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Rio de Janeiro
2016
Carolyn Souza Fonseca da Silva
Rio de Janeiro
2016
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CCS/A
CDU 938
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que
citada a fonte.
___________________________ _________________________
Assinatura Data
Carolyn Souza Fonseca da Silva
Rio de Janeiro
2016
DEDICATÓRIA
Aristóteles
RESUMO
SILVA. Carolyn. Sólon: por uma história econômica na Atenas do século VI a.C. 2016. 206 f.
Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
SILVA. Carolyn. Sólon: for an Economic History of Athens in VI B.C. 2016. 206 f.
Dissertação (Mestrado em História Política) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
By the VI century B.C., Athens was facing a conflict genaretad by the irregular land
ditribution between the eupatridai (members of aristocracy) and the hectemoroi (small
farmers). We interpret that this demographic phenom engender an structural reaction
antagonism in social relations of Athens. Added to the struggle between the land owners and
the peasants, we believe that, according with the historiography, athenian population group
wasn’t affected by the same growth process of the other Greek poleis. This context raises a
singular expansion movement as well as a late identity construction among the athenian in the
archaic period. The peasants were not land owners and had to pay the sixth part of the
production to the aristocrats. The lack of payment could submit the peasants to slavery by
debts. In order to minimize the conflicts, Solon allegedly removed the stone markers, called
horoi. However, this action - when superimposed on the multiple meanings of the word horos
- provides distinct interpretations that inferred political, economical, religious and social
aspects. The lack of resources led farmers to be sold as slaves abroad. The threat of slavery
was a resource to repressthose on debt that, to escape debt and slavery miasma, preferred
exile. To develop equality (isonomia), Solon, by a Constitution, broke with the aristocratic
tradition, dividing the ho polis community into four census classes according to the
production capacity and to the detriment of heredity, based on land ownership by eupatridai.
This measure establishes a timocratic government establishing a social reform and a political
maneuver, accounted for by the military positions. The cancellation of debts (seisachteia) was
completed by the withdrawal of horoi and repatriation of slaves. The condition of birth keep
the eupatridai in power and authority, even with the loss of income of storage with the end of
debt bondage. The history shows that Solon abolished the condition of slaves and made
possible the payment of debts by hectemoroi. The legislator renews the economic system of
weights and measures, enabling the detached payment of agricultural production and uses a
system of values "deflates" the debt incurred instead of increasing it. This economic change
favors the emergence of a maritime commercial activity, which is established as an alternative
and an enabling mechanism of prosperity, especially for those of limited resources. However,
a reinterpretation of political and social representation of Solon is necessary. By addressing
prisms as its operating strategos and the urbanization of the Kerameikos, reorganized for the
production of ceramics, marked by the presence of foreigners (metics), and the rules of
prostitution practices. The existence of commercial practices that go beyond the vicinity of
the oikos relate to the old economy and played a prominent role in the documentation through
Aristotle. The economic precept in ancient societies is still the subject of debate among
researchers, in which the construction of an economic mindset does not dissociate from other
social activities, making it necessary to identify the existence of the economic role in the
context of social production Athenian.
INTRODUÇÃO.................................................................................................. 15
1 ECONOMIA ANTIGA EM DEBATE............................................................. 25
1.1 A representação de Sólon pela historiografia.................................................. 25
1.2 Economia: trajetória e recortes metodológicos................................................ 31
1.3 A problematização da Economia Antiga na Alemanha durante o
século XIX.......................................................................................................... 40
1.4 A natureza dinâmica no estudo da Economia Antiga..................................... 49
1.5 Oikonomia e Crematística: As práticas econômicas para além do oikos....... 61
1.6 O princípio econômico das reformas de Sólon a partir da leitura de
Karl Polanyi........................................................................................................ 62
2 CRISE AGRÁRIA: A SINGULARIDADE DO CASO ATENIENSE............ 69
2.1 O desenvolvimento demográfico ateniense....................................................... 70
2.2 A Cultura Cerealista da Grécia......................................................................... 75
2.3 Por uma Identidade Jônica................................................................................ 80
2.4 Horoi: Para além das barreiras físicas............................................................. 85
2.5 Seisachtheia: O fim da escravidão ou da servidão por dívidas?...................... 96
2.6 Os critérios alternativos de cidadania............................................................... 101
3 AS RELAÇÕES COMERCIAIS NA ATENAS ARCAICA........................... 107
3.1 Fenômenos geográficos e políticos.................................................................... 108
3.2 Atenas no circuito comercial mercantil............................................................ 111
3.3 A materialização do econômico através das inscrições iconográficas: o
papel das ânforas na economia ateniense........................................................ 117
3.4 Mão de obra estrangeira em Atenas................................................................. 125
3.5 Kerameikos: O recanto das práticas econômicas............................................ 131
3.6 A racionalização das práticas econômicas de Atenas...................................... 135
3.7 A Reforma de Pesos e Medidas......................................................................... 139
CONCLUSÃO..................................................................................................... 145
REFERÊNCIAS................................................................................................. 153
GLOSSÁRIO...................................................................................................... 168
APÊNDICE......................................................................................................... 173
ANEXOS............................................................................................................. 188
15
INTRODUÇÃO
2
Atualmente, do material epigráfico que estabelece a lista de arcontes atenienses entre o VII e V séculos a. C.,
apenas pequenos fragmentos foram preservados, como uma estela de mármore situada na Ágora de Atenas
(BRADEEN, 1964, 187-208). O arcontado ateniense surgiu a partir da antiga instituição da realeza, no primeiro
milênio a. C. Com o passar do tempo, o basileu ateniense descendente tornou-se um arconte eleito e com um
cargo administrativo vitalício (Arist. Ath. pol. 3,1; Paus. 6.19.13). Os trabalhos mais relevantes nesse campo
correspondem a: (BADIAN, 1971, p. 1-34); (KELLY, 1978, p. 1-17); Acredita-se que o documento epigráfico
teria sido forjado para fins políticos pela aristocracia da Ática doperíodo clássico. No entanto, a lista pode ser
considerada uma junção da tradição oral, acompanhada por uma genealogia, e uma prática da escrita exercida
pelos magistrados.
3
A data tradicional aceita pela historiografia de Sólon é 594-593 a.C.
17
compulsória. É por esta característica que alguns pesquisadores – ainda hoje – atribuem a
Sólon a nomenclatura de “pai da democracia”4.
Percebemos que ainda no século VI a.C. inicia-se um fluxo de narrativas
materializadas em torno da memória de Sólon, personalizando a história do Período Arcaico
ateniense e seu contexto político, que passam a convergir em torno do legado de Sólon.
Paralelamente ao condicionamento cultural da memória de Sólon, seus versos foram recitados
por seus contemporâneos e citados pelas gerações futuras como narrativa poética, entoados
como bastiões da tradição e da memória cultural ateniense.
Segundo Denis Renan Correa (2012), a memória de Sólon faz parte de uma rede de
informações nas quais os gregos, de maneira especial os atenienses, reconhecem sua
identidade, através da característica que os diferencia das outras poleis gregas: a democracia
ou isonomia. Segundo o autor:
A memória cultural de Sólon é uma recordação socialmente compartilhada e
culturalmente construída, rememorada em textos que referem esta personagem, e
que fazem tal conteúdo importante para a identidade cultural tanto de atenienses
quanto dos gregos em geral. (CORREA, 2012, p. 20)
4
Este argumento se reforça à medida que Moses I. Finley aponta como abertura da participação mais ampla em
Atenas as reformas empreendidas por Sólon em 594 a.C. (FINLEY, 1983, p. 23). Esta mesma vertente é
sustentada pelo pesquisador Robert Wallace, quando o mesmo defende a premissa de que essa mentalidade
coletiva inaugurada no archondato de Sólon, permeada pela ideia de liberdade e independência, foi fator
preponderante para explicar a motivação pela qual a democracia foi uma invenção dos gregos (WALLACE,
2008, p. 72).
5
Segundo Eni Orlandi, o discurso constituiria a "[...] mediação necessária entre o homem e a realidade natural e
social", (ORLANDI, 2012:15). Para essa autora, o discurso não se configura como a transmissão de uma
mensagem e não há uma separação dicotômica entre emissor e receptor; o que existem são processos de
identificação do sujeito, de argumentação e de subjetivação. Por isso é que ela afirma que o discurso é um "efeito
de sentidos". A análise do discurso atuaria, portanto, na diagnose das diversas ordens de conhecimento,
trabalhando a “separação necessária, isto é, ela vai estabelecer sua prática na relação de contradição entre esses
diferentes saberes”.
6
Delfim Ferreira Leão (2013), no artigo As jogadas de Sólon e a esperteza dos atenienses, levanta a hipótese de
que o caráter inventivo e criativo de Sólon mediante os problemas enfrentados em seu archondato reflete
consequentemente um “tipo de atuação que poderia corresponder a uma característica própria dos atenienses”,
18
como o próprio Plutarco sugere na Vida de Sólon (15.2). Leão afirma ainda que estas características de cunho
social e comportamental teriam “inclusive deixado marcas no uso metafórico da linguagem, aplicado à realidade
politica e legal” (LEÃO, 2013, p. 2).
7
Segundo o historiador Edward Harris em seu artigo Solon and the Spirit of the Law in Archaic and Classical
Greece, os poemas de Sólon ajudaríam a compreender o espírito com que as poleis gregas criavam suas leis. O
autor esclarece que, ao utilizar a palavra “espírito”, ele não inteciona promover o contraste entre o “espírito da
lei”e a “letra da lei”. Tampouco aspira impulsionar a ideia de que existiria uma Geist (palavra alemã utilizada
para definir “espírito”) transcendente que unira todos os gregos e permeava suas instituições (HARRIS, 2006, p.
5).
8
Delfim Leão assinala a existência de um debate acerca deste termo. Para o autor, Aristóteles (Constituição dos
Atenienses, 7.2.) afirma que as estruturas quadrangulares, contendo as inscrições de madeira, eram chamadas de
kyrbeis; argumento corroborado por Cratino. Contudo, “alguns autores defendem que por kyrbeis se designavam
especialmente os que continham as leis sobre os cultos e sacrifícios, por axones os restantes”. Leão conclui que
atualmente o debate ainda não atingiu um consenso (LEÃO, 2015:91). Verificar os Anexos 1 a 4 (p.197-200)
para exemplos de axones e kyrbeis.
19
bem como a coletânea de poemas de Sólon intitulada Eunomia. Tal corpora documental,
embora posterior ao Período Arcaico, quando instrumentalizado em forma de memória
histórica, fornece-nos ampla gama de análise interpretativa a respeito do ponto de inflexão
sobre o qual se constrói a problemática de nosso estudo.
Ao abordar o campo da memória, torna-se imperativo atentar para seu processo de
construção, especialmente em uma sociedade onde a oralidade se faz tão presente, como a
grega. Conforme alega Peter Burke(2000, p.69-70), “(...) memórias são construídas de acordo
com o ponto de vista de um determinado grupo social (...)9”, o que se confirma no caso de
Sólon, que teve sua imagem adequada a um contexto político com o intuito de favorecer um
determinado segmento social na empreitada democrática. A tentativa de associação com os
valores previstos no código soloniano se dá principalmente por três motivos, a saber:
1. O primeiro é a identificação que ocorre entre os modelos de projetos políticos
dos Períodos Arcaico e Clássico, muito embora feitas as devidas considerações acerca das
peculiaridades de cada contexto histórico, onde o preceito isonômico possui um lugar de
destaque em ambos.
2. A segunda motivação novamente nos remete ao âmbito da memória como um
recorte seletivo do passado, que prioriza uma determinada esfera contextual. A imagem de
Sólon foi utilizada para corroborar as reformas constitucionais promovidas durante o Período
Clássico, relacionando-as a um passado glorioso, no qual a isonomia era um fator identitário
entre os dois governos,que viria a retificar a hierarquia social a ser imposta em Atenas. No
século V a.C., ao notar a emergência de um novo paradigma político, os grupos sociais
partidários da demokratia trataram de correlacioná-la a um passado comum ao universo
políade, promovendo uma identificação ideológica por parte do dêmos com o processo
isonômico iniciado por Sólon. Sua finalidade era corroborar e garantir um discurso uníssono
sobre as mudanças paradigmáticas que convergiam em torno da demokratia no Período
Clássico.
3. Em terceiro lugar, há o fato de que Sólon surge como a primeira figura política
concreta e centralizadora do Período Arcaico depois de Teseu, expondo muito mais
materialidade para a sua causa do que seu predecessor – uma vez que, ao compilar um
conjunto de leis, o mesmo se consolida como legislador. Ao redigir a legislação ateniense,
Sólon desponta como a primeira figura política a pregar a propagação das leis através da
9
Tal argumento é também sustentado pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877-1945, p. 65-70) em sua
obra La mémoire collective(1950), que conceitua como “estrutura social da memória” aquilo que posteriormente
será conhecido como “memórias sociais”. Ainda segundo ele, as memórias são construções dos grupos sociais,
pois são estes segmentos sociais que determinam o que é considerado “memorável” e as formas pelos quais tais
fatos serão lembrados.
20
uma conjugação entre "força e justiça" a fim de estabelecer uma nova realidade social
ateniense, desestabilizando injustiças cujas raízes estão no passado de Atenas.
A nova ordem social ateniense forjada por Sólon foi fundamentada não apenas em
contenção, mas, concomitantemente, em um compromisso com a justiça em geral. As leis de
Sólon instanciaram como valores públicos sua concepção normativa de como os atenienses,
como uma comunidade, deveriam se relacionar entre si, em condições de equidade. Suas leis
são, portanto, construídas sobre uma ética política clara, que tem no seu centro uma noção de
conjunção social que visava libertar os atenienses das restrições inapropriadas e estabelecer a
equanimidade em relação aos bens públicos. No início do século VI a.C., esta concepção ética
significava interligar as concepções de que os segmentos sociais consolidados
sociopoliticamente não deveriam assumir como sua prerrogativa o direito de escravizar os
segmentos sociais menos representativos, uma vez que ambos atuavam como membros
participantes da mesma comunidade política.
Na tentativa de instanciar uma ordem político-econômica alternativa em Atenas, em
594 a.C., Sólon confrontou várias questões como disparidades sociais e a busca por práticas
alternativas para solucionar, ainda que parcialmente, a infertilidade do solo ateniense. Em
relação à organização sociopolítica, o legislador visava responder a uma exigência de uma
comunidade em processo de diversificação de atividades e participação. Embora a
historiografia contemporânea evite a categorização do archondato de Sólon como o ensejo
para o advento da democracia, seu calendário político tinha a intenção de desestruturar a
ordem social e política vigente e criar uma organização alternativa na qual todos – em maior
ou menor proporção – tinham algum acesso aos processos políticos e, portanto, à integração
gradual à cidadania.
Para Robert W. Wallace, a ação de Sólon não visava politizar o dêmos/plethos, pois
suas poesias nos apontam que eles já eram politizados. A ação do legislador ateniense foi
mediar o embate social entre os dêmos e os eupátridas através da legislação que visava
pacificar os revolucionários e, ao mesmo tempo, criar um lugar de fala para o dêmos/plethos
(WALLACE, 2008, p. 72). Entretanto, diante do perigo iminente e do desafio da violência, a
ação de mediar através de normas, regras e leis tornou-se dramática diante da exigência de
concessão de poder ao dêmos. A ação de Sólon deixa transparecer que no amplo território da
Grécia no VI a.C. emergiam atitudes de animosidade contra a antiga ordem social vigente.
Temos de considerar a priori a natureza das crises em Atenas nos séculos VII e VI
a.C.. A Constituição dos Atenienses nos informa que a tensão surgiu do atrito entre os aristhoi
e os hectemoroi, que foram escravizados pelos ricos, cuja terra estava nas mãos de poucos,
23
mas que o aspecto mais severo da Constituição para muitos (plebe) foi sua escravização:
“Eles também tinham, não obstante, queixas por outros motivos; para eles, por assim dizer,
não aconteceu ter participação em qualquer coisa”.
O autor Pierre Vidal-Naquet demarca que o único caso de crise agrária do Período
Arcaico que chegou até a atualidade foi o de Atenas, cujo elemento essencial foi a existência
dos hectemoroi, grupo de atenienses que podia se tornar escravo por dívidas diante do débito
com os aristhoi. A solução de Sólon reflete a ideia de comunidade: a reforma atingia
unicamente os atenienses, excluindo os estrangeiros, escravos e outros; o retorno dos
hectemoroi a suas terras tornou alguns pequenos proprietários livres; outros se tornaram
artesãos ceramistas (VIDAL-NAQUET, 2007, p. 90), e os demais optaram pela migração.
Adotar a polis como plataforma de contextualização nos permite compreender os
fenômenos sociais manifestados durante o archondato de Sólon. O protagonismo da cidade
ocorre de forma a demonstrar a correlação entre o seu papel e as mudanças em seu cenário
urbano e a eclosão de um novo paradigma socioeconômico com o archondato de Sólon.
A proposta de nossa pesquisa insere-se ainda em uma problemática distinta que
perpassa os historiadores da Antiguidade, a saber: a promoção das práticas econômicas do
setor urbano dos atenienses no Período Arcaico. Identificamos no código legislativo
promovido por Sólon a transição econômica de uma base de produção agrícola – regulada
pelos preceitos de autoabastecimento como forma de segurança – para um contexto de
consolidação das atividades econômicas baseadas no insumo às práticas comerciais e
marítimas, nas quais a navegação surge como meio de mobilidade e comércio, facilitando o
desenvolvimento de técnicas de especialização por meio das trocas com as demais poleis.
Segundo Genaro Chic Garcia, na prática comercial relativa às sociedades antigas os
interesses das comunidades eram valorizados em geral como superiores aos do indivíduo, “de
forma que uma atividade (como o comércio) será tida como positiva ou negativa em função
de servir aos interesses coletivos” (GARCIA, 2009, p. 139). Assim, argumentaremos que a
inserção da polis ateniense no circuito comercial e mercantil do Mar Mediterrâneo
estabeleceu as atividades econômicas como ponto de equilíbrio entre os interesses –
individuais e coletivos – antagonistas na polis ateniense durante o contexto social de produção
do Período Arcaico.
Sólon atua como agente regulamentador das relações econômicas de Atenas, através
de agentes privados de comercialização, a exemplo do ceramista. A normatização legislativa
das práticas relacionadas à importação e exportação promove o elemento dinâmico de
alteração de forças entre a produção agrária e, consequentemente, a dependência do solo
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infértil da Ática e o suprimento dos artigos necessários à polis por meiode um padrão
econômico alternativo.
A quantificação das atividades comerciais gera, por conseguinte, a necessidade da
concretização de uma realidade abstrata das transações comerciais. A materialização dessas
relações abstratas ocorre por meio da codificação do comércio, desenvolvendo uma
perspectiva da racionalidade econômica. Por intermédio dessa nova perspectiva racional, os
pesos e medidas atuam como agentes reguladores das transações econômicas, permitindo que
compreendamos a importância da padronização desses elementos econômicos durante o
século VI a.C., por meio das reformas socioeconômicas de Sólon.
Segundo Marcel Roncayolo, tal processo decorre da sofisticação da cidade, que leva a
uma especialização: no caso ateniense, são exemplos a expansão comercial e mercantil
promovida por Sólon, bem como a inserção da cerâmica e dos ceramistas como
dinamizadores das relações comerciais (RONCAYOLO, 1986, p. 412). O desenvolvimento da
região do Kerameikos reflete uma política de urbanização promovida por Sólon por meio do
desenvolvimento da polis e da reorganização de seu espaço físico. Esse processo político-
dialético transcorre a partir da restruturação das relações sociais da polis através da
hierarquização censitária dos segmentos sociais atenienses – fornecendo um local social de
fala à parcela da população que não compunha a elite aristocrática - e da inserção da mão de
obra especializada dos estrangeiros.
Finalmente, é possível observar que o conceito de urbanização pode ser adaptado ao
Mundo Antigo se respeitadas as particularidades contextuais e temporais. A cidade é
protagonista neste processo e seus fenômenos repercutem tanto no âmbito geográfico quanto
social, levando à criação de um imaginário social no entorno da cidade.
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10
O pesquisador René Rémond, em seu livro Por Uma História Política, reflete sobre o retorno da História
Política como um campo profícuo de investigação, levando em consideração os ataques que ela sofreu durante o
Pós-Guerra por parte da História Social e Econômica, devido à reputação de superficialidade da área. O autor
parte do pressuposto que a História tem como objeto precípuo as mudanças que afetam a sociedadee tem por
missão propor explicações para elas, sem escapar ela própria a essas mudanças. Segundo Rémond, a História
Política era definida anteriormente como um modelo predefinido que o historiador deveria seguir. Apesar das
transformações advindas da Escola dos Annales, existem ainda ressonâncias com as pesquisas atuais que
fornecem destaque à História do Estado, a história do poder e das disputas por sua conquista ou conservação, das
instituições em que ele se concentrava, das revoluções que o transformavam. Um dos pontos ressaltados pelo
26
autor para proeminência da História Política durante o início da Historiografia moderna seria, talvez, a facilidade
de acesso às fontes. Essas informações eram dadas deliberadamente por parte do Estado, que deixava vestígios
escritos e vasta documentação em contraponto às pesquisas cuja natureza eram as realidades sociais, sobre as
quais era mais difícil obter documentação (RÉMOND, 1996, p. 13-30).
11
Sociólogo durkheimiano, François Simiand (1836-1935), além de historiador, foi economista e professor do
Collége de France.Também foi considerado inspirador da área de História Econômica dos Annales. Em seu
artigo Método Histórico e Ciências Sociais, alerta para a importância de suplantar o “fenômeno singular para o
regular, para as relações estáveis que permitem perceber as leis e os sistemas de causalidade”, progredir do
individual para o social. Originalmente, o artigo foi concebido como um conjunto de conferências publicado
posteriormente, no ano de 1903, na Revista de Síntese Histórica (então dirigida por Henri Berr) e republicadas
em 1960, na Revista Annales. Devido ao contexto social da época, não é coincidência François Simiand ter
escrito sua obra em tempos difíceis para a historiografia ‘dita positivista’, já que esta se achava fortemente
influenciada por historiadores metódicos que, não raro, tornavam o diálogo entre História e Ciência Social tenso,
principalmente por conceberem a História como mestra das disciplinas, reduzindo as demais a meras ciências
auxiliares. É no anseio de combater essa perspectiva de análise histórica que François Simiand se insere em um
debate com pesquisadores da época, como Charles Seignobos e Charles Victor Langlois, tecendo um ataque
direto à “escola metódica”.
12
Segundo Claude Mossé (1979, p. 52), o processo de revalorização da memória de Sólon e o estabelecimento de
uma relação com a democracia ocorrem no contexto específico dos conflitos pela memória da democracia
ocorridos no séc. IV ateniense. O contexto de revalorização democrática da memória de Sólon ocorre nesse
período de democracia pós-império e pós-guerra do Peloponeso, de 403 a 322. A vinculação da memória de
Sólon à da democracia foi construída posteriormente, no contexto de declínio de Atenas em fins do séc. V, após
o desastre da expedição contra Siracusa (415-13) e a instauração do curto “regime dos 400” (411). Nesse
momento de crise, intelectuais e políticos de diferentes tendências ideológicas deram vazão ao tópico da
“constituição ancestral” (pátrios politeía), que alimentou diversos movimentos saudosistas divulgadores do
retorno à situação anterior à Guerra do Peloponeso. O pesquisador Gil Davies (2012, p. 127) alega que a razão
provável para a proeminência de Sólon na historiografia pode ser encontrada nas batalhas ideológicas do final do
V e do IV séculos a.C., entre democratas e oligarcas, em que o primeiro grupo defendia o posicionamento de
Sólon como o pai da democracia. O triunfo dos democratas é especialmente notável com Felix Jacoby (1949, p.
154-155), em sua obra Atthis: the Local Chronicles of Ancient Athens; ele destaca que Sólon foi "estabelecido
como o criador das leis". Para a posição dos oligarcas, comparar a Constituição dos Atenienses (29.3), que
afirma que em 411 a.C., durante o breve governo oligárquicodo Quatrocentos, uma certa Kleitophon sugeriu
27
"que os comissários eleitos (a elaborar novas medidas de segurança pública) também devem investigar as leis
ancestrais estabelecidas por Clístenes quando instituiu a democracia". Jeremy McInerney (1994, p. 17-37), no
livro Politicizing the Past: the Atthis of Kleidemos, observa que "Sólon é mencionado quatro vezes nos 75
discursos existentes antes de 356 a.C., 32 e 64 vezes nos discursos existentes depois de 356 a.C.".
13
Uma vez que o conceito de representação é polissêmico e há várias concepções, por vezes até discordantes,
temos ressalvas quanto à rigidez da concepção de Chartier, que concebe as representações sempre como projetos
intencionados a imprimir poder sobre outrem, mas ressaltamos aqui sua importância, pois, além de definir a
representação como construção de sentidos condicionada às práticas discursivas, ele alerta que a representação
deve ser um conceito historicamente determinado (2002, p. 20). Outra concepção importante é a de Luiz Costa
Lima (2012, p. 103), teórico sediado na crítica literária, que descreve a representação como "o produto de
classificações. É portanto algo que, embora não determinante de uma conduta, se impõe socioculturalmente a
cada indivíduo". Com base em Émile Durkheim e Marcel Mauss, Lima afirma que a representação pode ser
encarada como o efeito de um entendimento específico, que naturalmente é marcado por classificação e
hierarquização, uma vez que os homens entendem o mundo social por meio de classificações que ressaltam
elementos descontínuos do campo perceptivo e/ou afetivo, impondo uma hierarquização nos resultados desse
entendimento.Ao nos debruçarmos sobre os apontamentos de Francisco J. Calazans Falcon, obtermos a
perspectiva etimológica do conceito de representação, que, de acordo com o autor, teria como principais
objetivos “fazer presente alguém ou alguma coisa ausente, mesmo uma ideia, por intermédio da presença de um
outro objeto” (FALCON, 2000, p. 45).
14
A pesquisadora Claude Mossé (2007, p. 37-38), apoiada na perspectiva de Charles Hignett (1952, p. 33-46)
elucida acerca do termo archondato e archonte. Para a autora, os archontes são, em todas as polis, “os
magistrados investidos de um cargo, cujo mandato pode ser mais ou menos longo”. O archondato em Atenas,
conforme assinala Aristóteles, na Constituição de Atenas, teria nascido da fragmentação do poder real primitivo
entre três magistrados: o archonte, o rei, e o polemarca. Durante o governo de Dracon, “embora o governo não
fosse vitalício, estendia-se por períodos de dez anos”.
