a anuência antecipada da comunidade através

32
LANGDON, 2008, p. 128.
33
MALUF, 2008, p. 142.
34
LANGDON, p. 128.
35
Idem.
36
Ministério da Saúde, 1996, p. 192.
245
dos seus próprios líderes, não se dispensando, porém, esforços no sentido de
obtenção do consentimento individual. 37

Maluf, então, indaga:

O que fazer com a assinatura do Termo no caso de populações não-letradas?


Até que ponto a pesquisa antropológica pode ser concebida em termos de
uma individualização tão absoluta de seu “sujeito de pesquisa”? – a noção
de indivíduo embutida nesse formato de termo de consentimento é bastante
subordinada a uma visão ocidental moderna do sujeito de direito. 38

Como critica Maluf, as concepções de indivíduo e de sujeito implicadas nestas normas nada
têm de universal e evidente: são tão locais e específicas quanto aquelas que possam ser
encontradas. Entretanto, através desta legislação, acabam se impondo de jure e, de acordo
com elas, os únicos sujeitos da pesquisa seriam, de fato, os médiuns, as pessoas "concretas",
os cidadãos. Especificamente em meu campo, no qual participam da pesquisa médiuns e
“seus” 'guias' (entidades espirituais), não apenas esta noção de indivíduo apresenta-se como
problema, como se faz necessário discernir que para ambos os sujeitos etnográficos, médiuns
e espíritos são, necessária e irremediavelmente, dois sujeitos diferentes – e não um, ou o
mesmo sujeito.

Particularmente, nunca soube que uma entidade, dentre as que são cultuadas em Almas e
Angola, escrevesse ou assinasse seu “nome” 39 – e, mesmo que haja entidades que porventura
o façam, não me parece haver muito o que fazer com o “nome” da entidade (a entidade não é,
ao menos do ponto de vista burocrático-legal, uma cidadã); e a impressão dactiloscópica não
resolve a questão de “assinar” o termo, visto que o polegar em questão (a princípio) não é
precisamente o seu, mas o de seu médium.

37
Ministério da Saúde, 1996, p. 191-2. Grifos adicionados.
38
MALUF, 2008, p. 142.
39 Se as entidades e divindades de Almas e Angola possuem um 'nome', estes são bastante diferentes daquilo
que entendemos como sendo um 'nome' em nossa sociedade. Abarcando outras composições, o 'nome' de uma
entidade de Almas e Angola pode ser revelado por sua vontade própria, ou em rituais específicos em que sabê-lo
é necessário; entretanto, estes nomes são recorrentemente omitidos, por razões diversas. As entidades podem,
também, 'escrever' seus nomes através dos chamados 'pontos riscados': geralmente feitos com um giz ('pemba')
em uma tábua redonda, os 'pontos riscados' são compostos de símbolos místicos que revelam informações
diversas sobre o espírito que o 'desenha', a serem decifrados pelos médiuns capacitados/as. Seria esta uma grafia,
uma assinatura aceita nos TCLEs?
246
Pergunto-me “que indivíduos seriam estes?”, perante as definições da CONEP. As questões a
serem feitas, que se desdobram a partir desta, são, basicamente: até onde, considerando todas
as etapas institucionais de uma pesquisa, os espíritos poderiam ser efetivamente considerados
seus sujeitos, e não apenas os médiuns, sem que isso seja um entrave ao pesquisador?; de que
vale uma pesquisa comprometida eticamente com os sujeitos etnográficos quando os
procedimentos que visam efetivá-la são desde já um desrespeito e/ou um impasse em relação
às concepções locais?

Para os médiuns, os espíritos possuem “autonomia plena” – maneira pela qual a Resolução
designa os sujeitos com os quais a pesquisa deve ser “preferencialmente desenvolvida”.40
Assim sendo, os espíritos não são localmente considerados incapacitados que necessitariam
de responsáveis os quais por eles responderiam. Pedir que médiuns respondam por “seus”
espíritos (e vice-versa) seria, no mínimo, uma incongruência: espíritos trabalham no corpo
dos médiuns, mas de forma alguma são os médiuns eles mesmos, tampouco pertencem aos
médiuns, ou são a estes obedientes ou subordinados (em geral, apenas o contrário é que pode
ser verdadeiro)41.

No meu caso, o documento que visa garantir práticas éticas é, ele mesmo, antiético. Mas, se
espíritos não assinam o TCLE – já que seria antiético pedir aos médiuns que o façam
(desconfio que, para estes, a situação seja mesmo ridícula) – como prosseguir com a pesquisa,
visto que os CEPs (Conselhos de Ética em Pesquisa) de cada instituição, por onde devem
passar todas as pesquisas envolvendo seres humanos, exigem os TCLEs?

Se o consentimento não resolve tudo, também é preciso lembrar que nosso “método
etnográfico” não pode servir como um “cheque em branco” para o antropólogo. 42 Maluf
escreve que é ao longo do trabalho de campo que as diversas questões, como a questão ética,
vão sendo negociadas no processo de pesquisa (ibid.) com os sujeitos – ela não pode,
portanto, ser pensada somente a priori. Então, todos estes processos – de pesquisa,
metodológicos e de busca de comportamento ético, que se iniciam antes do trabalho de campo
e que não se esgotam no fim desse período –, mutuamente imbricados, precisarão ser

40
Ministério da Saúde, 1996, p. 189.
41 Espíritos não são “dos médiuns”: esta é a razão de ter utilizado aspas nos pronomes possessivos, ao escrever
“seus” 'guias' ou “suas” 'entidades' ao longo do texto. Por mais que os médiuns chamem de seus os espíritos que
recebem em seus corpos, os espíritos insistem em quebrar o sentido de “posse”, de pertencimento e mesmo de
“apreensão” implicados nestes pronomes: o termo é usado pelos médiuns de forma indicativa (para apontar de
que espíritos fala, já que muitos deles têm os mesmos nomes), apontando ainda alguma intimidade e afetividade.
42
MALUF, 2008, p. 144.
247
problematizados constantemente a cada pesquisa, de forma crítica e reflexiva. Ou seja, não há
uma fórmula que dê conta de todos e quaisquer problemas éticos 43.

Considerações finais

Os tipos de contato com o campo, de convivência no campo e de relações com aqueles com
quem a pesquisa vai sendo feita condicionam (ou mesmo determinam) os rumos da pesquisa,
até mesmo sua factibilidade. Refletir sobre estes temas e expô-los no texto são tarefas
indispensáveis no trabalho antropológico atual. Questões em torno de métodos de, e de ética
nas pesquisas antropológicas, lidas, discutidas, e aquelas experimentadas em campo, têm
evidenciado que “as próprias características epistemológicas da disciplina [...] exigem o
trabalho de campo”44, levando a pensar que aquilo que será produzido pelo antropólogo/a está
sujeito ao campo.45

A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em seu código de ética, reafirma as


responsabilidades dos antropólogos/as frente à comunidade antropológica e à Constituição,
ciente de que grande parte da pesquisa depende da interação entre antropólogos/as com seus
sujeitos etnográficos, num engajamento mútuo sobre os rumos das pesquisas, as condições de
seu desenvolvimento, os métodos através das quais será realizada e, é claro, os dilemas éticos.

Assim como frisam Langdon e Maluf, as preocupações no tocante à ética em pesquisas


buscam impedir as violências praticadas em seu nome (geralmente sob o “selo” da ciência).
Mas estes caminhos têm nos colocado dificuldades e penso, a exemplo destas antropólogas,
ser imprescindível expô-las e debatê-las.

43 Exemplo disto é a escolha pelo uso de nomes fictícios. Goldman argumenta, contra um parecerista que
reclamara acerca dos nomes não-fictícios usados em seu artigo, que este procedimento em nada garante o
anonimato (2003, p. 470, nota 3). Em minha etnografia (2012, no prelo), utilizei nomes fictícios, mas isso não
foi suficiente: detalhes sobre as trajetórias das mães-de-santo, e características peculiares de espíritos, as quais
precisei descrever, retraçavam redes e revelavam os sujeitos caso fosse lida por certas pessoas do povo-de-santo
– o que não é improvável, o povo-de-santo possui uma história de consumo de materiais antropológicos (v.
Delatorre, id.; Silva, 2000; Cardoso, 2007); além disso, na defesa de TCC de Farias (2009), vários médiuns de
seu Terreiro compareceram, e a notícia sobre um “trabalho científico” sobre Almas e Angola rapidamente se
espalhou para além dos limites daquela 'família de santo'. Em minha pesquisa, enfim, escolhi conversar com as
duas mães-de-santo e pedir-lhes permissões para publicar ou não aquele conteúdo, com aquela forma.
44
GOLDMAN, 2003, p. 462.
45 “Sujeito ao campo” num amplo sentido, mas destaco aqui a sujeição aos acordos éticos, durante a estada em
campo, chegando ao conteúdo e às convenções do texto final da pesquisa.
248
No mais, me pergunto como conciliar o que me dizem os sujeitos etnográficos com o que
exige a Resolução nº 196? Como (se possível for), compatibilizar as categorias nativas com
aquelas “legalmente definidas”?46 Seria possível, então, realizar pesquisa com sujeitos que
não são humanos, mesmo não havendo legislação para tanto? Se não, tal pesquisa deveria ser
arquivada? Se sim, deveria ser ajustada unilateralmente a uma das “éticas” 47, a apenas uma
destas “visões de mundo” em questão? Seria a saída uma desobediência (que só poderia ser
coletiva) à CONEP?48 O dilema e o desafio deste “lugar” do antropólogo está em conseguir
ser duplamente ético, ou em sustentar duas éticas que em algum momento se encontram no
fazer antropológico – as quais podem ser destoantes, como no caso que apresento.

Como argumenta Maluf (2008), as dimensões ética e metodológica constroem “o tripé de uma
antropologia crítica e comprometida [por remeterem à] questão política”. 49 Assim, se “[o]
caráter contextual das considerações [no Anexo 3] desenvolvidas implica em revisões
periódicas desta Resolução, conforme necessidades nas áreas tecnocientífica e ética”, 50 cabe
perguntar-se, ainda, acerca da real disposição às mencionadas revisões e às suas subsequente
alterações – necessárias, porque geram não somente entraves no processo de pesquisa, mas
porque refletem-se politicamente ao longo do processo de pesquisa.

Referências

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ASSOCIAÇÃO Brasileira de Antropologia. “Código de Ética”. Disponível em:


http://www.abant.org.br/?code=3.1. Acesso em: 18 jul. 2012.

46
Ministério da Saúde, 1996, p. 189.
47 Com aspas porque não são questões éticas que a Resolução propõe, mas, segundo a designação encontrada
no próprio documento, são Normas. E normas sobre éticas – como o termo sugere, elas visam normatizar
éticas.
48 Questões como a que exponho foram debatidas pelas antropólogas Antonella Tassinari (NEPI-UFSC), Ilka
Boaventura Leite (NUER-UFSC), Miriam P. Grossi (NIGS-UFSC) e João Pacheco de Oliveira (MN/UFRJ)
no Colóquio João Pacheco de Oliveira: “Índios misturados”, ética e a atuação do antropólogo, realizado
em julho/2012 na Universidade Federal de Santa Catarina.
49
MALUF, 2008, p. 146.
50
Ministério da Saúde, 1996, p. 187.
249
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252
O exercício etnográfico no estudo das religiões: um olhar de
dentro1

Frederico Santos dos Santos2

O estudo de religiões, especialmente no uso da técnica de observação-participante, envolve


segredos que podem torná-los públicos. Quando o pesquisador é um iniciado na religião seu
comprometimento com estas informações torna-se mais relevante. Este trabalho tem como
objetivo traçar algumas pistas de como o etnógrafo deve construir sua metodologia de
investigação levando em consideração seu novo papel: um fiel que observa ou um
pesquisador que participa. Esta questão torna-se importante tanto para o pesquisador, quanto
para os fiéis que o identificarão no campo.

