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Devir-cósmico: a arte como linha de fuga ao

antropocentrismo do pensamento ocidental


Rico

Perspectivismo e animismo
O perspectivismo cosmológico ameríndo irrompe como uma crítica radical ao
antropocentrismo paradigmático do pensamento ocidental. Pensamento cujo fundo comum parece
ser a velha máxima protagórica – considerando seus desdobramentos e metamorfoses no decorrer
da história da filosofia, pois, o que se trata de indicar aqui com sua menção é o seu eco nessa
história – de que o homem é a medida de todas as coisas. Esse antropocentrismo expulsa todas as
formas não-humanas das esferas do pensamento e da cultura: animais, plantas e pedras como o
“outro absoluto”, separado do homem pelas fronteiras da humanidade desse homem que não aceita
nada que não seja humano. O homem, separado da natureza (do não-humano), impõe à natureza sua
forma, e afirma para si uma espécie de “sobrenatureza”, a partir da qual ele projeta no não-humano
sua humanidade e o enclausura na exterioridade de sua não-humanidade. Estabelece-se, a partir daí,
uma transcendência que abre para uma relação de dominação do humano sobre o inumano. E não é
à toa que para Nietzsche (p. 54), a educação (i.e domesticação) pelo sistema da cultura da moral
aparece como sendo o processo pelo qual o homem é como que separado de sua animalidade. Mas
tal separação só é possível porque se parte do pressuposto de que o homem é algo distinto dessa
animalidade, que enquanto alteridade radical adquire um sentido puramente negativo: o “bárbaro”, a
“besta loura”, mas também o selvagem das Américas.
Mas o perspectivismo oriundo da metafísica animista dos povos ameríndios se oferece como
uma alternativa à velha imagem do pensamento. Ora, em que consiste o animismo? Ele consiste em
afirmar um vínculo originário entre a humanidade e a não-humanidade. Viveiros de Castro assim
descreve a cosmologia ameríndia:
Os mitos indígenas descrevem uma situação originária onde todos
os seres eram humanos, e a perda (relativa) dessa condição humana
pelos seres que vieram a se tornar os animais de hoje. Ou seja, se
para nós os humanos “foram” apenas animais e se tornaram
humanos, para os índios os animais “foram” humanos e se
tornaram animais. (CASTRO; MOURA, p. 1)

No princípio, humanos e não-humanos (os animais e outros seres da floresta, como os


espíritos etc.) povoavam um mesmo plano de imanência. Mas em que consistia esse plano de
imanência? Para responder a essa pergunta é preciso evocar a história da separação entre os
humanos e os não-humanos. Ora, segundo uma via evolucionista, o homem separou-se de sua
natureza, isto é, de sua animalidade, e tornou-se, enfim, homem. O homem, portanto, é o produto da
separação entre natureza e cultura, sendo essa última aquilo em que consiste a humanidade do
homem. O reino da cultura distingue-se do reino da natureza e o homem nasce em seu seio – só
pode nascer em seu seio, é preciso acrescentar. O fundo comum entre humanos e não-humanos é a
animalidade. Mas, há uma virada na cosmologia ameríndia: o fundo comum entre o humano e o
não-humano não é mais a animalidade, mas a humanidade, de modo que “a grande divisão mítica
mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura”. O
homem, assim, não abandona sua animalidade para, depois, conquistar sua humanidade, mas é o
animal que se torna, nas palavras de Viveiros de Castro, “ex-humanos”, perdendo suas propriedades
humanas. O homem apenas manteve essas propriedades, sendo aquele que não sofreu diferenciação
desde a origem, permanecendo “igual a si mesmo” (CASTRO, 1996).
Contudo, é preciso frisar que no mito ameríndio a natureza não se afasta da cultura ao ponto
de os animais desumanizarem-se completamente. Como afirma Viveiros de Castro (1996), as forma
exterior dos animais, a pele etc., é tão só um “invólucro”, uma roupagem que reveste uma forma
interna humana. Não há, da parte dos animais, uma perda completa de sua humanidade, uma
entrega à animalidade pura simples, como se poderia pensar caso se partisse de uma perspectiva
ainda antropocêntrica. Eles ainda podem ocupar – e no mito ameríndo efetivamente ocupam – o
lugar do humano. Donde se conclui que “os animais também são gente” (Idem, 1996). Eis a grande
descoberta do perspectivismo: existe uma pluralidade de espécies de seres no mundo (além de
humanos propriamente ditos, há os animais, os espíritos, os entes da floresta etc.), titulares de
consciência e de cultura, ao mesmo tempo em que se veem, também, como humanas, em que o seu
outro aparece como não-humano:
Assim, por exemplo, as onças se vêem como gente, vendo ainda
vários elementos de seu universo como se consistissem de objetos
culturais: o sangue dos animais que matam é visto pelas onças
como cerveja de mandioca etc. Em contrapartida, as onças não nos
vêem, a nós humanos (que naturalmente nos vemos como
humanos), como humanos, mas sim como animais de presa: porcos
selvagens, por exemplo. É por isso que as onças nos atacam e
devoram. Quanto aos porcos selvagens (isto é, aqueles seres que
vemos como porcos selvagens), estes se também se vêem como
humanos, vendo, por exemplo, as frutas silvestres que comem
como se fossem plantas cultivadas -mas vêem a nós humanos como
se fôssemos espíritos canibais (pois os caçamos e comemos).
(CASTRO; MOURA, p.1)
O perspectivismo, ao seu modo, trata o humano como uma posição intercambiável,
dessubstancializando-o. Assim, o homem perde seu privilégio de único dotado de humanidade, pois,
se se trata de pontos de vistas (“ver como…”), o humano deixa de ser uma substância que se possui
para tornar-se um lugar que pode ser ocupado por todos os seres no plano de imanência cósmico.
Trata-se de um embaralhamento dos códigos servis da metafísica ocidental que moldou nossa
imagem do pensamento, os pares dicotômicos dissolvem-se nesse plano de imanência cósmico:
natureza/cultura, humano/inumano entre outros (CASTRO, 1996).
Poder-se-ia indagar, então: haveria, dentro do pensamento ocidental, desvios desse
antropocentrismo que substitui a imanência pela transcendência hierárquica em que o homem
enclausura-se em sua humanidade como substância e exclui dela todos os outros seres? A partir do
pensamento de Deleuze e Guattari, parece ser possível que sim. E é essa possibilidade que será
explorada agora.