28
15
O conceito de imaginário socialintegra a obra de Bronislaw Baczko, A Imaginação Social, na qual o autor
relata no campo teórico, a polissemia na qual o vocábulo está inserido, bem como as diferentes abordagens de
interpretação que o mesmo recebe. Supõe haver uma relação entre o cotidiano do homem e a simbologia
existente por trás de um determinado acontecimento, para o qual se atribui o valor de real. O autor aborda a
associação entre o imaginário e o poder alegando ser paradoxal a leitura concreta do poder, uma vez que a
imaginação estaria associada a uma perspectiva empírica e o poder age nas estruturas do real. Segundo
Bronislaw Baczko, é no campo do imaginário que se exerce o poder simbólico, caracterizado como uma
potência real capaz de reforçar a dominação, que ocorre através assimilação dos símbolos, aos quais o autor
atribui a nomenclatura de bens simbólicos. Resultado da estrutura da vida social coletiva, os bens simbólicos
seriam os mecanismos utilizados pelas esferas de poder para “garantir a obediência pela conjugação das
relações de sentido e poderio”.Seguindo esta premissa, é possível afirmar que o desenvolvimento do imaginário
social de um grupo, através da mediação dos horoicompilaria sua identidade social, gerando a produção de uma
memória coletiva em torno de determinados locais de fala e da assimilação de símbolos, como os demarcadores
de fronteira; uma rede imaginária que estipularia a distribuição dos papéis e das posições sociais, assim
ratificando a hierarquia social expressa e inserida pela autoridade em questão através dos bens simbólicos
adquiridos através de uma estrutura contextual. (BACZKO, 1985:296-331).
16
Este argumento se reforça à medida que Moses I. Finley aponta como abertura da participação mais ampla em
Atenas as reformas empreendidas por Sólon em 594 a.C. (FINLEY, 1983, p. 23). Essa mesma vertente é
sustentada pelo pesquisador Robert Wallace, já que ele defende a premissa de que essa mentalidade coletiva,
inaugurada no archondato de Sólon e permeada pela ideia de liberdade e independência, foi fator preponderante
para explicar a motivação pela qual a democracia efetuou-se como uma invenção dos gregos (WALLACE, 2007,
p. 72).
29
17
Para a perspectiva de Sólon como sábio ou um moderado, ver Constituição de Atenas, 5.3, Política, 1296a18-
20 , 1273b35-1274a21. Ver também Keaney (1963, p. 120-121) para o ponto de vista de Aristóteles sobre as
intenções de Sólon, argumentando que suas contribuições para a democracia foram acidentais (Política
2.12.1274a1 ss.).
18
Segundo Delfim F. Leão, em seu livro Obras morais – o banquete dos sete sábios, os relatos sobre esse grupo
de notáveis são encontrados na literatura grega a partir de Homero. “Tais figuras de contornos histórico-
lendários, que marcaram o imaginário grego entre os séculos VII-VI, notam-se, pela primeira vez, em
Heródoto”. Entretanto, uma descrição detalhada do grupo de personagens sapientes só seria estabelecida a partir
de Protágoras(343a) de Platão, em que se estabelece pela primeira vez a identidade do seleto grupo de sábios
representados por Tales, Pítaco, Bias, Sólon, Cleobulo, Míson e Quílon. Plutarco é outro filósofo que menciona a
existência desses guardiões da sabedoria grega. Em sua obra O banquete dos sete sábios, o autor congrega, pela
primeira vez, um grupo de personagens históricos de temporalidades diferentes. Para Delfim F. Leão, não se
trata de um caso de anacronismo por parte de Plutarco, “conforme se pode constatar na biografia que fez de
Sólon, um dos participantes no banquete”, e sim de uma dose de ficção literária, algo similar à licença poética
adotada pelo filósofo para resgatar um recurso muito comum à literatura grega: o diálogo com o passado (LEÃO,
2008, p. 19-20).
19
Para uma visão mais ampla sobre a perspectiva de Sólon como poeta, analisar os trabalhos de Maria Noussia
Fantuzzi (2010) e Joseph Almeida (2003).
20
Quando o objeto de estudo se baseiaem uma vasta tradição mnemônica, como no caso de Sólon, é necessário
considerar que o “texto original” não existe. O corpus documental é resultado da soma de um recorte histórico
específico aliado a outras fontes históricas utilizadas como embasamento, a saber: A constituição dos
atenienses,de Aristóteles, e poesia soloniana, Eunomia.
21
A discussão acerca da legislação de Sólon e do papel das leis na sociedade ateniense pode ser aprofundada com
as obras de Delfim Ferreira Leão e P.J. Rhodes (2015), além dos trabalhos de Edward Harris (2014). Para as leis
relacionadas à prática da prostituição, ver ainda Allison Glazebrook (2006) e Catherine Salles (1982).
30
de leis e na promoção das reformas sociopolíticas bem como na publicização de seu código
legislativo, feito corroborado pela narrativa do autor da Constituição dos Atenienses e
posteriormente por Plutarco em sua obra Vidas Paralelas, na qual ele argumenta que Sólon
concedeu a todas as leis a validade de cem anos e foram inscritas em axones de
madeira giratórios, inseridos em estruturas quadrangulares, e deles ainda nos nossos
dias se conservam, no Pritaneu, pequenos fragmentos(Vidas de Sólon, 25.1).
22
O termo strategos (plural strategoi; grego στρατηγός) é utilizado para designar o comandante militar,
comumente utilizado como líder militar (HAMEL, 1998, p. 85).
23
Sobre o conceito de polis,Wilfried Gawantka, em sua obra Die Sogenannte Polis,traça uma revisão da
cronologia da palavra polis. O autor se debruça sobre o desenvolvimento de uma tradição na historiografia
germânica sobre o estudo da polis que culmina com a tradição da compreensão do termo herdada pela
perspectiva de Burckhardt. Segundo John K. Davies (The Origins of the Greek Polis), Gawantka recorda aos
historiadores que “o uso da palavra polis como um termo acadêmico de arte é uma invenção do século XIX”,
31
elemento religioso e insere-se no âmbito econômico, à medida que o novo modelo de pesos e
medidas, associado à cunhagem reformulado por Sólon, bem como a demarcação das classes
censitárias, permitiram a inclusão de Atenas no circuito comercial/mercantil. Desse modo, a
partir da mudança no contingente de produção ateniense, voltada para a cultura do vinho e do
azeite por meio da exportação, a região de Eleusis torna-se um importante entreposto
comercial (emporion),identificada como lugar de trocas comerciais,garantindo o acesso aos
grãos, tão necessários à polis ateniense.
Interessa-nos, igualmente, explorar o viés da atuação de Sólon como líder político que
delegou normas de conduta adequadas que carregam implicações éticas importantes para
todos os tipos de assuntos humanos, incluindo atividades comerciais e busca da riqueza. Em
seus relatos poéticos, ele enfatiza as fortes ligações entre a virtude individual e as suas
consequências nas esferas social e política. É necessário, portanto, dividir a legislação de
Sólon em duas categorias: econômica e constitucional.
cunhada por Kuhn em 1845, porém começa a ser utilizada de maneira geral depois da obra Griechische
Kulturgeschichte,de Burckhardt, em 1898(GAWANTKA, 1985, p. 30-52).
24
Não é possível precisar o período exato e a origem da expressão globalização. Entretanto, verifica-se a
existência do termo em trabalhos publicados a partir da segunda metade da década de 1980. Uma obra de grande
influência publicada na década de 1980 que trata do tema da globalização é o livro de Harvey, de 1989. No livro
de Gilpin, de 1987, o Capítulo 9 é dedicado a “The transformation of the global political economy”, e Gill &
Law publicam em 1989 o livro intitulado The global political economy. Outro autor que aponta a origem do
termo para esse período é Hoogvelt, em 1997. O conceito globalização começou a ser empregado desde meados
da década de 1980, em substituição a conceitos como internacionalização e transnacionalização. Particularmente,
na década de 1990 é que o termo globalização veio a ser empregado principalmente em dois sentidos: um
positivo, descrevendo o processo de integração da economia mundial; e um normativo prescrevendo uma
estratégia de desenvolvimento baseado na rápida integração com a economia mundial.
32
economia por meio de uma relação de causa e efeito entre o progresso global e o paradigma
econômico que compõe um determinado período histórico.
De acordo com a premissa defendida por Milton Santos ao analisar o processo de
desenvolvimento econômico, a economia seria um elemento essencial à natureza humana,
embora manifeste-se atualmente de maneira inorgânica, ou seja, extrínseca ao homem. “Para
tudo isso, também contribuiu a perda de influência da filosofia na formulação das ciências
sociais, cuja interdisciplinaridade acaba por buscar inspiração na economia”(SANTOS, 2001,
p. 13-15).
Apesar de proliferar atualmente, o campo da Economia, entretanto, continua sendo
permeado de riscos e desafios para os historiadores que aspiram adentrar esse campo como
objeto de análise de estudo. O risco de anacronismo25 e a simplificação indevida do sistema
econômico26 continuam cerceando os historiadores que decidem empreender uma pesquisa
acadêmica sobre a referida temática, especialmente no caso da abordagem econômica
aplicada à História Antiga, uma vez que a Economia constitui uma disciplina científica com
características peculiares que demanda ferramentas metodológicas específicas que, no plano
teórico, implicam uma abstração necessária para contemplar as categorias econômicas
inscritas nos preceitos imateriais que integram as sociedades antigas.
Segundo o pesquisador José D’Assunção Barros, ao adotar um referencial
metodológico para apreender a economia, é imprescindível que o historiador reflita acerca de
seus “horizontes de trabalho” durante a tarefa de tentar compreender as especificidades de um
sistema econômico particular, inserido em um contexto histórico que se relaciona diretamente
com a “racionalidade econômica” adotada pela sociedade em questão. Segundo o autor, a
alternativa de sistematização adotada pelo historiador dever-se-iaa priori
tratar um objeto ou processo histórico no âmbito de sua singularidade história e de
sua complexidade processual é certamente um horizonte permanente a ser
perseguido pelos historiadores, e mais ainda pelos historiadores econômicos e
economistas que analisam processos históricos (BARROS, 2012, p. 110).
25
José D’Assunção Barros explana que por anacronismo entende-se “o risco de indevidamente impor a uma
sociedade historicamente localizada um modelo somente válido para uma outra época” (BARROS, 2012, p. 109).
26
O historiador Witold Kula define “sistema econômico” de maneira mais precisa: “um conjunto de
dependências econômicas reciprocamente ligadas que, pelo fato de estarem vinculadas, surgem mais ou menos
ao mesmo tempo e se desfazem, também, aproximadamente no mesmo momento. Datar empiricamente a sua
aparição e desaparição é fixar os limites cronológicos de um dado sistema econômico. E elaborar a teoria
econômica de um sistema econômico dado é determinar (e ainda empiricamente) a lista mais completa possível
das relações de dependência que o mesmo admite e determinar as vinculações recíprocas que fazem deste
conjunto de relações um sistema único” (KULA, 1970, p. 47).
33
27
A partir dessa premissa, o autor estabelece um diálogo com o consagrado historiador polonês Witold Kula,
numa tentativa de estabelecer os parâmetros para a elaboração de um arcabouço teórico apropriado ao estudo do
sistema econômico, o qual o autor identifica a priori como um “conjunto maior que integra de maneira coerente
certos fatos econômicos que de outra maneira estariam dispersos”. Na estrutura teórica voltada à pesquisa da
História Econômica, “o historiador só deve elaborar a teoria geral que lhe permitirá examinar determinada
realidade econômico-social depois de estudados os casos concretos, e não o contrario”. Torna-se essencial,
portanto, conceber a economia como um fenômeno historicamente localizado em conjunturas sociais específicas,
como uma realidade “nem estática nem eterna” que se manifesta de maneira fundamentalmente dinâmica na
sociedade.
28
Segundo os autores, em meio a esse contexto, a afirmação da teoria econômica era algo esperado pelos
historiadores, bem como a ênfase econômico-social dos Annales e, em um plano mais radical, a exacerbação do
determinismo “infraestrutural” por parte do marxismo da Guerra Fria. Os autores consideram, portanto,
34
âmbito econômico ao longo das gerações da Escola dos Annales,além da influência das
escolas econômicas na tradição historiográfica produzida ao longo desse contexto histórico.
Fonte: Adaptado de FALEIROS, Rogério N. História Econômica, História em construção. Universidade Federal
do Espírito Santo, 2010, p. 254.
30
O economista Rogério Naques Faleiros corrobora a argumentação de Fragoso e Florentino sobre a intrínseca
ligação entre o contexto mundial do conhecimento científico-histórico e a produção historiográfica relativa à
economia no Brasil. Para o autor, o contexto de desestabilização da História Econômica atendeu a uma
perspectiva mundial de reformulação teórico-metodológica da História como objeto da ciência. Segundo Marc
Bloch e Lucien Febvre, os métodos e abordagens historiográficas dos fenômenos de natureza econômica foram
reformulados como parte das transformações ocorridas no conhecimento cientifico entre finais do século XIX e
início do século XX, notadamente aquelas ocorridas no campo da Física, da Química, da Mecânica e da própria
Biologia (FALEIROS, 2010, p. 243).
37
Gráfico 2 – Variação (em %) das teses e dissertações em História Econômica da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e da Universidade Federal Fluminense, 1980 - 1992
Fonte: Adaptado de FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. História Econômica, catálogos das pós-
graduações, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense, 1997.
O historiador Deivid Valério Gaia não busca encontrar uma saída para a problemática
do estudo da Economia Antiga; todavia, oferece direcionamentos para os historiadores da
Economia Antiga. Segundo o autor, os fenômenos de natureza econômica podem ser
estudados a partir de duas vertentes: por meio dos estudos quantitativos, os quais o
pesquisador considera “bem reduzidos e insuficientes para o estudo da Economia Antiga sem
a lupa de uma análise qualitativa rigorosa” (GAIA, 2010, p. 89), considerando que nas
sociedades antigas quaisquer dados relativos à produção, ao comércio e ao crédito
apresentam-se de maneira fragmentada, tornando difícil que o historiador adquira uma visão
homogênea acerca do contexto social de produção.
38
31
Compreendida aqui no seu significado original. A palavra tecnologia tem origem no grego "tekhne", que
compreende as definições de "técnica, arte, ofício", juntamente com o sufixo "logia" que significa "estudo". O
advento tecnológico neste contexto representa, portanto, o avanço das técnicas de produção, sejam elas agrícolas
ou comerciais.
39
32
O pesquisador britânico Keith Hopkins foi um historiador e sociólogo que se tornou um dos sucessores de
Moses Finley na cátedra de História Antiga em Cambridge de 1985 a 2001. O pesquisador Moses Finley já havia
feito referência à terminologia batalha acadêmica para referir-se à questão da economia antiga em uma
entrevista concedida à Keith Hopkins como parte de um artigo em 1962 e um ensaio no Times Literaly
Suplement.
41
Nassif no qual se emprega uma divisão de caráter metodológico para uma análise mais
didática do processo de consolidação do pensamento econômico alemão. Para Cardoso, é
possível contabilizar três vertentes teórico-metodológicas legatárias do contexto de debate
acerca da prerrogativa econômica nas sociedades antigas, diagnosticando as tendências ainda
presentes na Historiografia Contemporânea. São elas:
1. Tendência evolucionista: Trata-se das correntes da Historiografia que postulam a
existência de etapas na evolução econômica e, por vezes, o caráter necessário de sua sucessão;
2. Tendências modernistas: Propunham a modernização das teorias relacionadas à
economia das sociedades antigas. Estabelecem uma contraposiçãoà formulação teórica
proposta por Karl Bücher;
3. Tendências institucionais: Concepções metodológicas estabelecidas a partir da crítica
do sociólogo Max Weber tanto ao evolucionismo quanto – principalmente – ao modernismo
de Eduard Meyer e sucessores. Weber compreendia que o debate nos termos habituais,
objetando primitivismo versus modernismo, tornara-se artificial.
A ruptura do paradigma metodológico classicista no que tange à análise da Economia
Antiga é inaugurada durante o Terceiro Congresso de Historiadores Alemães, no dia 20 de
abril de 1895. A chamada controvérsia ou debate do oikos teve início quando Eduard Meyer34
desferiu críticas significativas ao modelo evolucionista da Economia Antiga compilado pelos
economistas Karl Rodbertus35 e Karl Bücher36, considerados os fundadores da corrente
34
Eduard Meyer nasceu em Hamburgo em 1855. Foi professor e depois reitor da Universidade de Berlim a partir
de 1918. Meyer escreveu sobre diversas sociedades do Mundo Antigo – Grécia, Roma, Egito, Mesopotâmia,
Israel – enfocando, em geral, a evolução econômica e política de tais sociedades. Foi um dos historiadores mais
atentos às descobertas arqueológicas e papirológicas de seu tempo, além de ser um dos mais bem preparados
para enfrentar as questões metodológicas e teóricas da ciência histórica. Seus trabalhos representam uma defesa
dos preceitos historistas, já, naquela época, sob questionamentos de pensadores das mais diversas áreas das
ciências da cultura que difundiam teorias evolucionistas (CARVALHO, 2007, p. 45).
35
Rodbertus desenvolveu o conceito de “economia do oikos”. Os oikos seriam as unidades domésticas
autônomas, onde o comércio seria eventual e esporádico (JOLY, 1999, p. 15).
36
Karl Wilhelm Bücher (Kirberg, 1847 – Leipzig, 1930) foi economista, um dos fundadores da “Economia
Primitiva” (ou economia não ligada ao mercado); foi também o fundador do jornalismo como disciplina
acadêmica. Estudou na Universidade de Bonn – então na Prússia, sede da História, onde entrou em contato com
essa ciência e com os clássicos antigos; chegou a ter aulas com Arnold Schäffer (TABONE, 2012, p. 47-48). O
economista histórico Karl Bücher publicou o notório ensaio acadêmico Die Entstehung der Volkswirtschaft (As
origens da economia nacional) em 1893, com a proposição de um modelo evolucionista de análise econômica. A
proposta de Bücher era uma tentativa de reconciliar os preceitos nomológicos abstratos da Escola Austríaca e da
Economia Política inglesa com o Historismo, que, apesar de ainda dominante nas universidades alemãs, já
começava a sofrer ataques de alguns setores da intelectualidade das ciências da cultura. Em sua obra, Bücher
defendia a necessidade do estabelecimento de estágios econômicos como um procedimento metodológico
indispensável. Segundo o autor, à medida que os fenômenos e as instituições econômicas se modificam
lentamente no curso dos séculos, o teórico da Economia Política deve se restringir a conceber o aparecimento da
evolução nas suas fases principais e omitir os períodos de transição em que todos os fenômenos estão em vias de
formação. Só assim seria possível encontrar as características fundamentais ou as leis de evolução presentes
43
“primitivista”. Despontava, deste modo, uma relação binária de oposição entre os dois
paradigmas teóricos cujo cerne é permeado pelo debate da Economia Antiga.
A problemática da discussão se fomentou atrelada à possibilidade de utilização e
aplicação da teoria econômica para estudar e analisar os sistemas econômicos do passado, ou
seja, a existência de uma teoria universal que se aplicaria como base para o estudo das
sociedades antigas e suas práticas econômicas.
O modelo defendido por Karl Bücher propunha que os povos antigos estariam em um
estágio “primitivo” da evolução econômica da humanidade. Em contrapartida, Eduard Meyer
compunha um panorama análogo entre os profícuos ciclos econômicos da Antiguidade e os
regimes econômicos “modernos”. A visão estava contaminada pela percepção da economia da
Europa moderna do mesmo modo que sua história política grega o estava pela preocupação
alemã contemporânea da unidade nacional (AUSTIN; VIDAL-NAQUET, 1986, p. 17).
Segundo Ciro Flamarion Cardoso, Bücher formulou em 1893 “um esquema de três
etapas ou estágios sucessivos na evolução da economia que teve influência duradoura em
História Econômica”. Assim, ele atribuiu cada um dos estágios aum dos grandes nichos na
divisão tradicional da história: 1) a economia doméstica fechada, típica do Mundo Antigo; 2)
a economia urbana, típica da Idade Média; 3) a economia nacional, característica da Idade
Moderna.
A proposta de uma economia doméstica fechada, que segundo Bücher seria inerente
ao Mundo Antigo, incide na ausência de trocas, pois a produção é de caráter pessoal – o que é
produzido no oikos é consumido nele mesmo – e a circulação da produção se restringe ao
círculo fechado da casa. Produção e consumo formam um único processo inseparável, as
mercadorias não trocavam de mãos, ou seja, a economia do Mundo Antigo é caracterizada
como amplamente autárquica e relativamente primitiva, o que levou Karl Bücher e outros
autores defensores dessa concepção a serem chamados de “primitivistas”. A partir da
formulação desse modelo, Bücher preconiza leis evolucionistas para o desenvolvimento das
sociedades que precedem a insurgência do capitalismo.
Os dados historiográficos apontados por Mohammad Nassif (ibid., p.64) demonstram
que Eduard Meyer, em contrapartida, propôs alterações substanciais a esse modelo
“primitivo”de análise das relações econômicas nas sociedades do Mundo Antigo. Em sua
conferência a respeito da “evolução econômica da Antiguidade37”, Eduard Meyer sugere
naeconomia. Tais leis, que atuam como mecanismo regulador do desenvolvimento econômico,só poderiam ser
metodologicamente descobertas pela abstração e pela dedução lógica.
37
E. Meyer, “La evolución económica de la Antiguedad”, em seu El historiador y la Historia antigua.Trad.
Carlos Silva. México/Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1955, p. 63-135.
44
tratar de uma temática pertinente à então atualidade por meio do conhecimento das
problemáticas da História Antiga.
Apropriando-se de uma estrutura metodológica análoga ao modelo proposto por
Ranke, Meyer reforça a hegemonia dos fatos concretos como expoentes da História,
delineando uma relação de efeito-causa dos fatos históricos, ou seja, o historiador deveria
debruçar-se (buscar as causas) sobre os fatos históricos que alcançassem maior repercussão
(efeito), medida considerada por Meyer como o termômetro da dimensão e magnitude dos
acontecimentos históricos. Seguindo os apontamentos de Meyer,
O geral não é nunca mais que a premissa e suas consequências são essencialmente
negativas ou, para dizê-lo com maior precisão, restritivas: estabelecem os limites
dentro dos quais se encerram as infinitas possibilidades das formas históricas
concretas. Dos fatores superiores, individuais, da vida histórica depende qual destas
possibilidades chega a ser realidade, isto é, se converte em um fato histórico
(MEYER, 1955, p. 43).
Para Michel Austin e Pierre Vidal-Naquet, a controvérsia não estava nas conclusões
extraídas do embate, e sim na maneira como ele fora conduzido. A dicotomia entre primitivo
e moderno implicava uma evolução econômica linear aplicada ao Mundo Antigo.
A questão de saber se podia estudar a ‘economia’ grega isoladamente e a partir de
conceitos econômicos criados para o mundo moderno, problema fundamental, nem
sequer era posta. Enquanto era de conceitos que se deveria ter começado por
discutir, fazia-se de conta que o problema se situava unicamente ao nível dos factos
(AUSTIN; VIDAL-NAQUET, 1986, p. 18).
38
Mohammad Nassif descreve Max Weber como “um aluno brilhante e herdeiro presumido de Theodor
Mommsen, o decano dos historiadores antigos alemães”. Segundo o autor, Weber teria – após uma curta
passagem pelo Freiburg – se tornado o ocupante juvenil da Cátedra de Economia Política na Heidelberg, após a
aposentadoria de Karl Knies, considerado o mais rigoroso dos membros fundadores da Escola Alemã (HENNIS,
1988; TRIBE, 1989; SCHÖON, 1987, apud NASSIF, 2000, p. 64).
39
“Max Weber (1864-1920) imergiu, em um primeiro momento, em um projeto histórico, discutindo questões
prementes da controvérsia do oikos; em um segundo momento, após seu colapso nervoso, apresentou uma série
de estudos teórico-metodológicos, por meio dos quais procurou solucionar as lacunas teóricas dos membros da
‘Escola Histórica de Teoria Econômica’; finalmente, em um terceiro momento, já maduro, desenvolveu um
projeto histórico-sociológico no qual seus conceitos teóricos são complementados por uma erudição histórica
impressionante, sobre os mais diversos temas”(CARVALHO, 2007, p. 60).
46
Engels demonstram, em maior proporção que as de Marx, que a progressão do trabalho nas
sociedades não contemplava uma visão linear de evolução, demonstrando “tratar-se de um
evolucionismo complexo e multilinear” no qual o movimento marxista, como parte de um
contexto social, não supunha uma dinâmica constantemente ascendente na evolução social.
Julgavam, portanto, igualmente plausíveis a possibilidade de estagnação ou retrocesso,
fomentando os preceitos teóricos necessários para as leituras de Weber acerca da
problematização das práticas sociais na Antiguidade.
Em outros momentos de sua argumentação, Weber se aproxima da leitura de Karl
Bücher ao elencar sua análise teórica “com a ideia do ‘tipo ideal’ – um pressuposto
metodológico que, segundo Weber, deve estar subjacente a qualquer pesquisa histórica”.
Contudo, profere críticas a Bücher, ao afirmar que sua teoria somente se aplicaria a alguns
períodos da Grécia Antiga, dada a especificidade da economia centrada no oikos,
contrapondo, portanto,ao axioma da homogeneização adotado por Bücher.
A antítese entre as estruturas teóricas de Weber e Meyer jaz relação entre causa e
efeito dos fenômenos históricos. Conforme demonstrado anteriormente, Meyer utilizava uma
metodologia de efeito-causa,ao defender que os acontecimentos históricos que
desencadeassem um efeito e/ou apresentassem relevância para o contexto social da
modernidade deveriam ser analisado pelo historiador. Assim, os fatos históricos apresentavam
relação de dependência com a Modernidade, à medida que se legitimavam segundo a
percepção do historiador moderno.
Ao refutar o enunciado de Meyer, Weber critica o juízo de valor reproduzido por essa
corrente historiográfica e estabelece um quadro teórico antagônico, organizando o processo de
análise histórica estruturado em uma metodologia de causa-efeito, na qual o propósito do
exame historiográfico empreendido pelo historiador seria “determinar o papel dos diversos
antecedentes na origem de um acontecimento”.
O último estágio da análise weberiana consolidou a gênese do conceito do tipo ideal,
considerado imprescindível para a construção dos juízos de validade presentes na relação de
causalidade. Nessa concepção, o irreal é visto como um mister para a compreensão dos
fenômenos históricos. O tipo ideal constitui, portanto,“um quadro de pensamento pelo qual se
mede a realidade e com a qual é comparado, a fim de esclarecer o conteúdo empírico de
alguns dos seus elementos importantes” (CARVALHO, 2007, p. 64).
Max Weber “procurava definir a cidade grega antiga por oposição à cidade medieval.
A cidade grega era [...] uma cidade de consumidores, ao passo que a cidade medieval era uma
cidade de produtores”. O diferencial entre as proposições de Weber e o esquema partilhado
47
pelos primitivistas reside no fato de que o autor desassocia a economia da polis clássica da
circunscrição do oikos (AUSTIN; VIDAL-NAQUET, 1986, p. 19). Segundo Danilo Tabone,
Weber afirmava que o papel econômico do oikos está relacionado ao Período Arcaicoe seu
posicionamento em relação ao advento da economia na antiguidade era que
o comportamento econômico das cidades gregas visava sempre o abastecimento do
Estado e dos cidadãos, e nunca uma política de exportação que procurasse escoar, de
forma vantajosa, a produção da cidade. A cidade tem em conta os interesses
econômicos dos cidadãos enquanto consumidores, não como produtores (TABONE,
2012, p. 50).
É essa prerrogativa de análise que desloca o debate das formas e extensão da atividade
econômica para as relações entre a economia e a vida política da cidade grega que será
posteriormente adotada por Johannes Hasebrök40. É nesse contexto de produção intelectual
que emerge a publicação do estudo do helenista alemão Hasebrök relativo às relações
comerciais dos gregos nos períodos Arcaico e Clássico. Sua obra Trade and politics in
AncientGreece (Staat und Handel im alten Griechland) foi publicada em 1928 e busca
contrariar as teorias modernistas e corrigir os pontos omitidos pela doutrina modernista.