O trabalho de campo, em Antropologia, é caracterizado pela observação direta feita pelo


pesquisador,3 diferentemente dos dados fornecidos pelos viajantes, missionários e
administradores. Segundo Laplantine,

a etnografia propriamente dita só começa a existir a partir do momento no qual se


percebe que o pesquisador deve ele mesmo efetuar no campo sua própria
pesquisa, e que esse trabalho de observação direta é parte integrante da pesquisa. 4

A etnografia proporciona ao pesquisador uma imersão na cultura local. Passa ele a vivenciar
costumes, rituais, comportamentos a fim de apreender a ambiência daquela cultura. Desta
forma, os antropólogos não tem a pretensão de demarcar limites da neutralidade axiológica,
considerando-se um observador de Marte.5 O antropólogo não observa a cultura do outro de
forma mais objetiva que eles mesmos. O trabalho de campo está recheado de subjetividades e
conflitos, mas fornece um ponto de vista diferente.

1
Gostaria de agradecer aos médiuns da Sociedade Espírita Ramiro d’ Ávila Alexandre da Luz, Cláudio Bonfim
da Luz, Luci Coimbra Ferreira, Lucilia Coimbra Ferreira, Luiza d’Ávila, Marilda Coimbra Ferreira e Walter
Bonfim da Luz pelo apoio dispensado. Estes agradecimentos também são estendidos a Doly Oliveira Rocha, Eva
d’Ávila Beth, João Carlos Lopes, Marisa Bonfim Lopes, Rosalinda Prestes Nardin, e Walter Bonfim da Luz
médiuns da Sociedade Espírita Circulo da Luz que sempre me recebem de forma muito atenciosa.
2
Mestre em Ciências Sociais pela PUCRS. Professor da Universidade de Passo Fundo. Contato:
santosquadrado@hotmail.com.
3
MALINOWSKI, 1984.
4
LAPLANTINE, 1996, p. 75.
5
POPPER, 1978.
253
Desenvolver trabalho de campo, especialmente com uso da técnica de observação
participante, envolve a revelação de segredos e mistérios dos rituais. Não são raros os
trabalhos acadêmicos que revelam a conversão do pesquisador,6 a fim de “vivenciar” a
religião. Contrariamente aos autores citados, este trabalho é realizado por um médium que
desenvolve pesquisas acadêmicas sobre sua religião. Não tenho intenção de defender minha
posição de religioso, nem tampouco a do antropólogo, mas de levantar algumas interrogações
(subjetivas e objetivas) pelas quais o exercício profissional exige no trabalho de campo. O
objetivo deste trabalho é traçar algumas pistas da construção da metodologia de pesquisa
sobre religiões. A investigação tem uma problemática central: como definir a nova função do
pesquisador no ritual?

Este capítulo está baseada no trabalho de campo que venho realizando em duas sociedades
espíritas, em Porto Alegre: a Ramiro d’Ávila e o Círculo da Luz, ainda em fase exploratória.
Nestas sociedades espíritas, me dedico à compreensão dos rituais de desobsessão realizados
pela família Bonfim. Na Ramiro d’Ávila todos os médiuns da desobsessão possuem relações
de parentesco entre si, ao passo que no Círculo da Luz, somente quatro dos oito médiuns são
Bonfim.

Na Sociedade Espírita Ramiro d’ Ávila, participo do grupo de desobsessão, realizando


palestras aos pacientes de desobsessão, desde 1997, a convite de parentes Bonfim. Há mais de
uma década venho intercalando as funções espirituais com alguns períodos de licença para
pesquisa. Durante o curso de graduação em Ciências Sociais, fiquei afastado de 1998 a 2000,
para realização do Trabalho de Conclusão de Curso.7 Para a pesquisa realizada no mestrado
estive ausente das atividades religiosas de 2002 a 2004.8 Para este estudo estou licenciado
desde o final de 2007. Porém, os afastamentos (e aproximações) solicitados pelo pesquisador
não são construídos racionalmente num cronograma de atividades. Os pesquisados constroem
rituais de passagem específicos ao pesquisador que prevêem alguns momentos, sejam eles
identificados previamente, sejam percebidos muito tempo depois somente no diário de campo.

6
BASTIDE, 1983; VERGER, 1991.
7
No trabalho de conclusão de curso tratei especificamente da sessão de desobsessão realizada por esta família, a
partir da relação entre os diversos espíritos superiores (SANTOS, 2000).
8
Na dissertação procurei analisar como os médiuns Sociedade Espírita Ramiro d’Ávila constroem sua identidade
religiosa mediante a submissão das entidades da umbanda às do espiritismo (SANTOS, 2005).

254
Em janeiro, quando iniciaram as sessões na Sociedade Espírita Ramiro d’ Ávila logo reiterei
meu pedido de licença “este ano eu não vou participar como médium, vou somente fazer as
observações para minha pesquisa”. Permaneci sentado numa cadeira, distante da mesa,
fazendo anotações no diário de campo, com vistas a exotizar o familiar. 9 Queria observar a
sessão de um outro ponto de vista e queria que os médiuns compreendessem isto. Julguei que
o recesso de final de ano, durante o mês de dezembro, fosse suficiente. No entanto, definir o
meu novo papel no ritual não se faz num período pré-ritual.

Durante o ritual, o antropólogo perceberá “o grau adequado de proximidade e distância que


deve manter na convivência cotidiana com os grupos, e nem sempre os preceitos
malinowskianos de buscar uma intimidade total com os observados pode ser uma boa
estratégia”.10 O limite entre proximidade e distanciamento é tênue. Especialmente para o
religioso que deseja fazer etnografia de seu próprio povo.

Nestes primeiros meses de pesquisa, muito mais do que me aproximar, busquei o


distanciamento com os pesquisados e com o ritual, apesar de freqüentar semanalmente os
rituais. Idealizei um distanciamento das funções da sessão, mas, paradoxalmente, fiquei mais
integrado do que nunca. Passei a desempenhar funções raramente antes exercidas.

A sessão de desobsessão da Ramiro conta com oito médiuns compreendidos nas seguintes
funções: uma secretária, um diretor titular, quatro médiuns de comunicação e dois médiuns de
sustentação. Nos meses de janeiro e fevereiro, quando funciona o atendimento de férias,
somente três médiuns estavam disponíveis, por razões profissionais e familiares.

A equipe mediúnica estava constituída com dois médiuns de comunicação e um de


sustentação. Com a ausência dos outros, um dos médiuns de comunicação deveria dirigir a
sessão. Mas, não é aconselhável que a sessão conte somente com um médium de comunicação
pelo desgaste físico e mental exigido. Logo, na primeira sessão fui “convidado” a dirigi-la. Já
tinha exercido essa função outras duas vezes, em razões específicas. Porém, fui informado
que esta atividade seria exercida até março quando a equipe estaria completa.

As funções de um diretor, como a doutrinação dos espíritos, não era novidade seja pelas
observações que já fiz, seja pelas leituras. 11 De qualquer forma, assumi o cargo com

9
VELHOR, 1978.
10
SILVA, 2000, p. 37.
11
LEWGOY, 2000; CAVALCANTI, 1983.
255
relutância. Não queria estar naquela posição. Já havia construído de forma teórica e
metodológica outra função para mim. Durante algum tempo me questionei, “o antropólogo
tem o direito de negar-se à participação religiosa, feita pelos religiosos?”. Na verdade, não são
os religiosos a lhe solicitar participação, mas os deuses, os espíritos. Segundo Julio Braga

Você não diz não ao objeto sagrado. Se você disser não nesse momento,
você nem sequer deveria ser antropólogo dessa religião porque você não
está compreendendo os símbolos todos, os rituais de delicadeza inicial [...]
um ritual de delicadeza que inicialmente pode ser até uma espécie de
reconhecimento da sua presença naquele ambiente religioso.12

Ciente dos chamados do sagrado, procurei responder sem relutar. Passei a ser chamado com
mais freqüência neste período do que quando exercia teoricamente as funções de médium.
Várias vezes em que estava sentado numa cadeira para observação fui convidado a compor a
mesa. Uma convocação bastante sutil, sem palavras, um olhar para mim e outro para a
cadeira. Como se olhar do sagrado me retirasse da condição de pesquisador e me colocasse na
de médium. Não tenho a intenção de contrariar o sagrado, mas também não desejo ter uma
experiência social com os nativos como se fosse minha. Nas palavras de Roger Bastide “é
preciso apelando para um ato de amor, transcender nossa personalidade para aderir à alma que
está ligada ao fato a ser estudado”.13

Se a tensão entre aproximação e distanciamento é uma relação metodológica ainda a ser


resolvida na Sociedade Espírita Ramiro d’Ávila, no Círculo da Luz acreditei que o trabalho de
campo seria menos complicado. Não participo do grupo e não tenho nenhuma relação
espiritual com os médiuns.

Durante os meses de janeiro e fevereiro negociei com os diretores titular e substituto a


pesquisa e a necessidade de realizar a observação por alguns meses. No mês de fevereiro a
diretora titular fez uma cirurgia na perna e estaria afastada da sessão, durante este ano.
Quando fui visitá-la no hospital estavam lá quatro médiuns do grupo e fui apresentado
informalmente a eles. Contudo, seria importante uma autorização da direção da sociedade
espírita. Na primeira sessão do ano, o atual diretor titular me apresentou à vice-presidente.
Explicou-lhe a pesquisa e o meu envolvimento com o espiritismo. Ela autorizou nos seguintes

12
SILVA, 2000, p. 95 apud BRAGA.
13
BASTIDE, 1983, p.84.
256
termos, apontando para o diretor “se tu te responsabilizar espiritualmente e psicologicamente
por ele, tudo bem. É tudo contigo”.

Na sala, à medida que os médiuns chegavam o diretor me apresentava e explicava o motivo da


minha presença. Além disso, perguntava se algum médium tinha alguma objeção em ser
observado. A contrariedade mais enfática foi de um médium, que até então eu não conhecia,
que afirmou

olha guri, eu não gosta de pesquisas. Daqui a pouco tu vais vir com o
microfone e gravador, colocando na boca da gente. Eu não gosto disto.
No hospital espírita, quando eu participava da hipnometria (atualmente
apometria), um jornalista vinham querendo que a gente falasse tudo que
acontecia. Mas, se a direção autorizou eu só tenho que acatar.

Antes de começar a sessão escolhi uma cadeira, abri o diário e coloquei caneta no meio.
Enquanto os médiuns conversavam observei. Não anotei nada. Achei indelicado no primeiro
dia, sair anotando. Mas, também não haveria tempo. Fui chamado a integrar a equipe
mediúnica. O diretor explicou-me dizendo que eu estava “envolvido espiritualmente” e não
deveria deixar a corrente mediúnica. Em outras palavras, eu estava mediunizado, ou seja,
daria comunicação espiritual. Permaneci dois encontros “mediunizado” sem esboçar nenhuma
manifestação. No final de uma sessão ele informou “eu vou fazer uns testes contigo”.