A arte, a filosofia e o devir


Escreve D&G[1], no Anti-Édipo (2004, p. 10): “homem e natureza não são dois termos
distintos, um em face do outro, ainda que tomados numa relação de causação, de compreensão ou
de expressão (causa/efeito, sujeito/objecto, etc.), mas uma só e mesma realidade essencial […]”.
Essa única e mesma realidade essencial é a imanência pura presente no mito originário ameríndio.
Vemos já a aí um traço distintivo do perspectivismo indígena, mas que surge do interior do
pensamento ocidental para, intestinamente, colocá-lo em xeque. Deleuze foi um filósofo que se
preocupou sobremaneira com o tema do devir como fluxo que dissolve as formas instituídas,
rompendo com as fronteiras entre o humano e o inumano, de modo que o homem acopla-se ao
animal, mas também ao vegetal e ao mineral, confundindo-se com ele numa relação maquínica em
que ele, o homem, se soma ao cosmos:
“o homem como […] aquele que é tocado pela vida profunda de todas as
formas e gêneros, o encarregado das estrelas e até dos animais que não
pára de ligar máquinas-órgãos a máquinas-energia, uma árvore no corpo,
um seio na boca, o sol no cu: o eterno encarregado das máquinas do
universo.” (idem, ibidem, p. 10).