O modelo conceitual de Hasebrök transforma o eixo da discussão do oikos para a
polis. O autor defende a relativização do comércio no seio político de Atenas, contrariando a
perspectiva adotada por Eduard Meyer e seus discípulos. Para Ciro Flamarion Cardoso,
Hasebrök foi sectário de Max Weber ao adotar tendência historiográfica análoga. Em sua
formulação teórica, o comércio grego no Período Clássico fora “relativamente primitivo”.
Alexandre Carvalho afirma que, para Hasebrök, “o comércio não impulsionava nem
engendrava qualquer forma de capitalismo”, ao atuar como ensejo figurativo nas atividades
econômicas da cidade-Estado, como um mecanismo acessório às atividades econômicas, “um
meio para o suprimento de necessidades, particularmente de cereais e matérias-primas para
construção de navios, e para o enriquecimento do tesouro por meio de impostos e taxas”
(CARVALHO, 2007, p. 101).
Sua argumentação convergia em torno da cidade-Estado antiga, pois procurou mostrar
que a política da cidade-Estado grega não guardava nenhuma semelhança com o
desenvolvimento político dos Estados nacionais modernos, que, segundo o autor,
40
Johannes Hasebrök foi um dos historiadores alemães mais distintos e criativos da História Social e Econômica
grega do século passado. Como estudante universitário e sob influência de Geschichte des Altertums, de Eduard
Meyer, Hasebrök aprofundou seus estudos em História Antiga, filologia clássica e arqueologia. De 1916 a 1921,
dedicou-se ao estudo do imperador Sétimo Severo. Na Universidade de Berlim, entrou em contato com
estudiosos que o iriam influenciar em suas novas investidas. Dentre eles está o economista Werner Sombart. Já
em 1920, Hasebrök publicou um artigo sobre transações bancárias e banqueiros gregos. Um segundo artigo, em
1921, versava sobre o comércio grego. Apesar de ainda evitar grandes generalizações, esses trabalhos já
apresentam o interesse pela Economia Antiga. Em 1926, em uma conferência sobre imperialismo antigo, revela-
se o impacto das tipificações e conceitualizações histórico-sociológicas de Max Weber sobre suas reflexões.
48
O principal preceito de Hasebrök (1965, passim) teria sido promover a interação entre
a economia, a política e as práticas sociais. Há na economia uma dicotomia envolvendo
comércio e a agricultura. Os dois campos de atuação da prática econômica estariam ligados,
por sua vez, a setores específicos da sociedade, o que teria influência direta no seio político da
sociedade. A agricultura era o reduto de atuação dos cidadãos, relacionada à ancestralidade
corroborada pelo valor da terra, à medida que promovia a manutenção do ócio e, por
consequência, perpetuava as relações políticas.
Assim sendo, a operacionalização de Hasebrök dialoga com a tônica aristotélica da
especificidade das atividades humanas, que, separadas em categorias, possuem classificação
em termos de excelência. Aristóteles aponta no capitulo de Ética a Nicômaco que existem as
atividades e “os produtos distintos das atividades que os produzem”, sendo as primeiras por
natureza maiores em excelência que as segundas.
Aqueles que detinham o capital não se envolviam diretamente com o comércio.
Conforme alega Hasebrök, o homem econômico no Mundo Antigo era um homem
politicamente degradado. O papel do comércio na polis ateniense era paradoxal à ação da
cidadania. O cidadão ativo política e socialmente não deveria se envolver no contexto
comercial, por via de regra o trabalho braçal ser menosprezado e visto como demérito.
Para Hasebrök, o comércio era um meio e não a finalidade da atividade econômica em
si; o comerciante se tornava, portanto, um intermediário das relações comerciais. Dentro dessa
conjectura, Hasebrök estabelece distinções importantes entre as relações comerciais e o
comércio. Em seus apontamentos, as relações comerciais seriam controladas pelos nobres;
contudo,
os lucros advindos desse controle não significavam necessariamente um poder
originário do comércio; sua riqueza era derivada, em parte, de suas terras agrícolas e
de manadas e rebanhos e, em parte, da pirataria e pilhagem. Sua força era física, e
não econômica(CARVALHO, 2007, p. 103).
41
Utilizaremos a terminologia ethos a partir do referencial no qual essa palavra expressa a existência do mundo
grego que permanece presente na nossa cultura. Esse vocábulo deriva do grego ethos. Nessa língua, possui duas
grafias: ηθοζ (êthos) e εθοζ (éthos). O termo grego ηθοζ (êthos), quando escrito com “eta” (η) inicial, possui dois
sentidos: morada, caráter ou índole. Ele representa aquilo que faz uma pessoa, um indivíduo: sua disposição,
seus hábitos, seu comportamento e suas características.O segundo significado da palavra êthos assume uma
concepção histórica a partir de Aristóteles. Representa o sentido mais comum na tradição filosófica do Ocidente.
Este sentido interessa à ética, em particular, por estar mais próximo do que se pode começar a entender por ética
(RUNES, 1990, p. 264-269).
50
42
A ruptura do paradigma metodológico classicista no que tange à análise da Economia Antiga é inaugurada
durante o Terceiro Congresso de Historiadores Alemães, no dia 20 de abril de 1895. A chamada controvérsia ou
debate do oikos teve início quando Eduard Meyer desferiu críticas significativas ao modelo evolucionista da
Economia Antiga compilado pelos economistas Karl Rodbertus e Karl Bücher, considerados os fundadores da
corrente “primitivista”. Despontava, desse modo, uma relação binária de oposição dentre os dois paradigmas
teóricos, cujo cerne é permeado pelo debate da Economia Antiga. A problemática da discussão se fomentou
atrelada à possibilidade de utilização e aplicação da teoria econômica para estudar e analisar os sistemas
econômicos do passado, ou seja, a existência de uma teoria universal que se aplicaria como base para o estudo
das sociedades antigas e suas práticas econômicas. A visão estava contaminada pela percepção da economia da
Europa moderna, do mesmo modo que sua história política grega o estava pela preocupação alemã
contemporânea da unidade nacional (AUSTIN; VIDAL-NAQUET, 1986, p. 17).
43
Utilizando uma metodologia análoga ao modelo proposto por Ranke, Meyer defende que, em seu arcabouço
cultural, a sociedade antiga se apresenta “plenamente desenvolvida e em essência absolutamente moderna”
(MEYER, 1955, p. 72-79). Para o pesquisador Danilo Andrade Tabone, partindo da perspectiva substantivista
(ou modernista), despontara, desde o século VIII, um desenvolvimento da indústria e do comércio com o
florescimento de uma produção e de trocas em estilo capitalista, com o esboço de uma economia monetária na
qual “as aristocracias fundiárias eram substituídas por aristocracias do dinheiro. A partir de então a história
política era reinterpretada: os Estados gregos passaram a ter motivações econômicas e preocupações comerciais
em estilo moderno” (TABONE, 2012, p. 48).
51
44
Segundo Finley, a influência de Polanyi for tão impactante na construção de seu pensamento econômico
acerca do Mundo Antigo que o pesquisador afirma que a obra O mundo de Odisseu não teria sido escrita se não
fosse por Polanyi. As similitudes entre a estrutura metodológica adotada por Karl Polanyi e, posteriormente,
Moses Finley convergem em diversos pontos que se consolidam em torno da História Econômica. De maneira
específica, ambos antagonizavam com a perspectiva modernista, argumentando que “não havia nada de natural
sobre os mercados livres, que o laissez faire foi planejado e o planejamento distributivo não era”. A posteriori,
sob a influência da História Social, esse objeto tornar-se-á o ponto fulcral da análise de Moses Finley
(CARVALHO, 2007, p. 172).
52
empreendida por Moses Finley. A conformidade com o modelo de análise postulado pela
Nova Ortodoxia pode simplesmente resultar de uma análise semelhante a partir da mesma
evidência, com momentos de similitude e distanciamento do modelo proposto inicialmente.
Por isso, é também claro que desafiar as ideias da Nova Ortodoxia, bem como das demais
correntes historiográficas hegemônicas no meio acadêmico não implica necessariamente um
retorno às teorias ultrapassadas do modernismo.
Divergir do arcabouço metodológico de Moses Finley tampouco demanda do
historiador a criação de uma nova Teoria Geral da Economia com a finalidade de substituir a
Nova Ortodoxia. Primeiramente porque a elaboração de uma Teoria Geral acerca de qualquer
ramo do saber não pode ser compilada somente em torno de um artigo, texto ou até mesmo
um livro em si baseados em conceitos e fórmulas previamente compiladas. O processo de
construção de uma teoria geral contempla, de modo geral, diversas fases que devem resultar
em uma pesquisa que apresente resultados duradouros para seu campo de análise; neste caso,
a Economia. Uma das armadilhas com as quais se depara o historiador é ambição que acarreta
exposição de teorias prematuras, generalizantes ou minimalistas que se provam, a longo
prazo, insustentáveis. Para Bresson,
A avaliação teórica razoável no campo da História Antiga só será possível depois de
uma série de estudos em que as principais questões são examinadas. Devemos ser
gratos à Nova Ortodoxia por levantar estas questões numa altura em que o
modernismo e seu aliado de fato, o positivismo, dominavam (BRESSON, 2016, p.
68).
46
Para o historiador Morgen Hansen, o termo magistrado é a tradução convencional, mas não completamente
satisfatória, de hai archai, um termo que se refere a oficiais designados por eleição ou sorteio para atuar dentro
de um curto período (a maior parte de um ano) e encarregado da gestão do dia a dia da polis e ao exercício das
decisões tomadas pela Assembleia, o Conselho e os tribunais (HANSEN, apud AISCHIN 3.13). A palavra arche
significa realmente uma magistratura, mas ela foi usada com praticamente a mesma frequência da pessoa que
tenha a magistratura (Andok 1.84.); daí hai archai, 'os magistrados', foi o termo coletivo para um grupo de
pessoas que constituíam um ramo do governo em pé de igualdade com a ekklesia e a dikasteria (Arist Pol
1317B35-6; Hansen (2005) 225).
47
O pesquisador elucida que a dracma era o pagamento equivalente a um dia de trabalho, assim 1.800 talentos
corresponderiam a diárias de pagamento para 30.000 pessoas, correspondente ao salário de um ano inteiro para
cada cidadão ateniense. Para Hansen, parte desse enorme comércio pode ter sido o comércio de trânsito; mas isso
não altera o fato de que Atenas tinha um comércio de exportação-importação estrangeira em uma grande escala.
(HANSEN, 2006, p. 94)
55
poderia contar com um emporion, um entreposto para comércio externo. Nos poemas
homéricos e em inscrições arcaicas, a ágora é apontada como um local para a realização de
assembleias do povo. No Período Clássico, entretanto, os relatos sobre a ágora passam a
relatar um mercado local, e não há quase vestígios da ágora como espaço para a reunião da
assembleia (ibidem, p. 102).
A mudança no panorama econômico da Grécia é corroborada pelas pesquisas do
arqueólogo Ian Morris. Mediante um levantamento iconográfico das habitações na Grécia
Antiga ao longo dos anos 800 a 300 a.C., Morris foi capaz de detectar uma significativa
elevação no tamanho dos edifícios residenciais, a qual o pesquisador atribui a um aumento na
renda per capita da população grega. Muito embora seja impossível reconstruir o quadro do
consumo dos oikoigregos, o pesquisador afirma que a habitação média tornou-se muito maior
e melhor construída ao longo do período de 500 anos. Analisando somente a transformação do
diâmetro das casas, Morris aponta para um crescimento de cerca de 350% na metragem das
residências (MORRIS, 2004, p. 720-729). Assim, tendo em vista a melhoria marcante nos
padrões de construção, o aumento total do investimento econômico necessário para construir
uma habitação sofreu crescimento exponencial.
Para Josiah Ober, as hipóteses levantadas por Ian Morris sobre a elevação da renda per
capita e o crescimento econômico grego agregado são consistentes com outros indicadores
indiretos que apontam para um crescimento substancial no final do Período Arcaico e
noPeríodo clássico. Com base nos dados doLéxico denomes pessoais gregosde Oxford48, Ober
calculou o total de nomes conhecidos a partir de fontes literárias e arqueológicas e concluiu
que “os nomes pessoais no território Ático cresceu de 1.200 nomes no VI século a.C. para
17.000 nomes no IV século a.C., um aumento de aproximadamente 14 vezes em um intervalo
de menos de 300 anos” (OBER, 2015, p. 83).
Segundo o pesquisador, o resultado da pesquisa é proveniente de múltiplas variáveis,
como as taxas de crescimento da produção literária e nas inscrições epigráficas, além da
elevação na taxa de natalidade e, consequentemente, aumento na qualidade de vida à medida
que a taxa de mortalidade (desconsiderando os períodos de guerra) sofreu processo
inversamente proporcional à natalidade. Esses dados, na perspectiva de Ober, apontam para
uma sociedade na qual os indivíduos passaram a consumir “consideravelmentemais” (idem).
48
Os dados encontram-se disponíveis no site www.lgpn.ox.ac.uk. Josiah Ober afirma que a disposição da
listagem nominal discorre do seguinte modo: século VII a.C.: 75 homens e 9 mulheres; século VI a.C.: 1.062
homens e 124 mulheres; século V a.C.: 5.234 homens e 436 mulheres; século IV a.C.: 14.714 homens e 2.424
mulheres (ibidem, p. 339).
56
49
Dados compilados no site www.admin.numismatics.org/igch e na literatura de Thompson, Morkholm e Kraay,
1973.
57
Apropriando-nos das hipóteses de Josiah Ober e Ian Morris, que informam sobre um
crescimento econômico na sociedade grega no intervalo entre os séculos IX e IV, o intuído de
nossa pesquisa consiste em materializar a insurgência das atividades econômicas por meio das
práticas comerciais e mercantis desde o advento do Código Legislativo forjado a partir da
ascensão de Sólon ao cargo de archonte, ainda no VI século do período arcaico grego.
50
É necessário salientar que o termo “oikos” na Grécia Antiga transcende o referencial que entendemos como
“casa” na sociedade contemporânea. Segundo Claude Mossé, no Dicionário da Civilização Grega, trata-se de
um termo antigo, encontrado desde o os poemas de Homero, que designa o domínio aristocrático, ou seja, ao
mesmo tempo as terras, a casa, e todos aqueles que, de um modo ou de outro, fazem parte deste domínio:
parentes, servos, escravos. Na época clássica, esse sentido é mantido, mas o oikos passa a referir-se com mais
frequência ao senhor, sua esposa, as crianças e os escravos (MOSSÉ, 2007, p. 213).
58
51
Xenofonte nasceu por volta de 430 a.C., na Ática, no demo de Érquia, em plena Guerra do Peloponeso.
Descendente de uma família abastada de proprietários rurais, era filho de Grilo, e acompanhou a decadência da
política ateniense na primeira fase de sua vida. Sua origem e educação aristocráticas emergem de forma clara por
toda sua obra, ao condenar muitas das ações dos políticos democratas. Conforme comentário em As Helênicas
(1994), Xenofonte participou da cavalaria ateniense, tanto na Lídia em 410 a.C., quanto ao lado dos oligarcas do
Governo dos Trinta, na turbulenta Atenas pós-Guerra do Peloponeso. Para Jaeger (1995, p. 1144), a imagem filo-
espartana de Xenofonte, decorrente deste período, não permitiu, durante décadas, que o escritor ateniense tivesse
um contato pacífico com a pátria.
59
52
A crematística assenta na raiz chrema («coisa que se usa ou de que se necessita»), cujo plural (chremata)
significa «bens, propriedade». Para Aristóteles, é importante distinguir entre o sentido geral de crematística
como «arte de adquirir» e o significado restrito (e também mais usual em grego) de «arte de produzir dinheiro»
(Vide FINLEY, 1984, p. 278-9).
60
53
Antes dos trabalhos de Aristóteles, importa referir também que a literatura grega conhecia já́ uma tradição
muito antiga de obras que, de alguma forma, abordavam questões ligadas à gestão de recursos, sobretudo na sua
acepção mais clássica. Assim acontece com os Trabalhos e Dias de Hesíodo que, com o seu pendor conceitual e
didático, acabam por veicular noções úteis ligadas à administração doméstica e familiar. No contexto da Guerra
do Peloponeso e dos seus antecedentes, Tucídides fornece também elementos importantes para a compreensão da
historia econômica da Grécia, em particular a de Esparta e Atenas. Platão, ao descrever a cidade ideal, não deixa
de tratar igualmente de aspectos ligados ao problema em análise, num misto de abstração ideológica e aspectos
da experiência factual.
54
Ver Anexo 5 - Tabela sobre a visão dos autores clássicos sobre o comércio (p. 200-202).
61
55
Algumas outras passagens em Política e Ética a Nicômaco mostram que a autarquia deve ser entendida tanto
no sentido físico (a disponibilidade de todos os bens necessários para uma vida digna) quanto em um sentido
moral (um ambiente que permite que todos os membros da comunidade busquem a felicidade através do
desenvolvimento de todo o seu potencial). Na percepção de Moses Finley e seus discípulos, a autarquia,
entendida no sentido físico, seria um ideal, levando à conclusão – muito embora Aristóteles não tenha delineado
esta finalidade diretamente – de que a cidade deve ser completamente desligada de comércio exterior. Esta
conclusão estaria baseada na desconfiança que Aristóteles expressa abertamente em relação aos estrangeiros em
geral e aos comerciantes, em particular na tradição de As Leis, na qual Platão descreve em pormenor as maneiras
de tornar a cidade a mais isolada possível. (Leis, 12.949e–953e)
62
Por conseguinte, assim que a cidade atinge certo ponto de crescimento demográfico,
torna-se impossível atender às demandas de autossuficiência da polis por intermédio de uma
prática econômica que atendia somente aos interesses e às necessidades de um grupo social
específico, a aristocracia agrária. Portanto, o comércio surge como uma resposta econômica
impreterível para a manutenção de uma estrutura social políade autossuficiente idealizada na
tônica aristotélica.
Aristóteles considera que é evidente a necessidade do intercâmbio entre a polis e as
comunidades estrangeiras. Muito embora o filósofo idealize a polis a partir de um princípio de
autossuficiência, a construção teórica de um modelo ideal de cidade não impede que
Aristóteles perceba as limitações deste conceito, uma vez que nenhuma polis seria capaz de
obter acesso a todos os gêneros necessários à sobrevivência por tempo indeterminado.
O comércio exterior56 é, portanto, uma necessidade clara e absoluta. Quando se trata
de comércio exterior, Aristóteles considera as necessidades da comunidade sempre acima das
ambições individuais. Esta ideia, que já encontramos, é claramente salientada no Livro VII da
obra Política, quando o filósofo destaca que “é para seu próprio benefício que uma cidade
deve se dedicar ao comércio” (Política,7.5.4). No contexto social de produção que precede as
reformas de Sólon, um dos fatores que obstruíam a ação autárquica das relações comerciais
era a instabilidade dos pesos e medidas de Atenas.
1.6 O princípio econômico das reformas de Sólon a partir da leitura de Karl Polanyi
56
Por "comércio exterior" compreende-se as atividades econômicas de importação e exportação, que estão
intimamente relacionadas. O comércio exterior que se limita a "alcançar a autossuficiência natural" faz parte da
"habilidade natural de aquisição", ou seja, retornar-se-ia ao ideal da oikonomia preconizada por Aristóteles como
a manifestação orgânica dos ensejos econômicos, antagonizando com o caráter destrutivo da crematística.
57
Verificar Anexo 6 - Quadro esquemático sobre o livro a grande transformação (p. 204);
63
58
O conceito já teria sido utilizado por Richard Thurnwald, que foi uma das maiores influências de Polanyi no
campo da Antropologia Econômica. Thurnwald deve ter sido a inspiração para a adoção do conceito de
incrustação de Polanyi (BLOCK, 2000, p. 7); por outro lado, sugere que Polanyi teve sua inspiração a partir de
uma palavra usada na mineração: enquanto estudava História Econômica britânica em preparação para a Grande
Transformação, ele certamente teve acesso a uma leitura extensiva sobre a história das tecnologias utilizadas na
indústria de mineração britânica, cujo trabalho era extrair carvão que estaria incrustado (embedded) nas paredes
rochosas das minas.
59
Segundo Karl Polanyi, antes da chegada da sociedade moderna até o final do século XVIII encontramos em
todas as sociedades o sistema econômico imerso no sistema social.Assim, anteriormente à nossa época nenhuma
economia era controlada por mercados. Embora a instituição mercado estivesse sempre presente na história
humana, "seu papel era apenas incidental na vida econômica" (POLANYI, 2000, p. 59). De acordo com Polanyi,
esta categoria conceitual de incrustração impossibilitava a dicotomia entre o viés econômico e social, que resulta
do advento da Revolução Industrial – onde as sociedades não faziam distinção entre práticas econômicas e não
econômicas, à medida que tornava-se difícil identificar os processos econômicos isolados.
64
60
Tanto Polanyi quanto, antes dele, Alexandre Chayanov (1981) são autores que influenciaram o
desenvolvimento de uma corrente teórica da Antropologia que afirma a existência de sociedades em que a
economia permanece uma dimensão não autônoma da vida social. Os trabalhos de Marshall Sahlins (1972) e
Pierre Clastres (1988), entre outros, são desdobramentos recentes dessa perspectiva.
65
produção, aquela recorrência que é essencial para conferir estabilidade e unidade à atividade
econômica.
O arcabouço metodológico de Polanyideriva do seu reconhecimento da afinidade
teórica fundamental que se estabelece entre a antropologia econômica e os sistemas
econômicos comparados. A economia em seu sentido substantivo, ou primitivo, constitui a
base conceitual e metodológica da abordagem preconizada pelo autor. Esta concepção, da
qual Polanyi era sectário, afirma que a economia se constitui como um processo formado de
interação entre o homem e o ambiente social e natural que o rodeia, o qual resulta em
contínua oferta de meios para satisfazer as necessidades humanas. Assim, “o estudo do lugar
ocupado pela economia na sociedade é nada mais do que o estudo da maneira como o
processo econômico está instituído em diferentes épocas e locais. Isto requer a utilização de
instrumentos [conceituais] especiais” (POLANYI, 1968a: p. 148).
Polanyi antagonizava com o arcabouço teórico compilado pelo esquema formalista
que analisa“economia enquanto um processo instituído de interação entre o homem e o seu
ambiente, o qual resulta numa contínua oferta de meios materiais para satisfazer as suas
necessidades, esta sim com caráter universal”(MACHADO, 2009, p. 29).No pensamento de
Karl Polanyi encontra-se a distinção entre as vertentes da Antropologia Econômica, a
economia no sentido substantivo(enquanto processo instituído) e a economia no sentido
formal (baseada na lógica da ação racional).
No passado, sustenta Polanyi, a atividade econômica estava incrustada nas relações
sociais que definiam a comunidade como um todo. Desse modo, defenderemos a premissa de
que as reformas de Sólon estavam profundamente relacionadas ao sistema econômico
ateniense, muito embora estivessem imersas às práticas sociais. Devido a essa relação binária
de dependência entre o social e o econômico, as medidas legislativas implementadas por
Sólon aparecem sempre incrustadas no contexto social. Logo, ao promulgar leis de caráter
econômico como a seisachtheia, Sólon reorganizou os segmentos sociais, evidenciando o
caráter análogo das práticas sociais e econômicas.
Assim, anteriormente à nossa época, nenhuma economia era controlada por mercados.
Embora a instituição mercado estivesse sempre presente na história humana, "seu papel era
apenas incidental na vida econômica" (POLANYI, 2000, p. 59). Apropriar-nos-emos,
portanto, do escopo conceitual formulado por Polanyi ilustrado através do esquema a seguir:
66
O princípio da lei da oferta e da procura62 tem por base a escassez de um bem e das
ilimitadas necessidades humanas a serem satisfeitas. As sociedades antigas dispunham de
recursos ilimitados e a riqueza visava à circulação de bens como forma de aquisição de apoio
político, prestígio e formação de alianças. As mercadorias detinham o valor de uso e não o
valor estipulado pelo mercado; a economia, em resumo, era acessória à sociedade.
Atribuir a nomenclatura de timocrática à empreitada socioeconômica de Sólon
corrobora o argumento de Karl Polanyi, uma vez que as medidas econômicas adotadas por
Sólon foram o resultado do panorama sociopolítico enfrentado pela sociedade ateniense
durante os séculos VIII e VII a.C., que culmina com a crise agrária. Ainda que essa distinção
entre político, social, econômico e religioso seja uma construção moderna, nós utilizaremos o
recorte econômico de nosso objeto de estudo para compreender melhor o aspecto conjuntural
da polis de Atenas.
61
Para um panorama detalhado acerca dos conceitos de reciprocidade, redistribuição e domesticidade e
simetria,verificaros Anexos 7 a 12 (p.205-210) para verificar os esquemas de estudo redigidos por Karl Polanyi.
62
Karl Polanyi parte da perspectiva econômica de maneira extrínseca à economia de mercado, da lei da oferta e
da procura. Em sua abordagem, tais preceitos têm sua origem com o advento da Revolução Industrial e, portanto,
sua aplicabilidade em relação à Economia Antiga se tornaria anacrônica. Observar os anexos para as anotações
de Polanyi acerca das perspectivas de lucro, dinheiro, formas de comércio, formas de integração
67
63
Polanyi (2000, p. 67-9) menciona ainda o princípio da domesticidade, cujo padrão institucional seria a
autarquia ou grupo fechado e que consistiria na produção para uso próprio. Em um texto posterior (POLANYI,
1976b), ele prefere omitir esse princípio, que corresponderia à oikonomia dos gregos, tratando-o como um caso
particular do princípio de redistribuição.
68
64
Para um panorama geral acerca da conjuntura política e organização social da polis no período que precede o
archondato de Sólon verificar Anexo 13 - Forma Política do Archondato no Período Arcaico (p. 210)
65
O pesquisador Josiah Ober aponta que o território ateniense de origem Ática se estendia até 2.500 KM 2 ,
compatível a cerca de um terço dos territórios da Lacônia e Messênia combinados. A população total da polis
ateniense no IV século a.C., após a guerra e um consequente número maciço de vítimas, é estimada em
250.000,00 habitantes.
66
Na tentativa de compreender a identidade grega, os estudiosos buscaram explicá-la sob a definição de
etnicidade cunhada no pensamento antropológico desde pelo menos os anos 1960. I. Malkin, questionando-se
sobre aplicabilidade do termo inventado na metade do século XX, para explicar um fenômeno antigo, defende
que o conceito de etnicidade ainda é o mais viável e significante para a nossa interpretação sobre a percepção de
identidade nas sociedades do passado, pois identidade coletiva é uma forma de identidade étnica e, embora sejam
conceitos amplos e fáceis de empregar, não são sinônimos de etnicidade (MALKIN, 2001, p.3-4) J. Hall, por sua
vez, lembra que os gregos antigos não possuíam um termo que pudesse ser igualado a etnicidade. O termo
éthnos, do qual derivam os termos científicos sociais modernos, simplesmente designa uma classe de seres
(humanos ou animais) que compartilham uma mesma identificação (ALDROVANDI, 2009, p.7; HALL,
2002:17). Mas, ao terem atribuído a solidariedade social de um éthnos ao genos (nascimento) e à syngeneia
(parentesco), os gregos chegaram o mais perto que puderam do nosso conceito de etnicidade (ALDROVANDI,
2009, p.8; HALL, 1998, p.34-40). Na perspectiva do estudioso, portanto, se não houver evidência do que os
grupos pensavam sobre sua identidade torna-se extremamente complicado falar de etnicidade utilizando-se dos
modelos atuais (ALDROVANDI, 2009, p.8).