Determinada vez estava sentado entre dois médiuns. A médium do lado informou “se tu não
der passagem ele virá para mim”. O diretor pediu aos médiuns que se concentrassem em mim
a fim de facilitar a comunicação. O médium do outro lado se levantou e ministrou um passe
sobre minha cabeça. O diretor perguntou o que sentia e lhe descrevi os sintomas: “sinto fortes
dores na cabeça, como pauladas, e o corpo dormente” Pediu que me desconcentrasse e os
sintomas passaram.

Deste dia em diante, não passei mais a ser considerado como um “de fora” do grupo. As
informações passaram a ser dadas com menos desconfiança. Como se os espíritos
autorizassem os médiuns a me fornecerem informações. Este caso específico do espiritismo
aproxima-se da situação pela qual passam alguns antropólogos em pesquisas sobre o
candomblé.

257
Por meio do jogo de búzios, o pai-de-santo também procura descobrir o
“santo protetor” do antropólogo, enquadrando-o no sistema de compreensão
de religião, em que os modelos de relacionamento entre as pessoas são
pautados pelos atributos míticos de suas divindades protetores.14

A experiência do trabalho de campo em religiões, tanto para os “de dentro” quando para os
“de fora”, é um exercício metodológico construído na relação com os fiéis e o sagrado. O
trabalho de campo implica na possibilidade de buscar “novas formas de relacionamento
social, por meio de uma socialização controlada. 15 A socialização controlada, a que se refere o
autor acima, pode se compreendida como os rituais de passagem que prevêem, através de um
processo de transição, um novo papel social para o pesquisador.16 Que papel social assumirá o
pesquisador? Como os pesquisados o classificarão frente à pesquisa que pretende
desenvolver?

Estes questionamentos estão presentes, no trabalho de campo, a todo momento. Nas


observações e participações dos rituais das sociedades espíritas Ramiro d’ Ávila e Círculo da
Luz geralmente fico intrigado. Como um praticante do espiritismo, quase sempre sou
identificado como um fiel que ora observa. Esta identificação tem prejuízos metodológicos?
Parece-me que as observações ocupam segundo plano em relação às atividades espirituais.
Como construção metodológica não seria mais apropriado o antropólogo definir-se como um
pesquisador que ora participa? Como o investigador deve definir seu papel em campo levando
em consideração os objetivos de sua pesquisa e o papel designado pelos religiosos?

Para o antropólogo da religião, que a pratica, o ritual assume uma função existencial, assim
como um chamado para participação. Sua pesquisa abre espaço para revelar o bem mais
precioso da religião: os segredos do sagrado. Mas, ele tem o direito de revelar os segredos em
nome da ciência? O singular, o novo é a ele revelado porque é um crente e não um
pesquisador. Qual o comprometimento ético-religioso do pesquisador que observa sua própria
religião?

Claro que muitas destas questões não estão concluídas aqui e tampouco ficam solucionadas
no ato da escrita etnográfica. Mas, cabe ao estudioso das religiões se questionar sobre elas
durante o trabalho de campo.
14
SILVA, 2000, p.90.
15
DA MATTA, 1984, p.152.
16
VAN GENNEP, 1978.
258
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empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia.
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Ávila. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, PUCRS,


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Paulo, nº 220, 1991.

260
Correndo prá Jesus à Beira-Mar:
Esporte, religiosidade e cura na Bola de Neve Church

Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fo e Talita Sene17

Introdução

Este ensaio visa refletir sobre as articulações entre religião, doença, saúde e cura feitas por
alguns corredores do Bola Running – BR – , ministério da Bola de Neve Church de
Florianópolis – BDNF –, adicionando a esta reflexão um assunto correlato, o esporte. Mas
como o esporte se inseriria nesta relação? E mais especificamente, a corrida? O que seria
considerado doença em um contexto esportivo-religioso? Estas são algumas das questões as
quais pretendemos sinalizar ao longo deste texto, feito a partir de entrevistas, bem como de
conversas informais inspiradas no método da observação participante.

O texto se divide em três partes: a primeira aborda – sinteticamente – os procedimentos


metodológicos de uma pesquisa entre autores, sinalizando as dificuldades de pesquisar uma
igreja evangélica em dupla quando os pesquisadores tem diferentes relações com esta, bem
como as negociações feitas pelos mesmos para que a subjetividade de ambos fosse mantida no
texto. Já a segunda parte, contextualiza a BDN e o ministério BR, enfatizando as articulações
entre religião, esporte, doença e cura feita por alguns de seus membros. A terceira faz um
resumo geral do que foi dito anteriormente e traça possíveis caminhos a seguir, já que o texto
não pretende ser conclusivo, mas ensaístico.

1. Start

1.1 A largada para uma perspectiva metodológica entre autores

Embora seja comum que nas ciências humanas sejam feitas pesquisas em grupo, são poucas
as reflexões que tematizam o assunto, principalmente quando a pesquisa em questão é de

17
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão F0 é doutorando em História pela USP, mestre em História pela
UDESC e especialista em Marketing e Comunicação pela Cásper Líbero. Contato: edumeinberg@gmail.com.
Talita Sene é mestranda em Antropologia Social pela UFSC. Contato: talitasene@gmail.com.
261
inspiração etnográfica e feita em uma igreja evangélica. Se o material etnográfico é quase
sempre resultado da “atividade singular do pesquisador no campo, em um momento
específico de sua trajetória pessoal e teórica”,18 como proceder quando duas (ou mais)
singularidades estão juntas em campo? Como fazer quando os mesmos têm relações
diferentes, e por vezes divergentes com a instituição religiosa? Como traduzi-las para a forma
textual sem que as diferentes perspectivas dos autores se perca? Estas questões resumem
nossas principais dificuldades ao pesquisar juntos o ministério BR, da BDNF.

Um dos recursos que encontramos para nos colocar no texto com o fim de procurar
demonstrar algumas das diversas negociações metodológicas entre nós foi a utilização de um
narrador em terceira pessoa nas partes do texto que diz respeito as singularidades de cada
um. Outras negociações foram sendo agenciadas conforme surgiam diferentes questões,
como as que envolviam a ética da pesquisa. Como utilizaríamos as entrevistas? Nomearíamos
as pessoas, como é costumeiro na história oral – da qual Maranhão Fo é partidário e reivindica
radicalização de alguns conceitos? Ou optariam pelo “anonimato”, como é mais corrente entre
alguns antropólogos?19 Outras questões envolviam as entrevistas – ou melhor dizendo, as
entre-vistas – visto que trata-se de trabalho compartilhado entre pesquisador e pesquisado,
que por vezes acaba subvertendo tais papéis. Utilizariam-se de narrativas advindas de
conversas informais na composição de um texto que representaria a entrevista? E postagens
de Facebook, discursos de emails – caberia utilizá-los como parte de discursos “nativos”,
incorporando algumas destas narrativas escritas como componentes de entrevistas? Se
optassem por tal uso, como fariam para referi-las? Advogariam uma intensificação da ideia de
“traição” do texto – admitindo a subversão até consequências inesperadas? E por fim: caso
optassem por radicalizar o texto transcrito e transcriado, quais os desdobramentos éticos?
Uma “conclusão” foi concordada por Sene e Maranhão Fo: quaisquer que fossem os
procedimentos em relação à utilização dos discursos dos colaboradores, deveria atrelar-se
este uso ao conhecimento e aprovação dos mesmos. E mais: não era suficiente repassar uma
entrevista por email aos mesmos para obter uma assinatura eletrônica autorizando a
publicação da mesma. Era preciso mostrar ao entrevistado de que maneira sua entrevista

18
SEEGER, 1980.
19
É importante ressaltar que no caso de alguns antropólogos não ocorre necessariamente o anonimato, mas sim,
a negociação com o sujeito com o qual se realiza a entrevista. Caso a pessoa prefira que seu nome seja colocado,
é feito, porém se a pessoa prefere manter sua privacidade, cria-se um nome fictício. Neste texto, os nomes das
pessoas entrevistadas são fictícios para preservar o anonimato.

262
estava sendo utilizada no processo de bricolagem narrativa – como ela estava sendo (des)
contextualizada.

Tais diálogos deram vista a perspectivas que sinalizavam, antes de tudo, para uma condição
de entre-disciplinas. Ambos os pesquisadores sentiam que – ainda que tivessem tido
formação específica em áreas distintas –, Sene como cientista social/antropóloga e Maranhão
Fo como historiador –, tais fronteiras apresentavam-se cada vez mais borradas. Especialmente
para este segundo, visto que o mesmo não costuma declarar-se um historiador stricto sensu.
Este entendimento de que os limites pareciam cada vez mais móveis, entretanto, trazia em seu
bojo uma dúvida: ambos os pesquisadores já vinham de perspectivas entre-disciplinas? Ou
com o convívio estas foram sendo negociadas e intensificadas? Provavelmente tenha ocorrido
um pouco das duas coisas. O fruto das negociações que fizemos bem como da maneira que
optamos em manter nossas subjetividades podem ser vistos na parte seguinte deste texto.

1.2 Percursos de encontros e (re) encontros

No domingo do dia 02 de setembro de 2012, Sene e Maranhão Fo caminhavam pela Costa da


Lagoa – bairro localizado no leste da ilha de Florianópolis -, quando avistaram Rodrigo
Aldeia - Digão -, pastor da Bola de Neve Church correndo. Digão usava uma camiseta
amarela de dry fit com o slogan do Bola Running, tênis específico para corrida e um aparelho
que o hidratava diretamente enquanto corria. Conversaram brevemente com o mesmo, que os
convidou para ir à BDN. Ao primeiro, disse que seria uma honra que este fosse à igreja e
tomassem um café juntos posteriormente. À segunda, estendeu o convite para que
comparecesse ao culto noturno. Resolveram, naquela mesma tarde, assistir ao culto. Este culto
foi o primeiro contato de Sene com a BDN, porém, o reencontro de Maranhão Fo com a
mesma, dando início à largada de ambos para o campo.

Sene conhecia a BDN somente através dos artigos de Maranhão Fo, que mantinha relações
com a BDN desde 2005. Até então, a relação do último com tal agência evangélica havia sido
marcada por momentos distintos: o primeiro, por sua entrada em campo, o segundo pela
mescla entre participação observante e afeto, e o terceiro, por um distanciamento e desafeto.

O primeiro momento se deu em 2005, quando Maranhão Fo conheceu a BDN e iniciou sua
observação participante na igreja. Já o segundo, entre 2005 e 2006, quando “a grande onda o
263
pegou”. Durante este período, o mesmo frequentou reuniões na sede – que até então era
localizada no bairro do Rio Tavares – e em células, sendo inclusive convidado a participar do
curso de líderes da última e instituído como tal, embora tenha recusado o convite para assumir
o cargo por discordar de diretrizes da agência. Ocupou a liderança do ministério de futebol
society e passou por ministérios como o de Boas Vindas, Assistência Social, Dança e Infantil.
Além disso, promoveu festas gospel da BDN em sua casa, e ajudou em diversas atividades da
igreja, como a construção do half pipe (pista de skate). Quando Maranhão Fo realizou essas
atividades, não havia ingressado no mestrado, porém fazia especialização em Ecumenismo e
Diálogo Inter-Religioso no ITESC (Instituto Teológico de Santa Catarina). Embora no
ambiente da BDN Maranhão Fo fosse visto pelos nativos como fiel, o mesmo sempre se viu e
identificou como pesquisador.