Com a arte se dá a mesma coisa, do ponto de vista de D&G. O artista, para os filósofos,
ocupa-se de criar sensações (um poema, um romance, uma escultura, uma pintura, uma música
etc.). A sensação é composta pelos afetos e pelos perceptos, e o artista é aquele que entra em devir,
pois o devir tem seu lugar no afeto, que será definido como “uma zona de indeterminação, de
indiscernabilidade, como se as coisas, os animais, e as pessoas (Achab e Moby Dick, Pentesileia e a
cadela) tivessem atingido, em cada caso, esse ponto que, apesar de infinito, precede imediatamente
a sua diferenciação natural” (DELEUZE; GUATTARI, p. 225, 1992). Assim, chegamos ao ponto
que nos interessa, aquele que provoca a aproximação entre o perspectivismo cosmológico
ameríndio e um certo desvio, dado pela arte em geral, em relação ao antropocentrismo: é-nos
permitido definir o devir-animal como uma zona de indeterminação entre o homem e o animal,
remontando àquela imanência originária do mito indígena. Parece possível, com a ajuda de D&G,
pensar a arte como o espaço, ao mesmo tempo de abertura e de convergência do humano e do
inumano. É o que acontece na literatura, por exemplo, com Kafka (o devir-animal de Gregor) e
Melville (o devir-baleia de Achab), mas também na pintura com Van Gogh e seu devir-girassól, que
arrasta o homem para uma zona de indeterminação com o vegetal.
Mas essa perspectiva da arte como o lugar do devir, todavia, abrange um universo muito
maior do que o explorado por D&G. Este trecho de um poema de Manoel de Barros (1996, p. 21),
por exemplo, explode a separação entre o humano e o inumano, forçando o homem a entrar num
devir-cósmico: “Depois de ter entrado para rã, para árvore, para pedra/- meu avô começou a dar
germínios. Queria ter filhos com uma árvore.” Nesse poema de Manoel de Barros, o avô conquista
uma zona em que não pode mais distinguir-se da rã, da árvore, da pedra e das germínias, tornando-
se animal, mas também vegetal e mineral. Ora, quando os devires, esses fluxos heterogêneos,
convergem para um mesmo centro, que é uma espécie de grau zero do mundo, eles se convertem em
devir-cósmico no homem, proliferando a indeterminação ao infinito: não é mais o homem separado
da natureza, mas o próprio homem como Natureza, uma vez que ele não é mais aquele que ocupa
uma posição no mundo, mas torna-se (com o) mundo. Assim, dizem D&G (1992, p. 220): “Não
estamos no mundo, tornamo-nos com o mundo, nós nos tornamos, contemplando-o. Tudo é visão,
devir. Tornamo-nos universo. Devires animal, vegetal, molecular, devir zero.”
A filosofia não teria em comum com a arte essa tarefa de desfazer o homem? Estaria a
filosofia tão engajada no projeto antropocentrista, ou ela possui também seu próprio desvio?
Deleuze, sem dúvida, já constitui um desvio do ponto de vista da filosofia. E quanto a Nietzsche?
Não parece que seu pensamento situa-se já na contramão da história da filosofia? Logo no início do
Assim Falava Zaratustra (p. 19), Nietzsche afirma ser o homem não um fim, mas o entre-meio do
“macaco” e do “além do homem”. Nietzsche parece operar um deslocamento ao qual é preciso dar a
devida atenção. Seu anti-humanismo consiste numa recusa radical do humano como finalidade do
homem. O homem é precisamente aquilo que necessita ser superado. Isso remete-nos ao tema da
morte de Deus e, por conseguinte à célebre fórmula que Deleuze afirma ser a de Nietzsche: nem
Deus, nem homem, a anarquia coroada. Para Deleuze, o homem não resiste à morte de Deus, de
modo que “trata-se de descobrir alguma coisa que não é nem Deus nem homem” (DELEUZE, 2006,
p. 179). Ora, esse nem homem nem Deus, isto é, esse inumano, não seria uma abertura para algo
que ultrapassa o par dicotômico homem/animal? Acreditou-se, por demasiado tempo, que a não-
humanidade seria a pura e simples animalidade. Mas o devir-animal não é o processo através do
qual o homem torna-se animal, mas torna-se algo que não é nem homem e nem animal, algo que se
situa entre ambos, não como o meio termo, mas como um terceiro termo que os ultrapassa.
A arte traça suas linhas de fuga descobrindo nos afetos e nos perceptos, componentes da
sensação, os devires não-humanos do homem, ela oferece uma alternativa ao pensamento
antropocêntrico. De outro lado, a filosofia parece também resistir a essa imagem do pensamento.
Deleuze, a seu modo, soube dar voz a esses devires, bebendo das artes, mas também da filosofia,
sobretudo de Nietzsche. Conclui-se, então, que o pensamento ocidental não é um bloco homogêneo,
cujo propósito é o de manter as velhas categorias filosóficas que sustentam a máquina
antropocêntrica da cultura. A filosofia de Gilles Deleuze é já um resgate da imanência cósmica, em
que o homem é destituído de seu estatuto de referência para o pensamento e para a vida. Há, com
efeito, um horizonte não antropocêntrico para a metafísica ocidental.
Referência bibliográfica:

BARROS, M. Livro sobre nada. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 1996.
CASTRO, E. V. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, Rio de Janeiro,
vol.2, no 2, oct. 1996. Disponível em <http://www.scielo.br/>. Acessado em 21 jul. 2013.
______, _. _.; MOURA, F. Os índios no plural: o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro fala
sobre seu novo livro, elogiado por Lévi-Strauss. Disponível em
<http://p.php.uol.com.br/tropico/html/index.shl>. Acessado em 21 jul. 2013
DELEUZE, G. A ilha deserta: e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006.
_______, _.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Sob Direção de Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34, 1992. (Coleção Trans).
_______,_;________,_. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Sob Direção de Joana
Moraes Vareta e Manuel Maria Carrilho. Lisboa: Assírio e Alvin, 2004.
NIETZSCHE, F. W. Crepúsculo dos ídolos: ou como filosofar a marteladas. Trad. Sob Direção de
Carlos Antonio Braga. São Paulo: Escala.
_________,_,_. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Sob Direção de
Ciro Mioranza. São Paulo: Escala.

[1] A partir daqui, quando nos referirmos a Deleuze e Guattari, usaremos a abreviação D&G, por
questão de comodidade.

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