70
ateniense durante o VII século, à medida que não existia ainda uma coesão social capaz de
promover outros elementos identitários característicos dos atenienses, como a religiosidade,
um legado mitológico coletivo e culto comum. O fenômeno antropológico que promoveu a
construção de uma identificação entre os habitantes do território Ático como atenienses seria
desencadeado, segundo Josiah Ober, em 594 a.C., em virtude da ascensão de Sólon ao poder
em Atenas (Idem)
O caso ateniense é o único conflito agrário de que temos documentação no período
arcaico. O aspecto geográfico de Atenas e a sua exclusão da rota comercial do Mediterrâneo
são condições imperativas para a eclosão isonômica da legislação de Sólon, assim como as
migrações, a infertilidade do solo e a drenagem das regiões pantanosas, somadas ao
superpovoamento sofrido por diversas regiões da Grécia e à queda no índice de mortalidade,
ou seja,“a terra não produzia excedentes necessários para efetuar as trocas comerciais, ofertar
aos deuses e promover o dote para casar a filha”67.Assim, a nova legislação adotada por Sólon
surgiu como uma resposta para as disparidades sociais que permearam a polis a partir do
século VII a.C.
67
CANDIDO, Maria R. Synoicismo:Controle político através da unificação geográfica da Ática.Revista
Maracanan, 2013.
71
Fonte: OBER, Josiah. The Rise and Fall of Classical Greece. The Princeton History of the Ancient
World. Princeton; Oxford: Princeton University Press, 2015, p. 134.
Nas demais poleis, informa Anthony Snodgrass, o aumento demográfico sofrido pelo
território foi um fenômeno físico de imenso impacto que desencadeou uma reação estrutural
na qual a população que havia crescido na Ática assim como em outras localidades provocou,
por conseguinte, um aumento na intensidade do cultivo da terra, diminuindo a fertilidade do
solo. Na leitura de Pierre Vidal-Naquet, tal conjuntura resultou na insuficiência de
produtividade do solo que, associada à prática de divisão da terra do pequeno proprietário aos
herdeiros, reduziu o espaço de cultivo, levando-o à prática da agricultura de subsistência
(VIDAL-NAQUET, 2007, p. 74); assim, a terra não produzia excedentes necessários para
efetuar as trocas comerciais, fato evidenciado por meio da regulamentação legislativa das
práticas relacionadas à exportação e importação dos alimentos produzidos na polis ateniense.
A evidência para o crescimento da população baseia-se principalmente no aumento
das evidências relacionadas aos enterros em várias regiões da Grécia (incluindo Atenas e
Ática) a partir do período arcaico. Embora tenha havido um grande debate sobre a relação
entre o registro arqueológico e tamanho da população, um consenso geral parece ter sido
alcançado em dois pontos. Em primeiro lugar, apesar da existência de flutuações regionais a
curto prazo, houve crescimento populacional constante, de aproximadamente 0,25% ao ano,
em toda a Grécia a partir do século X até o século IV a.C. Em segundo lugar, o crescimento
72
parece ter sido particularmente forte (até 1% ao ano) no período do final do século VIII até o
século V a.C., um período correspondente ao florescimento cultural e político da polis grega.
Evidências de sepultamentoem Atenas e na Ática tem sido fundamentais para os argumentos
que apontam para um forte crescimento populacional nesse período. (FORSDYKE, 2006, p.
335-6)
O caso da expansão territorial e demográfica de Atenas ocorreu de maneira diferente,
na medida em que o contingente populacional da Hélade não sofreu o mesmo crescimento
exponencial do qual foram acometidas as outras polis gregas, não podendo dispor de homens
para os movimentos migratórios. Por consequência desse contexto político singular, o modelo
de colonização ateniense não contemplou a estratégia expansionista adotada pelas demais
poleis, afastando-se até mesmo da perspectiva de anexação de territórios adjacentes adotada
por Esparta (OBER, 2015, p. 145).
Entrementes, a Historiografia francesa, em especial Pierre Vidal-Naquet, analisa o
período de Sólon como o marco inicial para o processo de colonização exterior ateniense, com
ênfase em estabelecer entrepostos comerciais (emporion68) nas regiões do Mar Negro como
lugar de trocas comerciais para assegurar a importação de cereais, metais e produtos agrícolas
essenciais à sobrevivência da polis. Para Vidal-Naquet, a crise agrária do Período Arcaico
desencadeou um processo gradual de conscientização por parte da população em relação aos
problemas com o abastecimento de alimentos. Nesse sentido, Sólon teria interditado a
exportação de qualquer produto agrícola ateniense, com exceção de vinho e azeite, buscando
assegurar o controle das rotas pelo Mar Negro (VIDAL-NAQUET, 2007, p. 88).
Conforme discussão fomentada pelos apontamentos da pesquisadora Lin Foxhall
(1997), concluímos que esse é um dos fatores que contribuem para uma tentativa de
reorganização social, com o critério censitário de cidadania efetivado a partir das reformas de
Sólon, visando o regresso daqueles que haviam sido vendidos como escravos em consequência
da crise agrária, uma vez que a escravidão por dívida comprometeu o futuro da região de
Atenas. De fato, tem sido amplamente aceito que a pressão populacional, a escassez do solo
ático, a pressão sobre os recursos agrícolas, e as causas ecodemográficastenham
68
O historiador John-Paul Wilson alerta para as questões referentes ao uso do termo emporion. Para ele, existe
uma divergência na historiografia entre o emprego dos termos emporion ou apoikia. A apoikia transmite uma
ideia da criação de uma polis à sua própria imagem; e, no século VIII a.C., afirma Wilson, o conceito de polis
ainda não estava amadurecido o suficiente para refletir outra terminologia derivada, tal qual a apoikia. O
pesquisador conjectura que a oposição criada entre os termos emporion/apoikia resulta de uma criação do
Período Clássico e reflete as preocupações e desejos da época. A oposição parece não ter existido, pelo menos
não de uma forma tão rígida, em meados do V século a.C. Ainda que a distinção entre emporion e apoikia não
esteja nítida no Período Arcaico, não é menos verdade que foram diferentes assentamentos criados com muito
diferentes motivos em mente. A consideração do uso de uma tipologia mais sutil de comunidades iniciais é
recomendável, pois evita a classificação rígida da divisão emporion/apoikia (WILSON, 1997, p. 112-3).
73
funerais, pois tais práticas eram pertinentes a um contexto social de produção anterior a seu
archondato que estimulava as desigualdades sociais presentes na sociedade ateniense. Para
refrear “os deslocamentos, manifestações de luto e festividades das mulheres, estabeleceu
uma lei que reprimia a desordem e o excesso” (MORRIS, 1987, p. 170).
Ainda de acordo com Plutarco, através da legislação, Sólon impediu as mulheres de se
lacerarem com golpes, de fazerem lamentações fingidas e de chorarem um estranho no funeral
de outras pessoas. Não permitiu ainda que se imolasse um boi em honra dos mortos, que se
deixassem mais de três peças de roupa com o defunto e que se visitassem as sepulturas
estranhas à família, exceto no dia do funeral. (Vidas de Sólon, Fr. 21.6)
Concluímos, portanto, que a crescente popularização dos rituais fúnebres contrapõe a
premissa do aumento demográfico ateniense no Período Arcaico, a medida em que o censo
promovido por pesquisadores como Anthony Snodgrass e, mais recentemente, Gilbert Murray
baseia-se em evidências extraídas a partir de registro arqueológico do cemitério do
Kerameikos. A utilização comparativa do registro arqueológico sugere que tanto Atenas
quanto as planícies da Ática foram menos densamente povoadas no VII e VI séculos a.C. que
outras regiões da Grécia. Dialogando com a proposição de Lin Foxhall, é justo dizer que os
tamanhos dos assentamentos do Período Arcaicoaumentaram gradualmente com o nível geral
de prosperidade material, mas ainda não estavam no nível elevado atingido no V e IV séculos
a.C. Esse padrão dificilmente sugere excesso de população ou de uma paisagem que se
aproxime sua capacidade total de carga no Período Arcaico.
Retomando a proposição reiterada por Josiah Ober acerca do padrão de colonização da
polis ateniense, percebemos que é somente a partir do V e IV séculos a.C. que o processo de
expansão territorial e identitária de Atenas se desenvolve, obviamente com variações locais,
regionais, mas datando de aproximadamente o mesmo tempo que as fontes literárias clássicas
postulam. Essa informação fornece suporte à desestruturação do modelo de crescimento
demográfico elaborado pela historiografia, sugerindo, em contrapartida, o declínio do
contingente populacional ateniense no intervalo dos séculos VIII e VIa.C., que contribuiu para
a eclosão de uma crise agrária no Período Arcaico. A evidência desta pesquisa não corrobora
a premissa da superlotação do território ático durante o Período Arcaico.
75
entretanto, parece ter fornecido uma fonte de sustentabilidade – ainda que parcial – para a
polis grega.
De fato, o historiador André Chevitarese fornece uma interpretação explicativa,
elencando o diferencial da região de Eleusis em termos pluviométricos – um elemento
imprescindível para a produtividade agrícola quando somado à fertilidade do solo. Ao analisar
a variação dos índices pluviométricos das regiões de Atenas e Eleusis, precisamente o recorte
geográfico que concerne nossa pesquisa, o autor se depara com disparidades entre as
condições de produtividade das regiões. Segundo ele, “houve, ao longo de todos os anos,
chuva suficiente para garantir a produção de cevada nas duas regiões” (CHEVITARESE,
2000, p. 51). Entretanto, na amostra temporal eleita pelo autor a região de Eleusis pôde
produzir trigo durante nove anos, enquanto a região de Atenas teve a produção desse cereal
comprometida ao longo de três anos. Ainda de acordo com a análise de Chevitarese,
a Ática apresenta um fracasso de 28% na sua produção de trigo, 5,5% na colheita da
cevada e 71% na produção de legumes secos. Estas perdas não representam, a
priori, uma situação de anormalidade, já que, desde a Antiguidade, Atenas procurou
compensar as suas quebras nas colheitas com a importação dos referidos produtos
agrícolas (ibidem, 2000, p. 50).
Para esse autor, grande parte do sucesso de Eleusis como região produtora em relação
a Atenas deve-se ao fato de a primeira ser banhada pelo mar, o que impulsionaria o percentual
de chuvas por ano, além de tornar o solo mais fértil pela constante renovação dos minerais
trazidos pela água e a areia do mar.O historiador Alain Bresson compactua com esta análise,
afirmando que “em Atenas existe uma possibilidade de 28% de que o nível de precipitação
seria muito baixo para permitir a colheita de trigo” (BRESSON, 2016, p. 158).
A agricultura da Antiguidade grega consistia basicamente da chamada “tríade
mediterrânea”. As escassas partes do território ático consideradas férteis, em especial Eleusis,
eram voltadas para o cultivo e a manufatura de grãos, azeitonas e uvas69. De modo
secundário, os suprimentos contavam com a adição de atividades como a criação de animais,
de modo particular ovelhas e cabras. Segundo Pierre Vidal-Naquet, o ato de “consumir os
grãos, o vinho e cozinhar a carne dos sacrifícios era a definição de cultura” (VIDAL-
NAQUET, 1986, p. 15).
Os grãos constituíam a maior parte do suprimento alimentício dos gregos. Para Alain
Bresson, uma média de 70% das calorias necessárias eram obtidas nos cereais. Os gregos
utilizavam o termo sitos para definir os cereais que, de modo geral, eram representados pelo
69
Para um quadro elucidativo acerca do calendário das atividades agrícolas verificar Anexo 14 - Calendário das
Atividades Agrícolas e Despesas de Eleusis (p. 212)
77
A aparente divisão geográfica entre zonas de produção ao longo do território ático faz
atentar para dois fatores: a existência de diferentes níveis de fertilidade do solo ático e a
consequente valorização das regiões a partir da perspectiva da produtividade, tendo em vista a
importância dos grãos na pirâmide alimentar grega; e implica que os habitantes das regiões
mais urbanizadas do território grego não poderiam produzir o trigo necessário à sua
alimentação, tornando a importação desse artigo uma necessidade para a sobrevivência da
polis.
De acordo com o pesquisador Julian Gallego, um dos testemunhos examinados pela
historiografia para compreender a formatação da pirâmide alimentar grega e a estratificação
agrícola do território da Ática foram os registros presentes nas inscrições epigráficas dos anos
de 329/8 a.C. de Eleusis. Essa inscrição registra os primeiros frutos (aparkhaí) de trigo e
cevada que as dez tribos da Ática e alguns territórios dependentes deveriam entregar ao
santuário de Eleusis (Inscrições Graecae, II2 1.672). Os montantes requeridos revelam-se nas
78
70
Os autores da historiografia que adotam o referencial das inscrições epigráficas de 329/8 a.C. da região de
Eleusis são: Josiah Ober (1985, p. 23-4); Robin Osborne (1987, p. 46); Thomas W. Gallant (1991, p. 177);
Robert Sallares (1991, p. 393-4); e Peter Garsney (1998, p. 192).
71
Segundo Lin Foxhall, a média do consumo de grãos per capita foi, provavelmente, 200 kg por pessoa ao longo
do ano. (FOXHALL e FORBES, 1982, p. 41-90). A estimativa da produtividade do contingente de produção que
máxima da terra seria aproximadamente 1000 kg por hectare (1 ha = 2,2 acres); Robert Sallares sugere um
máximo de 650 kg por hectare. Robert Sallares sugere um máximo de 650 kg por hectare. 'Média' consumo de
grãos per capita foi, provavelmente, c. 200 kg por pessoa por ano, Foxhall e Forbes, op. cit. (N. 99). Para a
pesquisadora, dos valores da área de terra estimados acima, as de cevada são suscetíveis ao valor mínimo
possível, e os valores determinados para o trigo podem estar perto do topo, uma vez que a cevada é geralmente
suscetível a produzir uma melhor safra que o trigo em condições de crescimento do Sul da Grécia. Um estudo
comparativo estabelecido apartir dos agricultores de subsistência modernos da Grécia, em Metana, cultivam em
média um território de 3,5 hectares e produzem normalmente entre 1000 e 3000 kg de trigo por ano, destinados
não a venda, mas ao consumo doméstico. A produção de trigo normalmente é excedente para necessidades de
subsistência e as famílias pretendem guardar oferta de grãos de um ano em relação às necessidades do ano
corrente. O cultivo não é mecanizado, utilizando-se de mulas para a manutenção do arado. Entretanto, tal
estimativa de produtividade conta com a utilização de fertilizante de nitrato e às vezes herbicida.
79
Fonte: Adaptada de FOXHALL, Lin. A view from the top: Evaluating the Solonian property classes. In: The
Development of the Polis in Archaic Greece. Routledge: New York, 1997. p. 70.
Consideramos que a identidade dos atenienses foi construída a partir do mito de Íon. A
inserção da narrativa mítica de Íon72, um herói epônimo dos jônicos, durante o archondato de
Sólon, reforça o argumento de uma etnicidade73 ateniense ligada às tribos jônicas em
detrimento as origem dóricas, cujo critério identitário remonta à disputa pela posse da região
de Eleusis.
Muitas são as vertentes que buscam uma explicação para a emergência das tribos
áticas. Questionamo-nos se o viés da migração jônica foi adotado por Sólon como narrativa
mítica para a criação de uma identidade helena. Segundo Victor Ehrenberg, o território ático
era formado por quatro phylai: Geleontes, Hopletes, Argadeis e Aigikoreis,que, de acordo
com o autor, seriam provenientes da Jônia, ou seja, os atenienses não seriam povos autóctones
e sim descendentes da Jônia, como afirma Sólon ao se referir a Atenas como uma antiga terra
jônia e, consequentemente, de descendentes de Íon (EHRENBERG, 2011, p. 320).
John Boardman, em contrapartida, afirma que, na visão dos atenienses,“eles sempre
estiveram na Ática, e a mudança necessária para transformá-los em jônicos foi o trabalho de
Íon, que veio e se estabeleceu entre eles e impôs as quatro tribos em homenagem a seus
filhos” (BOARDMAN, 2006, p. 390).
Para a pesquisadora Maria Regina Candido, a ação de unificação da Ática foi mediada
pelo processo decivilidade a partir dos atenienses e resultou nas relaçõesinterpolíades, cujos
princípios se pautam “no principio da relação de philia, que consiste na ação de ajuda mútua
individual, familiar e de vizinhança, [pelo] principio de interação e cooperação das políades”
(CANDIDO, 2012, p. 165).
A priori,argumentaremosque a identidade jônica teria sido implementada por Sólon
como uma estratégia para aumentar a receptividade da seisachtheia mediante à polis, uma vez
72
Segundo Pierre Grimal, no Dicionário de mitologia grega e romana, “Íon é o herói que deu nome aos iónicos.
Pertence à estirpe de Deucalião e é sobrinho de Doro e de Éolo e filho de Xuto e Creusa, filha de Erecteu”.
Segundo a versão do mito explanada por Grimal, Íon dividiu a Ática em quatro tribos e organizou politicamente
o país que, quando ele morreu, tomou seu nome. Mais tarde, os atenienses enviaram uma colônia para Egíalo e
impuseram a esse país o nome de Iónia. Ainda em sua descrição da narrativa mítica, o autor argumenta que
“Eurípedes escreveu uma tragédia sobre Íon que romanceia estes dados lendários” (GRIMAL, 2000, p. 252-3).
73
A etnicidade envolve muito mais a percepção interna de cada membro de um grupo (HALL, 2001, p. 216).
Quando aplicado ao processo de formação de identidade, o princípio é que a autoconsciência é construída por
meio da diferenciação de grupos de fora ou “outros” (HALL, 2007a, p. 255). Nesse sentido, o grupo étnico
define-se não pela soma de diferenças objetivamente observáveis, mas por apenas aquelas que os membros do
grupo, eles próprios, percebem como diferenças significantes. A etnicidade, portanto, depende de categorização,
ou seja, da habilidade em dividir o mundo entre “nós” e “eles” (HALL, 2001, p. 216).
81
A posição estratégica das fronteiras entre as duas poleis as tornava alvo de desejo por
parte de Atenas. Segundo Bernard Randall,“não se sabe quem originalmente tinha a posse da
ilha, mas os atenienses certamente acreditavam que deveria ser deles”(RANDALL, 2004, p.
85). Plutarco argumentava que as duas poleis haviam guerreado pela posse de Salamina por
décadas, se não séculos. Todavia, em algum momento após 600 a.C., os megarenses
conseguiram garantir o comando de Salamina de maneira tão decisiva que os atenienses
decidiram abrir mão das terras. Plutarco afirmava que os atenienses estavam tão exaustos da
guerra com Mégara que chegaram a aprovar uma lei punindo com a pena de morte qualquer
pessoa que tentasse recomeçar a guerra pela região de Salamina.
Ora, quando os atenienses se cansaram de alimentar uma guerra morosa e
desgastante contra os megarenses por causa da Ilha de Salamina, proibiram por lei
que alguém voltasse a propor, por escrito ou de viva voz, que a cidade reivindicasse
Salamina, sob pena de morte (Vidas Paralelas, 8.1).
Salamina, uma ilha que se encontra a cerca de um quilômetro e meio de distância tanto
de Atenas quanto de Mégara, estava sob o domínio dos megarenses, conforme ilustrado no
mapa a seguir.
Mapa 2 - Território Ático
74
Neste ponto, o autor retifica sua afirmação, alegando que, na verdade, Sólon teria utilizado o argumento da
genealogiacombinado à naturalização de estrangeiros. Um indicativo do caráter abrangente que posteriormente
moldaria a essência de sua legislação.
75
O autor argumenta que o caso de Sólon foi fortalecido pelo Oráculo de Delfos, nomeado pelos deuses como
Salamina de jônica.
84
76
Sólon (Fr. 10).
85
Um dos principais pilares acadêmicos no tangente aos estudos dos horoi é o notório
historiador Moses Finley77. Seu consagrado artigo Studies in Land and Credit500-200 B.C.:
The Horos Inscriptions78, publicado originalmente em 1952,concentra-se principalmente no
estudo da polis ateniense e contém uma análise detalhada das inscrições epigráficas
encontradas nos horoi79, consideradas pelo autor como marcadores de pedra utilizados para
indicar a existência de um empréstimo ou de outra obrigação em termos de terra ou edifício.
A palavra horos foi originalmente utilizada para denotar um marcador de fronteira e é
aplicada, segundo Moses Finley, seguindo esta conotação nos poemas homéricos e nos
poemas de Sólon. Duas estelas com inscrições, datando 500 a.C., foram encontradas nas
fronteiras da ágora ateniense, com as seguintes inscrições: “Eu sou o horos da ágora”
(THOMPSON e WYCHERLEY, 1972, p. 117–9), conforme indicados pela imagem abaixo:
77
Moses Finley é, em consenso pela historiografia, considerado o primeiro historiador a compilar uma coleção de
todos os horoi conhecidos. Todavia, quando Finley começou a trabalhar nesse projeto, em algum momento na
década de 1940 John Fine já havia recebido os horoi advindos das escavações americanas da Ágora. Fine decidiu
acrescentar uma discussão geral acerca dos horoi de segurança a esses documentos, incluindo todas as
referências aos horoi publicadas anteriormente. Finley tomou conhecimento sobre o trabalho de Fine depois de
já ter começado a sua tese e contatou Fine, que, generosamente, cedeu-lhe as inscrições epigráficas provenientes
dos horoi da Ágora.
78
O artigo Studies in Land and Credit 500-200 B.C.: The Horos Inscriptions, de Moses Finley, foi publicado
pela Rutgers University Press em 1952 e foi reimpresso com uma nova introdução por Paul Millett em 1985. O
livro é diferente de outros livros de Finley, que foram baseados em palestras. O mundo de Ulisses teve suas
origens em uma série de palestras dadas em Bryn Mawr College. O livro Democracia antiga e moderna baseou-
se nas palestras Mason Welch ministradas em New Brunswick, New Jersey, em abril de 1972. Já a obra A
Economia Antiga foiuma publicação de palestras de Finley apresentadas na Universidade da Califórnia,
Berkeley, em 1972. A escravidão antiga e ideologia moderna baseou-se em quatro palestras apresentadas no
Collège de France, em novembro e dezembro de 1978. Política no Mundo Antigo foi a publicação de suas
conferências entregues na Queen’s Universidade, em Belfast, em maio de 1980. Todos esses trabalhos foram
escritos para o público em geral e abordam temas amplos e gerais na História Antiga.
79
Finley apresentou as inscrições epigráficas encontradas em 180 desses horoi no Apêndice I de seu trabalho.
Uma vez que alguns horoi continham até dois textos, houve um total contabilizado de 182 textos.No ano
anterior, o autor John Fine havia publicado um artigo intitulado Horoi: Studies in Mortgage, Real Security and
Land Tenure in Ancient Athens como volume suplementar para seu livro Hesperia. Este continha quarenta
inscrições epigráficas encontradas em 39 horoi recém-descobertos. Finley acrescentou esses novos textos no
Apêndice III do seu trabalho, elevando o montante a um total de 222 inscrições epigráficas catalogadas, embora
nem todos os textos refiram-se a horoi como indicadores de empréstimo.
86
Fonte: The Athenian Agora Museum. Foto: Craig Mauzy. Referência: 2008.18.0298.
A análise geral de Finley a respeito dos horoi foi construída sobre três principais
pressupostos. Em primeiro lugar, Finley acreditava na existência de três formas básicas de
segurança real em Atenas (hypotheke, prasis epi lysei e apotimema). Neste ponto, Finley
dialoga com John Fine e outros estudiosos do tema. Em segundo lugar, Finley acredita que
não houve registros de propriedade nos períodos Clássico e Helenístico em Atenas. Em
terceiro lugar, Finley não suportava a existência extensiva de mercados em Atenas, afirmando
que, como resultado, os atenienses muitas vezes não pensavam em termos de
mercado(FINLEY, 1985, p. 13-15).
Esses pressupostos básicos influenciaram diversas de suas conclusões primárias.
Finley argumentou que o verdadeiro sentido de segurança nas leis de Atenas81, tanto no
âmbito jurídico privado quanto na esfera pública, de modo geral tratava de uma seguridade
substitutiva e não uma garantia de segurança. Na forma substitutiva de segurança, o credor
80
Verificar no Anexo 15 - Horoi da Ágora Ateniense com Escalas (p. 213)
81
Moses Finley acreditava que a prática da segurança real fora idealizada principalmente para os ricos e não se
estendia aos outros membros da sociedade. O autor entendia que o uso de segurança real era restrito
principalmente às classes altas. Ele alegou que não havia leis que regulamentassem a prática de segurança real.
De acordo com Finley, a maioria dos empréstimos era utilizada para fins de consumo, mesmo para usos
produtivos (FINLEY, 1952, p. 113).
87
aceita a propriedade como um substituto para o empréstimo, caso o devedor não tenha quitado
a dívida. Assim, o credor não entende a propriedade como garantia, como uma mercadoria
que pode ser trocada por dinheiro no mercado a fim de quitar a dívida. Ele não está
interessado no montante em dinheiro como forma de segurança, e sim na segurança como
propriedade para seu próprio uso. Em termos mais gerais, isso significa que o credor não vê a
segurança como uma mercadoria, apenas como propriedades anexas passíveis de serem
transferidas para a sua posse.
Em algum momento no início do século IV a.C., estes horoi começaram a ser
operacionalizados como marco indicando que a propriedade em que foram alocados havia
sido dada como garantia para alguma operação não quitada82. Na grande maioria dos casos, os
horoi eram posicionados nas propriedades que haviam sido empregadas como garantia para
um empréstimo. Em um número menor de casos, este método era aplicado para garantir o
retorno de um dote ou o pagamento de aluguel. A quantidade de informações sobre o horoi
varia83. A maioria revela o nome e a origem do demos relativos ao indivíduo a quem a
propriedade está comprometida e muitos contém o valor da obrigação. A finalidade deste tipo
de horos era advertir terceiros da existência prévia de um vínculo com o imóvel em questão.
Durante o Período Arcaico, foram utilizados horoi como forma de fronteira
territorial. Moses Finley (1982, p. 113)argumenta que esses marcos de pedra eram
utilizados de forma ambivalente: para a demarcação de fronteiras externas do território
ateniense e para delimitar o estado de servidão em que se encontrava a maioria dos
camponeses submissos aos aristhoi, considerados donos da terra. À medida que o território
recebia uma nova remarcação, os horoi eram reposicionados, simbolicamente representando
o crescimento exponencial da dívida dos hectemoroi e, consequentemente, o estado
crescente de sua servidão. Maria Regina Candido, em argumentação análoga, afirma que
quando Sólon mencionou em sua poesia a retirada dos marcos/horoi deixou transparecer
que os marcos de pedras estavam colocados nas terras dos hectemoroi para indicar a sua
dependência aos aristhoi (CANDIDO, 2012, p. 24).