Levando em consideração os aspectos destacados anteriormente, a experiência de Maranhão


Fo se assemelha ao que Loï Wackcant convencionou participação observante, pois suas
reflexões fizeram com que ele próprio se inserisse como objeto e sujeito de observação, tendo
como notas, ao mesmo tempo, as de um pesquisador em campo, e as de um aprendiz de líder,
por exemplo, tornando a experimentação um meio a serviço da observação. Porém, não se
pode negar que Maranhão Fo foi afetado (SAADA, 2005) ao longo de sua experiência. O afeto
aqui aparece não só pelo fato dos fiéis da BDN verem Maranhão F o como um deles, mas
também pelo mesmo, durante aquele período, se envolver com alguns projetos da agência,
fundamentado em alguns princípios cristãos em comum. O afeto em sua experiência não está
ligado ao afeto emocional que escapa à razão, mas “de afeto no sentido do resultado de um
processo de afetar aquém ou além da representação.”20 Ao ser visto como fiel e instituído
líder, Maranhão Fo se deixou afetar por forças semelhantes as que afetam os demais,
estabelecendo um tipo de relação, que “envolve uma comunicação muito mais complexa que
a simples troca verbal que alguns imaginam poder reduzir à prática etnográfica” 21,
concedendo “estatuto epistemológico a essas situações de comunicação involuntária.” 22

O segundo momento tem como característica principal o distanciamento do autor em relação à


BDN. O estopim deste distanciamento se deu quando foi ungido líder de célula e manifestou
vontade de abri-la no Monte Serrat. As lideranças da BDN não aprovaram a localização da
célula, justificando que as pessoas daquela região não desceriam aos domingos para ir ao

20
GOLDMAN, 2005.
21
GOLDMAN, 2005.
22
FAVRET- SAADA, 1990a: 7-9.
264
culto. Decepcionado, Maranhão Fo abriu mão do cargo de liderança, e passou aos poucos a se
distanciar da BDN, criando de certa forma, um (des) afeto. Suas atividades já não eram tão
intensas quanto no primeiro momento, e nesta época, que durou de 2006 a 2010, o mesmo
passou a visitar e frequentar outros ministérios de Florianópolis, como: Assembleia de Deus,
Sara Nossa Terra, Renascer, Metodista, Batista, IURD, Nazareno, Maranata, Banca do Rap
Cristão, Surfistas de Cristo e Calvary Chapel. Em 2008, ingressou no programa de pós-
graduação em História do Tempo Presente na UDESC, com um projeto sobre a trajetória
gospel de Elvis Presley, porém, com a inviabilidade da pesquisa, resolveu ter como campo a
BDN. Sua participação observante de 2005 a 2006 o possibilitou um olhar de perto e de
dentro,23 porém o distanciamento fez com que ele tornasse aquilo que lhe era familiar,
exótico.24

Com a defesa de sua dissertação em 2010, 25 Maranhão Fo retorna para São Paulo e ingressa no
doutorado em História Social na USP, com projeto sobre o trânsito poético das canções de
Rodolfo Abrantes, ex-cantor dos Raimundos e atual missionário da BDN Balneário
Camboriú, o qual foi abandonado logo depois de sua entrada no doutorado. 26

Em 2010, Maranhão Fo participa de alguns cultos da BDN SP a fim de acompanhar suas


permanências e inovações, e em 2011, não faz nenhuma visita a BDN – dando início a uma
não relação com a BDN. A não relação deve ser entendida aqui como física, pois Maranhão
Fo se manteve refletindo sobre a agência religiosa e publicando trabalhos.27 O (re) encontro
com Digão inicia um quarto momento do relacionamento de Maranhão F o com a BDN – que
será abordado no próximo tópico.

Como se pode perceber ao longo do texto, Maranhão F o e Sene tiveram relações – ou não
relações - distintas com a BDN. Essas (não) relações – ambivalentes – são de suma
importância para que se compreenda a forma que ocorreu a entrada de ambos em campo, bem
como a forma que os fiéis os viam ao longo desse curto período de tempo.

23
MAGNANI, 2002; VELHO, 2003,
24
VELHO, 1987.
25
Sua dissertação foi intitulada “A grande onda vai te pegar: Mercado, mídia e espetáculo da fé na Bola de Neve
Church”, defendida em fevereiro de 2010 e orientada pelos professores Márcia Ramos de Oliveira (UDESC) e
Artur Cesar Isaia (UFSC).
26
O projeto foi deixado de lado e substituído por outro, julgado mais relevante para o autor, relativo aos trânsitos
identitários religiosos de pessoas que se classificam em trânsitos de identidades de gênero.
27
Maranhão Fo 2009, 2010a, 2010b, 2011, 2012a, 2012b, 2012c.
265
1.3 A grande onda vai os pegar? Chegando em campo entre (des)afetos

Quando na noite de 02 de setembro de 2012 Maranhão F o e Sene chegaram ao culto, uma


garota com uma camiseta da BDN os direcionou para os lugares vazios, que eram poucos –
cerca de dez, de aproximadamente quatrocentos e cinquenta lugares que a igreja tem como um
todo. Sentaram-se, e assistiram a pregação, pois o momento de louvor já havia ocorrido. Ao
fim do culto, Maranhão Fo manifestou para Sene seu espanto com a diferença do público que
frequentava a nova sede da BDN – localizada agora na Rua Lauro Linhares, Trindade. Ali não
estavam presentes nem 10 pessoas da época em que frequentava a igreja – no Rio Tavares -, e
os que permaneceram foram basicamente os presbíteros. 28 Maranhão Fo foi conversar com
aqueles que conhecia, que ficaram surpresos em vê-lo ali. Perguntavam a ele onde estava, se
congregava em outro lugar. Como muitos se olvidavam de seu estatuto de pesquisador, e
atribuíam a ele o lugar de fiel, Maranhão F o parecia ser visto por estes como o filho pródigo.
Quando Maranhão Fo apresentava Sene, algumas pessoas perguntavam qual era a sua religião,
bem como se conhecia a Palavra. Como parecia que percebiam que Sene não dominava o
linguajar local, desde aquele momento, aos olhos deles Sene figurava como uma possível
convertida, e todos foram com ela muito receptivos, a convidando para retornar.

Maranhão Fo e Sene ainda não tinham claramente o objetivo de pesquisar juntos a BDN,
porém a mudança de sede da igreja do Rio Tavares para a Trindade os deixava inquietos.
Como naquele culto ficaram sabendo que na quinta-feira seguinte, dia 06 de setembro de
2012, iniciaria uma célula29 dentro da UFSC, criaram a hipótese de que poderia haver uma
relação entre a mudança de local da sede da igreja e a conquista de um novo público alvo, os
estudantes da UFSC. A partir de então, passaram a acompanhar as reuniões da célula UFSC.

28
Os presbíteros são pessoas, que segundo o discurso nativo, são levantados por Deus, através de unção e
direção do Senhor ao Pastor. Os mesmos têm diversas funções na Igreja, entre elas preparar e oferecer a ceia,
colocar os copos de água no púlpito para o Pastor, aconselhamento e oração, recolher e cuidar da oferta na casa
de Deus, batismo, visita e unção nos lares, controlarem a saída e entrada no intervalo dos cultos e ajudar nos
eventos. Os presbíteros e suas respectivas esposas se encontram no caso da BDN, na terceira escala de
hierarquia, ficando abaixo do apóstolo e pastor, e das esposas dos mesmos.
29
As células, na BDN, são encontros entre fiéis, mediados por líderes formados a partir de cursos próprios da
agência. Tem o papel de atrair e organizar novos integrantes da mesma, reforçando a mensagem transmitida no
culto de domingo, sanando dúvidas e propiciando um espaço de interação e sensação de pertencimento. Em geral
são realizadas em casas, tendo um líder e um anfitrião, mas podem ocorrer em espaços alternativos, como no
caso da Célula UFSC. Células e ministérios funcionam como agenciadores da midiatização e consolidação da
BDN, já que estimulam a inserção sócio-religiosa do fiel, atuam na instauração de sensação de pertencimento a
uma comunidade de sentido e na adequação aos discursos da agência.
266
Na célula, desde o primeiro dia se identificaram como pesquisadores. 30 As pessoas não
manifestaram nenhuma recusa à pesquisa, porém, os líderes que não conheciam Maranhão Fo,
já que eram novos na BDN, pareciam incomodados com a presença dos pesquisadores –
embora fosse de se esperar que aparecessem pesquisadores na célula, pois estavam no
ambiente da UFSC. Pelo fato da BDN ter como característica principal um discurso bélico,
que enfatiza a luta do bem contra o mal, onde do lado do bem figuram os convertidos que
abriram mão de uma relação com a Babilônia, e do mal aqueles que vivem no mundo,31
Maranhão Fo e Sene pensaram na possibilidade de estarem sendo, ali, vistos como o mal.
Fator este, que ao mesmo tempo em que possibilitava que as portas fossem fechadas para a
pesquisa, as abria, pois como indivíduos perdidos no e do mundo, deveriam ser
evangelizados. Mas como e porque pensaram na possibilidade de estarem sendo vistos como
perdidos?

Como atestou Matheus em uma reunião de célula, há três formas de se estar perdido:

Estar perdido pode ser você nunca ter ouvido falar de Jesus, nunca ter ouvido falar de Deus.
Você não conhece a Deus, você não conhece a Jesus Cristo, se nós não reconhecemos, nós
estamos perdidos. Essa é uma forma de estar perdido. Outra forma são as pessoas que já
ouviram falar de Jesus Cristo, conhecem, aceitam que Jesus Cristo morreu pra salvar nossas
vidas, mas por algum motivo elas estão distantes. Estão distantes do amor, estão distantes de
ver a palavra, estão distantes da comunhão com Cristo. Então essa é outra forma de estar
perdido. Existe ainda uma terceira forma que é aquela pessoa que sabe que Deus existe e que
ele enviou o seu filho para morrer pelos nossos pecados, mas ele toma posse do livre arbítrio e
decide que ele não aceita isso para a vida dele. Então essa pessoa também está perdida, e num
nível diferente que é um nível de que ele se posicionou que não quer aceitar o amor de Cristo.