82
A primeira referência a um horos deste tipo vem do discurso Iseu de Atenas, datado de cerca de 364 aC.,
Existem vários horoi de segurança datados, pela primeira vez, do archondato de Caricleide em 363/2. (HARRIS,
2013, p.127)
83
Segundo Edward Harris, a acepção mais incerta dos horoi é a terminologia utilizada para determinar segurança
real. Em apenas sete horoi, encontra-se o termo hypokeimeno, que pode ser traduzido como "deitado sob uma
obrigação." Em um grande número de horoi (128) na coleção de Finley encontramos um tipo diferente de
expressão: pepramenou, ou epi lysei, que é muitas vezes traduzido como "venda sob condição de lançamento."
Em cerca de cinquenta horoi identifica-se um terceiro tipo de expressão, apotetimemenou. Na documentação
encontra-se um quarto tipo de horoi, enechyron, entendido como mandato de segurança real, que não é
encontrado nos horoi catalogados por Moses Finley. (HARRIS, 2013, p.128)
88
Por outro lado, Sólon menciona dois tipos de terra que estavam alocados de forma
abusiva nas mãos das lideranças aristocráticas do demos: as terras sagradas e as terras
públicas. Os integrantes do demos exigiam o estabelecimento da isomoiria, a divisão das
terras de forma igualitária, solicitação recusada por Sólon.
A pesquisadora Louise-Marie L’Homme-Wéry, entretanto, oferece uma explicação
alternativa para supressão dos horoi que se distancia da perspectiva amplamente aceita pela
historiografia e adentra o âmbito da religiosidade dos atenienses. A autora defende que a
retirada dos horoi detém um significado ambíguo, pois ao mesmo tempo que representava a
libertação dos hectemoroi escravizados também aponta para a libertação da terra em si,
retirada das mãos dos aristhoi, usurpadores de “terras sagradas” de Eleusis. L’Homme-
Wérybusca a ressignificação para as “terras negras” mencionadas por Sólon em sua poesia.
Para ela, essas “terras negras” seriam as “terras sagradas” da região de Eleusis,que, nesse
período, estaria subordinada a Mégara.Para Louise-Marie L’Homme-Wéry, Sólon, ao retirar
os horoi, demarcadores de fronteira de Eleusis e Atenas, reforça a extensão do território que
pertence aos atenienses, ato corroborado pela procissão pompé de Atenas a Eleusis que visava
reverenciar o culto da Grande Mãe Demeter. Nesta celebração, segundo a autora, os efebos
participavam ativamente demonstrando que o ato também era cívico e religioso (L’HOMME-
WÉRY, 2001, p. 114).
A proximidade da região de Eleusis com o território de Salamina, todavia, implicava
uma importância que transcendia a mitologia, adentrando no aspecto geográfico. Aristóteles
reforçava essa teoria, alegando que Sólon parecia ter criado uma lei para prevenir a
acumulação ilimitada de terras (Política, 1266, 16). Fato que, segundo Claude Mossé (1979,
p. 426), levou Sólon a retirar os marcos/horoi e abolir as dívidas/chreonapokope.
Conforme demonstrado pelo mapa a seguir, a proximidade entre as regiões elevava o
valor da recuperação do território de Salamina pelos atenienses, pois, além da construção de
um fator simbólico e identitário, resguardava geograficamente as fronteiras comerciais e
mercantis de Atenas.
89
Sólon defendia que a retirada dos horoi libertava da escravidão não só os devedores,
mas a terra em si que havia sido escravizada por estar nas mãos dos aristhoi:“a melhor, a
negra terra, da qual eu, outrora arranquei os horoi, fincados por toda parte; se antes era
escrava, agora é livre” (Sólon, Fr. 36 W). Tratava-se de uma alusão implícita à subordinação
que o território de Eleusis havia sofrido por Mégara.
O pesquisador Joseph Almeida (2003, p. 47), extrapolando esse viés, reforça a
importância da região de Eleusis ao afirmar que “o desenvolvimento da atividade comercial é
visto na exportação de vasos de figuras negras” e “no interesse de Atenas para controlar as
posições [...] em Salamina para facilitar o acesso a rotas de comércio a partir do seu porto do
sul para a possível exportação de grãos e oleaginosas para os mercados do Mar Negro”.
Concluímos, perante tal perspectiva, que, para estabelecer o controle da região de
Eleusis e a manutenção de suas fronteiras, fazia-se necessário o domínio territorial de
Salamina, cujas rotas marítimas eram imprescindíveis para a prática da atividade comercial e
mercantil, tão necessárias para o fluxo de importação e exportação que se iniciou durante o
contexto de crise agrária enfrentada pela polis dos atenienses.
O pesquisador Josiah Ober, entretanto, oferece-nos uma interpretação alternativa para
a remoção dos horoi do território ateniense. Muito embora reconheça que os horoi eram
90
84
Para mais detalhes acerca da estela hipotecária do IV século a.C., ver Finley (1951) (edição revista, 1985) e
Fine (1951). Para oshoroimencionados por Sólon como registros de hipoteca, ver, por exemplo, de Ste. Croix
(2004,p. 109-128), conforme exemplificado pela passagem: "No que diz respeito aos camponeses proprietários
(...) não há problema: os horoi foram pilares de madeira registrando o fato de que as terras que se achavam sobre
eram o que chamamos de 'hipotecado", e, claro, a destruição do horoi acompanha e simboliza o cancelamento
das hipotecas” (STE. CROIX, 2004, p. 115).
85
Seu argumento consiste na afirmação de que os horos de remoção foram condenados como ilegais e motivo de
sacrilégio por Demóstenes (7,39-40) e Platão (Leis 8.842e-43b) e passaram a estar sujeitos a multas em outras
poleis; para o autor, apropriando-se do discurso de Demóstenes, Sólon não iria se orgulhar de participar em uma
atividade considerada criminosa; Para o autor, “[a] leitura literal da passagem com segurança pode ser
descartada” e, portanto, ficamos com “nenhuma escolha mais para interpretar estas linhas
metaforicamente"(HARRIS, 2007, p. 104-105).
91
dos segmentos sociais expostos à escravidão por dívidas em partes da polis nas quais suas
reivindicações sociais poderiam ser propagadas e, talvez, adquirir coro entre o amplo corpo de
indivíduos que compunha o segmento dos hectemoroi. Esta afirmação se consolida se
adotarmos a perspectiva dos historiadores Julian Gallego e Miriam Valdés Guíaacerca da
dimensão do controle dos hectemoroi pelas elites.
A opressão que os nobres têm sobre os agricultores áticos antes de Sólon não se
restringe a aspectos puramente econômicos relacionados à propriedade da terra, a
exploração, o acesso a subsistência etc., mas intrinsecamente envolvidos no controle
das alavancas de poder político, judicial e religioso. A fim de se apropriar de mais
terra e converter escravos para os agricultores, a aristocracia ateniense se reservava o
direito exclusivo à aplicação da justiça tanto a nível local, através de relações de
fisiologismo e clientelismo, com os grupos de dependentes, como a nível central,
por meio de magistrados judiciais no asty (GALLEGO; GUIA, 2014, p. 11).
Isto sugere que os horoi tinham um uso compulsório restritivo, que limitava a
movimentação de alguns atenienses para determinadas partes do território ateniense –
possivelmente incluindo o centro da polis e suas instituições e, consequentemente, reforçando
as condições de trabalho forçado imposto pelo domínio da elite, tanto no poder político
quanto de ritual (religioso). Em nossa interpretação, interpolada ao pensamento de Josiah
Ober, a elite eupátridai buscou, através do imaginário social, "naturalizar" as distinções que
desejava estabelecer entre si– como elite dominante – e entre a parcela menos representativa
da população por meio do estabelecimento de horoi. É factível que os horoi sistematizados ao
longo da geografia interna da Ática objetivariam corresponder a uma estrutura social interna
estratificada da polis ateniense: a uma sociedade dividida entre eupatridai e hectemoroi.
Retirar e/ou mover os horoiseria, para Sólon, uma forma de equalizar o acesso físico e,
consequentemente, a igualdade (no sentido de isonomia) metafórica almejada por Sólon,
eliminando o uso perigoso das dívidas para impor formas díspares de desigualdade, e criar de
fato a liberdade de movimento e de associação para os atenienses no espaço da Hélade.
Na perspectiva de Karl Polanyi, o princípio da redistribuição é“importante
principalmente em relação a todos aqueles que têm uma chefia em comum e têm, assim, um
caráter territorial”.Ao nos debruçarmos sobre os apontamentos de Moses Finley, é possível
tecer um paralelo com a premissa elencada por Josiah Ober, na medida em que, para o
pesquisador,
as grandes casas eram comandadas por nobres, os quais controlavam a repartição de
bens entre os membros do oikos. Ali prevalecia um mecanismo redistributivo: os
frutos do trabalho “eram reunidos e alocados centralmente, e do centro eram
redistribuídos” (...) pelo seu chefe, no momento e na medida em que ele estimasse
apropriada(FINLEY, 1952, p. 58-59).
92
dupla libertação: em primeiro lugar, a repatriação desses atenienses que tinham sido forçados
ao exílio ou vendidos no exterior como escravos; e, em seguida, a libertação dos atenienses
que permaneceram em Ática, mas foram forçados a uma condição servil e temiam o domínio
de seus mestres.
A melhor, a negra Terra, da qual eu, outrora
arranquei os horoi, fincados por toda parte;
se antes era escrava, agora é livre.
Para Atenas, pátria fundada pelos deuses,
eu reconduzi muitos homens, vendidos ora justa,
ora injustamente, uns tendo sido exilados (Fr. 36 W 5-10).
86
Alguns exemplos da manifestação dos horoi na literatura clássica podem ser encontrados no período que
precede o governo de Sólon. Na Ilíada, no meio de uma luta com o deus Ares, a deusa Atena pega uma pedra
quehavia sido "deitada na planície, escura, áspera e enorme; outros homens a tinham estabelecido como um
horos da terra" (Il. 21,403-405). No juramento de efebia ateniense durante o período arcaico, os horoi são
chamados como testemunhas (RHODES; OSBORNE, 2003, p. 88). Duas estelas com inscrições, datando de 500
a.C., foram encontradas nas fronteiras da Ágora ateniense, com as seguintes inscrições: “Eu sou o horos da
Ágora” (THOMPSON; WYCHERLEY, 1972, p. 117–9).
94
compreensão de Sólon a respeito dos problemas enfrentados pela polis e da forma resultante
na qual ele pretendiaconfrontá-los, na medida em que algumas das distinções arbitrárias
características do paradigma aristocrático vigente foram, evidentemente, marcadas pelos
horoi.
Concluiremos que a desestruturação doshoroi estabelecida por Sólon implicou a
eliminação das restrições sociogeográficas sobre o livre acesso ao território. Esta análise
também pode nos auxiliar a compreender a tradição histórica a respeito das facções políticas
atenienses como grupos determinados por uma noção socioespacial de identificação.Esta
argumentação é provável ao adotar a premissa de que os eupatridaiprocuraram formalizar
através dos horoi e, posteriormente, naturalizar as distinções geográficas articulando-as a
determinadas categorias sociologicamente identificáveis de pessoas com certas partes do
território.
A conjuntura que reforça a proposição defendida por Josiah Ober é o fato de Sólon ter
inserido o procedimento do apelo jurídico (ephesis) junto ao corpo cívico da polis. Esse ato
legislativo permitia ao litigante recorrer da decisão dos magistrados no Tribunal identificado
como Heliai, composto em sua maioria pela camada de cidadãos de poucos recursos – o
demos (plethos).(OBER, 2016, p. 160)
Logo, tendo em vista o embate que se estabelece na historiografia, consideramos que
determinar a correspondência entre a documentação sobre o tema auxilia a acompanhar a
perspectiva do debate historiográfico em torno das ações de Sólon, a saber:
Aristóteles vai tão longe a Plutarco afirma que, ao Essa ferida inevitável já
ponto de dizer que "todos" serem apreendidos, alguns atinge toda a polis e
os empréstimos naquela dos devedores foram rapidamente conduz à
época foram feitos sobre a "escravizados em Atenas”, perversa escravidão,
segurança da pessoa. enquanto outros foram
Esses males se espalham
vendidos no exterior, e que
entre o povo: muitos pobres
Empréstimos muitos pais foram obrigados
migram para uma terra
a "vender" seus filhos(13,2).
estrangeira,vendidos e
atados com humilhantes
grilhões (Fr. 4 W).
Caso o pobre não pagasse O devedor podia perder a “Para Atenas, pátria fundada
o arrendamento, estava liberdade porque o pelos deuses, eu reconduzi
sujeito à suspensão da empréstimo tinha como muitos homens, vendidos
liberdade (agogimoi seguridade a pessoa, estando ora justa, ora injustamente,
egigyouto), porque o sujeito à escravidão ou uns tendo sido exiladospor
empréstimo incidia sobre vendido como escravo causa da penosa
Escravidão as pessoas (II,2 11-12). (13,2). necessidade, não mais
falavam o dialeto ático,
Ambos os autores deixam
depois de terem errado por
claro que esta “suspensão”
muitos lugares; outros, aqui
da liberdade (agogimoi
mesmo, sofriam a ignóbil
egigyouto) elevou-se a
escravidão,trêmulos diante
uma forma de escravidão.
da conduta dos seus
senhores”(Fr. 36 W).
96
Por meio da corpora documental, Aristóteles aponta que Sólon “fez o cancelamento
das dívidas antes da legislação, e depois disso [fez] o aumento das medidas, dos pesos e da
moeda”.Aristóteles e, posteriormente, Plutarco defendem que o cancelamento das dívidas foi
chamado seisachtheia (Constituição dos Atenienses,6.1, 25). Na Constituição dos Atenienses,
entretanto, Aristótelesnão indica a origem do nome e Plutarco afirma que Sólon instaurou esta
medida como um eufemismo para “atenuar a amargura do cancelamento da dívida universal”.
Esse autor também não cita qualquer inscrição de Sólon como evidência para a origem do
termo (Vida de Sólon, 15.3) e diz também que os cidadãos, depois do descontentamento
inicial, perceberam o benefício das medidas e estabeleceram um sacrifício público, ao qual
eles chamaram seisachtheia (Vidas de Sólon, 16.3).
Muito se especula sobre a extinção da escravidão por dívidas. Em primeira instância,
torna-se imperativo analisar o significado da expressão “escravidão por dívidas”. Edward
Harris (2006, p. 13-18) realiza uma meticulosa análise sobre o termo, enfatizando o valor da
propriedade e sua singularidade na Grécia Antiga. Para ele, os cidadãos reconheciam
plenamente que “os proprietários exerciam seu poder sobre os objetos que a eles pertenciam e
os senhores possuíam todos os direitos sobre os escravos”.Harris constrói uma distinção entre
a escravidão por dívidas e outra modalidade de controle de trabalho e de pessoas, a“servidão
por dívidas”.
Segundo o autor, é imprescindível compreender as peculiaridades de cada uma das
esferas de trabalho forçado antes de responder à pergunta que intitula seu trabalho. Harris
argumenta ainda que Sólon estaria mais preocupado com a escravidão que resultasse da
violência do que com a servidão advinda de dívidas que eram o resultado de um conjunto de
97
leis sobre a posse de terra. A seguir está um quadro comparativo com as definições de Harris
acerca das duas categorias citadas:
Entretanto, devemos arguir a respeito de seu poder de ação nesse sentido. Qual seria o
verdadeiro alcance de Sólon no que tange às outras poleis atenienses? A empreitada, além de
dispendiosa, seria altamente atribulada, uma vez que se fazia quase impossível contabilizar e
98
até mesmo localizar os indivíduos que haviam sido vendidos como escravos ao exterior. E,
supondo que os libertos realmente retornassem à polis ateniense, mantinha-se a dúvida sobre
qual seria sua perspectiva de ação na Hélade, uma vez que é sabido que Sólon se recusava a
promover a isomoiria87, como ele atesta em: “me agrada [...], nem que os nobres tenham uma
porção de terra fértil da pátria igual aos vilões”88.É importante ressaltar que sem a
redistribuição das terras seria praticamente impossível realocar os libertos.
Segundo alguns autores como Plutarco e Aristóteles, Sólon aboliu a dívida dos
hectemoroi que trabalhavam nas terras dos aristhoi com a lei da seisachtheia;entretanto,
pouco se fala sobre a reação da aristocracia mediante as medidas impostas por Sólon. Tratava-
se do segmento social mais proeminente de Atenas e que tinha seu lugar de prestígio89
contestado por Sólon, já que inserira os “novos ricos” como pentacosiomedimnos.
Conjecturamos que este segmento social tenha sido claramente prejudicado na nova divisão
censitária de Atenas. O fato nos leva a questionar a passividade com que a lei da seisachtheia
foi representada pela historiografia90, que não analisa as possíveis reações dos aristhoi contra
a medida.
Questionamos, ainda, a premissa de que o segmento aristocrático teria se resignado
com tal medida de maneira passiva, não só pela perda de seu status quo, pela desautorização
da posição dos únicos detentores do poder político em Atenas – uma vez que o nascimento
lhes garantia a posição de eupatridai –, como também pela perda do pagamento da taxa de 1/6
do que era produzido pelos hectemoroi. Para o autor, existia um estado de embate entre os
bem-nascidos (gnorimoi) e o demos ou plethos devido às desigualdades econômica e
87
Termo com que Claude Mossé designa a divisão igualitária da terra (MOSSÉ, 1979, p. 61).
88
Sólon (Fr.34 W).
89
Segundo a pesquisadora Lynette G.Mitchell, tradicionalmente o status social era corolário do poder político.
Aarete (excelência) era a marca do nobre (agathos), que, devido à sua nobreza, detinha o controle político. Os
indivíduos que possuíam a arete eram considerados agathoi; aqueles indivíduos sem arete eram considerados
partidários de status social inferior (kakoi). No mundo homérico, as palavras mais poderosas de louvor foram
agathos e arete, que descreviam os valores mais procurados em tal sociedade. Para alcançar a arete, no contexto
de Homero, era preciso ser bom em alguma coisa, e o agathos homérico era regido pelo sucesso na guerra e
pelos esforços dedicados à proteção dos interesses dos oikos. O ethos do agathos homérico era único e
competitivo: seu papel principal era defender sua família, e foi desta maneira que os agathoi mantiveram sua
posição. Para Mitchell, embora exista a tendência de enfatizar as proezas militares, o agathos era também um
homem bem-sucedido em tempos de paz. O agathos também representava, por natureza, um homem rico, e os
seus bens materiais eram parte do que determinava sua posição na sociedade. Os agathoi foram aqueles com
poder dentro da comunidade, aqueles que tinham o direito ao maior tempo, porque eram os protetores da
sociedade em tempos guerra e paz (MITCHELL, 2005, p. 76)
90
Podemos citar autores, como, por exemplo, Claude Mossé, que, apesar de promover um debate acerca do uso
da figura de Sólon, não se aprofunda no debate acerca das classes sociais atenienses; a Cambridge Ancient
History V.III (2006, p. 340) levanta a hipótese de que os aristhoi estariam dispostos a sofrer as consequências da
legislação de Sólon em troca da manutenção da ordem social em Atenas, uma vez que um estado de stasis seria
iminente.
99
seus credores através de pagamento de aluguel foram considerados átimoi91 ea sua terra, não
mais usufruto livremente, teriasido marcada com horoi.
Luis Molina, dialogando com a distinção estabelecida por Edward Harris, alerta ainda
para a existência de uma leitura alternativa acerca dos grupos sociais existente na polis,
baseado na perspectiva adotada por W.J. Woodhouseem seu livro Sólon o liberador.No
esquema a seguir, o autor assinala diferentes tipos de relação de dependência que incluíam
outros segmentos sociais, extrapolando a perspectiva dos hectemoroi como cerne do problema
solucionado pela seisachtheia.
91
Literalmente “sem prestígio”, implicariia a perda da cidadadania, a degradação de seus direitos políticos e
cívicos ou a exclusão da comunidade. Cf. Arist. (Pol., 1281b 29-30). Sobre esse aspecto, ver: Rihll (1991:122-3);
Rhodes (1981:111) y Humphreys (1991:33). Cf. Valdés Guía (2006:147; 2008: 65-6).
101
Sólon rompeu ainda com as medidas anteriormente adotadas por Drácon (com exceção
da lei do assassinato, cujas penalidades foram mantidas). Promoveu a divisãoda população em
quatro classes de acordo com a propriedade, dando aos mais ricos uma oportunidade de
ocupar os cargos da polis, antes reservados aos eupátridas (“filhos de bons pais”); com isso,
contestou o lugar social das famílias de prestígio, elegendo a riqueza em detrimento da posse
de terras como critério censitário e reorganizando a estrutura da polis, consolidando seu
regime timocrático93.
De acordo coma interpretação de Josiah Ober, a reforma das quatro classes censitárias
parece apontar para o esforço de Solon, “um homem que se autodescrevia como
intermediário”, para construir uma classe media (intermediária) dos cidadãos, juridicamente
distinta tanto dos mais ricos como dos mais pobres, sem vontade de se juntar à elite na
opressão dos pobres, mas prontos e dispostos a mobilizar contra os inimigos externos de
Atenas ou contra tentativas revolucionárias para redistribuir a propriedade privada. A
distribuição faz sentido, no entanto, se assumirmos que Sólon estava buscando esculpir uma
classe medíocre com uma identidade que era distinta da dos mais ricos membros da elite
(OBER, 2016, p. 373-374).
92
Verificar o Anexo 16 - Tabela de Rendimentos dos Segmentos Sociais do Código Soloniano (p. 214) para a
tabela completa formulada por Lin Foxhall com os cálculos referentes aos valores apresentados na tabela.
93
O pesquisador suíço Kurt Raaflaub, em seu livro Origins of Democracy in Ancient Greece (2007, p. 71),nos
aponta que Martin Ostwald considera que Sólon desafiou a tradicional elite ao introduzir o princípio da
timocracia junto aos pentacossiomedinas detentores de riqueza e capacidade guerreira.
103
Para Ober, outra finalidade das classes do censo pode ter sido de natureza fiscal, a
única fonte direta, embora para esta afirmação seja encontrada em um relatório Pollux (8130).
De fato, Aristóteles menciona o imposto da eisphora no período de Sólon; sugere que, no
Período Arcaico, foi estabelecida por Sólon uma série de mecanismos organizados para a
recolha de impostos com base nos indicadores de renda estabelecidos pelas classes censitárias.
Segundo o pesquisador Julian Gallego, a documentação herdada de Aristóteles e
Plutarco parece concordar que o objetivo de Sólon em estabelece as classes censitárias era
político-econômico, a fim de reorganizar a participação jurídica, especialmente em
determinadas magistraturas, com base latifundiária, ou melhor, a regulamentação da renda
baseada em medidas cereais (medimnoi).
Peter Rhodes (2006, p. 253; cf. 251; 1981, p. 143) também mantém que Solon não
teria definido as medidas exatas em medimnoi (exceto para a primeira classe), ou pelo menos
sugere que a lei, especificando as qualificações de cada classe, não teria sobrevivido aos
tempos de Aristóteles, o que implica que as medidas propostas teriam base em outras
motivações. Rhodes acredita que os hippeis, oszeugitai e os thetai já existiam como categorias
antes de Sólon, que criou uma nova classe de pentacosiomedimnoi definida segundo sua
produtividade.
A criação da classe censitária dos pentacosiomedimnos é uma das principais
evidênciasda inserção dos estrangeiros na sociedade ateniense. Assim como os ceramistas
foram incentivados a migrar para a polis ateniense em troca da cidadania, existia também uma
parcela social de ricos emergentes que já estava inserida na sociedade, à qual foi garantida a
cidadania pela criação do segmento social dos pentacosiomedimnos, evidenciando o critério
econômico instituído por Sólon.
Moses Finley chama a atenção para os pentacosiomedimnoi, cujo termo aponta apenas
para um sistema de valoração do montante de riqueza, sem indicio de sua procedência, fato
que simboliza a organização de um sistema timocrático (FINLEY, 1983, p. 24). Antes de
Sólon, a população da Ática consistia no que podemos denominar multidão, que incluía os
eupátridas, o segmento social de pouco ou nenhum recurso, hectemoroi, camponeses,
criadores, artesãos, comerciantes enriquecidos, os não aristhoi, escravos, pelatai/clientes e
estrangeiros.
Eram considerados pentacosiomedimnos aqueles que retirassem de sua propriedade
quinhentos medimnos94(medidas conjuntas de grãos e líquidos) (ARISTÓTELES,
94
Medida ática de capacidade para grãos, com aproximadamente 50-55 litros. Aristóteles não menciona como era
feito o acúmulo de medidas líquidas e sólidas. A medida sólida era representada pelos grãos, embora não fosse a
104
Constituição dos Atenienses,VII, 5). Esse padrão de medida, utilizado como critério para a
hierarquização social promovida por Sólon, exemplifica a adoção de uma legislação político-
econômica baseada na valorização do fator econômico, ou seja, da perspectiva timocrática.
Diferentemente dos demais segmentos sociais determinados pela legislação de Sólon –
hippeis, zeugitas e thetas–,cuja etimologia dos termos remonta a atividades relacionadas a um
passado em comum à polis,os pentacosiomedimnoscompunham a única parcela cuja
terminologia relacionava-se diretamente com o critério econômico.
Martin Ostwald considera que Sólon desafiou a tradicional elite ao introduzir o
principio da timocracia junto aos pentacosiomedimnoi, detentores de riqueza e capacidade
guerreira (RAAFLAUB, 2007, p. 61). A candidatura para as magistraturas de tesoureiro,
embaixador e estrategos era destinada somente aos primeiros dos cidadãos, ou seja, aos
pentacosiomedimnoi,assim como o acesso aos cargos dos nove arcontes. Logo, a escala de
privilégios e acessos às magistraturas findava-se no segmento social inerente aos eupatridai.
Na abordagem de Maria Regina Candido,a teoria amplamente divulgada junto à
academia define a classificação censitária como uma inovação pelo fato de mesclar o acesso
aos privilégios das magistraturas aos membros da aristocracia de nascimento junto com os
integrantes de famílias de igual riqueza, mas que não pertencia a aristocracia de nascimento.
Sólon associa o nascimento com a riqueza como condições necessárias ao acesso aos cargos
políticos em Atenas. Para a pesquisadora:
Os cargos de maior prestígio como arconte e tesoureiro estavam reservados as duas
primeiras classes – pentacosiomedimnoi, os arcontes eram escolhidos por sorteio no
total de quarenta homens, dez de cada phylé integrantes das quatro descendências
jônias. Os integrantes do Areopagos detinham riqueza, prestígio, idade e nome de
família, atributos que compunham o método de escolha introduzido por Sólon,
porém sua rudimentar existência em época anterior não pode ser descartada. A
riqueza e o prestígio, oriundos da aristocracia permaneceram como indicativo para
os integrantes do Areopagos, a reforma pode ser sido no campo do direito de
julgamento de crimes premeditados como o homicídios. A lei anterior atribuía essa
ação a corte jurídica formada por cinquenta e um ephetai, membros idosos das
grandes famílias que arbitravam sobre os crimes que qualquer natureza. Tal
prerrogativa foi transferida para o Tribunal do Areopago que também ficou
responsável por manter intacta a nova constituição instituída no período de Sólon.
(CANDIDO, 2012, p. 31)
cultura principal. Para as medidas dos líquidos eram utilizados azeite e vinho. O medimnos eram equivalentes a
aproximadamente 0,7 alqueires. P.J. Rhodes (1993, p. 141) cita fontes indicativas de que, na época de Sólon,o
solo ático poderia render 5,5 medimnoi de grãos por hectare, 10 galões de azeite e 100-150 galões de vinho. “A
questão da combinação de medidas é relevante para o problema da agricultura de diversas culturas de grãos,
azeite e uvas da mesma propriedade” Rhodes (1993, p. 141-142) revê as opiniões, mas parece favorecer a ideia
de um padrão de cevada em que todos produzem medidas líquidas e sólidas. Por exemplo, se um medimnos de
cevada é equivalente a 0,24 metretes (unidade de medida líquida) de óleo, então, 300 medimnoi de cevada e 100
metretai de óleo seriam equivalentes a uma medida total de 700.
105
sociedade, além de estar inserido na legislação de Sólon, era necessária a contribuição ativa
na polis, através do trabalho ou da riqueza.
A pesquisadora Lin Foxhall, complementa essa afirmação argumentando que o
termo pentacosiomedimnoi sugere que os grãos foram concebidos como a medida ou o
padrão utilizado pra regulamentar as relações. A autora sugere também que as quantias
relativas às três classes inferiores podem ter sido resultado de inferências do Período
Clássico extrapolados a partir do nome pentacosiomedimnoi. Entrementes, o certo é que o
número 500 foi incorporado à nomenclatura dos pentacosiomedimnoi, genuinamente,
durante o Período Arcaico. Além disso, Foxhall argumenta que as medidas certamente se
referem à medida do peso seco, para o qual o termo medimnoi foi constantemente aplicado
na Antiguidade. Na Grécia Antiga, o vinho e azeite não eram medidos em medimnoi, mas
em medidas de líquidos, denominadas choai e/ou amphorai (FOXHALL, 1997, p. 70).
Entendemos que a metáfora implícita na adoção dos medimnos como principal crivo
de cidadania faz alusão à importância dos grãos para a economia ateniense. De forma
antagônica, o elemento mais escasso em Atenas se tornava o protagonista na legislação de
Sólon. Os grãos, ou a produção deles, foram introduzidos como método de qualificação
estatutária, conferindo o título de cidadão de acordo com o volume de produção.
107
95
Para uma leitura mais detalhada acerca dos mecanismos de reciprocidade, redistribuição e domesticidade,
verificar o capítulo 1 deste trabalho.
108
96
Ao reconstituir as raízes intelectuais do seu próprio projeto, Polanyi explicitamente comentou a ligação entre
status e embeddedness, cuja descoberta empírica em termos de história foi feita por Sir Henry Sumner Maine nas
categorias da lei romana de status e contrato. Esta relação problemática teve sua origem nas décadas de 1930 e
1940, com autores como Malinowski, Firth e Herskovits. Os estudos de Thurnwald, Malinowski e outros
antropólogos sobre a natureza da sociedade primitiva levaram Polanyi a concluir que a economia do homem, em
geral, está submergida em suas relações sociais.
110
pesquisadores Isager and Skydsgaard (1992, p.39)nos informam, por exemplo, que elas são
capazes de regenerarem-se mesmo depois de terem sido cortadas até suas raízes”. As oliveiras
têm extensos sistemas de raízes que coletam a umidade adequada do solo, mesmo durante a
seca do verão. Além disso, as azeitonas podem ser cultivadas numa ampla variedade de solos.
Ademais, oliveiras não desgastam solos tão rapidamente quanto as culturas de cereais.
De acordo com Zenker, a geografia da Grécia contém numerosos recursos naturais
abaixo da superfície do solo. Quando o calcário sedimentar que compõe a região do Egeu é
exposto ao calor extremo e à pressão, transforma-se em mármore. Essa composição mineral
também é responsável pelo sucesso do plantio das oliveiras na Grécia, tendo em vista que, ao
contrário da grande maioria das culturas relacionadas ao plantio na Ática – expostas à
infertilidade da terra –, o solo ático fornece a plataforma de cultivo ideal para as oliveiras,
uma vez que estas produzem de maneira mais eficiente quando cultivadas em substratos
calcários, tais como a pedra calcária, o que as torna perfeitamente adequadas para as encostas
das montanhas da Grécia (ZENKER, 2009, p.35).
Sólon favoreceu, de modo análogo, o desenvolvimento do artesanato ao notar que a
terra, apesar de infértil, era abundante em ferro, propiciando matéria-prima de qualidade para
a produção de cerâmicas. De acordo com John Boardman, a argila (Keramos) utilizada para
produzir cerâmica (kerameikos) era encontrada em toda a Grécia, embora a melhor fosse a
argila da Ática. Em relação ao solo, os recursos minerais presentes na argila afetaram as cores
disponíveis para ceramistas/pintores, principalmente por meio do nível de teor de ferro, que
propicia uma cor vermelho-alaranjada, com ligeiro brilho, aos vasos (MAISH et al. 2006,
p.9). O laranja-vermelho profundo de vasos áticos deve-se ao elevado teor de óxido de ferro
da argila, geralmente, sob a forma da hematite mineral (NEWMAN, 2008 p.105). Em
contraste, em Coríntio a argila teria um maior teor de cálcio, produzindo vasos de um teor
amarelado pálido (CLARK et al. 2002, p.77). A análise química identificou que o esmalte
preto brilhante nos vasos e copos áticos vem de um diferente tipo de barro utilizado para o
corpo dos vasos, apresentando qualidades singulares (uma argila com um alto teor de ferro,
baixo nível de óxido de cálcio, sem mica e baixo teor de matéria orgânica), a fim de atingir o
alto brilho (ALOUPI-SIOTIS, 2008, p.113-128).
A transição do panorama agrícola mencionado acima teve um foco central. As
evidências favorecem a leitura de que, durante o VII e VI séculos a.C., o padrão emergente de
vantagem comparativa favoreceu a produção de azeite e vinho de alta qualidade da Ática para
os mercados interno e externo, ao contrário de cereais para subsistência e mercados (LEWIS,
111
1. Cevada: A cevada era necessária para alimentar o gado e por esse motivo, embora a
Ática fosse abundante neste gênero, ela estava inscrita em meio aos artigos restritos à
exportação
112
2. Azeitonas: Azeitonas e seus produtos derivados não serviam como uma necessidade
imediata e assim representavam o melhor exemplo para Atenas de um produto excedente
e oportunidade para o comércio.
3. Trigo: Os grãos de modo geral eram essenciais à sobrevivência da polis ateniense e eram
escassos devido à infertilidade do solo de Atenas;
4. Uvas98: o vinho produzido a partir da uva também era considerado um artigo
imprescindível no cotidiano ateniense (tendo em vista a insalubridade da água) e por isso
a proibição da exportação também teria incidido sobre ele.
Tal argumento é sintetizado pelos pesquisadores Signe Isager and Jens Erik
Skydsgaard, na obra Ancient Greek Agriculture: An Introduction através da interpretação de
que o cultivo da oliveira oferece ao historiador a oportunidade de “explorar as intricadas
relações entre os valores sociais e culturais, as práticas agrícolas, o desenvolvimento e a
98
Ainda não existe consenso historiográfico sobre a exportação das uvas e do vinho. Para Molina (ibid. p.16)
esses artigos não estariam inclusos no processo de exportação promovido por Sólon. Contudo, outros
pesquisadores, como Pierre Vidal-Naquet (2007, p.88), alegam que Sólon interditou a exportação de qualquer
produto agrícola ateniense com exceção do vinho e do azeite, buscando assegurar o controle das rotas pelo Mar
Negro.
113
Modelo de Análise da Historiografia Tradicional Modelo de Análise proposto por Lin Foxhall
Causa: Causa:
Aumento ou Transformações
redução no econômicas na
plantio de sociedade
oliveiras
Efeito:
Efeito:
Transformações Aumento ou
econômicas na redução no
sociedade plantio de
oliveiras
Fonte: Adaptado de FOXHALL, Lin. Olive Cultivation in Ancient Greece: Seeking the Ancient Economy. New
York: Oxford University Press. 2007. p. 294.
Harris (2014, p.11), amparado pelo suporte teórico de Heródoto (I, 29), afirma que Sólon,
“uma vez que finalizou o estabelecimento de suas leis, fez com que os atenienses jurassem
obedecê-las e então deixou Atenas por dez anos”.
O azeite constituiu um elemento sociocultural na sociedade ateniense, cujo processo
de fabricação era familiar aos setores agrícolas da Grécia. Assim, interpretamos a
regulamentação de Sólon acerca do plantio das oliveiras, bem como a legislação concernente
à exportação do azeite, como uma ação econômica contextualizada com intuito de solucionar,
ainda que parcialmente, a crise agrária de Atenas.
No início do século VI a.C. – período que precede a ascensão de Sólon ao cargo de
archonte –,a honrosa fonte de riqueza em Atenas era a propriedade da terra. Na verdade, as
reformas de Sólon estavam diretamente ligadas à questão da terra (o baixo coeficiente de
produção agrícola), à medida que a propriedade de terra culminava em status e posição. Até
este contexto social de produção, a maioria das atividades econômicas respondiam a
incentivos de natureza domiciliar e a produção agrícola, raramente resultou em mais do que
um pequeno excedente. A padronização dos artigos reservados para a exportação é uma
resposta para essa conjuntura econômica que não mais atendia às necessidades da polis
ateniense.
É consenso entre a historiografia que a Hélade não detinha, durante o início do
Período Arcaico, participação significativa no circuito comercial e mercantil do Mediterrâneo,
principalmente por não ter integrado o processo de migração e colonização externa
experimentado pelas demais poleis, visando o estabelecimento de assentamentos agrários nas
colônias durante os séculos VIII e VII a.C. e detendo somente a posse de emporions como
Náucratis e Al-Mina. A reforma estabelecida por Sólon visava mudar o padrão de atividade
comercial ateniense inserindo-a nas práticas mercantis, garantido assim o abastecimento de
grãos e a exportação dos artigos excedentes à polis.
De acordo com o pesquisador Pedro Paulo Funari, a crise agrária que precedeu Sólon
nos permite concluir que a polis ateniense não contava com um excedente de cereais para
estabelecer um comércio de exportação permanente.
Atenas estava na Ática, a sudeste da península grega central; com solo pouco fértil, a
produção de trigo e cevada nem sempre bastava para alimentar sua população. As
colinas favoreciam o plantio de oliveiras e uvas, do que resultou uma indústria de
azeite e vinho, desde o século VIII a.C. Ao sul da península, os atenienses
desenvolveram a mineração de prata e o excelente porto do Pireu favoreceu o
destaque de Atenas no comercio marítimo. (FUNARI, 2002, p.24)
comerciais de exportação e importação. Diante dos dados, podemos afirmar que Atenas deu
início a uma acentuada atividade de produção comercial de artigos como azeite e vinho para
exportação, cujo interesse era atender, em troca, por meio da importação de grãos, parte das
necessidades internas da polis ateniense em um contexto de crise agrária.
Para garantir o estabelecimento das atividades comerciais e mercantis com ênfase na
exportação e importação, entretanto, era necessário reestruturar a prática da produção da
cerâmica ateniense que, no contexto social de produção que precede o archondato de Sólon,
não competia com as demais polis, a exemplo de Corinto. Gustave Glotz defende que este
ensejo econômico “promoveu o interesse de artesãos, pintores e oleiros de poucos recursos e
de outras regiões em se estabelecer como artesãos em Atenas ao lado do cidadão ceramista”
(GLOTZ, 1946, p.132). Complementando tal proposição, Peter Garnsey (1998, p.112) afirma
que, neste ponto de sua história, Atenas não parece ter sido significativamente envolvida no
comércio. Fragmentos de mercadorias de vasos de “figuras negras” não aparecem em
quantidades significativas fora da Grécia continental até o início do século VI a.C, por ocasião
do advento da reorganização das práticas econômicas de Atenas promovidas por Sólon.
A pesquisadora Elizabeth Lyding Will nos informa que, à medida que a prática da
troca de bens se instaura entre as sociedades antigas, “surgiu a necessidade de embalá-los”. A
despeito do período histórico analisado, o comércio de trocas era baseado em mercadorias
consideradas perecíveis que, consequentemente necessitavam de recipientes de
acondicionamento para seu transporte ao local de destino. Desta forma, as
ânforas99constituem um pressuposto econômico por excelência, à medida que nos permitem
99
Os artefatos aqui analisados são vasos de transporte de cerâmica conhecidos como ânforas. Originalmente
inventado pela cultura cananeia no século XVI a.C., estes recipientes cerâmicos foram amplamente utilizados em
toda a região do Mediterrâneo como recipientes descartáveis pouco dispendiosos para transporte transoceânico
de mercadorias a granel (KOEHLER, 1986). A partir do século VII a.C., os gregos adotaram esta tecnologia.
Muitas cidades e ilhas gregas desenvolveram seus próprios estilos distintos de ânforas e restos deste comércio
antigo podem hoje ser encontrados no fundo do mar Mediterrâneo sob a forma de ânforas em locais de
naufrágios. Para a historiadora Elizabeth Lyding Will, “elas [as ânforas] fornecem ao historiador econômico
informações significativas sobre rotas comerciais, centros de exportação e importação, métodos de produção,
rivalidades econômicas, e até mesmo práticas monopolistas”. A importância da pesquisa e do mapeamento dos
vasilhames da Antiguidade se dá ao passo que os mesmos permitem vislumbrar a história e a trajetória dos
fenômenos de natureza comercial e mercantil na Antiguidade. (WILL, 1977, p.4). No início do século VI,
118
grandes ânforas são bastante utilizadas e desenvolvem-se em diferentes tipos ao longo dos períodos entre os
diversos artistas; o pescoço, ora mais longo, ora mais curto, a pança mais volumosa, tipos diferentes de alças,
novas medidas de diâmetro da boca, entre outros detalhes: as ânforas passam por mudanças de acordo com o
estilo, necessidade e preferência dos fabricantes e clientela (KESSER, 2009, p.19)
100
O artigo científico, publicado no ano de 2007, intitulado Ancient DNA fragments inside Classical Greek
amphoras reveal cargo of 2400-year-old shipwreck revelou que a discussão em torno do conteúdo das ânforas
está longe de ser sanada. Os cientistas Maria C. Hansson e Brendan P. Foley foram capazes de isolar e identificar
o DNA presente nas ânforas resultantes de um naufrágio na região do Mar Mediterrâneo e chegaram à conclusão
de que os vasos, conhecidos pelo transporte de vinho e azeite, continham carregamentos variados, como
amostras de orégano, legumes, gengibre, sementes de diversas oleaginosas e óleo produzido a partir das
oleaginosas (FOLEY, HANSSON, KOURKOUMELIS, THEODOULOU, 2007, p. 392-5).
101
Uma fração dessas viagens culminou em naufrágios (MUCKELROY, 1978), deixando as ânforas no fundo do
mar. Naufrágios podem conter informações qualitativas e quantitativas de valor inestimável sobre a antiga
transferência de tecnologia, a comunicação de longa distância, a produção econômicae agrícola, a
interdependência regional, e o desenvolvimento cultural.
119
na Grécia, tanto na área Oriental quanto no Mar Mediterrâneo, que foi intensificada de modo
paralelo ao contexto de desestruturação do comércio de cerâmica de Corinto. As cerâmicas
áticas de figuras negras estabeleceram-se ao longo do interior da costa leste da Ásia Menor e
chegaram até a Itália e Sicília, em quantidade, pela primeira vez durante o Período Arcaico.
(STANTON, 2002, p.76-7)
O processo de manufatura dos vasos consistia em várias etapas: a extração da argila,
seu preparo para a confecção dos produtos, a busca de combustível, a manutenção dos fornos,
o trabalho no torno, moldagem, pintura, secagem e a queima dos vasos, além do
armazenamento dos produtos, do transporte e da venda. Havia família de artesãos que
trabalhavam e mantinham as oficinas cerâmicas, mas a mão de obra era garantida também por
estrangeiros residentes em Atenas, os metecos, e por escravos.
Argumentaremos que este crescimento exponencial na indústria secundária de Atenas,
a saber, o artesanato e o comércio, além da exportação de azeite, demandam a existência de
uma organização das práticas comerciais, por meio de estruturas político-econômicas que
materializariam a regulamentação das atividades desempenhadas pela polis. Acreditamos que
a propagação das cerâmicas de figuras negras ao longo do Mar Mediterrâneo e Egeu ocorre
muito precocemente na história de Atenas para serem atribuídas ao archondato de Pisístrato.
Assim, acreditamos que este cenário econômico pode ser mais bem compreendido em
justaposição às reformas empreendidas por Sólon, especificamente como resultado dos
estímulos da economia ateniense durante o Período Arcaico.
A empreitada comercial de Sólon insere-se na conjuntura socioeconômica ateniense, à
medida que o legislador favoreceu o desenvolvimento do artesanato na região do Kerameikos.
A visão de Sólon para a exportação de azeite de oliva e para a manufatura de apoio dos
fabricantes de cerâmica, evidentemente, não era de pequena escala, uma vez que o archonte
mobilizou uma região específica da polis ateniense para desenvolver as práticas advindas da
medida econômica. Assim, o território do Kerameikos, anteriormente utilizado como
cemitério, foi dinamizado e passou a ser utilizado como recanto dos ceramistas, pois oferecia
um complemento para a economia da polis ateniense que, anteriormente, tinha a prática
agrícola como ponto fulcral de sua estrutura econômica. Raphael Sealey aponta que o forte
impacto da exportação de cerâmica durante o Período Arcaico pode ser notado através da
presença dos vasos de figuras negras “na maior parte da costa do Mediterrâneo e Mar Negro”
(SEALEY, 1976, p.110).
Na abordagem da arqueóloga Alexandra Alexandridou, o início da produção de
cerâmica ática sobrevivente do século VI a.C., “sugere que a produção estava nas mãos de um
120
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250
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Ática Égina Ásia Menor Etrúria
Fonte: Adaptada de ALEXANDRIDOU, Alexandra. The Early Black-figured Pottery of Attika in Context (c.
630-570 BCE). Monumenta Graeca et Romana, 17. Leiden; Boston: Brill, 2011,p. 6.
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Fonte: Adaptada de ALEXANDRIDOU, Alexandra. The Early Black-figured Pottery of Attika in Context (c.
630-570 BCE). Monumenta Graeca et Romana, 17. Leiden; Boston: Brill, 2011,p. 6.
102
John Boardman aponta-nos, similarmente, para a existência de vasos Panatenáicos. Tais ânforas também são
encontradas por meio da nomenclatura de ânforas SOS. A sigla correlaciona-se, em inglês, ao formato do padrão
de decoração do pescoço das ânforas (BOARDMAN, 1999, p. 17). Essas ânforas semi-decoradas, intituladas de
vasos panatenáicos ou ânforas SOS, que datam do VIII século a.C. até a primeira metade do século VI a.C.,
foram encontradas em numerosos locais do Mediterrâneo, especialmente Etruria. As ânforas de padrão SOS,
cujo pescoço e punhos evoluíram para melhor estar em conformidade com os requisitos de transporte, é o
primeiro frasco de armazenamento ático a ser exportado em quantidade. Em vários casos, os nomes
(possivelmente de comerciantes) estão inscritos nos recipientes. Alan Johnston e R. Jones (1978, p. 140)
sustentam que "no que diz respeito às exportações da Ática, devemos concluir, a partir da distribuição das
ânforas SOS, que boas quantidades de azeite foram enviados da Áttica durante o século VII a.C.; a julgar pela
evidência de ânforas, este comércio parou no século VI a.C.". Chester Starr (1977, p. 68) é muito mais
conservador do que Johnston e Jones no que diz respeito às exportações, no século VII a.C.: "Embora a
evidência quantitativa esteja faltando, as exportações de vinho e azeite da Grécia provavelmente tornaram-se
significativas apenas no século VI a.C.". Sergey Solovyov (2004), de The State Hermitage Museum, observa
que, "achados raros de início [século VII] ânforas de transporte grego (basicamente de Chios e Ática) estavam
122
concentradas em pontos costeiross [norte do Mar Negro] e indiretamente testemunham o início do comércio do
vinho na região ".
103
Segundo a pesquisadora Marianne Bergeron, a evidência de cerâmica em Náucratis, especialmente aquelas
com inscrições votivas em grego e arquitetura dos santuários gregos, confirma a presença de pessoas de origem
grega nesta localidade. Em geral, as discussões elencadas por Boardman e Tsetskhladze, nas quais os
pesquisadores defendem a fórmula "vasos = pessoas e rotas comerciais", parecem aplicar-se a Náucratis, como a
origem de grande parte da coleção de louças finas gregas (BOARDMAN, 1999, pp. 17, 47, 125, 129,134, 219;
TSETSKHLADZE, 1998, p. 55). As escavações arqueológicas no local, desde a sua descoberta em 1884,
demonstraram que as atividades comerciais foram realizadas em grande escala e, de fato, teriam envolvidos
trocas de artefatos gregos (BERGERON, 2015, p. 267-8).
123
por meio de ensejos econômicos costumam ser negligenciados pela historiografia. O tema é
preterido em muitos relatos sobre Atenas. Para o autor, na melhor das hipóteses, o historiador
encontrará “referências a alguns casos em que um artesão-cidadão tenha chegado ao
conhecimento de Platão”, ou alguma ocasião na qual Demóstenes teria agido em favor de um
proprietário cujo ofício fora prejudicado (ACTON, 2016, p. 202).
A despeito do baixo número de publicações acerca da temática do comércio na Grécia
Antiga, Acton argumenta que este panorama vem aos poucos sendo transformado e que a
questão da manufatura concernente ao comércio nas sociedades antigas não foi negligenciado
por completo. O autor complementa elucidando que:
Um [significativo] número de estudiosos empreendeu grandes contribuições em
áreas específicas, tais como a vida e obra de artesãos, a gama de negócios de
fabricação especializada, a [estrutura] bancária, as leis que regem o comércioe as
economias das cidades gregas. (ACTON, 2016, p. 202)
Na perspectiva de Acton, embora seja possível afirmar que “antes do uso generalizado
de máquinas, não havia muito espaço para dividir o trabalho dentro de um processo”, a
especialização das atividades comerciais e mercantis na Grécia Antiga demonstra que o poder
elucidativo desta proposição é limitado. Xenofonte (Ciropédica, 8.2.5) famosamente descreve
como a confecção do calçado foi dividida entre vários especialistas em áreas urbanizadas,
exemplificando a variedade e a especialização do trabalho nas atividades comerciais. Alain
Bresson (1999, p. 15), demonstra que os ofícios das sociedades antigas empregavam grande
número de trabalhadores nos estabelecimentos individuais, nos quais se produzia diversos
itens “como escudos, facas e camas”.
Mais uma vez recorreremos à iconografia para complementar a leitura histórica
adquirida pela historiografia e assim corroborar o aperfeiçoamento das práticas comerciais
durante o Período Arcaico através das manifestações encontradas nas ânforas gregas. Segundo
o Museum of Fine Arts em Boston, o conteúdo imagético que adorna a ânfora abaixo
simboliza, em ambos os lados, atividades comerciais distintas.
124
Tendo por base o referencial imagético acima, reforça-se a premissa adotada pelo
historiador Peter Acton, à medida que a própria retratação do oficio na ânfora reflete um
processo de especialização das atividades comerciais pertinentes à sociedade grega. No intuito
de melhor compreender o processo de especialização, nos propomos a problematizar a figura
do ceramista durante o Período Arcaico. Identificar tais agentes na sociedade ateniense é
importante, haja vista sua influência - ainda que indireta - no processo de reestruturação da
economia de Atenas.
125
Plutarco afirmava que Sólon teria concedido a cidadania a qualquer estrangeiro que
chegasse a Atenas para a prática de um comércio. A cidadania foi concedida também para
aqueles que tinham sido permanentemente exilados como estrangeiros. Esta lei destinava-se a
encorajar certas categorias específicas de imigrantes como, por exemplo, os ceramistas104, que
teriam sido incentivados por Sólon a migrar para Atenas em troca da promessa de cidadania,
visando aperfeiçoar a prática manufatureira. Com efeito, para Plutarco, os metecos105 foram
admitidos em Atenas na época de Sólon devido ao seu conhecimento especial em certas
atividades manufatureiras importantes, como o depósito de armas, construção naval,
artesanato, entre outros.
104
A documentação literária não demonstra muito interesse pelo tema, porém o status social dos artistas-oleiros
foi comentado em obras de autores como Aristófanes, Aristóteles e Platão. Essas notas podem ser esclarecedoras
quando analisadas em conjunto com as fontes epigráficas: uma série de inscrições em bases de estátuas de
bronze ou mármore encontradas na Acrópole de Atenas, atesta um alto status econômico e cultural de alguns
artistas-artesãos em fins do século VI, meados do V a.C..
105
A palavra meteco que utilizamos na língua portuguesa para definir o estrangeiro residente ateniense vem
diretamente do termo grego metóikos, não possuindo nenhum tipo de tradução literal, situação semelhante em
outros idiomas contemporâneos como, por exemplo: metic no inglês, métèques no francês e metöke no alemão.
Termos como “imigrante” e “forasteiro residente” seriam traduções que se aproximam remotamente do
significado original do termo grego. Analisando gramaticamente, o termo é composto pela união das palavras
meta e oíkos. A primeira delas, meta, é um prefixo grego polissêmico que expressa idéias de continuidade,
sucessão, mistura e intermediação, sendo possível traduzi-la como “após”, “além de” ou “com”, e o termo oíkos
aglomera uma série de significados que irão depender do contexto em que a palavra será utilizada. Inserindo o
prefixo mais o substantivo, podemos traduzir metóikos como a sentença “aquele que muda sua residência”, na
qual oíkos assume simplesmente o sentido de “moradia” e meta significa “transição” ou “transferência”. Em
outras palavras, o meteco representa aquele indivíduo que transfere o seu oíkos de uma polis para outra.
Contudo, devemos atentar que esta é uma tradução aproximada, pois até os dias atuais a tradução correta do
termo metóikos ainda é bastante discutida, possuindo outros significados como “aquele que mora junto”, “que
veio de outro oíkos”, “com residência”, entre outros.
126
Causa perplexidade também a lei relativa à concessão de cidadania, pois ele não
permitia que se tornassem cidadãos senão os que haviam abandonado a pátria de
origem em exílio perpétuo ou os que, com todos os da sua casa, se tivessem mudado
para Atenas a fim de exercer um ofício. Tomou esta medida, segundo se crê̂ , não
tanto para afastar as outras pessoas, mas antes para atrair a Atenas estas, com a
certeza de virem a partilhar a cidadania, e ainda por considerar dignos de confiança
os que, por necessidade, se viram expulsos da sua terra, bem como os que a
deixaram de livre vontade. (Vidas de Sólon, 24.1.4).
106
August Boeckh (1817, p. 537-541), em sua obra The Public Economy of Athens, nos revela um pouco mais
sobre as várias taxas e outras obrigações dos metecosem Atenas. O referencial de Boeckh foi cotejado
simultaneamente com os trabalhos de Yvon Garlan (1982, p. 108-111), Michel Austin, Pierre Vidal-Naquet
(1972, p. 99-100) e Moses Finley (1981, p. 81-90).