Maranhão Fo e Sene, devido a suas trajetórias e relações com a BDN, pareciam se enquadrar
em diferentes formas de perdido. O primeiro, como conhecedor da palavra de Deus, porém
distante. Já a segunda, por não conhecer a palavra.32 Um evento de evangelismo feito pela
banda IDE na praça Santos Dumont – conhecida popularmente como praça do Pida -, os
pareceu tornar essa hipótese mais viável. Na praça, enquanto a banda fazia louvor ao ritmo de

30
Já nesta primeira ocasião, Maranhão Fo entrevistou os dois líderes da Célula UFSC da BDN.
31
Maranhão Fo 2009, 2012b, 2012c.
32
Com o curto tempo de pesquisa, Sene ainda não sabe até que ponto pode sustentar tal afirmação, pois
certamente cada pessoa os vê de uma forma. Sendo assim, ela acredita que esta seja uma hipótese inicial, que
pode ser relativizada e descontruída até o final da pesquisa. Já Maranhão F o acredita que alguns membros da
BDN, sobretudo os líderes o vê com desconfiança.
267
gospel reggae, havia um grupo de estudantes da UFSC festejando. O momento ápice do
evangelismo, bem como da festa, se deu quando pediram para que a banda IDE cantasse
parabéns para a aniversariante do grupo de festejantes. A banda não só cantou como, em
seguida, grande parte dos membros da BDN que estavam ali presente - cerca de 50 – se
reuniram ao redor da festa, e oraram por eles. Enquanto Sene fotografava o evento, Maranhão
Fo ficou próximo de uma das fiéis da BDN, e exclamou: “Evangelismo de fogo este, não
irmã?”, que para sua “surpresa”, respondeu: “É a luta do bem contra o mal”, e após alguns
segundos de reflexão: “mas pode também ser a luta do bem contra o desconhecido, o
ignorante, já que eles não conhecem a Palavra”.

A partir desse momento Sene e Maranhão Fo pareciam (hipoteticamente) representar não só


perdidos, mas ainda, se enquadrar em outra categoria das figuras que representam o mal: a do
intelectual. Nas células da UFSC, a desvantagem de ser um intelectual perdido era evidente,
já que por várias vezes a Universidade era vista como um local que, quando não se tomava os
devidos cuidados, ou seja, não se vivia em comunhão com Deus, levava às várias formas de
pecado.33

O lugar dos pesquisadores pareceu receber outro estatuto quando os mesmos passaram a
frequentar os treinos do BR e os cultos dominicais. Sene e Maranhão F o deram inicio à
pesquisa no BR após terem escutado, durante o 2º dia de reunião da Célula UFSC, breve
testemunho de Maurício. Tal testemunho foi ampliado na 3ª reunião, acompanhada por Sene,
quando o mesmo narrou a respeito de duas curas divinas: A primeira dizia respeito a cura de
um problema no coração que, antes do mesmo conhecer Jesus, o impossibilitava de fazer
esportes físicos, principalmente esportes de explosão como a corrida, e a segunda, de uma
breve paralisação nos músculos de seu filho, curado após sua esposa e ele orarem para Jesus,
e passarem óleo de unção na criança.

Sene e Maranhão Fo já tinham pensado em estudar as noções de doença e cura na BDN, e o


testemunho de Maurício parecia para os mesmos uma porta de entrada interessante, sobretudo
o testemunho que fala de si mesmo, onde articula doença, cura divina e esporte. Maranhão F o
e Sene decidiram levar a sério34 a articulação de Maurício, iniciando uma pesquisa no
ministério do BR, e tentando perceber se a articulação feita pela mesmo permanecia no

33
Na peça de teatro realizada pelo ministério Em Chamas, no dia 01/12/2012 a figura do intelecto também foi
enfatizada como pertencente ao lado do mal.
34
VIVEIROS DE CASTRO, 2002.
268
discurso dos outros corredores. Afinal, o que seria considerado doença e cura para os
membros da BDN, em especial, para os do BR? Como a corrida entraria nas relações entre
religião, doença e cura?

A pesquisa só seria possível se Maranhão Fo e Sene participassem dos treinos do BR, e foi o
que os mesmos fizeram. A inserção no ambiente do BR foi rápida e sem empecilhos.
Maranhão Fo e Sene participaram pela primeira vez dos treinos do grupo na manhã do sábado
de 10 de novembro de 2012. Ao chegarem lá, havia apenas quatro pessoas: a personal trainer
Andrea (líder informal do grupo), Juliana, Pedro e Breno. Como os mesmos estavam se
alongando, Sene perguntou se podia correr com eles, que prontamente responderam que sim.
Porém, perguntaram se esta estava acostumada a correr. Sene respondeu que não, e Andrea
passou a ensiná-la os passos iniciais da corrida, dizendo que pela sua falta de costume na
prática esportiva, devia correr durante dois minutos e caminhar cinco, revezando o processo
no percurso que se inicia no trapiche da Beira-Mar Norte, vai até o shopping Beira Mar, e
retorna ao ponto de partida. Enquanto Sene literalmente corria atrás dos nativos, e bem atrás
- como pode ser visto na figura abaixo (fig.1) -, Maranhão Fo fotografava, pois uma lesão no
tornozelo o impedia de correr.

Durante o primeiro treino, Sene correu sozinha, porém, em todos os outros que participou,
inclusive na corrida das mulheres da BDN – que ocorreu no dia 23/11/2012 -, sempre havia
outra mulher correndo com ela. Era nos momentos de corrida que Sene socializava com
algumas das garotas do BR – quase sempre, com aquelas que tinham um ritmo menor de
corrida -, e onde muito mais que aprender as normas da corrida, aprendia as normas da
BDN.35 Neste sentido, Sene era tratada não só como uma criança no mundo36, mas também
uma criança do mundo.37 Sua ignorância frente aos ensinamentos tanto da corrida, quanto da
religião evangélica era o que a possibilitava ser vista de tal forma. Porém, ser uma criança no
e do mundo parecia ser viável tanto para Sene, quanto para as fiéis da BDN que corriam com
ela. Se algumas das atletas da BDN queriam ensinar, Sene queria aprender. Mas porque as

35
Uma das normas aprendidas por Sene durante as corridas foi a das condutas entre gêneros – o que pode ser
expressa no fato de Sene só correr com mulheres. A única vez que Sene viu homens e mulheres correndo
conjuntamente foi durante o primeiro dia que participou dos treinos, sendo que neste dia, o único homem
presente era Breno.
36
SEEGER, 1980.
37
Estar no mundo, e ser do mundo são expressões corriqueiras entre os fiéis da BDN. Ambas são utilizadas para
mencionar pessoas não convertidas.
269
mulheres do BR pareciam tão interessadas em ensinar Sene a correr, por vezes enfatizando
que a mesma cada vez teria mais gosto pela corrida?

(fig 1)
Treino BR do dia 10/11/2012.

Uma possível resposta pode ser dada quando colocado em ênfase o slogan do ministério BR:
Evangelizar com os pés38. Ao correr com algumas garotas do BR, Sene além de aprender a
correr, aos poucos tinha a possiblidade de (se deixar) ser evangelizada, e consequentemente
poderia deixar de ser uma criança no e do mundo.39 O processo de possível evangelização foi
o que neste caso gerou a comunicação (in) voluntária entre Sene e as corredoras do BR, ou
seja, deu espaço a uma das características do afeto.40

Como já dito, enquanto Sene corria, Maranhão Fo geralmente ficava fotografando. Porém,
devido a sua frequência nos treinos do BR, bem como em eventos onde os fiéis da BDN se
reuniam,41 e ainda suas aparições públicas em conversas com lideranças – especialmente
quando Maranhão Fo foi visto pelos membros da BR conversando com Digão depois da
corrida Pague Menos,42 - ele parecia se enquadrar em categorias diversas de classificação

38
Embora ali, elas também evangelizassem Sene com palavras, já que dialogavam ao longo do treino.
39
Neste sentido, a experiência de Sene pode ser comparada a de Geertz (1989), onde o mesmo ao correr com os
nativos de Bali, passa a ser reconhecidos por eles. A diferença aqui é que no caso de Sene a corrida com os
nativos foi algo proposital, enquanto na experiência de Geertz soa como involuntária, já que se estava correndo
da polícia, e não como uma pratica esportivo-religiosa.
40
FAVRET-SAADA, 1990 a, p. 9.
41
Como na peça de teatro do ministério Em Chamas, evangelismos em praça pública e Beira-Mar Norte, corrida
Pague Menos, célula UFSC e nos próprios cultos.
42
Ganhar outro status ao ser visto conversando com lideranças da BDN aponta para mais uma de suas
características, a obediência aos líderes.
270
presente na BDN, e dentre estas a de resgatado, como afirmou uma runner no evangelismo da
praça Santos Dumont.

Sene como passível de conversão, e Maranhão Fo como possível resgatado, se enquadravam


perfeitamente nos projetos do BR, e consequentemente da BDN: resgatar soldados para o
Senhor dos Exércitos43, pois como atesta a Palavra em Matheus 18:14, o Pai não quer que
nenhum dos seus se perca44.

2.Route

2.1 De um floquinho a uma avalanche: Uma breve descrição sobre a BDN

A Bola de Neve Church, agência evangélica de características majoritariamente


neopentecostais, foi fundada em 1999, por Rinaldo Luiz de Seixas Pereira - para seus fiéis,
‘apóstolo Rina’.45 O público-alvo inicial da BDN era formado por “jovens” de classe média e
média alta da capital e litoral paulista. Grande parte destes, surfistas, skatistas e atletas em
geral. Em maioria, fãs de gêneros como o reggae e o rock e conectados à internet. O
ciberespaço, aliás, é a principal plataforma de midiatização da BDN, o que a distingue da
46
maioria das agências religiosas, inclusive das consideradas neopentecostais.

43
Como aponta Maranhão Fo 2012a, 2012b e em A Bola de Neve avança, o Diabo retrocede: preparando davis
para a batalha e o domínio através de um Marketing de Guerra Santa – no prelo – a batalha espiritual é uma das
principais características da BDN. A alusão a expressões relacionada aos domínios da guerra é uma constante
entre os fiéis de tal agência religiosa. Como exemplo, podemos citar um dos ministérios que compõe a BDN, o
ATACAR. As músicas figuram como um dos principais meios de guerrear. A expressão Senhor dos Exércitos
usada no texto faz alusão ao título de uma das músicas cantadas com mais frequência nos cultos que Maranhão
Fo e Sene assistiram.
44
Palavra proferida por Léo durante a 2a célula da UFSC.
45
Rina é formado em propaganda e marketing, pós-graduado em administração e também surfista.
46
Em relação à inferência de que o público da BDN é formado em sua maioria por pessoas de classe econômica
alta e média, isto é muito bem identificado em unidades praianas como Florianópolis e Balneário Camboriú (SC).
Observando a BDN Floripa em 2012, Maranhão F0 e Sene perceberam que o público continua formado por
“jovens” de classe média e média alta, o que pode ser entendido através de marcadores como vestimentas,
adornos e carros estacionados. Outro indicador está em alguns dos serviços oferecidos antes, durante e depois dos
cultos: além das tradicionais Cantina e Lojinha da Bola, a nova unidade conta com o Filadélfia Sushi Bar. Na
igreja-sede em São Paulo (e em outras unidades), por sua maior heterogeneidade, fluxo de visitantes e efeitos da
exposição midiática secular, é possível que a informação relativa à classe econômica da maioria dos fiéis possa
vir a ser mais relativizada. Novos estudos poderão suprir o entendimento sobre mudanças no perfil da BDN,
agência em processo de resignificação de sua expressão identitária religiosa. Para mais detalhes, ver Maranhão Fo
2010a.
271
O contexto de geração no qual se insere a BDN aponta para uma “juvenilização da fé”, já que
47
seu público é formado principalmente por sujeitos de 12 a 35 anos. Com a midiatização
sofrida pela agência, seu público ampliou e tornou-se mais heterogêneo, ainda que houvesse
um esforço da mesma em reverberar uma identidade religiosa de “igreja de surfistas”. 48 As
diferentes unidades da BDN podem ter públicos-alvo distintos. A sede da BDN Floripa, por
exemplo, tem intensificado os esforços para conquistar os estudantes da UFSC (Universidade
Federal de Santa Catarina). Este é seu nicho principal, seguido de surfistas/skatistas,
corredores e outros tipos de atletas.