127
Ao cotejarmos os argumentos elencados por Robin Osborne com a reflexão proposta pela
arqueóloga Alexandra Alexandridou, delineamos um processo de transição consoante com as
reformas de Sólon. Alexandridou nos informa que, na passagem do século VII para o VI a.C.,
diversas mudanças podem ser assinaladas no que tange à cerâmica ática. Transformações no
padrão iconográfico, bem como na forma dos vasos, apontam para uma grande influência das
cerâmicas de Corinto na produção ateniense Esse processo, que a autora chama
“corintianização108”, confirmaria a hipótese da migração em larga escala de ceramistas
107
Em atividade entre 580 e 570 a.C., o Pintor Sofilos foi o primeiro artesão ático a assinar seus vasos. De seus
vasos conhecidos, quatro trazem sua assinatura, três como pintor e um como oleiro. (BOARDMAN, 1997a, p.
24-25)
108
Segundo a autora, a principal característica do processo de corintianização, é mais claramente expressa
através da adaptação dos frisos animais de Corinto para decoração dos vasos de “figuras negras”. Embora essa
técnica já estivesse presente desde o último trimestre do século VII a.C., eles só tornaram-se dominantes no
início do século VI a.C., deixando pouco espaço para cenas mitológicas ou genéricas. A corintianização também
se expressa através da adoção de uma série de formas de Corinto, que substituiu as formas áticas. As formas são
introduzidas, quer como cópiasdiretas ou com variações, como os lekythos. É interessante notar que, uma série
128
originários de outras poleis, como Corinto para impulsionar o ofício da cerâmica ática
(ALEXANDRIDOU, 2015, p.16-7).
Luis Molina (1998, p. 9) afirma que Corinto seria “um dos principais centros mercantis
durante o século VII a.C.”, porque desenvolvera um novo estilo de cerâmica chamado de
vasos de "figuras negras" e produzira o que, para William Biers (1996, p. 138-139), “foi
considerada a melhor cerâmica na Grécia”. O autor argumenta que “é atribuída a Corinto a
produção das primeiras ânforas de transporte da Grécia” (BIERS, 1996, p. 120-143). Sendo
assim, acreditamos que Sólon incentivou o fluxo migratório interpoleis almejando atrair os
ceramistas de Corinto, responsáveis pela técnica inovadora dos vasos de “figuras negras”.
A distribuição destas formas inspiradas nas cerâmicas de Corinto, permaneceu limitadas
dentro da Ática, mas estas são amplamente exportadas em torno do Mediterrâneo, “denotando
que o uso de protótipos de Corinto foi bastante associado com os esforços das oficinas para
promover seus produtos no exterior”. (ALEXANDRIDOU, 2015, p.16-7). Para o autor José
Geraldo Costa Grillo, neste contexto:
A cerâmica ática estava madura e começou a influenciar outras regiões e ganhar
espaço no mercado de vasos. Se, durante todo o século VII e a primeira metade do
VI a.C., a cerâmica coríntia dominou o mercado, na segunda metade do século VI
a.C., a cerâmica ática, por sua superioridade, tornou-se hegemônica dentro e fora da
Grécia. (GRILLO, 2009, p. 25)
de formas, como os dinoi ou os skyphos, que foram produzidas continuamente pelas oficinas áticas desde o
período geométrico, são abandonadas e substituídas por versões de Corinto durante o século VI a.C.
(ALEXANDRIDOU, 2015, p.16-7).
129
Deste modo, acreditamos que, devido ao intervalo de tempo discorrido entre o início da
prática compulsória da escravidão por dividas e a lei da seisachtheia outorgada por Sólon, os
indivíduos exilados precisariam de um incentivo para migrar novamente para Atenas, devido
à grandiosidade de tal empreitada. Tratava-se de um processo trabalhoso, não somente pela
perspectiva do deslocamento, mas também pela reinserção de tais indivíduos na sociedade
com a qual o sentimento de identificação fora ameaçado pela questão do idioma, a falta de um
ofício e receio de recair novamente em servidão que, como argumentamos no Capítulo 2 deste
trabalho, continuou existindo mediante o estabelecimento da seisachtheia. Interpretamos,
portanto, que, para além do incentivo aos ceramistas, oleiros e artesãos, Sólon refere-se à
repatriação dos hectemoroi.
A reintegração dos hectemoroi na polis após a outorga da seisachtheia é uma questão
complexa, abordada, sem consenso, pela historiografia. Não pretendemos oferecer uma
solução a este embate, somente leituras alternativas que venham porventura a amenizar a
lacuna deixada por Plutarco, que não menciona o papel social exercido por este segmento
após o estabelecimento da legislação soloniana. Assim como Edward Harris estabelece uma
distinção entre as práticas de trabalho existentes na polis, a saber, a escravidão e a servidão
por dívidas, Luis Molina alega que os segmentos sociais contemplados pela legislação de
Sólon não se resumem aos hectemoroi109.
A possível solução das indagações formuladas nos aproximou da abordagem realizada
a partir do debate entre duas tradições historiográficas. A historiografia francesa materializada
nas proposições de Claude Mossé em diálogo com a nova historiografia anglo-americana,
representada por Luis Molina,
Na perspectiva de Claude Mossé (1979, p. 429), a recursa de Sólon para em realizar a
isomoiria (divisão das terras áticas entre os indivíduos sem terras) promoveu o acréscimo do
número de thetai, homens livres que não pertenciam à aristocracia e não eram proprietários
de terra, constituindo uma considerável mão de obra livre a ser direcionada para outras
atividades de trabalho, como olaria e artesanato. A quarta categoria socioeconômica, os
109
Em análise acerca deste tópico, a Cambridge Ancient History (2006, p. 380), argumentou que esta divisão de
terras foi derivada do assentamento do território durante os séculos IX e VII a.C., quando a "aristocracia" pode
ter assumido o controle de grandes extensões de terra e designado lotes a famílias menos "empreendedoras" em
regime de cultivo de partes.
130
A primeira afirmação é desconstruída pelo autor, à medida que havia o risco dos
hectemoroi retornarem ao estado de dependência anterior. Acrescenta-se a incapacidade de
arcar com o pagamento fixo acarretado pelo arrendamento da terra, já comprovado pelo
contexto anterior de tensão. Além disso, havia o problema da improdutividade agrícola do
território ateniense, o estopim da crise de Atenas. A hipótese do enriquecimento fora do
território ático também é considerada improvável pelo autor, pois conforme indica a
historiografia, os processos migratórios do período estavam convergindo em torno de Atenas,
e não para fora da região.
Para o pesquisador, restava a este grupo a busca de meios de subsistência alternativos
nos limites do território ático, e a solução encontrada por Sólon para realocar os hectemoroi
estava intimamente ligada à infertilidade do solo ateniense. Devido ao desgaste da terra, os
hectemoroi eram encorajados a buscar outros ofícios como a manufatura de cerâmica e,
portanto, a deixar o cultivo da terra e a possibilidade de retornar à relação de dependência
com o senhor novamente. A criação de uma classe inteira de indivíduos “sem propriedades”,
os thetai, reflete a iniciativa de Sólon de inserir os hectemoroi no contexto social de atuação
da polis ateniense. Segundo Plutarco (Sol, 22.1), "Sólon observou a cidade encher-se",e a
criação do segmento dos thetai, aliada à criação de uma lei contra a ociosidade, pode ter
fornecido uma alternativa para o grande fluxo migratório que se abateu sobre Atenas.
Concluímos, todavia, que a solução encontrada por Sólon nos remete ao problema da
singularidade demográfica de Atenas. Conforme discussão fomentada no Capítulo 2 deste
trabalho, interpretamos que a polis ateniense não sofreu do aumento demográfico que atingiu
o território ático. A teoria proposta por Anthony Snodgrass e corroborada por Josiah Ober e
Lin Foxhall aponta, em contrapartida para um movimento de democratização das práticas
131
Para a pesquisadora Carolina Kesser Dias, a escolha dos locais de produção se deveu a
um conjunto de fatores, entre eles as facilidades geográficas e naturais para adquirir matéria-
prima e para a distribuição e consumo do produto final. Temos de considerar que os vasos
gregos possuíam uma finalidade prática, de uso no cotidiano doméstico e ritual, e que toda a
sua produção foi ditada por essa finalidade. Portanto, Segundo Dias, “para uma grande
110
Verificar no Anexo 17 - Mapa do Kerameikos (p. 215) o mapa original com o esquema explicativo das regiões
inseridas no Kerameikos.
132
produção, como se tornaria a produção de vasos áticos, havia a necessidade de mão de obra
especializada” (DIAS, 2009, p. 22)
Partindo desse viés de análise, o bairro do Kerameikos se eleva como um centro para as
várias atividades econômicas promovidas a partir do archondato de Sólon. Segundo Maria
Regina Candido (2008, p. 264), a região atuava como “entrada e saída da polis, ponto fixo das
oficinas dos artesãos, zona de prostituição e áreas de mercado de vinho”, conforme ilustrado
pelo mapa abaixo:
Fonte: Região do Kerameikos em Atenas – GOETTE, Hans. Athens, Attica and the Megarid: an
archeological guide. London: Routledge, 2002, p.77.
O Kerameikos era o mais célebre bairro popular de Atenas, situado ao norte da polis,
onde trabalhavam os oleiros. Outrora necrópole homérica e arcaica, tornou-se um bairro
muito movimentado, frequentado pelos amantes das belíssimas cortesãs, que ofereciam aos
viajantes e estrangeiros não só produtos cerâmicos, mas também sexo e prazeres. Em suas
muralhas eram comuns declarações de amor (SALLES, 1987, p. 17). Deste modo, a maioria
das casas de prostituição, previstas na legislação ateniense, localizavam-se no Kerameikos,
reorganizado por meio do processo de urbanização resultante da legislação de Sólon como
133
reduto dos estrangeiros.Esta divisão teria como objetivo preservar a área principal da cidade
dos contratempos gerados pela prostituição, restringir a embriaguez a um local específico,
prevenir a indistinção entre as mulheres livres e as hetairas e circunscrever o local do ofício
dos estrangeiros.
A restrição da prática a um bairro específico funcionava como um mecanismo de
controle para que a polis pudesse administrar a arrecadação de impostos advindos das
múltiplas atividades sociais, permitindo aos viajantes e comerciantes estrangeiros desfrutarem
das casas de prostituição. Com o lucro proporcionado pela promoção e regulamentação da
prática da prostituição, Sólon construiu um templo para “Afrodite Pandemos”, a deusa do
amor – de um amor generoso, inclusivo, de “todo o povo” (SALLES, 1987, p. 21). A
principal tributação que se incidia sobre à prática da prostituição no bairro do Kerameikos era
o pornikon, umtributo referente à prática da prostituição atribuído pela boulé. (MOSSÉ, 1983,
p. 20). Dois séculos mais tarde, na Constituição de Atenas, Aristóteles chegou a apresentar o
custo regulamentado desses serviços: duas dracmas (Constituição de Atenas, 50.2.).
Além da regulamentação de um código legislativo, alguns autores atribuem a Sólon a
responsabilidade por dividir também as mulheres em uma classificação hierárquica: as
esposas legítimas para cuidar do lar; as concubinas para serviços diários e as prostitutas para o
prazer. (RIBEIRO e SÁ, 2004, p. 12; SALLES, 1987, p. 21). Filemon, na obra Os Adelfos
(Ateneu, XIII, 565), cita:
Tu, Sólon, encontraste uma lei para todos os homens. Ao que se diz, foste o primeiro
a tomar essa medida salutar e democrática, por Zeus! Vendo em nossa cidade muitos
jovens que sofriam os impulsos da natureza e se perdiam pelos maus caminhos, ele
comprou mulheres e as instalou em diferentes bairros, prontas e dispostas a atender a
todo mundo.
111
Vocábulo grego sophron (a forma substantiva da palavra sophrosúne), que indica uma ampla gama de
sentidos, como “prudente”, “sensato” e “moderado”.
112
Delfim Ferreira Leão (2005, p. 2) nos recorda a problemática em torno do termo família. Esta terminologia,
característica da Grécia Antiga, não deve ser transposta para o significado atual do vocábulo. Na Grécia, a
família estava inserida na perspectiva do oikos. Leão propõe que a solução é “considerar que pertencem ao
mesmo oikos todas as pessoas que vivem em uma determinada ‘casa’, sob a superintendência do mesmo kyrios”.
134
113
O pesquisador John K. Papadopoulos (1996, p. 107-108) alerta-nos que, “durante toda a Antiguidade, o nome
Kerameikos significava, essencialmente, ‘Quarteirão dos Ceramistas’, um distrito muito extenso no Noroeste”. O
uso oficial específico é atestado pelos heróis e pelas pessoas que empregavam o nome de várias maneiras, com
referências particulares. Mas Kerameikos não significa, literalmente, o cemitério, ou a ágora. Esses usos são
coloquiais ou metafóricos, variando em frequência relativa em diferentes épocas.
135
para o recrutamento de rapazes e moças, o código soloniano chegava a prever pena de morte
para os proxenetas que atuassem de maneira clandestina, pois impediam a arrecadação da
tributação devida.
A urbanização foi uma das primeiras medidas de Sólon para regulamentar a
prostituição. Catherine Salles (1983, p. 16-17) afirma que as profissões eram agrupadas por
bairros e a divisão da cidade representava suas diferentes funções. O território destinado pela
polis para a prática oficializada da prostituição era o Kerameikos, no qual as casas de
prostituição foram instituídas por Sólon. A região, de natureza diversificada, abrigava
concomitantemente práticas sagradas e profanas. Conforme argumenta Maria Regina
Candido,
O Kerameikos torna-se uma construção concreta, produzida pela vivência dos
atenienses, com acentuada interação entre diferentes grupos semióticos, a saber: os
críticos, os usuários da magia, os cidadãos, os estrangeiros, os homens e as
mulheres, os metecos e os escravos. Todos transitam pelo espaço geográfico do
cemitério: via de acesso de entrada e de saída da polis dos atenienses. (CANDIDO,
2008, p. 262)
período de tempo, naturalmente, a menos que possuísse uma economia de alguma espécie”
(POLANYI, 1968a, p. 62).
Para o autor Genaro Garcia Chic, a contrariedade dos autores modernos em
identificarem um princípio econômico em meio às sociedades consideradas “primitivas”
relaciona-se à uma leitura quantitativa dos sistemas econômicos, na qual a materialização da
economia relaciona-se à moeda e sua atuação como um agente regulador do Estado, uma
abstração das práticas econômicas que torna-se um elemento inatingível e, portanto, promove
um deslocamento dos sistemas qualitativos, em predileção dos sistemas quantitativos (CHIC,
2009, p. 232-3).
Por conseguinte, consideramos que a materialização da economia ateniense,
estruturada no archondato de Sólon, transcende a problemática da existência de moedas no
sentido moderno – permeado pelas perspectivas advindas do capitalismo – uma vez que a
concretização das práticas econômicas – até então de natureza abstrata – pode ser verificada
por intermédio da padronização dos pesos e medidas atenienses, medida considerada o
despontar de uma racionalidade econômica.
Ao estabelecer um diálogo entre as leituras de Karl Polanyi e de Genaro Garcia Chic,
identificamos uma interface de elementos comuns no que tange à materialização da economia.
Para ambos os autores, a natureza desempenha um papel fundamental nas práticas econômicas
das sociedades antigas. Polanyi argumenta que "a produção é a interação do homem e da
natureza”, elencando o ideal da econômica como a relação resultante da interação entre o
homem e seu ambiente natural (POLANYI, 1986 p.162). Garcia Chic desenvolve seu
argumento acerca da economia no Mundo Antigo utilizando-se de formulação análoga do
campo de interação homem-natureza. Partidários da Antropologia Econômica, Polanyi e
Garcia Chic consideram que a economia é um dos fenômenos que aproxima o homem do
ambiente natural e social que o rodeia; os autores refletem sobre a economia nas sociedade
antigas demonstrando que o econômico não é um fenômeno independente do político.
Assim, por meio de um ideário que delimita a economia como resultado das interações
do homem com a natureza, é possível compreender o processo organizacional da polis
ateniense no qual os metais, em especial a prata e o ouro, surgiram como um dos primeiros
elementos de materialização das atividades econômicas. Por esse viés interpretativo, a
nivelação dos pesos e medidas de Atenas empreendida por Sólon é parte de um processo
natural de normatização da economia, como um critério alternativo utilizado para
regulamentar as práticas comerciais, independentemente da circulação de moedas.
137
Segundo John Kroll, o uso de lingotes de metal nas sociedades antigas precedeu a
introdução da cunhagem. Tal princípio foi reconhecido por Aristóteles na Política, obra na
qual o filósofo elucida o processo de transição que estabeleceu os metais como meio de trocas
comerciais e monetárias. Segundo Aristóteles, com o aumento progressivo do abastecimento
de bens originários do estrangeiro, “devido à importação de bens deficitários e à exportação
dos excedentes” a introdução da “moeda114” surge devido à necessidade de regulamentar as
práticas comerciais.
Uma vez que as coisas necessárias às carências naturais não são facilmente
transportáveis, os homens instituíram um contrato para cada parte dar e receber algo,
tal que, mantendo uma utilidade ínsita, tivesse ainda a vantagem de se manusear
facilmente tendo em vista as carências vitais. Escolheu-se o ferro, a prata, ou outro
metal parecido, determinando-se, primeiramente o seu valor apenas pelo tamanho e
peso; e finalmente, fez-se a cunhagem de modo a evitar o trabalho da medição
cunhando-se uma marca como sinal da quantidade de metal. (Política, I.9.1257b)
114
Como moeda, compreendemos qualquer instrumento utilizado para regulamentar as relações comerciais. Não
nos referimos, portanto, à percepção do capitalismo moderno sobre as moedas.
115
A maioria dos estudiosos aceita que os axones e muitas das leis que foram conhecidas pelos atenienses em
contextos sociais de produção posteriores como leis de Sólon realmente podem ser atribuídos ao legislador. P.J.
Rhodes resumiu a visão acadêmica dominante quando escreveu que Sólon produziu "um código completo (lei)
que foi suplantado apenas de maneira fragmentada" e que os axones e kyrbeis eram palavras alternativas que
descrevem o mesmo objeto. Ambas as declarações foram extensivamente, mas não de forma convincente,
contestadas por muitos historiadores. No entanto, o último estudo importante (por Stroud) foi publicado há trinta
anos, período em que houve grandes avanços na interpretação do ambiente físico e cultural da Atenas Arcaica.
138
primeiro lugar, antes de terras e gado. Interagindo com esta premissa, John Kroll argumenta
que no período que precede o advento da cunhagem em Atenas, o termo 'pesar' parece,
literalmente, ter sido usado para todos os tipos de operações em moeda116: receber o
pagamento, fazer o pagamento e transferência de crédito (KROLL, 2008, p. 17).
Para o pesquisador Van Alfen, o mundo Egeu antes do Período Arcaico tardio (700-
480 a.C.) não parece ter sido totalmente engajado com o conceito de dinheiro. Não há, por
exemplo, nenhuma expressão clara da concepção monetária nos tabletes de Linear B do final
da Idade do Bronze ou nos épicos homéricos. Alguns estudiosos têm argumentado que o
conceito de dinheiro e moedas foram inventados simultaneamente dentro do mundo grego
(SCHAPPS, 2004). Não haveria, portanto, dinheiro antes da cunhagem de moedas na Grécia.
Os sistemas de troca gregos basear-se-iam na troca semimonetarizada ao invés da troca de
presentes. Para Van Alfen, entretanto, tais argumentos, subestimariam as evidências do
Oriente Próximo, especialmente da Mesopotâmia, na qual os registros cuneiformes, alguns
datando da Idade do Bronze, reportam operações, tanto privadas como oficiais, que foram
avaliados por meio de medidas de prata e utilizaram a prata como forma de pagamento117
(JURSA, 2010). O conceito de dinheiro, ao que parece, foi inventado muito antes das
primeiras moedas aparecerem, em uma região que supostamente teve maior contato com o
mundo grego.
Peter Van Alfen complementa sua argumentação alegando que o tipo de prata utilizada
para as relações comerciais de troca, no entanto, não consistia de um sistema padronizado. As
poleis e outras organizações, bem como indivíduos, estavam livres para produzir objetos de
prata, sejam lingotes ou joias, de diferentes formas, tamanhos e dimensões. Tais variações no
tamanho e espessura causaram problemas para aqueles que utilizam prata como moeda de
troca, onde os referenciais utilizados eram peso e textura da prata. Para adquirir o valor
correto de prata para uma transação, o devedor e o beneficiário teriam que gastar tempo
116
Segundo Peter G. Van Alfen, as moedas são apenas uma das muitas formas utilizadas para contabilizar os
valores atribuídos aos bens, “o que em si é uma construção social complexa que ajuda as pessoas a fazerem as
avaliações de objetos, realização de transações, e armazenar sua riqueza” (VAN ALFEN, 2014, p. 1). Existem
inúmeras definições de dinheiro, a maioria dos quais incluem os preceitos centrais que determinam o dinheiro
como um meio de troca, uma forma de armazenar riqueza e uma unidade de contabilização. Quando e como o
dinheiro como um conceito abstrato foi inventado é um problema que tem desafiado os historiadores,
economistas e filósofos, incluindo Aristóteles (Ética a Nicômaco, V, v, 10-16, 1133a-b; Política, I, iii, 12-17,
1257a-b).
117
Por volta de 800 a.C., a prática de usar metais preciosos, especialmente prata, como um instrumento
monetário disseminou-se da Mesopotâmia para as cidades fenícias e outras comunidades na costa levantina onde
a prática, em seguida, foi para o Oeste seguindo rotas de comércio fenícias, notadamente no Mar Egeu. Lá, tem-
se argumentado, a prática de usar metais preciosos em trocas passou a ser usada ao lado de formas mais
tradicionais de troca, tais como o hábito da elite de ofertar presentes que é predominante nos épicos homéricos
(KROLL, 2008; KROLL, 2012).
139
testando a espessura e pesando peças de prata, às vezes recorrendo a cortar pedaços menores
fora de grandes peças de joias ou lingotes para atingir o peso desejado. A oferta de moeda foi
então formada principalmente por este tipo de prata de corte anonimamente produzido,
geralmente denominada pela palavra alemã "hacksilber" (VAN ALFEN, 2014, p. 15).
Em muitos lugares ao redor do Mediterrâneo, a prática da utilização de hacksilber era
tão enraizada que, mesmo após a introdução da cunhagem, a hacksilber teve seu uso
continuado. Muitos montantes de moedas e tesouros do Período Arcaico encontrados na Ásia
Menor, Itália e Egito continham uma mistura de moedas e hacksilber (KROLL, 2008, p. 145).
Estes atos de pré-montagem de um instrumento monetário, com o intuito de garantir o seu
valor, remetem diretamente ao conceito da moeda, que, no Período Arcaico, era garantido por
meio de metais preciosos. Estes foram padronizados por Sólon em relação ao seu peso e
espessura, os quais foram garantidos pela regulamentação dos pesos e medidas atenienses
com o intuito de nivelar a “moeda” ou os lingotes de prata de Atenas em relação às demais
poleis e, consequentemente, inserir-se no circuito comercial e mercantil, estimulando as
práticas econômicas. A vantagem do uso de moedas sobre hacksilber era, presume-se, de que
as transações teriam exigido muito menos tempo e esforço do que antes; pode-se agora
simplesmente contabilizar o pagamento em vez de pesá-lo e testá-lo.
Ao relacionar o testemunho envolvendo a prata nas leis de Sólon com os termos
transacionais etimologicamente derivados do vocabulário empregado para pesagem, as
receitas em extensas barras de ouro e prata recolhidas pelos tesoureiros do templo em Éfeso, e
a utilização de prata não cunhada no oeste grego, um quadro bastante coerente emerge, ou
seja, que os gregos tenham começado a empregar dinheiro de prata cunhada em trocas
internas e externas nas mesmas operações que vinham realizando há algum tempo com um
dinheiro de prata pesado.
simples respostas ao embate entre dois grupos sociais antagonistas. Segundo o autor, Sólon
visava a implementar um conjunto de medidas que, a longo prazo, viriam promover a
reestruturação econômica de Atenas.
A documentação de Plutarco dialoga com Aristóteles, no sentido de que ambas as
fontes nos informam que as primeiras medidas de Sólon ao assumir o cargo foram:
1. Cancelar as dívidas (tanto públicas quanto privadas);
2. Banir os empréstimos envolvendo garantia pessoal;
3. Libertar todos os escravos por dívidas;
118
Para Gil Davis, o certo é que a mineração de prata ajudou a transformar a região de Atenas “de uma pacata
península agrária no início do Período Arcaico para uma potência regional e naval dominante pouco mais de um
século mais tarde”. Todavia, apesar de ter grandes depósitos de minério de argentíferos, a polis inicialmente não
utilizava muita prata nativa para a cunhagem (DAVIS, 2014, p. 257). Na segunda metade do século VI a.C., a
prata foi o principal metal através do qual se obtinha a moeda grega. O minério de rolamento de prata só estava
disponível em quantidades comercialmente úteis em algumas regiõesdo Mar Egeu, e as mais importantes delas
foram as regiões da Traco-Macedônia e a Ática.
119
Uma vez instalado, o padrão de peso, que rege as denominações subsequentes da cunhagem, estava indexado
em torno de um dracma de 4,32 gramas e subdividido em seis óbolos de 0,72 gramas cada. Este padrão,
conhecido como Ático-Euboic pelos estudiosos modernos, foi mantido pelo ateniense ao longo da história de sua
cunhagem – um feito raro, uma vez que muitas poleis gregas alteraram seus padrões dependendo do contexto
econômico ou político. Moedas de denominações maiores surgiram como múltiplos do dracma (até 10 dracmas),
bem como moedas fracionárias do dracma, múltiplos ou divisões do óbolo (até 1/8 óbolo); entretanto, o
paradigma econômico estabelecido ao longo do Período Arcaico, a reestruturação do modelo econômico de
141
ainda estavam em fluxo120. Defendemos que a nivelação do arquétipo econômico ateniense foi
instaurado por Sólon, por ocasião da Reforma de Pesos e Medidas.
Na solução proposta por P.J. Rhodes para esta problemática, os antigos autores
simplesmente assumiram a existência da cunhagem no período de Sólon. Ele sugeriu que os
pesos de prata "serviram como uma forma de moeda", e que, portanto, "Sólon, nas leis
promulgadas em 594/3 a.C., expressou os valores determinados em dracmas".
A reforma soloniana representou uma mudança no sistema monetário ateniense de
forma a aproximar-se economicamente de regiões como Corinto, Eubeia, Cyrene e parte da
Magna Grécia (MOLINA, 1998, p. 12). Tais regiões despontavam como áreas envolvidas na
dinâmica das trocas marítimas, como a produção de artefatos de cerâmica (Corinto), o
transporte de excedentes de grãos como trigo (Eubeia) e o comércio de metal (Etrúria).