Para o entendimento de como a BDN vê seu surgimento, como propaga sua identidade e
discursos, Sene e Maranhão Fo enfatizam na importância da maior ferramenta midiática da
agência, o sítio www.boladenevechurch.com.br. Segundo a seção Quem somos, a gestação da
BDN Church se deu em 1993, com reuniões organizadas por Seixas após problemas de saúde
e “experiência pessoal com Deus”:

A história da Igreja Bola de Neve em São Paulo confunde-se um pouco com a própria
história do Apóstolo Rina. Depois de uma hepatite, dores muito fortes e uma experiência
pessoal com Deus, nascia uma reunião descompromissada, mas que precisava de um
nome. Não demorou para aparecer um que expressasse a realização do sonho, uma Bola de
Neve, que começando pequenininha, vira uma avalanche. Isso foi em Dezembro de 1993. A
Bola de Neve, na direção de Deus, ia rolando e cumprindo seu papel.49

Alguns autores, entretanto, discordam desta narrativa. Segundo Aline Durães e Eduardo
Refkalefsky, a conversão se deu “em 1992, depois de um conturbado carnaval, que culmina
em uma overdose” onde o “surfista paulista Rinaldo Pereira fica internado em um hospital”.
Para eles, “a experiência traumática levou Rinaldo a associar a cura à ajuda divina e a utilizar
o tempo de repouso para ler a Bíblia e se converter ao cristianismo.”50

Para Claiton Cesar e Marcos Stefano, “Rinaldo Seixas teria contado que, em 1992, após uma
overdose de cocaína, agravada por uma crise de hepatite C, ficou cego e paralisado por alguns

47
Segundo Maranhão Fo 2012 a, o conceito de juventude ultrapassa a idade cronológica e as pessoas podem
simplesmente sentir-se jovens.
48
MARANHÃO Fº, 2009, 2010 a, 2012a.
49
Quem Somos. Bola de Neve Church. Disponível em < www.boladene.com.br/index2.php?secao=quem>
Acesso em: 10 ago. 2012.
50
REFKALEFSKY; DURÃES, 2007.
272
instantes.” De acordo com eles, Rinaldo “pensou que fosse morrer, mas, após uma oração em
que entregou sua vida ao Senhor, recuperou-se milagrosamente,” passando a frequentar a
Renascer e montando “um ministério para alcançar jovens praticantes de esportes radicais.” 51

Tendo ou não havido overdose, o que faz o sítio é apontar para a história conjunta da igreja e
de seu fundador. Um momento original é assim construído, configurando um mito fundador a
este respeito, e a partir da construção deste momento de fundação, a BDN cria uma
representação identitária sobre si mesma, associada à superação e experiências pessoais com
Deus.52

Talvez tenha sido a partir deste momento fundante que a BDN tenha constituído algumas das
características mais relevantes de sua identidade religiosa: a cura e a batalha espiritual. Para
esta agência, considerada pelos próprios nativos como “cheia de fogo”, “avivada”,
“neopentecostal” e “onde o poder de Deus se manifesta através de libertações”, a cura é
associada diretamente à batalha e a fé, e sinal de que o curado está em conexão com o
sagrado, é obediente à Palavra e aos líderes da agência e tem a revelação de Deus.

Teologias da batalha espiritual, domínio, cura, saúde perfeita e prosperidade são referentes
discursivos importantes da BDN, sofrendo processos contínuos de (re) significação e (re)
apropriação por seu marketing de guerra santa em trânsito. 53 Este, também é observado em
relação aos eventos esportivos da agência. Se em 2010 Maranhão Fº escreveu que os eventos
organizados pelo ministério Sports enfatizavam nome, logotipo e slogan54 da BDN, em 2012,
Sene e Maranhão Fº observaram ora uma discrição em eventos, outras uma ênfase na
“marca”. Como exemplo do primeiro, podemos citar a competição de skate – realizada no dia
1o de Setembro – nos half pipe localizados na Avenida Beira Mar, quase em frente ao
Shopping Iguatemi, próxima da UFSC e de sua nova sede, na Trindade. No evento, não havia
faixas, cartazes ou propagandas da BDN, ainda que líderes tenham orado pelo mesmo e feito

51
CESAR; STEFANO, 2009. A nova cara do Evangelho. Revista Eclésia. Edição 114. Disponível em:
<www.eclesia.com.br/revista.asp?edicao_num=114>. Acesso em: 10 jan. 2009.
52
A expressão mito fundador percorre a obra de Marilena Chauí Mito fundador e sociedade autoritária, 2000. De
maneira semelhante ao que faz a BDN, conforme explica Chauí a respeito do suposto achamento ou descoberta
do Brasil e da América, o que existiu foi a criação de um país e de um continente pelos europeus, ou seja, no
caso do Brasil, houve uma invenção marcada pela ideia de “terra abençoada por Deus”. Para Marilena Chauí, o
mito fundador é constituído de “invenções históricas e construções culturais”. CHAUÍ, 2000, p. 35. A obra
referida é Mito fundador e sociedade autoritária.
53
MARANHÃO Fº, no prelo.
54
O logotipo, de forma arredondada como convém a uma bola de neve, traz o nome da agência, com o
anglicismo Church (igreja) destacado abaixo e seguido do slogan In Jesus we trust (em Jesus nós cremos),
remetendo ao slogan dos dólares: In God we trust (em Deus nós cremos).
273
breve exposição doutrinária. Tal evento segue o modo como os acontecimentos esportivos são
realizados pela BDN São Paulo (Sede). O In Time Skate Conquest, que em sua edição de
2012 ofereceu premiação de R$ 20 mil ao melhor skatista, mostra o esforço identitário da
BDN em afirmar-se como “igreja de jovens esportistas”. Entrando no site da InTime, não há
referências diretas à agência. Contudo, o InTime é um novo ministério da BDN,
configurando-se como novo serviço de organização e divulgação de eventos do marketing
esportivo-religioso da BDN.55 Já como exemplo do segundo, como mostraremos mais adiante,
podemos citar o BR.56

2.2 Evangelizando com os pés: esporte, religião e cura no BR

O ministério BR surgiu oficialmente no ano de 2010 na cidade de Florianópolis, em


decorrência de reuniões “descompromissadas” de um grupo de líderes e frequentadores da
BDN que tinham apreço pela corrida, e consequentemente começaram a participar de
maratonas, vendo nisso não só uma oportunidade de cuidar do corpo, mas também, de
evangelizar, pois ao ver pessoas de diversas tribos correndo em competições, pensaram:
“porque não estar ali e glorificar o nome de Deus?”. Esse pequeno grupo de corredores era de
início formado por Boka, Digão, presbítero André, Breno, dentre outros. Segundo um dos
runners, até então era tudo uma brincadeira, mas foi ali que o BR começou.

De início, o BR não era um ministério, porém, com o grupo de adeptos correndo para Jesus
aumentando, o apóstolo Rina percebeu o potencial de crescimento do mesmo e anunciou que
este seria um ministério que iria evangelizar com os pés, que iria pregar sem palavras. Como
atesta Janaína, “a gente não precisa falar, a gente corre”. Mas, “devemos pregar sempre, se
preciso, usando palavras.”

A partir de então o BR tal qual uma bola de neve se espalhou por outras cidades onde há
BDN, como: Balneário Camboriú, Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, São Cetano do Sul, São
Bernardo, Santo André, Ribeirão Preto, Campinas, Atibaia, São José do Rio Preto, Brasília,

55
InTime. Disponível em: <www.intimeculture.com/gallery.asp>. Acesso em: 12 ago. 2012. Já conversamos
com os líderes destes ministérios, com o intuito de pensarmos futuro artigo relacionando os mesmos.
56
Sene e Maranhão Fo perceberam, em 2012, diversos novos produtos (serviços) da BDN Floripa. Dentre eles –
além do BR e da Célula UFSC, destacam-se o ministério Bola Remo, Em Chamas (de teatro), e Moto-Clube da
Bola. Futuramente, Maranhão Fo e Sene passarão a frequentar os mesmos com o intuito de perceber a inter-
relação entre os mesmos.
274
Belo Horizonte, João Pessoa, Rio de Janeiro, Niterói e Vila Velha. Sobre o crescimento do
ministério, Janaína argumentou que “se metade das Bola de Neve do país tiver um Bola
Running com 10 corredores, em breve teremos o maior contingente de corredores por grupo
do Brasil”.57 Mas, como é possível evangelizar com os pés? Se atentarmos para a forma como
o grupo se estrutura, bem como articula seus treinos e participa de competições, a resposta à
essa pergunta se torna mais clara.

O grupo se divide hierarquicamente em: líder espiritual, líder, e demais membros, sendo que
todos são corredores. O líder espiritual é o presbítero Boka, que tem como função
supervisionar o andamento do ministério, assim como gerenciar a fan page do grupo.58 Nos
cargos de lideranças subordinados ao líder espiritual, estão Kaue e Fernanda, que são
responsáveis pela organização material das coisas, como, fazer inscrição dos grupos em
corridas.

Atualmente, o ministério BR conta com mais de 20 membros participando de maneira


flutuante dos treinos. Destes, aproximadamente 15 correm em competições – tais quais Volta
à Ilha, Mountain Do e Corrida Pague Menos.59 Os mesmos correm por categorias e distâncias
60
diferentes, que correspondem ao potencial físico de cada um.

O treino acontece duas vezes por semana, aos sábados e quartas-feiras, sendo aos sábados
matutino, e as quartas-feira, noturno. O último é também conhecido como Bola Night Run.
Ambos têm como locus a pista de corrida da avenida Beira-Mar Norte, e como ponto de
encontro o Trapiche, local da avenida que aparentemente tem a maior concentração de
esportistas, já que é um dos únicos pontos onde estacionamento, lanchonete -
consequentemente banheiros – e aparelhos de ginástica se encontram em proximidade, além
de ser um ponto nobre da avenida, próximo ao Shopping Beira Mar. Os treinos duram entre
61
uma e duas horas. O matutino se inicia 08h30, enquanto o noturno, 19h30. É importante

57
Conversa informal após a prova da Corrida Pague Menos.
58
Não podemos afirmar com toda convicção que é somente Boka quem administra a fun page. As lideranças do
BR são subordinadas a outras – a do Pr. Digão, bem como do apóstolo Rina.
59
No ano de 2013, o grupo masculino do BR competiu no Volta à Ilha, e ainda, Pr. Digão e Boka participaram
de uma corrida no deserto do Atacama.
60
Nas competições, os grupos costumam ser divididos por gênero, idade e percurso, por exemplo. O que é uma
prerrogativa das mesmas. Em relação ao BR existe uma dicotomia de gênero que não tem necessariamente a ver
com o preparo físico. São questões de gênero. A dicotomia de gênero é reiterada, visto que homens e mulheres
treinam em separado. Embora nem todos sempre corram em grupos, há os que correm em grupo e os que correm
separados. Já no tocante a idade não ocorre divisão semelhante a feita nas competições..
61
Durante o mês que Maranhão Fo e Sene participaram dos treinos, perceberam que as quartas-feiras tem mais
corredores que os sábados.
275
destacar que a maior parte dos corredores correm com a camiseta-uniforme do BR, e aqueles
que não a têm, geralmente correm com camisetas referenciando a BDN 62.

(fig 2) Modelos de camiseta BR63

O momento do treino é subidividido em cinco partes: Oração inicial, alongamento, breve


aquecimento, corrida/caminhada, e oração final. A Oração inicial é ministrada seguindo a
hieraquia do grupo. Se o líder espiritual está presente, o mesmo a faz, porém, se o mesmo não
está, a oração se torna responsabilidade dos outros líderes. Caso nenhuma das lideranças
esteja presente, a oração é feita por Andrea, que é personal trainer e vista por muitos como
líder informal do grupo.64 As orações se assemelham muito ao “bricoleur”de orações que se
segue:
Pai, agradecemos por estar juntos aqui, poder correr e evangelizar com os pés. Que as
pessoas vejam a sua glória em nossos semblantes e possam ser tocadas pela sua presença.
Coloca anjos com espadas de fogo ao nosso redor, afastando toda investida do diabo, e que o
inferno seja mais uma vez envergonhado nesta noite, para tua honra e glória. Protege cada
um aqui de lesões e machucados, e vai cuidando de nosso caminho de ida e de volta.
Agradecemos em nome de Jesus, amém.65

Após a oração os alongamentos são iniciados, durando um curto período de tempo, no qual
são alongados braços, cabeça e perna. Até então todos estão juntos. Em seguida, as pessoas
que vão correr ficam próximas uma das outras, assim como as pessoas que vão só andar, ou
que vão fazer revezamentos entre caminhar e trotear. No momento do breve aquecimento

62
No último treino do BR, Maurício explicou que tem intenção de mandar confeccionar uniformes em amarelo e
preto para os membros que participarem de corridas, como forma de maior divulgação do BRF.
63
Corrida Pague Menos63 – 25/11/2012. Créditos: Talita Sene.
64
Durante praticamente todos os treinos frequentados por Sene e Maranhão Fo, foi Andrea quem deu as
coordenadas para o grupo e fez as orações. E quando alguém tinha dúvidas, era a ela que recorriam. Porém,
quando perguntaram para Maurício a função de Andrea no grupo, o mesmo respondeu que ela não ocupava
nenhum cargo de liderança, e que era só professora de educação física.
65
Narrativa criada por Maranhão Fº, fundamentado em sua experiência como ex-líder do ministério de futebol
society entre 2005 e 2006 e em escuta compartilhada com Sene de treinamentos da BRF em novembro de 2012.
276
todos vão troteando para o lado esquerdo da Beira Mar – sentido ponte Hercílio Luz –, por
cerca de 100 metros. Em seguida, cada pequeno grupo dispara em seu próprio ritmo para o
lado oposto, se distanciando um do outro. O grupo de maior preparo físico corre geralmente 8
km, e o de menor, caminha, ou revesa caminhada e corrida por 1 km. As pessoas são livres
para escolher a quilometragem, bem como a velocidade que querem correr. Se os grupos e as
pessoas pertencentes aos mesmos saem juntas, elas chegam em separado, principalmente os
homens, que fazem percursos mais longos. As pessoas que chegam antes ao ponto de chegada
ficam esperando as outras, socializando durante este tempo. As conversas sempre giram em
torno de assuntos da BDN. Ninguém vai embora até todos chegarem para fazer a oração final.
Quando todos chegam, a oração é feita em conjunto, e tem os mesmos moldes da oração
66
inicial, adicionando a ela o agradecimento por todos terem chegado bem. Depois disso, as
pessoas vão para casa.

Toda – ou quase toda – última quarta-feira do mês eles colocam uma tenda próxima ao
Trapiche, na qual o grupo de gospel reggae IDE se apresenta. Quando participam de
competições, a tenda também é armada – porém sem os músicos –, e todos vão devidamente
uniformizados com a camiseta do BR.67 Antes e depois da corrida, também oram. Além disso,
as mesmas contam com um fotográfo oficial da BDN.

O que os difere de um grupo de corrida que não faz parte de uma agência evangélica, a não
ser pelo momento da oração? Porque eles evangelizariam com os pés, se para os cristãos a
palavra é prerrogativa básica para ganhar fiéis para Jesus?

A resposta de Mônica a essa pergunta deixa tudo mais claro.

Eu acho que a gente evangeliza calado por ter o In Jesus we trust em nossa camiseta. Assim
já está sendo conhecido né. No Mountain Do, por exemplo, teve também os fotógrafos do
Bola Running que tiraram fotos. As pessoas de outras equipes às vezes entram no Facebook,
vêem as fotos e se interessam em conhecer a igreja. Isso gera a interação também, né? Então
a gente evangeliza calado, mas os outros corredores sabem que é uma equipe cristã de uma
igreja evangélica.68

66
Sene e Maranhão Fo nunca viram ninguém se machucar ao longo dos treinos, então não sabem como seria feita
a oração caso isso acontecesse.
67
A tenda foi armada em ambas as competições/corridas que fomos observar – Pague Menos e Corrida das
mulheres, esta direcionada às mulheres da igreja. Vimos a tenda também nas fotos de outras corridas, porém não
sabemos se ela é armada de fato em todas as corridas.
68
Entrevista com Mônica, no dia 25/11/2012.
277
Correr com a camiseta-uniforme do BR é então a principal forma de evangelizar com os pés,
calado. Ao estar com o slogan in Jesus we trust em destaque no peito e nas costas, eles já
estão atestando a presença de Jesus para aqueles que desconhecem a Palavra. Pois, como
afirma Janaína,

Só em quatro paredes às vezes é complicado as pessoas chegarem. Então o Running também


é isso, de trazer pessoas para ver que tem pessoas que não só temem a Deus, tem uma
religião, mas não são pessoas bitoladas. Às vezes é uma forma sutil da pessoa chegar para a
igreja, conhecer Deus através do BR e dos outros ministérios da igreja.69

Além do uso da camiseta, alguns corredores da BDN, usam táticas gestuais para mostrarem
para quem estão correndo. Na corrida observada por Sene e Maranhão F o, uma das
corredoras, ao perceber que seria fotografada enquanto corria, apontou para o slogan da
BDN.70 Outra, ao chegar no ponto final da corrida, fez gestos apontando para o céu.

O tipo de estratégia de evangelismo utilizado pelos corredores do BR, principalmente o uso


de gestos, se assemelha muito às estratégias de um dos maiores ministérios de esportistas
evangélicos do Brasil: Os Atletas de Cristo.71 Reinaldo Olécio Aguiar, em texto onde reflete
sobre o futebol entre os mesmos, mostra que “o ato de apontar para o céu em gratidão a uma
suposta bênção divina se tornou lugar comum entre os jogadores evangélicos”.72

Se o propósito dos atletas do BR é evangelizar com os pés, que lugar ocupa para estes a noção
de competição, de vitória?

Para os corredores do BR parece ser mais importante vencer a si mesmo, ou seja, se superar,
do que vencer outros competidores, embora a vitória de certa forma importe sim, afinal,
colocaria em evidência a agencia religiosa, assim como Jesus. Como destaca Janaína:
“Competição? Tem os profissionais e tem os amadores. Muitas vezes os amadores querem
uma posição boa, mas tem aquilo de querer melhorar o seu tempo.”

69
Idem nota 62.
70
Após a corrida, Sene e um grupo de garotas da BR foram tirar fotos no estande da Medley, onde as fotografias
eram gratuitas e saiam instantaneamente. Como a foto saia tal qual aparecia em uma tela voltada para o publico,
duas corredoras tentavam se posicionar de modo que aparecessem sutilmente em fotos alheias apontando para o
slogan da BDN.
71
Atletas de Cristo é um ministério que reúne atletas profissionais de diversas modalidades esportivas
provenientes de diferentes igrejas evangélicas. O grupo surgiu em 1982 e tem como objetivo pregar o evangelho
para atletas profissionais não cristãos.
72
AGUIAR, 2011.
278
A noção de autosuperação presente entre alguns corredores do BR, quando associada com a
história da igreja, bem como com os seminários de cura e libertação parece ser um dos bons
caminhos para pensar a relação entre a cura, religião e esporte no BR, embora, não seja o
único.
***

Quando Sene e Maranhão Fo resolveram estudar a relação entre doença, esporte e cura no BR,
inspirados pelo testemunho de Maurício – onde a cura aparecia relacionada à doença física –,
imaginaram que escutariam testemunhos semelhantes, falando de lesões que foram curadas
pela fé e da eficácia da cura divina perante a biomedicina. Porém, além de escutar
testemunhos semelhantes ao do mesmo, quase sempre que questionavam os corredores sobre
a relação do ministério com a cura, os mesmos respondiam fazendo uma oposição entre
drogas e corrida cristã, enfatizando que a última tiraria as pessoas das drogas. O que eles
estavam falando sobre doença e cura quando faziam tal relação? O que eles queriam dizer
sobre droga?

Tudo ficou um pouco mais claro quando Janaína, ao falar dos propósitos do BR disse que a
corrida era um “meio não só de liberação, de promoção de cuidados saudáveis, mas também
uma forma de evangelizar e levar Jesus Cristo num ambiente onde as pessoas aparentemente
são saudáveis”. Janaína, com “aparentemente saudáveis” quis dizer de forma sutil que
“muitos atletas são consumidores e dependentes de drogas que aumentam e melhoram a
performance, o que geraria nas mesmas uma prisão”, pois “a pessoa só consegue, ou acha que
consegue chegar a determinados pontos se consumir drogas”. 73 Janaína faz uma oposição
clara entre saúde e drogas, sendo que a última aparentemente representaria o mal a ser
combatido.

Já Mônica, ao falar sobre o assunto, destaca que:

Tem um pessoal - os dependentes químicos - que se voltam para o esporte. Que fazem essa
junção entre o Bola Running e o Nova Vida. No último Mountain Do já tiveram três
dependentes químicos. O que liga a saúde e um pouco também a comunhão.74

73
Entrevista com Janaína, 25/11/2012.
74
Entrevista com Mônica, 25/11/2012.
279
Uma análise sobre o conteúdo de tais falas deixa claro que tanto Janaína quanto Mônica
colocam droga em oposição à saúde, porém o que cada um percebe como droga não parece
ser exatamente a mesma coisa. Mônica a concebe como substâncias tais quais cocaína e crack,
ao passo que para Janaína drogas também são certos estimulantes hormonais. Esta
ambivalência de sentido corresponde à reflexão que aparece em Os Corpos intensivos, de
Eduardo Viana Vargas, em torno do que se entende como drogas ilegais e legais. 75
Para este, é necessário se precaver contra uma distinção natural entre drogas lícitas e ilícitas, e
reconhecer que as drogas não são somente

substâncias químicas, naturais ou sintetizadas que produzem algum tipo de alteração psíquica e
corporal, e cujo uso em nossa sociedade, é objeto de controle (caso do álcool ou tabaco) ou repressão
(caso das drogas ilícitas) por parte do Estado. Mesmo que trivial, é preciso não esquecer que drogas
76
são ainda todos os fármacos.