Victor Ehrenberg argumenta que “até Sólon, a economia monetária mal começava a
exercer qualquer influência em Atenas” (EHRENBERG, 1973, p. 46). O pioneirismo de
Sólon acontece no âmbito econômico com o aumento do peso e da medida da moeda
ateniense, alterando o padrão da moeda, ao adotar as medidas mais largas que o padrão
existente anteriormente em Atenas, a medida pheidinian (padrão utilizado tanto para materiais
líquidos como para sólidos). A Pheidon121 de Argos é atribuído o feito de ter introduzido a
cunhagem da moeda no mundo grego bem como a introdução do primeiro sistema de pesos e
medidas, que vem a ser substituído durante o archondato de Sólon (KELLY, 1976, p. 23-44).
A medida padrão fora utilizada em Égina e em grande parte do Peloponeso, de acordo
com Raphael Sealey (1976, p. 130). Luis Molina (1998, p. 9) afirma que Corinto seria “um
dos principais centros mercantis durante o século VII a.C.”, porque desenvolvera um novo
pesos e medidas de Atenas estabelecido por Sólon – seja na forma de moedas ou apenas na padronização da
valoraçãodos pesos – foi determinante para a estabilidade monetária singular experimentada por Atenas.
120
Assim, por exemplo, os atenienses produziram moedas no seu padrão de peso indígena, que foi baseado no
drachm (= c. 4,3 g) e obol (= c. 0,72 g), com seis obols fazendo um drachm. Os atenienses produziram uma série
de denominações durante o Período Arcaico incluindo tetradrachms (4 dracmas), didrachms (2 dracmas),
drachms, obols e hemiobols (1/2 obols). Seus rivais, o eginetas, por outro lado, utilizaram um sistema diferente,
com base em um drachm de 6,1 g e um obol de 1,0 g. Noutros locais, tais como em Mileto, o padrão foi baseado
em um stater (um termo geral que significa que a maior moeda na série) de 14,2 g com um número de frações
deste peso para baixo até 1/96 avos de um stater. Isso significava que a qualquer momento eram geralmente
muitos padrões diferentes em uso em toda a região, o que muitas vezes torna impossível usar a cunhagem de
uma comunidade para transações em outra.
121
No livro A History of Argos to 500 b.C., de Thomas Kelly, o autor dedica um capítulo a traçar a origem de
Pheidon. Aristóteles teria “agrupado Pheidon em uma classe de tiranos aos quais eram inicialmente reis, mas que
foram capazes de transformar seu reinado em uma tirania”.Não existe um consenso acerca do período em que o
mesmo teria vivido, uma vez que os autores discordam entre si. Plutarco, por sua vez, aloca o reinado de Pheidon
na metade do VIII século a.C., datação descartada pela maioria dos autores atuais. Sabe-se que Pheidon seria
originário de Argos e que teria tentado usurpar os Jogos Olímpicos, marchando até Olímpia, fato que a maioria
dos pesquisadores concorda que não deve ter ocorrido antes de 672 a.C. (KELLY, 1976, p. 23-44)
142
estilo de cerâmica chamado de vasos de "figuras negras" e produzira o que, para William
Biers (1996, p. 138-139), “foi considerada a melhor cerâmica na Grécia”. O autor argumenta
que “é atribuída a Corinto a produção das primeiras ânforas de transporte da Grécia”.
(BIERS, 1996, p. 120-143).
Atenas não tinha se envolvido no movimento mercantil para estabelecer colônias
agrárias até os séculos VIII e VII a.C., nem tampouco um emporion. A crise agrária que
precedeu Sólon sugeria que a polis não tinha um excedente de cereais para estabelecer um
comércio de exportação permanente. Por isso, a necessidade da mudança dos pesos e
medidas, visando a inserir Atenas no circuito comercial/mercantil do Mediterrâneo para
competir com as polis já consolidadas no circuito comercial do Mediterrâneo, como Corinto.
Assim, o pesquisador Gil Davis argumenta que, para que a prática comercial em
Atenas despontasse, era necessário apresentar uma "vantagem comparativa" em relação às
outras poleis. Em outras palavras, era imprescindível que Atenas tivesse “a capacidade de
fornecer produtos a um custo menor do que os concorrentes”, promovendo uma "vantagem
competitiva" por meio da circulação de produtos de alta qualidade para a venda a preços
elevados que extrapolasse as vantagens oferecidas pelas demais poleis concorrentes (DAVIS,
2012, p. 130). Seguindo tal premissa, era imprescindível que a polis ateniense estabelecesse
como expoentes das relações comerciais os produtos pelos quais era notória, como o azeite, o
mel, o vinho e as cerâmicas.
Aristóteles (Constituição dos Atenienses, 10,2) afirmava que as moedas foram
cunhadas em um peso - padrão, sugerindo fortemente que o peso e sistema de cunhagem foi
inter-relacionado, não apenas na Ática, mas em outros territórios da Grécia. Nesse sentido, a
reforma dos pesos e medidas promovida por Sólon teria também o objetivo de facilitar o
comércio com as polis vizinhas, alcançando o Mar Egeu e, possivelmente, o Mar
Mediterrâneo.
A autora Kelcy Shannon Sagstetter argumenta que, na visão de Aristóteles, a
padronização de pesos e medidas foi instituída:
A fim de regular as interações monetárias, tais como financiamentos e emissões de
empréstimos, a abolição da servidão por dívida o direito de qualquer pessoa a
reclamar reparação pelos erros e, mais importante, o direito todas as classes da
sociedade de apelar à tribunais de júri, pois quando a democracia é o mestre dos
votos, torna-se mestre da Constituição". (SAGSTETTER, 2013:79-80)
A abordagem de Joseph Almeida (2003, p. 15-17) defende que, embora nem sempre
haja um consenso entre as narrativas de Plutarco e Aristóteles, o certo é que o trabalho de
Sólon referente aos padrões e às medidas da cunhagem era parte de “um pacote global de
143
reformas econômicas”.Segundo Almeida, Plutarco afirma que Sólon concebeu várias leis
cujas finalidades eram “aumentar a produção doméstica de bens de Atenas e regular uma
relação mais favorável entre as exportações e importações”.
Em uma das passagem de Ética a Nicômaco, Aristóteles argumenta que “é necessário,
portanto, que todas as mercadorias sejam medidas por algum padrão”, a reciprocidade ou
necessidade mútua. Assim quando a polisnão tem o que é preciso si mesmo, por exemplo, o
trigo, e uma outra polis carece de vinho, as duas partes oferecem uma licença para a transação
comercia, demonstrando a interface entre as práticas de importação e exportação através de
exemplos, nos quais o filósofo argumenta:
Haverá, portanto, proporção reciproca quando os produtos foram equacionados, de
maneira que, da forma que está o agricultor para o sapateiro, poderá estar o produto
do sapateiro para o produto do agricultor. E quando eles trocam os seus produtos
têm que reduzi-los à forma de uma proporção, caso contrário um dos dois extremos
encerrará os dois excessos; ao passo que quando eles tem o que lhes cabe são, então,
iguais e capazes de formar uma associação, pois a igualdade nesse sentido pode ser
estabelecida no caso deles [...] enquanto se fosse impossível efetuar a proporção
reciproca dessa maneira, não poderia haver associação entre eles. (Ética a
Nicômaco, 5.5.13.1133b)
“estabelecer a cunhagem ateniense sobre uma base firme e deixar Atenas no controle de sua
própria política monetária”. (MILLER, 1971, p. 25-36)
Para John Boardman, em Plutarco, a narrativa se concentra na importância da
cunhagem, “na sua visão Sólon reduziu o peso do dracma modo que havia 100 a mina em vez
de 70” (BOARDMAN, 2006, p. 383). A relação original entre a mina e o dracma para o resto
do sistema de pesos e medidas ateniense ainda é problemática. Segundo o autor:
Na verdade, fez a mina de cem dracmas, quando dantes era de setenta e três, de
forma que, ao entregarem idêntica soma em número mas inferior no valor, os
devedores ficavam muito beneficiados, enquanto os credores em nada saíam
prejudicados. (Plutarco, Vidas de Sólon, 15.3‐.5)
CONCLUSÃO
Para tecer nossas considerações finais, será necessário retomar alguns aspectos
relevantes que fundamentaram a problemática proposta e o decorrer do desenvolvimento da
pesquisa em geral. Nossa pesquisa amparou-se em duas hipóteses que essencialmente se
materializam na releitura da crise agrária ateniense e na inserção do advento econômico como
referencial metodológico para análise do archondato de Sólon.
Nossa teoria estrutura-se a partir das concepções teórico-metodológicas ancoradas no
conceito de incrustação proposto por Karl Polanyi, no qual as práticas econômicas no Mundo
Antigo são representadas por ações voltadas à aquisição dos meios necessários para satisfazer
as necessidades materiais dos indivíduos, que estariam sempre imersos ou incrustados
(embedded) nas relações sociais (POLANYI, 1957, p.65). Assim, almejamos empreender um
debate historiográfico inerente às obras que contemplassem a análise de Atenas no Período
Arcaico, especialmente no intervalo que precede a ascensão de Sólon como governante – o
qual nos permite contextualizar sua nomeação pela polis – e o contexto social de produção
referente ao campo de ação na sociedade por intermédio de suas medidas políticas e, em
máxime, econômicas.
Por meio deste arcabouço teórico, pretende-se evidenciar como o contexto político-
social é fator decisivo para o fazer poético do legislador ateniense, cujos descontentamentos
populares relativos aos privilégios aristocráticos provocaram profundas transformações
sociais, que se refletem em aspectos característicos da poesia gnômica, como a valorização da
ética e a condenação de riquezas em excesso.
Apropriando-nos do conceito de imaginário social, compreendemos que o simbólico,
apesar de fictício, se relaciona com o real. Tal processo assemelha-se à apropriação das
narrativas míticas, constantemente utilizadas pelos atores políticos como uma forma de
promover a coesão social. A revalorização política de Sólon nos séculos V e IV a.C., fez com
que frequentemente leis fossem atribuídas a ele nos tribunais. As leis recebiam um reforço de
autoridade ao serem atribuídas a Sólon (LEÃO, 2001, p. 140-1), e esta prática transmitiu de
forma fragmentada e suspeita o pouco que se sabe sobre o conteúdo destas leis (SCARFURO,
2006, p. 175-6). Tais atribuições incorretas não passavam por um maior escrutínio da
sociedade ateniense devido à força da oralidade que ainda imperava sobre a escrita; vale
recordar que os primeiros códigos de leis escritos haviam sido criados no VI século a.C. com
a legislação de Sólon (HARRIS, 2006, p. 290-1).
146
Sob tal ângulo de análise, pode-se notar a representação de Sólon pela historiografia,
no sentido de legitimar a plataforma política do novo segmento social ativo da polis de Atenas
no século V a.C.. Durante este período e a posteriori, leis - inexistentes no Período Arcaico -
foram atribuídas ao archondato de Sólon e seu Código de Leis foi utilizado como ferramenta
para corroboração de um novo paradigma socioeconômico, cuja vigência dependia da
inserção do caráter de hereditariedade tão importante na sociedade dos helenos. No caso da
adequação da imagem de Sólon ao modelo da demokratia122, é imperativo atentar para a
memória e seu processo de construção, especialmente em uma sociedade onde a oralidade se
faz tão presente, como a grega.
O discurso como prática social, torna-se um mecanismo facilitador da ação do poder,
possibilitando a construção de todo um imaginário que se edifica sobre a imagem de Sólon.
Segundo o autor, há enunciados e relações, que o próprio discurso põe em funcionamento,
sublinhando a ideia de que o discurso sempre se produziria em razão de relações de poder.
Segundo Eni Orlandi, esse mecanismo discursivo produz imagens dos sujeitos/segmentos
sociais (aristhoi e hectemoroi), assim como do objeto do discurso como a democracia, o
processo de hierarquização social, a atuação de Sólon e a polis de Atenas dentro de uma
conjuntura sócio-histórica, no caso o VI século dos atenienses (ORLANDI, 2003, p. 40). O
fato nos permite compreender o processo de produção de sentido na linguagem próxima ao
campo econômico e as críticas sociais presentes em Aristóteles (Constituição de Atenas e
Política) e a linguagem poética proveniente das inscrições e elegias de Sólon.
Na narrativa aristotélica, o mesmo introduz o cenário político da emergência da polis
ateniense em confluência com as estruturas de poder existentes no processo de construção
socioeconômico da Hélade, oferecendo alternativas de análises para tópicos pouco elucidados
até mesmo pelo próprio Sólon em suas poesias. A narrativa aristotélica aponta ainda para o
archondato de Sólon como o resultado de uma luta entre segmentos sociais, o que se observa
através do uso dos termos "notáveis/plousoi" e "as massas/penetes" ao referir-se aos dois
grupos antagônicos que integravam o embate social da crise agrária ateniense do século VI
a.C. (MOSSÉ, 1924, p. 174).
Muito embora a perpetuação do epíteto de Sólon como “pai da democracia” componha
um discurso construído na Antiguidade Clássica, a historiografia tradicional desempenhou um
122
Segundo Claude Mossé (1924), a palavra democracia surge da junção de dois vocábulos gregos, “demos, o
povo, e kratos, o poder”. No entanto, a pesquisadora ressalta que esta democracia só se aplicava aos segmentos
sociais privilegiados pela divisão censitária de Sólon. Para o Velho Oligarca, “a democracia era o governo dos
pobres e maus, no interesse dos pobres e maus em detrimento dos ricos e bem nascidos” (MOSSÉ, 1924, p. 88-
89).
147
papel fulcral na reprodução de tal arquétipo. Por tratar-se de uma conjuntura permeada pela
memória e reproduzido por meio do fazer poético - relacionado à divulgação de admoestações
e ensinamentos éticos, políticos e morais – as ideias elencadas por Sólon em suas poesias
tornam-se parcializadas, objetos passíveis de interpretação por meio do contexto social de
produção posterior dos autores/leitores/receptores em detrimento das particularidades da
época de Sólon, à medida que as mesmas se desenrolam no fluxo temporal, na qual a escrita
nunca se encontra completa, finalizada. Torna-se ela, portanto, sempre passível de novas
interpretações, preenchidas de acordo com as necessidades do leitor. Sendo assim, a imagem
de Sólon pode ter sido posteriormente manipulada por poetas e escritores, inventando versos
para provar argumentos ou apenas alterando alguns significados para que, historicamente,
possibilitassem a inserção de Sólon como a solução de um problema político do presente
(LARDINOIS, 2006, p.27-33).
Não obstante, a poesia soloniana de cunho político apresenta aspectos característicos
da sociedade ateniense de fins do século VII e inícios do VI a.C., o que torna significativo
situá-la no contexto político-social da Atenas deste período. As conceituações metodológicas
de nossa pesquisa pleitear-se-á dacorpora documental presente nas obras de Aristóteles
(Constituição dos atenienses) e às inscrições poéticas atribuídas a Sólon (Eunomia). Deste
modo, delimitar-se-á o papel da linguagem e, consequentemente, a compilação de um
discurso.
Em sua obra Constituição dos atenienses, Aristóteles (filósofo grego do século IV
a.C.) nos permite analisar o cenário político da emergência da polis ateniense em confluência
com as estruturas de poder existentes no processo de construção socioeconômica da Hélade.
Muito embora os discursos presentes nas duas obras não sejam análogos, quando utilizados
paralelamente como fontes expoentes principais para a análise da legislação soloniana, tais
alocuções tornam-se complementares, pois permitem suprir demandas acerca do contexto
político do século VI a.C.
Defendemos que a liderança política de Sólon estabeleceu os precedentes para o
crescimento das práticas econômicas, conforme observado por Josiah Ober, bem como para a
expansão do comércio ateniense, explicitado anteriormente pela historiografia e pela literatura
clássica da Grécia (OBER, 2016, p. 141). Portanto, o código legislativo estabelecido durante o
Período Arcaico atuou como força motriz por trás de uma ruptura da relação tradicional entre
as elites e os segmentos sociais menos favorecidos, além de estimular a transição de um
paradigma agrícola para uma economia baseada nas relações comerciais e mercantis. O
Período Arcaico demarcou um contexto de expansão das práticas econômicas atenienses por
148
Considerando que a problemática agrária que acomete Atenas tem por base
motivações econômicas, como enfatizado pela poesia de Sólon, a solução encontrada por
Sólon refletira o mesmo referencial, a saber, a economia. O comportamento ambicioso do
segmento social inerente à elite predominante antecipa o problema que se encontra na base do
mau funcionamento da polis, a assimetria entre as relações sociais permeadas pela prática do
jugo compulsório qualificado como escravidão por dívidas.
A prescrição legislativa alicerçada por Sólon, que propunha a participação social
gradativa contemplando os critérios censitários da produção, promoveu a reorganização do
espaço social hierarquizado da polis ateniense. Por meio do estabelecimento de uma
Constituição, Sólon redistribuiu a participação socioeconômica dos segmentos sociais,
introduzindo os novos ricos através dos pentacosiomedimnoi e retirando a hegemonia do
controle político das famílias aristocráticas tradicionais. Segundo Luis Molina, tal medida
teria como objetivo facilitar a inserção da parcela da população excluída do segmento
eupatridai, bem como fomentar a transição de volta para Atenas dos indivíduos que haviam se
auto-exilado ou sido vendidos ao exterior como escravos, através da participação social e
inclusão nas atividades econômicas da polis (MOLINA, 1998, p. 17-21).
Aplicando a abordagem do referencial teórico de Karl Polanyi, tal estrutura social
seria legitimada pelas relações de amizade, consanguinidade, status e hierarquia, a exemplo
da inserção da classe dos pentacosiomedimnoi por Sólon, cujo objetivo era a manutenção do
status do referido segmento social por meio das relações de prestígio (POLANYI, 1968a, p.
72-5). O conceito de redistribuição insere-se no âmbito das relações econômicas internas e
externas de Atenas, na medida em que Sólon promove uma organização interna visando ao
contato com centros comerciais e mercantis externos, mediante a exportação de produtos
como vinho, azeite e cerâmica, que auxiliam na inserção de Atenas na rota comercial e
mercantil do Mar Egeu.
Desse modo, devido ao enriquecimento de indivíduos não aristocratas, os chamados
kakoi, a riqueza deixa de ser vista como um atributo exclusivo do nobre, que tinha como
alguns de seus traços distintivos, em comparação com os demais membros da sociedade, a
origem nobre e a posse de riqueza, tradicionalmente ligados ao luxo excessivo.
152
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168
GLOSSÁRIO
Domesticidade Princípio elencado por Karl Polanyi que implica a produção para
uso próprio.
169
Hélade Palavra que designava todo o mundo grego e não uma cidade ou
território.
Imaginário social Conceito de Bronislaw Baczko que supõe haver uma relação
entre o cotidiano do homem e a simbologia existente por trás de
um determinado acontecimento, para o qual se atribui o valor de
real.
170
Nova ortodoxia O termo teria sido criado para a escola de pensamento de Moses
Finley por um de seus próprios membros, Keith Hopkins, e
servia para designar o conjunto de teorias elaboradas por Moses
Finley e, posteriormente, complementadas por seus discípulos.
Poder Político Poder que o Estado detém sobre seus cidadãos e suas
instituições. (Cf. Norberto Bobbio. Teoria Geral da Política.
2000).
APÊNDICE
I. Processo de Identificação
Sujeito locutor Aristóteles
Sujeito Publico presente na Ágora ateniense (possível local de leitura dos textos): O texto era
interlocutor apresentado através de leituras em banquete promovido pela elite de Atenas composta
de arithoi e olighoi do IV sec.
Material Texto escrito abrangendo informações coletadas, sobre as formas de governo existentes
simbólico na polis ateniense. O autor expõe ainda opiniões e considerações sobre elementos
políticos: relacionamentos entre os governantes e a sociedade, formas de governo,
duração e a datação dos cargos políticos.
Natureza da Discurso Narrativo
linguagem
Textualidade Polis dos atenienses do período do IV século AEC
Objeto do O autor desenvolve de modo detalhado uma narrativa sobre as estruturas políticas de
discurso Atenas. O texto atua no imaginário de quem irá ouvi-lo de forma que transmite o
funcionamento das instituições políticas e da sociedade ateniense através da
comparação entre os modelos de governo exercido por personagens históricos
atenienses.
II. Condição de produção
Diante a perspectiva da reestruturação política através do advento da demokratia,
Aristóteles compõe a narrativa a fim de analisar o caráter político inscrito nas
Elemento instituições atenienses, com a função de expor e estabelecer uma cronologia do regime
político de Atenas. Dessa forma o autor explicita em seus textos de modo a estabelecer
desencadeador
o caráter de hereditariedade dos cargos políticos atenienses, delineando sua cronologia
que remonta ao herói mítico Teseu.
Aristóteles – Estabelece um compêndio sobre toda a história das mudanças
constitucionais atenienses. O autor introduz a segunda parte descritiva do texto, na qual
forças hierarquicamente.
Formação relação simbólica entre o télos da primeira parte da narrativa e o triunfo da democracia
imaginária radical, tal como se apresenta na segunda parte. Aristóteles almeja inferir a situação do
passado através do que existe no presente, ou vice-versa.
III. Processo discursivo
Heródoto -É a única fonte historiográfica nomeada em toda obra, analisando
precisamente outras formas de governo, assim como a ascensão de Pisístrato ao poder
discursiva nomes cargos políticos atenienses. Isso possibilita que contextualmente, o receptor de
seus textos seja capaz de apreender sua mensagem de modo inteligível, construindo
em seu imaginário social uma interiorização por meio da contraposição das instituições
políticas anteriores e posteriores ao advento da democracia.
Aristóteles – Política: O autor almeja estabelecer no texto uma tipologia constitucional
de Atenas.
Intertexto Exegética das Constituições de Cartago, Siracusa, Esparta e Beócia que influenciaram
o autor.
Documento 2 - M. L. West, Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum cantati vol. II, editio
altera. Oxford: Oxford University Press, 1992
1. Processo de descrição do conteúdo
Autor/obra Sólon / Eunomia
Período/região VI séc. a.C/ Atenas.
Publico/privado Privado / Público
texto
Publico presente na Ágora ateniense (possível local de leitura dos textos): O texto
Processo de interação era apresentado através de leituras em banquete promovido pela elite de Atenas
composta de aristhoi e olighoi do VI século a.C.
Conceitos Sua preocupação com a motivação dos contexto político ateniense o levou a expor
operacionais do texto os discursos que teriam pronunciado para justificar seus atos ou incentivar a
prática dos que almejavam realizar.
Monofonia/Polifonia: Polifonia - Faz referencia a elementos de contextualidade histórica, como os horoi
e a escravidão por dívidas.
1.3. Seleção do Conteúdo
Temas Citação Objetividade
FR 1W Sólon defende sua estratégia
política para incitar a
Eu mesmo vim, como arauto, da adorável
Salamina, população ateniense em prol
da recuperação do território
Salamina, arauto tendo composto uma ode, adorno de
palavras, em vez de um discurso. de Salamina.
FR 4 W Relaciona os antagonismos
sociais desmedidos ao
Nossa polis jamais perecerá pela vontade
de Zeus contexto de crise m Atenas
devido à ganância dos
Antagonismos e pelo querer dos bem-aventurados
deuses imortais; eupatridai.
Sociais, Ganância
pois a tão magnânima guardiã̃, filha do
poderoso pai,
FR 10 W Remete à publicização de
suas leis;
Um breve tempo revelará minha loucura
Verdade, leis aos cidadãos,
Fonte - Axones virados em direção à borda, com uma desmontado para exibir a seção triangular.
(HOLLAND, 1941, p. 346-362)
189
Anexo 2 - Axon
Fonte - Duas das quatro bases de pedra encontrados no lado oeste da Ágora. (DAVIES, 2011, p. 8)
191
Anexo 4 - Kyrbeis
123
Temos conhecimento da existência de uma discussão acerca da datação desta obra. Entretanto, a escolha deste
intervalo foi fundamentada na explanação de Pedro Ribeiro Martins (2013:35), concordando com as
argumentações de Ste Croix (1972:309) e Marr e Rhodes (2008:6).
124
A historiografia, de um modo geral, discorda acerca da autoria da Constituição dos Atenienses. A corpora
documental geralmente confirma Xenofonte como autos, entretanto, alguns pesquisadore modernos
desenvolveram argumentos sistemáticamente contrários a esta proposição. Em termos da ultilização da
documentação neste trabalho de pesquisa acadêmica interessa-nos o discurso presente na obra, em detrimento de
sua autoria. Deste modo, nos utilizaremos da definição de Pedro Ribeiro Martins para justificar não a autoria da
obra, mas sim o perfil do autor. Segundo Martins: trata-se de um Ateniense extremamente autoconfiante e com
um programa político bem definido. As crenças que defende têm base em uma ideologia oligárquica, mas suas
propostas práticas dialogam com o regime democrático. É um homem de ação, talvez um estratego, um hiparca
ou um trierarca, e participa da política ateniense assiduamente. É um homem culto, frequenta os círculos
intelectuais e está familiarizado com as ideias dos sofistas, apesar de não ser um deles. (MARTINS, 2013:33)
125
Xenofonte, Constituição dos Atenienses. 2.2.11-12.
126
Tucídides, História da Guerra do Peloponeso. 1.120.2.
193
do território.
127
Xenofonte. As Helênicas. 6.1.11.
128
Platão, As Leis. 8.847b–d.
194
Fonte: Adaptada de BRESSON, Alain. Aristotle and Foreign Trade. In: HARRIS, Edward et al. The ancient
Greek economy : markets, households and city-states. United Kingdom: Cambridge University Press, 2016. p.
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129
Políbio, História. 4.38.8–9
195
Fonte: Esquema Sintético sobre o livro A Grande Transformação. MACHADO, Nuno C. Sociedade vs. Mercado
– Eotas Sobre o Pensamento Económico de Karl Polanyi. Lisboa. 2009, p. 144
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Fonte - Notas de Karl Polanyi sobre o conceito de simetria. Karl Polanyi Institute of Political Economy.
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Fonte - Notas de Karl Polanyi sobre o lucro. Karl Polanyi Institute of Political Economy.
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Fonte - Notas de Karl Polanyi sobre dinehiro. Karl Polanyi Institute of Political Economy.
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Fonte- Notas de Karl Polanyi sobre as Formas de Comércio. Karl Polanyi Institute of Political Economy.
www.concordia.ca/research/polanyi/archive.html. Acessado em: 21/07/2015 às 21:30 h.
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Fonte - Notas de Karl Polanyi sobre as Formas de Integração. Karl Polanyi Institute of Political Economy.
www.concordia.ca/research/polanyi/archive.html. Acessado em: 21/07/2015 às 21:30 h.
202
Fonte - GOMES, José Roberto de Paiva Elaborando um campo de experimentação comparada a partir das
funções sociais das musicitas-citaristas hetairas com as das pedagogas representadas nos vasos áticos
produzidos durante a tirania dos Pisistratidas (560-510 a. C.) /José Roberto de Paiva Gomes. – Rio de Janeiro:
UFRJ, 2015, p. 40.
203
Fonte - OSBORNE, Robin. Classical Landscape with Figures: The Ancient Greek City and its
Countryside.Londres: George Philip e Dobbs Ferry, Nova Iorque: Sheridan House, 1987, p. 15.
204
Fonte - FOXHALL, Lin. A view from the top: Evaluating the Solonian property classes. In: The Development of
the Polis in Archaic Greece. Routledge: New York, 1997. p. 70.
206
Fonte: Região do Kerameikos em Atenas – GOETTE, Hans. Athens, Attica and the Megarid: an archeological
guide. London: Routledge, 2002. p.77.