Nesse sentido, entra para a categoria de drogas outras substâncias tidas como lícitas, como: as
prescritas pela ordem médica “que visam produzir corpos saudáveis” – remédios - e “drogas
autoprescritas em virtude dos ideais de beleza – anoréticos -, de habilidade – esteroides e
anabolizantes -, e de estado de espírito – ansiolíticos e antidepressivos”. 77

O que Mônica concebe como droga, corresponde ao que a sociedade coloca como ilícito, ao
passo que Janaína junta à categoria de droga também algumas das substâncias tidas como
lícitas, substâncias hormonais, por exemplo. Como já dito, ambas se opõem à noção de saúde,
e neste caso, tanto física quanto espiritual. Sendo assim, quando relacionada ao consumo de
drogas – lícitas e ilícitas -, a corrida aparece como restauração e incentivo à produção de
corpos saudáveis física e espiritualmente. No primeiro caso, ela ajudaria, segundo Janaína,
“na parte de liberação da serotonina e endorfina, hormônios que suprem a necessidade da
droga, ou daquilo o qual a pessoa tinha uma dificuldade”, enquanto no segundo, “do princípio
da restauração espiritual” que livra de prisões e cadeias “que impedem que as pessoas atinjam

75
VARGAS, 1998. Vargas propõe analisar o problema do consume de drogas – lícitas ou ilícitas – sob uma ótica
epistemologicamente positiva, não recriminando-as, nem fazendo sua apologia, sim fazendo um deslocamento de
perspectivas, onde fosse possível “tanto avaliar a ‘doença’ ou a droga sob o ponto de vista da ‘saúde’, quanto
avaliar a ‘saúde’ do ponto de vista da ‘doença’ ou da droga”. Segundo o autor, essa mobilidade é essencial para
que se permita fazer a crítica da ‘doença’ ou da droga através da ‘saúde’ e a crítica da ‘saúde’ através da
‘doença’ e da droga, em nome, diríamos [...] nem da ‘doença’ e das drogas paramedicamentosas ou não, nem da
saúde e das drogas medicamentosas, mas de uma ‘grande saúde’ sem todas essas ‘drogas’”.
76
VARGAS, 1998, p.122.
77
VARGAS, 1998, p. 123.
280
seus objetivos e que as pessoas cumpram aquilo que Deus a chamou para cumprir”. A relação
entre cura e corrida mostra que “tem coisas que precisa lidar não somente no campo físico,
mas também no campo espiritual”.

Na relação estabelecida entre corrida, doença, cura e saúde exposta acima, a corrida aparece
como um meio de cura, embora o processo de curar muitas vezes não se inicie
necessariamente na corrida, mas sim, no ministério Nova Vida. Mas, a relação do BR com a
cura pode também ser entendida como forma de contra-dádiva do sujeito curado. O
testemunho de Maurício, apresentado abaixo, exemplifica tal relação:

Dou Glórias a Deus todos os dias, pois hoje corro, mas nem sempre foi assim.
Em 2002 fui diagnosticado com um problema cardíaco irreversível, que me impediria para
o resto da vida de praticar esportes de explosão, como corridas. Em 2008 conheci Jesus,
que veio a se tornar meu Único e suficiente Senhor e Salvador. Um dia, pela misericórdia
d’Ele, recebi uma palavra de cura liberada, em que foi profetizado que meu coração estaria
curado. Duas semanas depois, sem perceber, comecei a praticar esportes normalmente... até
que resolvi ir ao médico, crendo que estava curado, mas queria a confirmação de um
profissional da área medica. Fiz todos os exames e o médico me informou que meu coração
era como um coração de um menino e que eu nunca poderia ter tido um problema desses e
ter me curado. Ele não acreditou quando eu disse que tinha essa doença, mas eu lhe falei
que sozinho não poderia ter sido curado, mas que Jesus Cristo estava na minha vida e havia
me curado! Hoje, para honra e gloria de Deus, corro com meus irmãos do Bola Running,
louvando a esse Deus porque Ele é bom, misericordioso e me devolveu a saúde e minha
qualidade de vida!!! Acredite, Deus quer te ver sorrir! Deus te abençoe! 78

No caso de Maurício, a corrida opera como contra-dádiva à cura divina, podendo assim ser
entendida pela teoria da reciprocidade de Marcel Mauss: 79 Deus deu a cura a Maurício –
dádiva –, que hoje corre no BR para honrar e glorificar o nome do Senhor – contra-dádiva.
Assim a dádiva – cura – instaura a aliança de Maurício com Deus.

Uma reflexão sobre os propósitos do BR aponta para o fato de que o ciclo da reciprocidade
não para por aí. Maurício, como corredor evangélico, tem o propósito de agradecer ao Senhor
evangelizando com os pés. Neste momento, ele pode agraciar outras pessoas convidando-as
para conhecer Jesus, dando a possibilidade das mesmas serem curadas – seja física ou

78
Testemunho de Maurício recebido por e-mail no dia 27/11/2012.
79
MAUSS, 2004.
281
espiritualmente –, estendendo a rede de alianças para outras pessoas. Aqueles que receberem
essas novas dádivas, consequentemente, poderão manifestar a vontade de agradecê-las,
porém, não necessariamente sob a forma de corrida. 80 Como Mariana afirmou para Sene,
“quando se recebe a graça, você quer passá-la para frente imediatamente”.81 Tudo parece
operar como a última corrida vista por Sene e Maranhão F o, ou seja, uma corrida de
revezamento.82

As relações apontadas por Sene e Maranhão F o entre doença, cura, esporte e saúde no BR,
remetem a própria história de origem da BDN – que está interligada à história de Rina. Como
destacado na primeira parte de route, a BDN é uma igreja evangélica que tem como principais
características a cura e a batalha espiritual, sendo a cura, vitória desta batalha contra forças
malignas. Apóstolo Rina, vence o mal – doença - após experiência de contato com Deus,
superando-a e recebendo a cura. Quando curado, dá inicio às reuniões da Bola de Neve, que a
princípio era um ministério destinado a jovens esportistas – sendo boa parte destes adictos ou
ex-adictos. Aparecem na história do BR todos os elementos presentes na origem da BDN:
drogas, esporte, doença, saúde, cura e superação e batalha, e todos, mais uma vez interligados,
como na economia do dom. 83 Para usar a metáfora da própria agência evangélica, tudo evoca
uma bola de neve.84

3. Arrival and news routs

Ao longo do texto, Sene e Maranhão Fo tiveram como intuito apontar para a relação entre
esporte, doença, saúde e cura no BR, e mostrar como a corrida opera a partir de dois circuitos
dentro da lógica de cura da BDN.

80
Mariana, por exemplo, agradece a Deus cantando por ter ganhado uma nova voz após uma cirurgia.
81
Mariana em conversa informal com Sene no dia 07/12/2012, durante o reveza UFSC.
82
A última corrida assistida por Sene e Maranhão Fo foi o reveza UFSC, no dia 07/12/2012. Os corredores do
BR não participaram da prova, porém treinaram ao redor da UFSC. Neste dia, o BDN se fez presenta na UFSC
não só pelo BR, mas também, e principalmente, pela banda IDE, que fez um show a convite dos organizadores
do reveza UFSC, em uma das partes do percurso da corrida durante todo o evento. A banda tem acompanhado os
corredores em grande parte dos eventos que os mesmos participam, assim como tem acompanhado os eventos da
célula UFSC. Futuramente, Maranhão Fo e Sene como intuito observar a relação que um grupo tem com o outro.
83
MAUSS, 2004.
84
Entre as experiências de Rina e Maurício, outras se configuram como mediadoras, midiatizadoras e
agenciadoras da consolidação da agência, como os processos de cura de Denise Seixas – esposa de Rina, líder do
ministério das Mulheres do Bola, do ministério de Louvor e Adoração, líder dos conjuntos Tribo de Louvor e
Ruth`s – , e Rodolfo Abrantes – ex-cantor dos Raimundos, convertido após episódio de cura, e atualmente líder e
missionário da BDN.
282
O primeiro, como meio da cura, onde através da corrida contra a droga – bem contra o mal –
a cura representa a superação, a busca por corpos saudáveis física e espiritualmente. Já no
segundo, a corrida aparece como contra-dádiva da cura recebida, gerando um sistema de
prestações totais85 que vai criando novas alianças, não precisando necessariamente voltar sob
forma de corrida. Neste sentido, todos parecem ser partes das sementes plantas há tempos
atrás por irmãos, possibilitando que a geração de Samuel se levante em todo lugar.86

Maranhão Fo e Sene apontam que a economia do dom que figura no BR parece remontar à
própria história de origem da BDN, tornando o BR como parte do sistema de prestações totais
gerados pela cura de Rina. Desta forma, falar de cura em contextos religiosos é falar da mesma
como “uma realidade construída social e culturalmente”, o que significa, “explorar a
perspectiva dos atores na análise do processo terapêutico” não só através da “compreensão da
dinâmica interna do ritual”, mas também “a partir de um contexto mais amplo de onde se
desenvolve a experiência da doença e cura”.87

A cura proporcionada pela biomedicina, no caso da BR, não parece estar em oposição à cura
através da religiosidade. O que ocorre é a visão de um meio de cura completando o outro,
onde as fronteiras entre natureza e cultura – biológico e cultural -, são derretidas, quase
líquidas. Como afirma Janaína:

A gente não pode se desfazer também das leis físicas. A medicina está ai para isso. Eu acho
que é tudo muito simples: Até onde a mão do homem chega, Deus não intervém, a partir de
onde a mão do homem não consegue mais agir, é o momento onde o sobrenatural, aquilo
que excede o natural intervém. Os médicos existem, assim como existem os antropólogos,
os historiadores, os professores de educação física, senão viveríamos todos como querubins
na terra, mas não é o papel, senão a gente não estaria aqui, estaria lá.

A narrativa de Janaína é uma dentre várias possíveis, e demonstra o caráter provisório,


transitório e contingencial deste texto. Novas observações e novas entrevistas num trabalho
entre-autores e entre-perspectivas poderão provocar os deslizamentos em direção a novos
fiordes de conhecimentos.

85
MAUSS, 2004.
86
Geração de Samuel http://letras.mus.br/fernandinho/565530/#selecoes/565530/
87
RABELO, 1994, p. 54-55.
283
Novos percursos, com outras saídas e chegadas em campo, se farão necessários – neste texto,
os pesquisadores tiveram sua entrada em campo representada através de treinamentos
distintos: Maranhão Fº foi participante-observante e observador-participante, e escreveu
sobre a agência concomitante e posteriormente. Sene recebeu seu treinamento inicial através
de alguns dos artigos deste. Um treino posterior apresentou-se a partir das “sementes plantadas
há tempos atrás” – aproximadamente três meses – pelos runners que acolheram os
pesquisadores, também no intuito de evangelizar um e reconduzir a fé do outro. A ideia de
uma geração de Samuel que se levanta em todo lugar foi demonstrada nesta última etapa do
campo de Sene e Maranhão Fº: a UFSC foi o território ocupado por uma agência que tem
como características consideráveis não só a cura e libertação, como a batalha e o domínio
espirituais. A entrada do ministério de evangelismo IDE na UFSC articulou os dois campos de
pesquisa de Maranhão Fº e Sene, aqui relatados: a Célula UFSC e o Bola Running. E
representou o fim de uma etapa, a conclusão deste trabalho de campo. Ao menos, até que a
próxima corrida se inicie.

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